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e a liberdade for igual para todos os escravos, seja igual o quinhão de sacrifícios para os brancos, será assim mais aceitável e é mais brilhante.” A carta anônima endereçada a Joaquim Nabuco em maio de 1888, logo após a Abolição da Escravatura, vinha de um suplicante senhor branco, naquele momento já um ex-proprietário de pretos escravos. Pedia clemência: queria a criação de uma lei que obrigasse credores e bancos a dar um prazo aos devedores. Sabia que Nabuco podia interceder e ajudar aquela classe agora um pouco menos empoderada. A missiva nos mostra uma característica que se repete na figura do abolicionista: sua capacidade de se estabelecer com harmonia em espaços essencialmente diferentes. Nabuco, que mamou em escrava ama de leite, era o homem que estava ao lado da princesa Isabel no momento em que ela assinou a Lei Áurea. Antes, havia atacado o pai da moça, dizendo que a monarquia brasileira sintetizava o absurdo da escravidão. Amigo de pretos como André Rebouças e José do Patrocínio, recebia, como mostra a carta, pedidos de senhores que durante décadas haviam se aproveitado do trabalho não pago dos cerca de 4 milhões de escravos que saíram da África para o Brasil. Trabalhava intensamente para uma reforma que afetaria a sociedade brasileira enquanto queria a permanência da corte no País. Enquanto repreendia a mulher Evelina por ela não se importar com a aparência, fazia pressão para que EUA e Brasil se aproximassem para estabelecer acordos comerciais. Procurava os melhores alfaiates enquanto escrevia o impactante livro O abolicionismo. Neste suplemento especial de 20 páginas, que integra o caderno Quase brancos, quase negros, você vai conhecer um pouco mais sobre essa figura para além do imponente bigode que vemos nos livros de história, figura esta que não deve ser observada como mais um personagem cristalizado relembrado a cada efeméride para ser esquecido logo depois. Nabuco é atual, e não, como bem explica o historiador Ricardo Salles na página 16, porque estava “à frente de seu tempo”, mas porque, infelizmente, continuamos em grande parte a viver no tempo dele. É só olhar ao redor: uma educação ainda precária e a concentração de terra e renda são alguns dos obstáculos sociais que atingem a população mais carente, formada em sua maioria por negros. Além de Ricardo Salles, autor do livro Joaquim Nabuco: um pensador do Império, este suplemento também traz entrevistas com pesquisadores como a socióloga Angela Alonso (Universidade de São Paulo e Universidade de Yale), cuja fala mostra um olhar generoso porque dialético - sobre Nabuco; Célia Maria Marinho de Azevedo (Universidade de Campinas/SP); Humberto França, chefe de Projetos Especiais do Museu do Homem do Nordeste/Fundaj (também assina a seleção bibliográfica sobre o abolicionista que você vê na página 15); o sociólogo Arim Soares do
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Bem (Universidade Federal de Alagoas); e o economista Marcelo Paixão (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Todos eles nos dão boas pistas para nos aproximarmos de Joaquim Nabuco sem a reverência que invariavelmente atrapalha a leitura mais rica destes grandes personagens. A historiadora Célia Maria, por exemplo, aponta para diversos momentos na obra nabuquiana onde ele mostra o que hoje observamos como preconceito, mas que naquele momento era explicado “cientificamente”: a ideia de que os negros eram menos capazes que os brancos, estes donos de um sangue verdadeiramente “sadio”. Este Nabuco estava em consonância com o espírito do momento, em que intelectuais como Silvio Romero e Roquette-Pinto queriam “embranquecer” o País. As observações da pesquisadora da Unicamp são discutidas por Angela Alonso em sua excelente entrevista (páginas 12, 13 e 14): para ela, Nabuco tinha sim uma visão hierárquica da sociedade (ele falava em fim da escravidão, não em igualdade, lembra ela), mas não se pode classificá-lo de “racista”. Até mesmo porque era naquele momento que a ciência social começava a difundir o polêmico termo “raça”. Arim Soares do Bem, que também participa do caderno Quase brancos, quase negros, discute essa questão. Humberto França, profundo conhecedor da obra do abolicionista, refuta aqueles que o perceberam apenas como um “americanizado”: para ele, a presença de Nabuco na Embaixada do Brasil em Washington foi fundamental para a aproximação amigável dos dois países. Já Marcelo Paixão (páginas 18 e 19) nos dá uma importantíssima
Date:03/08/10
contribuição: mostrar que a escravidão baseada na cor ainda é uma realidade nacional. Sua pesquisa revela que a maioria daqueles que trabalham em condições consideradas degradantes pela Organização das Nações Unidas (ONU) é negra. Ou seja, a cor do escravo de ontem é a mesma do escravo de hoje. Outro bom motivo para nos observamos como uma sociedade do “tempo de Nabuco”. Além das entrevistas com especialistas, também observamos um lado mais “mundano” do também embaixador, cujo interesse pela fama podemos observar em obras como Minha formação. Intensamente midiatizado, ele circulava nas últimas modas enquanto cortejava condessas, jovens virginais (como sua esposa) e mesmo mulheres casadas. Mas foi a famosa Eufrásia Teixeira Leite, mulher riquíssima que, à sua maneira, ressaltava a falta de posses dos Nabucos, quem de fato povoou o coração e a mente do deputado pernambucano. Sobre esse Quincas que já era celebridade e passeava de braços dados nos salões chiques, leia mais nas páginas 10 e 11. Além das fotos obtidas no rico acervo da Fundaj, este suplemento também é ilustrado com imagens captadas pelo fotógrafo alemão Alberto Henschel, que registrou tanto as famílias ricas do período açucareiro nordestino quanto aqueles que os serviam. Várias das fotos também estão nos arquivos da Fundaj e podem ser vistas do endereço virtual Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br). Elas mostram os pretos que estavam nas ruas ou senzalas enquanto Nabuco discursava no Teatro de Santa Isabel. Mostra aqueles (somos nós, importante lembrar) que nos tornam agora tão próximos do homem alto e bonito cujo aniversário de nascimento será na próxima quinta, 19 de agosto. A Nabuco, parabéns.
