Quase brancos

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É tão perigoso quanto delicado falar sobre raça no País dos miscigenados. Afinal, quem são os “claros” e “escuros” em uma sociedade onde a cor da pele é antes de tudo uma construção? Onde, entre 2007 e 2008, sumiram das estatísticas nada menos que 1 milhão de negros e 450 mil brancos (que deram lugar a 3,2 milhões de autodeclarados pardos)? Neste projeto duplo realizado para marcar os cem anos da morte do abolicionista Joaquim Nabuco, o Jornal do Commercio mostra como negros que vivem em condições favoráveis simplesmente “embraquecem” socialmente, enquanto brancos que vivenciam a pobreza, ao contrário, “escurecem”. O preconceito racial, no entanto, ainda é percebido mesmo entre os pretos mais ricos – por isso, quase brancos – enquanto os de pele clara contam apenas com a brancura como um bem de prestígio. São quase negros. Encartado neste caderno de 28 páginas, trazemos ainda um suplemento irmão de 20 páginas totalmente dedicado a Nabuco, onde especialistas de todo País falam sobre a importância e a “santificação” deste homem fundamental para nossa história: para alguns, é um grande libertador dos escravos, para outros, um intelectual de indisfarçável racismo.


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u sou preta, mas bela, filhos de Jerusalém; como as tendas de couro escuro, como os cortinados suntuosos. Não vos incomodeis se sou morena, se o sol me tisnou. Meus irmãos curtiram a minha pele; puseram-me a guardar as vinhas, e a minha própria vinha não guardei.” São versos bíblicos do Cântico dos Cânticos, a mais bela canção de Salomão. Mas, seria possível que tanto tempo antes do cristianismo, quando o povo de Deus buscava seus próprios caminhos, já houvesse distinção racial e se questionasse a cor do ser vivente? A pela escura tisnada pelo sol? Nós já temos cinco séculos de história – é um período curto no caminhar da humanidade. Mas, nestes 500 anos, em mais de 400 deles misturamos de tal forma nosso sangue, suor e sentimentos que há muito não sabemos se nosso povo é quase branco ou quase preto, posto que já não é mais preto nem é branco. Ele é apenas igual, compartilhando a ventura e as desesperanças. Este é o tema que do projeto especial duplo que hoje estamos entregando aos leitores do Jornal do Commercio. Foi pensado para marcar os cem anos da morte de Joaquim Nabuco: o primeiro caderno traz a questão racial discutida entre negros e brancos, enquanto o suplemento Um pé no salão, outro na senzala traz o legado histórico, cultural, político e sociológico do abolicionista, o grande estadista do Império que nasceu na manhã de um dia 19 de agosto, ainda na primeira metade do século 19. Os textos destes dois cadernos-irmãos são de Fabiana Moraes, nossa premiada repórter que coloca no seu currículo dois Prêmios Esso de Jornalismo (um regional e outro nacional, conquistado em 2009, o maior da premiação). No primeiro, Fabiana entrevistou 10 personagens, cinco deles de pele clara, outros cinco de pele escura. Nos diálogos francos que se travaram entre entrevistados e entrevistadora, sentimos que as condições de pobreza de cada personagem branco são um fator de peso na discriminação disfarçada e consentida que ultrapassa mesmo a cor da pele. Sentimos também o que é a difícil “aceitação”, por parte da elite branca, de um ministro negro no Supremo Tribunal Federal (STF), como é o caso de Joaquim Barbosa: sua presença parece nunca ter sido totalmente absorvida pelos próprios colegas. É duro? É, sim – mas dizia Gandhi que “a verdade às vezes é dura como o diamante, às vezes é frágil, como a flor do pessegueiro”. Assim, por que são tão poucos os padres negros na Igreja Católica, aquela para quem todos são iguais perante Cristo? São iguais também na miséria muitos irmãos brancos, que nasceram e se criaram nos tantos bolsões de pobreza que circundam o universo da cidade grande. São discriminados pela condição social. Para Fabiana, que viajou, conversou e discutiu com sociólogos, antropólogos, economistas e historiadores, que esteve nos salões atapetados do STF, mas foi também no enclave paupérrimo de um quilombo em Pernambuco, o racismo, infelizmente, “é bem mais perverso do que imaginamos”. Os negros que conseguem romper o cordão de pobreza lutam para serem aceitos no mundo dos brancos. No legado dessa miséria comum, os brancos pobres, descriminados pela condição social, tem como saldo apenas a cor da pele. Sabemos que é impossível discutir e escrever sobre um tema tão apaixonante sem evocar a figura ilustre de Joaquim Nabuco, ele mesmo um homem complexo, fruto de um tempo idem. Essa dualidade é percebida dentro do caderno em formato tabloide encartado neste Quase brancos, quase negros. Discutimos esse pernambucano tão ilustre, cujo nome é quase sinônimo da luta pelo fim da escravidão, e que esteve ao lado da Princesa Isabel quando foi sancionada a Lei Áurea. Nabuco é visto por ângulos pouco explorados e conhecidos, quando se descobre a riqueza da sua contribuição, vital para o entendimento da sociedade contemporânea. Uma sociedade que cobra e carece de uma sistema educacional muito mais eficaz, que tem consciência da perversa concentração de renda que nos estigmatiza, que nunca teve uma política fundiária compatível com um país de 8 milhões de quilômetros quadrados. Tudo isso os dois cadernos vão mostrar. Complemento dizendo que as belas fotos que ilustram o trabalho são de Heudes Régis, as ilustrações da autoria de Pedro Melo e o trabalho gráfico primoroso de Andréa Aguiar. Tenho certeza de que a leitura será prazerosa para todos. Ivanildo Sampaio, diretor de redação

