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Médicos em situações de risco Quando os sobreviventes de uma guerra ou de uma catástrofe fogem para se salvar, esses profissionais entram em cena para amparar os feridos e treinar quem lhes possa ajudar texto Jéssie Panegassi

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a madrugada de 5 de julho de 2012, cheguei à Luanda, capital de Angola, e em seguida percorri os quase 600 quilômetros para o interior do país africano, até chegar à cidade do Kuito, localizada na Província do Bié. A minha missão não era das mais fáceis. Eu escutaria histórias de guerra e ajudaria em uma escola numa região denominada Kunje. Esse foi um dos locais mais atingidos pela guerra civil, que durou quase 30 anos, e mesmo após uma década de seu término oficial, pude ver muitos sinais de destruição em cada local por onde passei. Na cidade não existe energia elétrica, água encanada ou qualquer tipo de saneamento. Quando precisei ir ao hospital público para um simples exame sanguíneo (o objetivo era saber se eu tinha contraído malária, doença transmitida pela picada da fêmea do mosquito Anopheles), pensei nas condições de saúde locais. O hospital estava limpo, havia muitas pessoas nos diversos prédios construídos com concreto, e poucos

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mosquitos nas instalações. Mas durante a guerra, aquilo foi bem diferente, e eu já ouvira outras tantas histórias.

O valor do trabalho médico

A ação dos médicos em regiões de risco, seja por causa de um conflito armado, como em Angola e na Líbia (atual), ou devido a algum desastre natural, como no Haiti (2010) ou no Rio de Janeiro (2011), é de imensa importância. O número de mortos é contido graças a esse trabalho e, na maioria dos casos, eles ainda representam a esperança de conseguir reconstruir a vida com o mínino de dignidade depois do ocorrido. Organizações conhecidas como a dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e o Comitê Internacional Cruz Vermelha (CICV) são respeitadas pelas atuações rápida, eficiente e independente, conseguindo assim ajudar as regiões com os mais peculiares conflitos. Ao contrário do que muitos acreditam, não são apenas os clínicos gerais e ortopedistas que são necessários nessas intervenções. www.revistavivasaude.com.br

Durante os conflitos ou as catástrofes, o número de mortos é contido graças ao trabalho desses profissionais, que ainda representam a esperança de reconstrução da vida com dignidade

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Onde eles estão?

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A equipe responsável pela logís­ti­ca tam­bém deve ser bas­tan­te es­tru­tu­ra­da, pois precisa estar preparada para uma intervenção rápida. Kits com os mais diversos tipos de materiais são estocados em diferentes regiões do mundo por essas instituições. A segurança dos profissionais que estão trabalhando, assim como o seu bem-estar e cuidados com a saúde também são detalhadamente estudados. Nos MSF, por exemplo, os profissionais recebem uma remuneração baixa comparada ao mercado de trabalho e, quando saem em uma missão, a organização é a responsável por prover-lhes moradia, transporte e alimentação. Eles também disponibilizam material com diversas informações, incluindo dados referentes à cultura do local em que o voluntário será enviado, o que contribui para que o trabalho seja mais assertivo.

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O efeito catástrofe na saúde mental A psicóloga Letícia Nolasco, psicóloga que compõe a equipe de saúde mental dos MSF explica que a catástrofe traz uma mudança brusca na vida das pessoas. Elas precisam lidar com muitas perdas ao mesmo tempo: o desaparecimento de familiares, bens, documentos etc. As vítimas merecem atenção, pois é crucial que elas sejam capazes de reconstruir a própria vida. “No Brasil, a cultura é católica: quando alguém morre, primeiro se vela e, depois, se enterra. É difícil despedir-se quando não se encontra um corpo. E torna-se complicado saber dosar o limite entre poder esperar e ter esperança. Nessas situações emergenciais, deve-se ter cuidado, pois existem algumas reações consideradas naturais. O profissional deve estar atento para não confundi-las com algum problema de ordem psiquiátrica, medicando sem necessidade”. Passados alguns dias, os atendimentos clínicos diminuem e aumentam os de ordem mental. “As pessoas precisam de ajuda para recomeçar a vida”, finaliza.

Vegetariana na linha de fogo

3. Brasil O MSF está presente desde 1991 e atuou em casos como as enchentes de Alagoas. O CICV mantém uma delegação regional em Brasília que atende, além do Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, e atuam em caso de necessidade de primeiros socorros.

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5. Moçambique O país tem grande incidência de malária, tuberculose e Aids, além de alta taxa de mortalidade materna. O sistema de saúde está bastante comprometido devido aos 16 anos da guerra que acabou em 1992. 6. Irã O local abriga uma dos maiores grupos de refugiados no mundo. Só em 2009 foram registrados 930 mil refugiados afegãos. As principais atividades das equipes médicas são no tratamento materno-infantil. 7. Índia As equipes médicas trabalham para conter as epidemias, tratar a tuberculose e a Aids, entre outros problemas. A crescente população e a distribuição dos serviços básicos são um grande desafio para o país.

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textura) Shutterstock; (Médicos sem fonteiras) Divulgação

2. Haiti As organizações estão presentes desde a primeira metade da década de 1990. Os focos são a atuação na saúde da mulher e cuidados na emergência de traumas, além de treinamentos com os profissionais locais. O país tem a maior taxa de mortalidade materna do hemisfério ocidental.

4. República Democrática do Congo O país está em conflito há mais de dez anos e as equipes atendem em hospitais e clínicas móveis em várias províncias (até as tomadas pela guerra).