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ernambuco deu ao Brasil – e ao mundo – um santo sofisticado, fluente no francês, improvável gentleman saído da elite recifense. Esse santo não estava livre do racismo científico típico de seu momento em relação aos negros: enquanto pedia a abolição, mostrava acreditar na existência de uma “raça inferior” e “atrasada”. É a partir dessa perspectiva que a historiadora Célia Maria Marinho de Azevedo analisa, sem glorificação, o rico e quase sempre incontestável legado nabuquiano. Autora dos livros Onda negra, medo branco e Antirracismo e seus paradoxos, além do contundente artigo Quem precisa de São Nabuco?, a professora de história aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp) faz uma corajosa desconstrução do canônico abolicionista. Avisa: sua pesquisa não nasce para ferir Joaquim Nabuco, e sim para discuti-lo e humanizá-lo, percebendo-o como instante de seu tempo e contexto, não um candidato a posto no céu. A reflexão proposta pela historiadora é permeada por uma ironia dirigida àqueles que cristalizaram a obra nabuquiana, evitando inclusive a sua oxigenação. “O processo de canonização de Joaquim Nabuco é bem antigo em nossa historiografia. Como não há um papa a presidir, é preciso visualizar a construção de São Nabuco em diversos momentos e gêneros discursivos – biografias, memórias, narrativas da abolição, discursos comemorativos, artigos de imprensa, livros didáticos, prefácios e resenhas de seus livros –, escritos inicialmente por amigos e admiradores, entre eles sua filha, Carolina Nabuco, e, posteriormente, por discípulos e admiradores”, escreve ela no artigo publicado em 2001. Em entrevista ao JC, a historiadora diz perceber que o processo de santificação perdura até hoje, com o próprio Nabuco ajudando nessa construção ao escrever uma biografia (Minha formação) sobre a sua vida de liberal monarquista. O livro, porém, não só ajuda a divulgar o santo: ele também deixa ver a postura de homem branco superior, que sente saudade do servilismo de seus queridos escravos. Aqui, ela se refere a um dos
Historiadora mostra trechos da obra nabuquiana em que os negros são vistos como uma “raça” menos capaz e pede uma leitura mais dialética do homem que sentiu saudade do escravo trechos do livro em que Nabuco relembra o tempo de criança no Engenho Massangana. Diz ele: “Deus conservara ali o coração do escravo, como o do animal fiel, longe do contato com tudo que o pudesse revoltar contra a sua dedicação”. “Os textos de Nabuco são lidos em geral pelos estudiosos brasileiros (acadêmicos e não acadêmicos) como uma descrição isenta e verdadeira da sociedade brasileira do século 19, ou seja, sem nenhum distanciamento crítico necessário a uma postura intelectual. Valeria pesquisar esse processo de canonização, mas posso adiantar que uma figura de peso do século 20, Gilberto Freyre, foi fundamental para que Nabuco não fosse esquecido como tantos outros homens de letras de seu tempo. Freyre, aliás, inspirou-se em Nabuco para enfatizar a desigualdade entre senhores, escravos e agregados vigente em tempos de escravidão e, ao mesmo tempo, reafirmar a inexistência de ódios raciais aqui desde tempos coloniais”, diz. Neste sentido, Freyre (que classificou “o menino de Massangana” como “afrancesado, anglicizado, ianquizado”) não teria, ao contrário da leitura criticada por Célia Maria, extirpado de sua análise algumas colocações abertamente racistas de Nabuco (veja arte nesta página). Não deixa de ser curioso que o homem que cunharia a hoje refutada ideia da “democracia racial”
seja também aquele que propôs olhar o abolicionista de maneira dialética. Um dos principais perigos de uma análise higienizada da obra nabuquiana é a negação do racismo no Brasil no passado. Ele era uma realidade, e o fato de o político e embaixador lutar pela libertação dos escravos não deve ser visto como contraditório. “Ele era consistente em sua argumentação baseada nas mais recentes teorias científicas raciais de seu tempo. É por pensar o escravo africano ou afrodescendente como membro de uma ‘raça’ inferior que Nabuco pode discorrer tão livre e enfaticamente sobre os ‘vícios do sangue africano’ circulando em meio à ‘nossa raça’ (ou seja, a dele, a ‘raça’ branca). E se ele como filho de senhor de escravos – ele próprio teve seus escravos para servi-lo – cresceu acostumado a pensar nos escravos negros como algo próximo aos animais, decerto as teorias raciais científicas lhe proporcionaram o estofo necessário para que ele nunca duvidasse que os negros existiam para servir a gente como ele – as elites proprietárias brasileiras. Assim, em fins do século 19, Nabuco não encontrou melhor elogio, ao rememorar os escravos de seu Engenho Massangana, do que o de 'animais fiéis'”, diz a historiadora. Em seu artigo, ela critica dois respeitadíssimos autores – Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho – que em 2000 publicaram textos a respeito de Na-
Author:AAGUIAR
Date:03/08/10
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buco no jornal Folha de S.Paulo. No primeiro, Mello explica que, ao dizer “muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça”, Nabuco se utiliza da palavra “raça” (leia mais a respeito do termo nas páginas 5 e 6) “sem rigor conceitual, desleixadamente”. Já Carvalho, autor de Saudade do escravo, no qual também se refere ao trecho de Minha formação transcrito anteriormente, escreve: “O respeito que Nabuco merece nos proíbe qualquer ironia diante da confissão”. “Considero contraditória essa leitura de Nabuco, infelizmente bem atual, que pretende fixar canonicamente o modo como se deve lê-lo; ou seja, os novos leitores de Nabuco são convidados a passar por cima rapidamente de todos os trechos em que ele se alonga em expor a inferioridade racial da população negra brasileira, bem como a necessidade de importar ‘sangue caucásico’ (os imigrantes europeus) em grande quantidade para se promover uma mistura racial embranquecedora. Para esses estudiosos, o racismo de Nabuco, que se coloca com toda a evidência nessas passagens ‘incômodas’ de seus escritos, deve ser minimizado como um conjunto de ‘escorregadelas’ sem maior importância para o conjunto de sua obra. Mas, em minha opinião, não se trata de escorregadelas, e sim de uma visão coerente de Nabuco sobre ‘nós’ (a elite proprietária branca), cujo poder de mando devia ser perpetuado, e ‘eles’ (os escravos negros a serem emancipados e os brasileiros pobres afrodescendentes de um modo geral), cuja submissão eterna àqueles devia ser igualmente perpetuada.”
BIGODE E COERÊNCIA Para a professora Eliane Veras, da Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é difícil falar em racismo no contexto da obra de
Nabuco: para um momento permeado por teorias racistas, em que se acreditava que o negro não era capaz de se adaptar a um novo tempo, cabia apenas livrá-los do cárcere e deixar que participasse, desempenhando um papel menor (porque era “inferior”), da sociedade “adiantada”. “É preciso entender que Nabuco falava em abolição, e não em questão racial. E o que para nós hoje é entendido como preconceito, naquele momento não era.” Também sociólogo, Roberto Sales, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), acredita que Nabuco não era racista: ele concordava com os valores higienistas que naquele momento eram difundidos em larga escala, sendo coerente com o espírito “iluminado” que varreu o Brasil depois de ter se espraiado pela Europa. “Ele não compartilhava desse preconceito do senso comum, mas isso não o inocenta nem o condena.” A adesão de Nabuco à causa negra também pode ser vista antes como um movimento político do que como um ato “humanista” ou mesmo piedoso, como se costuma pensar. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, antes de ser um grande abolicionista, Nabuco era um grande estrategista. “A carreira dele teve várias reviravoltas, ele foi um monarquista, passou algum tempo no ostracismo e só depois é que vai aderir à República. Era liberal e depois aderiu aos conservadores”, observa. Barbosa, no entanto, acha que esse movimento não macula a imagem nabuquiana: ela na verdade ajudanos a entender o cenário político atual. “Não vejo nada de extraordinário nisso, é natural em uma pessoa que era tributária da carreira do pai. Nesse ponto, acho que ele se insere na tradição política brasileira, em que políticos locais assumem vários ideários. Nabuco só vai falar com palavras muito duras a respeito da escravidão quando a abolição já era inevitável.”✪
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Date:03/08/10
Baseados no positivismo, no evolucionismo e nas teorias que afirmavam a superioridade branca, homens como Nabuco incentivavam a imigração de europeus
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homem livre, o homem branco, além de ser muito mais inteligente que o negro, que o africano boçal, tem o incentivo do salário que percebe, do proveito que tira do serviço, da fortuna enfim que pode acumular a bem de sua família. Há entre esses dois extremos, pois, um abismo que separa o homem do bruto. [...]Cada africano que se introduz no Brasil, além de afugentar o emigrante europeu, era em vez de um obreiro do futuro, o instrumento cego, o embaraço, o elemento de regresso das nossas indústrias.” Tavares Bastos, jurista e político fundador da Sociedade Internacional de Imigração (1866), era a favor da abolição dos escravos. Como se pode ler na sua frase, não porque acreditasse em algum tipo de equidade entre ele e os negros. Queria na verdade substituir os cativos por homens brancos assalariados, queria postos de trabalho que atraíssem imigrantes para o solo nacional a fim de promover mais ‘progresso’ ao País. E nesse progresso não havia espaço para pretos. Bastos não estava sozinho em sua empreitada. Como ele,
outros “ilustrados” também se baseavam, alguns sem saber, nas teorias do francês Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882). Foi ele que, em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853-1855), espraiou o que entendemos hoje como racismo. Ele está baseado na falsa crença da existência de várias raças humanas, no entendimento de diferenças entre tais raças e finalmente na ideia de que entre estas raças algumas são mais superiores que outras. Um britânico chegou para complementar o engano: Houston Stewart Chamberlain (1825-1927) é o pai do mito da superioridade da raça ariana, do qual Hitler se apropriaria através das ideias de Alfred Rosenberg (1893-1946). Este, munido de gráficos, números, tabelas e “pesquisas”, sustentou “cientificamente” o nazismo ao afirmar que judeus, ciganos, eslavos e homossexuais eram inferiores e o alemão personificava a perfeição da humanidade. Gobineau, Chamberlain e Rosenberg certamente não tomariam Bastos como um belo exemplar da “raça”. Mas
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aqui, em meio a um país irreversivelmente mestiço, ele abria os braços conclamando mais iguais. Mais brancos. A Faculdade de Direito do Recife foi, em solo nacional, um dos centros de difusão da crença na inferioridade negra baseada no evolucionismo e no positivismo. “O negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado a sua ignorância, um objeto de sciencia”, escreveria um de seus mais famosos integrantes, o crítico Sílvio Romero (1851-1914), no prefácio de Africanos no Brasil, livro de Nina Rodrigues, outro arauto do “racismo científico”. Romero acreditava que a mescla de cores trouxe-nos aspectos não desejáveis, por isso era mister embranquecermos. “Romero contribui para mostrar que o atraso estava ligado ao trabalho do índio, que seria lento, e ao escravo, que era causa de nossa estagnação econômica. Não estávamos, assim, aptos ao desenvolvimento, não estávamos prontos para um país novo, capitalista. Ele estava convencido de nossa inferioridade e por isso investe seu otimismo no branqueamento”, diz o sociólogo Arim Soares do Bem, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Segundo ele escreve no artigo Criminologia e etnicidade: culpa categórica e seletividade de negros no sistema judiciário brasileiro, a influência de Silvio Romero foi grande a ponto de estimular o recrutamento de imigrantes em vários países europeus, dando início a uma nova fase imigratória que somente foi interrompida com o processo de nacionalização da mão de obra introduzido por Getúlio Vargas na década de 30 do século 20. De 1880 até 1940, vieram para o Brasil cerca de 1,4 milhão de italianos, 1,2 milhão de portugueses, 580 mil espanhóis, 170 mil alemães, 108 mil russos e 47 mil poloneses. Nabuco, que nunca escondeu seu amor pela fleuma do Velho Mundo, era um dos entusiastas dessa invasão europeia. Usou-a, aliás, como base de seu projeto antiescravagista. Em um discurso na Câmara dos Deputados, em 1879, disse que o Brasil precisava urgentemente da abolição a fim de constituir uma nacionalidade apropriada com base no imigrante europeu, este dono de um “sangue caucásico, vivaz, enérgico e sadio”. Essa também era a percepção da elite nacional de uma maneira geral, que, se não chegou
a discriminar legalmente o negro (como nos Estados Unidos das leis segregacionistas), terminou o legitimando como ser inferior ao relacionar seu estereótipo ao negativo, ao feio, além de privilegiar a estética e o pensamento que chegavam dos EUA e da Europa. Esse verdadeiro sentimento de inferioridade nacional perdura em parte até hoje nessa mesma elite (e de uma classe média que tenta copiá-la), que prefere aquilo que vem “de fora”.