s negros deixarão de existir no Brasil daqui a menos de dois anos. O desaparecimento da cor no País está previsto para 2012. Também haverá a drástica redução de mestiços, que serão apenas 3% da população. Seremos uma enorme nação de brancos. A previsão não é nova: ela foi apresentada em 1929 pelo respeitado antropólogo Roquette-Pinto durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, no Rio. Outro intelectual de renome, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, mostrou antes esse mesmo “futuro brilhante” no Congresso Internacional das Raças, realizado em 1911. Utilizou as premissas do primeiro, seu colega e também antropólogo, que se baseou nos censos de 1872 e de 1890 para sustentar o branqueamento do Brasil. Muitos brasileiros, é claro, ficaram extremamente incomodados. Primeiro, porque Lacerda mostrou lá fora, e logo na Europa, dados que revelavam um Brasil negro demais. Segundo (e mais grave): ainda seria preciso esperar cem anos para que pudéssemos caminhar felizes entre gente como os “tipos puros e belos do Velho Mundo”, como quis o crítico Silvio Romero? O fato é que a ciência pode decepcionar mesmo os corações e mentes mais crédulos, como perceberam os três intelectuais. (Romero foi um dos mais desiludidos ao ver que seu sonho de tez clara não ia acontecer.) Sofreram uma dura e simbólica prova do tempo, que os transformou em ingênuos. Ela está baseada não apenas em números, mas em todo o processo social e histórico pelos quais a Nação passou nas últimas décadas. Pela primeira vez no País, mais da metade da população se declarou afrodescendente (negra ou parda), segundo divulgou no ano passado a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). São 50,3% os de pele escura (43% pardos e 6,5% pretos). Não é pouco. Em 1940, 60% afirmavam que eram brancos para o mesmo instituto. Em 2006, 42,6% se dizia preta ou parda. Parece que vai deixando de ser um problema não parecer com os “belos” do Velho Mundo, uma realidade que muitos relacionam a fatores como a crescente queda na taxa de pobreza no Brasil, a entrada significativa de afrodescendentes nas escolas e universidades, a presença de pretos e pretas na publicidade, na TV, nas novelas, estes instrumentos que atuam quase pedagogicamente no País. Há, porém, uma enorme ironia na situação: muitos dos negros que atingem locais de destaque simplesmente embranquecem – e não estamos nos referindo à cor da pele. Ao se afastarem das posições comumente atreladas aos “escuros” (o trabalho braçal, o espaço do servir) e ao se aproximarem de esferas cujo domínio é branco, tornam-se, quase, iguais. Pinto, Romero e Lacerda ficariam fascinados com o processo. Ele não é simples: são necessárias diversas e silenciosas negociações. Para participar do “mundo dos brancos”, observou o sociólogo Florestan Fernandes já nos anos 70, negros e mestiços precisam em vários momentos se submeter a um branqueamento psicológico, social e moral. As portas desse universo de pele clara não estão exatamente fechadas – para ultrapassá-las, basta a adesão a outros códigos, basta mostrar a velha e esperada cordialidade, aquilo o que o pesquisador Ronaldo Sales, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), chamou de “Complexo de Tia Anastácia”. “É a síndrome do negro que é aceito apenas enquanto fica no lugar que lhe é reservado.” Sim, estamos falando de uma integração. Mas ela, antes de tudo, é subordinada. O contrato de adesão ao mundo dos brancos tem outros itens. Quem atinge esse posto de prestígio tem ainda a missão de servir como exemplo, é o ícone que comprova: não somos racistas. Confirmase o Brasil cuja “democracia racial” é questionada há quase 40 anos no meio acadêmico, mas que ainda prevalece na rua, no ônibus, na escola, em casa. É só olhar: lá no Supremo Tribunal Federal (STF) não tem um ministro negro? No desfile daquela grife famosa não havia uma moreninha em meio às branquinhas? Na novela não apareceu uma Helena preta? E, para provar que não é só aqui que os negros têm vez, há aquele homem simpático e “de cor” que hoje ocupa a presidência dos EUA. Tais exemplos são utilizados continuamente para sustentar o discurso da inexistência da discriminação racial. Ao mesmo tempo – e é aí que eles são particularmente poderosos –, mostram como exceções apenas confirmam a existência de uma regra. O ineditismo dos negros no mundo dos brancos não nos faz menos discriminatórios, e sim o oposto. De vez em quando, chega a conta cobrando a passagem pela porta dos claros. É aí que os quase brancos têm o “quase” sublinhado. Em

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junho deste ano, na última São Paulo Fashion Week, a modelo pernambucana Emanuela de Paula recebeu a sua. Décima primeira top mais bem paga do mundo em 2009 de acordo com a revista Forbes, ela estava em um camarim quando, revelou à imprensa, foi chamada de “macaca”. A lógica que explica o insulto é simples: você pode ser linda, milionária, pode compartilhar aquele espaço glamourizado e majoritariamente branco. Mas continua negra, e, por isso, “macaca”. O ministro Joaquim Barbosa (STF) também lidou com várias destas faturas até tomar posse no Supremo – e elas continuam a chegar ao seu gabinete. A raridade de sua presença em um alto escalão da Justiça brasileira não está livre de tensões, como demonstrou o famoso comentário da também ministra Carmen Lúcia: “Esse [Joaquim Barbosa] vai dar um salto social agora com esse julgamento”. Referia-se ao fato de o ministro ser relator, em 2007, do escândalo do mensalão, como foi chamada a “mesada” paga a deputados federais para que estes votassem a favor de projetos do Executivo. Aqui, novamente nos deparamos com um raciocínio simples: fale várias línguas, realize um doutorado na Sorbonne, prepare um respeitado relatório transformando em réus 40 importantes nomes da política nacional. Torne-se ministro, contrariando o futuro esperado para um filho de pedreiro. Todos esses feitos são louváveis, mas a sua pele negra nos informa que você ainda não atingiu o Grande Degrau Social. Os exemplos protagonizados por Emanuela de Paula e Joaquim Barbosa revelam que o racismo entre negros de alto prestígio pode ser extremamente perverso, porque quase invisível. Porque, é claro, dirigese logo àqueles que são observados como “felizardos”, os “bons exemplos” de uma falsamente tranquila miscigenação. Os perfis do padre Clovis Cabral, da ialorixá centenária Estelita Santana e da professora norte-americana Barbara Carter (que viveu o tempo da discriminação institucionalizada em seu país) também mostram, nas próximas páginas, como as barreiras que distinguem pretos e brancos não deixam de existir apesar da importância de seus lugares e conquistas. A classe mais alta pode fazer com que a cor negra tenha menos peso, produz o tal embranquecimento, mas ela não nivela aqueles que dividem. “Se você é bem-sucedido, termina sendo menos negro do que é. No entanto, no fim, é a cor que dá conta de tudo, do corpo e do lugar social”, diz Ronaldo Sales. O antropólogo Ivo de Santana estudou, em Salvador, uma “elite negra” que pôde adentrar em cursos como direito, medicina, estatística, engenharia, letras, alguns deles com pós-graduação realizada fora do País. Percebeu ali os sutis mecanismos de discriminação racial que, como ele escreve, se colocam apenas àqueles que conseguem acessar locais de prestígio, e não à maioria dos que ficam de fora. A tal sutileza, porém, não é comum a todos: uma de suas informantes, que foi morar num condomínio de classe média alta, enfrentou uma série de constrangimentos racistas, que culminaram com uma carta ofensiva deixada sob sua porta. Precisou mover uma ação judicial para que a presença de sua família fosse tolerada (“tolerada”, importante frisar). Ela e os negros que aparecem perfilados neste especial se negaram a realizar, em diferentes níveis, o pacto que exigia o embranquecimento deles. Não assumiram, como tantas vezes é observado entre esta população específica, uma postura de cordialidade, o que os transforma em atores essencialmente políticos. Ao defender temas polêmicos como as cotas em universidades – e até nas passarelas – eles demonstram que, apesar de vivenciarem condições quase utópicas para a maioria dos afrodescendentes, não romperam os laços de solidariedade com os outros “de cor”, uma realidade bastante comum, segundo escreve Silvio Luiz de Almeida, advogado e vice-presidente do Instituto Cidadania Democrática (ICD/SP). “Ao adentrar as estruturas que possibilitam a 'ascensão social', o negro muitas vezes passa a servir à causa da opressão, mas sem nunca deixar de ser oprimido.”

