Bestseller 26 UMA FILHA QUE FUGIU DE CASA. UMA MÃE QUE FUGIU DE SI MESMA. Desde a morte do marido, Meg Williams só enfrentou momentos difíceis. Deixando-a atormentada por uma carga de emoções tumultuadas, recriminações e culpas, a tragédia cobrou um preço alto tanto dela como da filha adolescente, Allie, culminando com a fuga da menina. O xerife Earl Sanders considera seu dever cuidar de Meg e de Allie. Mas está determinado a não permitir que o sentimento pela viúva de seu melhor amigo torne a vida dela ainda mais complicada. Enquanto ele se empenha em descobrir o paradeiro de Allie, passam-se dias e noites repletos de medo, dúvidas e confissões inesperadas, e segredos surpreendentes começam a vir à tona. Verdades dolorosas que levaram uma família a um ponto extremo de incompreensão e tristeza, até que uma mulher que perdeu quase tudo descobre o que realmente é importante na vida. Copyright © 2000 by Susan Civil-Brown Originalmente publicado em 2000 pela Mira Books. Título original: Snow in September Tradução: Vitória Paranhos Mantovani Copyright para a língua portuguesa: 2000 Digitalização e revisão: Márcia Goto
mãe.
Às minhas filhas, Heather e Holly, por terem me ensinado a ser
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Capítulo I A pequena aranha marrom pendurava-se num frágil fio de seda, balançando sob a brisa seca do Colorado. Meg Williams observou-a com uma pontinha de solidariedade. Calculou que ambas estavam sendo fustigadas pelos ventos da vida, agarrando-se a um fio e esperando, contra todas as possibilidades, que eventualmente pudessem apoiar-se em algo forte e sólido. Algo estável. Algo que as protegesse dos ventos perigosos. Era uma manhã fria e seca, típica da região montanhosa, e Meg evadira-se para o deque revestido de madeira descorada pelo sol levando o seu café, necessitando de alguns momentos de paz antes de enfrentar o dia. Antes de enfrentar sua mãe e sua filha, que haviam se tornado as principais fontes de infelicidade em sua vida. Mas, é claro, se esta fosse à soma total de sua infelicidade, não tinha do que se queixar, certo? Certo. Suspirando, ela bebeu um gole de café e viu a aranha estender o seu fio. Naquele momento a brisa descuidada carregava a minúscula criatura para mais perto da cerca que contornava o deque. Meg perguntou-se se aranha saberia o quão perto se encontrava da segurança, ou se teria de bater contra a madeira para saber que estava ali. De dentro da casa, ouviu o barulho de panelas sendo postas no fogão. Sua mãe já estava acordada, começando a preparar o desjejum. Seria aquele tipo de desjejum que Meg crescera comendo: ovos, bacon, torradas. Pesado e calórico demais, porém Vivian Clede agarrava-se aos hábitos que adquirira desde a infância numa fazenda em Nebraska. Servia calorias suficientes para saciar um bando faminto de trabalhadores braçais, depois queixava-se que Meg nunca comia o bastante. Meg exalou outro suspiro, antecipando os ovos fritos e o bacon. Seu estômago contorceu-se e ela ansiou por uma fruta fresca ou um bolinho de trigo integral. Mas Allie, sua filha adolescente, devoraria com prazer o pesado desjejum, pensou. Allie possuía um metabolismo que lhe permitia comer de tudo e ainda permanecer magra e ativa. Tempos atrás Meg também fora assim. Finalmente a aranha bateu contra a madeira e ali agarrou-se, encerrando seu vôo aleatório no ar. Agora provavelmente começaria tecer uma teia sob a cerca e tratar de conseguir um bom jantar. Se sobrevivesse por tanto tempo. Vivian era bem capaz de matá-la com a vassoura antes da hora do almoço. Meg bebeu mais um gole do café e tentou reunir a energia para entrar e dar início ao seu dia. Era sábado, um dia que gostaria de passar fazendo alguma coisa em companhia da filha. Mas, se tudo corresse como sempre, Allie sairia pela porta para encontrar os amigos assim que tirassem a mesa do café, Vivian começaria a limpeza da casa e Meg iria fazer as compras da semana. A monotonia da rotina tinha suas vantagens, mas às vezes o seu completo vazio fazia com que Meg sentisse vontade de chorar. A porta de vidro de correr abriu-se atrás dela. — A comida está pronta — Vivian avisou, num tom de desaprovação
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que insinuava que Meg era uma indolente por não preparado ela mesma a refeição. Mas não que Meg pudesse ter preparado o desjejum. Desde o instante em que Vivian mudara para sua casa, tomara para si o comando da cozinha. Por algum tempo Meg tentou ajudá-la, mas logo descobriu que nada do que fazia adequava-se aos padrões da mãe. Finalmente, desistiu de tentar. — Obrigada, mamãe — disse, sem se virar. — Vou entrar num minuto. — Venha logo, antes que os ovos esfriem. A porta de correr fechou-se com uma força quase surpreendente, levando-se em conta sua leveza. Ótimo, Vivian estava de mau humor. Por um momento, um instante atroz, horrorizante, Meg odiou o marido por ter morrido e a deixado com toda aquela confusão. Quando ele era vivo, pelo menos Allie comportava-se direito e Vivian mantinhase longe, em Nebraska. Com um movimento violento, esvaziou a xícara de café sobre o beiral do deque, assustando um esquilo. — Desculpe-me, amiguinho — disse, quando o animalzinho apoiouse nas patas traseiras e encarou-a com um ar ofendido. — Não vi você aí. Respirou fundo o ar fresco da manhã, endireitou os ombros e entrou. Podia ouvir Vivian gritando no andar de cima para que Allie saísse da cama e fosse tomar o desjejum. Manhãs de sábado, pensou. Deus,eram gloriosas. Estava enchendo novamente a xícara de café quando sua mãe voltou para a cozinha. — Você precisa tomar uma providência com esta menina — Vivian falou, zangada. — Ela fica acordada até de madrugada naquelas conversas pela Internet... — É um chat room exclusivo para crianças, mamãe. É supervisionado por adultos. Não há problema algum nisso. — Há problema, sim, se ela não dorme o suficiente. Allie está em fase de crescimento. — Allie tem quatorze anos e acho que me lembro que também gostava de ficar acordada até tarde, quando tinha a idade dela. — Eu nunca permiti. — Não, você não permitia. — Mas isso não significa que estivesse certa. — Você a está deixando muito solta, Meg. — Não, estou deixando que ela se encontre. Allie está sofrendo, mamãe. O pai dela morreu há oito meses. — E você perdeu um marido, e eu perdi um genro. Allie não tem a exclusividade do sofrimento. Meg virou-se para olhar para a mãe, sentindo uma raiva crescente que não tinha coragem de expressar. Em vez disso, tentou encontrar algum sentimento de afeição pela mulher que a criara. Vivian era baixa e robusta, com cabelos grisalhos e um nariz que curvava-se na direção do queixo. Tudo o que Meg conseguia sentir, naquela manhã, era gratidão por não ter herdado o seu nariz. Mas, infelizmente, herdara sua tendência para engordar. Todos os dias
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enfrentava uma batalha para manter-se no manequim quarenta e dois, uma batalha para a qual Vivian não colaborava em nada, com todas aquelas calorias já no café da manhã. — Sente-se e coma — Vivian comandou, ríspida. — Allie vai ter de comer tudo frio. Pelo menos Vivian não ordenara que fosse arrancar Allie da cama. Meg sentou-se e comeu um ovo e uma fatia de bacon, tudo o que conseguiu engolir. Depois recostou-se na cadeira e bebericou o café, enquanto olhava para a mãe. Realmente estava grata por não se parecer com Vivian, mas sim com seu pai, os traços finos, os cabelos loiro-escuros e os olhos verdes. Cada traço do rosto de Vivian parecia estar desabando, como se a vida a puxasse para baixo. Era uma mulher de expressão infeliz, e assim estivera desde a morte do marido. Ultimamente Meg não conseguia lembrar se sua mãe fora feliz quando seu pai era vivo. Não que isso realmente importasse, pensou. Elas eram todas infelizes nos últimos tempos. — Você fez a lista de compras? — perguntou. — Está na porta da geladeira, como sempre. A irritação emergiu dentro de Meg, enchendo sua boca com um gosto amargo. — Eu queria saber se a lista está completa, mamãe. Precisa acrescentar mais alguma coisa? — Escrevo o que preciso no instante em que me lembro. E claro, Vivian sempre fazia tudo certo. — Você não vai tirar aquela menina da cama? — Vivian perguntou. — Deixe-a dormir, mamãe. Se ela não estiver acordada quando eu voltar do mercado, eu a chamo. — Você dá folga demais a Allie, se quer saber a minha opinião. Meg levantou-se e levou os pratos para a pia, onde começou a enxaguá-los antes de colocá-los na máquina. — Está me ouvindo, Margaret Mary? Margaret Mary, seu nome completo, era sempre um sinal do desprazer de sua mãe. — Estou ouvindo, mamãe. — Ela virou-se para encará-la. — Estou ouvindo, mas não estou respondendo porque ainda é muito cedo para começarmos a brigar. — Não me responda deste jeito. Meg guardou os pratos na máquina com gestos rápidos e irritados. — Sou uma mulher adulta. Falo como quiser e educo minha filha da maneira que acho melhor. Se você não está gostando, pode voltar para Monroe Corners. — É este agradecimento que recebo por vir aqui cuidar de vocês depois da morte de Bill? E assim que você me trata... — Já chega, mamãe! O súbito silêncio estalava de tensão. Sabendo que mais uma palavra sua poderia gerar uma briga interminável, Meg arrancou a lista de compras da porta da geladeira, pegou a bolsa na mesa do corredor e encaminhou-se para a porta. Abriu-a de todo e viu-se frente a frente com o xerife Earl Sanders, o melhor amigo de Bill e padrinho de Allie. A mão dele estava levantada,
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como se estivesse prestes a bater na porta. A primeira coisa que Meg reparou foi que ele não estava de uniforme, o que lhe trouxe um fluxo de alívio tão intenso que ela quase vacilou. Ele não viera oficialmente lhe trazer alguma notícia ruim. No entanto, ela não podia ver Earl sem lembrar-se da noite em que ele viera lhe dizer que Bill estava morto, vítima de um acidente de carro numa estrada coberta de neve. Uma parte dela desejava gritar: Eu não agüento mais! Segurando o trinco da porta em busca de apoio, Meg lutou para recuperar a calma, ao mesmo tempo em que uma inquietante preocupação penetrava friamente em sua mente. Estava exagerando demais em suas reações, pensou. — Você está bem, Meg? — Earl perguntou. Ele possuía um timbre de voz profundo, que sempre a fazia pensar no preguiçoso ronronar de um grande felino, um tigre ou leopardo. Já ouvira aquela voz tornar-se ríspida como um chicote quando alguém o deixava contrariado, mas para ela havia sempre aquele tom suave e tranqüilizador. Earl era um pouco mais alto que a média, com cabelos castanho-escuros e luminosos olhos azuis, e o corpo em excelente forma, graças à sua paixão pelas corridas e caminhadas e à prática de esqui nas montanhas. Muitas vezes ele e Bill embrenhavam-se em longas excursões pelas Rochosas, nos fins de semana. Earl não estava usando o uniforme, Meg tornou a pensar, procurando algum equilíbrio no pico emocional onde pendurava-se precariamente. Estava usando calça jeans e apenas uma camisa de flanela fina sob o frio da manhã, e não havia nada em seu rosto bronzeado que denunciasse qualquer coisa além de uma genuína preocupação. — Estou bem — ela conseguiu responder. — É só a correria de sempre. E você, Earl, como vai? — Já estive melhor, e já estive pior — ele disse, um sorriso brincando em seus lábios. — Mas você está me parecendo um tanto abalada. Os olhos dele examinaram-lhe o rosto, tentando descobrir o que se escondia atrás do que ela esperava ser um sorriso agradável. — Mamãe e eu tivemos uma discussão — ela concedeu, esperando que ele acreditasse que tudo era simples assim. Earl assentiu, a expressão sem nada revelar. — Parece que você está pronta para sair. Só passei aqui para ver se está tudo bem. Como ele costumava fazer uma vez por semana, desde a morte de Bill. — Obrigada, Earl. Estamos bem, de verdade. Resistindo. "Resistindo" era o melhor que ela poderia dizer sobre qualquer coisa, desde que Bill se fora. Para ela, o fato de resistir às vezes parecia ser um imenso triunfo moral. Pensou que deveria convidar Earl para entrar, mas não conseguiu levar a cabo a intenção. Não com a sua mãe naquele péssimo humor. Ele não precisava saber o verdadeiro estado emocional em que elas se encontravam. — Ótimo, ótimo. — Earl assentiu novamente e olhou na direção da tranqüila floresta de pinheiros e das montanhas recobertas de neve mais
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adiante. — Eu adoro o mês de setembro. Bem, já que não está precisando de nada, talvez eu possa convencê-la a tomar um café comigo. Tomar um café com ele lhe daria uma desculpa para ficar fora de casa por mais tempo e, naquela manhã, era exatamente o que precisava. Meg sentia como se estivesse sufocando com os humores de sua mãe e os acessos de raiva de sua filha. Sentia como se cada minuto do seu dia, quando não estava trabalhando, era dedicado a lidar com as crises emocionais de Allie ou de Vivian. Às vezes perguntava-se se teria algum tempo para ter uma crise que fosse apenas sua. Autopiedade, Meg. Pare com isso. — É claro, seria ótimo — disse, seu sorriso tornando-se mais verdadeiro com o alívio. — Podemos ir. — No meu carro? — ele sugeriu enquanto desciam os degraus de madeira que Bill fizera oito anos atrás para substituir a escadinha de cimento. — Acho melhor eu ir com o meu carro. Preciso fazer compras no supermercado. — Posso levá-la e depois trazê-la de volta para casa, se quiser. Era um oferecimento gentil. Mas, também, um oferecimento capaz de provocar falatórios na cidadezinha de Whisper Creek. Meg não havia demorado muito para perceber que, como viúva, tornara-se uma presa fácil para qualquer homem que imaginasse que ela estivesse querendo alguém em sua cama. Tinha de tomar muito cuidado, pois tinha uma filha adolescente. Mas, por outro lado... — Está tudo bem, Meg — Earl falou, baixinho. — Todo mundo sabe que eu era o melhor amigo de Bill. Ela encarou-o, surpresa por ele ter compreendido tanto. Ele encolheu os ombros. — Conheço as pessoas. E ouço as fofocas. Mas será difícil alguém dizer alguma coisa se tomarmos um café em plena luz do dia e depois formos fazer compras no mercado. Ela quase riu, mas a vontade pareceu-lhe tão estranha e desconfortável que acabou sufocando-a. Deus, quando fora a última vez que havia rido? Não era de admirar que Allie estivesse tornando-se tão difícil. Não apenas passava pela fase dos quatorze anos, mas também vivia com uma mãe que nunca sorria e uma avó que estava eternamente se queixando, numa casa envolta por uma sombria névoa emocional. — Obrigada, Earl — ela disse. Pelo menos não teria de estar atrás do volante ao passar pela curva que matara Bill no último inverno. O sol de setembro estava agradável, mas quando Meg cruzou o portão sentiu o hálito frio das montanhas que perpassava o bosque de pinheiros e um arrepio subiu-lhe pela espinha. O inverno estava próximo novamente e ela pensou se o retorno da neve e do frio iria renovar seu sofrimento. De alguma forma, achava que a visão da primeira neve naquele ano não despertaria o seu espírito natalino, como sempre costumava acontecer. No entanto, ainda estavam no início do outono e as folhas dos álamos nem tinham começado a cair, exceto por uma e outra ocasional. Por enquanto Meg não precisava preocupar-se com o inverno, e recusava-se a fazê-lo. Earl guiava o veículo utilitário com a facilidade de alguém que
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estivera dirigindo nas estradas curvas e estreitas das montanhas durante toda a vida. Apesar da autoconfiança dele, Meg só conseguiu relaxar depois que passaram pela curva fatal. — Está pensando em mudar-se para a cidade durante o inverno? — ele perguntou. Meg fizera isso no inverno anterior, depois do acidente de Bill. Simplesmente não fora capaz de obrigar-se a dirigir na neve e no gelo, a passar por aquela curva. Porém, depois de dois meses forçara-se a retornar ao refúgio nas montanhas que eles haviam construído com tantos sonhos e esperanças. — Não, vou ficar em casa mesmo. No último inverno foi... diferente. — É... — Earl calou-se e pisou no acelerador. A partir dali a estrada era plana, alguns quilômetros antes do amplo vale. — Bem, você sabe que sempre pode me chamar se precisar de qualquer coisa. — Obrigada, Earl. Earl fazia parte de sua vida desde que ela ficara noiva de Bill, um amigo sempre presente para os dois, o bom companheiro de todas as horas. Ele os ajudara a construir a casa, trabalhando ao lado de Bill e Meg, e até tomara conta de Allie quando precisavam de uma babá. Estava sempre ali, sempre pronto para ajudar. Sempre Earl. Meg olhou-o de relance, perguntando-se como ele estaria lidando com a perda de Bill e, subitamente, sentindo-se péssima por jamais terlhe perguntado. Mas aquele não era o momento. Além disso, tinha a impressão de que Earl preferia que ela nunca lhe fizesse perguntas deste tipo. No entanto, ele também devia estar sofrendo. Quando ela havia se tornado uma pessoa tão extremamente egoísta? Meg abriu a boca, prestes a pedir desculpas pelo seu egoísmo, mas Earl falou primeiro. — Sua mãe vai voltar para Nebraska? Ou vai ficar aqui permanentemente? — Estou começando a achar que será permanente. — Depois de quase oito meses, era o que parecia. Ele assentiu. — E como você se sente a respeito? — Como se fosse capaz de matá-la antes do feriado de Ação de Graças. Ele riu. O som foi quase explosivo, como se tivesse emergido dele sem aviso. — Bill sempre dizia que ela era um osso duro de roer. — Isso é pouco. Mas talvez seja culpa minha. Acho que abdiquei dos cuidados da casa, permitindo que ela tomasse conta de tudo. Agora, terei de lutar com unhas e dentes para retomar minha autonomia. Meg estivera pensando nisso durante a semana. Talvez fosse um sinal de que estava curada. Mas, fosse qual fosse a razão, era o motivo principal por estar se sentindo tão irritada e nervosa. Sua vida parecia estar acabando e, em vez de lutar para recuperá-la, entregara o comando à sua mãe para que pudesse arrastar-se para um refugio de culpa e sofrimento, ignorando todo o restante. Estava recebendo exatamente o que merecia, e não orgulhava-se disso. Earl parou diante do Korner Kafe, uma velha lanchonete famosa
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pela qualidade do café e dos biscoitos caseiros. Já era tarde o bastante para que não trombassem com os fregueses do desjejum, e ainda cedo demais para os fregueses do almoço. As únicas pessoas ali presentes eram dois homens idosos, a garçonete e o cozinheiro. Earl perguntou se ela queria comer alguma coisa, mas Meg recusou. — Acabei de comer, Earl. Quero apenas um suco de laranja. — Isso era o mais próximo que ela chegaria de uma fruta fresca, naquela lanchonete. Pensou que, ali, Vivian provavelmente seria recebida de braços abertos como cozinheira. — Então, e você, como vai? — perguntou. Earl encolheu os ombros. — Como sempre. Meg duvidava que tal resposta estivesse remotamente próxima da verdade. No mínimo, ele devia ter sentido falta das muitas excursões de fim de semana que costumava fazer com Bill, durante o verão. — Você encontrou alguém com quem sair para acampar? — Não. De qualquer forma, já não tenho mais muita disposição para estas aventuras. — Ah, Earl... — Uma onda de tristeza perpassou-a. — Ei, isso não tem nada demais. Assim mesmo, é bem provável que eu nem quisesse mais fazer tais excursões. "Assim mesmo" significava se Bill não tivesse morrido. Era dolorosamente fácil ler nas entrelinhas. — Tenho sido tão egoísta — ela falou. — Pensando apenas em mim mesma, desde... desde... — Nem mesmo conseguia obrigar-se a dizer as palavras em voz alta. — Isso é perfeitamente natural, Meg. Você perdeu alguém muito importante em sua vida. — Você também. — Não é a mesma coisa. De jeito nenhum. Não, ela pensou com tristeza. Para ele, provavelmente era muito pior. Bill fizera parte da vida inteira de Earl, e não somente dos últimos quinze anos. Eles eram mais unidos que dois irmãos. — E Allie, como vai? — Earl perguntou, numa evidente mudança de assunto. — Não sei. Ela não fala nada comigo. Durante algum tempo ela estava tão deprimida que era como um fantasma vagando pela casa, mas ultimamente... ultimamente anda tão irritada que é como conviver com um vulcão. — Talvez seja um bom sinal. — Espero que sim. Ela tem passado bastante tempo com os amigos, e creio que isso seja bom. Mas me preocupo com a maneira como ela tenta evitar-me, e também à avó. — Meg deu uma risadinha amarga. — Não que a culpe por isso. Nós duas estamos sempre nos atacando mutuamente. — Talvez você deva sugerir a Vivian que volte para casa. — Talvez. Porém, este feito hercúleo parecia estar fora do seu alcance. O perigo escondia-se nas valas profundas e escuras da memória e havia um bocado de coisas horrendas que Meg não queria ver desenterradas. E Vivian, sem dúvida, iria desenterrar todas elas.
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— Bem, não cabe a mim lhe dar conselhos — Earl falou, após um momento. — Por que não? Você tem sido um bom amigo, há tanto tempo. Isso era o que Meg devia dizer, mas não o que estava sentindo. Earl não respondeu e ela suspirou, olhando pela janela para a rua banhada de sol. Havia uma claridade especial na luz das montanhas e Meg sentiu um impulso antigo e conhecido de retomar suas pinturas. Porém, já não havia mais lugar para isso, em sua vida. A pior coisa de estar em companhia de Earl, ela pensou, era o fato de não poder ser sincera com ele. Não podia lhe dizer a verdade a respeito de Bill, ou sobre seu casamento, ou o que acontecera naquele último dia. Tinha de manter-se em silêncio porque Earl achava que Bill era a melhor pessoa do mundo, e ela não suportava a idéia de desiludi-lo. Assim, a cada semana que passava a conversa entre eles tornava-se mais limitada e contida, pois Meg não podia falar honestamente sobre o que estava sentindo no coração ou o que se passava em sua mente. Não poderia mostrar a Earl toda a feiúra que existia dentro de si. Sem Bill para uni-los, a distância entre eles estava crescendo, e Meg tinha a sensação de estar perdendo algo irreparável em cada silêncio prolongado que surgia em suas conversas. Mas Earl não era o seu amigo, lembrou a si mesma. Ele era amigo de Bill. Sua amizade com ela fora inteiramente baseada no fato de que havia se casado com Bill. Não era de surpreender que, sem a presença de Bill, começassem a se tornar estranhos. Mas Earl não parecia disposto a deixar que isso acontecesse. Continuava visitando-a com freqüência e tentava tirá-la da sua concha. Talvez pensasse que devia isso a Bill. Ou, talvez, estivesse preocupado com Allie. Earl sempre fora como um segundo pai para a menina. Ao pensar na filha, subitamente Meg sentiu o coração bater mais forte. Allie. Ela não podia permitir que aquela situação com sua filha perdurasse. De alguma forma, teria de derrubar as barreiras que a menina erguera ao seu redor e fazê-la falar sobre o que estava sentindo. Precisava encontrar um meio de fechar o abismo que parecia estar se abrindo tão rapidamente quanto o abismo entre ela e Earl. Talvez mais rapidamente. Nem tudo aquilo poderia estar acontecendo só porque Allie tinha quatorze anos. Viu que Earl estava quase acabando o café e acabou de beber o suco de laranja. — Desculpe, Earl, mas realmente preciso me apressar. Tenho de voltar para casa... Deixou a frase no ar, sem querer admitir que estava subitamente em pânico pela sua filha. Era como se uma certeza guardada no fundo de sua mente, acerca da gravidade do estado emocional de Allie, de repente emergisse ao nível da consciência. A culpa que sentiu pela própria falta de atenção quase a sufocou. — É claro — ele disse enquanto levantava-se e deixava algumas notas na mesa. — Podemos ir. Meg percorreu os corredores do supermercado rapidamente, apanhando os itens da lista de Vivian com gestos mecânicos e apressados. Antes de sair, pegou um saquinho de balas de goma para
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Allie, normalmente proibidas pelo bem dos dentes da menina. Bill proibia os doces, bem como as gomas de mascar e muitas outras coisas. Mas Meg não era Bill e achava que um saquinho de balas não causaria nenhum dano permanente. Porém poderia abrir uma via de comunicação com Allie e, subitamente, Meg estava desesperada para fazer isso. A qualquer custo. Por algum motivo, lembrou-se da expressão no rosto de Allie na noite anterior, antes que ela fosse dormir, lembrou-se do olhar triste, zangado e, ainda assim, quase desejoso que a filha lhe enviara. Deus, por que não a acompanhara até o quarto e insistira para que conversassem naquele mesmo instante? Porque estava envolvida demais consigo mesma. Uma nova onda de culpa invadiu-a, deixando um gosto amargo em sua boca. Earl levou-a direto para casa, sem mencionar uma palavra sobre seu estranho comportamento. Tampouco tentou puxar conversa. O abismo entre eles estava agora tão imenso que Meg tinha a sensação de que mal conseguiam enxergar-se através dele. Outra perda. Achava que não poderia suportar. Uma parte de si estivera contando com a presença de Earl, da maneira como ele sempre estivera presente para Bill. Mas, talvez, estivesse contando demais. Quando chegaram ele desceu para ajudá-la a carregar os pacotes. Meg quase lhe disse que não precisava de ajuda, mas engoliu as palavras. Talvez uma parte daquele abismo tivesse a ver com sua recusa em aceitar qualquer ajuda. Talvez Earl precisasse fazer aquelas pequenas coisas para ela e Allie. Talvez, para ele, isso fizesse parte da cura. A casa parecia tranqüila, apesar do barulho do aspirador. Vivian, que limpava o tapete da sala, parou apenas o bastante para enviar a Earl um frio cumprimento. — Allie já se levantou? — Meg perguntou à mãe. — Não. — Vivian apertou os lábios com desaprovação. — Ela deve ter ficado acordada a noite inteira, conversando na tal Internet. Não moveu um músculo. Mas como você disse para deixá-la dormir... — Balançou a cabeça e tornou a ligar o aspirador, silenciando qualquer discussão. Meg levou as compras para a cozinha e deixou-as no balcão. Earl fez o mesmo. Ela começou a esvaziar as sacolas, mas parou de repente. — Vou dar uma olhada em Allie — disse. Earl assentiu, com um leve franzir de testa sendo a única indicação de que achava estranho o comportamento dela. Meg parou ao pé da escada por um instante, olhando para os degraus de madeira polida, hesitando. Iria apenas verificar como estava sua filha, disse a si mesma. Então, por que subitamente sentia-se tão amedrontada? Suas pernas pesavam como chumbo, quando subiu os degraus. Atrás de si, ouvia o ruído incessante do aspirador, diminuindo quando ela alcançou o corredor que dava acesso ao quarto de Allie. Meg abriu a porta devagar, para o caso de Allie ainda estar dormindo, e espiou no quarto fracamente iluminado. Por um instante, o que viu não fez sentido. Então, deu-se conta de que a cama estava vazia e ainda arrumada. Abrindo mais a porta,
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entrou e acendeu a luz. Não havia nenhum sinal de Allie. Talvez ela tivesse saído bem cedo, Meg pensou, e ido até a casa de Kate Exline. As duas eram quase inseparáveis. Mas por que não se dera ao trabalho de pelo menos despedir-se, ou avisar que estava saindo? Inquieta, Meg virou-se para sair do quarto quando avistou uma folha de papel sobre o travesseiro de Allie. Seu coração subiu até a garganta, sufocando-a. Com as pernas trêmulas, encaminhou-se para a cama e pegou o papel. "Mamãe, sei que faço com que todos se sintam infelizes, por isso achei que seria melhor ir embora." Capítulo II — Ela fugiu—Meg murmurou, mal conseguindo pronunciar as palavras. Olhou para Earl, que estava parado na porta da frente como se simplesmente a esperasse para se despedir. Olhou para a mãe, que imobilizara-se como uma estátua, a mão fechando-se em torno do fio do aspirador que estivera enrolando. O silêncio em resposta foi profundo, tão profundo quanto aquele que instalara-se depois que Earl lhe comunicou que Bill estava morto, tão profundo quanto o silêncio que houve quando o Dr. Helm declarou que o pai dela morrera. De repente ela ouviu um som raspante, seco. Meg olhou para baixo que viu que o papel que segurava tremia como uma folha num furacão. — Ela fugiu — repetiu, sentindo o coração fraquejar. Earl atravessou o vestíbulo e pegou o papel de sua mão trêmula. — É mais provável que tenha ido para a casa de uma amiga — ele disse. Sua voz já não continha o ronronar preguiçoso que reservava para Meg. Adquirira um tom firme, profissional. Policial. As pernas de Meg cederam e ela desabou no degrau da escada, agarrando-se ao corrimão como se fosse um salva-vida. — Meu Deus... — sussurrou. — A minha filhinha... — Eu disse que aquela menina estava solta demais — Vivian falou. — Eu avisei que você estava lhe dando muita liberdade. Meg não conseguiu responder. Não se importava. Só podia pensar em Allie. — Isso não vai ajudar em nada, Vivian — Earl falou, neutro. — Não é incomum que garotas desta idade fujam de casa. Geralmente vão para a casa de alguma amiga. Meg? Meg,olhe para mim. Ela levantou a cabeça devagar, como se esta pesasse uma tonelada, e olhou para ele, ouvindo a dor em seu coração lhe dizendo que isto era por sua culpa, por ter sido tão egoísta e tão absorvida consigo mesma. — Meg, vou precisar de uma lista com os nomes das amigas de Allie. Pode fazer isso para mim? — Sim. Sim. — As forças retornaram ao seu corpo tão depressa quanto haviam desaparecido. — Posso ligar para elas, tenho os números de todas.
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— Deixe que eu faça isso — ele falou. — Enquanto faço os telefonemas, quero que você pense em qualquer outro lugar para onde ela possa ter ido. Outros amigos que não morem por perto, lugares em que possa tentar se esconder por um tempo. Quanto dinheiro ela tinha? Pense nestas coisas, Meg, está bem? Ela assentiu e obrigou-se a levantar. Sem nem um olhar para a mãe, foi para o escritório pegar a lista dos números de telefone dos amigos de Allie, uma lista que acumulara no decorrer dos anos porque, em teoria, Allie nunca ia a lugar algum sem deixar um número de telefone onde pudesse ser encontrada. Havia dezenove nomes na lista. Earl pegou-a, sentou na escrivaninha e alcançou o telefone. Meg esperava que ele ligasse primeiro para a delegacia, a fim de avisar aos policiais que começassem a procurá-la, mas ele não fez isso. Ligou para os pais de Kate Exline. Ela não estava lá. Uma ligação depois da outra produziu os mesmos resultados, e Meg começou a andar de um lado para outro, frenética, incapaz de ficar parada enquanto sua mente revolvia-se em busca de alguma solução. Tentou pensar nas coisas que Earl lhe dissera, mas seus pensamentos evadiam-se, recusando-se a focalizar qualquer outra coisa, exceto o som da voz dele no telefone. A cada vez que ele discava um número, uma dolorosa esperança a invadia. A cada vez que ele desligava, sentia-se mergulhar em desespero. Allie fugiu de casa. Sua mente recusava-se a aceitar isso, mas as alternativas eram ainda piores. Finalmente Earl discou o último número da lista. O silêncio instalou-se no escritório, quebrado apenas pelos rápidos passos de Meg no tapete. — Ah, meu Deus... — ela murmurou. — Meu Deus, Allie... — Ninguém a viu hoje — Earl falou. — Vão perguntar aos filhos se Allie mencionou alguma coisa sobre ir a algum lugar. Meg... Meg, quando foi a última vez que você a viu? O coração dela apertou-se no peito. — Ontem à noite — respondeu, com voz rouca. — Por volta das dez horas. Ela disse que iria dormir... — E você acreditou — Vivian intrometeu-se, ríspida, surgindo na soleira da porta. — Você sabia que ela iria entrar na Internet outra vez. É bem possível que ela tenha fugido com algum pervertido... — Vivian — Earl interrompeu-a. — Isso não está ajudando. Precisamos pensar em meios de encontrar Allie. Ficar fazendo acusações não irá trazê-la de volta para casa. — Suavizou as palavras com um sorriso, como se não quisesse ofendê-la. — Sabe, eu bem que gostaria de uma xícara de café. Será que poderia me trazer? — Vou buscar — Vivian falou e saiu, balançando a cabeça com desaprovação. Earl voltou sua atenção para Meg. — Você pode ligar o computador de Allie e ter acesso aos seus emails? Meg fez que sim, o coração aos saltos. — Mas eu nunca fiz isso. Seria... — Uma traição? Será que realmente podia estar pensando assim, naquela situação? Naquelas circunstâncias? Tudo o mais estava virado do avesso, por que não fazer
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isso também? — Está bem, vou verificar. Ele seguiu-a e Meg não conseguia evitar a sensação de que estava traindo Allie duplamente. Ela ficaria furiosa, e com razão, ao saber que a mãe lera seus e-mails, e mais ainda quando soubesse que Earl também os lera. Se Allie voltasse para casa. Meg respirou fundo, quase num soluço, e subiu novamente as escadas. Tudo isso era culpa de Bill, descobriu-se pensando. Se ele não tivesse morrido... Não! Não podia permitir-se pensar desta maneira. A morte de Bill fora um acidente, e Allie não fugira por causa disso. Ela havia fugido porque sua mãe a abandonara emocionalmente. Toda a culpa recaía em seus próprios ombros, e de ninguém mais. O quarto de Allie parecia extremamente vazio, como se, fugindo, ela tivesse levado consigo uma inefável essência de si mesma. O computador zuniu quando Meg o ligou, embora ela achasse que os ruídos costumeiros soassem diferentes, agora. Sentindo-se como uma invasora, Meg sentou na cadeira da filha e clicou no ícone da Internet. Momentos depois a caixa de entrada abriase. Estava vazia. Ela verificou a caixa de e-mails enviados e viu que também não havia nada. — Nada — ela disse para Earl, com a voz entrecortada. Não conseguia decidir se isso era bom ou ruim. Significava apenas uma possibilidade a menos. — Olhe no caderno de endereços dela — Earl sugeriu. — Veja se há algum endereço de e-mails. Havia dezenas deles, todos identificados somente pelos nomes usados nos chats. Nenhuma ajuda. — Mande e-mails para todos eles — Earl falou. — Pergunte se Allie falou alguma coisa sobre sair de casa. Estarei lá em baixo. Meg ficou ali sentada por vários minutos, incapaz de fazer o que ele dissera. E se algum daqueles nomes, parecendo agora tão inocentes, fosse o nome de algum pedófilo que seduzira sua filha, tirando-a de casa? Ele não responderia à sua mensagem. Ou, se o fizesse, afirmaria não saber de nada. Tampouco haveria motivo para presumir que qualquer daqueles garotos lhe respondesse. Eles poderiam sentir que deviam proteger Allie. Era apenas mais um frágil possibilidade, que lhe oferecia bem poucas esperanças. Mas Meg agarrou-se a ela, de qualquer forma, enviando a mesma mensagem a todos aqueles nomes estranhos. "Sou a mãe de Allie. Ela fugiu de casa esta manhã. Será que comentou com você algo a respeito disso? Estou muito preocupada. Por favor, ajude-me a encontrá-la." No andar de baixo, Earl foi para a cozinha pegar o café. — Você não vai mandar os policiais procurarem por Allie? — Vivian indagou. Earl não gostava muito da mãe de Meg. Grande parte desta antipatia provavelmente era por influência de Bill, que simplesmente a detestava. Porém, uma boa parte era causada pelo que presenciara naqueles últimos oito meses. Vivian Clede era uma mulher amarga, infeliz e extremamente crítica. — Não se puder evitar — ele respondeu. — Será bem melhor tanto
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para Allie quanto para Meg se pudermos resolver tudo sem muito alvoroço. Vivian franziu a testa. — Pois acho que esta é a última coisa com que você deveria estar se preocupando, no momento! Aquela criança pode estar correndo sérios perigos. — Sim, é verdade — Earl concordou. — Mas é mais provável que não esteja. Ela fugiu de casa, Vivian. Não foi raptada. Agora, quero que você vá até o quarto dela e veja exatamente o que foi que ela levou. Você e Meg. Preciso saber exatamente o que está faltando. Livre da amolação de Vivian, Earl voltou para o escritório, fechou a porta e trancou-a. Dessa vez ligou para o gabinete do xerife e pediu para falar com Lydia Valdez, a oficial de menores. Percebeu que a palma das suas mãos estavam úmidas, e seu coração disparava como se tivesse corrido dois quilômetros sem parar. — Lydia, aqui é Earl. Temos um problema. — Estou ouvindo. — Allie Williams saiu de casa em algum momento depois das dez horas da noite de ontem. Deixou um bilhete dizendo que estava fugindo porque fazia todo mundo sentir-se infeliz. — Diabos. — É... Até o momento tudo o que sei é que nenhum dos amigos a viu, e ela apagou todos os e-mails do computador. Acha que pode haver algum indício de suicídio? — Ela deu alguma coisa para alguém, como um presente, por exemplo? — Ainda não sei. Vou lhe passar os nomes e números de telefone de todos os seus amigos. Não posso ligar e perguntar daqui, pois não quero que a Sra. Williams escute. — Entendido. O fato de ela ter apagado os e-mails não é um bom sinal, mas talvez tenha sido apenas uma tentativa de encobrir suas pistas. Mas eu não trataria o assunto como uma, simples escapadela, chefe. Acho melhor chamar o pessoal. — Foi o que imaginei. — Earl lutou contra a sensação de pânico, lembrando a si mesmo que não faria nenhum bem para Allie ou Meg se parasse de pensar com clareza. — OK, então vou enviar-lhe os números de telefone por fax. Comece a ligar imediatamente. Peça ajuda, se precisar. Verei se a mãe e a avó conseguem descobrir o que está faltando no quarto da garota. — Seria bom verificar se há algum tipo de diário, no computador. Atualmente muitos jovens costumam manter seus diários em arquivos "secretos". — Bem pensado. O fax está a caminho. Quando desligou, Earl não se sentia nada melhor. Enviou por fax a folha de papel onde Meg anotara os nomes e números dos amigos de Allie e ficou observando a máquina funcionar, pensativo. Naquele ponto, não sabia se teria sido melhor caso tivessem encontrado um punhado de e-mails no computador de Allie. A menina poderia simplesmente ser do tipo organizado, a respeito de tais coisas. Ele próprio tinha o hábito de deletar todas as mensagens que recebia no instante em que as respondia, a não ser que houvesse um bom motivo
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para guardá-las. No entanto, havia algo estranho acerca do vazio total, tanto das mensagens enviadas quanto das recebidas. Organizado demais. Era como se Allie não quisesse deixar nenhum rastro. O bipe da máquina avisou-o que a transmissão fora completada. Earl removeu o papel e deixou-o novamente na escrivaninha, para que Meg não soubesse o que ele acabara de fazer. Deus, aquilo era um pesadelo. Earl amava Allie como se fosse sua filha. A possibilidade de ela ter tentar suicídio, ou de estar vagando pelas montanhas sozinha e desprotegida, quase ia além do que ele podia suportar. Mas não podia dar-se ao luxo de ceder às emoções, naquele momento. Tal situação exigia que ele agisse como um policial. Encontrando um platô de calma dentro de si mesmo, fincou nele os dois pés firmemente e recusou-se a olhar para o abismo abaixo. Subiu para o quarto de Allie e encontrou Meg e Vivian vasculhando entre os objetos da menina. Parou na soleira da porta por um instante, observando-as, imaginando se teria sido a hostilidade existente entre as duas o motivo da fuga de Allie. As crianças têm uma tendência de achar que são o centro do universo e costumam interpretar o comportamento dos adultos em relação a si mesmas. Será que Allie julgava-se responsável por toda aquela raiva? — Está faltando alguma coisa? — ele perguntou. — Algumas roupas — Meg respondeu, a voz contida. — Ela levou roupas. — Isso é bom. As duas fitaram-no como se ele fosse maluco, mas Earl não explicou. Não queria mencionar a possibilidade de suicídio. Em seu coração, no entanto, o alívio foi imenso. Se Allie levara roupas consigo, provavelmente não tinha intenção de se matar. A não ser que pretendesse dá-las para alguém... — Que roupas estão faltando? — A jaqueta — Meg falou. A esperança desvaneceu-se. Até mesmo uma suicida precisaria de uma jaqueta para enfrentar o ar frio de uma noite nas montanhas. — Mais alguma coisa? — Não tenho certeza! — Meg exclamou, exasperada. — Ela mesma lava suas roupas e compra muitas coisas com sua mesada. Não sei quantas calças jeans ela tem, ou... acho que está faltando o suéter cor-derosa. E talvez uma das camisas de flanela. Preciso ver se não estão na lavanderia... — Passou a mão nos cabelos. — Não posso ter certeza — murmurou, em desespero. — Não posso ter certeza... Earl assentiu. — Está tudo bem, Meg. — Calculou que ela estivesse abalada demais para pensar com clareza. — Não está nada bem! Eu deveria saber que roupas a minha filha tem! Que tipo de mãe eu sou? Ele queria abraçá-la e oferecer-lhe conforto, mas se conteve. Vivian estava ali, e Deus sabia o que poderia pensar de um simples abraço. — Está tudo bem — ele repetiu. — Se eu lhe pedisse para fazer uma lista de todas as roupas que você tem no armário, será que conseguiria? — Eu... — Ela balançou a cabeça. — Acho que não.
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— Eu também não. Sabemos que ela levou uma jaqueta e talvez um suéter. Isso é bom. E quanto as roupas de baixo? — Earl precisava de uma indicação, qualquer indicação de que Allie pretendia fazer uma viagem. Meg balançou a cabeça. — É impossível saber. Ela compra as próprias roupas íntimas e deve ter dezenas de calcinhas e sutiãs que eu nunca vi. — Quer dizer que ela tem seu próprio dinheiro? — Ela recebe uma mesada e ganha um dinheirinho extra trabalhando como babá nos fins de semana. — Você faz idéia de quanto dinheiro ela pode ter levado? Meg baixou os olhos para o chão, pensativa. — Talvez uns duzentos dólares. Ela estava economizando para comprar uma jaqueta de couro. Tal quantia ampliava as buscas consideravelmente, Earl pensou com desânimo. Allie poderia comprar uma passagem de ônibus para Denver, ou qualquer outra cidade, e ainda teria dinheiro para comer durante alguns dias. — Tudo bem. Preciso telefonar. O que mais precisamos saber é se algum de seus objetos favoritos está faltando. Continuem procurando. Vivian mal olhou para ele, enquanto continuava vasculhando o armário de Allie. — Talvez ela tenha um diário no computador — ele sugeriu, antes de sair. — Verifique isso, Meg, está bem? Ao sair, viu-a virar-se na direção do computador. Voltando para o escritório, Earl ligou para a estação de ônibus. Naquela cidade pequena era raro que mais do que meia dúzia de pessoas pegassem um ônibus no mesmo dia. Em poucos minutos ficou sabendo que nenhum dos ônibus que partiram naquela manhã levou uma menina que correspondia às descrições de Allie. Isso poderia ser bom ou ruim, dependendo do ponto de vista. Ela poderia ter viajado de carona. Ou poderia ter-se suicidado. Earl havia visto Allie na semana anterior e, naquele momento, em retrospecto, tentou lembrar-se se teria havido algum sinal no qual ele não reparara. Ela lhe parecera distante, mas estivera assim desde a morte do pai. Doía-lhe tanto pensar que ela não confiara nele, já que estava sentindo-se tão mal. Mas Allie sempre fora uma criança retraída, desde pequena. Ele sempre lhe pedia para que compartilhasse seus sentimentos e idéias, mas mesmo quando solicitada ela pouco dizia. Não, ele não percebera nada incomum na semana anterior. E talvez este fosse o problema. Talvez eles estivessem errados em atribuir a depressão dela à morte de Bill. Aparentemente algo mais estava acontecendo na vida de Allie, camuflado pelo luto. Earl só esperava que isto não a levasse a fazer alguma loucura. E não podia esperar mais. Olhou no relógio e viu que passavam das duas horas. Logo o sol se esconderia atrás das montanhas, diminuindo a luz e dificultando as buscas. Por volta das oito horas, a noite impenetrável já teria se instalado. Pegando o telefone, ele tratou de pôr as engrenagens em movimento. A van do posto de comando estava estacionada na frente da casa.