PERIGO AMARELO Além dos negros, que “cientificamente” eram rechaçados por terem “vícios” determinados geneticamente, os chineses também sofreram oposição de nomes como Nabuco quando o primeiro-ministro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu pediu um relatório sobre a imigração chinesa. Sua ideia era financiar uma missão de tratado até a Ásia. Queria atrair o povo dali para trabalhar nos campos daqui. A simpatia de Sinimbu reverberou negativamente entre a oposição. O então deputado Nabuco falou a respeito no mesmo contundente discurso citado acima. Colocava-se contra a entrada dos “amarelos” dizendo que “etnologicamente, vem criar um conflito de raças e degradar as existentes no País... Moralmente, porque vem introduzir na nossa sociedade essa lepra de vícios que infesta todas as cidades onde a imigração chinesa se estabelece”. É importante frisar que líderes negros envolvidos na abolição também se apoiaram no cientificismo para evitar os
chineses, a exemplo de José do Patrocínio. Ele, ao comparecer a um “meeting de indignação” no Rio, após a abolição, disse: “O chim é incompatível com a nossa nacionalidade, não só por muitos motivos étnicos e biológicos, como porque é um péssimo fator econômico”. O fato é que a imigração chinesa também ameaçava o já frágil projeto de embranquecimento em voga na época, e era preciso combater qualquer novo agente que viesse macular a “raça branca”, aquela definida por Nabuco como “audaz, superior, mais inteligente, mais brilhante, com qualidades intelectuais, com caráter e coração, arte e relances de gênio”. Outro nome forte da política nacional demostraria, quase setenta anos depois, que o racismo científico, apesar de ter perdido sua força a partir dos anos 30, ainda era uma realidade entre nós: no final do Estado Novo (1945), Getúlio Vargas assinou um decreto-lei que também estimulava a imigração europeia. Ele justificava seu ato apontando “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características básicas mais desejáveis de sua ascendência”.
» Fontes: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil (livro de Jeff Lesser); Onda negra, perigo branco (Maria Célia Azevedo); Joaquim Nabuco e a imigração chinesa (artigo de Nei Duclós) e Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005 (Ipea); As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição (livro org. Mário Theodoro)
Enquanto as teorias que assumiam a inferioridade negra eram propagadas por políticos e intelectuais brancos, um grupo de negros e mulatos (estes mais prestigiados socialmente) ia ascendendo na hierarquia social e chegando a locais – até mesmo a corte - que escandalizavam os escravocratas de então (o escritor José de Alencar, pai de Iracema, era um deles). Três nomes foram fundamentais para que a tardia abolição brasileira, relacionada apenas a Nabuco no imaginário comum, acontecesse: Luiz Gama, José do Patrocínio e André Rebouças. Desses, apenas Gama foi escravo: filho de pai (um ex-rico) de origem portuguesa e uma mãe negra (e revolucionária), ele foi vendido pelo progenitor (por causa de uma dívida de jogo) quando tinha 10 anos de idade. Morava na Bahia e foi mandado para o Rio de Janeiro. Aprendeu a ler ainda no cativeiro, de onde terminou fugindo para entrar na Marinha de Guerra. Fez da própria história uma pequena grande revolução: ajudou a fundar o Partido Republicano em São Paulo, tornou-se jornalista e advogado autodidata, que libertaria, nos tribunais, cerca de 500 escravos. Gama, que morreu seis anos antes da abolição e sete anos antes da Proclamação da República, é sem dúvida o intelectual que estava na vanguarda da discussão sobre o fim da escravidão. Sua maior luta era libertar negros que
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em tese deveriam estar livres após a lei de 7 de novembro de 1831 (em cumprimento a um acordo pelo fim do tráfico de escravos firmado entre Inglaterra e Portugal em 1818). Não era fácil. Apesar da existência da lei, a impressionante burocracia para libertar um cativo, além da pressão da oligarquia nos tribunais, fazia do trabalho um exercício sempre extenuante. Para se ter ideia, o Diário do Rio de Janeiro (1863), ao publicar os 20 passos necessários para um escravo ser solto, diz que os “infelizes” precisavam, através de um protetor “revestido com a mais evangélica das paciências”, passar por uma “nova inquisição moral.” A outra opção era resignar-se à senzala. Como conta a socióloga Angela Alonso, autora de uma elogiada biografia sobre Nabuco (leia entrevista nas páginas 12, 13 e 14), enquanto boa parte dos abolicionistas fazia discursos em teatros, cafés, óperas e saraus, com direito a chuva de pétalas de rosas, Gama, em São Paulo, “fazia barulho por dentro das instituições” (é famosa a sua frase “Todo escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa”), aproveitando-se de seu talento satírico e das brechas nas leis para soltar seus iguais. Morreu em 1882. Patrocínio e Rebouças também eram mulatos como Gama, esta uma “casta” específica (começavam, note-se, a “embranquecer”). Para se ter ideia, em 1822 existiam no Maranhão 6.580 mulatos no cativeiro, contra 77.954 negros. Assim, tinham maiores chances de ascender socialmente. Patrocínio (ou “Zé do Pato”, ou “Prudhomme”, seus pseudônimos) era um filho de padre com lavadeira (o religioso João Carlos Monteiro engravidou a escrava de 13 anos) que terminou entrando no curso de medicina como estudante de farmácia, sendo mais tarde
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diretor do Gazeta da Tarde. Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira contra a Escravidão (SBCE) ao lado de Rebouças, Nabuco e João Clapp, entre outros abolicionistas. Sua maior característica era a acidez e a impulsividade: sem medo de inimigos e adorado pelos amigos (como Olavo Bilac), Patrocínio pode ser descrito como o pioneiro de uma imprensa reformista que tanto ajudou a disseminar as ideias que notabilizaram Nabuco. Sua língua era ferina o suficiente para bater de frente com nomes como Sílvio Romero (de quem chegou a ser próximo). Segundo ensaio de José Murilo de Carvalho, o crítico chamava Nabuco de “pedantocrata” e o jornalista de “sang-mêlé”, um “negro vencido na escala etnográfica”. Patrocínio revidou chamando Romero de “teutomaníaco de Sergipe” e, engraçadíssimo, “Spencer de cabeça chata”. Rebouças tinha espírito oposto: o engenheiro era discreto, elegante, oferecendo recepções para a aristocracia, enquanto seu irmão Antônio era deputado federal. Angela Alonso encara o encontro de Rebouças e Nabuco em julho de 1880 como uma verdadeira “epifania” dentro da trilhada abolicionista: enquanto o primeiro era um grande articulador (“dominava detalhes e tecnicidades sempre enfadonhas para Nabuco”), porém tímido, o segundo adorava um púlpito e uma plateia. Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, da qual se tornou tesoureiro e agenciador das “comunicações: cabia a ele organizar eventos como um banquete com cinquenta abolicionistas no elegante Hotel dos Estrangeiros, no Catete. Isso não significava, porém, que estava livre de violentos preconceitos, como quando viajou aos Estados Unidos e passou dois dias sem se alimentar porque nenhum restaurante lhe deu acesso. Rebouças era, pode-se dizer, um quase branco.✪