» Fontes: O negro no mundo dos brancos (Florestan Fernandes, 1972), A mobilidade social dos negros brasileiros (Rafael Guerreiro Osório. Brasília, agosto de 2004, IPEA), Uma história de branqueamento ou o negro em questão (livro organizado por Andreas Hofbauer), À margem do centro: ascensão social e processos identitários entre negros de alto escalão no serviço público – o caso de Salvador (Ivo de Santana, UFBA), O acesso à universidade e a emancipação dos afro-brasileiros (Silvio Luiz de Almeida, USP), Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação (Andreas Hofbauer), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), 2009

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abuco e Barbosa, Joaquins, um dia se emocionaram com a beleza intestina de Paris. Amaram o Sena e os Jardins de Luxemburgo. Passaram, o coração sensível, pela Pont des Arts, a Pont Neuf, a Basilique du Sacré-Coeur (no original, como no impecável francês dos Quincas). Homens diferentes, momentos distintos, vontades semelhantes: a todos, a possibilidade de experimentar, como eles, o Belo, aquilo o que se entende como a vida boa. Outro aspecto também os aproxima: a figura do pai. Nabuco carregava, vestido nas últimas modas, o peso do nome do seu, José Thomaz, figura de alta estima no Brasil da corte. Barbosa carregava, vestido com o que podia, o peso da ausência do seu, que, ao se separar da mulher, passou para o filho o cetro de provedor familiar. Cada um, o menino do senador e o menino do pedreiro, chegou pela primeira vez até o alto de Montmartre ao seu modo. Ambos eram jovens. O primeiro teve o prazer de estar a passeio. Assim, pôde ver mais atentamente, sem os constrangimentos da pressa, uma cidade que há pouco findara suas cortes para inaugurar um novo momento, no qual a seda e a renda chantilly passavam mais próximo aos olhos da plebe. Era perfeito para o rapaz que usava uma polêmica (porque inovadora) pulseira de ouro e adorava exibir seus naturalmente construídos dotes aristocráticos. O segundo subiu ao monte, de onde se tem uma vista privilegiada da capital francesa, após um longo trajeto iniciado aos 16 anos, quando saiu de Paracatu, no interior de Minas Gerais, para Brasília. Era, nunca negou, um privilegiado. Sempre houve comida no prato e vontade suficientes para que ele continuasse, naquela quase cidade, seu trajeto até Montmartre. Ao contrário de Paris, a capital federal, inaugurada há pouco mais de dez anos, era lugar de passantes sujos de cimento, de comida na marmita, um novo mundo onde quase tudo era plebe. Perfeita para o rapaz de roupas simples que gostava de piano: seus dotes intelectuais se expandiriam ao lado da urbe cuja aristocracia também estava em formação. O Joaquim de pele alva conseguiu sua passagem para a Europa após um árduo trabalho de sedução, a venda de um engenho falido e a recusa de um emprego: convidado a trabalhar como auxiliar em exames de retórica, Nabuco sabia que seu porte, a inteligência, a fala, a roupa e o dinheiro paterno tinham poder suficiente para levá-lo aonde quisesse, sem a necessidade de amassar os ternos impecáveis. Essa irresistível soma não teve desempenho poderoso apenas em território brasileiro. Uma vez em Paris, o menino do senador provocou orgulho nos salões cariocas desde o primeiro momento em que proferiu o seu primeiro “bonsoir” para nomes como a escritora George Sand (pseudônimo da também baronesa Amantine Aurore Lucile Dupin) e o respeitado escritor Ernest Renan, que o agraciou com as seguintes palavras: “C’est moi qui serai enchanté de causer avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. E. Renan. Rue Vanneau, 29” (algo como “Sou eu que estou encantado em encontrar você. Todos os dias por volta das 10h você pode me encontrar”). Nabuco, 24 anos, ficou maravilhado. Atingia, ali, um dos propósitos que acendiam a sua alma: aproximar-se de estrelas intelectuais e políticas. “Em 1873 (...), a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo”, escreveria em Minha formação, onde também reproduziu a mensagem de Renan. A crisálida virava borboleta, deixando para trás os momentos de melancolia (o mal do século, sentimento e moda espraiados por Byron, também atingiu o coração de Quincas). Estes deram lugar a um deslumbramento acima de qualquer discussão política, esta “amortecida, dominada logo, pela sensação de arte”. O Joaquim de pele escura conseguiu sua passagem para a Europa após um árduo período de trabalho físico no qual realizou, por exemplo, faxina nos banheiros do Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Também foi contínuo e acumulou tarefas: as 12 horas de trabalho por dia resultavam em cochilos durante as aulas. Melhorou quando se tornou operador de máquina ofsete em uma gráfica. Não podia recusar emprego: era o salário que garantia a promoção de sua inteligência e da sua fala, além da roupa e da comida. Também sabia dizer bonsoir, se interessava pela leitura, Kant, Hegel, o alemão de Maria Stuart e Wallenstein. A performance intelectual garantida pelo suor na testa possibilitou a sua metamorfose pessoal: na casa dos 20, o menino do pedreiro provocava orgulho ao cursar direito na Universidade de Brasília, de onde saiu bacharel em 1979. Neste momento, já havia conseguindo o emprego de oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores do Brasil na Finlândia, onde ficou entre 1976 e 1979. Aproveitou a relativa aproximação entre fronteiras na Europa e viajou pela região, passando pela Inglaterra que também encantou um dia o filho do senador. A sua crisálida ficara no passado, deixando para trás os momentos de cansaço pro-

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vocado pela simultaneidade de estudo e de trabalho, as noites de faxina, os cochilos na sala de aula. Estes deram lugar ao interesse pelo direito público, linha do mestrado e do doutorado que cursaria na Panthéon-Assas, a Universidade de Paris II. O amor pela arte, a Europa, as letras e a vontade de dominar outras línguas unem o Joaquim intelectual e dândi do século 18 e o Joaquim intelectual e trabalhador do século 21. Homens diferentes, momentos distintos, vontades semelhantes, eles também iriam se voltar para uma mesma questão: a cor da pele. Para o nascido branco, que na infância havia recebido de presente um menino preto, Vicente, era vergonhoso ver sua terra continuar com a política escravocata enquanto os países que tanto admirava repudiavam a prática agora relacionada a uma antiga economia, e não à moderna, baseada na revolução das máquinas. Seu espírito, que passara dez anos longe da política, “atraído pelas viagens, pelo caráter dos diferentes países, pelos livros novos, pelo teatro, pela sociedade”, estava cheio de revolta e voltara-se para o mundo exterior não pelo o que ele tinha de divertido e belo, e sim pelo que mostrava de indigno e feio. Elegeu-se deputado por Pernambuco em 1878 e olhou com mais atenção para os negros escravos que serviam nos salões. É certo que desde 1868 dizia-se incomodado com a escravidão, mas o belo, aquilo o que se entende como a vida boa, havia despertado o dândi. Feito homem público e político, publicaria, cinco anos depois, O abolicionismo. De certa maneira, era seu presente tardio para Vicente. Para o nascido negro, os diferentes países, os livros novos, o teatro e a sociedade, pelos quais sempre se sentiu atraído, haviam se tornado uma realidade palpável. Seguia ouvindo música clássica, entendendo melhor o emprego do “even”, do “mientras”, da “deutsche sprache”. Mas ao lado do lazer aristocrático, da fruição do divertido e belo, continuou a observar o que era indigno e feio. Conhecia os últimos termos de perto e, dentro da prestigiosa université parisiense, estava também o garoto que ficou sem aulas durante um ano, período em que sua escola em Paracatu, mesmo pública, decidiu cobrar mensalidades. Escreveu sobre a Justiça brasileira – e sobre o meio do qual faria parte mais tarde - em La Cour suprême dans le système politique brésilien (editora LGDJ/Montchrestein, 1994, 320 páginas, 40,55 euros). Em 2001, olhou com mais atenção para as distinções causadas pela cor da pele e publicou Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA (454 páginas, edição esgotada). Era sua forma, elegante, de falar sobre “o mais grave de todos os nossos problemas sociais (o qual, curiosamente, todos fingimos ignorar), o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador quadro social”, como ele escreveria em um artigo. De certa maneira, era seu presente para a mãe, o pai, os seis irmãos, também para milhões de brasileiros.