Fotos: (Mapa da África e papeis queimados) Danilo Tanaka; (Mapa Mundi e

1. Guatemala Presentes desde 1984, o MSF trata de vítimas de violência sexual. No país cerca de 20 pessoas são mortas por dia e, apenas no ano de 2009, dez mil casos de estupro foram relatados ao Ministério da Justiça. Segundo dados do Banco Mundial, 51% da população vive com menos de dois dólares por dia.

Maria Carolina Batista, coordenadora médica dos MSF, decidiu que queria trabalhar na organização quando tinha 18 anos. Ela cursava a faculdade de Engenharia quando tomou conhecimento sobre as médicas que trabalhavam em regiões de conflito. Maria abandonou o curso, fez Medicina, entrou para a organização, e já atuou em missões em diversos países — até mesmo durante os conflitos — como Somália, Quênia, Bolívia, Camarões, Guiné Bissau, Sudão e também na Líbia. “Quando eu estava na Somália, um dos maiores desafios foi o fato de eu ser vegetariana. Passei vários meses sem uma folha de alface, e tinha de comer o que se conseguia no local: carne de cabrito e camelo. Deixei de ser vegetariana na marra. Na Líbia, eu e uma enfermeira belga estávamos atendendo uma mulher em trabalho de parto complicado, quando aconteceu um grande bombardeio. O protocolo indica que, nessas horas, a conduta a ser seguida é parar e procurar abrigo. Eu e minha colega optamos por não colocar a vida da mulher e do bebê em risco. Então, continuamos nosso trabalho. No final, felizmente, deu tudo certo, mas sabemos que foi uma atitude muito arriscada, tanto para a parturiente quanto para a equipe presente no local”. www.revistavivasaude.com.br

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Médicos em situações de risco

Como é possível fazer parte disso Tanto os MSF, quanto o CICV, de tempos em tempos, abrem vagas de trabalho para o público interessado. As informações são divulgadas nos sites das instituições, assim como em suas redes sociais. As áreas de atuação são das mais variadas, de médicos e enfermeiros até profissionais de logística e jornalistas. Assim como na maioria das empresas convencionais, é preciso estar atento às informações divulgadas para se inscrever quando as vagas estiverem em aberto. Além disso, por serem organizações independentes, eles precisam de doações para continuar os seus trabalhos ao redor do mundo. Todos podem colaborar com o que for possível e dentro do endereço virtual de cada instituição há uma explicação simples de como fazer as doações.

Maria conta que noticiar à família uma no­‑ va viagem para um cenário de conflito armado não é muito fácil. “No entanto, eles sabem tudo o que eu fiz para conseguir este trabalho e me apoiam. Além disso, entendem que é esse ofício que me faz feliz como médica e também como ser humano. Penso que mais do que eu ajudo as pessoas, elas me ajudam a ser uma pessoa melhor”, relata.

Língua brasileira

Já Karina Miyaji, infectologista do Ambulatório dos Viajantes no Hospital das Clínicas (SP), passou dois anos em Angola. Ela trabalhava em uma empresa contratada pelo instituto de saúde local, que treinava profissionais para realizar diagnóstico, tratamento e acompanhamento das infecções pelo vírus HIV. A falta de equipamentos, energia, água e limpeza dificultava o trabalho. “Sempre sonhei em trabalhar na África. Um dos fatos marcantes em Angola foi que, em um hospital, numa província afastada, as famílias dos doentes ficavam acampadas do lado de fora, bem na entrada do prédio e dormiam no chão porque não havia enfermagem suficiente para cuidar dos doentes. e as famílias se encarregavam disso. Outra curiosidade é que alguns tinham dificuldade para entender o que nós falávamos, então diziam que a gente não falava português e, sim, brasileiro”, conta a médica.

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Ações no território nacional

A psicóloga Letícia faz o seu trabalho aqui mesmo no Brasil. Ela atuou em Alagoas, depois da enchente de 2010, e também nos deslizamentos de terra no Rio de Janeiro em 2011. Decidiu seguir carreira na organização depois que uma amiga integrou a equipe e passou a acompanhar o que ela fazia. “A minha família ficou muito feliz com a escolha. Aqui eu tenho a oportunidade de trabalhar com o que eu gosto e colocar os meus valores pessoais em prática, pois eu acredito que estamos nesse mundo para fazer algo maior. Cuidar do ser humano é uma coisa que me preenche muito e, quando estamos em um projeto, o objetivo é justamente o de defender a saúde das pessoas, independente de qualquer outra questão — como os conflitos, o governo, a religião etc. Na mala não faltam o soro fisiológico e a barrinha de cereais, já que, em casos de emergências, trabalham-se muitas horas consecutivas. Também preciso prestar muita atenção no consumo exagerado de café, para não ficar muito ansiosa e conseguir cuidar da minha própria saúde”, conclui.

Cuidado incondicional

Toda essa experiência me levou a concluir que uma guerra não dura apenas os anos do combate. Ela deixa marcas em todos os setores da sociedade. As iniciativas de instituições independentes, ou da própria Organização das Nações Unidas (ONU), fazem a diferença. Mesmo com um serviço médico já estabelecido, reconhecido, e que também possui uma parceria com médicos cubanos para tentar suprir o déficit do país, as consequências do conflito estão em toda parte e vão desde os prédios abandonados até o grande número de pessoas amputadas em virtude o uso de minas terrestres. Há pouco tive a notícia de que uma das meninas que conheci no Kunje, morreu em decorrência da malária. Ela tinha apenas seis anos de idade. Penso que o que move todos esses profissionais a trabalharem nas áreas ainda em conflito não é só um ideal, ou virtudes como coragem e solidariedade. O que realmente faz diferença e inspira essas pessoas é o amor incondicional. www.revistavivasaude.com.br


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