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Garoto-propaganda de cigarros, cerveja e chapeu, Nabuco, “nascido para ator”, sempre quis experimentar a fama
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e fosse vivo nos dias atuais, Joaquim Nabuco seria um prato cheio para as revistas de celebridade: bonito, aristocrático (o que compensava a família pouco endinheirada), pai, avô e bisavô senadores do Império, afeito às modas, viajante e, principalmente, um galanteador. Misturava elegância e ironia como um verdadeiro inglês, povo pelo qual nutria uma divulgada simpatia. Assim, conquistava moças (e não tão moças) da fina flor europeia, dos EUA e do Brasil. Era querido por mulheres castas e simples como aquela com quem casou – Evelina, a mãe de seus cinco filhos – e por outras poderosas, riquíssimas e independentes, como a famosa Eufrásia Teixeira Leite, sua noiva durante anos. Não era difícil atraí-las com seu 1,86 metro de altura e a aparência que lhe renderam o apelido de Quincas, O Belo. Causando certo espanto ao desfilar com roupas que eram ainda eram vanguarda na Europa em espaços recifenses e cariocas, Nabuco viria a se tornar, no auge da campanha abolicionista, um “político das massas”. Várias empresas se aproveitaram de sua popularidade no Brasil e no mundo para faturar ainda mais com o “espírito democrático” de então. Assim, o menino de engenho virou marca de dois cigarros (Nabuquistas e Príncipes da Liberdade), foi o rosto da cerveja Salvator Bier, inspirou o chapéu O Abolicionista. Ele ainda figurou em uma infinidade de jornais que o exaltavam mas em vários momento o massacravam. Um exemplo foi a edição do Diario de Pernambuco de 30 de setembro de 1885, que apontava justamente por essa propensão de Nabuco ao espetaculoso: “Eleitores do 1º distrito, cerrai fileiras contra o moço leviano e inexperiente, que mais nos tem deprimido e vilipendiado no estrangeiro, seduzido por uma falsa glória de brilho e renome afagado”. A inclinação à fama e o gosto pelas plateias são observados tanto em diversos momentos de sua obra quanto na biografia escrita pela socióloga Angela Alonso (páginas 12, 13 e 14). Esta, ao falar sobre os últimos dias de vida do abolicionista, momento no qual Nabuco, mesmo com a
saúde debilitada, fez um périplo por 18 conferências em diversas cidades dos EUA, escreveu: “Nascido para ator, Nabuco escolheu encerrar a vida no palco”. É em Minha formação, autobiografia na qual narra o início de sua carreira política, seu assombramento com a Europa e parte de sua vida no Engenho Massangana, que Nabuco mostra melhor a sua alegria pela fama, usando inclusive a palavra “celebridades”, termo que viria a ser espécie de amuleto social no século que se seguiria. Ao rememorar suas primeiras viagens, ele diz: “Em 1873 (...), a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo”. E mais tarde: “Nesse tempo, porém, na minha era antes de Cristo, em pleno politeísmo da mocidade, o mundo inteiro me atraía por igual; cada nova fascinação da arte, da natureza, da literatura e, também, da política, era a mais forte; eu quisera conhecer as celebridades de todos os partidos”. Nesse momento, aos vinte e poucos anos, Nabuco era uma espécie de verdadeira esponja que sabiamente absorvia as palavras de Dumas e Renan, se interessava pela poesia, a literatura, a moda e as moças, seguia pela Europa se inteirando de maneira mais aproximada da vida e dos costumes das cidades que o recebiam sempre com punhos de renda. O homem que estava ao lado da princesa Isabel quando ela assinou a Lei Áurea amava a elite, e não era qualquer uma (chamava os norte-americanos de “caipiras”). “Não é senão justo apreciar as sociedades pela sua flor, pela sua elite, isto é, pelo que elas mais profundamente admiram em si mesmas e o mundo mais admira nelas.” Já sobre o Novo Mundo, disse: “Para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão”. Gostava de ser ouvido, reverenciado e, como boa celebridade, tinha seus caprichos. Chega a ser engraçado o momento em que vai com a família para uma estação de águas na Europa, mas acaba passando a maior parte do tempo em Paris, trabalhando numa missão diplomática. Rui Barbosa também fora enviado para a cidade por Rio Branco, ministro das Relações Exteriores
(maior “amigo inimigo” de Nabuco). O problema é que o então embaixador em Washington hospedou-se no modesto hotel La Perouse, enquanto Barbosa ficou no chique e caro Regina (cuja suíte presidencial custa hoje 3.160 euros a diária). Nabuco, sentindo-se desprestigiado, reclamou. Sua maior vingança a Rio Branco (“que fiz eu a esse homem?”, escreveu o abolicionista em carta sobre o ministro que havia criado a embaixada de Washington, considerada verdadeiro desterro para Nabuco), e a todos aqueles que caçoavam de seus elegantes modos, foi a subida de sua estrela. E não houve lugar mais simbólico e significativo para acomodar esse viajante – as revistas de celebridade o chamariam de globetrotter – do que o Teatro de Santa Isabel. Ali, com a sua desenvoltura artístico-política, ele discursou para plateias embevecidas sob chuvas de pétalas de rosas. Era o seu “palco principal”, onde fora “nada menos que um astro”, diz Angela Alonso na biografia publicada pela Companhia das Letras. É interessantíssimo o momento no qual a socióloga descreve a chegada de Nabuco ao Recife após o fim da escravidão. Nabuco diria numa carta enviada no dia 20 de julho à esposa Evelina: “Minha vida está nos jornais (...). Minha entrada no Rio foi grandiosa, e no Recife, e na Bahia!”. Foi escoltado por José Mariano pelas ruas até chegar ao teatro lotado, que vinha abaixo a cada frase proferida sob os longos bigodes. “Nabuco se comoveu. Obtinha o que desejara a vida inteira: a admiração incontestável, a reverência coletiva (...). Passava de ator a mito.” Fosse o Brasil o fast-food cinematográfico que é Hollywood, os cem anos da morte de Quincas seriam também comemorados com a sua vida em cartaz.