ÍNTIMA REVOLUÇÃO O Joaquim de Minas leu com muito interesse o Joaquim de Pernambuco. Concordou, sem dúvida, com vários dos pontos de vista do abolicionista da pulseira de ouro, como o que se segue: “Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de 300 anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância”. O menino do pedreiro, o terceiro negro a ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, está teórica e empiricamente convencido da frase escrita há quase 150 anos. Mas, do alto do prestígio conferido ao lugar ocupado no gabinete c-429, o último do corredor do quarto andar do prédio (anexo 2) do Supremo, ele segue a opção de não levantar nenhuma bandeira, como fez um dia o menino do senador. Não faz da cor uma atração a mais (“não acordo de manhã e olho para a cor da minha pele”), não permite que o instrumentalizem, como já declarou. Diferentemente de Quincas (“Oh! o que não recebi nesses anos de luta pelos escravos! Como os sacrifícios que por vezes inspirei eram maiores que os meus! Eu tinha a fama, a palavra, a carreira política...”), prefere o silêncio e evita entrevistas. É uma maneira de minimizar o peso da raridade da sua pele naquele ambiente, raridade esta que muitas vezes reduz sua fala, que é ampla, apenas ao problema da discriminação. “A questão racial não é uma obsessão para mim.” Para superarmos o despotismo, a superstição e a ignorância, crê, será necessária uma mudança antes de tudo pessoal, e não política. “A primeira revolução que o Brasil e os brasileiros teriam que fazer seria uma revolução íntima, uma mudança radical de visão, de ordem moral, de aceitar o outro tal como ele é, de respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos.” Joaquim Barbosa fala um excelente português.

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ossa Senhora mora numa casa pequena, em uma ladeira de Cachoeira, Recôncavo Baiano, tem 103 anos e é devota de Obaluaê. Usa saias de renda belíssimas, de outros panos, brilhosos, também. Uma é bordada, tecido comprado em São Paulo, tem mais de 30 anos. Nossa Senhora gosta de samba de roda e teve 12 filhos, todos criados no mesmo lar onde ela mantém um terreiro de candomblé. De manhã, costuma comer “um pratão de mingau”. Quando era moça, tinha tabuleiro, vendia doce e acarajé. Foi nessa época que teve um sonho que mostrava que sua vida ia mudar. Aí estava Estelita, esse é o nome de Nossa Senhora, estava Estelita na rua, vendendo doce e acarajé, quando alguém perguntou: “Como é, você vai ser minha irmã ou não vai?” Ela foi. Isso tem mais de 60 anos e há mais de 30 é a juíza Perpétua da Irmandade da Boa Morte, o mais alto cargo de um grupo criado no início do Oitocentos, em Salvador, por africanas vindas do Ketu. É a única irmandade negra do mundo formada apenas por mulheres. A cada sete anos, a juíza recebe a Santa Mãe de Jesus, encarna Aquela que agrega todas as mulheres, a Virgem que morreu em paz, sem doenças, consumida pelo amor de Deus e o desejo de estar perto do filho. É Ela, na face de Estelita, a mais antiga do grupo, quem comanda periodicamente a enorme festa realizada pela congregação durante o mês de agosto. A presença divina no corpo frágil, uma bênção para muitos, uma blasfêmia para tantos outros, é incontestável naqueles dias. Segurando um báculo, espécie de cajado que marca seu poder, Estelita senta-se, unindo latim e iorubá, ao lado de padres durante parte da celebração católica da festa (realizada na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário). O acessório só se materializa em suas mãos a cada sete anos, para marcar a presença sagrada: quando Nossa Senhora não é a provedora da festa, Estelita não senta entre os religiosos e seu báculo existe, mas é invisível. Poucas recebem a imensa honra de ceder a carne e o sangue a Maria. É preciso ter angariado a confiança das irmãs e dedicar boa parte da vida a irmandade, onde hoje são aceitas mulheres com menos de 45 anos, uma regra antiga que garantia, de certa maneira, a total dedicação das irmãs (havia o entendimento de que as jovens seriam mais propensas aos prazeres mundanos, à noite, ao álcool, ao abandono da ordem). Só entram mulheres que estão ligadas a um terreiro de candomblé, que sejam filhas de um orixá relacionado à morte (Nanã, Ogum, Obaluaê), que estejam dispostas a pedir esmolas para a compra de alimentos e artigos para as celebrações, que não se importem em passar grande parte de agosto fora de casa, reunidas com as outras irmãs numa espécie de retiro. É necessário ainda cozinhar para a verdadeira multidão que espera as comidas saídas da sede da irmandade nos dias de festa. As iniciantes passam três anos sendo testadas até poderem de fato entrar no grupo. Apenas aquelas consideradas obedientes têm sucesso. Todas, até as mais respeitadas, donas de altos postos, devem pedir permissão a Estelita sobre assuntos ligados à Boa Morte. O símbolo utilizado para definir a hierarquia é uma saia – os vestidos não são permitidos dentro da congregação. A escrivã é a dona da primeira saia; a segunda pertence à tesoureira; a provedora detém a terceira; enquanto a quarta é da procuradora-geral. A Juíza Perpétua, que só deixa o cargo quando alcança a sua boa morte, está acima das quatro saias. O sistema foi criado pelas negras do partido alto que fundaram a ordem, mulheres endinheiradas que conseguiram comprar a liberdade e, em agradecimento, fizeram votos a Santa Maria Mãe de Deus a favor da libertação dos negros. Apesar de o papel das mulheres escravas não ser ressaltado nos estudos sobre o período, elas, pioneiramente, criaram um grupo de força religiosa e também política. Elas também cuidavam dos funerais, existiam para que outros negros, como tanto havia acontecido, não morressem mais na escuridão. Nossa Senhora, apesar de olhar por todos nós, já foi barrada na Matriz de Cachoeira: em 1989, um conflito envolvendo vaidade, lu-

ta pelo poder e preconceito fez com que a irmandade deixasse de celebrar a festa na igreja, rompendo um laço iniciado na metade do século 19, quando a ordem chegou ao município. Assim, Estelita, mesmo divina, perdeu seu lugar no altar, o canto ao lado dos padres, precisou carregar seu báculo até outro local, a Igreja Católica Apostólica Brasileira. Ela lembra até hoje do período, mas evita falar qualquer coisa para não reacender a briga. Até começa a dizer algo, mas é repreendida pelo filho Nelson, que circula pela casa enquanto ela dá entrevista. Foram anos difíceis, em que duas imagens vitais na história da congregação, Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora da Boa Morte (com Nossa Senhora da Assunção, completam a tríade que invoca uma única Maria), foram retidas pelo pároco da cidade. O episódio é conhecido como O Sequestro das Santas. Assim, as irmãs não puderam render suas homenagens, tampouco arrumar as imagens para a festa do ano seguinte, prática ancestral entre elas. A missa pela alma das Irmãs Falecidas, que abre a celebração na quinta; a missa de corpo presente, na sexta; e a missa da subida de Nossa Senhora aos céus, no domingo, deixaram de ter um espaço sagrado. As negras de saias, que gostariam de homenagear Aquela que as teria libertado, não passaram das escadas.

