REVISTA “NOVA ATENAS” DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA REVISTA ELETRÔNICA DO DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTES – BIOLOGIA - SEGURANÇA DO TRABALHO
Volume 8, Número 02, jul/dez/2005 (Disponibilizado em dezembro de 2006)
QUESTÕES PSICOLÓGICAS DO ESPORTE João Batista Freire www.decorpointeiro.com.br Um circo de horrores Um dos acontecimentos decisivamente marcantes da história do Brasil foi uma inconfidência, a mineira, que sacrificou Tiradentes, mas não a idéia de independência. Inconfidência quer dizer infidelidade, deslealdade, alguma coisa que nunca deveríamos praticar. No século XVIII, no entanto, a deslealdade à Coroa portuguesa foi a maneira mais digna de se assumir brasileiro para os conjurados de Vila Rica. Por tudo o que tem acontecido ultimamente, dentro e fora dos campos esportivos, o esporte está morrendo. A liberdade de ser autônomo, justo, emancipado, inteligente, solidário, feliz tem sido tolhida em cada atleta, em cada torcedor. Há excesso de fidelidade aos desmandos do esporte; faltam inconfidentes. Fôssemos mais inconfidentes e a cortina de ferro que envolve os bastidores dos treinamentos esportivos teria sido rompida. Muito se fala à boca pequena, mas pouco é dito publicamente sobre as práticas obscuras de técnicos e dirigentes, particularmente no que se refere aos métodos de preparação para a obtenção de grandes performances. Sobre a prática de corrupção, das federações aos comitês olímpicos, até que alguns crimes têm sido denunciados ultimamente. Os atletas que se tornam vítimas de tais métodos, incluindo da tortura à chantagem, confidenciam a amigos os abusos sofridos, mas não se rebelam contra eles, não dizem publicamente o que sabem, não praticam inconfidências contra o poder que os maltrata. São calados pelo dinheiro recebido ou
prometido, ou pelas ameaças esplícitas ou veladas de punição e de ruína de suas carreiras esportivas. Quantas vezes, enquanto fui técnico desportivo, recebi confidências de atletas
drogados
por
seus
técnicos
ou
torturados
em
treinamentos
absurdamente exaustivos; no entanto, quando lhes perguntava se diriam aquilo em público, eles respondiam que não. Durante anos, aguardei algum tipo de inconfidência, pelo menos daqueles que amadureceram e deixaram de ser atletas, mas isso nunca aconteceu. Um exemplo marcante? Provavelmente nunca saberemos exatamente o que ocorreu com os jogadores de futebol da seleção brasileira durante as horas que antecederam a final contra a França, na Copa do Mundo de 1998. Mesmo aqueles que já deixaram o futebol dificilmente falarão publicamente o que sabem. Quem esquecerá a imagem da pobre garota brasileira da ginástica olímpica, que, após um gesto arriscado, arrebentou a perna às vésperas de uma olimpíada? Fadiga de material! Os ossos e tendões não suportaram. Mas ela não se queixou publicamente, não denunciou ninguém, não praticou a inconfidência que tanto aguardei. Não há inconfidentes no esporte. O pacto de silêncio é tão forte que um ou outro conjurado causa assombro, de tão raro. Ninguém quer passar pelo sofrimento pelo qual passou Aurélio Miguel, um dos poucos que já se atreveram a enfrentar os coronéis do esporte. Ainda se poderia citar o dr. Sócrates, mas a insubmissão dele também direcionou-se contra os coronéis, cujo dossiê, em parte, foi levantado pela CPI do futebol. Entretanto, neste texto, darei preferência ao que ocorre na prática do treinamento desportivo, hoje em dia, impropriamente chamado treinamento científico. Mais especificamente quero me referir às chantagens praticadas por técnicos e dirigentes para que os atletas treinem mais, aos excessos de treinamento, aos absurdos dois turnos adotados por quase todos os esportes. A imprensa registrou casos de treinamentos de voleibol que chagavam a oito horas diárias de práticas. A especialização precoce no esporte é uma crença nacional, como se a alta performance dependesse sempre do sacrifício da infância.