Enquanto discutia a abolição, o pan-americanismo, a imigração chinesa e outros assuntos palpitantes, Joaquim Nabuco desempenhava com êxito outra área, a das conquistas amorosas. Uma pesquisa nas cartas guardadas no acervo da Fundaj demonstra que o abolicionista não poupava a criatividade no momento de lançar seus torpedos amorosos: há desde poemas que comparam as amadas a sereias e flores até presentes como uma surpreendente arara. Há também a intensa troca de missivas entre ele e a riquíssima noiva Eufrásia, que começa afetuosa (“Eu te amo de todo meu coração”, diz ela) e termina mal, com Nabuco pedindo a ela que não lhe escrevesse nunca mais. Nabuco gostava de cortejar mulheres mais velhas, o que naquele tempo significava mulheres comprometidas, e foi justamente por uma dama casada que o jovem, no verão
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de 1871 (tinha ele 22 anos) se encantou. Conta-se que a paixão era endereçada a Carolina Delfim Moreira, que foi levada no ano seguinte para Londres, seguindo o marido. Foi este, aliás, o primeiro e real motivo pelo qual Quincas queria embarcar para o Velho Continente. Mas 1872 não seria só de drama para Nabuco, que conheceria naquele ano, na viagem, a aristocrática Eufrásia Teixeira Leite, filha de um produtor de café (Joaquim José, conservador até a medula). Era “muito branca”, de “busto perfeito”, como informa a biografia de Angela Alonso. A relação durou 14 anos, entre idas e vindas. Nesse meio tempo, viajando entre Europa e EUA, o rapaz conheceu boa parte de suas conquistas, como a condessa polaca Wanda Moszczenska, que o levou em viagem de mais de um mês pela Itália. Ficou encantado. Nessa viagem, ainda paquerou outra condessa e uma alemã antes de seguir para Londres, onde conheceu Mary Schlesinger (foi ela que recebeu a tal arara de presente, segundo lemos na carta de agradecimento a Nabuco em abril de 1887). Nesse tempo também lançava olhares e falas para Diana Raiknes, com quem viajou em um cruzeiro, a bordo do Tagus. Em carta, ele a chama de “Diana Transparente”. Gostava de analogias, figuras de linguagem e qualquer outro rebuscamento que davam melhor verniz ao seu flerte. Em 29 de fevereiro de 1888, ele manda para Nina Perry Fisk uma poesia inspirada nas violetas da Vila Adriana, em Roma. Nos Estados Unidos, bem antes de virar embaixador e de conhecer a esposa Evelina, ficou decepcionado com o fato de as mulheres casadas não cederem aos encantos de sua pessoa. A ver navios, foi encontrar “uma rapariga de ‘vida livre’”, como disse em carta para a condessa Wanda Moszczenska. Mas não precisou sempre recorrer a profissionais para se satisfazer em solo norte-americano. Ali, flertou com Emma Lazarus, Minnie Stevens (a tal “sereia”) e namorou Fanny Work (“a mais bela que tenho visto”, “olhos de uma vida amortecida mais profunda, de uma luz de pérola”). Alonso entrega outras em sua biografia: as misses Hamilton, Astor, Livingstone, Wolfe, Lanier, Rutherfurd, Dana, Tell.
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Mas eram os olhos negros de Eufrásia que assombravam um Nabuco financeiramente desempoderado e abolicionista, o que não agradava nem um pouco à família rica e conservadora da moça. Ela, independente, foi viver com a irmã em Paris e durante anos o romance dos dois teve um oceano no meio. Ficaram noivos em 1874. Dois anos depois, a relação já mostrava sinais de desgaste, como se vê na carta enviada por Eufrásia em julho de 1876, quando ela pede desculpas por tê-lo magoado. No ano seguinte, marcam uma conversa em Paris e ele simplesmente não aparece. Eufrásia manda nova carta (23/11/1877) pedindo explicações. O problema mais aparente: ela não queria mais voltar ao Brasil. Já Nabuco, empenhado em se fazer grande político e com a questão da abolição sob o braço, não poderia trocar a carreira pelas amadas (Europa e Eufrásia). Em 18/4/1886, ele, cansado de idas e vindas, envia uma carta a ela desfazendo o noivado. Fazia apenas quatro meses que ela, tentando manter a relação, enviara um bilhete declarando que o amava. No entanto, ao mesmo tempo que beijava, Eufrásia mordia: na carta de 13 de fevereiro de 1886, dois meses antes do noivado acabar, ela diz a Nabuco que não teve culpa do fracasso dele nas eleições de janeiro. Eufrásia conseguiu tirar o abolicionista do sério quando, no ano seguinte (em abril), sabendo que ele passava por um aperto financeiro, oferece-lhe dinheiro. Em maio, outra carta, lamentando ter sido “mal interpretada”. O gênio de Eufrásia talvez fosse imperioso demais para o leonino Nabuco, que terminou, em 23 de abril de 1889, casando com Evelina Torres Soares Ribeiro, moça coxa criada em colégio de freiras. Com ela, Nabuco aquietou-se, encontrando-se com Eufrásia apenas mais uma vez, em Paris, acidentalmente. Ficou assombrado: continuava bela, enquanto sua mulher havia engordado e não se importava com a moda. Mas foi mesmo com Evelina que terminou seus dias. Seguiu talvez aquilo o que escreveu em seu poema Pensamentos soltos, como observou de Alonso. “Um pouco de amor pode bastar no casamento, fora do casamento, todo amor do mundo não será o bastante.” ✪
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de autores e noções que forneciam uma visão meio sociológica da política. É preciso lembrar também que os positivistas brasileiros em sua maioria foram, como Nabuco, abolicionistas e reformistas.
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esde que esbarrou com Nabuco pela primeira vez, em 1995, a pesquisadora Angela Alonso não conseguiu mais se separar do rapaz. Falou dele em seu mestrado e no doutorado e começou a escrever um livro sobre a vida do abolicionista na Inglaterra. Acabou criando uma excelente biografia (publicada pela Companhia das Letras). A partir daí organizou um seminário (Nabuco e a República) em parceria com David Jackson, da Universidade de Yale, para onde foi se aprofundar na pesquisa após ganhar a uma prestigiosa bolsa da Guggenheim Fellowship. Aqui ela fala sobre a vaidade de Nabuco e sua relação com escravos, além da performance política dele e da adesão tardia ao movimento republicano. “Ele ia gostar de ver como tem sido lembrado e celebrado”, diz ela sobre o homem que amava receber aplausos.
JC – Em vários momentos do seu livro, percebemos que Nabuco desejava e buscava a fama (“a admiração incontestável, a reverência coletiva”, como você escreve). O próprio fala sobre seu desejo de conhecer “toda a sorte de pessoas célebres” em Minha formação. A adesão ao abolicionismo, tema polêmico que já havia sido levantado por outros nomes (e processo iniciado por vários países pelos quais Nabuco nutria admiração), teria sido um meio para acessar essa fama? A vaidade do abolicionista terminou sendo um fator de peso para a libertação dos escravos? ANGELA ALONSO – Nabuco era, sem dúvida, portador daquilo que Machado de Assis chamou de “sede de nomeada”. Ele estava sempre em busca de holofotes, era um sedutor. Mas muitas pessoas são assim e não encontram ressonância pública. Já Nabuco, tendo por ponto de partida o aprendizado em casa e na sociedade de corte, desenvolveu a capacidade de produzir encantamento no plano pessoal e na vida pública. Essa personalidade carismática contribuiu sem dúvida para sua carreira tanto social, nos salões, quanto política, no parla-
mento e nas ruas, e mesmo como embaixador, no circuito diplomático. Contudo, a personalidade por si só não explica o abolicionismo de Nabuco. Ele podia ter se tornado paladino de outra causa do momento, como a República. Nabuco tinha convicção abolicionista e acho que a liderança que ele ganhou e muitas de suas ações realmente corajosas seriam impensáveis sem essa convicção. Agora é claro que seu charme ajudou na campanha abolicionista, como o charme ajuda qualquer político. Sua personalidade, como seu nome de família, abriulhe espaço na mídia, mas foram suas ações e declarações como abolicionista que lhe deram reputação. JC – Há pesquisadores como Celia Maria Marinho de Azevedo, da Unicamp (do artigo Quem precisa de São Nabuco?), que apontam várias características discriminatórias (baseadas na cor) do abolicionista (a sua “saudade do escravo”, por exemplo). Você considera que Nabuco teve atitudes racistas – política e pessoalmente – ou ele era antes de tudo um homem público guiado pelo espírito positivista da época?