MENOS NOVE FILHOS O pároco não contava, no entanto, com uma poderosa aliada da Nossa Senhora simbolizada no corpo de Estelita. A seu favor, estava a modernidade de um tempo no qual religião, fé e espetáculo se confundem: há quatro décadas, a festa da Boa Morte já havia deixado de ser uma celebração quase íntima, com no máximo 20 seguidores durante as procissões, para se transformar em cartão-postal institucional, evento integrante do calendário turístico baiano. A presença de turistas passou a ser incentivada, o dinheiro começou a circular, foi o tempo no qual muitos norte-americanos, principalmente negros, procuravam Cachoeira em agosto. Estelita, que não era juíza nem sagrada naquele tempo, recorda bem dos gringos comprando, a preços baixíssimos, os colares e pulseiras de ouro que adornavam as irmãs. “Eu vendi um, grande, fiquei com outro.” Quase todas as joias deixadas pelas antigas escravas foram levadas como suvenir. O dinheiro, em parte, foi usado para a manutenção da irmandade, que passou por períodos difíceis e quase chega ao fim no início dos 70 – apenas seis irmãs faziam parte da congregação. Com o apoio de medalhões baianos – o escritor Amado, o cantor Gil, o político Magalhães – elas receberam uma sede própria. Também veio a visibilidade, os jornais adorando publicar as negras repletas de colares dourados, as roupas que garantiam boas fotos. Eram imagens fortes, mais poderosas do que a do pároco, que, após 20 anos sem abrir as portas para as mulheres da Boa Morte, teve que abrir, no ano passado, passagem para Nossa Senhora, em Estelita, retornar ao altar. Foi um alívio para a mulher que não perdeu apenas um filho, ao contrário da santa que a visita a cada sete anos. Dos doze nascidos, dez homens e duas moças, apenas três estão vivos. Também enterrou o marido que trabalhou, como ela, numa das fábricas de charutos que cercavam o Rio Paraguaçu, de onde se vê São Félix de um lado, Cachoeira do outro. “Deus já levou quase tudo.” Sentada à mesa da salinha que divide o salão do terreiro e sua cozinha, vai lembrando-se de alguns nomes. Flaviano. Melquíades. Elias. Joel. Dinalva. Cláudio. Renato. O pai dos meninos, Graciliano, que se foi há mais de 30 anos, “cortou o pé e deu a moléstia”. Cada vez que um dos meninos se ia, Estelita chamava pela Virgem que conhece tão bem. “Maria, salvadora dos mortais, orai, orai, orai por nós.” Mistura a fala com um canto, o nome dos filhos escapa à memória, mas a prece não. A filha de Obaluaê (ou Omulu), uma cruz de palha usada na Missa de Ramos dentro do jarro vermelho, sapatilha de algodão nos pés, queria ir à missa, mas o corpo não deixa mais, fala, canta e reza. “Dai-me morte salutar, ó Maria, Mãe de Deus.” Estelita vai morrer livre da escuridão.

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Date:28/07/10

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João Arraes/Especial para o JC

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i, pessoal, tudo bem? Estamos selecionando modelos negras ou mulatas, podem ser claras também, desde que tenham cabelos bem cacheados ou crespos e sejam bonitas, com altura mínima de 1,65 metro. A seleção será amanhã, 10/3, terça-feira, às 13h, na agência localizada na Vila Mariana. Serão selecionadas 20 garotas para fazerem escova orgânica – última palavra em alisamento sem formol que trata do cabelo – na feira Hair Brasil, que ocorre no final do mês de março. O tratamento será feito com profissionais de BH sobre um palco, por isso a modelo deve ser desinibida e bonita, OK? Cachê é de R$ 180 para um tratamento que, no salão, custa cerca de R$ 1.200.” Quando a modelo Emanuela de Paula, 21 anos, US$ 2,5 milhões em 2009 (ou R$ 4,4 milhões, foi a 11ª modelo mais bem paga do mundo naquele ano, segundo a revista Forbes), subiu ao palco para a finalíssima do concurso Miss Pernambuco Infantil, não era tempo de alisamentos poderosos: a ascensão e a queda do formol para a área capilar ainda estavam por vir. A maneira mais comum de “corrigir” a negritude era a escova – a chapinha, esse fenômeno que hoje unifica classes tanto quanto o iogurte e a TV slim, era incomum no País. A menina, 8 anos em 1997, seria surpreendentemente eleita miss. Os cabelos haviam passado pelo secador e pela escova que aplainou os fios. Mesmo assim, diante daquela adesão ao tipo “normal”, o público que lotava a plateia do Teatro Barreto Júnior não se conteve – ele até aceitava a garota como concorrente, vá lá, mas nunca como vencedora. “Negrinha! Crioula!” Outras exclamações aconteceram, todas violentas. A gritaria passou meio batida por Emanuela, que estava acostumada a usar pitó. Um monte deles, aqueles rolinhos na cabeça, no Sudeste e no Sul chamam também de xuquinha, se bem que não é a mesma coisa. É penteado desprestigiado de maneira geral, ele diz muito alto “eu sou preto”. A tia Eliane, que não alisa o cabelo, fazia questão de arrumar assim a sobrinha tratada até hoje por todos da família como Kate (vem do nome do meio, Katyleen, que a modelo deixou para trás). Era essa Kate, e não Emanuela, quem ajudava titia a fazer bolo, brigadeiro, cajuzinho, entregava as encomendas dos doces que ela, apesar de criança, evitava comer. Desde pequena sabia que modelo é fininha e tem mais alface do que brigadeiro na vida. Era também Kate quem aproveitava o fato de a avó Amara, 72, trabalhar como cobradora de ônibus para sair do Cabo de Santo Agostinho até o Recife – ela nem sempre tinha passagem para pagar o coletivo em dia de fazer teste ou posar (de graça) para os jornais locais. “Negrinha”, “crioula”, tinha 15 anos quando foi para São Paulo, deixou de ser a Kate que pegava carona na lotação. Assumiu de vez o de Paula. Nas fotos dessa época, o cabelo aparece crespo, armado, solto do pitó e não alisado. Desfilava-o vestida de biquíni, de roupa esquisita, de roupa bonita, quase sem roupa. Poucos meses depois, viajou e fez o roteiro básico de toda modelo iniciante: Japão, Nova Iorque. O corpo magro da filha da dona de casa branca Josefa e do radialista negro Ely José foi se capitalizando cada vez mais, saiu do salário em real para o salário em dólares. A editora de uma revista que raramente coloca modelos negras em sua capa – preferem atrizes, pois o cinema, a celebridade, dá conta de “embraquecêlas” – elogiou a garota, que naqueles dias andava sonhando com a sopa de carne de dona Amara. O elogio dessa editora foi altamente rentável, apesar de ela, até hoje, só ter concedido espaço para duas fotos pequenas da modelo na sua Vogue. Disse o que todo mundo sabia: “Você é linda.” Não demorou e seu nome passou a ser acompanhado por “a top negra brasileira de maior sucesso no exterior.” Foi desfilar em Paris, na Itália, em Londres, Nova Iorque. Um cartaz enorme com seu rosto foi parar na Times Square. O cabelo ora aparece crespo e suntuoso, ora surge lisinho e esvoaçante, como está agora. Para consegui-lo, Emanuela não precisou recorrer às pechinchas das feiras de produtos capilares: a essa altura, tinha dinheiro suficiente para comprar um carro para o pai, uma TV gigante para a avó, um apartamento para