Nosso atletas de alto nível, não raro, são arrancados de suas infâncias e adolescências, chegam a alguns grandes resultados e se tornam doentes, vítimas dos excessos de treinamentos, às vezes das drogas ou do isolamento social. Faço coro às críticas do professor Manuel Sérgio, registradas em um de seus últimos trabalhos:
Quando se proclama, por aí, com muita irresponsabilidade à mistura, que o desporto dá saúde – importa salientar a que desporto nos referimos, pois as vedetas do desporto de alta competição findam, quase sempre, as suas carreiras desportivas com deficiências físicas, decorrentes de uma prática que os instrumentalizou. Ninguém faz este desporto para Ter saúde; fá-lo porque tem saúde. (1)
Se perguntarmos a esses jovens atletas em plena ascensão por que se submetem a isso, ouviremos deles, com freqüência, que estão fazendo o que mais querem fazer na vida. Esse argumento é esgrimido como justificativa dos desmandos contra essas crianças, como se, na infância, fossem capazes de definir com absoluta segurança seus rumos de vida, quando nem nós, adultos, o sabemos. Tanto não sabem sobre o crime praticado contra eles, porque são crianças, que, se tentarmos retirar dos monturos meninos e meninas catadores de lixo, também eles se recusarão a sair. Quem não conhece outras opções, quem teve seu universo de possibilidades limitado a esse ponto, não tem escolha. Fica fácil para quem dirige atletas argumentar com o discurso dos próprios atletas. Esse é o quadro atual do esporte que tanto aplaudimos. Esse é o circo de horrores no qual são produzidos os feitos heróicos de boa parte dos nossos ídolos esportivos. Vale a pena fazer esporte dessa maneira? De minha parte, estou convencido que não e, se dependesse de mim, isso terminaria. Assim como a justiça não aceita confissões sob tortura, também os resultados esportivos sob tortura não deveriam ser aceitos. Muitos sabem que isso acontece, mas quase todos se calam. Não é estranha a ausência de denúncias
de abusos na imprensa esportiva? Não é estranho o silêncio dos técnicos mais famosos, nas várias modalidades esportivas, quanto ao uso de drogas, por exemplo? Qual o sentido de um esporte cruel como o que aplaudimos? Preferiria que ele não existisse. A continuar desse jeito, será cada vez menos jogo e mais trabalho. Até que se extinga de vez, transformado em rotina exaustiva, que fará expectadores dormirem nas arquibancadas ou diante das telas de TV, tal a sua monotonia. O esporte só faz sentido porque é jogo, porque mobiliza nossa dimensão lúdica. Quando deixar de ser assim, e isso está próximo, que sentido terá para nós? A não ser, talvez, a violência, por motivos obscuros, sempre preservada; violência intolerável por vários de nós, mas lúdica, sim, porque o jogo não é feito só de virtudes. Antes, porém, de nos conformar com a atual situação, podemos pensar se o esporte não poderia ser feito de outro jeito. A única forma de fazer esporte seria essa, estúpida, que transforma jogadores em trabalhadores forçados, crianças em miniaturas de adultos, divertimento em rotina de trabalho? A arte corporal do esporte só pode ser conseguida com torturas, com drogas, com doses cavalares de creatina? Um jovem precisa transformar-se num monstro para ser atleta? O esporte tem mesmo de consolidar-se como um circo de horrores? Claro que não, e os exemplos contrários a isso são fartos em nosso país, para quem quiser ver. Em seu bairro, no Rio de Janeiro, durante muitos anos Mané Garrincha, brincando, aprendeu a arte de jogar futebol de uma maneira inigualável em todo o mundo. Mesmo depois de se tornar profissional, continuou brincando pelos campos de nosso País, até que a violência consentida do esporte acabou com a arte que maravilhava nossos olhos. Também não foi repetindo as rotinas estúpidas de uma escolinha de futebol que Pelé aprendeu a jogar, mas brincando com uma bola na várzea de Bauru. E assim aconteceu com grandes craques do futebol brasileiro, do basquetebol nos Estados Unicos, do hóquei no Canadá. Portanto, há uma outra maneira, sim, de fazer esporte. Nossos “cientistas” do esporte, com suas creatinas e outros suplementos alimentares, tornaram-se cegos para a pedagogia.
Aspectos psicológicos do esporte O argumento científico é muito forte. Tão forte como foi o argumento religioso, séculos atrás. Uma certa ciência convenceu-nos amplamente de que esporte só pode ser feito da maneira como é feito, transformando-o num circo de horrores em que pessoas são drogadas, torturadas e submetidas a trabalhos forçados, em que dirigentes corrompem e são corrompidos, e o único norte a orientá-lo chama-se dinheiro. Corpos são vendidos como mercadorias baratas ou caras, como se fazia nos mercados de escravos ou como ainda acontece nas zonas de prostituição. Porém, essa ciência está errada, ou malintencionada. Ela deixou, por exemplo, de considerar o mais forte dos argumentos: o esporte é uma manifestação de jogo, portanto, deve ser praticado
como
jogo,
como
brincadeira,
diversão,
risco.
Por
suas
características, o esporte opõe-se ao trabalho, sem eliminá-lo. Em várias modalidades esportivas, encontramos técnicos que desenvolveram verdadeira aversão ao jogo, chegando ao ponto de não admitir em seus times jogadores que se atrevem a jogar. Portanto, não é a ciência, de modo geral, que se opõe ao esporte, substituindo-o por um trabalho semi-escravo, mas uma certa ciência, uma determinada idéia de ciência, que se desumanizou e não leva em conta a subjetividade do pesquisador ou do sujeito pesquisado. (2) Sem dúvida, há outras maneiras de fazer esporte, porem, menos convincentes, porque não usam o argumento financeiro como o decisivo. Tal esporte vemos nascer em todos os lugares em que há crianças brincando e cidadãos comuns se divertindo. Esse esporte, que manifesta tão bem o espírito do jogo, tem sido o nascedouro, ainda hoje, de grandes artistas em todo o mundo. Muito se poderia falar, tanto sobre os equívocos dos tais cientistas do esporte que estou reprovando como sobre as alternativas a essa ciência. Porém, o tempo e o espaço são curtos e tenho de me ater a um tema específico. Do tanto que se poderia dizer, fico com uma das possíveis questões psicológicas do esporte que me ocorrem, de modo a encaminhar alternativas ao circo de horrores que mencionei: a inteligência do esporte.