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Os cães estavam esquadrinhando a área em volta à procura de algum cheiro de Allie. Não era fácil, pois o cheiro da menina parecia estar em toda parte. Os subordinados de Earl procuravam rastros no chão e nos arbustos que pudessem indicar a direção que ela havia tomado. E devagar, mas de forma consistente, os habitantes locais iam se reunindo, querendo ajudar nas buscas. Quando Lydia Valdez ligou para Earl, no entanto, foi para o número da casa. Ele atendeu no escritório, fechando a porta atrás de si. — Eu não queria falar com você pelo rádio — ela explicou. — Qualquer pessoa pode ouvir, e os telefones do posto de comando ainda não estão operando. — Tudo bem. Temos permissão para usar os telefones da casa. Meg tem três linhas, portanto vou lhe passar os outros números, para o caso de este estar ocupado. — Earl passou-lhe a informação rapidamente, antes de completar: — Então, o que conseguiu descobrir? — Ela deu os Cds das "Spice Girls" para Julie Armisted e a coleção de pedras para Sandy Miller. — A voz de Lydia Valdez era sombria. Earl apertou o fone com mais força. — A coleção de pedras? — Sim. Ao que parece, Allie Williams interessa-se muito por geologia. De acordo com Sandy, ela gosta de procurar rochas de tipos diferentes e estudá-las, pelo menos até a época da morte do pai. Isso foi tudo o que consegui descobrir, por enquanto. Julie disse que achava que Allie estava um pouco estranha, mas aceitou os Cds pretendendo devolvê-los depois. Sandy achou que Allie havia apenas enjoado das pedras. Pelo que disse, os garotos são mais interessantes, agora, mas parece que ela costumava compartilhar o interesse de Allie por geologia. Todas as outras meninas com quem falei afirmaram não ter notado nada diferente, que Allie tinha estado deprimida desde que o pai morreu. O coração de Earl apertou-se em seu peito. — Não estou gostando disso. — Eu também não — Lydia concordou. — Você descobriu mais alguma coisa? — Ela não levou a bicicleta, portanto pode ter tomado qualquer direção. Estamos tentando encontrar algum rastro. — Estou ficando sem idéias, chefe. Earl não queria admitir que também estava. Olhou pela janela e viu que o sol já posicionara-se por trás das montanhas. A luz estava mais fraca, e as sombras tinham literalmente desaparecido. Com o sol atrás dos picos, a temperatura estaria iniciando sua queda inexorável até a noite. Ele não queria pensar sobre o que isso significaria para uma menina sem nada além de uma jaqueta para protegê-la. — Mantenha-me informado — falou para Lydia. — Digo o mesmo. Earl desligou o telefone e sentiu uma enorme impotência envolvê-lo, como uma onda implacável. Tinha nas mãos todos os recursos possíveis que seu cargo na polícia lhe conferia, mas nada disso adiantaria para ajudar uma garotinha perdida no frio. Deus, ele esperava que ela pudesse encontrar algum tipo de abrigo seguro. Sem ter mais muito o que fazer, decidiu ir para fora e verificar
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como iam as buscas. Porém, assim que levantou-se da cadeira a porta do escritório se abriu e Meg entrou correndo, com uma expressão quase alucinada. — Descobri uma coisa! — ela disse, ofegante. — Descobri uma coisa. Ela foi até o sótão e pegou alguns dos equipamentos de acampamento, Earl! Ela levou o saco de dormir, uma mochila e o fogãozinho a querosene que Bill usava quando ia acampar. E as botas de caminhada também sumiram! — Vá olhar na cozinha e veja se ela levou alguma comida. A esperança, ele pensou enquanto seguia Meg para a cozinha, era quase tão dolorosa quanto o desespero. Allie provavelmente não levaria tais coisas consigo se pretendesse encontrar algum pedófilo, que com certeza marcaria um encontro no conforto de um motel. E tampouco carregaria os equipamentos de camping se tivesse a intenção de suicidar-se, certo? Mas, então, por que se desfizera de seus objetos mais queridos? Porque realmente não pretendia mais voltar para casa? O que ela estaria pensando? E por quê? No entanto, ele havia visto o brilho de alívio nos olhos de Meg. Aparentemente ela também pensara que Allie poderia estar considerando o suicídio. Earl não queria lhe dizer que o fato de a menina levar uns poucos equipamentos de camping poderia significar apenas que Allie queria ter um tempo consigo mesma antes de dar o passo final. Ou que simplesmente desejava estar bem longe, antes de fazê-lo. E ele jamais mencionaria o quanto aquelas montanhas poderiam ser perigosas, em qualquer época do ano, para alguém que acampasse sozinho, mesmo tendo muita experiência. Vivian instalara-se na cozinha, fazendo café e sanduíches para as pessoas que procuravam por algum sinal da passagem de Allie. A profunda carranca que exibiu quando os dois entraram era um claro sinal de que não gostava da invasão, mas Meg pareceu nem reparar. Meg foi direto para a despensa. — Ainda temos aqueles alimentos desidratados que Bill levava nos acampamentos, não é, mamãe? — Não. Meg parou a meio caminho da despensa. Após um breve momento, virou-se para a mãe, a expressão fria como gelo. — Não? Por que não? Eu lhe disse que aqueles alimentos duram muito tempo e que poderíamos precisar deles se tivéssemos uma tempestade de neve. — Eu pretendia substituí-los. Alguns estavam quase no prazo de vencimento e Allie queria levar coisas para uma coleta de mantimentos da escola, por isso dei tudo para ela. Meg abriu a boca para retrucar, mas logo a fechou. Earl pensou em intervir, mas tinha a impressão de que Meg estava próxima de uma explosão de proporções vulcânicas, algo capaz romper para sempre seu relacionamento com a mãe. Nenhuma delas precisava disso, especialmente naquele momento, com o desaparecimento de Allie. — Quando foi isso, Vivian? — ele perguntou, posicionando-se entre ela e Meg. — Há quanto tempo? Vivian encolheu os ombros. — Uma ou duas semanas atrás, eu acho. Não me lembro
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exatamente. O olhar de Meg disparou na direção de Earl. Ele pôde sentir sua aguda esperança. — Isso não é nada demais — Vivian falou, truculenta. — Ela também levou outras coisas. Pasta de amendoim,alguns alimentos enlatados. Não teremos nenhuma tempestade de neve antes dos próximos meses. Há tempo de sobra para substituir tudo. Earl assentiu, olhando para Meg, e dirigiu-se para o telefone na parede ao lado da geladeira. Lydia Valdez atendeu depois do primeiro toque. — Lydia, preciso saber se houve alguma coleta de mantimentos na escola de Allie nas últimas semanas. Não me importa se hoje é sábado, ligue para o diretor. Ele desligou. — Talvez ela estivesse planejando isso por algum tempo — Meg falou, atrás dele. Parecia atônita, prestes a desabar. — Ela planejou tudo! — Ainda não sabemos — disse Earl, sem se virar. De repente, sentiu um ímpeto de colocar Allie Williams no joelho e dar-lhe uma surra da qual ela jamais esqueceria. Tal impulso deixou-o chocado, pois nunca, jamais, encostara um dedo nela ou em qualquer outra criança. Mas naquele momento seria bem capaz de utilizar o antigo castigo que seu pai costumava aplicar nele. — Por que ela não veio falar comigo? — Meg perguntou, a voz baixa e angustiada. — Por que simplesmente não conversou comigo? Pela primeira vez, Vivian ficou em silêncio. Earl sentia o coração condoer-se por Meg e Allie. Ele as amava e sabia que ambas tinham sofrido mais do que o necessário, naquele último ano. Deus, perguntou em silêncio, por que as pessoas têm de sofrer tanto? Mas Deus não lhe respondeu, e Meg estava parada ali, no limite do desespero. Earl obrigou-se a virar-se e encará-la, obrigou-se a ignorar a maneira como seu coração contraía-se de dor por ela. — Isso é bom — ele disse. — Bom? Como pode ser bom? Minha filhinha está sozinha, em algum lugar daquelas montanhas! Está esfriando cada vez mais, ela pode estar ferida, com medo... — A voz de Meg vacilou e lágrimas profusas corriam-lhe pelo rosto. — Ela só quer chamar a atenção — Vivian disse. — Meninas desta idade querem atenção. Bem, ela conseguiu e espero que esteja gostando. — Mamãe, será que pode calar a boca? — Meg explodiu, e correu para fora da cozinha. Momentos depois, Earl ouviu uma porta bater, em algum lugar da casa. Ele olhou para Vivian. — Sra. Clede — falou, com frieza. — Se não tem nada de bom para oferecer, sugiro que fique com a boca fechada. Vivian recuou. — Não se atreva a falar comigo deste jeito, seu... seu... moleque de rua! Ah, eu sei de tudo a seu respeito, por Bill. Sendo filho de um alcoólatra e uma prostituta, só podia resultar nisso, mesmo! Outro homem poderia ter revidado no mesmo instante, talvez até
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fisicamente, mas não Earl. Ele estivera ouvindo insultos como aquele desde muito antes de ser capaz de compreender o que realmente significavam. Apesar das suas origens, conseguira tornar-se uma pessoa respeitada. Porém, perguntou-se como Meg conseguira evitar de estrangular aquela mulher, nos meses em que estavam morando juntas. Outro homem poderia ter dito algo ofensivo, e Deus sabia que a oportunidade estava bem à sua frente, mas há tempos ele aprendera a manter-se em silêncio. Assim, enviou-lhe apenas um olhar gelado e girou nos calcanhares. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar. Lá fora as pessoas continuavam chegando. Os homens que voltavam do trabalho nas minas apareciam para ajudar, munidos de lanternas e abrigados em casacos que os manteriam aquecidos quando a noite caísse totalmente. O ar frio penetrava pela camisa de flanela de Earl, mas ele mal percebia. Olhava para os rostos que o rodeavam, esperando apenas por suas instruções antes de começarem a vasculhar as montanhas. Bill trabalhara como gerente na mina, e aqueles homens gostavam dele. Ele os havia apoiado durante uma disputa com o sindicato, poucos anos atrás, e evitara que os diretores fechassem a mina numa tentativa de enfraquecer o sindicato. Na época Earl achara que Bill estava pondo em risco o próprio emprego na mina, mas o admirava pela sua posição firme. Depois que o conflito terminou, a carreira de Bill permaneceu intacta e ele ganhou o apreço de seus colegas. Earl sabia que precisava dizer alguma coisa para aqueles homens que o encaravam, na expectativa. Limpou a garganta. — Obrigado por terem vindo — disse. — Ainda não sabemos que direção ela tomou, mas sabemos que levou consigo alguns equipamentos de camping. Isso significa que, se não tiver nenhum problema, ela deverá passar bem esta noite. Um murmúrio perpassou o grupo, e cabeças assentiram. — Talvez ela tenha subido até Caprock, Earl — um dos homens sugeriu. — Bill costumava levá-la para acampar ali. Earl não sabia disso e perguntou-se por que Bill nunca o mencionara para ele. — Boa idéia, Hal. — Ele olhou no relógio. Cinco e quinze. — O que acham de formarem um pequeno grupo e subirem até lá? Vou mandar um dos meus homens com os cães para acompanhá-los. Faltam três horas para o anoitecer, portanto não se demorem muito. Não quero ter de mandar outra equipe de resgate para vocês. Houve alguns risinhos contidos e alguns olhares incertos, como se não devessem estar rindo numa situação como aquela. Mas Earl acreditava no poder do humor, principalmente o humor negro. Era um policial por tempo o bastante para apreciar a sua utilidade. Carlos Rios trouxe de volta um dos cães e, juntamente com três homens, seguiram na direção de Caprock. Se mantivessem um ritmo rápido e constante, estariam lá em uma hora. Earl sentiu uma pontada de esperança ao pensar que Allie poderia ter ido para um lugar onde passara bons momentos com o pai. Isso fazia sentido, muito sentido. Deus, permita que assim seja. Naquele momento, avistou Matt Dawson vagando no quintal dos
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fundos. O rapaz parou ao lado de um pinheiro, as mãos enfiadas nos bolsos, os lábios cerrados na costumeira expressão de revolta. Earl nutria sentimentos confusos a respeito do rapaz de dezesseis anos. Por um lado, ele próprio tivera as mesmas origens que o adolescente, portanto sabia que não deveria limitar-se a condená-lo pelo fato de seus pais serem da escória. Por outro lado, Earl sabia reconhecer um encrenqueiro, quando o via. Matt não era apenas revoltado, mas tinha a tendência de explodir e revidar. Até agora, exceto por algumas brigas, Matt conseguira evitar problemas mais sérios, mas Earl tinha a impressão de que isso poderia mudar a qualquer momento. No entanto, achou que o garoto poderia saber alguma coisa sobre Allie, pois ambos estudavam na mesma escola e tinham quase a mesma idade. Aproximou-se dele, cumprimentando-o com um gesto de cabeça. — Matt. O que está fazendo aqui? — Ouvi dizer o que aconteceu com Allie. Quero ajudar nas buscas. Earl assentiu. — Você a conhece? — Não. Mas a vejo sempre na escola. — Tem alguma idéia de por que ela fugiu? Matt balançou a cabeça em negativa, a expressão de desprezo aprofundando-se. — Nunca nem falei com ela. Por quê? Acha que eu tenho alguma coisa a ver com isso? Aquele peso de culpa que o rapaz carregava nos ombros ainda tornaria sua vida bem difícil, Earl pensou, contendo um suspiro. — Não. Só estou fazendo a mesma pergunta a todo mundo. Qualquer informação poderá ajudar. — Tornou a olhar para o rapaz, reparando num ferimento novo em seu queixo. — Alguém acertou em você? Matt encolheu os ombros. Então, Earl pensou, o pai do rapaz andara "agindo" novamente. Mas Matt jamais confessaria isso e o resto do mundo poderia apenas imaginar o que de fato acontecia, antes que ele se dispusesse a falar. — Você já sabe, Matt, se quiser me contar quem é que anda batendo em você, eu posso mandar o sujeito para a cadeia por um longo tempo. Matt tornou a dar de ombros, como se isso não fizesse diferença. — Você é quem sabe. Bem, se souber de alguma coisa a respeito de Allie venha me dizer imediatamente, certo? — Certo. Uma garota não deveria ir para as montanhas sozinha. Ele parecia mais velho, às vezes, Earl pensou. Tão mais velho. — Exatamente. Obrigado por vir ajudar. Matt assentiu desajeitado, sentindo-se pouco à vontade. Provavelmente estava mais acostumado a balançar a cabeça em negativa. Earl afastou-se, olhando para as montanhas que erguiam-se por trás da casa dos Williams, para a escuridão que aprofundava-se entre os pinheiros e álamos, e começou a rezar como jamais rezara, em toda sua vida. Capítulo III
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A noite esgueirava-se sobre o vale e por entre as árvores, engolindo os últimos resquícios da claridade do entardecer. Earl a sentia esgueirarse em seus ossos, uma fria apreensão que não se dissipava. Permaneceu fora da casa, esperando até que o último homem retornasse das buscas, recusando-se a ceder outra alma aos caprichos perigosos das montanhas. Antes que o último homem voltasse, não poderia ter certeza de que os atos de Allie não custariam outra vida. Conforme iam retornando, em grupos de dois ou três, os homens pareciam desanimados mas ainda assim continuavam por ali, relutantes a voltar para suas casas antes que o último deles chegasse e lhes dissesse se a menina havia sido encontrada ou não. Meg quase beirava a histeria, mas assim mesmo conseguira encontrar uma antiga cafeteira que preparava quarenta xícaras de café e a instalara na varanda, juntamente com todas as xícaras e copos que possuía. Vivian fazia sanduíches e os levava para fora, até que todo o pão se acabasse. Os voluntários e os policiais ficaram gratos pelo café, mas ninguém parecia muito disposto a comer, como se o fato de comerem enquanto a menina estava desaparecida fosse algo obsceno. Earl incitou-os a comer, e até ordenou, lembrando que de nada adiantariam se ficassem exaustos e famintos. Porém, nunca antes em sua vida, viu a comida desaparecer sob um silêncio tão denso. Quando alguém falava, era naquele tipo de sussurro reservado para os funerais e velórios. Finalmente o último homem estava de volta. O grupo ficou ainda mais silencioso e todos os olhos fixaram-se em Earl, como se ele pudesse ter alguma idéia sobre como continuariam a trabalhar no escuro. Mas Earl conhecia as montanhas muito bem e não permitiria nenhuma tolice. A vida já era bastante dura para aqueles mineiros sem que precisassem correr o risco de quebrar o pescoço numa busca noturna. Porém, embora estivesse fazendo a coisa mais certa, ele odiou a si mesmo por isso, odiou as limitações humanas que significavam que uma criança passaria a noite sozinha nas encostas daquela montanha implacável. — Podem ir para casa — ele disse. — Recomeçaremos amanhã cedo, para aqueles de vocês que puderem vir. Logo ao amanhecer. O dia seguinte seria domingo e Earl tinha a impressão de que a maioria deles estaria ali, bem como alguns que ainda estavam trabalhando no turno da noite na mina. Ninguém trabalhava aos domingos. Quando ninguém se moveu do lugar, Earl deu-se conta de que teria de lhes oferecer alguma esperança para que levassem consigo e os sustentasse através da noite fria. — Allie levou equipamentos de camping — disse. — Ela tem um saco de dormir, um fogareiro e alimentos. O diretor da escola ligou para nos dizer que não houve nenhuma coleta de mantimentos, portanto Allie deve ter levado os suprimentos consigo. Ela conseguirá atravessar esta noite. Um dos homens falou: — Ela acampou muitas vezes com Bill. Sabe como cuidar de si mesma. — Isso é verdade — Earl concordou. — Ela vai sobreviver a esta noite, e talvez consiga por mais alguns dias.
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A pressão pareceu diminuir, pelo menos um pouco, e os voluntários foram se afastando na direção dos carros que haviam estacionado ao longo da rua. Um a um os veículos foram ligados, manobrados e os faróis acionados iluminavam 0 vale. Finalmente o último deles partiu. Era uma noite escura e sem lua, o brilho das estrelas fraco e frio sendo engolido pela escuridão da terra e das árvores. O vento soprava, gemendo suavemente entre as árvores, mas nenhum outro som perturbava o silêncio. Earl pensou na menina de quatorze anos em algum lugar das montanhas, solitária, e perguntou-se se o vento a estaria amedrontando, ou se a noite lhe pareceria ainda mais escura pelo fato de estar sozinha. Então, teve uma idéia. Enquanto passava pela cafeteira, abaixou-se para tirá-la da tomada. Depois, atravessando a porta da frente e ignorando tudo o que havia dentro da casa, foi para o posto de comando e entrou no trailer. Os dois homens ali dentro estavam preparando-se para sair e passar a noite em suas casas. — Consiga-me um avião — Earl comandou, sem preâmbulos. — Um avião ou um helicóptero. — Para quê? — perguntou George Murphy, o seu mais novo oficial. George trabalhara na polícia de Denver por dois anos antes de desistir da vida na cidade grande e mudar-se para Whisper Creek, em busca de paz e tranqüilidade. Até agora, não tivera chance de aproveitar nenhuma dessas duas coisas. — Se Allie fez uma fogueira para aquecer-se, poderemos vê-la agora que está escuro. Midget Baldridge, conhecido por ser o sujeito mais baixo da delegacia, e talvez, da cidade, pegou o telefone imediatamente e discou. — De quantas aeronaves o senhor precisa? — perguntou. — Que distância uma menina de quatorze anos consegue caminhar em doze ou treze horas, e quantas aeronaves podem caber neste perímetro sem colidirem? — Vou descobrir. — Midget era um bom policial, contanto que não deixasse que seu complexo de Napoleão atrapalhasse. Earl muitas vezes precisava ficar de olho nele. Vinte minutos depois dois aviões de resgate estavam no ar, sobrevoando a partir de um ponto indicado sobre a residência dos Williams. Midget ofereceu-se para ficar e manter contato com os aviões. Só então Earl sentiu que poderia entrar e encarar Meg. Aquela não era a primeira vez que enfrentava tal dificuldade. Earl perdera a conta das vezes, nos últimos quinze anos, em que tivera de montar um grupo de resgate para algum campista perdido, ou para um avião que fizera uma aterrissagem forçada. Perdera conta das vezes em que tivera de olhar para amigos e familiares preocupados e dizer-lhes que nada havia sido encontrado. Porém, agora era diferente. Desta vez era a sua afilhada quem estava sozinha, perdida entre as montanhas escarpadas. Desta vez teria de dar a má notícia para uma amiga querida. Vivian abriu a porta da frente no instante em que ele pegou a maçaneta. Os olhos dela fitaram-no por um instante, e ele viu algo apagar-se neles. Como se estivessem mortos. Sentiu uma súbita onda de simpatia pela mulher, porém ela não lhe deu a chance de expressá-la.
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— Comeram tudo o que havia em casa — ela resmungou, passando por ele para pegar os pratos vazios na varanda. — Deixe-me ajudá-la. Então, ela disse algo inesperadamente generoso: — E melhor você fazer companhia a Meg. A última coisa que ela precisa agora é ficar sozinha. Eu cuido disso. — Tem certeza de que não há nada que eu possa fazer? — Bem, você pode comprar mantimentos no supermercado, antes de vir para cá amanhã cedo. Aqueles homens vão ficar com fome e praticamente comeram tudo o que eu tinha na despensa. — Está bem, farei isso. Então não havia mais desculpas para evitar o confronto com Meg. Por toda a sua vida Earl preferia ficar sozinho quando estava sofrendo, e era o que queria fazer naquele momento. Isso não fazia dele a pessoa mais indicada para lidar com gente que precisava de apoio e conforto em vez de solidão. Assim, sentindo-se extremamente desajeitado, ele entrou. A casa estava silenciosa. Vazia. Earl pressentiu que Meg estaria em algum lugar, mas não podia ouvi-la. Os cômodos do andar de baixo estavam vazios e escuros, exceto pela cozinha. Sentindo as pernas pesadas como chumbo, começou a subir os degraus, seguindo seus instintos. E estava certo. Meg estava sentada na beirada da cama de Allie, apertando o travesseiro da filha contra o peito,com toda a força. Quando ele entrou no quarto, ela nem ergueu os olhos. Mas sabia que ele estava ali. — Ela está sozinha — disse, a voz rouca e inexpressiva. — Eu sei. — Earl puxou a cadeira da escrivaninha e sentou-se de frente para Meg. — Consegui dois aviões de busca. Se ela acendeu uma fogueira, talvez possa ser localizada. Por um instante uma dolorosa esperança estampou-se no rosto de Meg, depois desapareceu. — Não vai dar certo. Ela não quer ser encontrada. — Talvez ela nem esteja pensando nisso, Meg. Está frio lá fora. — Eu sei... — A voz dela vacilou. — Ah, meu Deus, eu sei! Earl queria adiantar-se e tomar-lhe a mão, mas não se atreveu. Meg parecia tão frágil, como se a única coisa que a sustentasse fosse sua própria força de vontade. Um simples toque seria capaz de estilhaçá-la. Ele tentou encontrar algo reconfortante para dizer, mas não pôde pensar em nada que ela já não soubesse. De nada adiantaria repetir o óbvio. — Vou sair com as equipes de busca, amanhã cedo — ela falou. — Meg... — Fiquei sentada aqui o dia inteiro, esperando que o telefone tocasse e que fosse ela. Esperando que Allie entrasse pela porta dos fundos dizendo que fizera uma loucura, mas que tudo estava acabado. Nada disso aconteceu. Nem vai acontecer. Ela fugiu de casa, Earl. Fugiu mesmo. Não havia resposta para isso. Sentindo-se inútil ele limitou-se a ficar ali, a mente girando à procura de algo que pudesse consolá-la, por alguma maneira de encontrar Allie, por algum meio de lidar com seu próprio terror crescente. — Por isso, tenho de ajudar a procurá-la — Meg falou. — Preciso
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fazer alguma coisa. — Seria melhor se você ficasse aqui, Meg. Precisamos de você aqui, quando a encontrarmos, e não em alguma parte das montanhas. Earl não queria lhe dizer que, em seu atual estado emocional, ela poderia esquecer a cautela e pôr em risco a própria segurança, bem como a de outras pessoas. Naquele momento ele viu-se dividido, tentando encontrar um equilíbrio entre suas preocupações pessoais e a necessidade de ser um bom xerife. Se estivesse no lugar de Meg, também iria querer ajudar nas buscas. Mas, como xerife, sabia que isso seria arriscado. — Quase todos que estavam aqui hoje estão planejando voltar amanhã, e teremos os homens do turno da noite, além dos meus. Todos eles tinham uma grande admiração por Bill. Ela não respondeu, mas algo perpassou-lhe o rosto que o fez sentirse inseguro, como se houvesse um segredo ele não soubesse, mas precisasse saber. E ele não tinha como perguntar. Earl levantou-se e foi até a janela, olhando para fora inutilmente e vendo apenas seu próprio reflexo no vidro contra o breu à sua frente. — Eu fiz alguma coisa errada — Meg murmurou. Ele virou-se para olhá-la. — O quê? — Como é que vou saber? — A voz dela era ríspida, amarga, num tom que ele nunca ouvira antes. Era um eco de Vivian. — Mas devo ter errado em alguma coisa, Earl. Do contrário, por que perderia meu marido e minha filha num espaço de poucos meses? — Ei, espere um pouco. Você não a perdeu, Meg. Nós vamos encontrá-la. — Talvez. Mas, de qualquer forma, eu a perdi. Que outro motivo ela teria para fugir? Earl não podia responder a isso. Mas tentou. — As crianças estão sempre tendo idéias estranhas, Meg. Fugas de adolescentes são mais comuns do que pêlo em cachorro. Meg sempre achava graça nas comparações que ele fazia, mas dessa vez nem percebeu a brincadeira. Fiquei o dia inteiro pensando no que fiz de errado —ela falou. — Deve haver alguma coisa. Mas só posso me lembrar de que tentei fazer tudo certo. Até a morte de Bill. Meu Deus, fui uma mãe horrível nestes últimos oito meses!Tão egoísta... Allie estava sofrendo e eu nem percebi! — Você percebeu. Todos nós percebemos. Apenas achados que era por causa de Bill. — É... — Meg balançou a cabeça e depois encostou o rosto no travesseiro. — Mas não pode ser por isso, não é? — perguntou, a voz entrecortada. — Não depois de oito meses. Earl voltou para perto dela e, relutante em sentar-se na cama ao seu lado, pousou a mão em seu ombro, esperando que o toque a reconfortasse. — Garotas dessa idade têm as idéias mais malucas — repetiu. — Tomam atitudes dramáticas para chamar atenção. Isso não significa que os pais falharam. Deus sabe quantas fugas já presenciei nos meus quinze anos de polícia. Você ficaria surpresa em saber como é freqüente que o motivo tenha sido uma tolice qualquer, que poderia ser resolvida
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simplesmente com uma conversa. Meg ergueu os olhos para ele. Estavam inchados, mas secos. — Esta é a questão, Earl. Se Allie tivesse tentado conversar comigo, provavelmente eu nem teria ouvido. Desde a morte de Bill só consigo pensar em mim mesma. Ele poderia lhe dizer que isso era compreensível, que todos estavam abalados pela dor e pelo luto nos últimos meses, mas deu-se conta de que nada do que dissesse a impediria de culpar-se. Pelo menos não até que Allie estivesse de volta, sã e salva. Então ela poderia zangar-se com outra pessoa, além de si mesma, e a mais provável seria a própria Allie. Por enquanto, entretanto, não havia nada que ele pudesse fazer ou dizer para aliviar suas dores e sua auto-recriminação. Aliás, não havia muito o que fazer para aliviar o seu próprio sofrimento. Earl estava mais magoado do que queria admitir, pelo fato de Allie não tê-lo procurado com os seus problemas, fossem lá quais fossem. Deus sabia que ele fizera de tudo para compensar a falta de Bill, nos últimos tempos. — Vamos lá, Meg — ele disse, finalmente. — Você não pode ficar sentada aqui a noite inteira, olhando para este quarto vazio e morrendo de preocupação. — Não? — Ela emitiu um riso seco, amargurado. — 0 que mais posso fazer, além de me preocupar? — Ocupe-se. Vá assistir um programa na tevê, vá limpar o chão. Qualquer coisa. Depois que os aviões de busca retornarem, caso não tenham encontrado nada, iremos para a cidade. Vivian precisa de mantimentos para aumentar os voluntários, amanhã. — Pelo menos ela tem algo útil com que se ocupar. Earl segurou-lhe a mão e obrigou-a a levantar. — Você também tem. Não precisa deixar que Vivian tome. conta de tudo. — Certo. Até parece que ela vai permitir que eu entre na cozinha. — Até parece que ela tem algum direito de mantê-la de fora. É a sua cozinha, Meg. Por um instante ele achou que Meg se recusaria a acompanhá-lo. Mas então ela suspirou e deixou-se levar. Vivian estava na cozinha, guardando os copos na máquina de lavar louça. Earl saiu para pegar a cafeteira e, quando ele a deixou no balcão, Meg começou a esvaziá-la e limpá-la. Vivian não fez objeções. O que era bom. Exceto que, agora, ele não tinha nada o que fazer, exceto preparar-se para enfrentar a noite mais longa de sua vida. Os aviões de busca retornaram por volta das nove da noite, sem nenhuma notícia. O supermercado fechava às dez, mas naquela cidade pequena Earl sabia que se ele e Meg aparecessem para comprar mantimentos para os voluntários, o lugar ficaria aberto até que pegassem tudo o que precisavam. Insistiu para que Meg o acompanhasse, obrigando-a a vestir um casaco e pentear os cabelos revoltos. Vivian ficou observando-os, e algo na expressão da mulher o deixou perturbado. Bem, diabos, isso não queria dizer nada. Vivian o deixava perturbado até mesmo quando estava de bom humor. Meg perguntou à mãe se queria ir junto. Vivian limitou-se a entregar-lhe uma lista.
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— Alguém tem de ficar aqui, para caso de a menina aparecer. Meg empalideceu. Earl teve de lutar contra o impulso de limpar o chão com Vivian. Deus, que coisa mais cruel para se dizer. — Vou ficar — Meg falou. — Você vai com ele, mamãe. Afinal, sabe o que precisa ser comprado melhor do que eu.— Começou a desabotoar o casaco, mas Earl a impediu. — Você vem comigo — ele afirmou. — A única maneira de conseguir enfrentar tudo isso é se continuar se mexendo.— Virou-se para Vivian. — Peça desculpas a Meg — ordenou, embora esperasse que ela recusasse. No entanto, Vivian o surpreendeu. — Não havia nenhuma segunda intenção no que eu disse. Apenas quis dizer que um de nós precisa ficar aqui, não que haja qualquer coisa de errado no fato de Meg sair. Precisamos das compras e alguém terá de fazê-las. — Estendeu a mão, como se fosse tocar a filha, mas Meg afastou-se na direção da porta. Earl olhou para Vivian, pensando se deveria falar alguma coisa, mas a expressão da mulher o impediu. — Estaremos de volta às onze horas, no máximo. Vivian limitou-se a assentir e voltou à tarefa inútil de limpar a pia, que já estava mais do que limpa. O trajeto até a cidade foi feito em silêncio. Earl calculava que os pensamentos de Meg estivessem perdidos em algum ponto das montanhas, e os seus também não estavam muito longe disto. Continuava tentando pensar em algo para dizer que pudesse distraí-la, mas isso era impossível, desde que ele mesmo não sabia como se distrair. A preocupação era como um punho agarrando-lhe o estômago, sem ceder. Porém, quando se aproximavam dos arredores da cidade, Meg falou de repente. — E se ela não foi para as montanhas? — Como? — Se ela pegou uma carona para fora da cidade? Talvez estejamos procurando no lugar errado! — Isso é pouco provável, Meg. Ela não teria levado o fogareiro, se não tivesse intenção de acampar. Mas, de qualquer forma, já pensei nisso. Distribuí um comunicado com a descrição dela. Se já não apareceu no noticiário, deverá estar passando no jornal das dez horas, juntamente com a foto dela. — Ah... — Sinto muito, acho que me esqueci de lhe contar. — Tudo bem. Só pensei nisso agora. Estive o tempo todo tão concentrada na idéia de ela estar nas montanhas. — Eu também. Mas segui todos os procedimentos padrões para pessoas desaparecidas. Acaba ficando um tanto automático. — Tudo o que ele precisava fazer era dar o primeiro passo. — Lydia Valdez, encarregada do departamento de menores, é muito boa neste tipo de coisas. Ela tem uma lista completa dos procedimentos que devem ser seguidos. — Isso é bom. O silêncio instalou-se novamente, frio e pesado. E ele ainda não conseguia pensar em nada útil para dizer.
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— Fico pensando na noite de ontem — Meg falou quando chegaram à cidade e seguiam pelas ruas na direção do supermercado. — É mesmo? Aconteceu alguma coisa? — Nada. Pelo menos nada que eu possa salientar e que me explique o que houve de errado. Parecia um dia como qualquer outro, nada aconteceu de diferente. E, não importa quantas vezes eu pense no que Allie e eu conversamos, não encontro nada que possa explicar a sua fuga. Mas ela devia estar planejando tudo, Earl. Não fugiu seguindo um impulso, um capricho. — E provável que não. Normalmente, quando estas coisas acontecem, é depois de uma briga, ou algo assim. — Bem, nós não brigamos. E, pelo que sei, ela não brigou com Vivian, tampouco. Geralmente, quando as duas discutem, eu sei que aconteceu alguma coisa mesmo não estando por perto. Nenhuma delas é capaz de esconder os sentimentos muito bem. — De repente, ela emitiu um riso irônico e amargo. — Escute só o que estou dizendo. "Não é capaz de esconder seus sentimentos"? Allie deve ser muito mais dissimulada do que eu poderia imaginar! — Provavelmente este foi o resultado de como ela esteve se sentindo o tempo todo. Eu acredito que nada tenha realmente mudado. Talvez ela apenas decidiu que não conseguia mais suportar. — Suportar o quê? É isso que me preocupa, Earl. O que pode ser tão terrível a ponto de obrigá-la a fugir? Ele não tinha as respostas. Se quisessem obter quaisquer respostas, elas só poderiam vir de Allie. A quilômetros dali, nas montanhas, Allie Williams engatinhou para dentro do saco de dormir. Estava abrigada num velho chalé de mineiros, uma tosca construção de madeira com chão de terra, desocupada por quase um século, exceto pelos insetos e ratos. Ela pensou nesses insetos enquanto se deitava no escuro, o saco de dormir fechado até seu pescoço e impedindo que qualquer coisa rastejasse para dentro. Seu nariz doía pelo frio e ela tinha certeza de que nunca se sentira tão sozinha quanto naquele momento. Durante o dia as montanhas pareciam amigáveis, mas à noite eram repletas de ameaças. Allie pensou nos ursos e linces e tentou ficar quieta e imóvel. Mas realmente não importava se um lince ou um urso a encontrasse, pensou. Tudo acabaria bem mais rápido. Ela não teria de reunir a coragem para fazer por si mesma e, além disso, se um urso a devorasse, sua mãe jamais saberia que ela quisera se matar. Portanto, seria melhor para sua mãe se um urso a encontrasse. E provavelmente mais fácil para Allie do que ter de saltar de um penhasco em algum lugar. Ela queria que parecesse um acidente. Afinal, já havia arruinado a vida de sua mãe uma vez. Não queria fazer isso novamente. Era por isso que iria esperar alguns dias, antes de acabar com tudo. Para que parecesse um acidente. Calculou que não seria fácil enganar o tio Earl. Provavelmente ele já começara a pensar se ela pretendia suicidar-se. Ele a conhecia bem demais. Assim, Allie iria passar alguns dias coletando novas amostras de
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rochas e depois encontraria um lugar conveniente para escorregar e cair. Cair de uma grande altura, ela ouvira dizer, era a maneira mais fácil de morrer. Era como voar, lera em algum lugar. As lágrimas ameaçavam surgir em seus olhos, mas ela não permitiu. Isso faria apenas com que sentisse mais frio e, de qualquer forma, de nada adiantaria. Porém, o fato de segurar o choro tornava mais difícil respirar e fazia sua garganta arder. Estava fazendo a coisa certa, lembrou a si mesma. Não importava se estava com frio e com medo. Isso era exatamente o que merecia. Se não fosse por ela, seu pai não teria morrido e sua mãe não seria tão infeliz. Ela nunca deveria ter nascido. Mas pensar nisso fazia com que a vontade chorar aumentasse ainda mais, portanto Allie obrigou-se a pensar nas pedras que encontraria no dia seguinte, e em como ficaria mais aquecida quando o sol surgisse. Imaginou se seus amigos na Internet e na escola iriam sentir sua falta, e decidiu que provavelmente sim, embora apenas um pouco. Arrependia-se por ter de lhes causar tristeza, mas não podia continuar estragando a vida de sua mãe. Quando o sono finalmente começou a chegar, os pensamentos de Allie voltaram-se para a avó. A vovó não iria sentir sua falta, concluiu. Nem um pouco. Nunca tinha nada a lhe dizer, exceto para criticá-la. Porém, considerando-se o que Allie ouvira no dia em que seu pai morrera, era até compreensível. Allie arruinara a vida de Meg, e Vivian também sabia disso. Sim, sem dúvida nenhuma tudo ficaria melhor para todos, depois que ela se fosse. Capítulo IV O dia era pouco mais do que um pálido brilho no horizonte quando os voluntários retornaram à casa dos Williams. Reuniram-se num grupo que crescia a cada minuto, equipados com lanternas, cordas e estojos de primeiros socorros, e de bom grado aceitaram o café e os pãezinhos quentes com lingüiça que Vivian e Meg traziam para a varanda. Vivian devia ter dormido na noite anterior, mas ninguém sabia com certeza. Ela desaparecera em seu quarto no instante em que Meg e Earl voltaram do supermercado. Nem Meg, nem Earl dormiram muito. Ficaram sentados na sala a noite toda, às vezes conversando, às vezes em silêncio. Meg andara de um lado para outro, até formar uma trilha visível no tapete. Por uma ou duas vezes cochilara na poltrona, e Earl ficara observando seu sono. Fora um sono inquieto, repleto de pesadelos. Quanto ao dele, pelo pouco que dormira, também não lhe trouxera descanso. Meg ficou olhando enquanto Earl abria os mapas e dividia os voluntários em grupos, indicando dois deles para seguir até pontos mais distantes e começar as buscas por ali. Reparou que ele estava ampliando a área de buscas e estendendo uma espécie de cordão em torno da região em que Allie possivelmente estaria. Dois ou três cães saíram com cada grupo de buscas. Então, exceto pelo estalar dos rádios no trailer do posto de
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comando, a floresta estava silenciosa novamente. Uma luz rosada estendia-se pelo céu, agora, e as nuvens mais altas eram visíveis. O dia começava. Earl pegou Meg pelo braço e levou-a para dentro de casa. O ar estava tão frio naquela manhã que as orelhas dele ardiam, e o rosto de Meg adquirira um tom avermelhado. Quando ele a tocou, percebeu que estava tremendo. — Você precisa dormir um pouco — ele disse, quando entraram. — Precisa deitar-se e tentar dormir. — Não posso. — Deve tentar, pelo menos. Se descobrirmos alguma coisa eu venho chamá-la, mas entenda que não lhe fará bem algum se não descansar um pouco. — E quanto a você? — Eu estou bem. Já estou acostumado com isso. Agora, vá deitar no sofá e cubra-se com aquele cobertorzinho que você fez. — É um "afghan" — ela disse, automaticamente. Meg estremeceu e olhou em volta da casa, vendo-a com os olhos de uma pessoa estranha. Não lhe parecia mais um lar, como se os eventos do dia anterior tivessem despojado aquelas paredes de todo conforto e familiaridade. A casa, que antes parecia perfeita para sua pequena família, agora era grande demais, vazia e ecoando suas perdas. — Vou vender esta casa — ela disse. — Não importa o que aconteça, vou livrar-me desta casa amaldiçoada. Só então pensou em como isso estaria soando para Earl. Ele havia trabalhado ao lado dela e de Bill durante toda a construção, praticamente erguendo-a do nada. Os três tinham construído cada pedacinho da casa, exceto pelas fundações, encanamento e sistema elétrico. Incontáveis noites e fins de semana tinham sido consumidos na construção. Fora uma época feliz, excitante, e os três saborearam cada minuto da aventura. Meg sentiu um aperto na garganta e engoliu em seco, mais saudosa daqueles tempos do que de seu marido. Allie era ainda um bebê, na época, uma criança risonha, rechonchuda e feliz. Para onde fora a felicidade de sua filha? Em vez de seguir a ordem de Earl para que fosse dormir, Meg encaminhou-se para a cozinha. E lá estava Vivian, lavando os pratos deixados pelos voluntários. Lavando-os na pia, ao invés de colocá-los na máquina. Precisando manter-se ocupada. Meg sentiu um lampejo de preocupação pela mãe, um lampejo que sobrevivera aos anos de raiva e ressentimentos. Atravessando a cozinha, pousou a mão no ombro de Vivian, que enrijeceu. Meg retirou a mão como se tivesse sido queimada. — Deixei um prato para você no microondas — Vivian falou, com frieza. — É melhor comer alguma coisa. Earl precisa comer, também. Comida era a resposta de Vivian para qualquer crise, Meg apanhou-se pensando. Não importava que tragédia acontecesse, sua mãe sempre poderia ser encontrada na cozinha, preparando alguma coisa. Mas, ela supunha, havia maneiras piores de se lidar com uma catástrofe. — Posso ajudar? — Não... não. Eu preciso manter-me ocupada.
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Eu também, mamãe. Mas Vivian não pensaria nisso. — Está bem. Meg foi até o microondas e pegou o prato com pãezinhos e lingüiça. Provavelmente conseguiria comer o pãozinho com um copo de leite, mas a lingüiça fez seu estômago revirar. Earl estava ali na porta, observando-a. Meg perguntou-se por que ele ficava olhando-a com tanta intensidade. Será que temia que ela desabasse? Ela não iria desabar. Não enquanto Allie estivesse desaparecida. Mais tarde talvez pudesse dar vazão às emoções, mas não queria pensar em qualquer "roais tarde" que não envolvesse um final feliz. Recusava-se a pensar em qualquer coisa, exceto em pegar os pratos para si mesma e para Earl, os talheres e duas xícaras de café. Vivian sempre deixava um bule de café fresco à mão. — Coma — disse para Earl, indicando uma cadeira. Não foi um convite muito gentil, mas Meg não conseguia forçar-se a falar mais do que isso. Ele sentou-se e esperou que ela se servisse, antes de encher o próprio prato. Vivian acabou de lavar a louça e, quando deixou o último copo para secar, anunciou: — Vou me deitar um pouco. Não dormi nada esta noite. — Lançando um rápido olhar para os dois, saiu da cozinha. — O que há de errado com ela? — Earl perguntou. — O que quer dizer? — A maneira como ela reagiu, quando você a tocou. — Ah... — Meg já ultrapassara o ponto em que se preocupava com antigos ressentimentos, ou que nutria qualquer interesse por eles. — Ela está zangada comigo há anos, por alguma coisa que fiz. — Bem, já está mais do que na hora de ela perdoá-la. Meg encolheu os ombros. — Ela nunca irá me perdoar. Earl não disse mais nada, e ela ficou grata por isso. Sua mente era um vazio total e seus pensamentos não queriam concentrar-se em nada. Nem mesmo se iriam ou não encontrar Allie. Era quase como se alguém tivesse desligado alguma tomada, tornando impossível que ela pensasse. Como se algum fusível tivesse queimado, não deixando nada além de um escuro entorpecimento. Ela movia-se, falava, mas como se fosse um robô. Já havia se sentido assim uma vez, pensou. Anos atrás, quando seu pai morrera. Havia atingido um ponto em que simplesmente não conseguia sentir mais nada. E era ali que estava agora. Com um desinteresse quase frio, perguntou: — Você acha que ela está bem? — Quem? Allie ou a sua mãe? — Allie. — Sim, Meg, acho que ela está bem. Acho que ela está escondida em algum lugar, tentando resolver os seus problemas. E acredito que, se não a encontrarmos primeiro, ela voltará para casa daqui a um ou dois dias. Meg assentiu, mas nada dentro dela se modificou. Provavelmente porque não acreditava nele. A vida lhe tirara tudo. Por que ela acreditaria que com sua filha seria diferente? Pequenas pontadas de
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medo e dor tentavam penetrar através do manto escuro que a protegia, mas ela recusou-se a permitir. Algo em seu interior havia morrido e ela queria que continuasse assim. — Por que Vivian está zangada com você?—Earl perguntou. — Você não vai querer saber, Earl. Acredite, não vai querer. Ele não insistiu. Mas Meg seria capaz de apostar que ele voltaria ao assunto, no futuro. Mas, naquele momento, nada disso importava. Tudo o que importava era que ele não conseguira arrancá-la do seu entorpecimento. Tal estado perdurou por algum tempo. Meg conseguiu lavar os pratos depois da refeição, foi para a sala e deitou no sofá. E até dormiu um pouco. Mas o medo encontrou-a em seus sonhos e ela vagava por corredores compridos e vazios, chamando o nome de Allie. Allie mal podia se mexer, quando acordou de manhã. O frio penetrara no saco de dormir o suficiente para deixá-la rígida. Mas, ainda assim, estava mais quente lá dentro do que lá fora, e ela não queria sair do seu pequeno casulo. No entanto, tinha de fazer isso. Precisava encontrar um lugar onde se esconder. Sabia que estariam à sua procura e, embora tivesse se adiantado bastante no dia anterior, naquele dia eles poderiam alcançá-la. Achou que se lembrava de uma pequena caverna não muito longe da cabana, menor do que um simples buraco na montanha, mas grande o bastante para que ela se abrigasse e se escondesse com as folhas dos arbustos. Daria certo, pois era bem provável que ninguém mais soubesse da sua existência. Finalmente, encarando a necessidade, Allie arrastou-se para fora do saco de dormir. O ar na cabana estava gélido e seu nariz entorpecido. Ela levou o fogãozinho a querosene para fora e instalou-o sob o morno sol da manhã, depois encheu uma panela com água do riacho e colocou-a para ferver. Subitamente achou que era tolice estar fervendo sua água de beber. Afinal, pretendia estar morta dali a um ou dois dias. Por que se preocupava em adoecer se bebesse a água não potável? Porém seu pai lhe ensinara muito bem e, no processo, conseguira amedrontá-la a ponto de ela não conseguir beber nenhuma água a não ser que estivesse fervida. Poderia estar morta em poucos dias, mas não queria que aquelas amebas nojentas rastejassem dentro dela, nem se fosse por pouco tempo. Seu desjejum consistiu de manteiga de amendoim retirada do pote com a ponta do dedo e sopa desidratada preparada com a água fervida. Não eram coisas que combinavam muito, mas depois da noite fria ela estava faminta. Allie limpou tudo, antes de partir, tomando o cuidado de varrer o chão com um galho de pinheiro, a fim de remover suas pegadas. Então começou a caminhada montanha acima, procurando pela caverna. Encontrou-a exatamente no local onde se lembrava, e juntou alguns galhos e folhas para cobrir a entrada, para o caso de ouvir alguém se aproximando. Mas, por enquanto, queria apenas ficar sentada ao sol, aquecendo-se com seu calor. E poderia procurar algumas pedras interessantes.