ANGELA – De fato, há varias referências nos textos de Nabuco que podem ser lidas à maneira como Celia Azevedo leu. Contudo, é preciso lembrar que referências semelhantes aparecem em textos de outras lideranças abolicionistas. Quanto ao racismo, a leitura avulsa de textos, sem considerar o contexto político e semântico no qual eles se gestaram, pode sempre levar a críticas anacrônicas. Não me parece que “racista” seja um rótulo adequado naquele tempo em que a própria ciência social começava a difundir o termo “raça”. O que Nabuco tinha, como muitos progressistas do seu tempo, era uma visão hierárquica da sociedade, ele não propugnava igualdade. Era um liberal, não um socialista. Mas ele jamais defendeu a manutenção de uma hierarquia social baseada na cor ou em etnias. Ao contrário, combateu isso. Sobre o positivismo, os textos de juventude de Nabuco têm algumas referências a conceitos e autores positivistas, mas ele jamais chegou a professar inteiramente ideias de Comte, nem se considerou ou foi considerado pelos contemporâneos um positivista. Ele, como todo mundo no 19 brasileiro, assimilou a política científica do tempo, um conjunto
JC – Como você analisa a posição de JN em relação aos chineses (e a chegada destes ao Brasil) e seu apoio aos europeus imigrantes? Havia de fato a ideia de uma limpeza no sangue nacional? ANGELA – A posição de Nabuco sobre a imigração chinesa remete à pergunta anterior. De fato ele tem declarações infelizes sobre a “mongolização do País”, mas o fulcro da crítica se dirige a uma política, e não a uma raça. É preciso pôr a postura de Nabuco sobre a imigração em contexto. O gabinete liberal do visconde de Sinimbu propôs, em 1879, a imigração chinesa em massa para o Brasil, mandando inclusive emissários à China. Nabuco foi um dos que combateram a iniciativa, vendo nela uma forma maquiada de nova escravidão. O debate como um todo não tinha como eixo a questão racial, mas a escravidão. Como era praticamente consenso que a escravidão era insustentável no longo prazo, a questão em pauta era como efetuar a transição para o trabalho livre. Havia basicamente três posições: a primeira era introduzir imigração proletária, como os chineses, para substituir os escravos como mão de obra para a lavoura; a segunda seria atrair a chamada “imigração de colonização”, europeus que trouxessem suas economias e se tornassem pequenos proprietários – esta era a posição de Rebouças e de Nabuco; a terceira alternativa, defendida basicamente por positivistas, como Teixeira Mendes, era aproveitar os próprios escravos como trabalhadores livres, em vez de buscar imigrantes. Para Nabuco, atrair imigrantes europeus era uma forma de fomentar no Brasil o desenvolvimento econômico e o padrão de civilização que os Estados Unidos estavam então obtendo.
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JC – Você acredita que negros como Rebouças e Patrocínio foram ofuscados pela presença de Nabuco ou, ao contrário, foi Nabuco quem trouxe visibilidade e peso político para eles? ANGELA– Rebouças e Patrocínio foram ativistas absolutamente centrais na campanha abolicionista. Ambos se engajaram antes de Nabuco. Então não se pode atribuir a Nabuco a reputação dos outros dois. A relação entre os três foi quase sempre de colaboração – embora Nabuco e Patrocínio também disputassem um pouco a liderança. Patrocínio era diferente de Nabuco em estilo, mas também tinha luz própria e se consolidou publicamente por seus méritos. Já Rebouças era um homem de bastidores. Nunca procurou os holofotes. Mas foi um exímio articulador, peça fundamental no movimento abolicionista. Então se poderia mesmo inverter a pergunta: Rebouças ajudou Nabuco a obter visibilidade, pois o primeiro impulsionou o segundo em muitos momentos. Por exemplo, fazendo a campanha eleitoral de Nabuco em 1882, quando, enquanto o outro estava na Europa, Rebouças formava grupos, arranjava espaços e tecia alianças no Brasil. A relação dos dois era de amizade e de complementaridade: Nabuco comparou-a mesmo a um casamento. JC – A madrinha de JN, Ana Rosa, presenteou o afilhado com o escravo Vicente. Qual a relação do menino com este escravo? Há registros de outros negros escravos que tiveram maior aproximação com Nabuco? ANGELA – Como toda criança de elite no Brasil do século 19, Nabuco cresceu cercado de escravos. O fato de ter sido deixado pelos pais para viver com a madrinha durante toda a primeira infância acentuou esse fato, porque pôs Nabuco na condição de menino de engenho. Ele cresceu na vida de fazenda, na qual a escravidão era a base não só da economia, mas da organização da casa. Ele narra em Minha formação a relação de in-
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timidade e afetividade da madrinha com as escravas domésticas. Foi nesse microcosmo escravista e patriarcal que Nabuco formou sua sensibilidade. Então, desse ângulo, isso afetou sua visão sobre a escravidão. Mas eu infelizmente não achei documentos dele de próprio punho produzidos nesse período ou imediatamente depois em que esses sentimentos fossem narrados. O relato que ele fez de Magnesiano e da relação com os escravos é muito posterior, já na República, quando ele já tinha desenvolvido uma visão bem mais nostálgica do que crítica acerca desse mundo. JC – Quais os projetos abolicionistas no Brasil mais influenciaram e ajudaram Nabuco em sua tomada de posição antiescravagista e como ele se utilizou das ideias de William Wilberforce? ANGELA – Para responder devidamente, seria preciso escrever um artigo. Para falar sucintamente, Nabuco se valeu da herança emancipacionista brasileira, aproveitando-se de ideias antes expostas por gente como José Bonifácio, Perdigão Malheiros e Tavares Bastos. Mas ele também teve em vista opiniões e estratégias dos movimentos abolicionistas estrangeiros. O caso inglês, ao qual você se refere, foi sem dúvida uma inspiração, sobretudo nas estratégias. Wilberforce funcionou como uma ligação entre o movimento abolicionista e o parlamento na Inglaterra. Nabuco tentou fazer o mesmo no Brasil. Contudo, é preciso lembrar que havia outros abolicionismos além do inglês, e Nabuco atentou para eles, mantendo contato com abolicionistas franceses e espanhóis. E estou agora justamente pesquisando a inserção de Nabuco nessa rede abolicionista global para a apresentação que farei no seminário de homenagem a Nabuco em Londres, em novembro. JC – Na sua opinião, quais os movimentos políticos mais proeminentes (ou mesmo
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visionários) de Nabuco e, por outro ângulo, quais destes movimentos denotaram sua falta de traquejo com o universo político? ANGELA - Eu prefiro dizer que as qualidades de Nabuco vêm justamente de ter sido um homem de seu tempo, arguto analista dele, corretamente avaliando que se tratava de uma era de mudanças. Pensando em Nabuco como homem da transição entre a sociedade tradicional e a sociedade moderna no Brasil, poderíamos sim dizer que em certas circunstâncias ele tentou apressar a mudança e noutras resistiu a ela. Como abolicionista, Nabuco tentou dirigir, catalisar e ampliar o curso da modernização do País, atacando as bases escravistas da organização da sociedade e da economia. Contudo, como monarquista, Nabuco resistiu a outra onda, a da modernização política, opondo-se ao movimento republicano que, afinal de contas, propunha a expansão da cidadania política. Então, de uma parte Nabuco foi um reformista, doutra, um tradicionalista. JC – Quem aderiu à República foi apenas o político Nabuco ou, intimamente, pessoalmente, o homem também o fez? ANGELA – A adesão de Nabuco à República não nasceu de uma mudança de convicção, nasceu de uma desesperança. Durante uma década, Nabuco escreveu contra a República, participou de jornal e mesmo de partido monarquista. Enquanto pôde, Nabuco resistiu ao novo regime. Contudo, no fim da década de 1890, a República se consolidou sem possibilidade de volta. Nabuco então se conformou e retomou sua vida pública sob o novo regime. Mas do ponto de vista pessoal, íntimo, ele manteve sempre a convicção de que a sociedade aristocrática fora superior à sociedade moderna no Brasil e seguia sendo no mundo onde ela ainda existia, na Inglaterra, na Itália, países que ele apreciava mais do que os Estados Unidos, uma república.