A inteligência humana Não há questão humana que não seja também psicológica. Nenhum de nós tem o poder de, repentinamente, determinar que essa ou aquela questão deixou de ser psicológica porque é eminentemente lógica. Sequer sabemos se o mundo que vemos é, em si, exatamente como o vemos ou se o que constatamos é apenas produto de nossas representações. Não é espantoso verificar que um mesmo acontecimento apreciado por uma multidão de pessoas é descrito por cada uma delas de forma completamente diversa? Deixo claro, portanto, desde o início, que não acredito haver alguma questão no esporte que não seja, inclusive, psicológica. Convencionemos, pois, que, nesse caso, vamos realizar uma abordagem sem reportá-la diretamente a outras dimensões e vamos chamar de psicológico aquilo que é também intelectual, físico ou social. Não sendo psicólogo de formação, tendo apenas realizado meu doutorado em psicologia, tornei-me, entre outras coisas, um interessado nos estudos sobre o desenvolvimento da inteligência. Se posso contribuir nesse debate, portanto, o farei naquilo que se refere ao exercício da inteligência no esporte, não sem antes ter declarado minha descrença em relação ao embuste praticado por todos os que, dizendo-se investigadores, realizam os desmandos já apontados neste artigo, e faço coro, nesse caso, a diversos outros autores mais competentes que eu. Escolhido esse caminho, crio, de saída, para mim, e talvez para o leitor, um outro complicador, pois as pessoas, de modo geral, acostumaram-se às explicações. Talvez elas busquem encontrar neste texto, mais que qualquer outra coisa, algumas explicações sobre o que vem a ser inteligência, mas isso não tenho. Posso buscá-las às dúzias em diversos autores, mas creio que seriam todas inúteis. Reparem que não falei em compreensão, mas em explicações. Quanto à compreensão, quem não a tem? O que não sabemos fazer direito é explicar as coisas, mesmo podendo compreendê-las; o que não conseguimos é colocar para fora o produto de nossa compreensão, uma vez que é extremamente difícil transformar em palavras o que sabemos, pois o que
sabemos não tem, dentro de nós, a ordem linear de palavras e frases faladas ou escritas. A explicação é uma espécie de prestação de contas que se faz de uma compreensão; ela dirige-se ao mundo exterior, objetivo. Nem sempre conseguiremos explicar o que compreendemos e julgo mesmo que a melhor maneira de fazer o outro compreender é, em vez de explicar-lhe alguma coisa, dialogar com ele, argumentar. Se a nossa questão central pudesse ser resumida a um conjunto de explicações, eu começaria pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, farto nelas. Posso encontrar ali, por exemplo, que a inteligência é a “capacidade de resolver problemas e empenhar-se em processos de pensamento abstrato” (3) Poderia também recorrer à biologia, sendo curto e grosso: “A inteligência é uma adaptação”. (4) Ou ainda, segundo Piaget, “Afirmar que a inteligência é um caso particular da adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é essencialmente, uma organização e que a sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo estrutura o meio imediato”. (5) De que valeria repetir o que tão freqüentemente é dito sobre a inteligência, ou seja, que ela é uma capacidade de resolver problemas? Por mais que eu transcrevesse aqui explicações sobre a inteligência, isso pouco nos ajudaria. Assim, o caminho deve ser outro, no caso, o da argumentação e o da descrição. Além do mais, não podemos esquecer o nosso problema específico – a inteligência no esporte - , ainda que sejam consideradas suas relações com o mundo além do esporte. O objeto central de investigação na minha tese de doutoramento foi a relação entre as dimensões sensível e inteligível do ser humano. Teria sido por demais longo e exaustivo examinar as relações entre todas as dimensões humanas (estética, afetiva, lúdica, entre outras). (6) A dificuldade maior, em uma tarefa como essa, seria estudar as relações do sujeito com ele mesmo, pois os nomes dados a certas manifestações do ser humano são designações diferentes para a mesma coisa, uma coisa de muitas faces. Eventualmente, em determinadas circunstâncias, dizemos, por exemplo, que uma pessoa está alegre, que está brincando. Percebemos nela um traço lúdico que se sobrepõe, naquele momento, aos demais. Há um instante
registrado por nossa percepção em que observamos um sujeito lúdico. E o sujeito inteligível, ou o sujeito ético: onde estariam eles? Sem dúvida, não se ausentaram, são todos o mesmo sujeito, apenas ocorreu que, naquela circunstância, a face lúdica transpareceu mais do que as outras. Em outro momento, a face crispada de uma pessoa, o seu olhar ensandecido indicam que ela está com raiva. Suas palavras denotam desequilíbrio e ela, como se diz, perde a cabeça e comete desatinos. Temos aí um sujeito emocional. O que houve, nesse momento, com o homem racional? Ele continua ali, apenas não tem o predomínio. As circunstâncias do momento mobilizaram a dimensão emocional mais que qualquer outra, porém, por menos que o faça, a dimensão racional mantém seus traços, de modo a não fazê-lo perder-se na raiva que o acomete. Da mesma maneira, o pesquisador, à frente do quadro repleto de cálculos, não abandonou suas outras dimensões, continua sendo o mesmo diferente, tanto lúdico quanto estético ou social, a depender das circunstâncias de sua vida. Retomando o tema central deste texto, julgo que ser inteligente implica ser capaz de tornar inteligível para si, e eventualmente para outros, o mundo de acontecimentos, tanto externos quanto internos. Somente quando me faço inteligível, posso me entender e ser entendido, de modo que a