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Seu amor pelas rochas era uma das coisas que a fazia parecer "esquisita", e Allie sabia disso. Tempos atrás, como a maioria das crianças, ela costumava colecionar pedrinhas bonitas e carregá-las no bolso. Mas, em algum ponto da infância, ultrapassara da fase dos pedregulhos e agora era capaz de ler histórias nas rochas que analisava. Sabia tudo sobre a geologia local, até mesmo o fato admirável de que, naquele ponto alto das Rochosas, um dia existira um oceano. Ela adorava escavar nos depósitos de calcário e encontrar conchas marinhas. Mas os outros adolescentes achavam estranho que ela se interessasse por coisas tão maçantes. Zombavam dela, dando-lhe apelidos como "intelectual", e Allie acreditava que talvez fosse mesmo. Isso não a incomodava muito, talvez porque na verdade ela sempre preferia a companhia de outros "intelectuais". Além disso, sua mãe sempre lhe dissera que ela jamais deveria envergonhar-se de ser inteligente e que seu interesse pelas rochas era um dom maravilhoso. Allie também pensava assim. Ela poderia ficar sentada ali, sozinha na encosta da montanha, e ler histórias que as outras pessoas nem sequer sabiam que existiam. E, agora que estava se aquecendo, nem mesmo sentia-se tão solitária e perdida como estivera na noite anterior. Na verdade, concluiu que o fato de estar ali entre as árvores a fazia sentir-se mais próxima de seu pai. Adorava acampar com ele e, mesmo sabendo que ele jamais quisera que ela nascesse, isso não diminuía o prazer que sentia com as lembranças. Claro que a morte dele fora culpa sua e ela sentia-se culpada por lembrar de qualquer coisa agradável, mas não havia mais nada a fazer ali exceto pensar e recordar e, uma vez que iria morrer em breve, parecia-lhe justo que recordasse. Parecia-lhe a coisa mais certa a fazer em seus últimos momentos. Havia um belo depósito de calcário aflorando à superfície, alguns metros adiante, e Allie pensou em pegar algumas amostras. Afinal, coletar amostras seria o disfarce que usaria para estar ali. Mas, então, pensou nas pessoas que estariam à sua procura e deu-se conta de que poderiam ouvir as batidas do martelo nas pedras. Os sons viajavam a uma longa distância naquele ar frio e limpo, embora não tão bem quanto acontecia em altitudes mais baixas. Ela aprendera algo sobre isso na aula de ciências, no ano anterior. De qualquer forma, se usasse o martelinho poderia chamar a atenção para si, portanto contentou-se em recolher as pedras soltas e examiná-las. Finalmente era quase meio-dia e ela começava a sentir-se sonolenta e faminta. Fora este o resultado de ficar sentada no sol. Pegou uma barra de granola e um pedaço de carne-seca e comeu. Ainda não havia nenhum sinal do pessoal do resgate. Nenhum ruído, exceto a brisa, os pássaros e o borbulhar do riacho perto da cabana. Depois de algum tempo achou uma tolice continuar ali sentada. O chão estava duro e frio. Não lhe faria mal algum se deitasse um pouquinho, pensou. O sol estava quente em sua pele e os músculos ainda estavam doloridos. Seria tão bom deitar um pouco... Allie fechou os olhos para bloquear o sol até que, em algum momento, adormeceu. Matt Dawson encontrou-a ali. Ele não havia se reunido aos outros
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voluntários naquela manhã porque eles o faziam sentir-se deslocado. Consideravam-no um adolescente problemático e ninguém parecia muito disposto a permitir que os acompanhasse. Assim, Matt acabou concluindo que seria melhor procurar sozinho. Na verdade, ele não seria capaz de dizer por que sentia tal necessidade de procurar Allie Williams. Jamais haviam trocado mais do que duas ou três palavras. No entanto, subitamente lembrou-se de que, quando estavam no primário, Allie dividira com ele seu sanduíche, pois ele não havia levado nenhum lanche. Mas, exceto por isso, ela bem poderia morar num outro planeta. Era uma das crianças a quem ele observava à distância, imaginando como seria ter pais carinhosos que participavam da Associação de Pais e Mestres, uma mãe que levava o bolo na escola no dia do seu aniversário, e boas roupas para usar. Estas haviam sido preocupações infantis e Matt achava que já as superara. De fato, há tempos parara de pensar em Allie nas outras crianças como ela. Ele deixara sua inveja para trás em algum ponto dos seus doze anos, quando percebera que era um desperdício de energia. Sua vida era como era, e pensar no que as outras pessoas possuíam não o faria sentir-se melhor a respeito da sua própria família. Havia pensado um pouco em Allie no ano passado, quando o pai dela morrera. Porém, em vez de penalizar-se por ela, o fato o fez sentir-se bem, de uma maneira maldosa, ao pensar que até mesmo as melhores garotas, com suas vidas perfeitas, nem sempre eram felizes o tempo todo. Isso o deixava envergonhado, de um jeito que ele não conseguia definir, e Matt concluiu que fora a vergonha que o empurrara para as montanhas, à procura dela. Além disso, ainda lhe devia alguma coisa por aquele sanduíche. Matt evitou os outros voluntários e suas áreas cuidadosamente demarcadas, e seguiu os próprios instintos. Lembrou-se da velha cabana de mineiros na montanha, uma construção de madeira no meio do nada, isolada e quase caindo aos pedaços. Quase ninguém a conhecia, fazia muito tempo que estivera esquecida e quase engolida pelas árvores que há cem anos cresciam ao seu redor. Ele próprio escondera-se ali algumas vezes no decorrer dos anos, quando a idéia de ficar em casa com seu pai parecia-lhe impossível de suportar. Mas Allie caminhara por toda parte naquelas montanhas em busca daquelas rochas estúpidas, ele a ouvira conversando sobre isso com suas amigas "intelectuais", e Matt calculava que ela sabia da existência da cabana. E se ele fosse uma menina que planejava passar a noite sozinha na encosta de uma montanha, iria querer a proteção das paredes e de um teto de verdade. Algo que o mantivesse a salvo dos animais. Quando chegou à cabana, por volta do meio-dia, Matt a princípio sentiu-se frustrado por ela não estar ali. Porém, depois que reparou melhor, percebeu que alguém varrera o local. E, dentro da cabana, o chão de terra endurecida estava revolvido em alguns pontos, indicando a presença recente de alguém. Ela estivera lá, sem dúvida. Matt sentiu-se bem por sua intuição estar correta. E a garota não era tão esperta quanto provavelmente se considerava. Além disso, ela estava exatamente no perímetro das buscas
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daquela manhã. Eles acabariam por encontrá-la. Matt queria encontrá-la primeiro. Ninguém na cidade tinha algo de bom a dizer a seu respeito, e embora achasse que isso não importava, tinha certeza de que não se incomodaria de ser um herói, ao menos por um dia. Somente por um dia, era tudo o que ele desejava. Mas Allie já seguira em frente. Olhando em volta, Matt tentou calcular para que lado ela fora. Tudo dependia de quais eram suas intenções. Se queria ser encontrada, e ele achava que esta era uma forte possibilidade, não iria distanciar-se demais daquele ponto, pois a área de buscas ficaria tão ampla que impossibilitaria que procurassem em toda parte. Assim, imaginou que provavelmente ela estaria vagando por ali, esperando que a encontrassem. Mas onde? Matt começou a andar acima e abaixo da montanha, alguns quilômetros em todas as direções, e quando finalmente a encontrou, dormindo numa rocha sob o sol, quase não acreditou em seus olhos. Achou que ela estava parecendo a Bela Adormecida de um filme que ele assistira anos atrás, levado por uma das professoras que se apiedou por ele nunca ter ido ao cinema como as outras crianças. Allie parecia quase mágica, e ainda assim tão pequena e vulnerável que, pela primeira vez em sua vida, Matt sentiu um impulso protetor tão intenso que atingiu-lhe o peito com uma dor quase insuportável. Ele sabia que não teria muito tempo para levá-la para baixo da montanha antes de escurecer, mas não acordou-a. Em vez disso, sentouse ali perto e ficou observando-a dormir, perguntando-se como a vida dela teria ficado tão ruim a ponto de levá-la a fugir. Isso era algo que ele não compreendia. O sol aproximava-se do pico da montanha e ela continuava dormindo. Mas nuvens começavam a aglomerar-se, também, prometendo uma chuva à tarde, ou coisa pior. Quando finalmente encobriram o sol, Matt soube que não podia mais esperar. Não podia correr o risco de ela molhar-se. — Allie. Allie, acorde. Ela deu um pulo de susto, parecendo tomada pelo pânico. Então, viu quem era. — O que está fazendo aqui? — perguntou, a voz ressecada pelo sono. — Estava procurando você. A cidade inteira está à sua procura. Precisamos voltar. — Não! — Ora, pare com isso, é melhor desistir. Eles vão encontrá-la. Ela empinou o queixo. — Não vão, não, Matt hesitou. Por algum motivo estúpido, imaginara que ela o acompanharia assim que soubesse que a brincadeira acabara. E não era tolo o bastante para achar que seria capaz de carregar uma garota gritando e chutando pela montanha abaixo. Um tanto decepcionado, perguntou: — Por que não? — Porque não vou voltar para casa. Nunca mais. A impaciência borbulhou dentro dele. — Por quê? — indagou, ríspido. — O que aconteceu em sua vida que
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você nem é capaz de enfrentar? Meu Deus, você é tão mimada! Nem sabe como tem tudo fácil. Ela inclinou a cabeça para trás, como se ele a tivesse esbofeteado. — Você não sabe de nada — disse, com voz trêmula. — Bem, seja lá o que for, não pode ser tão ruim quanto o que eu tenho de agüentar. E você nunca me viu fugindo por aí. — Talvez você devesse fugir. — Ah, sim. E acabar numa casa de correção para menores. Não, obrigado. A vida já é uma porcaria sem que eu esteja na cadeia. — Você não entende. — Não, é claro. Não entendo porque sua mãe está tão preocupada que parece que vai ter um ataque. Se eu fugir, minha mãe nem vai perceber. — Então fuja. — Não. — Por quê? Você é covarde? Matt achou que poderia bater nela, só não o fez porque havia jurado jamais usar os punhos contra alguém que não o atingisse primeiro. Ele jamais seria como seu pai. E, certamente, não podia dizer àquela garota que o único motivo de continuar ali era porque se seu pai não pudesse usá-lo como saco de pancadas, acabaria espancando a sua mãe. Ele tinha de ficar. — Não sou covarde — ele disse finalmente. — Mas você é. — Não sou, não. Eu estraguei a vida de todo mundo e não vou voltar para casa. — Ah, pare com isso, sua "mimadinha". Não pode ter feito nada tão ruim assim. O que você fez? Juntou pedras demais? Tirou zero de matemática? Ela balançou a cabeça, os lábios trêmulos. — Eu nasci — disse, num tom quase inaudível. — Eu nasci, só isso. Agora ele tinha certeza de que ela estava maluca. Muitas vezes Matt lamentara ter nascido, mas nunca culpara a si mesmo por isso. Afinal, não tinha nada a ver com ele. Pelo contrário, era culpa de seu pai, que não conseguira ficar com o zíper da calça fechado. — Não seja boba — ele disse. — Você fala como se tivesse nascido de propósito. Allie baixou a cabeça e os cabelos longos e escuros ocultaram-lhe o rosto. Ele continuou observando-a, esperando, mas ela não disse mais nada. Finalmente Matt ergueu os olhos para o céu, e o que viu deixou-o amedrontado. — Venha, precisamos ir embora. Vai começar a chover a qualquer minuto. Ela levantou-se e pegou a mochila enorme. — Eu vou para a cabana — disse. — Nem um passo além disso. Ele cedeu, por enquanto. Afinal, quando começasse a chover nenhum deles iria a lugar algum. A chuva era capaz de matar, naquelas montanhas, e a hipotermia era a pior das ameaças. — Tudo bem — ele disse, deixando-a pensar que vencera. Os primeiros pingos, grossos e frios, começaram a cair no instante em que eles chegaram na cabana. Um deles caiu bem no nariz de Matt, frio como gelo. Correram para dentro, imobilizando-se na escuridão por um
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instante, até que seus olhos se acostumassem. — Eu tenho um fogareiro — Allie falou quando uma gélida rajada de vento penetrou pelas janelas abertas. — Quer alguma coisa quente? — É claro. — Por que não? De qualquer forma, ficariam presos ali até que a chuva passasse. Acomodaram-se num canto, o mais distante possível das correntes de vento, e Allie tirou da mochila o fogareiro e outro pacote de sopa desidratada. — Eu me esqueci — ela disse, de repente. — Vamos precisar de água. Contendo um suspiro, Matt levantou-se e foi olhar pela Janela. A chuva ainda caía em pingos esparsos. Se corresse, talvez tivesse tempo de pegar a água antes de ficar completamente ensopado. — Me dê uma vasilha — ele disse. Allie entregou-lhe uma panela de alumínio, grande mas leve, com uma tampa móvel. Daria certo, mesmo se ele tivesse de correr, contanto que ficasse segurando a tampa. — Puxa, você sabe mesmo acampar. — Meu pai me ensinou. Matt correu para fora da cabana, na direção do riacho. As gotas de chuva ainda eram poucas e grossas e quando atingiam-no chegavam a doer, como pedrinhas de gelo. Ele apanhou-se pensando se poderia nevar. Deus,esperava que não. Foi escorregando pela margem do riacho, encheu a panela rapidamente e tornou a subir a pequena encosta íngreme, o tempo todo tremendo de frio. O vento ficava cada vez mais gelado, penetrando em sua velha jaqueta e na camisa de flanela. E a chuva também começava a apertar. Ele sentiu os ombros molhando-se no pouco tempo que levou para correr até a cabana. Quando entrou viu que Allie já acendera o fogareiro. A luz azulada da chama guiou-o e ele apressou-se em sua direção, deixando a panela ao lado dela. O calor era bem-vindo e ele encolheu-se num canto, estendendo as mãos para o fogo. — Meu Deus, está um frio tremendo lá fora — disse. Ela não disse nada, limitando-se a colocar a panela no fogãozinho. — Tem certeza de que este fogo é o suficiente para tanta água? Não devíamos acender uma fogueira? — Tenho outra lata de querosene. Mas Matt já pensava numa fogueira, em como ficaria bem mais quente e em como seria impossível acendê-la depois que chovesse. Sem nada dizer, deu um salto e correu novamente para fora, juntando tudo o que pôde encontrar para acender um fogo decente. Do jeito que imaginava, poderiam fazer a fogueira dentro da cabana mesmo, perto da janela, contanto que não fosse grande demais. Havia praticamente um túnel de vento, ali, e a fumaça não lhes faria mal. Talvez. Mas isso era o melhor que ele poderia pensar. Carregou duas pilhas de lenha seca para a cabana, depois foi procurar galhos de pinheiro sob as árvores. A chuva se intensificava constante e gelada, e ele também ficava cada vez mais ensopado. Finalmente encarou o fato de que havia ficado fora por tempo demais e que poderia acabar doente. No interior da cabana, jogou os galhos de pinheiro junt0 com a lenha e voltou para o fogareiro. A água nem começara a esquentar e ele
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estendeu as mãos, quase encostando os dedos na chama. Estavam tão frios que mal conseguia senti-los e arrependeu-se de não ter levado as luvas de lã. Allie estendeu o braço e tocou-lhe os ombros. — Você está todo molhado. — Vou ficar bem — Matt respondeu, indiferente. — Meu corpo está seco. Mas ela não lhe deu ouvidos. Tirou o saco de dormir da mochila e passou-o para ele. — Enrole-se nisto. Vai mantê-lo aquecido até que a sopa esteja pronta. Ele não discutiu. Tinha consciência de que poderia começar a tremer a qualquer momento. Abriu o saco de dormir e estendeu-o nos ombros, depois tornou a sentar diante do fogo. — Você está bem? — Estou seco e a minha jaqueta é boa. Sentado ali, esperando que a água fervesse, Matt perguntou-se qual dos dois seria mais louco. Ele sabia que não deveria ter ido até lá usando apenas as roupas do corpo, especialmente naquela época do ano. E fora uma estupidez ainda maior perder todo aquele tempo vendo-a dormir, sabendo que as nuvens de chuva acumulavam-se. Talvez a verdade fosse que, tanto quanto ela, ele não queria voltar para casa. — Parece que vai nevar — ele comentou quando a água começou a esquentar. — É, acho que sim. — Você não parece preocupada. — Por que deveria? Nunca mais vou descer desta montanha. — O que pretende fazer? Ficar aqui e virar uma ermitã Pelo resto da vida? Mas Matt tinha o pressentimento de que ela queria dizer outra coisa, e isso o deixou irritado. No entanto, sem saber como verbalizar tal suspeita, decidiu esperar. Quando a água ferveu, ela insistiu em esperar mais um pouco. Falou sobre os parasitas na água e em como era necessário beber apenas água fervida, para não pegar nenhuma se doença. Matt concluiu que ela não era do tipo suicida, pois,se fosse, não estaria preocupada com bichinhos na água. Quando Allie finalmente achou que todos os parasitas estavam mortos, encheu uma caneca com um pouco da água e dissolveu a sopa desidratada. — Deixe descansar por alguns minutos — disse. Naquela altitude, a água fervia a uma temperatura mais baixa e demorava mais tempo para a sopa dissolver-se do que o indicado no pacote. Mas Matt já sabia disso. Afinal, morava ali desde que nascera. — E quanto a você? — ele perguntou. — Eu trouxe apenas uma caneca. Vou tomar a sopa depois que você terminar. — Tem certeza? — É você quem está molhado. Allie deixou a água fervendo enquanto ele tomava a sopa e, embora achasse que era um desperdício de querosene, Matt ficou em silêncio pois o calor do fogo e do vapor da água era muito agradável. A sopa estava
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melhor ainda, quente o bastante para aquecê-lo mas sem queimar-lhe a língua. E era o suficiente para fazê-lo perceber o quanto estava faminto. — Mais? — ela perguntou, quando ele passou-lhe a caneca. — Você, primeiro. Além disso, Matt calculava que ela não trouxera tanta comida assim e, se nevasse, a vida ficaria bem mais complicada para os dois. Allie bebeu a sopa e depois dividiu uma barra de granola com ele. Matt sentia-se bem melhor. Mas desejava que não tivessem de desligar o fogareiro. A escuridão aumentava dentro da cabana. Matt levantou-se e, mantendo o saco de dormir nas costas, foi olhar pela porta. Fim de tarde. Cinco horas, mais ou menos. A chuva caía forte e rápida, um constante tamborilar no telhado que, por mais impressionante que parecesse, ainda não apresentara nenhum vazamento. Eles não iriam a lugar algum, naquela noite. Ele olhou para a pilha de madeira seca que levara para a cabana. Não daria nem para metade da noite. De repente, pensou em quão bem preparada ela parecia estar e virou-se, perguntando: — Você trouxe uma capa? — É claro. Sempre trago, quando venho acampar. — Por que não me avisou, quando saí para pegar a água e a lenha? — Porque eu não sabia se você iria voltar. Matt não podia discutir. — Quero pegar mais lenha — disse. — O que temos não será suficiente para a noite inteira. — Tudo bem. — Ela vasculhou novamente na mochila e tirou um saquinho de plástico muito bem dobrado. — Tenha cuidado, isso rasga com facilidade. Matt devolveu-lhe o saco de dormir, dobrando-o nos ombros dela, e enfiou a capa pela cabeça. Era grande o bastante para um homem adulto e tinha um capuz. A chuva batia nela como se fossem dedos enquanto ele andava por entre as árvores, apanhando galhos caídos que não estivessem molhados demais. Meia hora depois, conseguira lenha suficiente para satisfazer-se. Entregou a capa para Allie, observando-a dobrá-la com todo cuidado. Então, começou a escavar um buraco no chão, para fazer a fogueira. — Você não deveria acender o fogo aqui dentro — ela falou. — Não estamos exatamente "dentro". Esta cabana tem mais buracos do que um queijo suíço. A fumaça não vai nos fazer mal. — Mas e se a cabana pegar fogo? — Isso não vai acontecer. Vou acender uma fogueira pequena. Pelo menos o trabalho o mantinha aquecido. Quando achou que o buraco estava bem profundo, começou a acender o fogo. — Você já foi às ruínas em Mesa Verde? — Allie perguntou. — Não, mas já ouvi falar. — Bem, antes que os Anasazi começassem a construir os abrigos nos penhascos, eles costumavam morar em fossos no chão, que eram revestidos de madeira. — Sim, e daí? — Uma quantidade terrível destes lugares queimou porque os tetos pegaram fogo.
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— Bem, eu não vou escavar um abrigo no penhasco neste momento, portanto teremos de nos arriscar. Vou tomar cuidado. Matt fez o que prometeu. Resistiu ao impulso de armar uma fogueira que realmente os aquecesse, e contentou-se com uma onde pudessem esquentar ao menos as mãos e os pés. Qualquer coisa era melhor do que nada. Quando finalmente a fogueirinha estava ardendo, ele reparou que Allie não hesitou em aproximar-se. — Acho que devemos nos revezar em ficar acordados para tomar conta do fogo — ela disse. — Só por precaução. — Por mim tudo bem. — Tudo o que ele sabia era que ela tinha um saco de dormir e provavelmente ficaria bem. Mas, sem o fogo, ele estaria congelado de manhã. — Foi uma idéia bem estúpida, Allie. — O quê? — Fugir para as montanhas. Você sabe quantas pessoas estão arriscando o pescoço para procurá-la? E agora eu também estou preso aqui, e nem tenho um saco de dormir. Prometa que vai me enterrar, se eu tiver me transformado num picolé, amanhã cedo. — Você não precisava vir atrás de mim. — Você deveria estar contente por que alguém veio. Ela não respondeu e baixou a cabeça. Matt teve a impressão de que começava a perceber a gravidade do que fizera. O que era bem feito, ele disse a si mesmo. Porém, isso não impediu-o de sentir pena dela. Capítulo V No instante em que viu as nuvens escuras acumularem-se Meg começou a entrar em pânico. Ela vivera naquelas montanhas por tempo bastante para saber o que isso poderia significar, saber que ficar molhado lá em cima seria o mesmo que uma sentença de morte. — Ela deve ter levado a capa de chuva — Earl falou. — Allie sabe como acampar, Meg. E há muitos lugares onde ela pode abrigar-se para escapar do pior. Porém, todas às vezes em que ele ia até o posto de comando para saber das notícias, estas ficavam piores. Os voluntários vagueavam a esmo, molhados e cansados, incapazes de prosseguir. E, finalmente, uma das equipes que voltava relatou ter visto neve. Os picos mais altos estiveram brancos durante semanas, mas agora a linha da neve estava descendo. Meg ficou parada na porta de vidro que se abria para o deque de madeira e olhou para as montanhas implacáveis, imperdoáveis, agora ocultas sob nuvens negras. Seu rosto estava pálido e ela abraçava-se com desespero, como se o no exterior estivesse penetrando em seus ossos. Lá dentro estava quente; quando a temperatura começou a cair, Earl acendera os dois aquecedores a lenha que aqueciam a casa, mas Meg não sentia nenhum calor. Tudo o que sentia era 0 frio que mantinha Allie à sua mercê. Minha filhinha vai morrer — ela disse, num fio de voz.
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— Ela sabe como se cuidar, Meg — Earl retrucou com firmeza. — Não no inverno — ela contestou. — Não com o frio e a chuva. Não por muito tempo. Ela não levou tanta comida assim. O que acontecerá quando a madeira ficar úmida demais para ser queimada? Ela não tem muito querosene para o fogareiro... Uma parte dela estava abrindo mão da esperança, preparando-se para a morte. Com o passar das horas, conseguia apenas imaginar todas as coisas ruins que poderiam acontecer a Allie. Em seu mundo, essas, coisas ruins não aconteciam somente às outras pessoas. Aconteciam com ela, com as pessoas a quem amava. Eram reais. Primeiro fora seu pai, depois Bill e, agora, Allie. Deveria haver algo mais a que agarrar-se mas, de alguma maneira, isso era tudo em que ela acreditava. As desgraças aconteciam com ela e com as pessoas a quem amava, e eram sempre por sua culpa. — Vamos recomeçar as buscas amanhã. Meg mal o escutou. No dia seguinte a maioria dos homens teria de voltar ao trabalho. E, de qualquer forma, o dia seguinte ainda estava longe demais. O saco de dormir de Allie poderia lhe dar alguma proteção, mas não era o bastante. Por mais que tentasse, não conseguia lembrar-se de qual era a temperatura que o saco de dormir podia suportar. Abaixo de zero? Não era o suficiente. Deus, esperava que Bill tivesse comprado sacos de dormir que agüentassem temperaturas baixíssimas. Mas não sabia com certeza. Aquela sempre fora função dele e, pela primeira vez em meses, ela verdadeiramente desejou que Bill estivesse vivo. Tal pensamento a fez sentir-se culpada. Culpada por sentir tão pouco a falta de Bill. Culpada pela briga que causara a morte dele, embora não tivesse sido ela quem a iniciara. A culpa era sua companheira constante. E, agora, também sentia-se culpada por Allie. Mas a culpa não era nada, se comparada com o medo e a sensação de perda iminente que sufocava-lhe a garganta e fazia seu peito doer a ponto de não conseguir respirar. Earl pegou-a pelo braço e afastou-a da porta, levando-a para o escritório e para longe de Vivian. Vivian instalara-se na sala de estar com sua Bíblia e a lia em voz alta, como se o fato de ler os versículos pudesse afastar seus pesadelos. Meg estava além disso. Sua única prece era um constante "Meu Deus, por favor, por favor, meu Deus..." A litania perpassava-lhe a mente sem cessar, ficando sempre à margem de quaisquer outros pensamentos. — Converse comigo — Earl falou quando sentaram no sofázinho do escritório. — Vamos conversar. — Sobre o quê? — Qualquer coisa, não importa. Qualquer coisa que lhe passar pela cabeça. Mas não havia nada que ela estivesse disposta a dizer. Todos os seus pensamentos estavam cercados por segredos sombrios que não suportariam a luz do dia. Segredos que fariam com que Earl lhe virasse as costas com desgosto, e ela achava que não suportaria mais esta perda, além de todas as outras. Olhou para ele, para o rosto rude e amigável, e pensou em como sua expressão era bondosa. Earl sempre fora um bom homem. Ela não
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conseguia lembrar-se de nenhuma ocasião em que ele não agira com gentileza e bondade. Porém, nem mesmo sendo assim Earl seria capaz de entender as coisas terríveis de sua vida. E todas essas coisas faziam-na sentir que merecia cada uma das desgraças que lhe apareciam no caminho. Meg desejava poder chorar. O pranto talvez aliviasse a pressão insuportável em seu peito e a dor em sua garganta, mas as lágrimas não surgiam. Ela as derramara todas na noite anterior e parecia não ter restado mais nenhuma. E não havia nada a dizer. O que poderia dizer? Allie estava desaparecida e na próxima vez em que visse sua una ela bem poderia estar num caixão. Isso era algo que ela não suportaria verbalizar. . . — Escute — Earl falou, após um momento. — Não posso prometer nada, mas acredito que iremos encontrar Allie e que ela estará bem. — Não minta para mim, Earl. Você sabe que a cada hora passa as esperanças diminuem, principalmente agora que começou a nevar lá em cima. — Porque você está tão determinada em acreditar no pior? — Porque é isso que mereço. A amarga e terrível afirmação saiu antes que Meg pudesse impedila, e ela viu a expressão horrorizada no rosto dele. Ah, Deus, por que dissera isso? Mesmo sendo verdade, jamais deveria dizer uma coisa destas para ele. — Isso não é verdade, Meg. Não acredito nisso, e nem você deveria. Mas, verdade ou não, Allie não merece isso. Meg percebeu que Earl zangara-se com ela. Por um instante, não conseguiu entender por quê. Depois, compreendeu. Ele estava zangado porque ela desistira de Allie. Porque pensava apenas em si mesma, como se seu sofrimento fosse tudo o que importava. Ela poderia merecer perder todos aqueles a quem amava, mas Allie não merecia morrer. — Desculpe-me — ela disse, pressionando os lábios. — Desculpe-me, você tem razão. — Está tudo bem. — Arrependido de sua demonstração de raiva, Earl estendeu a mão e tocou-lhe o ombro. — Você está apenas confusa e estressada. Ele poderia inventar-lhe desculpas, mas ela não. Esta era a maior prova de que era uma pessoa horrível. Era ela quem deveria estar congelando nas montanhas, e não Allie. — O que acha que fez de tão terrível assim? — ele perguntou. Meg ergueu a cabeça, transtornada. Fora ela mesma quem provocara tal pergunta e agora devia-lhe uma resposta. Mas não lhe contaria nada, de maneira nenhuma. Foi salva por uma batida na porta. Earl levantou-se para atender. Ela ouviu-o conversar com Midget Baldridge no vestíbulo e correu para saber o que estava acontecendo. Ao vê-la, Midget assentiu em cumprimento. — Sinto muito, Sra. Williams. Nenhuma notícia. Estava justamente relatando ao chefe que o último grupo de homens está retornando. A situação está ficando feia, lá em cima. Meg cobriu a boca com a mão, tentando conter o grito que emergia de dentro de si. Não queria ouvir de ninguém que a "situação estava feia
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lá em cima" e, certamente, não de alguém que passara a vida toda naquelas montanhas O que avistava das janelas já era bastante assustador. Não queria saber o quanto a situação era pior do que parecia. — Voltaremos para lá amanhã bem cedo — Midget falou, como se entendesse a reação dela. — Vamos voltar, com certeza. Mas em que ponto eles acabariam por desistir? Meg perguntou-se. Em algum momento eles iriam decidir que não havia mais esperança de encontrar Allie. Ela já vira isso acontecer antes, em outras buscas. O dia seguinte talvez fosse o último dia de esperança que eles lhe dariam. Virando-se, subiu correndo as escadas, entrou em seu quarto e atirou-se na cama que antes compartilhava com Bill. Quando começou a gritar, o travesseiro abafava os sons. No andar de baixo, Vivian, que ouvira a conversa na sala, olhou para Earl. — É culpa dela, você sabe. Deixou a menina solta demais. É tudo por culpa dela. Algo pareceu romper-se dentro de Earl. Ele passara as últimas trinta e quatro horas tão preocupado com Allie quanto as duas, mas não se permitira demonstrar isso porque era o xerife. Mas, agora, toda cautela o abandonou. — O que diabos está acontecendo com você? — disparou. — Que tipo de mãe você é? O rosto de Vivian ficou branco e seus lábios comprimiram-se numa linha fina. — Você não sabe o que Meg fez. Mas Earl não queria saber de nada. Deu um passo na direção de Vivian, com uma expressão ameaçadora. — Escute aqui, Vivian, e escute com atenção. Você vai ficar com a boca calada e parar de fazer com que Meg sinta-se ainda pior, ou eu mesmo arrumo suas malas e a mando de volta para qualquer que seja o buraco do qual você rastejou. Duas manchas avermelhadas surgiram nas faces de Vivian. — Você não pode me obrigar. — Pois experimente para ver. Vivian fez um giro rápido e desapareceu. Midget pigarreou. — Meu Deus, chefe, o que há de errado com esta mulher? — Não faço idéia. Mas sei que não vou ficar aqui agüentando. — Tem toda razão, chefe. As coisas já são bem ruins como estão. Earl assentiu e voltou sua atenção para a questão das buscas. Perguntou a Midget qual era a última previsão do tempo, que não lhe pareceu muito promissora, mas no fundo de sua mente continuava perguntando-se o que teria acontecido para que Vivian se mostrasse tão odiosa em relação à Meg. Depois, foi procurar Meg. Encontrou-a deitada na cama, o rosto mergulhado no travesseiro. Sem nada dizer, ele sentou ao seu lado e começou a massagear-lhe as costas. No dia seguinte, decidiu, iria reunirse aos homens e mandaria para o inferno o protocolo. Um de seus subalternos poderia ficar no posto de comando, mas ele não conseguiria mais ficar ali, sem fazer nada. Meg não se moveu, mas ele sentia seus tremores sob as mãos, como
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se ela estivesse chorando. Nada poderia ser pior do que aquilo, ele pensou. Uma criança perdida nas montanhas... Naquele ponto, estava começando a perguntar-se se não teria sido melhor se Allie tivesse fugido para Denver. Porém, ninguém informara tê-la visto, e a ausência dos equipamentos de acampamento era uma indicação quase certa de que ela seguira para as montanhas. Isso era melhor do que cair nas mãos de um pedófilo,mas não totalmente. Não com o inverno decidindo chegar mais cedo, pelo que parecia. Earl apanhou-se rezando para que ela estivesse a salvo e abrigada, para que encontrasse um lugar onde se esconder do vento e da neve. Para que tivesse comida suficiente,para que encontrasse madeira seca para acender um fogo. Esperava que ela não estivesse muito amedrontada, mas receava que sim. Acampar sozinho nas montanhas poderia parecer uma grande aventura, até o momento em que se estivesse perdido no escuro, no frio e na neve. Então, pensou que Deus não poderia fazer isso com ele não poderia lhe tirar seu melhor amigo e a filha dele em tão pouco tempo. Deus não seria assim tão cruel. Porém, Earl sabia que provavelmente Deus não tinha nada a ver com isso, e que a vida realmente podia ser cruel.No ano anterior, ele vira um homem perder a esposa e os filhos num incêndio. As tragédias aconteciam o tempo todo E não havia motivos para que ele fosse mais poupado do sofrimento do que o restante da humanidade. Mas, por mais amedrontado que estivesse, por mais que seu coração estivesse prestes a despedaçar-se, ele começava a sentir os primeiros lampejos de raiva. Raiva por Vivian, pela maneira com que tratava Meg. E raiva por Allie, que agira de maneira tão estúpida. Não importava que ela tivesse apenas quatorze anos, deveria saber distinguir o certo do errado. Por todas às vezes em que Bill a levara para acampar, deveria saber como as montanhas eram perigosas. E talvez ela soubesse. Talvez fosse por isso que fugira para lá. Talvez Allie não pretendesse descer a montanha, no fim das contas. Um vento gelado soprava lá fora. Matt Dawson sentou ao lado do fogo, usando o casaco de Allie. Ela insistira para que ele o vestisse, pois ficaria aquecida no saco de dormir. A jaqueta era pequena demais, com as mangas muito curtas, e era impossível fechar o zíper na frente, mas esquentava bem as partes que cobria. Ela também lhe dera suas luvas. Allie dormia profundamente e, embora estivesse cansado, Matt não queria acordá-la. Estava com tanto frio que receava pegar no sono. Arrepios percorreram-lhe o corpo e ele aproximou-se mais da fogueira. Desesperado, juntou mais dois pedaços de lenha ao fogo, arriscando incendiar o teto. Ficou observando as chamas erguerem-se e viu que elas paravam antes de atingir o teto. Estava tudo bem. O vento vergastava a cabana, mas os dois estavam fora do seu alcance. De vez em quando, no entanto, Matt avistava um floco de neve entrar pela janela, avermelhando-se com o fogo. O mundo fora da cabana, estranhamente, parecia estar ficando mais claro. Provavelmente por causa da neve que caía em algum lugar ali perto.
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Se fosse tão ruim quanto parecia, eles estariam com sérios Problemas. Uma tempestade de neve tornaria impossível que descessem à montanha. Não seriam capazes de detectar os obstáculos e era bem provável que acabassem se machucando. Pior ainda, poderiam ficar molhados e congelados, algo extremamente perigoso. Ele tinha apenas dezesseis anos, mas a vida o transformara num homem, de certa forma, e agora era o homem que existia nele que considerava a estupidez de seus atos. De onde havia tirado a idéia de que poderia subir até lá por conta própria? Sem quaisquer equipamentos, sem mantimentos? Uma coisa era fazer isso em julho, mas era bem diferente no mês de setembro, quando o inverno já espreitava nos picos das montanhas. Agora, estava encurralado ali com Allie e os suprimentos que ela trouxera apenas para si mesma tinham de ser divididos com ele. Momentos atrás ele dera uma espiada na mochila e o que viu não deixouo muito contente. Fosse lá o que Allie viera fazer, ela não esperava demorar mais do que dois dias. Não trouxera muita comida, o que significava que ambos começariam a ficar com fome de verdade já na noite seguinte, caso não conseguissem voltar para casa. Tremendo, ele esfregou as mãos diante do fogo e tentou não pensar em como estava tão frio que o calor das chamas não alcançava mais do que alguns centímetros. Allie parecia bastante confortável no saco de dormir, mas começava a ficar inquieta e ele suspeitou que o frio também já a atingira. Desejou ser capaz de pensar em algum jeito de cobrir a porta da cabana. Isso impediria que o vento formasse correntes e deixaria o lugar um pouco mais quente, mesmo com as janelas abertas. Imaginou se alguém conseguiria sobreviver num lugar como aquele, mesmo se houvesse uma porta e vidros nas janelas. Seus pés pareciam dois blocos de gelo e ele estendeu as pernas, posicionando as botas na frente do fogo. Num instante as solas ficaram quentes e quase queimaram-lhe os pés, mas o calor que retinham impediria seu congelamento por mais algum tempo. Allie gemeu baixinho. A princípio ele ficou em dúvida se era ela ou o vento, mas então ela gemeu oura vez. Dois segundos depois, ela abriu os olhos. — Estou com frio — ela disse. — Eu também. — Já está na hora de trocarmos de lugar? — Não — ele mentiu. — Você só dormiu alguns minutos. — Ah... Parecia mais tempo. — Talvez seja porque você está com tanto frio. — É. Matt esperou que ela adormecesse outra vez, mas Allie não fechou os olhos e ficou observando o fogo. Ele imaginou o que ela estaria pensando, mas quando percebeu uma lágrima correndo em seu rosto quase entrou em pânico. — O que há de errado? — Nada. Só estou triste. Ele estendeu a mão e enxugou a lágrima com a luva. — É melhor não ficar com o rosto molhado — disse. — Obrigada.
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— Escute — ele falou, após um instante. — Nós precisamos sair desta montanha amanhã mesmo. — Você pode ir, se quiser. Eu vou ficar. — Por que diabos está fazendo isso? Será que está maluca? Vai acabar morrendo, aqui. Quando ela não respondeu, Matt entendeu a verdade. Ele também pensara em matar-se algumas vezes e, por uma ou duas, havia chegado bem perto disso, portanto não tinha nenhum argumento veemente contra a idéia. Às vezes até achava que desistira porque era covarde demais para ir até o fim. E, agora que pensava nisso, se tivesse lhe ocorrido subir a montanha e congelar até a morte, talvez o tivesse feito. — Às vezes eu penso em me matar — disse. Ela levantou a cabeça, encarando-o. — É mesmo? Por quê? — Porque fico enjoado de tudo, entende? Às vezes acho que não vou conseguir suportar nem mais um dia. Ela assentiu e apoiou-se nos braços, até ficar mais perto dele. — Seu pai bate em você? Matt enrijeceu. — Não foi isso que eu disse. — Eu sei. Mas sempre fiquei pensando. Você costuma aparecer na escola com o olho roxo, ou com a boca machucada. Ele encolheu-se. Não era algo que queria admitir a ninguém, pois, de alguma forma, sentia-se culpado por isso. Sujo. Como se fosse culpa sua. E talvez fosse. Quando ele não respondeu, Allie falou: — Foi o que pensei. Por que você não se matou? — Quer saber a verdade? — É claro. Então ele contou-lhe a verdade na qual acreditava quando decidira não fazer isso, e não a parte sobre como se sentira um covarde por não ter feito. Por alguma razão, sentia uma obrigação moral de impedir que Allie fizesse algo tão louco e drástico. — Além disso, sou muito genioso — completou. Por um instante ela não emitiu nenhum som, depois riu baixinho. — Genioso? De verdade? — Juro por Deus. Concluí que se eu me matasse tornaria tudo mais fácil para as outras pessoas. Não pedi para nascer, então por que teria de deixar todo mundo em paz sem a minha presença? Ela assentiu devagar, como se estivesse pensando sobre o que ele dissera. Encorajado, Matt prosseguiu: — Tem mais uma coisa: só os covardes se matam. É a maneira mais covarde de fugir. — Eu não sei. Na verdade, acho que é necessário um bocado de coragem para fazer isso. Ele até concordava com ela, depois da sua própria experiência, mas não iria admitir. — É necessário mais coragem para não fazer. Allie não retrucou, limitando-se a fechar os olhos. Após um momento, Matt achou que ela voltara a dormir. Ele a invejava. Naquele instante, faria qualquer coisa para sentir-se aquecido novamente. Chegou mais perto da fogueira, pensando que suas mãos estavam tão
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frias que, se as luvas pegassem fogo, ele nem perceberia. O uivar do vento era um dos sons mais solitários que ele já ouvira. Quando finalmente levantou-se para esticar os músculos rígidos e foi olhar pela janela, viu que a neve ainda estava sendo trazida pelo vento e acumulando-se um pouco sob as árvores. Ainda não era muito, assegurou-se, portanto talvez estivessem a salvo por aquela noite. Pelo menos era o que ele esperava. Ficou andando pela cabana, tentando não fazer barulho para não acordar Allie. Pouco a pouco seus músculos foram relaxando e ele sentiuse mais quente. Mas também estava ficando com fome. A sopa e meia barra de granola não tinham sido o suficiente para alimentá-lo, não quando estava tão frio e a manhã parecia tão distante. Allie surpreendeu-o quando sentou de repente. — Estou com fome — ela anunciou. — Eu também. — Tenho mais um pedaço de carne-seca na mochila. E podemos ferver a água e fazer mais um pouco de sopa. — Eu faço isso. Mas seus mantimentos estão acabando, Allie. — Não vou precisar de mais nada. Matt sentiu um peso no peito, mas ficou em silêncio. Pegou a panela com água e colocou-a para esquentar sobre o fogo. — Precisamos voltar amanhã — tornou a dizer. — Você pode ir. Eu vou ficar — ela repetiu. — Não seja tola. Você não quer morrer. — Você não sabe o que eu quero. — Sei, sim, e acho que você está maluca. Qualquer que seja o seu problema agora, vai parecer uma bobagem daqui a algumas semanas. — Você não sabe de nada. Além disso, estou com este problema por mais de oito meses. E não melhorou em nada. — Bem, a minha vida também não é das melhores. Mas tenho certeza de que ficará melhor quando eu tiver idade suficiente para não precisar de mais ninguém. Allie parecia estar pensando nisso, enquanto observava as chamas da fogueira. Matt acrescentou mais lenha ao fogo e também ficou olhando, imóvel por um instante. A água levou um tempo enorme para esquentar, mas pelo menos era algo que ele poderia fazer num tempo limitado, ao contrário daquela noite interminável. Era algo em que se concentrar, um objetivo certo para aqueles próximos minutos. E ajudou um pouco — Por que não trocamos de lugar agora? — Allie sugeriu. — Você pode esquentar-se no saco de dormir. Mas ele sabia que se entrasse no saco de dormir pegaria no sono em minutos. E tinha medo que ela saísse para a neve enquanto ele estivesse dormindo e desaparecesse para sempre. — Estou bem — disse. — De verdade. — Tem certeza? — Tenho. Matt parou de andar e sentou-se novamente junto ao fogo, ansiando pelo seu calor. Desejou ter um relógio para que tivesse uma idéia de quanto tempo demoraria para amanhecer. — Eu dormi mesmo por tão pouco tempo? — ela perguntou.