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ela em Nova Iorque. Para, enfim, dar ao seu cabelo a forma que ela quisesse (e o mercado também). O negócio é que o concurso Miss Pernambuco Infantil às vezes volta. Como em um dia desses, depois de ela já ter aparecido na Forbes, na Times Square, depois de desfilar para Ralph Lauren, M.Officer, Donna Karan e Zac Posen, das campanhas para a Victoria’s Secret, Bloomingdale’s, MAC, Osklen, Next e H&M, depois da Vogue, Allure e Marie Claire. Depois do sucesso, do apartamento duplex em Manhattan e dos fios aplainados. Era 1997 outra vez quando, conta a modelo, uma antiga parceira de trabalho chegou para ela, desfilava no Brasil e aproveitava a chance de ficar perto da família (titia Elaine foi vê-la em São Paulo). A moça chegou perto e disse: “Macaca”. A cintura fininha, o histórico de solidão no Japão e nos Estados Unidos (quando chegou, só falava “hi” e “bye”), a saudade da sopa de carne da avó Amara, as longas horas trabalhando e viajando, os dias em que ficou doente, cuidando-se sozinha, os dias em que ligou chorando para a casa que fica à beira de uma rodovia, toda sua história e tudo o que ela é foram reduzidos a “macaca.” A moça conhecida há muito tempo, têm questões a serem resolvidas na Justiça, fez como a irada plateia do Barreto Junior: desqualificou-a usando como mote a sua cor. Foi justamente um dia após o incidente que Emanuela foi interpelada e questionada sobre o racismo – ainda não havia falado sobre o incidente no camarim. Mostrou-se apressada e surpresa, mas, ao contrário do tempo do “negrinha”, “crioula”, não permite mais que o assunto passe batido. “Preconceito é crime”, falou para a antiga parceira. E ele, percebeu Emanuela tanto viajando por vários países quanto ao vivenciar o específico universo da moda, não se localiza apenas na pele negra. “É algo que acontece sempre. Seja por causa da cor da pessoa, ou porque ela é gorda, ou magra; porque ela é rica ou pobre; porque é judeu ou muçulmano. Eu sofro preconceito porque sou negra.”

VENDENDO RIFA Já deixou de desfilar, a história é conhecida, em cidades como Paris. Estava quase entrando no “casting” (o “elenco”) de um desfile quando a inadequação de uma roupa em seu busto foi desculpa para eliminá-la da passarela – nestes casos, o comum é ajustar a roupa. Ao observar todas as outras meninas, pele clarinha, olhinhos azuis, percebeu. Há algo no mundo da moda que ainda insiste em perceber o diáfano como só possível nesta construção, a da pele branca. Foi difícil furar o bloqueio, mas ela insistiu, prática comum para a garota que vendia rifa para conseguir participar dos concursos de seu bairro composto por casas da Cohab. A tia, criou a menina desde novinha, lembra. “Ela não foi achada em shopping, como geralmente acontece com as outras, como diz a história. Ela foi atrás.” A passarela branca também é comum nos desfiles realizados no Brasil, a ponto de o Ministério Público de São Paulo estabelecer uma espécie de cotas para que as marcas levassem rapazes e moças de descendência africana para baixo dos holofotes. “No começo eu não estava muito certa de que esse negócio de cota para modelos negras fosse uma coisa boa. Me sentia incomodada de achar que só iam nos chamar por obrigação, porque tinham que cumprir uma determinação. Mas agora, vendo que o número de meninas afrodescendentes na passarela aumentou, que muitas tiveram o impulso inicial que precisavam, mudei de opinião.” Mal a modelo acaba de falar, é interrompida por uma colega, modelo como ela, mas no espectro oposto em termos de tipo físico: a menina tem a pele muito clara, quase translúcida, olhos claros, feições europeias e sotaque que denuncia a origem sulista (o de Emanuela, é fácil ver quando ela fala nas entrevistas, praticamente sumiu). Ela quer tirar uma foto com Emanuela de Paula, legítima representante do sonho de Cinderela, aquela que chegou lá, ao que é considerado o topo pelas garotas de vida mais alface e menos brigadeiro. Tudo isso mesmo quando sua história de vida prenunciava um desfecho nem tão glamouroso assim.

» Colaborou: Flávia de Gusmão

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1 PEDRO 2 (18) Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos vossos senhores, não somente aos bons e moderados, mas também aos maus. (19) Porque isto é agradável, que alguém, por causa da consciência para com Deus, suporte tristezas, padecendo injustamente. (20) Pois, que glória é essa se, quando cometeis pecado e sois por isso esbofeteados, sofreis com paciência? Mas se, quando fazeis o bem e sois afligidos, o sofreis com paciência, isso é agradável a Deus.