inteligência incumbe-se de colocar minimamente em ordem todas as coisas que ocorrem dentro e fora de mim, não importa como as chamemos, desde os mais elementares impulsos aos mais complexos fenômenos sociais e naturais. Uma criança com três anos de idade pode apavorar-se com o escuro de seu quarto e chorar, o que não mais ocorrerá quando tiver instrumentos para tornar inteligível o quadro que até então a apavorava. Assim, pode-se afirmar que as designações com que procuramos nominar cada parte do ser humano por nós definida, não são apenas nomes diversos de uma mesma coisa, mas também consistem em dimensões diversas de um todo interpenetrando-se e concorrendo para uma atividade humana justa e equilibrada. Se, em uma mulher encarregada das poderosas decisões econômicas de um organismo financeiro internacional, as dimensões da emoção, da sociabilidade, do lúdico, da ética não concorrerem para equilibrar
os desígnios da razão, o resultado de suas decisões poderá ser desastroso. Um adolescente raivoso que não receber o devido socorro da razão poderá perpetrar atos ruinosos. Tais argumentos esvaziam o sentido das tentativas simplistas de explicações sobre o que é inteligência, por muito tempo aceita como referindose apenas a operações lógico-matemáticas. Reduzir o conceito de inteligência a um simplismo tão grosseiro parece, à primeira vista, um equívoco primário de pessoas pouco instrumentalizadas. Porém, numa análise mais extensa, tal redução condenou populações inteiras a uma forma hedionda de educação que permanece até hoje. Como resultado, testemunhamos a existência de um mundo às voltas com um grande número de problemas gravíssimos, sem saber a maneira de solucioná-los, deixando a cargo dos que alcançaram o poder político a tarefa cotidiana de fingir soluções sociais, quando não fazem mais que resolver seus particulares problemas políticos e financeiros. O tema da inteligência é excessivamente longo para ser esgotado num texto curto como este. Neste espaço reduzido, um recorte faz-se necessário, limitando a discussão às aplicações da inteligência no esporte.
A inteligência no esporte Em hipótese alguma uma pessoa que faz esporte deveria desenvolver sua inteligência apenas nesse campo. É absurdamente injusto, apesar de ocorrer com exagerada freqüencia, praticantes do esporte terem seu universo inteligível reduzido aos limites do campo esportivo. A vida deveria ser, para todos, mais que uma quadra de voleibol, uma pista de atletismo ou um tablado de ginástica olímpica. Não sei por que razão a nossa sociedade, que rejeitou tão fortemente a ditadura militar instalada no Brasil em 1964, é tolerante com as ditaduras esportivas. Quando um atleta brasileiro sagra-se campeão em alguma modalidade esportiva, a imprensa, por exemplo, tece elogios indiscriminados à conquista, sem dar-se ao trabalho de verificar como ela foi conseguida. Às vezes, o feito esportivo foi obtido sob tortura, como ocorre, com tanta freqüência, no voleibol ou na ginástica olímpica, para ficar apenas em dois exemplos. No caso dessa
última, técnicos e técnicas exibem com orgulho os depoimentos de suas crianças e adolescentes campeões. Geralmente os pequenos atletas eximem de culpa os seus torturadores, dizendo que renunciam aos brinquedos, aos namoros, aos passeios, à vida pessoal, porque estão convictos de que treinar para serem campeões é o que mais querem na vida. As possibilidades de ser inteligente, para qualquer um de nós, são ilimitadas, se pudermos viver intensamente situações diversificadas e motivadoras. No caso da excessiva exposição aos treinamentos de alto nível, há pelo menos duas agravantes quanto ao desenvolvimento da inteligência. A primeira é a redução da diversidade de situações, pois o praticante realiza um excesso de uma coisa só. A segunda é o aprofundamento cada vez maior nessa
única
coisa,
uma
superespecialização,
reduzindo
inclusive
as
possibilidades de desenvolvimento daquilo que representava o objetivo mais específico da preparação esportiva. O que se poderia fazer, então? Haveria outro caminho a seguir no desenvolvimento esportivo que não esse percorrido tradicionalmente, que inclui, nos casos extremos, especialização precoce, contusões, limitações da inteligência, excessos de treinamento e uso de drogas? Claro que há e, como já afirmei aqui, ele foi seguido por vários excepcionais atletas do futebol, entre eles, Garrincha, Pelé e Maradona, que aprenderam enquanto brincavam, como qualquer criança de vida normal. Fossem nossos técnicos esportivos melhores observadores, encontrariam nesses fenômenos esportivos a orientação mais segura para suas pedagogias. Refiro-me, mais especificamente, à educação esportiva, essa coisa que tem sido tão bem feita pela cultura popular em algumas modalidades esportivas e que os “gênios” do nosso esporte teimam em não reconhecer. A educação esportiva sistematizada em centros esportivos, escolas e clubes teria a incumbência de fomentar o exercício e o desenvolvimento da inteligência, particularmente para as situações do esporte e no contexto mais geral da sociedade, pois de nada vale saber esporte se nada soubermos da vida. Reporto-me à inteligência como a ação de tornar inteligíveis as coisas, para si
e para os outros, ou seja, como um arranjo particular de produções, desde os impulsos mais primários às mais delicadas percepções estéticas. Sendo muito amplo o tema, abordarei apenas alguns itens, possíveis neste texto, julgando-os, nesse momento, os mais importantes, de acordo com a linha de raciocínio que estou seguindo. Quero apenas mostrar a existência de outros caminhos para se desenvolver a prática esportiva, além do comum e tradicional, que tem gerado tanta estupidez.