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— Você só cochilou, antes de acordar outra vez. — Era mentira, mas ele a disse sem remorso. Não queria discutir com ela sobre trocarem de turno. — Tudo bem. — Ela aceitou o fato. — Mas parece que estou tão desperta. — É por causa do frio. De qualquer forma, é melhor ficar acordada. Allie não respondeu, mas remexeu-se no saco de dormir, tentando encontrar uma posição mais confortável. — Escute — ele disse, depois de um instante. — Seja lá o que você esteja planejando fazer, quero que me prometa que vai esperar uns dois dias, para pensar melhor. — Por quê? — Porque preciso ter certeza de que você sabe mesmo o que vai fazer. Eu não conseguiria viver comigo mesmo, se você fosse em frente e fizesse algo maluco. — Isso não é justo! Eu não sou responsabilidade sua! — Sinto muito, Allie, mas você é minha responsabilidade desde a hora em que a encontrei. — Ninguém pediu para você me encontrar. Muito menos eu! — Não se comporte como uma criança. Tente pensar nisso como uma adulta. — Olhe só quem está falando. Como se você fosse um velho! — Sou dois anos mais velho que você. — Isso não significava grande coisa, e até ele sabia disso. — Pelo menos fale comigo sobre o que a perturba tanto. Talvez não seja tão ruim quanto pensa. — Certo — ela ironizou, emitindo um som de desgosto e baixando o rosto. — Escute — ele falou. — Vamos fazer um trato. Se você prometer não cometer nenhuma tolice amanhã, eu desço a montanha e vou buscar mais comida. — Como vou saber que você não contará a todo mundo que estou aqui? — Eu faço uma promessa. Nunca quebrei uma promessa, em toda minha vida. — E você não tem dinheiro. — Tenho um pouco. — Uns vinte dólares, que ganhara da Sra. Beaudry por um serviço de jardineiro. — Pois eu tenho dinheiro, bastante — ela disse, após um momento. — Posso lhe dar algum. — Tudo bem. Mas tem de prometer que não vai fazer nada enquanto eu não voltar. Espere pelo menos um dia e pense bem. Aquilo não estava muito distante do que ela planejara fazer a princípio, então assentiu. — Está bem. — Promete? — Prometo. E você tem de prometer, também. — Eu prometo. Não vou contar a ninguém onde você está. Ela pareceu satisfeita com isso. Quando a água esquentou, Matt encheu a caneca e misturou a sopa para ela. Depois, dividiu o pedaço de carne-seca. Allie abriu o zíper do saco apenas o bastante para retirar a mão.
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— Você também precisa comer — disse. Matt não se constrangeu em fazê-lo, agora que sabia que iria buscar mais comida para ela no dia seguinte. Mas não queria comer muito, pois ela precisaria de alimentos enquanto esperava que ele voltasse. Mas o pouco que comeu ajudou. A sopa aqueceu-o por dentro, justamente quando começava a ficar perigosamente frio. Esperava apenas conseguir descer aquela maldita montanha sem quebrar o pescoço, e depois voltar trazendo mais comida. Bem, ele faria isso porque precisava fazer. Era o único jeito de certificar-se de que Allie se manteria viva. E Matt tinha muita prática em fazer o que precisava ser feito. Capítulo VI A noite foi interminável. Earl cochilou numa cadeira perto da cama de Meg, que continuava deitada e completamente vestida. Ela havia se recusado a comer, apesar de toda a insistência dele, mas dormiu um pouco. Foi vencida pela exaustão, embora tivesse um sono inquieto. Um pouco antes de amanhecer, Midget e George chegaram para abrir o posto de comando. Midget trouxe uma muda de roupas para Earl, que tomou um banho e vestiu o uniforme limpo. Depois de dois dias, sentia que já estava parecendo um bicho do mato. Meg estava acordando quando ele voltou para o quarto. A primeira claridade da manhã mal penetrava pelas janelas, mas ele a viu sentar-se e afastar os cabelos do rosto. — Vá tomar um banho — ele sugeriu. — Vou preparar um desjejum para nós, e depois iremos nos juntar aos grupos de busca. As palavras dele imobilizaram-na por um segundo. Depois, ela pulou para fora da cama e correu para o banheiro. Ótimo, Earl pensou. Ele dissera a coisa certa. Não que tivesse alguma esperança de que os dois seriam capazes de conseguir algo mais do que os outros voluntários, mas ele não podia ficar nem mais um minuto parado ali e esperando. E Meg provavelmente sentia o mesmo. Desceu para a cozinha e deu graças a Deus por não ver Vivian nas proximidades. Seu humor não estava dos melhores e uma única palavra atravessada que ela lhe dirigisse seria capaz de fazê-lo explodir. Encontrou bacon, ovos e café, e começou a prepará-los. Fez algumas torradas e passou nelas uma grossa camada de manteiga. Tinham de alimentar-se bem, se fossem passar muito tempo no frio. O dia clareou um pouco mais e o que ele viu pela janela não o deixou nada satisfeito. A neve branca cobria tudo lá fora. Não estava muito espessa ali embaixo, mas Earl tinha certeza de que estaria bem mais profunda no alto das montanhas. Midget entrou pela porta da frente e foi encontrá-lo na cozinha. — O pessoal está reunindo-se lá fora novamente — informou. — Não são tantos quanto ontem, mas é compreensível. Eles precisam trabalhar. E era um dia de trabalho. Earl já esperava por isso. — Como está o tempo?
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— Melhorando. A temperatura está subindo. — Será que os aviões podem sair para outra busca? Midget encolheu os ombros. — Vou verificar. — Virou-se para sair, mas parou quando Meg entrou na cozinha. — Bom dia, Sra. Williams. Estamos prontos para retomar as buscas. — Obrigada, Midget — ela falou, mas seu tom de voz era quase indiferente e os olhos estavam vazios. Earl perguntou-se se estaria cometendo um erro permitindo que ela o acompanhasse. No estado em que se encontrava, provavelmente ela o atrapalharia um pouco. Porém, não teve coragem de impedi-la. Earl tirou o bacon da frigideira e deixou-o escorrer numa toalha de papel. Quebrou dois ovos para ela e três para si mesmo, e baixou o fogo. — Você vai comer — disse a ela. — Se não comer, não poderá ir comigo. Meg assentiu. Ele imaginou que segredos se ocultariam sob aquele olhar vago e perdido. E tinha receio de perguntar, pois um pressentimento lhe dizia que, se soubesse a verdade, sua vida mudaria para sempre. — Preciso fazer café para os voluntários — ela disse. — Eu faço isso — Vivian falou, entrando na cozinha. Foi direto para a cafeteira, sem nem mesmo olhar para a filha. Earl fez um esforço para manter a boca fechada. De repente, ocorreu-lhe que a tensão reinante naquela casa era quase o bastante para fazer com que ele tivesse vontade de fugir. E os silêncios... os silêncios tornavam-se cada vez mais longos e profundos. Havia algo extremamente errado ali, além da criança desaparecida. Depois do desjejum, Meg foi acabar de vestir-se para a caminhada e ele saiu para rever os mapas. Os voluntários tinham feito um bom trabalho ao relatar as distâncias que tinham sido percorridas, e Earl ficou desapontado ao ver que nenhum deles fora tão longe quanto ele havia esperado no dia anterior. Mesmo se Allie tivesse caminhado apenas pela metade do dia, antes do começo da chuva, ela ampliara tanto a área de buscas que era quase desanimador. Não havia gente suficiente para cobrir toda a região. E se a menina decidisse não responder quando alguém a chamasse, eles poderiam facilmente passar por ela. E se ela estivesse ferida e inconsciente... Bem, ele não podia ficar pensando nisso. De maneira alguma. Este tipo de pensamento era derrotista demais. O ar da manhã permaneceu gelado, mesmo depois que o dia clareou. Se as nuvens não se dissipassem, Earl tinha bem poucas esperanças de que a neve começasse a derreter. O vapor saía de suas narinas cada vez que respirava e suas orelhas já estavam doendo pelo frio. Quando Meg juntou-se a ele, Earl vestiu uma máscara de esquiar. — Vamos embora — disse. — Para onde? — Estive examinando os mapas. Há uma área diretamente acima da montanha que não seria muito difícil de alcançar partindo daqui, mas que ainda não foi vasculhada. — Por mim, tudo bem. Ele olhou-a.
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— Tem certeza de que quer fazer isso, Meg? Você não vai ajudar em nada se não conseguir fazer a escalada. Estaremos subindo pelas próximas duas horas, no mínimo. — Eu vou conseguir. Earl calculava que ela conseguiria, levada pela pura determinação. Passou as instruções aos outros poucos voluntários que havia naquele dia, e eles seguiram seus caminhos. Midget informou que os aviões não poderiam levantar vôo enquanto o teto estivesse tão baixo, o que só iria melhorar por volta do meio-dia. Por outro lado, os pilotos estavam confiantes de que seriam capazes de avistar Allie se ela estivesse se movendo, pois ela deixaria uma trilha visível na neve em qualquer parte que não estivesse coberta pelas árvores. Tal informação pareceu encorajar Meg. Ela endireitou o corpo e ergueu a cabeça. Nenhum deles mencionou a possibilidade de Meg ter congelado até a morte durante a noite, mas Earl sabia que ambos pensavam nisso. A primeira parte da subida não foi tão difícil, mas não demorou muito até que alcançassem o terreno mais íngreme, tendo de desviar-se das pedras e seguir por trilhas muito estreitas. A neve tornava tudo mais difícil. Quase toda a superfície estava escorregadia, aumentando o esforço que tinham de fazer. Depois de cerca de quarenta e cinco minutos Meg estava ofegante e começando a perder a coordenação dos movimentos. Earl obrigou-a a parar e ofereceu-lhe uma barra de granola. Ela comeu como se fosse um remédio. — Você tinha razão — ela disse. — Sobre o quê? — Foi tolice minha ter vindo. — Ela fez um gesto largo, indicando as árvores que os rodeavam. — É uma montanha enorme. Poderemos passar por ela sem vê-la. De alguma forma... De alguma forma, ela não queria acreditar nisso. E Earl compreendia. — Eu estou aqui, não estou? — É impossível, não é, Earl? Se Allie não quiser ser encontrada, ou se... Bem, é impossível. — Ei, espere um pouco. Os voluntários já cobriram esta área e sabemos que ela não está por aqui. Em mais uma hora chegaremos ao ponto em que as buscas ainda não foram feitas e começaremos a procurar de verdade. Você vai sentir-se melhor, então. O vento soprou de repente, erguendo uma nuvem de neve que atingiu-lhes os rostos. Meg limpou o rosto e mordeu a barra de granola com determinação. — Não posso perder a esperança — disse. — É claro que não. De qualquer maneira, ainda é muito cedo. — É mesmo?— Ela parecia quase distraída. — Está tão frio... Earl observou-a virar-se e olhar para a montanha através das árvores, como se esperasse que seus olhos detectassem algo animador. Ou como se estivesse calculando o poder de sua oponente. Ele comeu a sua granola, pulando de um pé no outro para manterse aquecido. Sabia que iriam encontrar Allie. A única dúvida era se a encontrariam a tempo. Ele estava tentando não se lembrar de todas às
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vezes em que só descobriram o paradeiro de pessoas perdidas na montanha na primavera, depois que a neve derretia. Minutos depois recomeçaram a subida. Meg parecia um pouco melhor mas, depois de vinte minutos, sua coordenação começou a vacilar novamente. Earl viu-a fazer três tentativas de subir por uma rocha escorregadia, algo que normalmente teria sido feito logo na primeira. Pensou que não deveria tê-la levado consigo. Tal pensamento encheu-o de temor. Ele gostava de Meg, mas a profundidade de seus sentimentos era algo que recusava-se a analisar. Ela fora esposa de seu melhor amigo, pele amor de Deus, e ele sempre se considerara um sujeito leal e respeitador. Durante todos aqueles anos ele nutrira um sentimento especial por ela, mas sempre o rotulara de amizade. Porém, enquanto caminhavam, Earl apanhou-se lembrando-se da primeira vez em que a vira. Era melhor do que ficar pensando em Allie e em onde ela poderia estar. Era uma fuga, por apenas uns poucos instantes e, embora se sentisse culpado por isso, estava ansioso pelo alívio que as lembranças lhe forneceriam. Meg era recém-casada, na época, apenas exibindo os primeiros sinais da gravidez. Mostrara-se tímida, quase hesitante em falar com ele, parecendo um tanto intimidada por Earl e por seu marido, como se ambos fossem grandes e ruidosos demais. E parecera tão delicada, tão frágil. Exatamente como Allie. Desde aquele primeiro encontro, surgira nele um impulso protetor em relação a Meg, que nunca mais se dissipara. Tal sentimento estendera-se a Allie quando ela nascera, mas por Meg sempre fora muito mais forte e profundo. Houve vezes em que perguntou-se se Bill e Meg realmente seriam felizes juntos, mas sempre afastava as dúvidas como se fossem geradas por um monstro que vivia em alguma parte obscura de seu cérebro. Mas, para ele, não era nenhum segredo que sempre desejara ter aquele tipo especial de relacionamento. E tampouco era segredo que o mais perto disso que chegara havia sido justamente com Meg. A mulher do seu melhor amigo. Meg escorregou novamente, e desta vez caiu e emitiu um grito ao bater no chão. Earl correu para ajudá-la. — Você se machucou? — Não, estou bem. — Ela enviou-lhe um sorriso triste. — Estou apenas... frustrada. Ele ajudou-a a levantar-se e, quando retomaram a caminhada, permaneceu bem junto dela. Uma queda seria particularmente perigosa, nas condições de frio e umidade. Uma perna quebrada criaria problemas nos quais ele nem sequer queria pensar. Deveria ter insistido para que ela ficasse em casa. Mas não fizera isso. E, agora, tinha de certificar-se de que ela voltaria em segurança, mesmo se não conseguissem encontrar Allie. — Quem está ali? Earl ergueu a cabeça e olhou na direção que ela apontava. Uma pessoa descia a encosta, vindo na direção em que eles estavam. — Allie? — Meg murmurou, a voz entrecortada. — Não. — Não era Allie.
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— Não — ela concordou, baixinho. Conforme a pessoa aproximava-se, Earl reconheceu quem era. — Matt Dawson. O que diabos ele está fazendo aqui sozinho? — Chamou em voz alta: — Ei, Matt! O rapaz parou. Depois, com o que parecia relutância, começou a seguir na direção deles. Quando chegou mais perto, Earl perguntou: — O que está fazendo aqui? — Procurando Allie — disse o jovem, com a expressão séria. Baixou os olhos, evitando encará-los. — Sozinho? Não sabe que isso é perigoso? Matt encolheu os ombros. — Os homens não queriam que eu os acompanhasse. Eles não gostam de mim. Por isso, vim sozinho. Earl olhou-o de cima a baixo. — Você nem mesmo está usando roupas apropriadas. — Já percebi. — O tom de voz de Matt era ríspido. — Vou vestir roupas mais quentes. — Boa idéia. Mas não volte para cá sozinho. Não quero ter de começar a procurar duas pessoas desaparecidas. — Tudo bem. — Matt deu de ombros, como se isso não importasse. — Você viu alguma coisa? — Meg perguntou, a voz contida de esperanças. — Qualquer coisa? — Não. Earl percebeu que Meg vacilava e, instintivamente, segurou-lhe a mão. — Isso não significa nada, Meg. — Virou-se para o rapaz. — Onde você esteve procurando? — Lá pelos lados da velha cabana dos mineiros. — Matt fez um gesto com a cabeça. — Achei que ela poderia ter se escondido ali. Era exatamente o local que Earl estava planejando verificar, e ele sentiu o coração apertar-se. — Você checou tudo, por lá? — Em toda parte — o rapaz respondeu. — Da maneira como o senhor instruiu. Earl sentiu um súbito peso no peito e deu-se conta de que suas últimas esperanças estavam se dissipando. Não atreveu-se a olhar para Meg, temendo que ela visse o que realmente lhe passava pela mente. — É melhor voltarmos para casa, Meg — disse. Ela assentiu, baixando a cabeça. — Os aviões começarão as buscas daqui a pouco. Acredito que conseguirão descobrir alguma coisa, Meg. Allie deve ter acendido uma fogueira. Mas Meg não disse nada. Apenas virou-se e começou a descer a montanha com passos trôpegos. Matt sentia-se péssimo, enquanto os seguia. Quando prometera a Allie não dizer a ninguém onde ela estava, imaginara que simplesmente não precisaria fornecer a informação. Nunca pensara que teria de mentir para a mãe dela. Aquela era a primeira vez em sua vida em que se encontrava numa situação na qual todas as opões eram erradas. Porém, não podia quebrar a promessa. Isso poderia parecer engraçado para alguém cujo pai
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estivera quebrando promessas desde que ele nascera, ou talvez não tivesse graça nenhuma. Matt sabia apenas que era errado quebrar uma promessa, e havia extraído uma promessa de Allie, em troca da sua. Não podia trair sua confiança. E tampouco podia correr o risco de fazer qualquer coisa que a levasse a quebrar sua promessa para ele. Assim, para tranqüilizar sua consciência, fez uma promessa a si mesmo. Jurou que assim que retornasse à montanha com os mantimentos, encontraria um meio de convencer Allie a voltar para casa. Quase duas horas depois, quando finalmente chegaram à casa, Meg convidou-o para entrar e comer alguma coisa, mas Matt recusou. Não queria estar perto dela por nem mais um minuto, pois sua determinação começava a fraquejar. Correu direto para seu velho carro, comprado com o que conseguia em "bicos" que fazia desde os seus doze anos, e disparou para a cidade. Só então deu-se conta de que o xerife nem mesmo lhe perguntara por que ele não fora para a escola naquele dia. Earl tinha um radar. Podia ser chamado de intuição, sexto sentido, qualquer coisa assim, mas ele sempre pensava nisso como um radar. E havia algo em Matt Dawson que fez com que seus alarmes disparassem enlouquecidos. Quando chegaram, ele não acompanhou Meg para dentro da casa e foi para o posto de comando falar com George, que o informou que Midget saíra para almoçar. — Nenhuma novidade — disse George. — Mas parece que os aviões terão condições de decolar a qualquer momento. Earl olhou pela porta do posto de comando e decidiu que isso era mais uma vã esperança. As nuvens estavam ainda mais baixas do que de manhã, e mais escuras. — Escute — falou para George. — Peça pelo rádio para alguém seguir Matt Dawson. Ele está a caminho da cidade. É para segui-lo, descobrir o que ele faz e informar-me. E não parem de segui-lo antes de receber minhas ordens. George assentiu. — OK. Mais alguma coisa? — Sim. Ele não pode nem desconfiar que esteja sendo vigiado. Os pensamentos mais loucos passavam pela cabeça de Earl, desde a idéia de um romance do tipo Romeu e Julieta até estupro e assassinato. Se alguém lhe perguntasse, ele diria que Matt Dawson não era capaz de estupro nem de assassinato, mas com a menina desaparecida e o rapaz agindo de maneira tão estranha, naquele momento ele já não apostava em mais nada. Sentiu o estômago contorcer-se, mas sabia que não era de fome. As coisas que pensava eram sombrias e feias demais, e isso o deixava enojado. Foi para a casa verificar como estava Meg, mas ela trancara-se no quarto. Vivian estava na sala, novamente lendo a Bíblia em voz alta, num murmúrio monótono. Alguma coisa estava tão errada naquela casa que chegava a irritálo. Que tipo de mãe seria capaz de não oferecer conforto para a filha, numa circunstância como aquela? Por que Vivian era tão fria, e por que Meg agia como se merecesse isso? Earl não sabia qual das duas ele tinha mais vontade de sacudir, mas se contentaria com aquela que lhe falasse
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primeiro. E o que Vivian quisera dizer, quando falara que ele não conhecia Meg? Tudo aquilo era enervante. Voltando ao posto de comando, escutou os relatórios que chegavam. Os voluntários não estavam encontrando nenhuma pista, os aviões não tinham decolado. Não demoraria muito até que as equipes de busca começassem a retornar, por causa do frio. Mesmo sabendo que isso era inevitável, Earl não gostava nem um pouco da idéia. Matt Dawson fora para o supermercado assim que chegara à cidade, de acordo com o relato que o oficial encarregado de segui-lo lhe passou pelo rádio. Comprou mantimentos leves. Sopa desidratada, carne-seca, algumas barras de chocolate e de granola. E duas latas de querosene. Ouvindo isso, Earl sentiu um arrepio na nuca. Depois, o rapaz foi para uma loja de roupas usadas e comprou um casaco. Isso parecia normal. Afinal, a jaqueta velha que Matt estava usando certamente não o mantinha muito aquecido. Comprou também um par de luvas de lã e uma máscara de esquiar. Em seguida, passou na loja de ferragens e comprou uma mochila e um machadinho. Foi então que os alarmes de Earl tornaram-se ensurdecedores. — Ele está saindo da cidade — o oficial informou pelo rádio. — Está voltando para a casa dos Williams. — Onde diabos ele conseguiu dinheiro para tudo isso? — George perguntou. Earl não respondeu, mas pensava nos duzentos dólares que Allie levara consigo. Para Matt, esta deveria ser uma quantia enorme de dinheiro. Talvez demais, até. Mas ele não queria acreditar no que estava pensando, tanto para o bem de Allie como para o de Matt. — Ele está saindo da estrada — o policial informou. — Estamos mais ou menos a uns dois quilômetros da casa da Sra. Williams. Um bom lugar para iniciar a subida da montanha, Earl pensou. Quase tão bom quanto à própria casa de Meg, se ele estivesse se dirigindo para a cabana abandonada. Earl pensou rapidamente, decidindo qual seria a melhor maneira de lidar com a situação. Caso se limitassem a seguir o rapaz, ele poderia perceber e despistá-los. Se o confrontassem, Matt poderia negar tudo e recusar-se a levá-los até Allie. Decidiu que seria melhor segui-lo. — Passe por ele e volte para a casa — disse ao policial. — Encontrese comigo aqui. Nós vamos atrás do garoto. Vinte minutos depois, ele e Sam Canfield seguiam a trilha de Matt Dawson através da floresta coberta de neve. Meg já havia chorado até a exaustão quando finalmente saiu do quarto. A esperança desvanecia-se a cada minuto que passava, mas nem mesmo a morte da esperança, ou as lágrimas que chorara, foram capazes de aliviar a pressão em seu peito e o ardor em sua garganta. De olhos secos, foi para o quarto de Allie e sentou na cama, abraçando seu travesseiro. Podia sentir o cheiro de sua filha, e isso foi como uma garra esmagando-lhe o coração. Allie, sua filhinha. Olhando em volta do
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quarto, viu os cartazes nas paredes, as bonecas e a pilha de revistas para adolescentes. Havia um bonequinho verde de um alienígena, com os olhos saltados, encostado no computador. Allie o chamava de Herm e, durante algum tempo, dormira abraçada a ele todas as noites. Numa das paredes, estava o diploma emoldurado que ela recebera como prêmio na feira de ciências, por um trabalho de geologia. Meg lembrou-se do orgulho que sentira quando Allie ganhara o segundo lugar. A coleção de pedras, todas cuidadosamente rotuladas e presas num mostruário, estava desaparecida. Bem como os Cds das "Spice Girls" que Allie ouvia o tempo todo. Tais lacunas refletiam o enorme buraco que se abrira no peito de Meg. Ela achava que não conseguiria suportar esta perda. Na verdade, acreditava que não sobreviveria. Poderia lidar com qualquer coisa, mas não isso. Ah, Deus, isso não. Se alguma coisa acontecesse à sua filha, não lhe restaria mais nenhum motivo para viver. O medo e a dor invadiramna por inteiro, paralisando-a. Não deveria ter permitido que Earl a trouxesse para casa tão cedo, pensou agora. Não importava que Matt havia vasculhado a área para onde estavam se dirigindo, não importava o frio e o cansaço que ela sentira. Deveria haver outros lugares onde poderiam procurar. Se ela não estivesse com tanto frio e cansada a ponto de não conseguir pensar direito, ela teria pensado nisso. E, afinal, onde estava Earl? Por que não viera lhe dizer se os aviões tinham decolado? Um rápido olhar pela janela lhe deu a resposta. Como não percebera que o dia havia escurecido novamente e que as nuvens estavam escuras e baixas, ocultando o alto das montanhas? Mesmo se Allie tivesse conseguido sobreviver à noite anterior, como seria possível sobreviver a mais uma como aquela? Levantando-se num pulo, desceu as escadas. Ignorou os murmúrios da mãe na sala e procurou Earl em toda parte. Quando não o encontrou, vestiu o casaco e foi para o posto de comando. George virou-se rapidamente quando ela abriu a porta do trailer. — Ah... Olá, Sra. Williams. Nenhuma novidade, eu receio. Os voluntários estão voltando. — E quanto aos aviões? — Nem chegaram a decolar. Como se ela não tivesse percebido. — Onde está Earl? — Ele voltou para a montanha. Por um instante Meg achou que iria desmaiar. Agora, tinha de se preocupar com duas pessoas que estavam lá em cima, no frio. Quanto mais subiam, pior o tempo ficava. Earl e Sam trocavam olhares, mas continuavam seguindo em frente. As nuvens os cercavam, agora, mas pelo menos ainda não começara a nevar. A trilha que Matt deixara era fácil de seguir e, naquele ponto, Earl já tinha quase certeza de que estavam indo direto para a velha cabana dos mineiros. O dia estava escurecendo e, embora ainda faltassem algumas horas para o pôr-do-sol, Earl começou a imaginar Se conseguiriam enxergar o caminho de volta. O frio estava tão intenso que tinham de parar com freqüência para recobrar o fôlego, mas não podiam demorar-se demais senão corriam o risco de congelar. No entanto, a julgar pelas pegadas de Matt, parecia
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que o rapaz também fazia pausas mais freqüentes. — O que acha que ele está pretendendo fazer? — Sam finalmente perguntou. — Nem quero pensar nisso — Matt respondeu. — Mas acho que ele sabe onde está Allie. — Bem, isso faz sentido. Não posso imaginar qualquer outro motivo que levasse o garoto a subir a montanha com um tempo destes. — Eu também não. Earl e Sam trabalhavam juntos há muito tempo, e pensavam mais ou menos da mesma maneira. — É claro... — Sam prosseguiu, num tom de ironia. — Olhe só para nós, como dois idiotas. Que outro motivo teríamos para estar aqui? — Nenhum. — Por outro lado, talvez o garoto tenha apenas brigado com o pai e decidido fugir também. Earl balançou a cabeça. — Havia algo muito estranho no jeito dele, quando falou comigo e com Meg. — Bem, espero que você esteja certo. Sei que Meg não está mais agüentando, e estou começando a achar que nem eu agüento mais. Por que diabos a menina foi fazer uma tolice destas? — Eu gostaria de saber. Mas pretendo descobrir. E acabaria descobrindo, Earl prometeu a si mesmo. Não queria mais saber das evasivas de Meg. Iria exigir que ela lhe explicasse um bocado de coisas, porque, fosse lá o que estivesse tão errado naquela casa, provocara a fuga de sua afilhada. E, quer ela gostasse ou não, isso acabara se tornando um problema seu, também. Estavam perto da cabana, agora. Earl fez um sinal para Sam diminuir o passo, para que não assustassem o rapaz, e ele assentiu, entendendo. Movendo-se com toda cautela,seguiram os passos de Matt através das árvores até conseguirem avistar a cabana mais adiante. Earl estava pensando em qual seria a melhor maneira de abordá-lo quando ouviu um som que fez seu sangue gelar. — Não! O grito de Matt cortou o ar, depois foi sufocado pela neve que começava a cair. Capítulo VII Earl disparou para a frente, abandonando toda a cautela. Escutava o som abafado dos passos de Sam atrás de si. Irromperam pela clareira, mas não avistaram Matt em parte alguma. — Não! Desta vez, o grito foi mais baixo, mais angustiado, mas indicou a Earl a direção de onde vinha. Ele correu pela encosta acima até chegar num desfiladeiro rochoso, escorregando na neve e quase torcendo o pé numa pedra. Encontrou Matt parado na beirada do desfiladeiro, olhando para baixo.
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Matt ouviu os passos e virou-se para encará-los, a expressão tão tensa que Earl sentiu o coração parar. — Ela prometeu! — Matt gritou. — Prometeu que não faria nada! Subitamente Matt não conseguia mais respirar. De repente, sentiu que seus ombros derretiam-se, dissolvendo-se numa poça de fraqueza. Frio e calor invadiam-no, em ondas sufocantes. No fundo do precipício, Allie jazia como uma boneca quebrada. — Ela prometeu! — Matt continuava dizendo, agora aos prantos. — Ela prometeu! Earl ignorou-o. — Sam, veja se consegue comunicação pelo rádio. Precisamos de socorro imediatamente. Sam provavelmente assentiu, mas Earl nem olhou ele. Não conseguia afastar os olhos do pequeno corpo de Allie no fundo da ravina. Sem pensar duas vezes na própria segurança, começou a descer, escorregando, quase caindo, deslizando. Atrás de si, ouvia a voz de Sam falando no rádio. A neve caía com mais força, agora, como os flocos brancos numa bola de vidro. Quando alcançou o fundo viu-se parado sobre alguns centímetros de água congelada. Parte da água vazou através do gelo e penetrou em suas botas, mas ele mal percebeu. Arrastando-se até onde Allie estava, enfiou a mão pela abertura de seu casaco e procurou-lhe o pulso. Os lábios dela estavam arroxeados mas as faces mantinham-se rosadas, o que era um bom sinal. Sentiu o pulso. Por um instante o alívio perpassou-o com tal força que ele não pôde se mover. Então, gritou para cima: — Ela está viva! O seu treinamento como policial falou mais alto. Earl obrigou-se a esquecer que era Allie quem estava ali, tão imóvel e quieta, e começou a verificar se havia alguma fratura. Quando tocou-lhe o fêmur esquerdo, sentiu uma falha. Ao seu toque, ela gemeu sem recobrar a consciência, mexendo a cabeça de um lado para outro. Era um bom sinal, ele pensou outra vez. Provavelmente ela não quebrara o pescoço nem a coluna. Earl levantou a cabeça e, através da neve, viu que Sam e Matt olhavam para baixo, ansiosos. — Precisamos tirá-la daqui de qualquer maneira. Matt, você tem um saco de dormir? Ou um cobertor? — Ela tem um saco de dormir, xerife — ele respondeu. — Vá buscá-lo. E traga também a sua machadinha. Sam? Conseguiu falar com alguém? — Só estou ouvindo estática. Vou continuar tentando. — Quando Matt voltar com o saco de dormir, traga-me a corda aqui para baixo, está bem? — Certo, chefe. Enquanto esperava, Earl ficou falando com Allie, tentand0 acordála, mas ela continuava inconsciente. Tirando o próprio casaco estendeu-o sobre as pernas dela, que estavam cobertas apenas pela calça jeans. Depois, rezou com mais ardor do que jamais rezara em toda sua vida. Dez minutos mais tarde Sam e Matt também desceram. Juntos, cortaram algumas faixas de pano para fazer um torniquete na perna dela. Allie gemeu quando eles amarraram-na, mas nem assim acordou.
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Quando Earl e Sam trocaram um olhar, Earl viu refletido nos olhos do amigo o mesmo medo que sentia. Aquilo não estava nada bem. Rasgaram mais pedaços de pano, fizeram alguns furos no saco de dormir de Allie e depois, com todo cuidado, deitaram-na ali. Ao fecharem o zíper, ela estava imobilizada numa espécie de maca, com as tiras amarradas nos quatro cantos. Levá-la para cima pela encosta da ravina foi difícil, mas eles conseguiram à custa de alguns arranhões e hematomas nos joelhos e tornozelos. Lá em cima, pararam apenas o bastante para Sam fazer outra tentativa com o rádio. Nada. ainda, além da estática. A neve caía pesadamente e o mundo tornara-se cinza escuro. Aquilo não era nada bom, Earl tornou a pensar enquanto carregava um dos lados da maca. Não era nada bom mesmo. E ainda nem perguntara a Matt Dawson o que diabos estava acontecendo ali. Allie não era pesada, mas o terreno era íngreme e a neve o tornava escorregadio, o que dificultava ainda mais a caminhada. De tempo em tempo Sam tentava a comunicação pelo rádio. Matt revezava-se com Earl e Sam para carregar a maca, mas já estava cansado e exaurido. Mais fatigado do que deveria, Earl pensou, considerando-se que subira a montanha tantas vezes quanto ele próprio, naquele dia. — O que aconteceu? — ele perguntou a Matt, ofegando, — O que você e Allie estavam fazendo aqui? — Nada! Isto é, eu a encontrei ontem e ficamos presos na cabana por causa da neve. — Então por que não contou a mim e à mãe dela onde ela estava, hoje cedo? — Allie me fez prometer que eu não diria a ninguém. Tive medo de que, se quebrasse minha promessa... Matt interrompeu-se, fazendo com que Earl ficasse ainda mais desconfiado. — Medo de quê? — ele insistiu. Mas Matt limitou-se a balançar a cabeça. — Sobre o que você estava gritando? O que ela lhe prometeu? Novamente, o rapaz balançou a cabeça em negativa. — O senhor vai ter de perguntar a ela, xerife. — Escute aqui, garoto, Allie está às portas da morte e eu tenho o direito de saber o porquê. Ela é minha afilhada, pelo amor de Deus! Matt tomou-lhe o lugar, dando-lhe a chance de recobrar o fôlego e acalmar um pouco a raiva. — Escute, Dawson, a situação está suspeita como o diabo. A menina desaparece e três dias depois nós o encontramos parado diante do corpo dela desacordado. Eu poderia trancá-lo na cadeia por isso, por um bom tempo. Então, talvez seja melhor você nos dizer o que está acontecendo. — Eu já disse! Eu a encontrei ontem, nós ficamos presos por causa da neve e ela me fez prometer que não contaria a ninguém onde estava! Foi só isso que aconteceu. — E o que ela lhe prometeu? Matt caminhou em silêncio por algum tempo, mal parecendo reparar quando quase tropeçou. Seu queixo tremia de frio. Quando o rapaz tornou a escorregar, Earl empurrou-o para o lado e pegou novamente a maca. Seus braços doíam, agora, e o breve intervalo de
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nada adiantara. Então Matt começou a falar, surpreendendo-o. — Ela prometeu que não iria se matar, se eu prometesse não contar a ninguém onde estava. O choque fez com que Earl gelasse, sentindo um frio mais intenso do que aquele provocado pela neve. Um frio que vinha do fundo da alma. — Pegue aqui para mim, garoto. Matt trocou de lugar com Sam, que tentou novamente o rádio. — Não acredito nele — Sam falou para Earl. — O rapaz gritou "não", e depois encontramos Allie no fundo da ravina. Talvez eles tenham brigado e ele esteja tentando encobrir o fato de que a empurrou. Era mais fácil acreditar nisso do que na idéia de que Allie pudesse querer suicidar-se, mas não muito. Não depois de ler o bilhete que ela deixara. — Acho que não — Earl falou, relutante. — Acho que não. Vinte minutos depois, Sam conseguiu falar com George pelo rádio. O socorro estava a caminho. Meg estava parada na porta de correr nos fundos da casa, olhando a neve que caía. As nuvens quase tocavam as copas das árvores, e o dia escurecera tanto que parecia o final da tarde. Suas costas e pernas estavam rígidas e doloridas por ficar tanto tempo sem se mover, mas ela nem reparou. Encontrava-se num tipo de animação suspensa, como se tudo em seu interior tivesse se tornado imóvel e silencioso. Não conseguia nem mesmo pensar. Já desistira de pensar em qualquer coisa. Tudo o que fazia era sentir, e os sentimentos que a invadiam eram o medo, o pânico e a ansiedade. Allie, volte para casa. Meu Deus, por favor, faça com que Allie volte para casa. As palavras perpassavam-lhe a mente há tanto tempo que ela mal as escutava. Cada músculo de seu corpo estava tenso, mas ela nem percebia. Allie... — Está acontecendo alguma coisa — Vivian chamou de dentro da casa. Meg foi arrancada de seu torpor por um instante e correu para onde Vivian estava, na janela da sala. — O que foi? — ela perguntou. — Chegaram alguns carros. E uma ambulância. Meg praticamente empurrou a mãe e olhou pela janela. O que viu a fez voltar dolorosamente à vida. Três carros da polícia. A ambulância da equipe de resgate... Ah, Deus, alguém estava ferido. Pegando o casaco no vestíbulo, vestiu-o e correu para fora. — O que aconteceu? — perguntou a um dos homens que retiravam a maca dobrável da parte de trás da ambulância. Os homens entreolharam-se, depois um deles respondeu: — Um ferido está sendo trazido da montanha. — Quem? Quem está ferido? — O coração de Meg disparava com tanta força que chegava a doer e, quando não obteve resposta, teve ímpetos de gritar. Saiu correndo até o posto de comando e escancarou a porta do trailer. — George, o que está havendo? Preciso saber, agora!
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Ele retirou os fones de ouvido e olhou para ela. — Eles encontraram Allie — disse. — Ela está viva, mas com a perna quebrada. Sam e Earl estão trazendo-a para cá. Meg teve de agarrar-se à porta para não cair. — Tem certeza? É grave? Ela está bem, mesmo? — Tudo o que sei é sobre a fratura na perna. E, sim, ela está bem mesmo. Meg deixou-se escorregar para o chão, fraca demais para manterse de pé, exausta demais para chorar. Ficou sentada ali no degrau, vendo a equipe de busca recolher os suprimentos e começar a subir a montanha com dois policiais. Uma perna fraturada. Graças a Deus, se fosse apenas uma fratura na perna. Isso poderia ser curado. Mas o restante provavelmente seria mais difícil de curar. Só que Meg não conseguia pensar nisso agora. Pensava apenas que sua filha estava voltando e que, dali a pouco, ela poderia abraçá-la e lhe dizer o quanto a amava. Teria de esperar só mais um pouco. Após um momento, suas forças retornaram e ela pensou que precisava fazer café e preparar algo para os homens comerem. Eles estariam com frio, quando chegassem, especialmente Earl e Sam. E Allie também precisaria de uma bebida quente... Correu de volta para casa, onde encontrou Vivian na cozinha, fazendo sanduíches e esquentando uma enorme panela de sopa no fogão. — Allie está bem! — Eu ouvi. — Uma fratura na perna, mas isso pode ser curado! — Ao contrário de algumas coisas — disse Vivian. Meg virou-se para a mãe. — O que quer dizer com isso? — Você deixou aquela menina solta demais. Isso jamais teria acontecido se você me desse ouvidos! Deus, Meg pensou. Sua mãe não conseguia suavizar-se nem mesmo com a alegria de saber que Allie estava bem. Sentiu um fluxo de raiva tão forte a ponto de cegá-la por um instante. E, como se fosse à distância, ouviu a própria voz dizer: — Nada disso jamais teria acontecido se eu não tivesse lhe dado ouvidos anos atrás. Ouviu Vivian ofegar, mas não se importou. Na verdade, nada mais importava, exceto o fato de que Allie estava viva. Os voluntários emergiram da mata uma hora depois, trazendo Allie na maca dobrável. Meg correu para o lado da filha e prendeu o fôlego ao ver o quanto a menina estava pálida e gelada. — Allie... Allie? O pessoal do resgate continuou andando na direção da ambulância e Meg tropeçava enquanto tentava acompanhá-los. — Allie, minha querida... Subitamente um braço enlaçou-lhe os ombros, e ela mergulhou no abraço forte e reconfortante de Earl pela primeira vez desde a morte de Bill. — Meg... — ele disse. Ela olhou-o, livre do medo o suficiente para perceber sua aparência exausta, os olhos fundos. E os lábios arroxeados de frio.
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— Você está bem? — perguntou, encontrando espaço dentro de si para preocupar-se com outra pessoa além de Allie. Talvez, mais até do que deveria. — Estou bem. Escute, você precisa saber que Allie... O coração de Meg parou. — O quê? O quê? Os lábios dele apertaram-se, bem como seus braços em torno dela. —Allie está inconsciente desde a hora em que a encontramos. Sentindo o mundo girar, Meg fechou os olhos. — Ah, meu Deus... — sussurrou. — Meu Deus... — É bem provável que ficará tudo bem — ele disse. — Mas ela sofreu uma queda feia. Vá com ela na ambulância, está bem? Encontro com você mais tarde. Meg queria o apoio de Earl mais do que nunca, mas ele ajudou-a a entrar na ambulância e depois virou-se, falando com Sam: — Leve o garoto Dawson para interrogatório. As portas da ambulância fecharam-se e logo em seguida o veículo pôs-se em movimento, enquanto os paramédicos começavam a cuidar de Allie. Meg estava sozinha, sem nenhum apoio no mundo, sem nada além das lembranças de tudo o que fizera de errado. Earl reuniu-se a Meg na sala de espera do pronto-socorro quase uma hora depois. Já vestira roupas secas e deixara Matt Dawson aos cuidados de Sam, esperando que ele pudesse arrancar mais informações do rapaz. Meg permanecia com os olhos fixos na parede, retorcendo as mãos constantemente. Parecia uma mulher a quem fora prometido que tudo estaria bem, mas que acabara descobrindo que tudo continuava tão mal como sempre estivera. — O que o médico falou? — Earl perguntou enquanto sentava ao lado dela numa cadeira de plástico. — Ela ainda está inconsciente. A perna foi imobilizada e agora estão fazendo alguns exames. — Será que precisa ser levada para Denver? Naquela cidade pequena os recursos médicos eram limitados. Se Allie precisasse fazer uma tomografia, teria de ser removida para um hospital mais bem equipado. — Ainda não. O médico disse que seus reflexos estão bons e quer fazer outros exames, antes de decidir enviá-la para Denver. — Bem, essa é uma boa notícia. Meg assentiu, mas seus lábios tremiam visivelmente. — O que aconteceu a ela, Earl? Ele não podia responder esta pergunta e, sem dúvida, aquele não era o momento de lhe relatar o que Matt dissera, sobre Allie estar pensando em suicídio. — Estamos tentando descobrir, Meg. Mas parece que ela simplesmente caiu. — E quanto a Matt Dawson? Por que você o levou para ser interrogado? Earl censurou-se por ter deixado que ela ouvisse sua conversa com Sam. Deveria ter esperado alguns minutos antes de passar as instruções
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ao companheiro. — Matt a encontrou — respondeu, esperando que o assunto se encerrasse pelo menos por enquanto. Meg não insistiu, limitou-se a assentir devagar, desajeitadamente, como se seu corpo fosse uma máquina desconhecida, que ela não sabia muito bem como manejar. — Parece que estou tendo alguma dificuldade em absorver tudo isso — ela disse, baixinho. — Eu sei. Eu também estou. Earl passou o braço em seus ombros e ficou aliviado quando ela recostou-se nele. Não podia lembrar-se de quantas vezes quisera reconfortá-la daquela maneira, mas nunca tivera coragem, temendo que ela não aceitasse seu apoio. — Não é possível, não é? — O quê? — Que Deus tenha me devolvido Allie, para depois tirá-la de mim novamente. Earl estava mais inclinado a acreditar que Deus era capaz de fazer qualquer coisa, mas preferia morrer a dizer isso a ela. — Acho que não, Meg. — Eu também acho. — Ela respirou fundo, tremula. — Não posso acreditar que algo assim vá acontecer. Ela precisa ficar bem. Earl assentiu, lutando contra a sensação de impotência que obscurecia-lhe a mente. Não acreditava em finais felizes. Já testemunhara muitas desgraças em sua vida, e ele próprio já passara por experiências terríveis. Mas, dessa vez, estava determinado a não entregar-se à sombria sensação de desânimo que o assaltava. Desta vez precisava, desesperadamente, acreditar que haveria um final feliz. — Sra. Williams? Meg deu um pulo de susto e afastou-se de Earl, olhando para cima. O Dr. Dekker estava a poucos passos de distância, as mãos enfiadas nos bolsos do avental branco. Era um médico jovem e recém-chegado em Whisper Creek, mas, graças às virtudes de seu trabalho quase todos na cidade o conheciam. — Boas notícias — disse o médico. — Allie acordou. — Ah, graças a Deus! Meg começou a chorar. Instintivamente, virou-se na direção de Earl, que abriu os braços e aconchegou-a contra o peito, permitindo que ela pressionasse o rosto em seu ombro. Allie estava acordada. A tensão insuportável esvaiu-se e ele baixou a cabeça, roçando o rosto nos macios cabelos de Meg. O Dr. Dekker deu-lhes um minuto, depois tornou a falar: — Vocês podem entrar para vê-la. Ela está um pouco confusa, mas sabe quem é e está chamando pela mãe. No mesmo instante Meg afastou-se de Earl e levantou-se. Ele também ficou de pé, pronto para segui-la, mas então se deu conta de que talvez Meg não quisesse sua companhia. Talvez não lhe fosse permitido compartilhar daquele momento. Essa não era uma sensação nova para ele, de não pertencer a um grupo, de ser aquele que fica de fora. Earl passara toda sua vida sentindo-se assim. Mas daquela vez a familiaridade não tornou a situação mais fácil de aceitar. Ele precisava ver Allie.