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padre Clovis Cabral teme ao Senhor, a ele dedicou sua vida, passou anos estudando teologia, filosofia, a beleza das humanidades, a Bíblia, tudo necessário para começar a ser jesuíta. Jesuítas não têm canto certo, a inconstância de uma casa faz parte do juramento, por isso Clovis agora mora no Recife, mas já passou tempo em São Paulo, nos Estados Unidos, na Europa. Nasceu em Salvador. Longe da família, mas antes de tudo perto do Deus acima evocado por Pedro. Mas o padre, 54 anos, sempre estranhou essa beleza do padecer injustamente, a glória em aceitar ser esbofeteado. Talvez a sua origem explique. Sua mãe, a ialorixá América (Oyá Kaloyá), durante décadas a mulher que comandou o terreiro Ilê Axé Ogunja Tiluaiê Orumbaia, sempre mostrou a importância que cada um dos 12 filhos tinha no mundo. Morreu ano passado, passando seu lugar para o irmão de Clovis, Balbino, 53. Deixou um filho babalorixá, outro jesuíta. O que para muita gente é dualidade ou problema, era comum para Oyá. No bairro popular da Massaranduba, ela sempre esteve próxima ao pároco, a irmãs como Ocridalina Madureira e Dulce, se uniram para que chegasse água encanada e conseguiram. Agora existe lá uma escola estadual com o nome incrível de Ocridalina – mataram um rapaz ali no pátio ano passado. Clovis fez crisma entre uma e outra festa para Ogum, o dono do terreiro, e para Iansã, a orixá de América. Via os jesuítas caminharem pelos alagados da Massaranduba, se interessou por aqueles padres de chinelos, aí começou a escutar num tom diferente o Cristo de quem sua mãe há tanto falava. Toda a família era de santo, ogãs e equedes, e, em 1973, ditadura militar, ele mandou uma carta pedindo para ser jesuíta. Depois de dez anos conhecendo Inácio de Loyola e Manuel da Nóbrega, o horror da Pragmática Sanção, o sofrimento de Gabriel Malagrida e de Lorenzo Ricci, o retorno dos jesuítas pela pena de Pio VI, voltou para Salvador (o dia de sua ordenação foi assunto no jornal das 20h, que preza a dualidade e o problema). O padre encontrou, como uma década antes, alguns padecendo, outros tristes, alguns esbofeteados. Eram todos da mesma cor preta e sofriam com paciência. Reparou que na Bíblia até soa bonito o tabefe; no estômago ou na cara, não. Uma vez, usando batina, o jesuíta levou um, estava desarmado e pá!, ele veio. Tinha conversado várias vezes com a mãe da noiva, as duas entusiasmadas com a cerimônia do casamento. A mãe da noiva ligou algumas vezes para o padre, conversaram e acertaram que ele ia abençoar o casal perante o altar católico. Aí chegou o dia da mãe, que já devia ter escolhido o vestido e sapatos, talvez tivesse alguma dúvida se deveria usar ou não um chapéu, chegou o dia de ela ir até a igreja encontrar o religioso. Ficou decepcionada. “Me desculpe, padre, mas eu não posso casar minha filha aqui, é o sonho da vida dela, e o senhor é negro. Imagine nas fotos.” O espanto sem filtros daquela mulher comum é compartilhado por muita gente que estranha um homem ou mulher de pele escura autorizados pela Igreja Católica a falar em nome de Jesus. Ele é resultado em grande parte pela ausência da cor negra na organização que hoje, no Brasil, conta com cerca de 30 mil padres, só 2 mil deles negros (entre

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os 447 bispos, são apenas 13 os pretos). Também é consequência das práticas racistas do próprio catolicismo – a Igreja só condenou oficialmente a escravidão na encíclica que o papa Leão XIII publicou em junho de 1888, um mês depois de Isabel assinar a Abolição. Até a metade do século passado, as congregações religiosas brasileiras mantinham estatutos discriminatórios que legalizavam práticas como a proibição de noviços negros e mulatos nos seminários. Apenas depois de 1951, com a Lei Afonso Arinos, é que gente como Clovis ou dom João Alves dos Santos (bispo negro do Paraná) puderam subir ao púlpito. Entre os franciscanos dos quais o filho de Oyá hoje faz parte, também houve o exercício da escravidão. Não que ali acontecessem as tradicionais malvadezas, açoitamentos, aquelas barbaridades que vemos nas novelas da seis, cheias de sinhazinhas. Um exemplo é que, em 1859 (note-se que bem antes de Isabel surgir Áurea), os franciscanos teriam decidido dar carta de liberdade aos escravos. A condição é que eles deveriam ter mais de 60 anos e elas, 50. Detalhe: as mulheres só seriam contempladas se tivessem gerado pelo menos seis filhos. Não eram, em definitivo, as tradicionais malvadezas.

ENDEMONINHANDO Outro fator para o espanto da mãe da noiva é que ela, como a maioria de todos nós, está acostumada a encontrar não apenas sacerdotes de pele clara, mas também vários deles falando com sotaque distinto, coisa comum entre os jesuítas, cuja presença no País é marcada pela chegada da Companhia de Jesus durante o período da colonização portuguesa. Em 2007, a CNBB registrava um total de 21% de bispos estrangeiros e de 2,5% de negros, com os germânicos ocupando, bem mais do que os de pele escura, o alto escalão da Igreja Católica no País. Esse cenário torna a presença religiosa e devota de Clovis também essencialmente política – e ele faz questão de exercer em terra o poder pessoal alinhavado por Deus, Loyola e Oxóssi. Integra a Pastoral Afro-Brasileira, coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) e o Núcleo de Apoio aos Movimentos Populares (Nuampo), ambos na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), aonde chegou no ano passado. Também está ligado ao Grupo de Religiosos Negros e Indígenas (Greni). Representa localmente a pastoral dedicada aos negros, uma função permitida no Estado só após o fim do arcebispado de dom José Cardoso Sobrinho, cuja gerência foi marcada pela diminuição de práticas sociopolíticas no âmbito da Igreja (apesar de atos como não conceder a hóstia a então prefeita de Olinda Luciana Santos, por ela integrar o Partido Comunista). A presença do sacerdote nas paróquias serve tanto para ampliar a participação dos negros na instituição (“Queremos que os jesuítas tenham a cara do Brasil”, ouviu ele quando se candidatou ao posto de noviço) quanto para atenuar o preconceito em relação à religião que define a existência dele, o candomblé. “Quem endemoninha uma ialorixá nunca esteve perto de uma.” Na Unicap, ele ministra cursos de iorubá, língua mais empregada nos terreiros, para o chamado povo de santo, além de aulas sobre a história da África. Nas celebrações, costuma usar batinas que trazem elementos do continente, uma maneira de marcar a especificidade – não criada pelos de sua cor – do lugar, ainda raro, dos negros nos altares católicos. “A Igreja é profundamente racista. Como outras instituições brasileiras, ela não está imune.” A busca por um religioso negro na Região Metropolitana de Recife para ilustrar esta matéria é uma prova empírica dessa fala. Foram necessárias duas semanas até que o braço local da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) conseguisse informar o paradeiro de um homem de pele escura que nos falasse sobre seu histórico ao lado de Jesus.

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Fabiana Moraes/Especial para o JC