O jogo deve ser jogado Esse título serviu-se daquilo que, há muito tempo, vem dizendo a sabedoria popular. Existe uma certa ordem em todas as coisas e em conformidade com o contexto em que elas se inserem. Estar de acordo com essa ordem é dar à ação uma simetria, uma estética, que a torna inteligível. Esporte é jogo, é manifestação de jogo, como também o são outras manifestações – as brincadeiras, lutas danças e ginásticas, entre diversos outros exemplos possíveis. O conceito de jogo engloba muitas manifestações, várias delas descritas em um trabalho recentemente publicado. Tive a oportunidade de afirmar, entre outras coisas, que:
Resta, portanto, buscar o significado do jogo, não mais na caracterização infindável de partes que o compõem, mas sim na identificação dos contextos em que ocorre. Seguramente há um nicho ecológico que acolhe o jogo e lhe permite se manifestar, o único ao qual ele se adapta. É nesse ambiente que temos que penetrar para tentar compreender o fenômeno do jogo. (7)
Compreende-se,
por
conseguinte,
que,
sendo
o
esporte
uma
manifestação de jogo, ao se dedicar às práticas, o esportista penetra nesse ambiente, habita um contexto que, embora integrado por elementos também presentes em outros meios, forma naquele momento um arranjo particular caracterizado como jogo. Assim, para sair-se bem, para dar conta da situação
lúdica específica naquele instante, ele tem que ser capaz de jogar, sem confundir isso com outras situações não lúdicas. A confusão que se faz é freqüente: os orientadores (técnicos, dirigentes, preparadores físicos) confundem jogo com trabalho. Ao contrário do que era permitido a jogadores como Pelé, Garrincha e Maradona, no futebol de tempos atrás, esses profissionais impõem rotinas exaustivas que poucos trabalhadores suportariam, descaracterizando o jogo. O resultado final é uma prática de pseudojogadores que se aborrecem com o que fazem, não alcançam o nível da arte em suas performances, perdem qualidade nos movimentos realizados e deixam escapar a idéia mais geral do contexto de jogo. Se conseguem se sair bem, é apenas porque os demais jogadores das outras equipes também são orientados da mesma maneira, tornando, portanto, menor a qualidade do jogo praticada em todas as equipes. Alguns resultados desse conceito imposto ao jogo, pelos capatazes do esporte, são recentes e evidentes. Na Copa do Mundo de 1994, a seleção brasileira de futebol, de baixíssimo nível técnico, foi a vencedora de um grupo especialmente típico de seleções de péssima qualidade. Realizou-se um campeonato de trabalho, e não de jogo, em que os operários da seleção brasileira, à exceção de um ou outro jogador, estavam lá para cumprir rotinas de trabalho, em vez de práticas de jogo. Na atual seleção brasileira de futebol, que vai à Copa de 2002 (escrevo antes do início da Copa), é nítida a preferência do técnico por atletas pouco criativos, menos jogadores e mais operários Poucas vezes, jogadores do nível de um Denilson ou um Romário poderão Ter lugar entre os 11 titulares – eles brincam, e isso é proibido. Ainda assim, se houver lá entre eles, algum que saiba brincar, isso fará a diferença. Trabalho e jogo inevitavelmente se confundem. No esporte, contudo, predomina o jogo sobre o trabalho; caso contrário, não é jogo. No jogo, ser inteligente é jogar.
O jogo coletivo deve ser jogado coletivamente Boa parte dos esportes conhecidos é coletiva. Deixar predominar em sua prática atitudes individuais é contrariar a inteligência do jogo. No jogo
coletivo, ser inteligente é ser coletivo, o que não significa abrir mão da individualidade, pois o coletivo integra diferenças. De nada valeria que todos fossem iguais, pois não haveria trocas. O segredo está na harmonia da integração. Alguns esportes, como o voleibol, em especial seus treinamentos, embora pareçam cada vez mais uma linha de montagem fabril, tal a mecanização das rotinas, caracterizam-se por um formidável esforço coletivo. No último campeonato brasileiro de futebol, muitas pessoas se surpreenderam com o êxito de equipes consideradas menores (em relação a campeonatos brasileiros), entre elas, o São Caetano e o Atlético Paranaense. Não perceberam, porém, que nessa época de ausência de jogadores talentosos, tais times conseguiram compensá-la pela dedicação coletiva. Ora, se o esporte é coletivo, a equipe que se comporta mais coletivamente tem aumentadas as chances de êxito. Nesse caso, uma inteligência para a cooperação é especialmente requerida.