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Meg virou-se e tomou-lhe a mão. — Ela vai querer vê-lo também. — Apenas pessoas da família — Dekker intercedeu. — Earl é da família — Meg falou com firmeza. — É o padrinho de Allie.
O médico encolheu os ombros. — Tudo bem. Ela está no último compartimento à esquerda — disse, apontando para uma porta que dava acesso a um corredor. — Estamos preparando um quarto para que seja removida imediatamente. É provável que tenha de passar a noite aqui, mas creio que você poderá levá-la para casa amanhã cedo. Meg já disparava pelo corredor, e Earl seguiu-a de perto. Precisava ver com seus próprios olhos que Allie estava acordada e consciente. Depois, prometeu a si mesmo, iria embora e deixaria Meg a sós com a filha. Allie de fato estava acordada e começou a chorar assim que avistou a mãe. — Mamãe... Earl ficou parado na porta, permitindo que mãe e filha tivessem privacidade. Podia ouvi-las chorando e Meg dizendo sem parar: — Allie... Ah, Allie... Fiquei tão preocupada, meu benzinho... E a menina soluçando violentamente: — Desculpe, mamãe... Desculpe... Aquilo parecia bom, ele pensou. Principalmente Allie pedindo desculpas. Qualquer que fosse a idéia maluca que a fizera fugir de casa devia ter desaparecido. Pelo menos por enquanto. Mas isso não significava que ele esqueceria. Eventualmente o choro cessou. Então Meg espiou pela cortina que separava o leito dos demais. Seus olhos verdes estavam inchados e lacrimosos, mas ela estava sorrindo. — Earl, o que está fazendo escondido aí? Allie quer falar com você. Earl entrou no compartimento e viu sua afilhada recostada num enorme travesseiro, parecendo muito menor do que era. Os olhos estavam arroxeados pela contusão que sofrera, e a perna engessada apoiava-se num cobertor dobrado. Ela enviou-lhe um sorriso hesitante. — Oi, tio Earl. — Olhe só para você — ele disse, com uma animação forçada. — Imagino que estas olheiras escuras sejam o resultado de uma grande farra, não é? Ela soluçou um risinho, então, mais lágrimas correram pelo seu rosto. — Me perdoe, tio Earl — murmurou. — O que aconteceu, Macaquinha? — Aquele era o apelido carinhoso com que Earl costumava chamá-la, mas que na usava havia anos pois, por volta dos nove, Allie decidir que estava velha demais para ter apelidos. — Eu fui uma idiota — ela disse, a voz entrecortada. — Bem, isso nem se discute. Cair de um penhasco geralmente é uma idiotice, mesmo. Mais uma vez ela riu, antes de recomeçar a chorar. Earl perguntouse se não estaria exagerando nas brincadeiras, mas não estava
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preparado para levar o assunto a sério e. além disso, suspeitava que Allie também não estivesse. E não queria dizer nada que pudesse aborrecer Meg. Agora que tinham Allie de volta, haveria muito tempo para lidar com o que acontecera, e descobrir os motivos. Aproximou-se de Allie pelo outro lado da cama e segurou-lhe a mão. Então, inundado pelo amor que sentia por aquela criança, afastou-lhe os cabelos da testa e beijou-a de leve. — Você quase nos matou de susto — disse, num murmúrio enrouquecido. — Graças a Deus que está viva. Ficaram ali conversando, contando a Allie como tinham sido as buscas naqueles últimos três dias. Earl reparou que a menina evitava mencionar o porquê de ter ido para a montanha ou sobre o que fizera quando estava ali. E Meg, da mesma forma, evitava fazer quaisquer perguntas neste sentido. Passado algum tempo Allie começou a exibir sinais de cansaço. Meg decidiu que passaria a noite no hospital, no sofá-cama do quarto de Allie. Earl aproveitou a deixa para sair. — Vejo você amanhã, Macaquinha. Allie sorriu levemente e apertou-lhe a mão. — Acho que vou estar por aqui mesmo. E ela não parecia nada feliz com isso, Earl pensou, sentindo um calafrio. Embora a neve tivesse caído nas montanhas, o vale não fora atingido. As ruas estavam molhadas de chuva e o ar estava frio, mas o inverno ainda não chegara à cidade de Whisper Creek. As luzes dos faróis refletiam no asfalto enquanto Earl dirigia pela colina, vindo do hospital, e entrava na Rua Principal a caminho do gabinete do xerife. As calçadas da Rua Principal tinham sido revestidas de tijolinhos e iluminadas com postes de estilo vitoriano, numa tentativa de atrair os turistas. Mas, até agora, tal tentativa falhara tristemente porque, na opinião de Earl, a cidadezinha não tinha muito o que oferecer. A maioria das construções ao longo da Rua Principal datavam da época gloriosa da mineração de ouro e prata e eram consideradas marcos históricos. No entanto, aquelas que eram abertas ao público abrigavam estabelecimentos comerciais modernos, uma loja de presentes, uma farmácia, uma loja de ferragens, a livraria, um restaurante e até um escritório imobiliário. Os prédios realmente interessantes, aqueles que poderiam atrair multidões se fossem restaurados, estavam fechados. No decorrer dos anos vários investimentos foram iniciados com o propósito de ressuscitar o teatro, o antigo Grande Hotel e algumas das outras construções famosas, mas o dinheiro acabara antes mesmo das restaurações serem iniciadas. Mas havia um bar que nunca havia parado de funcionar desde o ano de 1884. O Golden Nugget Saloon continuava sendo um negócio lucrativo, ainda mantendo o balcão do bar e os espelhos originais, bem como o piso de tábuas de carvalho. Infelizmente, o local também fornecia a Earl alguns de seus piores problemas. Mas um saloon não era o bastante para atrair o tipo de tráfego de turistas que a cidade de mineração precisava, portanto a Rua Principal continuava parecendo uma mulher que se arrumara toda sem ter nenhum lugar para onde ir.
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Ao oeste da cidade, mais ou menos na direção que Allie seguira, embora a cerca de vinte quilômetros ao sul de onde ela se escondera, encontrava-se uma paisagem lunar abandonada havia mais de cem anos. Nos estreitos penhascos, pilhas enormes de lavas espalhavam-se por todo o terreno. Pouca coisa crescia naqueles desfiladeiros, mesmo depois de tanto tempo, porque a lava era tóxica. Aqui e ali, onde as trilhas de terra batida cortavam os desfiladeiros, podia-se avistar um arbusto ocasional que conseguira encontrar um apoio precário no solo, mas pouco havia além disso, exceto as entradas das minas, algumas ainda exibindo os cartazes que avisavam sobre o perigo de radiação. Graças aos mineiros que ergueram aquela cidade e perfuraram o terreno com seus túneis e pilhas de lavas, Whisper Creek era considerada uma zona de risco. Quando chovia os tóxicos químicos soltavam-se destas lavas e misturavam-se com a água. Mas, até aquele momento, ninguém ficara doente com isso. Earl concluiu que estava acalentando tais pensamentos sombrios sobre Whisper Creek numa tentativa de evitar o que realmente o preocupava: Allie. Desde o início de toda aquela confusão suas dúvidas estavam aumentando cada vez mais e, depois de testemunhar o relacionamento de Meg com a mãe, já acumulara uma enorme quantidade de perguntas. Só que nenhuma delas seria respondida naquela noite. Ele teria de deixar que todo aquele trauma passasse, antes de começar a enfiar o nariz onde não era chamado e tentar descobrir exatamente o que Allie pretendia fazer quando fugiu, por que Meg sentiase tão culpada por tudo, e por que Vivian agia como se a filha fosse um tipo de criminosa. Ao chegar no posto da guarda encontrou Matt Dawson na sala de interrogatórios, parecendo taciturno e exausto. Aparentemente Sam não fora muito gentil. Não que Sam costumasse ser gentil. Preferia usar o método de ataque e intimidar as pessoas para que falassem, mas desta vez o método não havia funcionado. Suas anotações diziam que Matt não acrescentara nada ao que relatara quando estavam na montanha. Earl tinha um método diferente. Pegou um refrigerante em sua sala e levou para o rapaz. Matt engoliu-o como se não tivesse comido ou bebido nada o dia inteiro. — Está com fome? — Earl perguntou. — Estou faminto. Hoje só comi um pedaço de carne-seca e um pouco de manteiga de amendoim. — É uma excelente dieta. Comendo assim você chegará aos cem anos. Espere aí um pouco. Earl saiu e disse a um dos policiais que fosse comprar um sanduíche para o rapaz na lanchonete do outro lado da rua. — Um ou dois? — a oficial Nancy Ramirez perguntou. — Dois, é melhor. Ele está em fase de crescimento. Traga batata frita, também, e dois copos de leite. Ela sorriu. — O senhor vai obrigá-lo a tomar o leite? — Sim, se for necessário. Earl voltou para a saleta. Matt ainda parecia mal-humorado, mas o cansaço já não era tão evidente depois do refrigerante. — Então — Earl falou, sentando-se diante dele —, o que realmente
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aconteceu lá em cima, Matt? O garoto olhou-o com desprezo. — Não preciso lhe contar nada. Não fiz nada de errado. — Depende do ponto de vista. Considerando-se que a garota estava desaparecida e que você estava correndo montanha acima levando mantimentos e uma machadinha, provavelmente eu posso alegar que você aprisionou-a, talvez com a intenção de matá-la, e que ela feriu-se quando tentava fugir. Matt empalideceu. — Ela não lhe disse nada disso. Porque é mentira. — Ela ainda não me disse nada, mas se você não começar a falar acho que teremos uma longa noite pela frente. — O senhor não pode me prender aqui. Eu não fiz nada! — Posso detê-lo por setenta e duas horas. Uma cela pode ficar um bocado apertada depois de setenta e duas horas. — Earl esperou que o rapaz digerisse a informação e acrescentou: — Escute, Matt, não quero ficar bancando o "durão" com você. Quero apenas descobrir o que aconteceu e depois deixá-lo ir embora. Mas preciso saber o que houve. Porque, neste exato momento, não há nem um policial sequer que esteja convencido de que suas intenções eram boas quando subiu aquela montanha. Incluindo eu mesmo. Matt arrastou os pés no chão e tamborilou os dedos na mesa, parecendo irritado e amedrontado. — Já lhe disse tudo o que havia para dizer. — Então conte tudo outra vez. — Eu a encontrei ontem à tarde. Ela estava dormindo numa pedra, no sol, e eu não quis acordá-la. — Matt encolheu os ombros, envergonhado. — Foi besteira minha. Nem mesmo prestei atenção nas nuvens, de chuva. Ela parecia tão cansada. Earl assentiu. — E então... — Ela acordou. Eu lhe disse que todo mundo estava à sua procura e que ela precisava voltar comigo. Ela disse que não iria a lugar algum, e achei que seria impossível arrastá-la aos gritos pela montanha abaixo, principalmente depois que começou a nevar. Calculei que, a melhor coisa a fazer seria esperar até a manhã seguinte na velha cabana dos mineiros. — Tudo bem. — Earl remexeu no bloco de anotações à sua frente. — E depois? — Fui buscar água no riacho ali perto e ela fez uma sopa no fogãozinho. Depois peguei um pouco de lenha, pois estava ficando frio de verdade e imaginei que seria capaz de congelar antes do amanhecer. Allie ficou com medo que pegasse fogo na cabana, mas fiz uma fogueira pequena. Nós conversamos... — Sobre o quê? — Eu queria saber por que ela fizera uma coisa tão idiota, mas Allie não quis me dizer. Ficava apenas repetindo que estragara a vida de todo mundo. Então, tive a impressão de que... — ele interrompeu-se. — Que impressão? — Earl insistiu. Matt balançou a cabeça. — De que ela queria se matar, o senhor sabe. Earl sentiu um baque no peito. Naquele instante, encarou um temor
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que estivera tentando ignorar no decorrer de três dias. A cada vez que o pensamento cruzava-lhe a mente ele descobria um meio de descartá-lo. Os adolescentes estão sempre fugindo de casa. Têm idéias malucas e acabam querendo concretizá-las. E, sim, os adolescentes também tentam o suicídio, mas não Allie. Nada poderia ser assim tão ruim na vida dela. — Como sabe disso? — perguntou, a voz enrouquecida. Matt fitou-o, em dúvida. — Bem, finalmente ela acabou admitindo. Eu lhe disse que era uma péssima idéia. Que ela deveria continuar por aí e acertar as contas com quem a está incomodando. É o que eu faço. Earl assentiu, preocupado com o rapaz. — Basta me dizer quem anda espancando você, garoto. A expressão dele fechou-se. — Pensei que estávamos falando sobre Allie. — Tudo bem. Vamos falar sobre ela. E então, ela lhe deu ouvidos? — Não sei. Na manhã seguinte ela continuava teimando que não voltaria para casa. A comida estava quase acabando e eu sabia que se insistisse para que descêssemos a montanha acabaríamos ficando encrencados, com toda aquela neve. Prometi que iria buscar mais alimentos e que não contaria a ninguém onde ela estava, se ela me prometesse que não se mataria enquanto eu estivesse longe. Ela prometeu. Mas imagino que não acredite muito em cumprir promessas. Earl sentiu um gosto metálico na boca. Medo. Medo de um tipo que havia muito tempo ele não sentia, e era por Allie. E por Meg. As duas pessoas a quem ele mais amava, em todo o mundo. — Você acha que ela atirou-se no desfiladeiro? Matt encolheu os ombros. — Não sei. Eu não estava lá para ver. Mas as pessoas que ficam falando que vão se matar não costumam escorregar por acidente, não é? Capítulo VIII A alegria de Meg diminuiu consideravelmente na manhã seguinte, quando levou Allie para casa. Não porque não se sentisse grata por sua filha estar viva e relativamente bem, mas sim por saber que algo estava muito errado. Tentou dizer a si mesma que isso acontecia apenas porque Allie fora impedida de dormir durante toda a noite, por causa da contusão na cabeça, mas sabia que estava enganando-se. Sim, Allie estava cansada e irritada, o que era de se esperar. Mas estava também quieta demais, taciturna demais, e as sombras em seus olhos deviam-se a algo além do hematoma causado pela pancada. Vivian recebeu-as na porta, mas sem muito calor. — Arrumei uma cama na sala de estar para Allie — informou, num tom que não admitia discussões. — A menina precisa de uns dias para se acostumar com as muletas. Allie olhou para a mãe. — Eu posso subir a escada. E quero ficar no meu quarto. Meg assentiu. — Eu entendo, querida. Por que não tira um cochilo na sala e,
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depois que estiver descansada, nos mudamos para seu quarto? Vivian fez um muxoxo. — Eu não vou ficar correndo para cima e para baixo levando água e comida para ela. — Não lhe pedi nada, mamãe. Eu farei isso. — Por enquanto, pelo menos. Meg estava faltando do trabalho e, por mais que seus patrões fossem compreensivos, não sabia quantos dias ainda poderia faltar sem correr o risco de perder o emprego na seguradora. — De qualquer forma, logo Allie estará movimentando-se pela casa como uma profissional — tentou brincar. Vivian resmungou baixinho. — Você faz todas as vontades desta menina. — Isso é porque ela se sente culpada — Allie falou. Deixando as duas mulheres atônitas atrás de si, Allie arrastou-se nas muletas para dentro da sala e deixou-se cair no sofá. Quinze segundos depois dormia profundamente. Meg ficou parada na soleira da sala por muito mais tempo, com as pernas trêmulas e fracas. Por que Allie dissera aquilo? Ela nunca lhe falara sobre a discussão que tivera com Bill, pouco antes da morte dele. E ninguém mais poderia ter-lhe dito, pois ninguém sabia. Era um segredo tão cheio de culpa que Meg pretendia levá-lo para a sepultura. Vivian recuara para seus domínios habituais, a cozinha, e começara a remexer nas panelas com desaprovação. Meg resistiu ao impulso de emitir um grito primai de frustração. Tudo estava de volta ao normal, tudo bem. Allie estava bancando a difícil, Vivian bradava contra o universo. E Meg, como sempre, era apanhada no meio disso tudo. Sem saber o que fazer no momento, Meg subiu e foi tomar um banho e escovar os dentes, dois luxos que lhe foram negados no hospital. Quando estava vestindo a calça jeans e uma camisa de flanela, um pensamento terrível lhe ocorreu. Parou apenas a tempo de vestir um par de meias para manter os pés aquecidos e depois correu para baixo, a fim de confrontar-se com a mãe. Vivian continuava na cozinha. Já havia parado de remexer nas panelas, mas quando viu Meg entrar virou-se para encará-la. — Você poderia ao menos demonstrar alguma gratidão por eu ter arrumado um lugar confortável para Allie ficar antes que conseguisse subir a escada. Mas, não, você nunca teve gratidão por nada em toda sua vida. Meg imobilizou-se, perplexa. Então, a raiva pela injustiça de tal acusação invadiu-a. — Isso não é verdade, mamãe. Sou grata por tudo o que você fez por mim. — Ah, então sabe muito bem como demonstrar — Vivian ironizou. — Bem, sabe de uma coisa? Talvez eu esteja cansada de ouvir você me cobrar o tempo todo, cansada de ter isso atirado na minha cara diariamente. Eu não lhe pedi para passar estes oito meses aqui comigo, e não lhe pedi para tomar conta da casa. Você escolheu fazer isso, mamãe. E, se não quiser, não faça mais nada. Eu cuidava de tudo muito bem sozinha, antes de você vir para cá. — É justamente isso que estou dizendo! Ingrata! — Não sou ingrata. — Meg respirou fundo e tentou se controlar.
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Não fora nada disso que viera discutir com a mãe. — Mas já chega deste assunto. Nós nunca vamos concordar em nada, mamãe. Há uma coisa que quero lhe perguntar. Um minuto se passou antes que Vivian se acalmasse o bastante para falar. — O quê? — Você mencionou a Allie alguma coisa sobre o papai? O choque de Vivian foi genuíno. — É claro que não! Jamais mencionei nada disso a ninguém, e muito menos para uma criança como ela. Que tipo de mulher você pensa que eu sou? Meg, que há muito tempo desistira de entender sua mãe, não soube como responder. — Desculpe-me. Mas o que ela disse há pouco... — O que ela disse — Vivian interrompeu com rispidez, — foi que você se sente culpada. E deveria sentir-se mesmo. Mas Allie acha que você sente-se culpada porque ela não tem um pai, e isso não é de se surpreender considerando-se o quanto os adolescentes são autocentrados e egoístas. Ela acha que você é tão indulgente só porque o pai dela morreu. — Talvez eu seja mesmo, um pouco — Meg admitiu. — Você a deixa solta demais, é isso que faz. E não posso em pensar num motivo mais idiota do que este para que aja assim. As crianças precisam de segurança, precisam saber que existem limites. Precisam ter certeza de que os pais importam-se o bastante para restringi-las de vez em quando. Aquela era uma declaração surpreendentemente lúcida para uma mulher como Vivian, que normalmente criticava tudo, não concordava com nada e quase nunca precisava de um bom motivo para fazer qualquer uma dessas coisas. Pensando no que sua mãe dissera, Meg voltou para a sala e sentou numa poltrona, observando o sono da filha. Os olhos dela estavam horríveis, pensou, detestando pensar no tipo de pancada que causara tal hematoma. Talvez esse fosse o único motivo de Allie estar agindo daquela maneira. Ela sofrera um trauma terrível e, provavelmente, demoraria muito tempo antes de estar completamente recuperada. Porém, isso não explicava porque ela havia fugido. E essa era a pergunta que mais atormentava o coração de Meg. Earl não conseguiu ver Allie e Meg antes das três da tarde. Ficara retido devido a um acidente com um caminhão na rodovia da montanha, que espalhara blocos de concreto no asfalto e causara outros quatro acidentes antes que tudo se encerrasse. Três pessoas estavam gravemente feridas, e outras quatro encontravam-se em estado crítico. Não fora nada bonito de se ver. Quando finalmente chegou à casa de Meg, ele estava exausto,abatido e com frio, mas imaginou que poderia deixar para descansar depois que visse como Allie estava passando. Meg o fez entrar, olhando para seu uniforme com a mesma expressão de desconforto que ele percebia nela desde o acidente de Bill. Earl compreendia, mas mesmo assim isso o fazia sentir-se muito mal. — Allie ainda está dormindo — ela disse. — Mas terei muito prazer
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se você quiser me acompanhar na vigília lá na sala. — Na verdade, se não for lhe dar trabalho, eu gostaria de tomar uma xícara de café primeiro. E comer alguma coisa, uma bolacha, um salgadinho. Qualquer coisa que você tiver no armário. Meg olhou-o com mais atenção e só então reparou em como sua aparência estava cansada e deprimida. — Teve um dia difícil? — Já tive melhores. Um tanto nervosa, ela levou-o para a cozinha e ficou aliviada em ver que Vivian aparentemente se retirara para o cochilo da tarde. Pelo menos não teria de lidar com isso, pensou. Como sempre, havia um bule de café pronto na cafeteira e ela serviu uma caneca para Earl. Foi olhar nos armários enquanto ele sentava-se à mesa com um suspiro. — Sempre temos salgadinhos nesta casa — ela disse. — Você sabe como são os adolescentes. O que você gosta? — Qualquer coisa. — O que acha de um sanduíche? Ele fez um gesto, recusando. — Não, prefiro esperar e jantar um pouco mais cedo. Quero apenas beliscar alguma coisa. Meg passou-lhe um pacote de batata frita e serviu-se de café, antes de sentar-se à mesa. — O que aconteceu? Earl não queria lhe contar, não queria que ela começasse a pensar em Bill. Na verdade, no humor em que se encontrava, ter de pensar na perda que Meg sofrera e no casamento dela seria demais. Pelo menos por alguns minutos ele queria fingir que não existia Bill entre eles. Era egoísmo, sabia. Mas às vezes ele era egoísta. — Um caminhão virou e espalhou blocos de cimento pela rodovia — disse, omitindo os detalhes sangrentos. — Quantas pessoas ficaram feridas? — Sete foram para o hospital. — Isso é terrível. Sinto muito. Earl esperou que ela falasse de Bill, mas isso não aconteceu. — Como está Allie? — Está dormindo desde a hora em que chegou. Mas estou preocupada com ela. Está agindo... de um jeito estranho. Deprimida, irritada. — Bem, ela passou por maus bocados. Por dentro, Earl censurava-se por não dizer toda a verdade para Meg. Se Allie ainda estivesse pensando em suicídio Meg tinha todo direito de saber. Mas ele não tinha coragem de lhe contar, ainda não. — É verdade. Talvez seja por causa da pancada na cabeça. — Não seria a primeira vez que um trauma na cabeça deixa alguém agindo estranhamente. — Acho que não. Earl resistiu ao impulso de levantar da cadeira e bater a sua própria cabeça na parede. Não deveria estar minimizando aquele problema. Porém, queria conversar com Allie primeiro. Precisava ter certeza de que Matt Dawson não inventara alguma história trágica, exagerando o que seria simplesmente uma explosão de raiva da parte de
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Allie. Os adolescentes têm a tendência de dramatizar as coisas mais corriqueiras. — De qualquer forma — ele acrescentou finalmente —acho que devemos ficar de olho nela. Meg enviou-lhe um sorriso carinhoso indicando que estava grata por aquela oferta que ele lhe fazia de participar dos cuidados com Allie. Isso o fez sentir-se muito melhor. — E precisamos ficar de olho em você, também — ele disse. — Parece exausta. — E estou. Não dormi muito mais do que Allie esta noite. Fiquei tentando distraí-la para que ela não adormecesse. — E não dormiu hoje? — Cochilei um pouco na poltrona, mas não quis me afastar dela. Eu agüento até a noite. E quanto a você? — Ah, eu dormi bem. Até as cinco horas, quando fui chamado por causa do acidente. Estou bem. — Precisa voltar ao trabalho? Se não, poderia ficar para o jantar. Houve uma época em que ele teria pulado de alegria diante de um convite como aquele. No entanto, depois dos últimos dias, Earl o encarava com certo receio. O jantar naquela casa, com todas as tensões que ele estivera pressentindo, seria uma experiência desconfortável. Por outro lado, queria passar algum tempo com Allie. E com Meg, — Já encerrei o meu turno, antes de vir para cá. Contanto que não aconteça nenhuma outra catástrofe, acho que posso ficar. — Ótimo. O sorriso que ela enviou-lhe era caloroso, como se estivesse aliviada ao saber que não teria de enfrentar a noite sozinha. Não que ele a culpasse por isso. Certamente Meg não era mais imune à tensão do que ele. — Mamãe? Mamãe? Meg pulou da cadeira ao ouvir a voz de Allie e correu para a sala. Earl hesitou, sem saber se seria bem-vindo, mas depois seguiu-a devagar. Ouviu Allie choramingando: — Estou toda dolorida. Nem consigo me mexer, e preciso ir ao banheiro. — Ora, ora — Meg falou, com uma pontinha de divertimento e solidariedade na voz. — "Houston, temos um problema" — brincou. Allie deu uma risadinha relutante. — Bem, será que há algum lugar em você que eu possa pegar? — Meg perguntou. Boa pergunta, Earl pensou. A menina estava coberta de hematomas por causa da queda. — Humm... — O tom de voz da menina era pensativo, mas de um jeito brincalhão que Earl gostou de ouvir. — Quem sabe aqui? — Aí não vai dar certo — Meg retrucou. — Eu teria de levantá-la usando apenas dois dedos. Naquele momento Earl entrou na sala. — Como está a minha Macaquinha? Precisa de uma carona até o banheiro? — Tio Earl? — Allie abriu um sorriso largo ao vê-lo e, se não fosse pelo roxo em torno dos olhos, teria parecido a ele tão linda quanto
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qualquer modelo de capa de revista. — Só preciso me levantar. Se eu não me mexer vai ficar pior ainda. — Sábia decisão — ele concordou. — Então prepare-se e deixe-me levantá-la. Earl ergueu-a no colo como se fosse uma pena e colocou-a delicadamente no chão. Reparou na careta de dor que ela fazia, mas Allie nem sequer gemeu. Meg entregou-lhe as muletas. — "Aterrissamos" — Meg falou, continuando com a brincadeira, embora seu sorriso parecesse um tanto forçado. — "Mar da Tranqüilidade, aqui vamos nós". — Pedras da Lua — disse Allie, enquanto ajeitava as muletas sob os braços. — É isso que quero de Natal. — Boa sorte. O gesso que ela usava ia desde o joelho até a ponta do pé, e ela fora proibida de pisar. Earl deu-lhe algumas instruções sobre como usar as muletas, algo que aprendera depois de um acidente de esqui, e ela seguiu cambaleante na direção do banheiro. Ele e Meg foram andando logo atrás, prontos para ampará-la caso caísse. Mas quando chegou na porta do banheiro, o rosto da menina estava rosado pelo exercício e seus olhos brilhavam de orgulho por si mesma. — Estarei aqui fora, se precisar de mim — Meg avisou. Allie enviou-lhe um olhar exasperado. — Sei fazer isso sozinha desde os meus dois anos. — Vou ficar aqui, assim mesmo. É a primeira vez que faz isso com a perna engessada. — Já fiz, sim, no hospital. — Lá o banheiro é maior. Earl estava prestes a interceder no que prometia transformar-se numa discussão, dizer a Meg que deixasse a menina em paz, e à Allie que parasse de tratar a preocupação normal de sua mãe como se fosse uma ofensa. Porém, Allie encarregou-se do encerramento e, depois de olhar para Meg com um ar de desprezo, fechou a porta ruidosamente e trancou-se no banheiro. — Ah, puxa... — Meg falou. — Acho que fiz tudo errado. — Você não fez nada errado. — Earl preocupou-se a ver o brilho das lágrimas nos olhos dela. — Mas pelo menos parece que ela está bem. Já está se comportando como a Allie de sempre. Earl não tinha certeza de que isso seria bom, principalmente considerando-se o que a "Allie de sempre" fizera no sábado, e o que poderia ter feito no dia anterior. — Sabe — Meg falou —eu ainda nem lhe agradeci direito por tê-la salvado. — Se há uma coisa que você jamais terá de fazer é me agradecer por ajudá-las, Meg. Tanto você como Allie. Dessa vez os lábios dela tremeram e ela fechou os olhos. — Mas é claro que preciso agradecer, Earl, por tudo. Do fundo do meu coração. Estou em dívida com você. Earl pensou que talvez houvesse algo que ela lhe devia, uma explicação para o que estava acontecendo ali. Porém, justamente quando decidiu lhe perguntar, Vivian apareceu no topo da escada. Baixou os
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olhos para ele, o rosto registrando a desaprovação a que Earl já estava se acostumando. — Onde está Allie? — ela perguntou, sem nem mesmo cumprimentálo. — No banheiro — Meg respondeu. Earl percebeu que a tensão entre elas atingira um nível bem mais elevado do que antes. — Mamãe — Meg falou. — Earl vai jantar conosco. Eu vou cozinhar. — Faça como quiser. — Vivian desceu a escada e desapareceu na sala. — Ótimo — Meg murmurou. — Maravilhoso. — Você nunca se cansa disso? A expressão dela era quase indiferente. — E claro que sim. Mas ela é minha mãe. — Talvez fosse mais fácil para você se ela a tratasse como filha. — Já pensei nisso. Allie abriu a porta do banheiro naquele instante. — Sobre o que vocês estão falando? — Não é sobre você — Meg respondeu prontamente. — E só isso que precisa saber. Allie girou os olhos para cima e foi mancando na direção do vestíbulo. — Será que posso ir para o meu quarto agora? Meg olhou rapidamente para Earl, que encolheu os ombros. Ela tornou a olhar para a filha. — Por que não espera até depois do jantar? — sugeriu.— É melhor não fazer muito esforço logo no primeiro dia. Lembra-se do que o médico falou? Depois do jantar nós a ajudamos subir, está bem? — Tudo bem. Mas já estou enjoada de ficar no sofá. Queria me sentar um pouco. Posso ficar na cozinha? — Se arrumarmos um jeito de a sua perna ficar estendida, tudo bem. Você pode beliscar alguma coisa enquanto faço o jantar. Allie também estava com fome. Assim que a acomodaram numa cadeira, com a perna estendida na outra, pediu um refrigerante e batatinhas. Meg fez-lhe a vontade, sem argumentar que estava quase na hora do jantar. A menina começou a comer com entusiasmo. — Allie? — Earl falou. — Você se lembra de como caiu? — É claro. — Ela encolheu os ombros. — Cheguei perto demais da beirada. Eu esqueci que a neve costuma acumular na rocha e por isso não vi direito onde estava a beirada. Era uma explicação razoável, mas Earl não acreditava que fosse provável. Por que ela estaria andando tão perto da beirada, para começar? — O que estava fazendo ali? — Estava entediada.Fiquei presa naquela cabana idiota por dois dias e estava cansada de não fazer nada. Por isso, fui dar uma volta. Meg tirou a carne do freezer e colocou-a para descongelar no microondas. — Por que você fugiu, Allie? A menina recuou imediatamente. — Não quero falar sobre isso, está bem?
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— Está bem. Por enquanto. Mas vai chegar um momento em que teremos de falar sobre isso. — Por quê? Não tem mais importância. Eu estou aqui,não estou? — Pois para mim importa muito saber o que a incomodou tanto a ponto de fugir de casa. Precisamos conversar a respeito para que possamos consertar o que há de errado. — Você não pode consertar nada — Allie falou, empinando o queixo. — Não há nada que possa fazer. Empurrou o saquinho de batata frita e, sem querer, derrubou-o no chão. Não tivera intenção de fazer isso, o que era óbvio para Earl e, aparentemente, para Meg também, pois ela nada disse a respeito. Limitou-se a pegar uma vassoura e limpar a sujeira. No entanto, Allie tampouco se deu ao trabalho de pedir desculpas. E isso não era normal, tratando-se dela. Earl viu a tensão no rosto de Meg ao perceber que, no fim das contas, sua filha não havia voltado ao normal. Ao perceber que seria bem possível que nada, nunca mais, voltasse a ser normal outra vez. O jantar transcorreu num clima tenso e contido, com Allie malhumorada e Vivian bufando sua desaprovação. Earl desistiu de tentar manter uma conversa agradável e, minutos depois, Meg também entregou os pontos. Depois da refeição ele e Meg ajudaram Allie a subir para o quarto, e Meg acomodou-a confortavelmente na cama. Até mesmo mudaram a posição da escrivaninha para que ela pusesse o teclado do computador no colo e enxergasse a tela do monitor, tudo para que conversasse com seus amigos da Internet. Quando saíram do quarto de Allie, Vivian passou por eles no corredor e, sem nada dizer, foi para seu próprio quarto e fechou a porta com firmeza. Earl e Meg ficaram a sós. No andar de baixo, ele ajudou-a a dobrar os lençóis e cobertores que ainda estavam no sofá. Meg olhou para ele. — Você já deve estar cansado de nós, Earl. No entanto, não saberia dizer por que isso a preocupava tanto. Ele era um amigo. Se estivesse cansado de ser tão maltratado pela sua mãe e pela sua filha, bastaria ir embora e, ainda assim, ela sabia que ele voltaria. Mas Meg não queria que ele fosse embora. Não queria passar as próximas três ou quatro horas tentando não pensar no que estava errado com sua filha, e sobre o que iria fazer com sua mãe. — Não estou cansado de vocês — ele disse. — Mas bem que gostaria de dar uma boa sacudida em sua mãe. — Eu também. Deixaram os cobertores e lençóis dobrados no sofá. Earl sentou numa poltrona e Meg aconchegou-se na outra ponta do sofá. — Por que ela é tão ressentida? — ele perguntou. — Você pode me dizer, Meg. Sabe que pode falar sobre qualquer coisa comigo. Poderia mesmo? Ela duvidava. Algumas coisas eram impossíveis de serem contadas. — É um problema antigo. Eu realmente não gostaria de falar sobre isso. — Talvez você devesse falar. Não sei como consegue viver desta maneira.
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— Às vezes eu também não sei. Ela sentiu vontade de chorar novamente, e já estava ficando enjoada de tanto chorar. Adoraria poder confiar em alguém, mas não podia correr este risco com Earl. Não podia arriscar-se a perder para sempre aquele jeito amigável e carinhoso com que ele a olhava agora. — Bem — ele falou finalmente. — Parece que isso não está nos levando a lugar algum, não é? — Desculpe-me. — Não se desculpe, Meg. Apenas entenda que eu não gosto de me sentir inútil, e é assim que estou me sentindo agora. E óbvio que você não é feliz. É óbvio que Allie não é feliz. E a tensão nesta casa é tão densa que poderia ser cortada com uma faca. Se não quer a minha ajuda, Meg,terá de fazer algo a respeito sozinha. Nem você, nem Allie conseguirão suportar tudo isso por muito tempo. — Eu sei. E ela realmente sabia. Só que se sentia tão culpada o tempo todo que mal sabia o que fazer. — Você também deveria lembrar que sou um policial. Duvido que haja alguma coisa que você me conte que eu já não tenha ouvido antes. Sou mais ou menos imune ao choque. Mas havia coisas que ela poderia lhe contar sobre seu caro amigo Bill que provavelmente o deixariam chocado. Coisas que, talvez, ele jamais a perdoasse por dizer. Bill não seria mais afetado, agora, mas ela não podia fazer isso com Earl, nem consigo mesma. — Foi há muito tempo — ela disse novamente. — Vivian guarda muitos ressentimentos. — Sabe, Meg? Você não facilita muito as coisas para alguém que queira cuidar de você. — Não preciso que ninguém cuide de mim. Posso cuidar-me sozinha. Não era verdade, e ela sabia. Meg precisava desesperadamente de ajuda, mas não iria admitir e, certamente, não daria a ele a chance de extrair dela toda a história. — Olhe à sua volta — ele falou, impaciente. — Nunca vi alguém que estivesse precisando tanto de ajuda. Sua mãe também precisa ouvir poucas e boas e, quanto à sua filha...— Ele interrompeu-se. — Está certo, Earl — disse Meg. — Deixe Allie fora disso. E pare de me atormentar. Você é um ótimo amigo, mas isso não está ajudando em nada. Ele cedeu, mas era evidente que não estava satisfeito com a situação. Earl era um conciliador por natureza. Depois de quinze anos de convivência, Meg sabia o quanto ele precisava ajudar as pessoas se acertarem. Esse era um dos motivos que fizeram dele um xerife tão popular. Mas, então, ele disse algo que a deixou paralisada: — Matt Dawson afirma que Allie estava pensando em se matar. Isso é algo que você não pode varrer para baixo do tapete e ignorar, Meg. Ela sentiu ondas de frio e calor percorrê-la e não conseguia se mover. Allie pensara em se matar? Fugir já era ruim o bastante, mas suicídio? Sua cabeça girava enquanto tentava desesperadamente encontrar uma maneira de negar tal idéia. Mas, no fundo de seu coração, sentia que era verdade.
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— Ela... — Sua voz vacilou, as palavras atropelaram-se. — Ele não pode... saber com certeza. — Fez uma pausa, firmando a voz. — Se Allie realmente quisesse fazer uma coisa destas, não teria esperado tanto. Earl permaneceu em silêncio. — Ela não teria esperado, Earl! Por que diabos ficaria vagando pelas montanhas durante dois dias, antes de... — praticamente gritava, agora. Em qualquer outra circunstância, o tom de sua voz a teria obrigado a se acalmar, pois ela não era do tipo que gritava. Mas não agora. Agora, gritar era tudo o que podia fazer. A dor que pressionava-lhe o peito era tão forte e profunda que tornava difícil respirar. Ela dobrou o corpo em agonia — Ela escorregou — disse, sufocada. — Ela escorregou.. Earl foi até ela e abraçou-a com força, prendendo seu corpo rígido contra si o mais apertado que pôde. — Sim, Meg, ela escorregou — murmurou. — Foi o que ela disse e provavelmente é a verdade, porque ela prometeu a Matt que não se mataria enquanto ele fosse à cidade comprar mantimentos. Ele a fez prometer, Meg, e Allie sempre cumpre o que promete. Ela estava ofegante, agora, tentando respirar, mas conseguiu dizer: — Sim, é verdade. Allie sempre cumpre o que promete. — No entanto — ele insistiu —, você não pode ignorar o que houve. Pelo bem de Allie, precisa prestar muita atenção. Ela realmente estava pensando em suicídio. — Você tem razão, tem razão... Meg começava a recuperar o controle e um pouco da tensão abandonava-lhe os músculos. Soltou o corpo levemente, apenas o bastante para virar-se e mergulhar o rosto no ombro dele. Longos minutos depois, passou os braços em torno de seu pescoço, agarrando-se a ele como se fosse um salva-vidas. — Eu pretendia esperar mais para lhe dizer — Earl falou então, massageando-lhe a nuca. — Pretendia conversar com Allie, primeiro. Mas... sinto muito. Você precisava saber, por mais desagradável que seja. Ele não a teria culpado se ela saísse correndo e gritando pela noite afora. Havia um limite para o que as pessoas conseguem suportar, e ultimamente Meg recebera mais do que sua quota de golpes. Mas ela não correu. Ficou abraçada a ele por muito tempo, deixando-se ser embalada, consolada. Quando finalmente falou, foi para perguntar: — Por quê? — É isso que precisamos descobrir. De alguma teremos de forçá-la a falar. Meg ergueu o rosto para ele. — Você não tem nenhuma idéia? Earl balançou a cabeça. — É impossível dizer. Este tipo de coisa é muito comum entre os adolescentes, infelizmente. Se conseguem sobreviver, dias depois já nem pensam mais no assunto e mudam completamente de atitude. Pode ser que Allie nem esteja mais pensando nisso. Mas não podemos nos arriscar.
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Era bom, bom demais, na verdade, ter Meg em seus braços, mas ele obrigou-se a soltá-la. Não era a hora nem o lugar para entregar-se aos sentimentos que estivera ocultando há anos. Meg recostou no sofá parecendo alguém que acabara de ser chicoteada. Earl jurou a si mesmo que encontraria uma maneira de fazêla sorrir outra vez, algum dia. Meg tinha um sorriso lindo, mas não o exibira muitas vezes desde a morte de Bill. O que era de se esperar, Earl pensou. Ela e Bill tinham um casamento maravilhoso e Meg só poderia estar sofrendo muito, ainda. E sempre que olhava para ele devia lembrar-se de Bill. Se antes era o casamento deles que impedia que seus sonhos se concretizassem, Earl calculava que a lembrança de Bill seria uma barreira muito mais intransponível. Mas estava tão acostumado a não ter o que desejava que mal reparava na própria insatisfação. Tentando conter seus pensamentos antes que estes vagassem para lugares indesejáveis, ele disse: — Precisamos pensar numa maneira de deixá-la mais animada. Um jeito de fazê-la sentir-se bem consigo mesma. — O que poderia ser? — Meg encarou-o, impotente. — Uma viagem? Earl balançou a cabeça. — Não com aquela perna engessada. — Então, teve uma idéia. — Você conhece Matt Dawson? — Aquele garoto problemático que encontramos na montanha? O que tem ele? — Pensei numa coisa. Mas deixe-me falar com Allie primeiro, está bem? Minutos depois Earl batia na porta do quarto de Allie. Ela disse-lhe para entrar e, ao abrir a porta, encontrou-a digitando rapidamente no teclado do computador. — Está "conversando"? — perguntou. — Nada de importante — ela respondeu indiferente, mas a julgar pela rapidez com que seus dedos percorriam o teclado, não parecia ser o caso. — Posso lhe falar por um minuto? — É claro. — Mas ela continuou escrevendo. Earl puxou uma cadeira para perto da cama, posicionando-a de forma que pudesse vê-la, e não a tela do computador. Não queria que ela sentisse que estava invadindo sua privacidade, embora estivesse extremamente tentado a dar uma espiada e descobrir o que ela conversava com todo aqueles amigos sem rosto que tanto a absorviam. Estaria contando que subira a montanha para suicidar-se? E porquê? Ou estaria apenas falando sobre isso como se fosse uma louca aventura, capturando o interesse e simpatia daqueles outros adolescentes que trancavam-se em seus quarto escuros diante das telas iluminadas? Estaria fazendo-se de importante? Allie sentiria-se perdida e esquecida em meio dor e ao luto que ocupava aquela casa nos últimos oito meses Essas eram perguntas que estava louco para fazer, mas sabia que, se as fizesse, jamais obteria uma resposta direta. — Preciso de um favor — ele disse. — É claro. Eu prometo que nunca mais vou fugir. Isso não lhe serviu de consolo. Ela não precisaria fugir para se
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matar. — Obrigado, mas não é isso que quero pedir. Sei que você é inteligente demais para cometer o mesmo erro duas vezes. Isso captou a atenção dela por um instante, e seu olhar desviou-se do monitor para ele. Então, a máscara de desinteresse retornou e ela recomeçou a escrever. — Que favor? — Matt Dawson. Allie imobilizou-se por um segundo, mas logo seus dedo retomaram a atividade no teclado. Earl teve o vago desejo de saber digitar tão bem e tão depressa quanto ela. — O que tem Matt? — Bem, eu me sinto meio em dívida por ele tê-la encontrado na montanha, e acho que ele está precisando de uma ajuda. — Não de mim. — Por que não? — Porque ele quebrou a promessa. — Ah. Está se referindo à promessa que ele fez de não contar a ninguém onde você estava? Ele não a quebrou, Allie. Eu o segui. No entanto, ele afirma que você quebrou a sua promessa. Allie encarou-o, dando-lhe toda sua atenção. Mas sua expressão continuava distante. — Eu nunca quebro minhas promessas. — Sei disso, Macaquinha. O alívio que ele sentiu foi quase insuportável. Então ela realmente escorregara. Queria abraçá-la naquele instante, mas ainda não era o momento de lhe revelar que sabia o que ela fora fazer nas montanhas. Por enquanto, queria que ela achasse que seu segredo estava bem guardado. — Mas Matt também não quebrou a promessa dele — disse. — E está precisando de ajuda. — E mesmo? — Allie baixou os olhos para o teclado, mas manteve-se imóvel. — Alguém costuma surrá-lo, Allie. — Eu sei. — Só que ele recusa-se a dizer quem é. Eu acho que é o pai, mas sempre que tentamos fazer algo a respeito, Matt insiste em dizer que apanhou numa briga com outros garotos. Ela assentiu devagar. — Não há nada que eu possa fazer, a não ser que ele diga a verdade. E, para isso, Matt precisa falar comigo. Talvez você possa ajudar-me a convencê-lo disso. Allie encarou-o. — Por que você acha que eu posso fazer isso? Porque vocês são quase da mesma idade. Duvido que ele confie em algum adulto. — Ele não vai confiar em mim, se pensa que quebrei a promessa. — Pois então diga a ele que não fez isso. Ele precisa de ajuda, Allie. Precisamos fazer alguma coisa antes que alguém acabe matando-o. Ela encolheu os ombros, mas não estava tão indiferente quanto tentava parecer.