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arbara Carter não sabe nadar. O maiô ficava guardado na gaveta enquanto ela apenas observava outras crianças entrando na piscina pública da cidade onde morava, no condado de Limestone, Texas, Estados Unidos. Ela também não podia usar a biblioteca pública, nem ir a cinema ou restaurante. Lia apenas os livros permitidos às pessoas como ela, da cor da pele dela. Quando o calor ficava intenso, o pai levava a família a uma piscina em Dallas na qual as duas filhas podiam brincar um pouco. Carl Baker, Anthony Freeman e Steven Booker eram três rapazes que viviam na mesma cidade. Podiam nadar, mas estavam algemados quando caíram em um lago enquanto eram transportados por três policiais que os haviam flagrado com maconha. Era dia da Juneteenth Celebration, quando até hoje se comemora a proclamação da libertação dos escravos no Texas. O documento foi lido ali mesmo, no Booker T. Washington Park, no 19 de junho de 1895. Carl, Anthony e Steven, negros, morreram afogados, apesar da pouca profundidade do lago. Os policiais, brancos, foram acusados de homicídio por negligência e posteriormente inocentados. Ao contrário de Barbara, 68 anos, os rapazes não cresceram num tempo em que prevalecia a segregação racial nos EUA, momento no qual a discriminação pela cor era legalizada. Desde 1866, os “black codes” (códigos negros) estabeleciam as regras de convivência: em 1910 e 1920, foram criados bairros para os “de cor”, quando também lhes foram destinados banheiros e bebedouros separados. Em 1930, negros podiam não ser aceitos em eventos culturais e/ou esportivos. Os hotéis e restaurantes eram restritos. Nos anos 50, quando Barbara, uma menina da classe média, estudava e tentava ler livros além dos que lhe eram oferecidos, as escolas para negros recebiam menos incentivos que as dos brancos. Os professores, por exemplo, tinham um salário menor. Casamentos inter-raciais eram proibidos. Negros só podiam testemunhar em casos nos quais outros negros estivessem envolvidos. Mas quando os rapazes morreram, em 1981, os anos 60 já haviam provocado uma revolução nos direitos civis da América do Norte. Os maiôs de garotas como Barbara, por exemplo, podiam ser vistos em qualquer piscina. Mas os negros do sul dos Estados Unidos, essa era a realidade, continuavam algemados. Hoje professora de Sociologia na Spelman College (Atlanta, Geórgia, a bandeira traz “in God we trust”), universidade voltada apenas para mulheres negras, Barbara Carter fala de bebedouros, banheiros e piscinas, de livros e algemas, com um sorriso discreto e constante no rosto. “Eu não sentia dor. E hoje não sinto raiva.” O não desenvolvimento dessa mágoa tem como um dos fatores a certeza de que seu futuro estava garantido pela estabilidade gerada pela mãe professora e o pai fazendeiro. Nele, havia uma universidade. “Eu sempre soube que iria para uma.” Estudou no Tennessee, depois fez mestrado e doutorado em Massachusetts. Não engravidou, como tantas garotas negras da região. “A perspectiva de vida é o melhor planejamento familiar.” Enquanto construía sua carreira, Carl (18), Anthony (19) e Steven (18) nasciam, cresciam e morriam em uma América que se orgulhava de falar sobre liberdade (a bela, filosófica, e a relativa, de consumo) ao mesmo tempo que nos Estados do Sul pairavam bandeiras estreladas, baseadas na antiga Confederação. É uma incômoda lembrança do tempo em que locais como Geórgia, Alabama, Carolina do Sul, Flórida, Texas e Mississippi formavam a coalizão que defendia o regime escravagista e a inferioridade dos negros. A abolição oficialmente decretada no 31 de janeiro de 1865 nunca foi totalmente digerida na região, vide a bandeira confederada e a forca encontradas no sótão de uma fábrica localizada em Paris (Texas), em fevereiro deste ano. Esse panorama, porém, é percebido e problematizado no país cuja Casa Branca hoje abriga uma empoderada família de pretos. Ali, onde ainda existem cerca de 90 universidades destinadas aos descendentes de escravos (a maioria de ótima qualidade, a exemplo da Spelman, segunda instituição nos EUA a enviar profissionais para a área médica), a questão racial é visível e

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presente no cotidiano local. Ela está entre as mães orgulhosas que vêm batizando seus filhos com o nome do presidente, está nos protestos que reclamam do alto número de pretos encarcerados (apenas 6% da população norte-americana é formada por homens negros e adultos, os mesmos que ocupam quase a metade das “vagas” nas prisões locais). No Texas onde Barbara nasceu, estavam presos, em 1994, 1.943 negros e 178 brancos. A mulher que não sabe nadar oferece os instrumentos para que as mudanças não sejam uma realidade apenas nos anúncios publicitários, onde "os de cor" são um rentável nicho de mercado. Suas cerca de 150 alunas (por ano) estudam uma realidade entrecortada por questões que passam por raça, gênero e estratificação entre a população negra americana. Vão além e aprendem sobre a negritude do Caribe e da América Latina, em especial o Brasil, país que a socióloga já visitou duas vezes. Olhou mais de perto para cidades como Salvador e o Recife. Estranhou: em vários momentos, era a única descendente de africanos entre tantos outros, mesmo que alguns tivessem a pele tão escura quanto a dela. Percebeu que o dinheiro era um dos principais fatores de aceitação entre aqueles que no máximo se declaram "morenos", estes quase uma espécie de “novos brancos”. “Eu sempre ouvia a respeito da democracia racial brasileira, que não havia diferença entre raças, que a discriminação era entre classes. Mas quando estive no Brasil, vi que não é assim. Observei que negros são invisíveis em vários ambientes. Você não os encontra dirigindo seus carros ou nos melhores restaurantes. Mas eu os encontrava trabalhando na recepção do hotel.”

PARA A MUDANÇA, O CONFRONTO Curioso é que se a tal “democracia racial” brasileira continua sendo propagada no exterior, aqui, em âmbito interno, o olhar é essencialmente parecido. Isso torna mais difícil estabelecer quando apelidos como "nego" ou “neguinha”, naturalizados, não trazem em sua origem um tom desqualificador (o racismo, várias vezes inconsciente, se esconde sob o "tom carinhoso"). Essa realidade, diz Barbara, tem base na ausência de uma segregação legal em terras locais, igual àquela vivenciada nos Estados Unidos igual àquela que a impediu de aprender a nadar. Essa discriminação silenciosa também é um fator para que os negros não se assumam como tais, já que se sentem mais aceitos à medida que são, no máximo, apenas “morenos”. “A legalidade da segregação ajudou os negros dos EUA a se organizarem, fez com que uma comunidade negra vinda da classe média desenvolvesse outras instituições negras para manter - ou ampliar - esse contigente de pessoas escolarizadas. O Brasil não passou pela experiência, e isso ajudou em uma não construção de identidades e de instituições. Negros americanos, mesmo aqueles bem-sucedidos economicamente, mesmo aqueles que se tornam celebridades, não deixam de ser negros. Entre vocês não é assim. No Recife, por exemplo, as pessoas são consideradas brancas de acordo com a sua classe social, porque o dinheiro é branco.” Algumas das alunas da Spelman virão a Bahia e a Pernambuco no ano que vem para estudar esse fenômeno: a socióloga, uma das autoras do livro Protest, politics and prosperity: Black americans and white institutions (1940-75), que entender essa “democracia” específica, assim como observar as mudanças ocorridas no Brasil desde a sua última visita em 2003. Lembra que viu mais negros em melhores situações, e não apenas nos trabalhos desprestigiados. Nesse mesmo período, sabe, o País passou a adotar políticas específicas para a população negra. Um momento que não vem acontecendo, está atenta, sem polêmica. É um caminho natural e Barbara, que viveu os dias e a morte de Martin Luther King e Malcom X, não vê outra maneira de se repensar uma realidade. “Não há mudança sem confronto.” Não é preciso necessariamente saber nadar, mas é preciso estar com as mãos livres.

Date:28/07/10

Time:15:22


[BR_JC_10: JC-ESPECIAL-ESPECIAIS <0815_12_PRE_14> [JC1] ... 15/08/10]

Author:AAGUIAR

Date:28/07/10

Time:15:22


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