A abertura de possibilidades A crença na superespecialização instalou-se na nossa sociedade e parece que veio para ficar por muito tempo. O esporte não escapou a essa crença. Mesmo consagrado, o excesso de especialização parece que leva as produções a um beco sem saída. Há uma crise de criatividade em todos os setores. Amontoam-se os graves problemas na sociedade global, sem que apareçam soluções criativas. Pouco se faz além da repetição das velhas fórmulas produzidas pela hiperespecialização. O esporte segue a mesma regra, e de tal maneira que poucos se lembram dos heróis das últimas Olimpíadas. É mais comum as pessoas recordarem os nomes de atletas como Jesse Owens, da década de 30, do que do campeão dos 100 metros rasos da olimpíada realizada recentemente na Austrália. O esporte tem corrido atrás somente do dinheiro, um Deus que exige sacrifícios permanentes de almas. Poucos atletas escapam ao seu altar de sacrifícios. Praticam uma monotonia sem fim, que faz dormir os expectadores mais insistentes.
Recentemente, milhões de brasileiros passaram meses aguardando que a seleção brasileira despertasse, finalmente, para a arte, que sempre marcou nosso futebol. Chamou mais atenção a comissão parlamentar que investigava a corrupção na CBF do que a modorrenta campanha dos comandados de Luxemburgo, Leão e Luis Felipe Scollari, o trio que parecia estar representando o nada, aquela peste que ameaçava de extinção o mundo de fantasia, no livro A
História
Sem
Fim.
(8)
A
monotonia,
a
falta
de
criatividade,
a
superespecialização estéril tem seus vícios fundados na raiz do conceito atual do esporte, tanto na sua aprendizagem como na consolidação das grandes equipes. Alguns esportes, como o voleibol, insistem nas velhas fórmulas de fazer a iniciação dos jovens nas suas próprias equipes. Realizam triagens, escolhem os mais altos e os colocam nos trabalhos de formação de base. Poucos professores, nesse nível, são capazes de ir além do exaustivo exercício de repetir interminavelmente gestos absolutamente descolados do contexto do jogo. Outras modalidades, como o futebol, recrutam seus quadros entre os jovens que aprenderam, nas brincadeiras, a dominar a arte desse esporte. Mas apesar desse privilégio, depois do recrutamento, o talento desses jovens costuma ser extinto nos grandes clubes, dando lugar à grotesca performance de zagueiros e meio-campistas constituindo mais uma divisão de “panzers” que um time de futebol. Não é assim que se formam as coisas na natureza. Claro está que nosso meio ambiente não é natural, mas cultural. Não obstante, nenhum de nós está aqui para contrariar as leis que regulam todas as coisas do universo. A natureza se forma na diversidade; por que motivo os seres humanos deveriam aprender na especialidade? Na formação de base, todas as coisas devem ser aprendidas por experiências as mais diversificadas possíveis. Para argumentar a favor dessa idéia, pode-se recorrer às obras de estudiosos da área da física, por exemplo, como Stephen Hawking, (9) que, em seu admirável livro O Universo Numa Casca de Noz, desfila uma monumental coleção de argumentos. Ou pedir ajuda a outro brilhante pensador, do campo da biologia, o professor Jacques Monod. (10) Sem muito esforço, aprenderíamos com ele a
respeito da diversidade como fundamento da formação das coisas mais básicas da natureza. Entre tantos investigadores de peso, a obra que mais me chamou a atenção a esse respeito é um dos últimos trabalhos publicados por Piaget, O Possível e o Necessário. (11) Segundo esse autor, qualquer ação, antes de ser realizada, deve ser tornada possível. Em outras palavras, quando uma criança, por exemplo, tem que lançar uma bola na direção da meta de futebol ou de handebol, antes de fazê-lo, por um processo que geralmente lhe escapa à consciência, cria um leque de hipóteses. Em seguida, uma dessas hipóteses será testada, levando ao êxito ou ao fracasso. Ou seja, a necessidade de realizar uma ação torna-se responsável pela criação de várias ações possíveis. A ação escolhida entre todas as outras para realizar o objetivo da criança poderá levar ao êxito, e nesse caso ela será reforçada, ou ao fracasso, criando nessa situação outro tanto de possibilidades, caso ela tente realizar novamente a ação. Na busca de argumentos a favor dessa tese, tive a oportunidade de, junto com um colega de pesquisas, observar crianças dando fartas evidências de que, antecedendo uma determinada ação, criavam diversos possíveis (não importa se motores ou mentais, porém, o que nos ficava visíveis eram os sintomas motores). Nós as colocávamos diante da tarefa de pular corda. Nessa brincadeira, elas tinham de entrar na corda já em movimento e realizar quantos saltos quisessem. Para fazer isso, os filmes e gráficos decorrentes o demonstram, vários gestos semelhantes ao pêndulo da corda eram realizados por seus segmentos corporais antes de elas se lançarem à ação pretendida. (12) Imaginemos, a partir daí, que, para aprender a jogar um esporte qualquer, uma criança tenha a oportunidade de experimentar um número grande de situações. Cada situação dessas será responsável pela abertura de um grande número de possibilidades, sendo que cada possibilidade dessas, quando for experimentada, poderá abrir outras tantas. Ao final de um longo processo, o acervo de possibilidades motoras, intelectuais, sociais, morais, e assim por diante, disponível no jovem que se formou nesse esporte, será