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— Tudo bem. Verei o que posso fazer. — Ótimo. Vou trazê-lo aqui amanhã, para visitá-la. — Earl deu-lhe uma leve palmadinha na perna. — Agradeço muito sua ajuda, Allie. Talvez você consiga fazer algo que ninguém mais consegue. — Talvez. — Então, como está a “conversa”? — Earl indicou o monitor, mudando de assunto deliberadamente. — Boa, eu acho. E só um bando de garotos falando sobre música. — Não do tipo que eu gosto, imagino. Earl fez uma careta para ela e, quando saiu do quarto, poderia jurar ter visto um leve sorriso brincando nos lábios de Allie. Capítulo IX Enquanto Earl conversava com Allie, Meg foi para a cozinha preparar um chocolate quente e um lanche leve. Nenhum deles comera muito bem no jantar, e ela desconfiava que Earl deveria estar faminto. Também arrumou uma bandeja para levar para Allie, conhecendo o apetite de sua filha adolescente. Deixou as xícaras e pratos na mesinha da sala e, quando ouviu os passos de Earl na escada, correu para saber o que ele dissera a Allie. Ele estava sorrindo levemente, o que encheu-a de alívio. — O que aconteceu? — perguntou. — Conversei com Allie sobre Matt Dawson. Ela vai me ajudar a convencê-lo. Meg não sabia se gostava da idéia. — Convencê-lo a fazer o quê? Não sei se quero que Allie tenha amizade com um garoto como ele. Matt não está sempre metendo-se em encrencas? — Na verdade, ele nunca fez nada grave. Apenas coisinhas sem importância. — Ainda assim... — Ele é basicamente um bom menino, Meg. Mas é revoltado.É revoltado porque seus pais abusam dele e o negligenciam. — Pois então tire-o daquela casa! — Já tentamos. Mas Matt sempre nega que qualquer um deles o esteja maltratando. Sempre diz que caiu, ou que apanhou numa briga. Até agora os ferimentos limitaram-se a alguns hematomas e um braço quebrado, que poderiam ter sido causados por uma briga, como ele afirma. Porém, ele está crescendo e as surras estão ficando piores. Ele começou a faltar da escola, em vez de simplesmente aparecer com um lábio inchado ou um olho roxo. O rapaz não confia nos adultos, Meg. Em nenhum de nós. Por isso tenho esperança de que confie em Allie o bastante para lhe dizer o que realmente está acontecendo. — Ainda acho que não é o tipo de amizade certa para Allie. Earl balançou a cabeça. — Acalme-se, Meg. Na verdade, Allie está ansiosa por ser o anjo salvador de Matt. Fará um bem enorme a ela pensar nos problemas de outra pessoa, e se sentirá melhor consigo mesma se puder ajudá-lo. E exatamente disso que ela está precisando.
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Meg não tinha como negar. Enquanto levava a bandeja para o quarto da filha, uma xícara de chocolate quente e dois biscoitos de pecan, que ela adorava, pensou sobre o que Earl havia dito. Realmente não tinha conhecimento de nada terrível que Matt fizera e, numa cidade daquele tamanho, se o rapaz tivesse feito algo muito errado ela ficaria sabendo. Mas sabia qual era o tipo de família a que ele pertencia, e não queria que Allie tivesse qualquer intimidade com tais pessoas. Porém, quando entrou no quarto, descobriu que a menina estava entusiasmada com a idéia de Earl. — Tio Earl quer que eu ajude Matt Dawson — Allie falou quando Meg deixou a bandeja em seu colo. — Humm... Chocolate quente e biscoitos. Obrigada, mamãe. Allie ergueu os olhos e sorriu, o primeiro sorriso genuíno desde que fugira de casa. Talvez o primeiro em muitos meses. — Como se sente a respeito disso? — Meg perguntou. — Matt está precisando de ajuda — a menina falou, séria. — Ele tem uma vida horrível. Quase nunca leva um lanche para a escola, sabia? — Não, eu não sabia. — Ele fica sentado ali olhando todo mundo comer. Mesmo quando era pequeno. Às vezes eu dividia o meu lanche com ele. — Que bom, Allie. Você me deixa muito orgulhosa. — Meg apanhouse sorrindo também. Aquela criança não podia ter pensado em suicídio. Matt devia estar enganado. Mas, então, Allie baixou os olhos para a bandeja. — Mamãe? — Sim? — Por que a vovó está sempre tão zangada com você? Meg sentiu o coração dar um pulo. — Por que pergunta? — Porque parece que ela odeia você. É possível que as mães odeiem suas filhas? — Ah, meu Deus... — Meg murmurou e deixou-se cair na cadeira da escrivaninha. Nunca lhe ocorrera que sua filha pudesse interpretar daquela maneira a atitude de Vivian. — Não — respondeu então, com toda a firmeza que pôde. — Ou, pelo menos, nem todas as mães odeiam suas filhas. Eu, certamente, não odeio você. Ao contrário, eu a amo muito, Allie. Você é a melhor coisa que aconteceu em toda minha vida. — Verdade? — Allie parecia em dúvida. — Então por que a vovó não sente o mesmo por você? Meg afundou as unhas na palma das mãos, tentando pensar na melhor maneira de responder. Não podia simplesmente ignorar, pois até mesmo Earl já percebera a tensão existente entre ela e sua mãe. — Bem... — falou, devagar. — Eu fiz algo errado, muito tempo atrás. E a vovó ainda está zangada comigo por isso. — O que você fez? Meg balançou a cabeça. — Isso não tem mais importância. — Mentirosa, acusou-se. — Mas a vovó guarda ressentimentos. É o jeito dela. — Não consigo imaginar nada que seja tão ruim. — Bem, eu não fui para a cadeia ou algo assim, se é o que está tentando imaginar. — Meg ficou aliviada ao ver que Allie sorria.
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— Então não foi nada demais. Ela deveria esquecer. — Eu concordo. Mas a sua avó é assim mesmo. — Você é igual a ela? — O que você acha? Allie balançou a cabeça. — Você nunca fica zangada comigo por muito tempo. — Está vendo? Esta é uma coisa que aprendi com ela: nunca ficar zangada por muito tempo. De qualquer forma, não há nada com que se preocupar, está bem? Allie pareceu satisfeita com isso e, passado algum tempo, Meg voltou para baixo. Earl estava sentado no sofá, tomando o chocolate quente. Já comera os biscoitos que Meg deixara na bandeja. — Tudo bem? — ele perguntou. — Ela parece estar melhor. Acho que você tinha razão, sobre ela ajudar Matt. Isso a deixou mais animada. — Sempre é bom preocupar-se com outras coisas, além dos nossos próprios problemas. — Uma pérola de sabedoria. — Meg sentou ao lado dele e pegou sua xícara. — Você é um bom sujeito, Earl Sanders. Olhou para ele a tempo de ver suas faces ruborizando levemente, e conteve um sorriso. Earl sempre se envergonhava quando recebia um elogio. — Só estou tentando consertar as coisas da melhor maneira que posso — ele falou, apressando-se em beber um gole do chocolate numa tentativa de evadir-se. Mais tarde, quando estava saindo, ele a surpreendeu ao parar na porta e abaixar-se para pousar um leve beijo no rosto de Meg. Em todos aqueles anos de amizade, era a primeira vez que fazia isso. E ela ficou ainda mais atônita ao perceber o quanto gostara Depois que ele saiu, Meg respirou fundo e encarou o fato de que precisava ter uma conversa com sua mãe. Não podia permanecer em silêncio depois do que Allie lhe dissera, mesmo sabendo que um confronto com Vivian seria mais um motivo de sofrimento. Mas, pelo bem de sua filha, tinha de tentar. Passou pelo quarto de Allie e encontrou-a dormindo profundamente, com a luz acesa, a bandeja ao lado da cama e o teclado em seu colo. Meg tirou o teclado, desligou c computador e as luzes e saiu do quarto com a bandeja. Mas, em vez de levá-la para a cozinha, deixoua na mesinha do corredor e bateu na porta do quarto da mãe. — Mamãe? Preciso falar com você. — Entre. Meg entrou no quarto que costumava reservar para os hóspedes, mas que agora não deixava dúvidas de que estava sendo ocupado por Vivian. Vivian havia até trocado as cortinas, que ela própria fizera na máquina de costura, substituindo as de voal branco que Meg tanto gostava por outras mais grossas, estampadas. Na cama, uma colcha de retalhos que trouxera de casa. Naquele momento ela estava sentada na cadeira de balanço, para a qual fizera almofadas que combinavam com o azul e branco das cortinas. Meg sentou na beirada da cama. — Quero falar sobre Allie. Vivian fechou a Bíblia e deixou-a na mesa-de-cabeceira.
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— Tudo bem. — Mamãe, Earl disse que Allie estava pensando em suicidar-se, quando fugiu de casa. Vivian estalou a língua e balançou a cabeça. — Não. Não posso acreditar numa coisa destas. Aquela menina é vergonhosamente mimada. Não existe nada em sua vida que possa levála a sequer pensar nisso. — Eu não teria tanta certeza. Allie perdeu o pai há menos de um ano. E, há pouco, perguntou por que você me odeia. Vivian arqueou a sobrancelha. — Ora, eu não odeio você. Sou sua mãe. — Isso não significa que não possa me odiar. — Isso é ridículo! Está tentando dizer que eu induzi aquela criança a pensar em suicídio? — Não estou dizendo nada disso. Mas quando uma menina da idade de Allie foge de casa e considera a possibilidade de matar-se, parece-me que as pessoas responsáveis por ela precisam dar uma boa olhada para dentro de si mesmas. E estas pessoas somos nós, mamãe. Vivian tornou a balançar a cabeça, mas ficou em silêncio. — Allie nos ama, mamãe. Tem sido muito difícil para ela sentir esta tensão que existe o tempo todo entre nós. E ela fica perguntando-se por que você me odeia, por que está sempre tão zangada comigo. Não vou discutir esta questão com ela, mas tenho uma forte impressão de que Allie está infeliz porque você e eu estamos infelizes uma com a outra. Acho que, no mínimo, nós deveríamos declarar uma trégua. Vivian continuou em silêncio e Meg conteve o impulso de sacudi-la. — Escute, mamãe — ela continuou, — já se passaram quinze anos desde que tudo aconteceu. Está na hora de você me perdoar. E você já teria perdoado se seguisse mais o que diz a sua Bíblia. Vivian ofegou. — Sou uma boa cristã. — Não quando se trata do perdão. Neste ponto, você falhou. — Meg levantou-se. — Não vou ficar discutindo sobre isso. Mas, pelo bem de Allie, talvez fosse melhor que parássemos de brigar. Quando saiu para o corredor e fechou a porta atrás de si, Meg deuse conta de que suas pernas estavam tremulas e seu coração disparado. Nunca era fácil referir-se ao incidente de quinze anos atrás. Nunca. Mas dizer à sua mãe que era hora de perdoá-la fora ainda mais difícil. Porque, no fundo de seu coração, Meg não acreditava que merecesse o perdão. Havia aceitado o que acontecera, e quase aceitara que não fizera nada de errado. Mas mesmo agora, depois que ela própria se perdoara, ainda sentia que não merecia o perdão de qualquer outra pessoa. A manhã trouxe mais neve. Olhando pela janela do quarto, Meg sentiu frio só de ver a neve caindo do céu cor de chumbo. O inverno chegara com um mês de antecedência, e isso só lhe trazia temores. Passou pelo quarto de Allie e viu que estava vazio. Então, ouviu um som surpreendente: risos. Allie estava rindo, em algum dos cômodos do andar de baixo. O som deixou-a mais animada e a fez perceber que muito tempo se passara desde a última vez em que alguém rira naquela casa. Allie estava sentada na mesa da cozinha, ainda de camisola e robe,
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cortando a massa de pãezinhos com um moldador de biscoitos e usando as sobras para modelar pequenas orelhas nos pãezinhos. E, maravilha das maravilhas, Vivian não reclamava da brincadeira e ainda estava sugerindo que Allie fizesse também a boca e os olhos. Era nenhum momento, naqueles últimos oito meses, Meg havia visto a mãe interagir daquela maneira com Allie. Tal cena aqueceu-lhe o coração e ela ficou parada na porta, relutando em entrar e quebrar o encantamento. Mas Allie a viu. — Mamãe! Olhe só o que estou fazendo. Não está engraçado? Meg aproximou-se da mesa. — Para dizer a verdade, acho que está muito artístico. Allie fez uma careta. — Você sempre elogia qualquer coisa que eu faço. É uma bobagem, eu sei. Mas é divertido. Vivian também estava sorrindo enquanto olhava para Allie, mas sua expressão endureceu quando se voltou para Meg. — Vai trabalhar hoje? — Estou pensando em pedir mais um dia de folga. — Não precisa fazer isso, mamãe — Allie falou. — Vou ficar bem aqui com a vovó. Minha cabeça nem está doendo mais. — Mas seus olhos estão ficando muito interessantes, com estes tons de verde e roxo. — Parece camuflagem — disse Allie, despreocupada. — A vovó disse que é um bom sinal. — Ela tem razão. — Meg raramente usava tais palavras ao referirse à mãe, mas desta vez obrigou-se a fazê-lo. Se realmente estivessem dispostas a fazer as pazes, as duas teriam de se esforçar. — Estarei de volta em um minuto. Preciso ligar para Joan. Joan Fenton era sua superior no escritório da empresa de crédito e seguros. Na verdade trabalhavam sempre juntas, sem muita preocupação com a hierarquia, mas mesmo depois de quinze anos Meg não se sentia à vontade para abusar da sua amizade com ela. Fosse como fosse, Joan era sua chefe e merecia ser tratada como tal. — É claro que você pode tirar mais um dia, Meg — Joan falou com sinceridade. — Fique em casa pelo restante da semana, se precisar. A folha de pagamentos só deve ficar pronta na semana que vem, portanto não estamos assim tão ocupados. Como está Allie? — Melhor, os olhos estão desinchando e ela diz que não tem mais dor de cabeça. E parece que já está manejando bem as muletas. — Fico tão contente em saber! Posso espalhar a boa notícia? Todo mundo que passa por aqui quer saber sobre você e Allie. — É claro que sim, vá em frente. Sinto-me tão grata às pessoas que ajudaram a procurá-la. Preciso pensar numa maneira de agradecer a todos. — Por que não publica uma mensagem no jornal? Quer que eu providencie? Terei o maior prazer. — Obrigada, Joan. Você é uma amiga maravilhosa. — Ora, ora... — Joan riu. — Vou lembrá-la do que disse quando a diretoria recusar o seu aumento para este ano. — Eles vão fazer isso?
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— Diabos, como vou saber? Mas é o que fazem todos os anos, não é? Depois de desligar, Meg voltou para a cozinha. A bagunça dos pãezinhos já fora arrumada e Allie estava limpando as mãos com uma toalha de papel umedecida. — Estará pronto em quinze minutos — Vivian avisou, virando o bacon na frigideira. — Obrigada, mamãe. — Meg serviu-se de café e foi sentar-se à mesa com a filha. — Você parece bem melhor esta manhã,querida. — Estou me sentindo melhor. — Girando o corpo na cadeira, Allie atirou o papel amassado no cesto de lixo, do outro lado da cozinha. Meg queria perguntar se ela sentia-se melhor a respeito das coisas que a fizeram fugir de casa, mas não queria que Vivian ouvisse. Mais tarde, prometeu a si mesma, ela e Allie teriam uma conversa séria. Depois do desjejum Vivian anunciou que iria limpar os quartos e desapareceu. Meg lavou a louça enquanto Allie tomava o restante do leite e ficava olhando pela janela vendo a neve cair. — O inverno chegou mais cedo — comentou. — É o que parece. — Eu queria morar na Flórida. Meg ficou surpresa com o comentário. Nunca pensara que Allie acalentasse tal desejo. — Por quê? — Porque lá não tem neve. Faz calor o ano inteiro. Pensando na experiência penosa que ela provavelmente tivera sob o frio da montanha, Meg sentiu um aperto no peito. — O frio às vezes pode ser... muito desagradável. — Pode até matar — Allie falou. Tais palavras deixaram Meg mais perturbada do que poderia dizer. Allie ainda estaria pensando na morte? No entanto, não sabia como formular a pergunta sem que a filha a descartasse como sem importância. Precisava manter a menina falando. Guardou o último prato na lavadora e virou-se para a filha. — Quer ir para a sala comigo? Lá está mais quente e eu quero limpar a lareira antes de colocar mais lenha. — Tudo bem. — Allie pegou as muletas, apoiou-se na perna livre e mancou para fora da cozinha como se tivesse feito isso a vida inteira. Meg foi logo em seguida, levando o balde para as cinzas e uma pá. Detestava limpar a lareira, mas era um mal necessário. Allie já se acomodara no sofá e ligara a tevê, onde um dinossauro rugia através das ruas de Nova York, perseguido por helicópteros. Aquela era uma barreira eficaz para qualquer tentativa de comunicação, Meg pensou, sem saber se seria proposital. Ainda havia algumas brasas na lareira e Meg empurrou-as para o lado antes de começar a retirar a cinza. Ainda estava quente e tão fina que se espalhou por todo lado, como uma nuvem de poeira. Meg chegou a sentir o gosto na boca. Encheu o balde com as cinzas, deixando uma camada no chão da lareira como base para o outro fogo. Acrescentou mais lenha que, com as brasas remanescentes, logo se acendeu. — Pronto — disse para Allie. — Daqui a pouco você vai estar tostadinha.
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tevê.
A menina assentiu mas não olhou para ela, mantendo a atenção na
Então, Meg pensou, aquilo não ia ser nada fácil. O humor de Allie parecia estar numa montanha-russa. Ótimo. Levou o balde de cinzas para a varanda, deixando ali para esfriar. Embora sentisse o ar gélido penetrando pela camisa de flanela, não voltou logo para dentro e foi buscar mais uma braçada de lenha. O frio, por mais dolorido que fosse, estava agradável. Era seco, penetrante, tão diferente da atmosfera dentro de casa. Mais limpo. A madeira estava coberta de neve e a camisa de Meg ficou toda molhada quando voltou com a lenha para dentro de casa. Allie continuava absorvida no filme e nem a viu entrar. Ah, que bom, Meg pensou. Saiu para buscar mais uma braçada de lenha e carregou-a para a caixa que ficava nos fundos. Quando ela e Bill construíram a casa acharam que uma única lareira no andar de baixo seria o suficiente, mas não funcionou. A casa era grande demais, por isso instalaram um aquecedor a lenha nos fundos, que acendiam nas noites mais frias. Com o calor produzido nas duas extremidades da casa, levado pelas duas escadas, todos os quartos permaneciam aquecidos. Normalmente, naquela época do ano, só a lareira da sala bastava para aquecer a casa, mas esse ano era diferente. Tudo estava diferente. Meg estava lavando-se na pia da cozinha quando alguém bateu na porta da frente. Esperando que fosse Earl, ela correu para atender. Mas deparou-se com o rapaz que havia encontrado nas montanhas. Matt Dawson. — Olá, Sra. Williams — ele disse, incerto. — Vim saber como Allie está passando. Meg perguntou-se por que ele não estava na escola, e então reparou num feio hematoma em seu rosto, perto da orelha. Qualquer resistência que pudesse ter em relação a ele desapareceu no mesmo instante. — Pode entrar, Matt. Tenho certeza de que Allie vai ficar contente em vê-lo. Ele pareceu surpreso com o convite, como se não estivesse acostumado a ser convidado a entrar nas casas das pessoas. Deu um passo cauteloso, tomando muito cuidado em limpar primeiro toda a neve das botas. — Ela está na sala — Meg falou, apontando a direção. — Pode entrar. Quer tomar um chocolate quente? Os olhos escuros do rapaz iluminaram-se. — Seria ótimo. — Vou buscar. Magro demais, Meg pensou ao vê-lo desaparecer na sala. Era um menino assustado e magro demais. E aquele hematoma... Balançando a cabeça, Meg foi preparar o chocolate. Earl estava tendo um dia calmo no escritório, o que era bom para variar. Dias como aqueles no início da semana não eram exatamente os que mais gostava. Por outro lado, procurar pessoas desaparecidas e lidar com acidentes de carro tinham-no mantido longe do trabalho burocrático e uma montanha de papel ainda jazia em cima de sua mesa, mesmo depois das várias horas que passara preenchendo formulários.
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Suspirando, ele recostou na cadeira e olhou para fora, vendo o dia cinzento. Seus pensamentos continuavam voltando para Meg e Allie até que, finalmente, desistiu de tentar controlá-los. A papelada poderia esperar mais um pouco. Estava preocupado com elas. Preocupado com a ausência de estabilidade emocional naquela casa. Elas tinham passado por uma dura perda, com a morte de Bill, mas havia algo mais além disso. Era a animosidade que ele sentia entre Vivian e Meg, uma animosidade que não conseguia entender. Além da sensação, que ultimamente lhe ocorrera, de que Meg entregara os pontos. E, agora, havia Allie, uma fugitiva e provável suicida. Earl sempre pensara em Meg como uma pessoa forte. Ela havia trabalhado lado a lado com ele e Bill quando construíram a casa, fazendo o trabalho pesado e braçal mesmo estando grávida e ainda trabalhando no escritório. Por duas vezes, quando Bill e Allie ficaram com gripe, Meg cuidara de ambos, mesmo estando doente também. Sempre lhe passara a impressão de ser forte e serena. Mas, é claro, Earl não morava com eles. Encontrava com ela apenas quando visitava Bill, ou quando o convidavam para almoçar ou jantar. Agora, perguntava-se se toda aquela força seria mesmo real ou se nascera da necessidade. Porque, naquele momento, Meg parecia estar totalmente indefesa. Porém, supunha que não poderia culpá-la por isso. Perder um marido amado devia ser bem pior do que perder um amigo. Para ele, a morte de Bill significara perder alguém com quem se encontrava para uma boa conversa e com quem às vezes saía para caminhar e acampar nos fins de semana. Para ela, significara perder alguém com quem convivia diariamente. Para onde quer que se virasse, Meg estaria vendo coisas que faziam-na lembrar-se dele. Talvez fosse melhor se ela se mudasse, ele pensou. No entanto, podia ser que ao cortar aquele último laço com Bill, ela se sentisse ainda pior do que ao ser obrigada a enfrentar as lembranças todos os dias. Talvez, ao permanecer naquela casa, Meg lembrava-se de Bill de maneiras que a faziam sentir-se bem. Também podia ser que ela estivesse apenas agarrando-se às lembranças, e não havia nada de errado com isso. Porém, viver numa espécie de monumento ao passado não deixava espaço para ninguém mais entrar. Talvez fosse por isso que Vivian demonstrava tanta hostilidade. Talvez ela se sentisse excluída. E Allie poderia estar sentindo o mesmo. Se suas visitas continuassem se limitando a uma vez por semana, ele jamais teria chance de descobrir o que realmente estava acontecendo. Poderia usar Allie como desculpa para visitas mais freqüentes, mas, depois que a menina se restabelecesse, o que faria? Meg poderia incomodar-se, se ele começasse a aparecer todos os dias. Além disso, havia Vivian, que nunca gostara dele. Earl seria capaz de apostar que ela armaria uma confusão, caso ele passasse a visitá-las diariamente, e Meg não precisava de mais um aborrecimento. Enquanto seu olhar vagava por entre as pessoas que passavam nas ruas abaixo, encolhidas sob o vento frio, Earl percebeu que seus pensamentos voltavam para a noite anterior, em como ele sentira-se bem
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tendo Meg em seus braços. E em como fora um tolo ao beijá-la, mesmo no rosto. Existem coisas que é melhor não se saber. E, agora, ele sabia. Durante todos aqueles anos Earl tinha consciência de que achava Meg uma mulher atraente, mas era a esposa do seu melhor amigo e, por isso, ele tratou de ignorar o que sentia. Mas agora que ela estava viúva o sentimento não parava de atormentá-lo. Na noite anterior, florescera em algo que era impossível ignorar, com uma força que chegava a irritá-lo. Isso o fazia sentir-se um tanto culpado, como se estivesse fazendo algo errado. O que Meg diria, se desconfiasse? Esperava que isso não acontecesse, mas o fato de ela não saber não significava que ele não soubesse. Sabia, sim. E ficar bancando o amigo dela, sabendo o quanto a desejava, seria o mesmo que enganá-la, agir como o lobo em pele de cordeiro. Tal pensamento incomodou-o, mesmo contra sua vontade. Estava exagerando. Podia estar interessado, mas não precisava tomar nenhuma iniciativa. Contanto que mantivesse seu segredo, não estaria agindo como lobo nenhum. Nunca havia lhe ocorrido que seus sentimentos pudessem estar obscurecendo seu julgamento sobre o que de fato acontecia naquela casa. Balançando a cabeça, Earl voltou a atenção para o trabalho, dizendo a si mesmo para esquecer de uma vez toda aquela tolice. Trabalhou até por volta das três horas, quando ligaram da escola para informá-lo que Matt Dawson estivera ausente nos últimos três dias, e que o pai do rapaz afirmara não saber onde ele estava. — Bem — Earl falou para Verônica Myers, a assistente do diretor —, eu sei onde ele estava na segunda-feira. Matt nos ajudou no resgate de Allie Williams. — Ouvi comentários sobre isso — disse Verônica. — Mas ele não veio para a escola ontem e nem hoje, e estou preocupada, Earl. E se o pai... Isto é, e se alguém o machucou para valer desta vez? Ele compreendia a sua preocupação. — Vou pedir ao meu pessoal para procurá-lo, Verônica. — Obrigada. Depois que desligou, Earl apanhou-se olhando novamente pela janela, agora pensando em Matt Dawson. Temia que o rapaz acabasse morrendo, se não se decidisse a acusar de uma vez quem vivia espancando-o. Pior ainda, temia que isso já pudesse ter acontecido. Chamou Lydia Valdez em seu escritório e explicou a situação. Ela prometeu tomar providências imediatas. — Se ele foi espancado outra vez, Lydia, traga-o para cá sob acusação de vadiagem. — Pensei que não quisesse fazer isso, chefe. — Mudei de idéia. Isso me dará uma boa desculpa para deixar "alguém" morrendo de medo, na casa dele. — Bem pensado. Quando for fazer isso, eu gostaria de acompanhálo. Também tenho umas palavrinhas a dizer para aqueles dois, e há meses que esta história está me deixando quase doente. — Pode deixar. Depois que Lydia saiu, Earl pensou que talvez errara ao deixar Matt tão à vontade, no decorrer daqueles anos. Agira assim porque sabia
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o quanto a vida era difícil para uma criança negligenciada e criada num lar sem qualquer estrutura. Se começasse a pressionar o rapaz, acusando-o por quaisquer infrações juvenis, estaria apenas tornando seu futuro ainda mais difícil. Porém, talvez estivesse na hora de começar a aplicar a lei com mais severidade pois, através disso, poderia atingir também os pais dele. Deus, ele odiava a violência doméstica. Muitas vezes tinha pleno conhecimento do que estava acontecendo, mas suas mãos ficavam atadas porque as vítimas não tinham coragem de dizer o que estava sendo feito a elas. Earl desejava que os Dawson não morassem num lugar tão afastado porque, se tivessem vizinhos, alguém já os teria delatado e apresentado as evidências suficientes para o que rapaz fosse tirado daquela casa. Mas em todos aqueles anos, desde que Matt era pequeno, as evidências tinham sido raras. Um ou outro feriment0 ocasional, que poderia ter sido causado por um acidente enquanto brincava. Os abusos mais graves tinham começado um ou dois anos atrás, e Matt mentia descaradamente sobre isso. Nenhum adolescente, por mais "esquentado" que fosse, poderia meter-se em tantas brigas quanto as que ele afirmava. E, se fosse verdade, alguém mais deveria estar exibindo as marcas roxas. Só que não havia ninguém. Quanto mais pensava, mais triste Earl se sentia com toda aquela história. Ocorreu-lhe que, nos anos da infância, quando Matt aparecia com apenas um hematoma ocasional, outros tipos de abuso poderiam estar acontecendo. Abusos que não deixavam marcas. Precisava pensar numa maneira de salvá-lo. Isso o levou direto para Allie. Olhando no relógio, viu que eram quase quatro horas. Estava na hora de encerrar o expediente, dar uma passada na casa de Meg e verificar como estavam as suas "meninas". Era a primeira vez que pensava nelas desta forma. Suas meninas. As palavras tão possessivas perpassaram-lhe a mente, sem muita agitação. Mas foi uma mudança significativa, que ele nem mesmo percebeu. Matt Dawson passou o dia fazendo companhia a Allie, e Meg descobriu que isso não a incomodava nem um pouco. O rapaz era surpreendentemente educado, para um jovem sobre quem ela jamais ouvira uma palavra de elogio, e extremamente grato pela comida que, a toda hora, ela lhe servia. Matt e Allie distraíram-se com jogos e cartas, e depois assistiram o filme E.T., que sempre fazia Allie chorar. Ele também pareceu emocionado, mas é claro que não chorou. Em vez disso, demonstrou aquela incerteza típica dos homens quando confrontados com emoções mais fortes. Vivian ficou fora do caminho a maior parte do dia, fazendo a limpeza dos quartos. Até permitiu que Meg fizesse o almoço e, quando foi chamada para almoçar, conseguiu balbuciar um "obrigada" para a filha. As coisas pareciam estar melhorando, Meg pensou. Até foi capaz de enviar um sorriso caloroso para Earl, quando ele apareceu sem avisar. Os olhos azuis dele refletiam o entusiasmo que ela sentia. — Passei para ver como vão as minhas damas — ele disse. — Estamos muito bem. Matt Dawson está aqui, jogando cartas com
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Allie na sala. — Então vamos para a cozinha. Meg franziu a testa, intrigada, mas ele pousou um dedo nos lábios. Ela assentiu e o fez entrar. Matt e Allie, na sala, nem mesmo desviaram os olhos do jogo quando Earl e Meg passaram pela porta. — Café? — ela perguntou, enquanto ele acomodava-se na mesa. — Não, obrigado. Já tomei muito café, hoje. Meg sentou-se em frente a ele. — O que aconteceu? — Recebi um telefonema da escola. Há três dias que Matt não aparece por lá. A oficial de menores está procurando por ele, neste exato momento. Terei de avisá-la para suspender as buscas, mas estou pensando em detê-lo por vadiagem. Três dias atrás Meg teria dito que ele fosse em frente e prendesse o rapaz. Porém, depois daquele dia, surpreendeu-se ao perceber o quanto se sentia protetora em relação a ele. — Precisa mesmo fazer isso? Ele comportou-se muito bem aqui com Allie, o dia todo. — Não quero criar problemas para o rapaz, Meg. Mas a prisão dele talvez me dê uma chance de chegar até os pais. Talvez eu possa dizer algo a eles sobre a maneira como o estão tratando. Meg assentiu. — Mas talvez acabe fazendo com que os pais fiquem ainda mais zangados com ele. — É uma possibilidade. — Earl suspirou e passou a mão pelo queixo. — Tudo bem — disse, com um sorriso nos olhos azuis. — O que você faria? Ela pensou por um instante, depois começou a rir. — Sei lá! O telefone tocou e ela foi atender. Era uma das amigas de Allie. Agora que pensava nisso, Meg ficou surpresa ao perceber que a filha não recebera muitos telefonemas desde o dia anterior. Ela havia deixado o telefone desligado nos dias em que a menina desaparecera, pois os repórteres não paravam de incomodá-la, mas o religara assim que voltaram do hospital. Sua dúvida foi prontamente solucionada por Sandy Miller: — Eu queria ligar ontem mesmo, Sra. Williams, mas mamãe achou que era muito cedo. Espero que Allie não esteja estranhando que eu não liguei. — Acho que sua mãe estava certa, Sandy, mas hoje Allie está bem melhor. Espere um pouco, vou chamá-la. Meg foi para o vestíbulo e disse a Allie que pegasse o telefone. Depois, desligou a extensão da cozinha e sentou-se novamente. — Voltando ao assunto de Matt — Earl falou. — Então você acha que não devo detê-lo? — Não sei se realmente seria bom para ele, Earl. Afinal, ele tem dezesseis anos. Não poderia simplesmente abandonar a escola, se quisesse? E talvez acabe fazendo isso, se começar a ser preso por vadiagem. — Eu não havia pensado nisso. — Earl recostou na cadeira. — Ora, achei que finalmente havia tido uma boa idéia. Meg riu diante da sua expressão desolada. Earl era bom nisso,
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percebeu. Mesmo depois de todo o sofrimento dos últimos oito meses, ele ainda conseguia fazê-la rir. — Então, como vai indo a batalha? — ele perguntou. — Com minha mãe? Na verdade, hoje até que tivemos um dia bem calmo. Conversei com ela ontem à noite e, ao que parece, está se mostrando disposta a tentar. — Que bom. Tomara que isso dure. — É... Earl hesitou, e Meg percebeu que ele queria pressioná-la para chegar à raiz do problema. Seu coração disparou, com a expectativa da pergunta que certamente viria, mas naquele momento Allie entrou na cozinha equilibrando-se nas muletas. — Oi, tio Earl! — cumprimentou, distraída. — Mamãe, Matt pode ficar para o jantar? — É claro que sim. Será um prazer. — Obrigada. — Ela afastou-se, sorrindo. — Allie parece muito melhor — Earl comentou. — Sim, ela está. Mas eu ainda estou preocupada. — Pensamentos suicidas não podem ser ignorados. Talvez você precise levá-la a uma psicóloga, ou uma orientadora. Poderiam ir juntas. Mas a idéia de procurar ajuda externa fazia o peito de Meg apertarse. Seria inútil, se ela não falasse a verdade, e achava que isso era algo que não conseguiria obrigar-se a fazer. Foi então que Earl apanhou-a desprevenida, fazendo a pergunta à queima-roupa: — Meg, qual é o motivo de sua mãe estar sempre tão zangada? E, antes que pudesse se conter, ela confessou a verdade: — Porque eu matei o meu pai. Capítulo X Earl estava atônito. Por um instante, não conseguiu nem respirar. Meg, uma assassina? Isso era impensável! Antes que ele pudesse pensar no que dizer, Vivian entrou na cozinha. Pela sua expressão, ninguém diria que se mostrara mais agradável naquele dia do que nos outros. Com uma carranca malhumorada, disparou: — Afinal, para quantas pessoas terei de cozinhar? Allie me informou que aquele garoto vai comer aqui. Imagino que você também pretende ficar. — A última frase foi acompanhada de um olhar acusador para Earl. Ele não conseguiu responder e, de qualquer forma, nem teve tempo. Meg, pálida e tremendo, anunciou: — Earl é sempre bem-vindo em nossa mesa, mamãe. Mamãe. A palavra chegava a estalar, tamanha era a tensão nela contida. Meg falou novamente, recusando-se a olhar para ele. — De qualquer forma, acho que Earl não vai querer ficar. Earl não sabia o que ela queria dizer com isso e sentiu-se desprezível, pois era verdade. Assim, falou a única coisa que poderia:
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— Pelo contrário, eu gostaria muito. — Ótimo — Vivian falou, irritada. Cruzou a cozinha com passos duros. — Isso significa que terei de desossar outro frango. E veja só que horas são! — Tenho certeza de que vai conseguir, mamãe — Meg retrucou. — O microondas ainda funciona. Vivian fez um muxoxo de desprezo. Earl empurrou a cadeira para trás e levantou-se, incapaz de ficar ali por nem mais um minuto. — Preciso de ar fresco. — Mal se afastou da mesa quando se deu conta de que também não podia fazer isso. Se saísse agora, estaria dando um intervalo para a conversa que se iniciara com Meg. Virou-se para ela. — Quer vir comigo? Vamos dar uma volta. Ela quis recusar. Earl a viu encolher-se para dentro de si mesma e odiou-se por fazê-la sentir-se daquela forma. Insistira para que ela confiasse nele, e ela cedera. O que iria fazer agora? Entregá-la? Não seria capaz disso. — Meg? — disse, forçando um tom gentil à voz. — Venha comigo, por favor. Pegaram os casacos e saíram pela porta da frente, seguindo pela entrada da garagem. A neve caíra o dia inteiro, mas apenas em flocos esparsos, acrescentando muito pouco ao fino tapete branco. O vento estava gelado, no entanto, contendo a umidade que provocava a neve, e penetrava pelo casaco de Earl. Sem nada dizer,foram caminhando lentamente, tomando cuidado para não escorregar. Finalmente Earl encontrou as palavras que procurava. — Você não é uma assassina, Meg. — Eu não disse que era. Ela escorregou, sufocando um gritinho, e Earl segurou-a pelo braço, endireitando-a. Subitamente sentia-se bem melhor. Ela não era uma assassina. Não que tivesse acreditado nisso, mas ajudara muito ouvi-la dizer que ele não estava errado. — Então, o que realmente aconteceu? — ele perguntou. — Não quero falar sobre isso, Earl. — A voz dela estava tensa, contida. — Com todos os problemas que estou enfrentando agora... — Deixou a frase no ar. Earl sentiu-se tentado a demonstrar simpatia e parar de insistir. No entanto, sabia que fosse lá o que tivesse acontecido no passado, estava afetando a situação no presente. Seu peito doía de tristeza e apreensão, e esperou um pouco mais antes de arriscar-se a ser direto e sincero. — Meg, qualquer coisa que tenha acontecido entre você e sua mãe está afetando Allie. O que quer que tenha acontecido no passado está causando um grande efeito agora. Se você acredita que não deve a si mesma purgar de uma vez esta ferida, ao menos pense que deve isso à Allie. Meg prendeu o fôlego bruscamente e, quando olhou para ela, Earl percebeu que lutava contra as lágrimas. — Eu... não consigo — ela sussurrou ofegante. — É claro que consegue. Você precisa — ele disse. — Já pensou que, se falar, o problema parecerá menor? Que alguém poderá lhe dar uma outra visão do assunto, permitindo que lide melhor com isso? Meg, não se
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trata apenas da maneira como sua mãe se comporta, é também a forma como você reage a ela. E esta combinação que está dificultando tanto a convivência em sua casa. Ela aspirou o ar com força. — Você está dizendo que eu levei minha filha ao suicídio? Deus! Earl sabia que ela iria tornar-se tão defensiva. Por que diabos não ficava com a boca fechada? Mas não podia, para bem de Allie. Para o bem de Meg. E até, maldição, para o seu próprio bem. Aquilo era como uma doença contagiosa que os estava atingindo em graus variados, e o fato de ignorá-la não os deixaria curados. — Não, não é isso que estou dizendo. — E por que não? Parece que eu mato todos aqueles a quem amo. Tal afirmação atingiu-o como uma pedra, e Earl parou de repente, virando-se para encará-la. — Nunca — ele disse, pronunciando as palavras bem devagar para dar-lhes mais ênfase —, nunca se permita acreditar numa coisa destas. — Por que não? É a verdade. — Um soluço escapou de seu peito e ela quis virar-se, mas Earl a segurou. — Todos aqueles a quem amo... — As palavras ficaram no ar e ela soluçou novamente. Earl não pôde mais se conter. Estendendo os braços, enlaçou-a num abraço apertado, como se pudesse protegê-la com sua força e afastar toda a dor, todo o medo, toda a tristeza de sua vida. Abraçou-a porque precisava tê-la perto de si, precisava assegurar-se de que ela não desapareceria como a chama de uma vela soprada pelo vento, vencida por um peso grande demais para ser suportado. Meg estava chorando. Earl sentiu-lhe o corpo estremecer com os soluços, de encontro ao seu. O frio provocava uma dor aguda em suas orelhas, e uma dor bem parecida atingia-lhe a alma, como se ambos estivessem sendo congelados pelos ventos turbulentos. — Meg — ele murmurou, acariciando-lhe as costas. — Meg, está tudo bem. Nós vamos dar um jeito em tudo. Eu prometo. Palavras inúteis. Ele sabia, mesmo quando as pronunciava. Não sabia o que estava prometendo, como poderia cumprir, e nem mesmo sabia se seria capaz de lidar com tudo aquilo. Porém, tinha de acreditar que a amizade que sentia por Meg era capaz de enfrentar qualquer coisa. Qualquer coisa imaginável. — Desculpe-me — ela disse finalmente, tentando afastar as lágrimas dos olhos. — Estou me comportando como uma criança. — Está tudo bem. Todos nós precisamos chorar de vez em quando. — Earl afastou-a relutante, surpreso ao perceber que precisara daqueles momentos de proximidade física tanto quanto ela. Isso o deixou perturbado. — Eu estava falando sério, Meg. Nós vamos resolver tudo isso. — É claro. Mas ela enfiou as mãos nos bolsos do casaco e recomeçou a andar. Para a frente, e não de volta para a casa, o que deixou-o aliviado, pois significava que não pretendia encerrar a conversa. Decidiu considerar como um sinal positivo. — Então, o que aconteceu? — ele tornou a perguntar, consciente de que estava se arriscando. — Você pode me contar, Meg. Ela permaneceu em silêncio por um momento. Baixou a cabeça,
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olhando fixamente para o chão, mas emitiu um profundo suspiro. Por duas vezes levantou a cabeça para o céu, como se pudesse encontrar ali a sua resposta. — Meu pai — ela falou então, com a voz trêmula. Fez uma pausa, respirou fundo e tentou outra vez. — Meu pai viu... quando Bill e eu estávamos... Diabos! — Fazendo sexo? — Earl sugeriu, sabendo muito bem que Meg já estava grávida quando casou-se com Bill. — Humm... sim — ela conseguiu dizer. Porém, algo em seu tom de voz indicou a Earl que aquela não era toda a história, que ela estava ocultando alguma coisa por trás daquela descrição clínica. — E? — Ele ficou tão chocado que teve um ataque cardíaco. Morreu dois dias depois, sem nem mesmo recobrar a consciência. — E Vivian a culpa por isso? Meg assentiu devagar. — Aquela mulher é maluca! Muitos pais já pegaram seus filhos em flagrante, sem sofrer nenhum ataque cardíaco. Se ele ja estava com a saúde abalada, qualquer coisa poderia ter causado o ataque. Até zangarse com Vivian poderia tê-lo provocado. Meg encarou-o, os olhos cheios de lágrimas. — Você não entende. Eles eram pessoas muito religiosas. Quando papai viu... bem, foi uma coisa terrível... terrível. Earl percebeu que ela não usara a palavra "pecado". E achou que isso era significativo, embora não tivesse certeza de por quê. Seus instintos de policial lhe diziam para ir a fundo, mas não sabia como pressioná-la mais. Sentia que Meg já confidenciara o bastante para uma primeira conversa, a julgar pelo brilho desesperado em seus olhos. — Bem — ele disse, com firmeza —, você não matou seu pai. Ele poderia muito bem morrer no dia seguinte, enquanto trabalhava no campo. O que aconteceu teria acontecido de qualquer forma, mais cedo ou mais tarde. — É fácil dizer — ela falou com amargura. — Pensa que já não disse estas coisas a mim mesma um milhão de vezes? Mas, ainda assim, eu fui a causa imediata da morte dele. Earl conteve um suspiro exasperado, sentindo como se estivesse batendo inutilmente num bloco de pedra. As pessoas acreditavam no que queriam acreditar. Ele já deveria saber disso. Mas era doloroso para ele saber que Meg sofria tanto, e tentou pensar em alguma coisa que pudesse realmente ajudá-la. Quando ela virou-se e começou a caminhar de volta para casa, ele não conseguira encontrar nenhuma palavra de consolo. Mas, naturalmente, nada do que dissesse faria a menor diferença, quando a própria mãe dela a julgava responsável pela morte do pai. Por que a opinião dele pesaria mais do que a de Vivian? Diabos, não pesaria nada. E agora, gênio?Perguntou a si mesmo. O que você vai fazer? Mas o mundo coberto de neve não lhe ofereceu nenhuma resposta. Vivian não falou nada que pudesse deixar alguém pouco à vontade durante o jantar, mas conseguiu fazer isso de qualquer forma. Logo após