JC – Uma das criticas mais recorrentes a Nabuco é seu “estrangeirismo”, sendo ele alvo de chacotas em vários jornais de seu tempo. Até que ponto as acusações de deslumbre com a Inglaterra e até mesmo com os EUA são válidas? Você acredita que esses locais o influenciaram positivamente? ANGELA – Nabuco foi um dândi na juventude, muito preocupado com a autoapresentação. Suas idas à Inglaterra na década de 1870 acentuaram isso, com Nabuco aderindo aos últimos modismos. Mas ele não trouxe só roupas do estrangeiro. A mala veio cheia de fórmulas reformistas e modos novos de fazer política, sobretudo os meetings, que estavam ganhando proeminência na Inglaterra. Então os inimigos políticos de Nabuco muitas vezes se valeram da ridicularização de seu vestuário quando queriam também atacar suas novidades na maneira de fazer política. As críticas diretas ao estrangeirismo de Nabuco aparecem durante toda a campanha abolicionista e são também uma tentativa de desqualificá-lo como político. Enquanto ele construía uma rede internacional de apoio à abolição da escravidão no Brasil, seus adversários tentavam combatê-lo apresentando-o como um antinacionalista. JC – Sem querer fazer psicologismo, baseando-se na questão da admiração que Nabuco tanto mostrou pela Inglaterra (os modos, o estilo de vida, o sistema político, etc.), você acredita que ele, um dândi tropical, traria em si algum sentimento de inferioridade
motivado por sua origem? ANGELA – Não vou entrar no terreno da psicologia, mas acho que Nabuco tinha mais era sentimento de superioridade. Ele era muito convicto e cioso de seus méritos. Devido à formação e aos reconhecimentos que foi coletando ao longo da vida em vários campos, Nabuco consolidou uma autoconfiança. E mesmo em situações que outros teriam vivido como humilhação, como aceitar o emprego da República, Nabuco apareceu de cabeça erguida. Ele tinha muita dignidade e nunca se apresentou ou deixou-se apresentar inferiorizado. Agora, claro, ele certamente teria gostado de nascer em Londres... JC - Gilberto Freyre, aliás, era um dos célebres nomes nacionais que ironizavam o abolicionista e sua paixão por terras estrangeiras. Os dois trataram, à sua maneira, da questão negra. Onde os dois se aproximariam neste sentido? E que posturas de Freyre seriam criticadas por Nabuco? ANGELA – Essa é outra questão que mereceria desenvolvimento mais longo do que será possível aqui. Gilberto Freyre e Nabuco têm muitas ligações. Freyre era fascinado por Nabuco, tanto assim que se empenhou na edição de suas obras, como a seleta de seus discursos parlamentares, escreveu artigos sobre Nabuco e se mobilizou na organização de uma fundação para honrar o legado do abolicionista, a Fundaj. Os dois foram personalidades sui generis, homens cativantes, cultos e viajados. Ambos produziram interpretações poderosas sobre o Brasil, de enorme repercussão e influência. Interpretações que se parecem porque tomam a escravidão como característica central do Brasil. É possível ler Casa-grande e senzala como uma hipérbole de Minha formação. Cada um à sua maneira, os dois livros têm muito de rememoração pessoal da sociedade do açúcar e exalam ambos certa nostalgia em face do mundo tradicional em desagregação.
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Date:03/08/10
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Historiador Ricardo Salles, da Unirio, diz que Nabuco era um homem de seu tempo – nós, que não nos modernizamos, é que o achamos “à frente”
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epois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de 300 anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos.” Nabuco estava certo. Continuamos em grande parte fossilizados, presos à ignorância. A educação viril não se realizou, o molde da escravidão ainda é evocado e a cor várias vezes é maldição. Não se tratava, é certo, de um visionário. Com perdão àqueles que precisam falar em “atualidade” para se referir ao abolicionista (como se a sua empresa precisasse de atualizações para se manter distinta, rica e coesa), Nabuco não precisa do gasto “à frente de seu tempo”. “Ele era do tempo dele", diz o historiador e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) Ricardo Salles, autor do livro Joaquim Nabuco: um pensador do império. Segundo o pesquisador, as questões levantadas pelo abolicionista eram próprias de
sua época e de seu contexto. Eram naturais no discurso de um homem que vivia o fim de vários regimes (o colonialismo e a escravatura entre eles) e o início de novos em escala mundial (o liberalismo, a república). Ali também a ciência ainda era a Grande Mãe e o “desenvolvimento” se mostrava como um novo e irresistível desígnio. “Sempre falam sobre uma modernidade em Nabuco, mas acho que deveríamos inverter essa questão. Não era Nabuco que era moderno, nós é que não somos. Na verdade, nós é que ainda estamos no tempo dele”, continua Salles. Assim, o “olhar para a frente” que caracteriza o livro O abolicionismo (de onde vem o texto citado no início desta matéria) era a percepção de uma estrutura baseada em um longo período - mais de 300 anos - de escravidão, um tempo cujo reflexo sobre a formação brasileira é presente até hoje. “Nabuco sabia que não era preciso apenas acabar com a escravidão, e sim com a obra da escravidão”, reflete Salles. Ele se refere a uma “obra” que era - e é - determinante em estruturas como o latifúndio, o Estado patrimonialista e, sem dúvida, a pobreza. “O latifúndio persiste, o Estado democrático de fato só nasceu a partir de 1988, quando a maioria dos brasileiros realmente pôde votar, a exclusão social é uma realidade. No sentindo amplo da formação do Brasil, ainda temos uma abolição em andamento.” Outra herança que corrói boa parte da nossa ideia de “modernidade” refere-se àquilo o que Nabuco chamou de “escravidão elástica”, ou “porosa” e “flexível”, como ex-
põe Salles. Tratava-se, percebia o abolicionista, da relação aproximada, às vezes afetiva, entre escravos e senhores. O próprio Quincas passou pela situação: no Engenho Massangana, sua madrinha, Ana Rosa, mantinha conversas e mesmo brincadeiras com os escravos que trabalhavam na casa-grande. O próprio Nabuco também desenvolve essa relação (no caso, no papel do branco que mandava) ao olhar para os túmulos dos escravos enterrados perto da Capela de São Mateus (também no engenho) e confessar a sua famosa “saudade do escravo”. “Muita gente tomou isso como uma saudade da escravidão, mas não era o caso. Aqui, é um sentimento pessoal de Nabuco em relação aos que trabalhavam no engenho”, explica Salles. Essa relação na qual os conflitos entre dominado e dominante eram extremamente atenuados foi transportada, com suas devidas ressignificações, para os dias atuais, o que transforma o racismo em “problema inexistente” para uma boa parcela da sociedade. (É impossível não se lembrar aqui da declaração feita em 1970 pelo então Ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barboza: “Não há discriminação racial no Brasil, não há necessidade de tomar quaisquer medidas esporádicas de natureza legislativa, judicial ou administrativa para assegurar a igualdade de raças no Brasil”.) “Um exemplo é o tratamento entre patrões e empregadas domésticas, as quais são ‘quase’ como pessoas da casa”, compara o professor da UniRio. O “quase”, é bom lembrar, faz toda a diferença.
“Nabuquinho está contente/Porque sempre conseguiu/ falando inglês tão somente”. A piada publicada no Jornal do Recife (28 de setembro de 1878), quando Nabuco ganhou a primeira eleição para deputado, deixa claro: o cosmopolitismo do filho de uma linhagem de senadores não era tolerado entre vários políticos e intelectuais da cidade (que não deixavam passar nem a pulseira que ele usava, presente de Eufrásia). Uma das “aventuras” gringas mais criticadas de Quincas foi a sua íntima relação com os Estados Unidos, a terra cujo modelo de desenvolvimento deveria ser, para ele, seguido por nós, povo que necessitava da tutela alheia para tornar-se igualmente viril. Foi chamado ora de “ingênuo”, ora de “pedante”. Mas, de acordo com o diretor de Projetos Especiais da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Humberto França, a presença do abolicionista no país que atualmente possui um presidente negro era completamente estratégica. “Nabuco não foi para os EUA ser apenas embaixador, e sim para montar uma política de Estado, estabelecer a aproximação entre o Brasil e os Estados Unidos”, diz. Havia boas razões para que o diplomata quisesse esse namoro. Os EUA eram nossos maiores compradores. O Brasil, por sua vez, era importante internacionalmente por conta de sua assombrosa produção café, além da cana-de-açúcar e do algodão. “Eram nossos grandes parceiros comerciais. Os americanos queriam colocar aqui os seus produtos. Nós ainda comprávamos muito da França, da Alemanha e Inglaterra”, continua França, explicando que o entusiasmo por aquela porção da América do Norte era justamente a percepção de que aquela terra de pessoas de modos poucos refinados (opinião de Nabuco) ainda seria uma grande potência do mundo. Esse entusiasmo se traduz na proposta do pan-americanismo nabuquiano: liberal, ele encantou-se pela política do presidente Roosevelt e sua Doutrina Monroe, aquela que pregava “A América para os americanos”. Queria que o engatinhante Bra-
sil se adaptasse àquele mesmo modelo de democracia, que reverenciasse o "pais dos fundadores" gringos e deles importasse as experiências econômicas, sociais e políticas. A proposta foi duramente criticada por outro diplomata, Oliveira Lima, que chamou Nabuco de “deslumbrado” e “demasiadamente americano”. Já embaixador, Nabuco conseguiu que fosse sediada no Brasil, em 1906, a Terceira Conferência Internacional Americana, na qual tentou, sem sucesso, impregnar seus colegas com esse pan-americanismo. Oliveira Lima não compareceu ao encontro. O mundo estava sendo partilhado, era hora de fazer política e tentar chegar (era o que restava para quem não era país “central”) perto daqueles que mais tinham a oferecer. “A questão é que as fronteiras ainda estavam sendo definidas. A Argentina, por exemplo, competia agressivamente. Nabuco tinha necessidade de resolver este problema, e estabelecer aliança era ponto crucial. Queria proteger o interior, tinha grande preocupação com a Amazônia, uma região riquíssima, a borracha equivalendo ao petróleo”, continua Humberto França. Tal proteção era absolutamente necessária: as potências europeias (encabeçadas pela Inglaterra que Nabuco tanto amou) pediram, nos 1800, para ocupar os locais “selvagens” de diversas regiões cujo Estado ainda não estivesse formado, e dois terços do território brasileiro eram ainda formados apenas por indígenas ou não habitados. Os esforços de Nabuco só cessaram no ano seguinte quando Rui Barbosa, juiz brasileiro na Conferência de Haia, não deu ouvidos às parcerias entre EUA e Brasil que Nabuco insistia em valorizar (como restringir “o uso da força” na cobrança de dívidas entre os dois países). Para Humberto França, o único problema de Nabuco na sua proposta pan-americanista foi o de ter sido demasiadamente otimista. “Era do caráter dele, que se entregava às causas em que acreditava. Havia outro ponto defensável: estava envelhecendo e queria uma grande causa. Isso a diplomacia permitia.”