imensamente mais amplo que no jovem formado em uma equipe ou escolinha que lhe impôs um sistema de superespecialização. Do ponto de vista do desenvolvimento da inteligência para o esporte, o primeiro jovem contará com recursos bem mais amplos que o segundo. Fazendo uma tosca comparação, examinemos os perfis do jogador Pelé e o de um jogador de precárias qualidades técnicas, que não nomearei para não ser indelicado. Pelo fato de ter se formado no interior de Minas Gerais e de São Paulo, experienciado um número enorme de situações lúdicas – entre elas, jogar futebol – e, mais tarde, poder jogar com liberdade no Santos Futebol Clube, Pelé formou um número enorme de possibilidades de realizar seu jogo. Além disso, a riqueza de experiências proporcionada pelas suas brincadeiras na rua propiciou-lhe possibilidades de alta qualidade. Por fim, já que possuía possibilidades fartas e boas, adquiriu a liberdade e a competência de escolher, entre elas, a melhor para cada situação. Já o nosso jogador de precárias qualidades, formado em uma escolinha de futebol, dessas que existem aos milhares por aí, viveu poucas experiências, formando, conseqüentemente, um leque pequeno de possibilidades. Repetindo sempre as mesmas situações, acabou por ter alternativas de pouca qualidade e, tendo poucas e más qualidades, não aprendeu a diferenciá-las e a selecioná-las. Resumindo, Pelé teve muitas e boas possibilidades, e sabia eleger a melhor delas de acordo com a situação, ao passo que o outro jogador teve poucas e más possibilidades, além de não saber escolher bem. Quanto ao jogo de futebol, Pelé era o mais inteligente dos dois.
A parte não gera o todo Existe também a crença geral no esporte de alto rendimento, atrelada a diversas outras crenças esclerosadas, de que é possível ensinar esporte a alguém, ensinando cada parte separadamente e, ao final, juntá-las num todo harmonioso. O resultado é que os atletas formados nesse conceito até conseguem mostrar habilidades específicas para controlar os gestos esportivos, porém, fracassam quando o jogo começa. Anos atrás, assisti a um jogo de futebol entre garotos japoneses e brasileiros da categoria infantil.
Durante o aquecimento, observando as duas equipes, não percebi grandes diferenças no controle da bola: os japoneses eram tão hábeis quanto os brasileiros nos chutes, embaixadas e cabeceios. Minutos depois o jogo começou e, então, tudo ficou diferente. Os meninos brasileiros venceram o jogo com enorme facilidade. Outro exemplo interessante é ainda o de Pelé. Na seleção brasileira, formada naquele tempo por muitos craques, ele não era o melhor chutador, nem o melhor driblador, nem o melhor cabeceador e tampouco era o melhor lançador – só era o melhor jogador. A alternativa a essa pedagogia da hiperespecialização, das rotinas exaustivas, da repetição infindável, da segmentação do gesto é o ensino contextualizado. A regra, no meu entender, deveria ser: futebol se aprende jogando futebol, basquetebol se aprende jogando basquetebol, e assim por diante. Os exercícios para corrigir gestos, aperfeiçoá-los, lapidá-los não deveriam constituir a tônica de nenhum treinamento, mas ocupar um tempo sempre menor que o de jogo. Além disso, com a regra de aprender a jogar jogando, poderiam ser criados inúmeros jogos para ensinar, por exemplo, a jogar handebol. Quantos pequenos jogos de futebol existem na cultura popular para as crianças aprenderem esse esporte? Se o professor quer ensinar determinado conceito – o de passar a bola, por exemplo -, por que não recorrer a um pequeno jogo? Dessa maneira, ele não retira o aluno do contexto do jogo, impedindo que ele perca a noção do todo na hora de aperfeiçoar uma parte específica. Não por coincidência, textos de autores notáveis, em áreas diversas do conhecimento,
reforçam
minhas
afirmações
anteriores
a
respeito
da
aprendizagem e da formação da inteligência dessa maneira contextualizada. Relembrando os tormentos passados na aprendizagem da gramática e da anatomia, Bateson sugere que, “Podiam-nos ter dito qualquer coisa sobre o padrão que liga: que toda a comunicação necessita de um contexto, que sem contexto não há significado, e que o contexto confere o significado porque há uma classificação de contextos.” (13) Em Terra Pátria, Morin e Kern alertam sobre a necessidade de uma reforma do pensamento:
Devemos pensar em termos planetários a política, a economia, a demografia, a ecologia, a salvaguarda dos tesouros biológicos, ecológicos e culturais regionais – por exemplo, na Amazônia, ao mesmo tempo as culturas indígenas e a floresta -, das diversidades animais e vegetais,
das
diversidades
culturais
–
frutos
de
experiências multimilenares que são inseparáveis das diversidades ecológicas etc. Mas não basta inscrever todas as coisas e os acontecimentos num “quadro” ou “horizonte” planetário. Trata-se de buscar sempre a relação de inseparabilidade e de inter-retro-ação entre todo fenômeno e seu contexto, e de todo contexto com o contexto planetário. (14)
Eu ainda acrescentaria: e o esporte.