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a refeição, quando Matt ofereceu-se para ajudar com os pratos e foi recusado, por Vivian, que deixou bem claro que não confiaria nele nem mesmo para lidar com a louça de uso diário, ele desculpou-se dizendo que precisava voltar para casa. Earl tinha certeza de que isso não era verdade, mas esperou até que o rapaz saísse, antes de segui-lo. — Matt? O garoto hesitou, depois virou-se para encará-lo com uma expressão de teimosia. — Onde você arranjou esse ferimento novo perto da orelha? — Bati numa porta. — É, certo. Imagino que a porta saiu correndo atrás de você. Matt permaneceu num silêncio obstinado. — Escute, filho, eu sei o que está acontecendo, mesmo que você não diga nada. Se precisar de um lugar para ficar, me procure. Não precisa fugir, entendeu? Depois de um instante, Matt assentiu rapidamente e correu para seu carro. Earl permaneceu ali no frio, observando-o afastar-se e desejando que o rapaz não tivesse aquele temperamento tão teimoso. Por outro lado, pensou tristemente, tal teimosia talvez fosse o que o mantivera vivo naqueles anos todos. Sem dúvida era o que fazia com que ele próprio sobrevivesse, às vezes. Earl jogou duas partidas de gamão com Allie, antes que a menina subisse para o quarto a fim de conversar com seus companheiros de Internet. Ele viu-a subir os degraus com dificuldade, parte dele querendo correr para ajudá-la, outra parte admirando a rapidez com que ela aprendera a manejar as muletas. Aplaudiu-a do pé da escada, quando ela atingiu o topo, e Allie virou-se rapidamente, enviando-lhe um sorriso. Ela estava sentindo-se melhor, Earl pensou. Talvez não precisasse se preocupar tanto com ela. Vivian já se recolhera em seu quarto, deixando bem claro que não queria nenhuma conversa com Earl. Ele não sabia se achava isso bom ou ruim. Na verdade, não fazia a menor questão de conversar com Vivian, mas, por outro lado, não tinha certeza se Meg era indiferente à desaprovação da mãe em relação a ele. Mas agora estavam apenas os dois, e isso não era nada bom. Definitivamente não. Porque bastava Earl olhar para Meg para perceber o quanto ela estava tensa e infeliz, e isso não estava de acordo com sua própria reação quando olhava para os seios dela, ou para seus quadris. Meg era uma bela mulher de trinta e quatro anos. E estava muito mais bonita agora do que quando se casara com Bill. Apesar de não ser mais uma jovenzinha, os anos haviam esculpido linhas graciosas em seu rosto, no lugar da suavidade. Os traços eram firmes, o queixo delicadamente empinado, e os seios... o tempo os tornara mais cheios e arredondados. Não grandes, mas... bem, perfeitos. Earl não precisava ficar reparando nessas coisas naquele momento, quando Meg estava tão perturbada e triste. Na verdade, sua reação sexual a ela, que sempre fora um problema, agora parecia ter aumentado ainda mais. O que ela precisava dele não tinha nada a ver com a maneira como ele se sentia, desejando deitá-la numa cama macia
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e idolatrá-la com seu próprio corpo. Não. Não podia ficar pensando nisso. Tais idéias enchiam-no de culpa. Embora já não sentisse que estava traindo Bill com tais sentimentos, agora ele sentia que estava traindo Meg. Assim, ele nem a teria tocado se, quando se aproximaram da porta da frente, ela não tivesse segurado sua mão. — Obrigada, Earl — ela disse. — Obrigada por tudo. Ele deveria ter deixado como estava. Porém, algum impulso mais forte e profundo dirigiu seus atos e ele puxou-a para si, envolvendo-a em seus braços e beijando-a na boca. Assim que fez isso, soube que cometera um erro. Sentiu-a enrijecer, ao mesmo tempo em que sentia o quente fluxo de desejo perpassar seu próprio corpo. Agora teria de voltar para sua casa solitária e lembrar-se exatamente de como o corpo dela moldara-se contra o seu, do gosto de seus lábios. E, agora, provavelmente Meg nunca mais confiaria nele. Foi apenas por um breve instante, mas Earl sentiu tudo isso nas profundezas de sua alma. Tremendo, soltou-a e deu um passo para trás. E o que viu nos olhos dela foi confusão e medo. — Desculpe-me — falou. — Tente ignorar isso. Depois, saiu para a noite fria e escura, sabendo que nenhum deles seria capaz disso. Meg fechou a porta, tremendo dos pés à cabeça. Earl havia desencadeado nela um fluxo de violentas emoções, que não conseguia nem ao menos identificar. Isso a deixou aterrorizada. Ficou parada ali, recostando-se na porta, fechando os olhos e desejando poder apoiar-se para sempre em algo tão forte quanto aquela madeira. — Ora, ora, isso não foi uma beleza? — O tom sarcástico na voz de Vivian assustou-a e a fez girar rapidamente. Vivian estava parada no topo da escada, olhando para baixo com desprezo. — Vejo que retomou os seus antigos truques. Você sempre foi uma vadia. Ondas de frio e calor perpassavam Meg, enfraquecendo-a a ponto de achar que poderia desmaiar. — Não vamos começar com isso, mamãe. — Por que não? O pobre Bill está enterrado há menos de um ano, e você já começou a dar as suas "voltinhas". — Você não sabe o que está dizendo! — Sei o que vi com meus próprios olhos. O mesmo tipo de coisa que seu pai viu, e que o matou. — Não foi nada disso que meu pai viu. — Não, porque pelo menos agora você não chegou a tanto. — Mamãe, o que papai viu foi Bill me violentando! As palavras que Meg nunca pronunciara em voz alta escaparam sem qualquer aviso, como se algo dentro de si tivesse explodido e as atirado no ar. O choque deixou-a congelada, enquanto a terrível acusação pairava no silêncio que se seguiu. Vivian empalideceu. Estendeu a mão e agarrou-se ao corrimão da escada em busca de apoio, vacilando perigosamente. Temendo que pudesse matar outra pessoa a quem amava, Meg subiu a escada correndo e tentou ajudá-la, mas Vivian empurrou-a para o lado. — Não me toque! Como pode dizer uma coisa tão desprezível? — Porque é a verdade — Meg respondeu, a voz entrecortada pelas
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lágrimas que começaram a jorrar. — Porque é a verdade, mamãe... Vivian endireitou-se e olhou para ela. — Não posso acreditar. — É verdade... As duas mulheres imobilizaram-se, olhando uma para a outra, uma chorando e implorando silenciosamente por perdão, a outra parecendo frágil, amedrontada e ferida. — Não posso... não posso... — Vivian murmurou. — Acredite em mim. Por favor, mamãe,ouça o que tenho a dizer. Após um silêncio interminável, Vivian assentiu. — Aqui não — Meg falou, enxugando as lágrimas com as mãos. — Aqui não. Allie... Vivian assentiu novamente e seguiu pelo corredor a caminho de seu quarto. Depois que entraram, fechou a porta. Meg sentou na beirada da cama da mãe. Vivian sentou na cadeira de balanço. — Se isso é verdade — Vivian falou finalmente —, por que não me contou quando aconteceu? — Porque eu não sabia que era isso que havia acontecido. A expressão de Vivian endureceu. — Não pode esperar que eu acredite nesta tolice. — Sei que é difícil. Eu demorei anos para compreender o que realmente aconteceu, e nunca quis falar nada justamente porque é tão difícil de acreditar. Mas foi estupro, mamãe. Vivian desviou o rosto, balançando-se rapidamente na cadeira. O estalar da madeira enchia o silêncio no quarto. — Você não ficou machucada — ela falou, afinal. — Nem todo estupro envolve ameaças e espancamento. Agora que o assunto estava às claras, Meg achou que não suportaria discuti-lo. Não suportaria expor-se daquela maneira. Era um episódio que fizera o possível para esquecer, pois pensar nele poderia ter afetado seu casamento e, em conseqüência, ter afetado a sua filha. Mas sabia o quanto seria difícil para sua mãe aceitar tudo isso. Ela própria levara dez anos para finalmente admitir o que realmente acontecera naquele dia no celeiro. Para admitir que não se entregara a Bill porque desejava. Para finalmente aceitar o fato de que o episódio ocorrera totalmente contra sua vontade. E, se ela demorara dez anos para isso, não podia esperar que Vivian aceitasse tudo em questão de minutos. E mesmo depois de compreender que não tivera nenhuma culpa naquele evento, Meg ainda sentia-se incapaz de perdoar-se completamente pelo papel que tivera na morte do pai Depois que descobrira o que realmente havia acontecido, começara a castigar-se por não ter lutado com mais empenho, por não ter gritado. Ela se permitira ser intimidada, permitira-se ser dominada por uma força maior. Até mesmo permitira que Bill a fizesse acreditar que havia algo errado com ela por recusar. Vivian encarou-a. — Você está inventando tudo isso como uma desculpa para o que fez. Devia envergonhar-se de si mesma. Meg abriu a boca para argumentar, mas a voz ficou presa em sua garganta. Resquícios de dúvida insinuavam-se como serpentes em sua mente, desequilibrando-a. Ela havia levado dez anos para descobrir que
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fora estuprada mas, talvez, tivesse apenas reconstruído a lembrança. A gente sempre lê sobre como algumas lembranças não são verdadeiras, como as pessoas as refazem momento a momento e acabam acreditando nelas completamente. Ah, Deus, teria alguma parte de sua mente feito isso? Ela apertou os olhos com força e, subitamente, com toda a nitidez, lembrou-se da maneira como se sentira presa sob Bill. Lembrou-se de como as mãos dele a machucavam, enquanto obrigavam-na a ficar deitada. Lembrou-se do cheiro do feno, e como a palha espetava o seu corpo nu. Podia até sentir o odor do suor dele, quando desabou sobre ela. E se as lembranças não fossem reais? Mas em todos aqueles anos ela sentira que havia algo errado sobre o que acontecera. Desde o primeiro momento. Havia tentado ignorar a sensação, lembrando a si mesma que devia o sexo a Bill porque estavam noivos. Dizendo a si mesma que ele apenas ficara excitado porque ela permitira que as carícias fossem longe demais. Acreditando que ele estivera certo quando dissera que ela tinha prazer em provocá-lo, se não se entregasse. Tentando esquecer quantas vezes dissera não, quantas vezes implorara para que ele parasse, como tentara convencê-lo de que era errado fazerem sexo antes do casamento. E como ele rira das suas objeções, e depois ficara irritado, até que finalmente... Não, pensou, havia sido um estupro. Mas as dúvidas perturbadoras não se afastavam. — Eu disse a ele que não queria — falou para Vivian, pesando as palavras cuidadosamente. — Pedi a ele que parasse, muitas e muitas vezes. E não concordei em fazer, em nenhum momento. Vivian encolheu os ombros. — As mulheres nem sempre estão sendo sinceras, quando dizem não. Ouvir tais palavras de sua mãe foi uma traição que a magoou de maneiras que Meg nem conseguia identificar. Sentiu que algo dentro de si desintegrava-se, estilhaçando-se em milhares de pedaços. E quando o estilhaçamento parou, sentiu um frio invadi-la, como um vento gelado que soprasse em seu coração. Com o vazio que se seguiu, veio também a certeza sobre o que acontecera. — Eu estava sendo sincera, quando disse não — falou, baixinho. — E não matei o meu pai. Ele ouviu-me gritando e perguntando a Bill porque ele não havia parado. E, se papai estivesse vivo, seria exatamente isso que diria a você. Ele teve um ataque cardíaco porque viu a filha sendo violentada. Meg encaminhou-se para a porta, decidindo que no dia seguinte levaria Vivian para a estação de ônibus e lhe pediria para nunca mais aparecer. Não precisava carregar aquele peso pelo resto da vida. Tinha problemas suficientes, no momento, para ainda ser obrigada a suportar mais aquele. Precisava livrar-se de Vivian para que pudesse concentrarse em Allie. — Se isso é verdade — Vivian falou atrás dela, — então por que você se casou com Bill? Meg não respondeu. Não conseguia responder. Sua mãe sabia muito bem porque ela se casara com Bill. Porque, na esteira da morte de seu pai, o choque da gravidez de Meg fora grande demais. Porque Vivian
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insistira que era a única coisa a fazer. Porque Bill era o pai de Allie. E porque, apesar de tudo o que acontecera, Meg havia amado Bill. Porque ela havia demorado dez anos para dar-se conta de que seu marido não tivera o direito de tomar à força o que roubara dela. Deus, Vivian enxergava o mundo em termos tão simplificados. Meg fechou a porta atrás de si e ficou parada no corredor,experimentando o vazio que a preenchia. Era bom, percebeu.Sentia-se calma. Extremamente calma, como se as emoções tivessem se escondido por trás de uma parede de vidro. Sabia que elas continuavam ali, mas não podia senti-las nem ouvilas. Estavam mudas. Se fosse algum tipo de esgotamento nervoso, era muito bem-vindo, Meg pensou. Ela precisava daquela paz. Mais tranqüila, foi capaz de seguir pelo corredor até o quarto de Allie. A menina estava sentada na cama, absorvida no computador. Pela primeira vez, Meg sentiu uma inquietação genuína acerca da fascinação de Allie por aquelas conversas on-line. Talvez não fosse apenas uma distração inofensiva. Talvez fosse uma fuga, uma maneira de não encarar a realidade. — Como você está, Allie? —Tudo bem. Nenhuma excitação, nenhum sorriso. Nenhum comentário engraçado sobre algo que acabara de ler na tela. — A "conversa" está boa? — O de sempre. Um "cara" está falando mal dos "Bop-town Boys". — Quem são eles? Allie girou os olhos para o alto. — Uma banda de rock, mamãe. — Ah, pensei que a banda do momento fosse a "Taf-fytown Train". — Não, esta já está "por fora". — Sei. — Novamente ao largo. Ter uma filha de quatorze anos muitas vezes fazia Meg sentir-se como uma anciã. — Então, por que este "cara" está falando mal dos... como é mesmo o nome da banda? — Os "BB", mamãe. É assim que todo mundo chama. Mas ele está criticando porque é um idiota. Está tentando deixar as pessoas com raiva. — Não parece muito divertido. Allie encolheu os ombros. — Glória está dando um jeito nele. Ele vai sair do chat daqui a pouco. Meg não sabia se isso era bom ou ruim, ou quem era esta Glória. Mas achou melhor não estender o assunto. — Está com fome? Você não comeu muito no jantar. — Como se alguém pudesse comer com a vovó olhando daquela maneira. Qual é o problema dela? Está zangada com você, eu sei. Mas será que precisa ficar zangada com todo mundo também? Fiquei com pena de Matt. — Eu também. Matt parece ser um bom... — Meg hesitou antes de dizer a palavra "menino", pressentindo que Allie se ressentiria caso ela se referisse a alguém dois anos mais velho que a filha como se fosse uma criança. Decidiu usar um termo melhor. — Parece ser um rapaz muito bom. — Ele é mesmo. E muito bonzinho. Não sei por que todo mundo
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implica tanto com ele. Meg ainda não estava preparada para acreditar que a filha conhecesse o caráter do rapaz mais do que todos os adultos da cidade. — Ele parece... bem, acho que é revoltado — disse. —E os rapazes revoltados da idade dele geralmente amedrontam e irritam os adultos. Allie encolheu os ombros. — Então esses adultos são muito bobos. Matt tem motivos de sobra para ser revoltado. — É mesmo? Mas Allie não respondeu. Sua expressão fechou-se, assinalando que isto era algo que não queria discutir com a mãe. E coisas assim tinham estado se acumulando mais e mais, naquele último ano. — Então — Meg repetiu, após um momento. — Você está com fome? Posso preparar um lanchinho. Estou pensando em fazer um sanduíche para mim também. O interesse de Allie aguçou-se. — Com as sobras de frango? Sobrou bastante do jantar. — É uma boa idéia. É o que vou fazer. — E será que posso comer mais alguns biscoitos de pecan. — É claro que sim. Nada, Meg pensou, poderia estar tão ruim se o apetite de Allie estava bom. No fundo de sua mente, sabia que estava criando uma ilusão de normalidade, mas naquele instante estava pronta para agarrar-se a qualquer fio de esperança. Também soube, no fundo do coração, que qualquer que fosse o problema de Allie, não havia sido apenas algo passageiro. E, de repente, não sentiu-se mais tão vazia. Capítulo XI Earl obrigou-se a ficar longe da casa dos Williams nos dois dias seguintes. Era melhor manter uma certa distância, disse a si mesmo, para dar a Meg um tempo de recobrar-se da confissão que fizera. Para dar tempo a si mesmo de recuperar-se daquele beijo. Pois Earl sabia que estava encrencado. Subitamente descobriu-se incapaz de fechar os olhos sem pensar no rosto de Meg. Porque a simples imagem dela o fazia arder de desejo. Ele não era o tipo de homem que se envergonhava de suas necessidades, mas quando se referia a Meg, seus sentimentos eram quase um sacrilégio. Sentia-se como se a estivesse traindo. Diabos, ela o considerava um amigo. E Earl não imaginava que seu lugar na vida dela algum dia se modificaria. Não se atrevia a pensar em tais coisas e, de qualquer forma, não sabia se conseguiria viver consigo mesmo se algo acontecesse. Até pensar nisso parecia-lhe incestuoso, pois por tanto tempo o lugar que Bill ocupara em sua vida fora o de um irmão, e Meg... Bem, Meg ocupara o lugar de uma irmã. Ou, pelo menos, era disso que ele tentava se convencer. Mas Earl estava descobrindo que era muito bom em mentir para si mesmo. Ah, era, sim. E isso o deixava envergonhado.
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E, naturalmente, também havia Allie. Ele tinha o pressentimento de que a menina passaria a odiá-lo se sequer suspeitasse que ele estava tentando ocupar o lugar de seu pai com sua mãe. Não que Meg pudesse interessar-se por um homem como ele, que viera de um lar desestruturado e nunca cursara a faculdade. Ele não pertencia à mesma classe que ela. Vivian estava certa a seu respeito, ele viera do esgoto. Então, de que adiantava ficar pensando nessas coisas? Já era hora de cavar um buraco mental e enterrar tudo aquilo, hora de voltar à normalidade da rotina, viver como sempre vivera. Ele era um especialista em enterrar coisas do passado. E, aparentemente, Meg também era. Tal pensamento o levou de volta ao princípio, fazendo-o esquecer a resolução de não pensar mais nela. Nunca imaginara que Meg estivesse carregando tanta culpa dentro de si. E suspeitava, infelizmente, que havia visto apenas a ponta do iceberg. Foi por isso que não manteve sua promessa de ficar longe dela até a costumeira visita de sábado. Allie forneceu-lhe uma boa desculpa para passar por ali na tarde de sexta-feira, e Matt forneceu-lhe uma desculpa ainda melhor. Quando saiu do escritório para ir à casa de Meg, encontrou Matt. O rapaz estava encostado preguiçosamente num poste da Rua Principal, não muito distante da entrada da delegacia. Ao vê-lo, Earl decidiu que poderia matar dois coelhos com uma só paulada. — Ei, Matt — chamou! — Quer fazer uma visita para Allie? Estou indo para lá. — Não — Matt respondeu quando ele aproximou-se. — Aquela bruxa velha me odeia. — Quem? A avó de Allie? — É. A reação de Matt já seria de se esperar. O rapaz achava que quase todo mundo o odiava, e sua maneira de lidar com isso era ficar fora do caminho. Earl olhou-o de cima a baixo, reparando que o hematoma perto da orelha estava desaparecendo. E, graças a Deus, parecia não haver nenhum ferimento novo. — Bem — ele disse —, isso nunca me impediu de fazer nada do que eu quisesse. Allie gosta de você, e a mãe dela também. Por isso, mande a velha para o inferno. O comentário provocou um riso de surpresa em Matt que, de repente, parecia ter a idade que tinha em vez de um velho desesperançado. — E, tem razão — Matt falou. — Ela que se dane. Vou com o senhor. — Bem, então entre no carro. Earl sentiu que estava conseguindo um grande progresso ao fazer o garoto ir em seu carro. Ficou esperando que Matt insistisse em pegar o carro dele, mas isso não aconteceu. Ele entrou no veículo oficial do xerife sem dizer uma palavra. Mas quando estavam na rodovia, já saindo da cidade, o rapaz falou de repente. — O senhor está namorando a mãe de Allie? A pergunta, tão próxima dos pensamentos de Earl, chocou-o mais
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do que deveria. Sua negativa provavelmente veio rápida demais. — É claro que não. Eu era amigo do marido dela. — Ah... Matt pareceu aceitar a explicação, para alívio de Earl. Havia assuntos que, definitivamente, ele não desejava discutir, muito menos com um garoto mal saído das fraldas. — Sou também o padrinho de Allie — completou. — É? Eu não tenho padrinho. Isso não foi surpresa para Earl. Não imaginava que os pais de Matt tivessem algum dia posto os pés numa igreja, o que provavelmente devia-se mais à sua incapacidade de acordar cedo nos domingos, depois das bebedeiras de sábado, do que com a religião propriamente dita. Ou, talvez não. Mas Earl não se sentia realmente curioso a este respeito. — Seu pai já encontrou trabalho? Com o canto dos olhos, viu Matt encolher os ombros. — Não sei, não perguntei. — E quanto a você, Matt? Está procurando um trabalho fixo? — Não consigo arrumar emprego. Ninguém confia em mim. Earl teve ímpetos de praguejar. Como aquele garoto conseguiria ter uma vida decente se ninguém lhe dava uma chance? A raiva fez com que apertasse o volante com mais força. — Mas você quer ter um emprego fixo? — Sim, é claro. Preciso de dinheiro. Evidente que precisava. O garoto provavelmente o usaria para sair de casa na primeira oportunidade que tivesse. — Bem, talvez eu possa encontrar alguma coisa para você. Vou pensar nisso, está bem? — É claro — Matt respondeu, mas era óbvio que não acreditava. Mas devia haver alguma coisa e Earl pensou que, se não arrumasse um emprego para o rapaz, inventaria um. Matt não precisaria de um trabalho em tempo integral, se continuasse estudando, mas teria de ser algo fixo. — Eu lhe arrumo um emprego se você prometer que continua na escola, Matt. Você precisa ter um diploma. Matt não respondeu, o que convenceu Earl de que precisaria ser muito cuidadoso sobre o tipo de trabalho que lhe arrumasse. De maneira alguma ele ajudaria o garoto a desistir da escola. Vivian atendeu a porta, quando chegaram. — Meg está trabalhando — ela informou brevemente, como se isso encerrasse a visita. — Nós viemos ver Allie — Earl falou com firmeza. Com a prática de um policial, deu um passo para frente e, instintivamente, Vivian se afastou. Ele entrou. Vivian não ficou muito contente com isso, mas disse: — Allie está na sala, fazendo as tarefas atrasadas da escola. — Ótimo. — Earl olhou para Matt. — Vá em frente. Preciso trocar uma palavra com Vivian, primeiro. Matt assentiu e, depois de enviar um olhar indiferente para Vivian, passou por ela e seguiu para a sala de estar. Um segundo depois, ouviram o gritinho entusiasmado de Allie: — Matt!
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Earl olhou para Vivian. — Podemos ir para o escritório ou para a cozinha, contanto que seja longe das crianças. Vivian hesitou, depois assentiu e guiou-o até o seu santuário, a cozinha. Mostrou-se educada o bastante para oferecer-lhe uma xícara de café, provavelmente porque ela própria quisesse e não podia chegar ao ponto de ser tão rude. Earl começou a achar graça na situação. E, então, perguntou-se o que diabos estaria fazendo. Não havia pensado nisso, não formulara nenhum plano, não tinha idéia se o que estava prestes a fazer iria piorar ainda mais as coisas. Tudo o que sabia era que se sentia compelido a dizer algo sobre a situação. Precisava esclarecer algumas coisas ou não conseguiria viver consigo mesmo. E, desta vez, decidiu ir direto ao ponto. — Vivian, Meg não matou o pai dela. O rosto de Vivian transformou-se numa máscara de raiva. Considerando-se a sua expressão habitual, Earl não acreditava que seria possível que ela parecesse ainda mais ressentida e desaprovadora do que o normal. Mas estava enganado. — Suponho que foi isso que ela lhe disse — Vivian falou. — Pois minha opinião é diferente. — Na verdade, ela me disse que matou o pai. Depois que ouvi toda a história, disse-lhe que estava errada. E estou dizendo a você que ela estava errada. Você também está. Seu marido já tinha um problema cardíaco, do contrário um pequeno choque não o teria matado. Se não fosse por aquilo que viu, teria sido qualquer outra coisa e, provavelmente, num curto espaço de tempo. Meg precisa entender isso, e você também. Os olhos de Vivian estavam turvos de raiva. — Meg sempre joga a culpa em outras pessoas pelas coisas que acontecem por causa de seus atos. — Não, na verdade ela está aceitando responsabilidade demais por acontecimentos que estão além de seu controle. E tenho a forte impressão de que você é a culpada disso, Vivian. Qualquer mãe que acusa sua filha de ser a responsável pelo ataque cardíaco que causou a morte de um homem, precisa pensar seriamente no porquê desta acusação. A expressão de Vivian fechou-se instantaneamente. Earl percebeu, e perguntou-se se não teria cometido um grande erro em tocar naquele assunto. E se tivesse apenas piorado a situação de Meg? Não fora esta, absolutamente, a sua intenção. Envolver-se com aquela família era o mesmo que pisar em esterco de cavalo, pensou. Por mais que se tentasse, era impossível tirar a porcaria dos sapatos. Tal pensamento o perturbou, pois não costumava sentir-se desta forma. Antes da morte de Bill, os momentos que passava com ele, Meg e Allie eram o ponto alto da sua semana. Eles haviam esquiado juntos, acampado juntos, feito churrascos nas quentes noites de verão e, às vezes, passado tardes de domingo chuvosas jogando cartas. Era como se todos eles fizessem parte da mesma família. Mas a morte de Bill mudara tudo isso. Naturalmente, houvera sua aguçada percepção do sofrimento de Meg, que ele tinha certeza de ser muito maior do que o seu próprio. Houvera também a consciência de que
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agora ela era uma mulher sozinha, e que suas atenções poderiam ser mal interpretadas tanto pelos fofoqueiros de plantão quanto pela própria Meg. E houvera Vivian, que, agora que ele pensava nisso, parecia desde o início disposta a isolar Meg do restante do mundo. Pouco a pouco os amigos de Meg estavam se afastando, e Earl tinha certeza de que isso não se devia à sua viuvez. Olhou para Vivian, para seu rosto infeliz e fechado, e perguntou-se por que aquela mulher teria se tornado tão amarga a ponto de estar disposta a ser um transtorno na vida da única filha. Somente porque o pai de Meg sofrera um ataque cardíaco depois de apanhá-la fazendo amor com Bill? Achava difícil de acreditar. Devia haver algo além disso devorando Vivian por dentro. — Você sempre se sentiu assim em relação a Meg? Vivian encarou-o, atônita. Depois desviou o rosto. — O que você tem a ver com isso? — Nada. Mas acontece que Meg é minha amiga, e Bill era o meu melhor amigo. Por isso, importo-me com o que acontece com ela. Será que você pode dizer o mesmo? Vivian virou-se para ele. — É claro que me importo! — Pois tem um jeito muito engraçado de demonstrar. — Estou zangada com ela. Meg tirou meu marido de mim. — Foi um acidente! — Ah, tudo começou bem antes de Hiram morrer. Earl sentiu um baque no peito e teve a impressão de que o coração parava de bater. Pensava como policial há tempo demais, disse a si mesmo. Porque a primeira coisa que lhe passou pela cabeça, ao ouvir tais palavras, fez seu estômago revirar-se. — Está dizendo que seu marido... abusava de Meg sexualmente? Vivian ofegou e empalideceu. — Que tipo de pervertido é você? Pois fique sabendo que ele era um homem decente e jamais fez qualquer coisa deste tipo! Earl sentiu uma onda de alívio quase tão grande quanto a que sentira ao saber que Allie estava bem. Porém, não permitiria que isso o desviasse de seu intento. — Neste caso, o que você quis dizer? A expressão de Vivian lhe dizia que ela queria apenas que ele desaparecesse dali, mas depois da insinuação que ele acabara de fazer via-se obrigada a defender o marido. Ela era incapaz de deixá-lo com quaisquer dúvidas a este respeito, o que, por ele, estava ótimo. — Hiram adorava aquela menina. Nada do que ela fizesse estava errado. E Vivian, Earl pensou, começou a sentir-se desprezada. Ele nunca se casara, nem tivera filhos, mas vira situações semelhantes entre seus amigos, quando um dos pais dedicava-se tanto a uma criança que o outro passava a sentir-se à margem. Tal situação seria capaz de criar um bocado de ressentimento naquele, ou naquela, que estivesse sentindose em segundo plano. Ainda assim... — Isso não é culpa de Meg — ele falou. — Ela não pode ser responsabilizada pelos atos do pai. — Eu costumava pensar assim, até dar-me conta de que Meg estava
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envolvida em tudo de ruim que acontecia em minha vida. Earl não conseguia acreditar em seus ouvidos. Simplesmente não acreditava que Vivian estivesse tão perturbada a ponto de acreditar no que dizia. Então, lembrou a si mesmo que ela não estava sendo racional, estava dando voz à emoção e as emoções raramente são lógicas. No entanto, não sabia o que dizer. — Ela destrói todos aqueles que a amam — Vivian falou. Subitamente, ele sentiu-se cego de raiva. Ninguém merecia isso, e certamente não alguém como Meg, cujas perdas tinham sido tão grandes quanto as de sua mãe, talvez até maiores. Não uma mulher como Meg que, tanto quanto ele poderia dizer, sempre tentara fazer as coisas certas. — Você está doente — disse para Vivian. — Mas se é isso que pensa, por que não vai embora daqui? Vivian empurrou a cadeira e levantou-se, olhando para ele. — Isso não significa que ela faz de propósito! — disparou,e saiu da cozinha. Meu Deus!Earl pensou, sentindo-se nauseado com o que acabara de ouvir. Não era de admirar que Allie estivesse quase enlouquecendo, tendo de conviver com uma mulher como aquela. Mesmo se Vivian não dissesse tais coisas em voz alta, sua atitude era venenosa. E agora ele sabia porque Meg achava que todos que a amavam morriam. Vivian provavelmente plantara aquela semente, em algum momento daqueles últimos meses. À distância, como se viessem de outro planeta,ouviu os risos de Allie e Matt na sala de estar. Fez-lhe um bem enorme ouvi-los rir, principalmente Matt, que raramente sorria. Mas seria necessário mais do que risos para consertar o que estava errado naquela casa, e quanto mais Earl pensava nisso mais aterradora a situação lhe parecia. No entanto, nunca, em toda sua vida, ele desistira de nada, e não iria começar agora. Não quando duas pessoas a quem mais amava no mundo encontravam-se em dificuldades. Ainda assim, sabia que sua carga seria pesada e receava que, quanto mais a carregasse, mais vezes ela lhe escorregaria dos ombros. Meg não ficou contente ao ver o carro do xerife estacionado em frente à sua casa, quando chegou do trabalho. Não porque esperasse outras más notícias, tinha certeza de que Vivian ligaria para o escritório se algo tivesse acontecido com Allie, mas porque não queria encontrar Earl. Expusera-se demais para ele, na última vez em que conversaram, e não queria ler nos olhos dele o conhecimento de seus segredos. Porém, pior ainda, era o arrepio de antecipação que sentia. Ela queria vê-lo. Sempre ficava contente em vê-lo, mas agora havia algo mais. Ficava lembrando-se da maneira como ele a abraçara, e queria que acontecesse novamente. Mais do que nunca, desejava encolher-se sob a força dos braços dele e ali aconchegar-se em segurança. E isso era ridículo. Earl era um amigo. Amigo de Bill. E, por causa do que ela fizera, jamais poderia ser nada, além disso. Ficou surpresa ao ver Matt na sala com Allie, ambos conversando a respeito das tarefas da escola. Mas Allie parecia tão contente que ela ficou satisfeita com a presença de Matt. Encontrou Earl na cozinha,
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olhando sombriamente para a xícara de café vazia. — Estou admirada por Vivian tê-lo deixado entrar — ela disse, pendurando o casaco nas costas da cadeira. Earl enviou-lhe um breve sorriso. — Ela não queria deixar. Pode-se dizer que passei por cima dela. — Fez bem. — Meg serviu-lhe mais um pouco de café e pegou uma xícara para si mesma. — Então, quais são as novidades? — Ah, nenhuma. Só pensei em trazer Matt para passar algumas horas com Allie. E queria saber como vocês estão. — Estamos bem. — Aquilo estava longe de ser verdade, mas era uma esperança à qual Meg continuava agarrando-se. — Allie não disse nada sobre o motivo de ter fugido? — Nem uma palavra. Earl inclinou a cabeça para o lado. — Isso não é bom, Meg. — Eu sei. Hoje liguei para a escola. Allie vai conversar com a orientadora na segunda-feira, quando voltar. — Ótimo. E quanto a você? — Vou ficar bem. Estou sempre bem. Esta era uma litania que Meg devia ter repetido um milhão de vezes desde a morte de seu pai, um mantra que repetia incessantemente no fundo da mente, tentando hipnotizar-se a ponto de acreditar no que dizia. E, às vezes, quase acreditava. Olhou para além de Earl, pela vidraça da porta de correr que dava para o deque, e apanhou-se lembrando da pequena aranha marrom que vira menos de uma semana atrás. Deus, parecia que tanto tempo se passara. O que teria acontecido com a aranha? Teria sobrevivido? Ou Vivian a varrera para longe? As aranhas sobreviviam no frio? — Vai nevar outra vez — ouviu-se dizendo. Era mais seguro falar sobre o tempo. — Sim, é o que parece. O inverno está chegando mais cedo este ano. O inverno já havia chegado, Meg pensou. Instalara-se permanentemente, dentro daquelas paredes. — A previsão é de que neve bastante. Não vai demorar muito para o início da temporada de esqui. — É. Os donos de hotéis ficam contentes com isso. Earl remexeu-se na cadeira e Meg percebeu sua impaciência diante daquela conversa. Tanto pior. Ela não queria discutir nada de sério com ele. Earl era bom demais em fazê-la abrir-se e desabafar. No entanto, voltou os olhos para ele e viu sua expressão contrariada. Não podia culpá-lo. — Tive uma conversa com sua mãe — ele disse. O coração de Meg disparou. Ah, meu Deus, Vivian teria lhe dito o que ela contara a respeito de Bill tê-la violentado? Porque, se tivesse... mas, não. Isso seria impossível. Se Vivian tivesse falado alguma coisa para Earl, ele não estaria sentado ali naquele momento. Teria ido embora há muito tempo. — Vivian é uma pessoa venenosa — Earl continuou. — Por que não a manda embora, Meg? Ela não faz nenhum bem para você, nem para Allie. Meg não respondeu de imediato. Ficou olhando pela porta
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envidraçada na direção das árvores cobertas de neve, vendo a luz do dia desaparecer aos poucos e formando sombras entre os pinheiros, e desejou simplesmente correr para lá e desaparecer da maneira como Allie desaparecera. Como poderia explicar a culpa que a obrigava a aceitar a presença de Vivian, não importava quantas vezes jurasse a si mesma que a mandaria embora? Como fazê-lo entender que todas as vezes que pensava em mandar sua mãe de volta para Monroe Corners lembrava-se de que, ali, ela estaria sozinha, sem ninguém para recebê-la. E isso era por sua culpa, não de Vivian. Mas Earl discordaria dela, Meg sabia. Ele lhe diria que isso não era problema seu. Mas era. Tudo era problema seu. Finalmente ela respondeu: — Minha mãe não tem para onde ir. — Ora, faça-me o favor! — É verdade, Earl. Ela saiu do apartamento onde morava quando veio ajudar-me depois da morte de Bill. Monroe Corners é uma cidade pequena. Talvez ela não consiga encontrar outro lugar para morar. — Sempre há algum lugar, Meg. Invente uma desculpa melhor. Ela virou-se para encará-lo. — Então, que tal esta: ela é minha mãe e não posso expulsá-la da minha casa. — Por que não? Ela abandonou-a emocionalmente. Qual é a sua dívida com ela? Muitas, Meg pensou. Tinha muitas dívidas com sua mãe. — Não quero mais discutir este assunto, Earl. Nós vamos dar um jeito, de alguma forma. — Você não "deu um jeito" nestes últimos oito meses. Isso está prejudicando Allie. — Pare de incluir Allie nesta história! Mamãe gosta dela tanto quanto eu. Ela não faria mal algum à menina. — Talvez não. Mas talvez você deva considerar o mal que faz à menina ver o quanto a avó odeia sua mãe. E em o deve ser viver diariamente nessa tensão. Meg sentiu-se subitamente cansada. Muitas coisas aconteceram na última semana e as preocupações acumulavam-se em sua mente, mesmo quando tentava fingir que tudo estava bem. Não havia dúvidas de que tinha muito medo por sua filha e esperava que a psicóloga da escola conseguisse que Allie falasse sobre o motivo que a levara a fugir de casa. Não precisava ter Earl atormentando-a, além de tudo isso. Olhou para ele. — Pensei que você fosse meu amigo. A expressão dele ficou sombria. — Este foi um golpe baixo, Meg. Os amigos não se limitam a ficar olhando enquanto seus amigos destroem suas vidas. — Não estou destruindo minha vida. — Talvez não. Mas também não está fazendo nada para reconstruíla. — E o que quer que eu faça? Quer que eu desabafe, para que você se sinta bem por ter ouvido? E depois, você vai cuidar da sua vida e eu fico a sós com a minha vendo que nada mudou, exceto que, agora, você sabe de todas as coisas ruins que guardo dentro de mim. Bela ajuda, Earl.
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Meg percebia que ele esforçava-se para manter a paciência, mas não se importou. Earl estava atormentando-a e ela não podia mais suportar. Por mais que gostasse dele, havia lugares em sua vida para onde não podia levá-lo. Não podia permitir que ele entrasse, pois, se o fizesse, nada mais lhe restaria. — Sabe de uma coisa — ele disse finalmente, — às vezes ajuda desabafar, porque assim você descobre que o que estava pensando não era tão terrível. Pode-se descobrir que as pessoas que a amam vão continuar amando-a do mesmo jeito. E, às vezes, um ouvinte mais objetivo pode ajudá-la a resolver alguns problemas. — Você é mesmo capaz de ser objetivo, Earl? Afinal, Bill era seu melhor amigo. Aquela não era a primeira vez que ela dizia algo que lhe dava a impressão de que Bill estava envolvido naquele sofrimento de uma maneira que ele não gostaria de saber. Earl não achava que Meg estivesse fazendo de propósito, mas isso o fez parar por um instante. Talvez realmente houvesse coisas que ele não gostaria de saber, a respeito de Bill. Coisas que mudariam para sempre a maneira como ele sentia-se a respeito do amigo. Ele estaria disposto a abrir aquela "caixa de Pandora"? Mas Bill se fora, lembrou a si mesmo, e Meg estava ali. Fosse lá o que Bill tivesse feito, ou deixado de fazer, sua obrigação agora era para com os vivos. Com Meg e Allie. — É isso mesmo — ela falou, interpretando corretamente a expressão no rosto dele. — Às vezes é melhor deixar alguns segredos bem guardados. — Não quando o segredo está devorando as pessoas. — O que o faz ter tanta certeza de que poderá consertar as nossas vidas, Earl? — Talvez eu não possa. Mas talvez tudo o que você precise saber é que as pessoas não irão odiá-la quando souberem a verdade. Se ao menos ela pudesse acreditar naquilo. Mas estivera vivendo com aquele segredo terrível dentro de si por tempo demais, para confiar em alguém. Veja só o que acontecera quando tentara contar a verdade à sua mãe. Vivian nem mesmo acreditara. E, de qualquer forma, talvez estivesse enganada a respeito de tudo. Talvez imaginara tudo aquilo e Bill realmente não a tivesse violentado. Tudo estava tão confuso, agora, e as dúvidas misturavam-se dentro dela. Meg acreditava que havia identificado o que a incomodara durante todos aqueles anos, sobre o que acontecera no celeiro. Pensava que descobrira porque não era capaz de esquecer, e porque cada vez que se lembrava do ocorrido sentia-se vagamente enojada. Julgava ter descoberto porque, desde aquele dia, uma parte de si mesma distanciarase de Bill para sempre. E, agora, já não tinha mais tanta certeza. Talvez sua mãe estivesse certa. Talvez, se Bill realmente a tivesse obrigado, ela teria lutado com mais empenho. Talvez tivesse contado tudo logo depois do acontecido, em vez de sentir-se suja e envergonhada, tão suja e envergonhada que jamais tivera coragem de falar sobre isso. Se de fato tivesse sido violentada não teria se casado com Bill, teria? Mas nada daquilo, nada, era realmente importante, exceto o que
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estava perturbando Allie. Há quinze anos Meg convivia com o que acontecera no celeiro, e poderia continuar vivendo com isso pelo resto da vida. O que não podia suportar era a idéia de que algo terrível incomodava sua filha. Este era o problema que precisava ser resolvido. — Você costumava pintar, não é? — Earl perguntou. A súbita mudança de assunto confundiu-a por alguns segundos, mas foi logo bem-vinda. Qualquer coisa era preferível a ter Earl pressionando-a para saber seus segredos. — Sim — ela respondeu. — Fiz faculdade de Belas-Artes. Nunca achei que tivesse talento para ganhar a vida pintando, mas tinha intenção de lecionar. — O que aconteceu? Ela encolheu os ombros. — O que sempre acontece. Casei-me com Bill e saí da faculdade para cuidar de Allie. Depois nós nos mudamos para cá, e ficou impossível voltar a estudar. Ele assentiu devagar. — Mas por que desistiu de pintar? — Nunca me sobrava tempo para isso. Sempre havia alguma coisa mais importante para fazer. — Você tem tempo agora. Por que não ensina Allie? Aposto que ela vai gostar. Foi a primeira coisa que ele disse que realmente deixou-a interessada. — Pode ser. Mas precisaria ir até Denver comprar o material. E, com toda a neve que estava sendo prometida para os próximos dias, era algo que ela não iria fazer em breve. — Iremos amanhã — ele disse. — Eu levo você e Allie, daremos um passeio. E se as estradas ficarem intransitáveis, podemos passar a noite em Denver. — Earl... Ele inclinou-se sobre a mesa, fixando os olhos nos dela. — Você precisa de algo construtivo e divertido para fazer, Meg. Nós vamos nos divertir, nós três. Quer você queira ou não. Capítulo XII Saíram na manhã seguinte na Explorer de Earl. A neve começara a cair antes do amanhecer e, na hora em que partiram, vários centímetros já cobriam o solo e os flocos brancos continuavam esvoaçando esmo, levados pelo vento. Aquilo era loucura, Meg pensou. Sair de carro em meio a uma nevasca era uma completa falta de juízo. A neve chegara cedo demais, e isso tornava tudo mais perigoso porque o solo ainda estava quente e úmido. As estradas ficariam congeladas e escorregadias com muito mais facilidade. Mas Allie queria ir. Ficara entusiasmada com a idéia de passar o dia em Denver, e ainda mais encantada quando Meg sugeriu as aulas de pintura.
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Passar pela primeira etapa da estrada foi assustador, para Meg, pelo menos. A neve forte, trazida pelo vento, era quase ofuscante e somente os altos faróis do veículo utilitário iluminavam o caminho. O consolo de Meg era saber que aquele trecho da estrada era plano e se derrapassem não haveria nenhum abismo onde caírem. Earl havia escolhido a rota mais segura, pela rodovia onde passavam os caminhões de carga. A outra opção seria a estrada 1-70, cheia de curvas que acabavam em descidas íngremes. Earl dirigia tranqüilamente, como sempre. Não parecia achar o ato de dirigir particularmente difícil, mas Meg apanhou-se observando-o constantemente, procurando por algum sinal que indicasse que estivessem com problemas. E tentando não pensar na maneira como Bill morrera. Ele estava dirigindo sob uma tempestade de neve como aquela, depois da última discussão que tiveram, e nunca mais voltara para casa. Se estivesse sozinha no carro, Meg não se importaria. Mas Allie estava com eles. Porém, apesar de toda excitação, Allie estava quieta. Finalmente Meg virou-se no assento e olhou para ela. — Você está bem, querida? A perna está doendo? — Estou bem — Allie respondeu. — Só estou com sono. Tio Earl é como o papai, gosta de sair de madrugada. — Ei, Macaquinha, nós não saímos de madrugada. O sol estava brilhando e completamente desperto. — É, mas eu não estava — ela resmungou, embora em tom de brincadeira. — Você precisa ir dormir numa hora mais decente — Earl falou. — Se fosse dormir às dez horas, como eu faço, já estaria tinindo às seis da manhã. Allie gemeu. — Isso não é civilizado. — Talvez não, mas pelo menos eu não estou com sono. Allie riu e disse que ele era um "sabe-tudo". Earl assegurou-lhe que um xerife precisava ser. Depois sugeriu que, desde que teriam três horas de viagem pela frente, ela dormisse um pouco. Momentos depois, Allie ressonava no banco de trás, com uma manta servindo de travesseiro. Earl ligou o toca-fitas com uma música suave e logo Meg também cochilava. Ela estava vagamente consciente de que as condições do tempo haviam melhorado, pois Earl aumentou a velocidade por alguns quilômetros. Então, ao sentir a velocidade do veículo diminuir, foi subitamente arrancada do cochilo. Quando abriu os olhos, foi como se estivesse envolta por um casulo branco. — Meu Deus... — murmurou. — Onde estamos? — Passamos pela montanha Cooper, na rodovia interestadual. — Não deveríamos prosseguir com tanta neve. — Está tudo bem, Meg — ele disse, num tom tranqüilizador. — A estrada está vazia e, contanto que eu enxergue os olhos-de-gato, não sairemos dela. Meg olhou no velocímetro e viu que estavam a quarenta quilômetros por hora. Pouco a pouco foi obrigando-se a relaxar os músculos.