[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-ESPECIAIS <0815_13_QUI_18> [JC1] ... 15/08/10]
De acordo com último Relatório de Desigualdades Raciais, mais de 70% dos trabalhadores que deixaram ocupações análogas à escravidão eram pretos ou pardos
O
economista Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vai direto ao ponto: o abolicionismo brasileiro nunca se realizou. Foi um fracasso. Não chegou a essa conclusão apenas observando o mundo - por mais evidente que seja tal realidade, é sempre bom confrontá-la com números (há quem se conforte apenas com a existência deles). A partir de um estudo realizado com base no cadastro dos beneficiados pelo programa federal Bolsa Família, ele constatou que, de cada quatro trabalhadores libertados hoje no Brasil, três são afrodescendentes. De acordo com o cadastro, das 38.572 pessoas que deixaram trabalhos análogos à escravidão, 73% era pretas ou pardas. A maioria desses milhares de explorados, segundo o Relatório de Desigualdades Raciais que Paixão publica anualmente, vivia no Nordeste (com 91% dos ex-escravos). Aquilo o que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera como forma contemporânea de escravidão refere-se a ocupações que obrigam trabalhadores a situações constrangedoras e degradantes ou exigem jornadas exaustivas de trabalho. Também são considerados novos escravos aqueles que possuem dívidas com seus empregadores ou mesmo que correm o risco de serem mortos caso abandonem seu posto. “Tais situações acontecem principalmente nas áreas menos urbanizadas, em ambientes mais isolados. São pessoas que trabalham sendo observadas por vigias armados”, diz Paixão, que integra o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser/Instituto de Economia/UFRJ). A Organização Internacional de Trabalho (OIT), através de um levantamento feito pela organização não governamental Repórter Brasil, divulgou que a presença do trabalho escravo é mais comum na pecuária (carne e miúdos de boi), algodão (pluma), soja (grão, óleo e ração), cana-
de-açúcar (álcool combustível e cachaça), café (grão verde), pimenta-do-reino (grão) e carvão vegetal (carvão para siderurgia). “Também são pessoas que trabalham desmatando áreas para plantio, muitas delas nordestinos que saem de casa para trabalhar nos campos do Sudeste, Sul e Centro-Oeste”, diz o economista. Este ano, o Grupo Móvel de Fiscalização (órgão do Ministério do Trabalho) resgatou, em janeiro e fevereiro, 77 trabalhadores em situações degradantes de trabalho, 26 deles em condições semelhantes às dos escravos. Segundo o MT, os resgates foram realizados em fazendas nos Estados do Pará, Goiás, Tocantins e Minas Gerais. As condições de trabalho registradas pelo Grupo Móvel são absurdas: em vários locais, os trabalhadores precisam alugar o equipamento de segurança (botas, por exemplo) necessário para o desempenho regular da ocupação. Foi registrado ainda o aluguel das próprias ferramentas de trabalho, como foices e machados. Pagava-se para trabalhar. Durante a fiscalização, foram encontrados trabalhadores dormindo em barracos perto de lixo doméstico (repleto de ratos) ou em galpões e depósitos com materiais inflamáveis. Em várias das fazendas (de gado) os empregadores ainda lucram com a venda de produtos de higiene e remédios vendidos a preços altíssimos (em uma delas, um creme dental saía por R$ 6 e um comprimido contra dor de cabeça custava R$ 5). Na maioria dos casos a alimentação também é paga pelo empregado, que assim contrai dívidas com o empregador e não se livra do processo escravizador. Até 2006, o MT havia retirado 19,7 mil pessoas do trabalho análogo ao escravo (foram até ali 441 operações). De acordo com o órgão, as indenizações recebidas pelos trabalhadores passavam de R$ 25 milhões.
Author:AAGUIAR
Date:03/08/10
Time:21:47
dos pelo próprio economista. “É claro que há um nível de subjetividade sempre alto numa pesquisa, principalmente em uma que se baseia na concepção que os entrevistados têm da própria cor. Mas estamos falando de pesquisas cujos números se repetem, são indicadores com regularidade, por isso é preciso considerar que de fato elas espelham a realidade social.”
REGRAS FROUXAS No portal do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (http://www.reporterbrasil.org.br/pacto/) é possível obter, de 2003 até os dias atuais, a listagem das empresas que exploram seus trabalhadores. Simbolicamente, a de 2009 traz União dos Palmares (Alagoas), local do quilombo liderado por Ganga Zumba e Zumbi, como um dos municípios onde foram encontrados escravos contemporâneos. Neste mesmo relatório, também surgem duas empresas localizadas em Pernambuco (as duas em Palmares). Para Marcelo Paixão, a forte presença negra nesta lamentável realidade só confirma que a agenda social proposta pelos abolicionistas nunca se realizou. “Sim, aconteceram alguns avanços, mas eles não modificam uma realidade que é semelhante à de ontem”, diz. Fundamenta sua opinião em alguns números que, sem dúvida, espantam: segundo divulgou este ano o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 23,4% das mulheres negras ou pardas que trabalham atuam como domésticas. No primeiro censo feito no Brasil (1872), 24,3% das escravas estavam no serviço doméstico. Os dados foram levanta-
O economista acredita que a presença do trabalho escravo no País está diretamente ligada às regras pouco duras aplicadas àqueles que descumprem a o artigo 149 do Código Penal (que trata do crime de submeter alguém às condições análogas à de escravo). A legislação trabalhista foi ampliada também ao meio rural (Lei n.º 5.889, de 8/6/1973). Os fazendeiros que não cumprem a exigência do bem-estar do seu empregado e o submete a trabalhos baseados na coerção podem ter suas áreas desapropriadas. “Mas é difícil que as leis sejam realmente aplicadas ou aprovadas, a bancada ruralista no governo é ainda muito forte”, diz Paixão. De fato: segundo a ONG Repórter Brasil, menos de 10% dos envolvidos em trabalho escravo no sul-sudeste do Pará (entre 1996 e 2003) foram denunciados pelo crime, enquanto o primeiro condenado criminalmente por trabalho escravo, Antônio Barbosa de Melo (Fazenda Alvorada, no Sul do Pará), teve a pena convertida em um singelo pagamento de 30 cestas básicas por seis meses.
» Para saber mais: Relatório possibilidades jurídicas de combate. Em http://www.reporterbrasil.org.br/escravi dao_OIT.pdf