Pensar fazendo, fazer pensando Por último, quero falar de um dispositivo, observável especialmente em alguns grandes atletas que caracterizam uma determinada maneira de ser inteligente no esporte. Mais forte que minhas palavras seria mostrar as ações de um atleta, como o americano Magic Johnson, do basquetebol. Ao decidir-se por uma jogada, ele realizava com tanta precisão e rapidez o que pretendia, que era difícil dizer se estava pensando no que fazia enquanto executava a ação. Vou mencionar de memória o que li do técnico americano de basquetebol Phill Jackson, pois não tenho à mão o seu livro Cestas Sagradas. Ele afirma que, ao se decidir pela jogada, o jogador deve parar de pensar, deve jogar. O observador desavisado poderia interpretar mal essas palavras, pois Jackson não propõe que o esporte seja praticado sem pensamento, mas traduz com perfeição a idéia de que o grande jogador funde de tal maneira pensamento e ação, que é impossível observar um destacado do outro.
Comparando jogadores iniciantes, ou maus jogadores, com grandes craques do esporte, pode-se verificar nos primeiros uma boa distância entre pensar e fazer ou, ao contrário, entre fazer e pensar. À medida que a qualidade desportiva cresce, o jogador diminui a distância entre as duas ações, até que elas praticamente se fundem. Nós, expectadores e críticos, temos todo o tempo do mundo para pensar o que foi feito em um jogo ou o que deverá ser feito no próximo jogo. Não há uma urgência nos cobrando uma realização imediata. Acontece, porém, que as situações mais decisivas são sempre emergenciais. Uma cortada no voleibol, uma assistência no basquetebol, um chute a gol numa área cheia de zagueiros no futebol exigem ação extremamente rápida. E essa ação será tanto mais eficaz quanto mais inteligível for, mais bem coordenada, não apenas nos gestos motores entre si, como também entre eles e os pensamentos. É por isso que, dentro da área – o espaço mais vital do futebol -, Romário é um rei, o jogador mais inteligente do Brasil. Nele, pensamento e ação não se separam. Basta um átimo de tempo para ele decidir uma partida. Essa forma de ser inteligente, tão presente em Romário e em vários outros craques da bola, é educável, como tantas outras formas específicas de inteligência, e, conseqüentemente, pode ser transferida a uma inteligência mais geral. Ora, para dar conta de problemas críticos, emergenciais, temos de fazer nossos alunos experimentarem situações emergenciais. Que a criatividade do professor seja capaz de utilizar-se do jogo para criá-las. Há uma tradição em nossa civilização de não reconhecer inteligências não coincidentes com a inteligência do intelectual, do cientista. Por isso, para muitos, Garrincha, no seu tempo, era “burro”, quando, de fato, dentro do campo, naquele contexto, ele era o mais inteligente. Esse conceito opõe-se radicalmente à maneira de pensar de muitos técnicos, para os quais a inteligência deve ficar no banco, do lado de fora do campo, isto é, neles, ao passo que aos jogadores cabe participar apenas com o físico. A distância entre pensamento e ação torna-se, no caso, tão grande, que raramente algum jogador será capaz de realizar as ações que decidirão o jogo.
Referências Bibliográficas:
(1) SÉRGIO, M. Algumas teses sobre o desporto. Lisboa: Compendium, 2001. (2) MORIN, E. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1982. HOUAISS, A. & VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. (3) PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. (4) Ibid. (5)
SILVA, J.B.F. O sensível e o inteligível: novos olhares sobre o corpo. (Tese de Doutorado, São Paulo: Instituto de Psicologia/USP, 1991).
(6) FREIRE, J.B. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas: Autores Associados, 2002. (7) ENDE, M. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes/Presença, 1985. (8) HAWKING. S. O universo numa casca de noz. São Paulo: Mandarim, 2001. (10)MONOD, J. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Vozes, 1989. (11)PIAGET, J. O possível e o necessário: a evolução dos possíveis na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985, v.1. (12)FREIRE, J.B. & BARROS, R.M.L. Análise quantitativa e qualitativa dos sintomas de antecipação nas ações motoras de crianças. Revista Brasileira Ciência e Movimento, 8 (2): 19-24, 2000. (13)BATESON, G. Natureza e espírito. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. (14)MORIN, E. & KERN, A.B. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.