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— Devíamos ter esperado até o fim de semana — disse. — Com a chegada do inverno é impossível prever como estará o tempo nos fins de semana. Além disso, vai melhorar depois que passarmos pelo túnel Eisenhower. Não está nevando nas áreas mais baixas. Assim mesmo, Meg continuou torcendo as mãos. — Você sabe, Meg — ele disse, após um momento, — Bill saiu da estrada porque fez a curva em alta velocidade. Ele sempre dirigia depressa demais. E aquela vez, Meg pensou, estava correndo mais do que o normal porque estava com raiva dela. Se não fosse pela discussão, talvez ele tivesse sido mais cuidadoso. Tal pensamento não a reconfortou nem um pouco. Earl tornou a falar: — Já lhe contei da ocasião em que quase caí num penhasco? Meg olhou-o, sabendo que ele estava tentando distraí-la,e mostrouse disposta a aceitar a distração. — O que aconteceu? — Tive de ir para Glenwood Springs a trabalho e, quando estava voltando, fui apanhado pela neve. Não era exatamente uma tempestade, mas sim uma nevasca comum, a que estamos acostumados. Só que, por baixo da neve, havia apenas gelo. Eu estava fazendo uma curva fechada numa subida íngreme quando, de repente, os pneus deslizaram e o carro começou a escorregar para trás. Pensei que seria o meu fim. — Meu Deus! — Eu também disse alguma coisa deste tipo. — Earl enviou-lhe um rápido sorriso e voltou a atenção para a estrada. — Pois bem, não havia nada atrás de mim, exceto uma queda de uns duzentos metros, e eu sabia. Decidi que teria de abrir a porta e tentar saltar do carro. Mas, de repente, os pneus firmaram no asfalto e o carro parou. — Você deve ter ficado tão aliviado... — Fiquei sim, por um minuto. Tinha medo até de me mexer, receando que o veículo pudesse começar a escorregar outra vez. Mas finalmente obriguei-me a sair para dar uma olhada. Meg, eu estava exatamente a dois metros da beirada do abismo. Dois insignificantes metros. — O que você fez? — Bem, pensei em pedir ajuda pelo rádio, mas não-queria arrastar ninguém mais para aquela estrada. Isto é, se os pneus do meu carro próprios para a neve não tinham evitado que eu derrapasse, era porque a situação estava feia de verdade. Imaginei o meu carro e o caminhão de reboque escorregando juntos para dentro do abismo. Assim, andei com todo cuidado por trás do carro, quase certo de que ele começaria a deslizar a qualquer momento, e tirei as correntes do porta-malas. Tente me imaginar deitado no asfalto congelado colocando as correntes nos pneus a alguns passos de um abismo. Não foi nada divertido. — Como conseguiu se safar? — Prendi as correntes nos pneus o mais rápido que consegui. A parte mais difícil foi quando tive de voltar para o carro e tentar dirigir com as correntes. Quase morri de medo, mas deu certo. Voltei para casa sem quaisquer outros problemas. — Eu evito pegar as estradas das montanhas durante todo o
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inverno. — É o melhor a fazer. Eu mesmo tento evitá-las ao máximo quando o tempo está ruim, mas nem sempre é possível. E claro que elas são perigosas mesmo num dia ensolarado de verão. Certa vez eu estava subindo pelo cânion de Glenwood Springs, na área onde ocorrem desabamentos de pedras. Estava em baixa velocidade. Ao fazer uma curva fechada, vi que dois veículos faziam uma ultrapassagem bem à minha frente e as duas pistas estavam ocupadas. Felizmente havia uma estreita faixa de acostamento mas, mesmo assim, arranhei toda a lateral do carro nas rochas. — Você se machucou? — Não, graças a Deus. — Imagino que esteja me contando tudo isso para dizer que não preciso me preocupar com esta neve? Ele riu. — Pergunte-me novamente quando chegarmos perto do túnel. Mas quando estavam prestes a subir o túnel Eisenhower a neve já havia parado de cair. Meg olhou pela janela traseira e viu que a tempestade continuava acumulando-se ao oeste, mas ali, enquanto a neve caíra, o tráfego mais intenso limpara o asfalto, que estava apenas molhado. No outro lado do túnel a situação era a mesma e, quando começaram a descer em direção a Denver, o dia ficou mais claro e as estradas mais secas. Allie acordou quando estavam aproximando-se de Westminster e começou a tagarelar sobre todas as coisas que esperava que fizessem naquele dia. Earl concordou em visitar um dos shoppings centers depois que comprassem o material de pintura que Meg precisava. Aparentemente fizera uma pesquisa de mercado, pois levou-as direto para uma lojinha no centro da cidade que fornecia artigos de pintura para artistas profissionais. A sensação inicial de Meg foi de pura alegria. Muito tempo se passara desde a última vez que tocara em pincéis e tubos de tinta a óleo, e sentia-se como uma criança numa loja de doces. No entanto, era uma criança com um orçamento limitado e seu entusiasmo começou a esvairse ao ver o quanto os preços tinham aumentado no decorrer de quinze anos. — Não sei se posso comprar estas coisas — finalmente falou para Earl. — É claro que pode, mamãe — Allie intercedeu. — Podemos economizar ficando sem jantar fora nas noites de sextas-feiras. Além disso, você não precisa comprar tudo de uma vez. — Garota esperta — Earl falou. — Você precisa do material, Meg. Talvez ela precisasse. Mas desde a morte de Bill ela mantinha o orçamento restrito, de forma a cuidar das despesas da casa sem utilizar suas economias ou o dinheiro do seguro, que estava guardando para a faculdade de Allie. Detestava a idéia de mexer nas economias para algo tão supérfluo. Mas o rosto de Allie era a imagem da esperança e entusiasmo, e Meg sabia que sua filha queria aquilo tanto quanto ela. E a pintura seria uma ótima terapia para a menina. — Tudo bem — disse. — Vamos começar aos poucos.
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Escolheu uma dúzia de tubos de tinta, em cores básicas que poderiam ser misturadas para criar outras cores, um punhado de pincéis essenciais, solvente de tinta, duas espátulas mais simples e duas telas de tamanho médio. — Pena que não faço aquarelas — Meg comentou. — Teria economizado um bom dinheiro. Allie torceu o nariz. — Não gosto de aquarelas. As cores são muito clarinhas. — Isso depende de como são feitas. O problema é que a técnica é muito mais difícil, pelo menos para mim. Meg empalideceu quando o atendente fez a soma, mas entregou-lhe o cartão de crédito sem pestanejar. Poderia parcelar os pagamentos, pensou, e talvez pagar a dívida sem ter de mexer nas economias. Ela e Earl levaram as compras para o carro, e Allie seguiu-os mancando nas muletas. — Primeiro vamos almoçar — ele anunciou enquanto fechava o porta-malas. — O que vamos comer, Allie? — Hambúrgueres? — Como adivinhou meu pensamento? — ele perguntou, sorrindo. — E você, Meg? — Hambúrguer está ótimo. Pararam numa lanchonete e Allie ficou olhando com tal desejo para os brinquedos que eram oferecidos com os sanduíches para crianças que Earl comprou-lhe dois. Ela ruborizou, envergonhada, mas a primeira coisa que tirou dos saquinhos foi os brinquedos. Meg observou a cena com um prazer dolorido. Às vezes Allie comportava-se como uma menininha, embora demonstrasse sinais de amadurecimento. Mas ficava contente em ver que ela ainda gostava de bonequinhos de plástico coloridos, como se parte dela ainda tivesse cinco ou seis anos. Talvez também precisasse lembrar-se de agir assim de vez em quando. E talvez Earl estivesse certo ao insistir para que ela retomasse a pintura. Depois do almoço foram para o shopping, andando devagar e parando várias vezes para que Allie descansasse. Meg acabou comprando uma roupa que Allie “precisava” ter ,depois, dois Cds que ela queria. Pronto, seu orçamento já estava estourado Então Allie virou-se para olhá-la. — E para você, mamãe? Não quer comprar nada? — Já comprei o material de pintura. Por um instante achou que Allie aceitara a resposta, mas a menina insistiu: — Não é a mesma coisa. Você vai ficar estressada com a pintura, porque antes pintava muito bem. Estou falando sobre alguma coisa divertida. Meg encarou-a. — Como sabe que eu pintava? — Papai me contou. Mas algo na maneira como Allie desviou os olhos disse a Meg que esta não era toda a verdade. Olhou para Earl e viu que ele também parecia pensativo, como se tivesse captado o mesmo que ela. — Bem, isso foi há muito tempo — Meg falou. — Se eu começar a
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pintar novamente será apenas por diversão. Allie sorriu. — Tudo bem. Mesmo assim, precisa comprar alguma só para você. Earl Concordou — Isso mesmo, Meg. Só para você. Allie tem razão. Meg fingiu um olhar zangado para a filha, esperando que ela risse Como normalmente fazia diante disto. Mas, ao contrário, Allie pareceu recuar para dentro de si mesma. Depois, encolheu os ombros. — Você é quem sabe — disse e foi sentar-se num banco. — O que aconteceu? — Meg perguntou para Earl, sentindo-se zonza com a reação inesperada da filha. — Eu estava apenas brincando... — Sei disso. Mas, ao que parece, Allie não está tão bem quanto tenta demonstrar. Meg afastou-se dele e foi sentar ao lado da filha. Allie olhava fascinada para os próprios dedos dos pés. — Allie — ela falou, — eu estava brincando. Não fiquei zangada de verdade com você. — Eu sei. — Então por que ficou tão... deprimida, de repente? Allie tornou a dar de ombros. — Fiquei de mau humor. Isso era possível, Meg pensou. Não tinha muita experiência com adolescentes, mas lembrava-se de como, nessa idade, também era atacada por súbitos acessos de irritação. — Tudo bem — falou. — Você tem todo direito de ficar de mau humor. Mas se há alguma coisa incomodando-a... bem, espero que saiba que estou disposta a ouvir e tentar ajudar. Porque amo você, mais do que qualquer outra coisa neste planeta, Allie. A menina ergueu o rosto brevemente e olhou para a mãe. Por um instante, só um instante, Meg julgou ter visto lágrimas em seus olhos. Mas logo Allie baixou novamente o rosto, concentrando-se no gesso em sua perna. — Vou ficar bem — Allie disse, sem saber que ecoava as palavras da mãe. — Só estou cansada. — Bem, veremos se está na hora de voltar para casa ou se será melhor procurarmos um hotel para passar a noite. — Não quero voltar para casa. Havia tal veemência na voz dela que Meg assustou-se. — Por que não? — Não quero. Só isso. — Tudo bem, deixe-me conversar com Earl. É ele quem está dirigindo. Se ele concordar, passaremos a noite aqui. — Por mim tudo bem — ele disse, quando Meg perguntou. — Não tenho nada de muito importante me esperando. Earl levou o carro até a porta do shopping e ajudou Allie entrar. Pouco depois registraram-se num hotel nas proximidades, com Meg e Allie num quarto e Earl no apartamento ao lado. Allie declarou que estava exausta e deitou para tirar um cochilo. Meg foi para o quarto de Earl, para não incomodar a menina. — De qualquer forma, não poderíamos voltar para casa hoje — ele falou, assistindo o canal do tempo na tevê. — O tempo está piorando, lá
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em cima. Meg sentou-se e ficou olhando a tela sem realmente prestar atenção, enquanto Earl pegava o telefone e ligava para seu gabinete. Há alguns dias Meg estivera acalentando a esperança de que, qualquer que fosse o motivo da fuga de Allie, já teria sido resolvido por si mesmo. Que Allie iria falar com a psicóloga da escola na segunda-feira e que ela descobriria que Meg estivera preocupando-se sobre algo tolo e inofensivo, que já nem existia mais. Porém, o que acontecera há pouco lhe demonstrara que o problema não estava resolvido, nem desaparecera. O que estivera perturbando Allie continuava bem presente. E tal conclusão a fez sentir-se em pânico. Se o problema continuava existindo, seria impossível prever o que Allie faria. No entanto, ela não tinha nenhuma pista, nenhuma idéia de qual seria este problema. Tudo o que tinha eram uns poucos detalhes que conseguira captar. Por que Allie reagira tão estranhamente quando Meg a olhara com a expressão zangada? E por que não queria voltar para casa? Seria por causa de Vivian? Se este fosse o caso, Vivian teria de partir no primeiro ônibus na segunda-feira, e nenhuma culpa a faria mudar de idéia. Allie vinha em primeiro lugar. Mas como poderia descobrir? Teria tempo para descobrir? Earl desligou o telefone. — É verdade, a situação está feia nas montanhas — disse. — Nevou bastante o dia todo e vai nevar mais. Mas a previsão é que melhore durante a noite, portanto as estradas deverão estar transitáveis amanhã cedo. — Ótimo. — Mas Meg mal prestava atenção, ainda concentrada na preocupação com Allie. — Meg, o que há de errado? Ela balançou a cabeça e olhou para ele. — Estou preocupada com Allie. Ela estava muito estranha. Ele assentiu. — Ela estava cansada. — Eu sei. Meg olhou pela janela, vendo o luminoso dia de outono, e apanhouse pensando sobre toda a neve que havia em casa. Teria de tirar o limpador de neve da garagem e limpar a entrada, coisa que odiava fazer. Com Allie usando as muletas, o gelo acumulado se tornaria um sério perigo. Pior de tudo, ela não mandara aplainar o terreno da frente naquele verão e a entrada deveria estar cheia de raízes, o que dificultaria ainda mais a limpeza da neve. De repente, foi como se ficasse fora de si mesma e se enxergasse como se outra pessoa a estivesse vendo. E não gostou do que viu. Ela permitira que todos os pedaços de sua vida ficassem soltos, depois da morte de Bill, incluindo Allie. O terreno da frente era apenas um símbolo de tudo o que deixara de cuidar. — Meg? — Eu estava pensando que não mandei limpar o terreno da frente neste verão. Vai ser um problema retirar a neve acumulada. — Imagino que sim. Mas não se preocupe com isso. Quando chegarmos eu posso dar um jeito e, na segunda-feira, peço para Dave
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Anson fazer o serviço de limpeza para você. Ela encarou-o. — Você não pode ficar me salvando da minha própria estupidez o tempo todo, Earl. — Por que não? Bem que gostaria de salvá-la de todos os seus problemas, mas creio que terei de me contentar com a limpeza do terreno. — Preciso ser auto-suficiente. — Você já é auto-suficiente. Mas ninguém consegue sobreviver sem uma ajuda ocasional de um amigo. — O que eu já fiz para ajudá-lo? — Você me deu um segundo lar. Quanta vez preparou uma boa refeição para mim, Meg? Ou convidou-me para passar uma tarde conversando? Você já fez muito por mim. Agora, deixe-me fazer um pouco por você. Ela não teve como argumentar, apesar de que, se existisse um meio de pesar tais coisas, calculava que Earl já lhe retribuíra todos os favores que precisava quando ajudou-os a construir a casa. Se ainda houvesse alguma dúvida, e quanto ao último fim de semana, quando ele encontrara Allie? Meg sentia-se tanto em débito com ele que desejava poder retribuir de alguma forma. — Já sei — ele disse. — Eu me encarrego da limpeza da neve se você me convidar para almoçar amanhã. Ela enviou-lhe um sorriso cansado. — Mesmo com Vivian? — Ora, deixe Vivian por minha conta. Se ela latir demais, eu mordo. Meg riu, baixinho, para não acordar Allie, e sentiu-se um pouco melhor. Bem, o melhor que poderia sentir-se enquanto a preocupação com Allie continuava a assombrá-la. — Por falar nisso, preciso ligar para minha mãe e avisá-la que passaremos a noite aqui. Earl girou os olhos para o alto. — Mal posso esperar para ouvir a interpretação que ela dará a isso. — O que ela pode pensar? Allie está conosco. — Não sei, não. Mas Meg sabia o que ele queria dizer. Com toda a hostilidade que dirigia para Meg e para Earl, Vivian era capaz de interpretar aquilo da pior maneira possível, com ou sem Allie. Por um instante Meg sentiu-se fraca demais para lidar com tal situação, mas não tinha coragem de deixar a mãe sem notícias. Assim, pegou o telefone e ligou. Vivian atendeu no segundo toque. — Mamãe, nós vamos passar esta noite aqui em Denver. Voltaremos para casa amanhã cedo. — Ótimo — foi a resposta surpreendente de Vivian. — Está nevando demais, aqui. Nem consigo enxergar as árvores lá fora. — Você vai ficar bem? — Estou bem — Vivian resmungou. — Já vi muita neve em toda a minha vida. Como está Allie? I — Dormindo. Acho que a cansamos demais. Fomos ao shopping, depois das compras. — Isso deve tê-la deixado exausta, com aquelas muletas.
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Vivian ficou em silêncio por um momento, depois falou: — Tenha cuidado, Meg. Ligue para saber como estão as estradas, antes de sair. Meg desligou o telefone completamente atônita. Não podia lembrarse da última vez que sua mãe lhe dissera para ter cuidado. Ou que se importasse com isso. Mas, talvez, Vivian estivesse apenas se preocupando com Allie. Só podia ser isso. — Está tudo bem? — Earl perguntou. — Está. — Nenhum sermão? — Ele franziu a testa. — Nenhum. — Posso ficar surpreso? — Por que não? Eu estou. Pouco tempo depois ele sugeriu que saíssem e comprassem alguma coisa para comer no quarto. — Foi um longo dia para Allie — disse. — Ela precisa descansar. — Por mim está bem. E estava mesmo. Passar um dia em Denver parecera divertido, e de fato havia sido, no início. Mas Meg estava descobrindo que depois de quase um ano em que ficara praticamente sozinha, exceto quando ia ao trabalho, a multidão e o movimento deixavam-na mais fatigada do que interessada. Ela havia se tornado uma eremita. Isso lhe deu algo mais em que pensar, enquanto Earl pesquisava opções de restaurantes na lista telefônica. O que teria acontecido com ela para fazê-la preferir ficar num quarto de hotel vendo tevê, em vez de sair para jantar e depois, talvez, ir ao cinema? De certa forma, ela sempre fora muito caseira. Não teria sobrevivido quinze anos em Whisper Creek, se não fosse. O único tipo de vida noturna da cidade restringia-se a uma boate em um dos hotéis, onde um pianista tocava seis noites por semana e, ocasionalmente, algum grupo instrumental desconhecido aparecia para variar. Mas quando Bill estava vivo, pelo menos nos primeiros anos do casamento, ela queria fazer essas coisas. Sempre saíam para dançar nas sextas-feiras, embora o lugar não fosse dos melhores. E ela insistia com freqüência para que viessem para Denver nos fins de semana, para fazer compras ou simplesmente passear. Porém, em algum momento, começara a perder o interesse por este tipo de diversão. Bill nunca gostara muito de sair, portanto, talvez em parte fosse por isso. Sim, ela continuava vindo a Denver para as compras, pois na cidade não havia nenhuma loja de roupas decente e com preços razoáveis. Assim, duas ou três vezes por ano eles faziam a pequena viagem. Apenas tinham parado de se divertir. Desde a morte de Bill, Meg não saíra mais da cidade. Chegara ao ponto de encomendar roupas para Allie através de catálogos das lojas. Teria atribuído tal mudança ao seu luto, exceto que podia ver claramente que tudo isso começara bem antes. Como se, em certa medida, ela estivesse desistindo da vida. Levantou-se da cadeira, deixando Earl ocupado com a lista telefônica, e voltou para seu quarto, onde ficou olhando a filha adormecida. Não estava sendo justa com Allie, percebeu. Porque quando
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começara a desistir da vida, as coisas que abandonara não foram apenas viagens para Denver ou jantares dançantes nas sextas-feiras. Ela estivera afastando-se de sua filha, também. Sentou em sua cama e fechou os olhos, visualizando os anos que se passaram, e percebeu onde seu problema havia começado. Começara no instante em que se dera conta de que Bill a violentara. Em vez de viver num falso paraíso, onde o primeiro ato de amor fora meramente forçado pela paixão, Meg compreendera a insegurança que sempre a preenchia, compreendera que jamais confiara realmente em seu marido. Que, em algum recôndito profundo de sua alma, sempre tivera medo dele. Porque Bill a estuprara. Ele não a machucara fisicamente, exceto por alguns pequenos arranhões, mas a tratara como se seus desejos e necessidades não tivessem a menor importância, como se ela fosse um objeto para ser usado ao seu bel-prazer. Como se ele fosse tudo o que importava. E, dentro dela, algo fora rompido naqueles momentos. A morte de seu pai havia obscurecido seus sentimentos, transtornando-os de tal forma que ela não sabia o que doía, e porquê. Jogara nisso toda a culpa da sua infelicidade, e na reação de sua mãe, passando dez longos anos sem perceber que havia outro componente importante. E havia enterrado tudo. Sua vergonha pelo estupro e grande parte de sua culpa. Concentrara-se em todos aqueles sentimentos terríveis relativos à sua participação na morte do pai, e mergulhara de cabeça em seu casamento, acreditando que amava Bill. E realmente o amara. De verdade. Quando a filha deles nasceu, sentiu uma alegria imensa. Estava sinceramente convencida de que seu casamento era tão bom quanto qualquer outro. Porém, quando encarou de frente a realidade do que acontecera na tarde em que Allie fora concebida, descobriu o que havia se rompido dentro de si. Na verdade, não podia confiar em Bill, nem mesmo depois de todos aqueles anos. Olhara para dentro de si mesma, dando-se conta da falsidade em que havia vivido em seu casamento. Sempre tentara ser perfeita, receando que, se não fosse, Bill poderia... poderia fazer o quê? O que ela realmente pensava que ele faria? Que usasse sua força para dominá-la? Mas o medo incipiente sempre estivera ali, mesmo sem que ela soubesse. E embora ela não admitisse a si própria, naquela época, permanecera até depois que ela reconhecera que algo dentro de si havia se rompido, e ela começara a se retrair. Bill nem chegara a perceber. Talvez tivessem começado a brigar mais do que antes, mas suas discussões geralmente eram civilizadas, pois Meg temia despertar o tigre adormecido. Até o momento em que tudo explodira dentro dela naquela briga terrível, terrível... Que o levara para a morte. Agora, Earl insistia para que ela mandasse sua mãe embora. Ele não entendia porque Meg tinha tanto medo de fazer isso. Ela queria ter a morte de sua mãe pesando em sua consciência, também? Não, a não ser que esta fosse a única maneira de ajudar Allie. Por Allie, ela faria qualquer coisa. Allie virou-se na cama, gemendo quando o gesso bateu na outra perna. — Droga — ela resmungou sonolenta, e abriu os olhos. Momentos
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depois, olhou para a mãe. — Devia existir um tipo de pára-choques para isso. Meg sorriu, sentindo o coração mais leve. Aquela era a sua Allie. — É uma boa idéia. Talvez você possa inventar. — Quando o médico falou que vou tirar o gesso? — Não me lembro, mas tenho um papel em casa. Amanhã eu dou uma olhada. — Meus braços estão doendo por causa das muletas. — Não devíamos ter ficado tanto tempo no shopping. — Não, foi divertido. — Allie ergueu o corpo, recostando-se nos travesseiros. — O que temos para o jantar? — Estamos pensando em comprar alguma coisa e comer aqui mesmo. Earl está cuidando disso. — Podemos começar a pintar hoje mesmo? — Creio que não, querida. Faz muita sujeira. Não temos roupas velhas para usar, e se sujarmos a mobília terei de pagar por isso. Mas começaremos assim que chegarmos em casa, amanhã. — Tudo bem. — Allie? — Hein? — Por que você não quis voltar para casa? A menina encolheu o ombro. — Já estou enjoada de ficar sentada por ali o dia inteiro. Aqui, pelo menos fico sentada num lugar diferente. Poderia ser verdade, mas Meg não acreditou. — A vovó anda aborrecendo você? — Ela sempre me aborrece. Não sei porque você permite que ela fique em casa, do jeito que a trata. — Eu também não sei. Mas ela é minha mãe. Allie surpreendeu-a com um olhar súbito e impaciente. — Isso quer dizer que terei de agüentá-la quando você estiver velha, infeliz e irritante? — Querida, se algum dia eu ficar velha, infeliz e irritante, espero que você me dê um belo chute no traseiro. — Acho que a vovó gosta de deixar você infeliz — Allie falou, com uma perspicácia admirável. — Parece que ela tem prazer de atormentála o tempo todo. Meg ficou boquiaberta. — O que foi? — Allie perguntou. — O que eu falei? — Eu só estava pensando quando foi que você ficou tão adulta. A menina sorriu. — Então estou certa, não é? Sobre a vovó? — Pode ser que sim. Vou pensar nisso. — E daí? O que vai fazer a respeito? Boa pergunta, Meg pensou, baixando os olhos. Talvez o seu maior problema fosse justamente achar que precisava ser atormentada. Talvez o fato de manter Vivian por perto se tornara uma espécie de castigo que se impusera pelo que acontecera com Bill. Talvez pensasse que isso ajudava a expiar sua culpa. Olhou novamente para a filha e deparou com seus olhos grandes e infantis, que não podiam conter toda a maturidade que pareciam ter. — Allie?
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— Sim? — Você fugiu de casa por causa da vovó? A menina mostrou-se surpresa por um instante, e depois balançou a cabeça. — Não. Por mais que ela me encha o... — Shh... Olhe o linguajar. Allie suspirou. — Tudo bem. A vovó às vezes me deixa maluca, mas é só pela maneira como ela trata você. Eu não iria fugir por causa disso. — Então, por que você fugiu? Allie desviou o rosto, recusando-se a encontrar o olhar da mãe. — Não quero falar sobre isso, está bem? — Pois terá de falar, em algum momento. Não posso ajudá-la, se você não falar. — Talvez eu não queira nenhuma ajuda. Esta foi uma das coisas mais aterrorizantes que Meg já ouvira da boca de sua filha Sentiu a como se fosse uma garra de aço — Allie... — Escute, mamãe, está tudo bem. Não vou cometer nenhuma tolice. Mas, depois do último fim de semana, a definição de Alie para “tolice” era uma questão aberta. Meg não sabia como explicar-lhe isso sem provocar uma discussão, ou fazer com que a filha se fechasse ainda mais. Assim, achou melhor recuar. — Eu amo você, Allie. Estarei sempre do seu lado. E, quando a menina não respondeu, sentiu seu coração dilacerar-se. Capítulo XIII Earl bateu na porta de comunicação, que estava entreaberta, e espiou pela fresta. — Olá, meninas — disse. — Tenho uma relação de lugares interessantes e exóticos onde podemos pedir a comida por telefone. Prontas para analisar o cardápio? Allie endireitou o corpo imediatamente. — Quero pizza! — Onde está o seu espírito de aventura? — Earl perguntou. — Eu estava pensando em algo como miolos grelhados ou fígado com picles. — Arhg! — Allie fez uma careta. — Para mim, pizza já é bastante exótico. Earl balançou a cabeça. — Estou tão desapontado com você. Todos estes pratos deliciosos que escolhi... — Entrou no quarto e olhou para a lista que fizera. — Temos comida marroquina, japonesa, chinesa, e um restaurante chamado "Cozinha da Mamãe", que deve ser de comida caseira. Temos também um... mas não importa. Allie quer pizza! A menina riu gostosamente. Earl olhou para Meg. — Mas não me custa nada passar em mais de um restaurante. Se você quiser embarcar numa aventura comigo, Meg,podemos escolher
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outra coisa. Meg, que não sentia o menor apetite, pegou a lista que ele lhe estendia e pensou um pouco. — Não sei — disse, finalmente. — Não consigo me decidir. — Pois bem — ele falou. — Eu vou comer sushi. Só tenho a chance de comer comida japonesa quando venho para cá, e não vou desperdiçá-la. — Então eu o acompanho — Meg falou. — Quero também uma porção de tempura. — Boa pedida. — Earl voltou para o outro quarto a fim de ligar para os restaurantes. Uma hora depois, ele voltou com a comida. Deixou-a na mesa em seu quarto, que, por algum motivo, era maior do que a do quarto delas. Pegou duas cadeiras extras para que Allie pudesse esticar a perna. Com um floreio, presenteou-a com uma pizza pequena e embalagens de queijo ralado e pimenta. Havia comprado também uma garrafa de seu refrigerante preferido. Depois abriu as três embalagens contendo o sushi. — Meu Deus, Earl! É muita comida! — Ei, isso é o meu jantar, não um aperitivo. — Earl passou-lhe a outra embalagem. — Coma seu tempura antes que fique empapado. Mostrando-se mais aventureira do que Earl a julgara, Allie acabou experimentando o tempura e o sushi. — Nada mau — ela declarou. — Mas gosto mais de pizza. — Ainda bem — Earl falou. — Sobra mais para mim. Allie riu e, por um momento, Meg desfrutou da ilusão de que eram uma família se divertindo. Tal idéia provocou-lhe um leve estremecimento e ela olhou para Earl, tentando ignorar o incomodo pensamento de que desejaria tê-lo conhecido antes de conhecer Bill. Mas, então, não teria Allie, e Allie era o seu melhor motivo para não ter quaisquer arrependimentos a respeito de nada. Depois do jantar assistiram um péssimo filme na tevê, que acabou tornando-se divertido porque trocavam comentários jocosos sobre tudo, desde a direção até o enredo. Allie queixou-se de que era impossível ver um filme no mesmo quarto que dois críticos de cinema. Allie foi dormir às dez horas. Meg estava sem sono, portanto Earl sugeriu que assistissem o jornal em seu quarto. Sentaram-se na cama dele, recostando nos travesseiros. Aquilo pareceu bastante inocente para Meg, especialmente porque a porta de comunicação com o seu quarto ficara entreaberta. Além disso, confiava em Earl. Ele era seu amigo. Mas em algum ponto entre as notícias sobre o tempo, que estava melhorando, e as esportivas, toda a atmosfera se modificou. Meg não saberia dizer o que acontecera nem se sua vida dependesse disso. Sabia apenas que, de repente, passara a sentir a presença de Earl de uma forma mais aguçada. Seus olhos insistiam em focalizar as pernas dele, longas e estendidas na cama ao lado das dela, cruzadas nos tornozelos. Ele estava usando jeans, e o brim amaciado por muitas lavagens parecia colar-se às suas coxas como uma segunda pele. Implorando para que ela as acariciasse. Quando seus olhos subiram um pouco mais, foi impossível não reparar no volume entre suas coxas. Voltou os olhos rapidamente para a tela da tevê, tentando
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concentrar-se no que o repórter dizia, embora não desse a mínima. Disse a si mesma que estava apenas experimentando uma reação sexual normal, acentuada pelo fato de que quase um ano se passara desde a última vez que fizera amor. Era uma reação normal e saudável, um sinal de que estava recuperando-se do luto. Mas seu coração passou a bater num ritmo profundo e lento, e ela percebeu que respirava mais rápido enquanto um peso crescia no centro de sua feminilidade, dirigindo sua atenção para o ponto entre suas pernas. Um ponto que parecia tornar-se mais pesado, mais quente e sensível a cada vez que respirava. Ela queria Earl, e uma parte de si percebeu que sempre o quisera. Mas não se atreveu a mover um músculo. Isso era errado, pensou. Earl era o melhor amigo de Bill. Seria capaz de odiá-la, se soubesse da verdade a seu respeito. E tinha de pensar em Allie... Ele mexeu-se, balançando um pouco a cama, e mudou de canal com o controle remoto. Estava passando um antigo filme romântico. — Gosto muito deste filme — ele comentou. Meg ficou admirada. Bill odiava o filme, dizendo que era sentimental e piegas demais. Ela imaginava que Earl sentiria o mesmo. Quando ele ergueu o braço e passou-o pelos seus ombros, Meg parou de respirar. Era tão bom e tão amedrontador ao mesmo tempo, e teve de segurar-se para não recostar a cabeça no peito dele. Fazia tanto tempo que ninguém a abraçava. Tanto tempo... Pouco a pouco foi relaxando, permitindo-se sentir segura, em vez de ameaçada. Aquilo era bom. Apenas um abraço entre amigos. Earl não tinha nenhuma segunda intenção ao fazê-lo. Aos poucos sua atenção focalizou-se no filme. Até o momento em que se virou para ele para fazer um comentário a respeito do filme. Earl nem estava olhando para a tela, percebeu. Estava olhando para ela. E, de repente, sua boca estava a milímetros da dele. Earl entrecerrou os olhos, os lábios abriram-se levemente. Sim! Uma voz gritou dentro dela, enquanto seu coração disparava e a boca ressecava-se com o medo e a antecipação. Não devia fazer isso. Sabia que não devia. Mas não podia impedir-se, porque precisava disso mais do que qualquer outra coisa no mundo. Tornou-se ciente de pequenos detalhes. Do peso do braço dele em seus ombros, da pressão que o corpo másculo fazia em seu braço. Podia sentir-lhe o calor, a força. Via a barba crescida no rosto dele. Sentia-se sendo empurrada para ele como um imã. Então ele a beijou. Todos os pensamentos racionais desapareceram num instante. Os lábios dele eram vorazes, a língua penetrava em sua boca profundamente, como se quisesse prová-la por inteiro. Meg recebeu-o, ansiando por qualquer coisa que ele quisesse. Ansiando por entregar-se pela primeira vez em muitos anos. Earl aprofundou o beijo, fazendo-a deitar no travesseiro virou-se e seu corpo quase cobriu o dela. Uma onda de excitação percorreu-a ao sentir seu peso. Passou os braços em torno de seu pescoço, puxando-o mais contra si. A pressão do peito firme contra seus seios era maravilhosa. Meg sentiu o corpo arquear-se sob o dele, enquanto o desejo retumbava em
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suas veias. Esqueceu-se de que, caso se tornassem amantes, a amizade poderia morrer, nem se lembrou que Allie estava no quarto ao lado. Esqueceu-se de tudo, exceto de Earl e do quanto o desejava. A mão dele encontrou-lhe o seio e apertou-o suavemente, e ondas deliciosas percorreram-na desde a virilha. Suave... foi tornando-se mais suave enquanto sentia-o enrijecer contra ela. Earl acariciou-lhe o mamilo, provocando-lhe um gemido baixo e rouco, que foi logo engolido por outro beijo ardente. Porém, ao ouvi-la gemer, ele pareceu recuperar os sentidos. Afastou-se dela bruscamente e ofegou, em busca de ar. — Meu Deus — murmurou. — Este não é o momento... Foi como se alguém lhe atirasse um balde de água gelada. Allie. Allie estava no outro quarto. E se tivesse escutado, ou visto... Meg afastou-se de Earl e levantou-se da cama. Rápido e sem qualquer ruído, correu para a porta e espiou no quarto. Sua filha dormia profundamente, de costas para a porta. Um imenso alívio a invadiu, tão forte que ela sentiu as pernas bambas. — Ela está dormindo? — ouviu Earl cochichar. Meg fez que sim e, relutante, virou-se para encará-lo. — Isso foi uma loucura. — Concordo plenamente. Mas quando ele estendeu-lhe a mão, ela fez o que sabia que não devia. Em vez de voltar para seu quarto, foi sentar ao lado dele. O filme continuava, na tevê. — Está tudo bem — ele disse. — Vou me comportar. Por um instante Meg permaneceu rígida ao lado dele. Mas, pouco a pouco, foi ficando sonolenta. E, sem sequer perceber, acabou recostando a cabeça no ombro dele, enquanto Earl a abraçava. Precisava disso, ela pensou vagamente enquanto o sono a invadia. Precisava disso, e não estava fazendo nada de errado. Ter Meg adormecida em seus braços estava tão perto de um sonho transformado em realidade que Earl quase teve medo de desfrutar da sensação. Mas não pôde evitar. Meg estava ali, dormindo em seu ombro, e a preciosidade de sua confiança, daquele momento, era mais do que ele podia suportar. Ele estava ciente de todos os motivos que o impediam de sentir-se assim. Sabia das razões porque não poderia tê-la beijado, e descobriu que beijá-la era ainda melhor do que suas mais loucas e secretas fantasias. Não deveria ter chegado tão perto de algo que desejava, mas que jamais poderia ter. Agira como um tolo. Bem, aquela não era a primeira vez que agira assim, e provavelmente não seria a última. Agora, ao menos teria do que se lembrar quando estivesse sozinho à noite e desejando que sua vida não precisasse ser tão solitária. O que, naturalmente, não precisava. A solidão era uma defesa que ele aprendera a usar na infância, e da qual já poderia ter desistido nos últimos vinte anos. Muitas mulheres tinham sido atraídas, tanto por ele quanto pelo seu cargo de xerife da cidade. Se quisesse, ele teria aceitado a companhia. Mas escolhera a solidão, e tinha consciência disso. Não era o tipo de sujeito que se contenta com a mediocridade. Era melhor ficar sozinho do que casar-se apenas para evitar a solidão.
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Mas agora esta solidão seria atormentada pelas lembranças do que poderia ter tido. Uma coisa era admirar Meg à distância e pensar que Bill tivera muita sorte por tê-la encontrado primeiro. Mas era bem diferente senti-la em seus braços, o corpo dela contra o seu, a reação dela ao seu ardor. E não podia culpar mais ninguém, exceto a si mesmo, pelo que isso iria causar em seu coração e sua alma. Mesmo assim, não estava preparado para afastar-se dela e pouparse do prazer doloroso de segurá-la daquela maneira. Não conseguia obrigar-se a tanto. Precisava de tal proximidade, das sensações que o percorriam. Precisava do contato, mesmo se isso o fizesse desejar estar mais perto, ansiar por mergulhar profundamente dentro dela. Meg despertara o desejo nele com tanta facilidade, e agora este não o abandonava. Earl sentia os quadris pesados, a virilha ligeiramente ardente, cada nervo do corpo irradiando as sensações mais sutis. Fechando os olhos, desistiu de lutar e imaginou que ela acordava e virava-se para ele com um sorriso sonolento, oferecendo-se de maneiras que, ele sabia muito bem, jamais aconteceriam. Imaginou-a abraçandoo, colando-se a ele, exigindo que ele a possuísse. Sua respiração ficou mais pesada e o ardor em seu corpo quase doloroso. Mas Earl não impediu as sensações. Permitiu que o preenchessem e assegurou-se que elas eventualmente desapareceriam, e, quando desaparecessem, nunca mais tentaria nada com Meg. Ela merecia mais do que isso, dele. Merecia poder confiar nele como um amigo. Earl não queria estragar aquela amizade tentando encaminhá-la para um outro rumo. Nada era capaz de matar uma amizade mais rapidamente do que uma paixão incontida. Ele não podia correr este risco. Julgou ter ouvido um barulho no quarto ao lado. Abriu os olhos de repente, mas nada viu. Pensou em ver como estava Allie, mas se saísse do lugar poderia acordar Meg, e isso ele não queria, não como estava se sentindo. Mas, quando não escutou mais nada, tornou a fechar os olhos e ficou ali, sentindo o corpo ansioso e dolorido, até finalmente ser invadido pelo sono. Allie arrastou-se silenciosamente de volta para a cama e virou-se de costas para a porta, para o caso de alguém vir olhá-la. Não queria que ninguém visse as lágrimas em seu rosto. O tio Earl estava abraçando a sua mãe. Allie tinha idade suficiente para saber que isso era normal, mas mesmo assim sentiu uma dor profunda. Estava triste porque quem deveria estar abraçando sua mãe era o seu pai, mas seu pai havia morrido. Estava triste porque seu pai não abraçara sua mãe daquela maneira desde que Allie era bem pequena. Mais ou menos na época em que completara dez anos Allie havia pressentido uma mudança no relacionamento dos pais. Isso a deixara nervosa por muito tempo, e começara a pensar se eles iriam divorciar-se, como os pais de tantos amigos seus. Eles já não riam tanto como antes, e sua mãe às vezes parecia triste e distante. Com o tempo, no entanto, ela passara a acostumar-se com isso, mesmo porque parecia que era assim que as coisas continuariam a ser. Seus pais não brigavam muito, ou
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nada assim, simplesmente estavam distantes um do outro. Mas nunca distantes dela. Porém, ver o tio Earl abraçar sua mãe daquela maneira fez com que Allie se lembrasse de como eram as coisas, antes. Lembrou-a de que seu pai nunca mais a abraçaria novamente. Além disso, deixou-a um pouco preocupada com a possibilidade de tio Earl levar sua mãe embora. Poderia acontecer, principalmente quando ela sabia que sua mãe nunca a desejara. Então, o que aconteceria com ela? Sua mãe a deixaria com a avó Vivian? Ela devia ter morrido nas montanhas. Por que não morreu, quando caiu? Teria tornado tudo mais fácil para todo mundo. Em vez disso, continuava ali, sendo um grande problema para sua mãe. E Allie sabia que era. Mesmo com sua mãe mostrando-se tão carinhosa e planejando dar-lhe aulas de pintura, ela sabia muito bem. Arruinara a vida de todos. E não tinha a menor idéia de como consertar isso. Ficou acordada por muito tempo, até ouvir sua mãe entrar no quarto, vestir a camisola e deitar-se. E continuou acordada até bem depois que a mãe adormeceu. Talvez se conversasse com tio Earl, ele poderia ajudá-la a decidir o que seria o melhor a fazer. Ele sempre parecia ter resposta para tudo. Prometendo a si mesma que faria isso assim que tivesse um tempo a sós com ele, Allie finalmente conseguiu dormir. O tempo havia clareado nas montanhas na hora em que tomaram a estrada de volta para casa, na manhã seguinte. Ninguém parecia ter muito a dizer, no entanto, e o silêncio estava pesado no carro. Earl reparou no silêncio e ficava olhando para Allie pelo espelho retrovisor, tentando desvendar a expressão de seu rosto. Será que ela havia entrado em seu quarto durante a noite, e o apanhara abraçando Meg? Ou, talvez, os vira se beijando? Uma aguçada sensação de culpa o invadia, ao pensar que isto seria bem possível e que fora sua culpa, por não ter fechado a porta. Allie não o olhara de frente, desde cedo. Mas tampouco olhara para a mãe. Ele precisava encontrar um meio de descobrir o que tanto a perturbava, antes que ela cometesse alguma loucura novamente. Deus, como faria para que aquela conchinha se abrisse e confiasse nele, principalmente se o vira com Meg na noite anterior? Se isso tivesse acontecido, ela provavelmente o odiaria, pensando que ele estava traindo seu pai. Por que agira como um idiota? Earl queria socar o volante, tamanha era sua frustração. Então, olhou para Meg e viu que ela também evitava encará-lo. Ela devia estar pensando que traíra Bill, também. E ele não sabia o que fazer sobre isso. Naquele exato momento, desejava Meg com uma intensidade que o deixava louco, e não via como poderia retornar ao seu antigo papel de amigo, com nenhuma das duas. Mas precisava tentar. Para o bem de todos eles. Foi pensando nisso durante todo o trajeto até o túnel Eisenhower, enquanto o silêncio no carro tornava-se cada vez mais denso. Bem, finalmente decidiu, não podia desfazer o que fizera. Portanto, teria de encontrar uma maneira de tornar as coisas melhores para Meg e Allie. De alguma forma, precisava fazer algo que as fizesse sentir-se melhor a
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respeito dele. Talvez, pensou enquanto passavam pelo túnel, talvez pudesse fazer alguma coisa a respeito de Vivian. Quem sabe poderia conseguir que Vivian encontrasse algum sentido na vida, tornando tudo mais fácil para todos? Talvez devesse dedicar-se a animá-la um pouco. Não tinha a menor idéia de como faria isso, mas acreditava que acabaria descobrindo um meio. Porque Meg e Allie significavam mais para ele do que qualquer coisa no mundo. Tudo o que importava era tornar a vida melhor e mais fácil para elas. E, por Deus, era isso que ele faria. Quando Meg finalmente perguntou à Allie se havia algo errado, a menina respondeu que estava apenas cansada. Meg duvidou que fosse verdade. No entanto, Allie realmente parecia cansada, com o rosto pálido e olheiras fundas e visíveis, apesar dos hematomas que já estavam quase desaparecendo. — Sentiu dores na perna, ontem à noite? — Meg perguntou. — Não, mas o gesso ficava batendo na outra perna o tempo todo. — Pobrezinha... Allie encolheu os ombros. — Mas você não me parece nada bem — Meg falou. — Acho que vou levá-la ao médico novamente. — Estou bem, mamãe — Allie falou, impaciente. — Só estou com sono. — Para provar o que dizia, fechou os olhos. Ainda preocupada, Meg virou-se para frente. Se um cochilo não fosse capaz de melhorar a aparência de Allie, prometeu a si mesma, iria levá-la ao médico no dia seguinte. Talvez a pancada da cabeça fosse pior do que tinham pensado. Tinha vontade de conversar com Earl, mas a expressão dele parecia esculpida em granito, naquela manhã. Ao que parecia, ele arrependera-se de tê-la beijado, o que era compreensível. Os sentimentos deviam ser desconfortáveis para os dois. Porém, o pior de tudo era a sensação de que havia caído no conceito de Earl. E por que não? Afinal, ele a considerava como a esposa do seu melhor amigo. Provavelmente nem pensava nela como alguém que tivesse sexo. E, depois da maneira como ela respondera ao seu beijo, talvez pensasse que era uma mulher fácil e assanhada.. E talvez ela fosse. Talvez fosse isso que realmente acontecera no celeiro, com Bill. Talvez ela tivesse cedido demais, até o ponto em que não havia mais volta para ele. Talvez não devesse ter permitido aqueles beijos tão apaixonados, nem que ele tocasse seus seios, mesmo enquanto ele lhe prometia que não iria além disso. Ela havia se comportado como uma mulher fácil, por que ele não a trataria como tal? E, agora, comportara-se da mesma maneira com Earl. Evidente que ele nem queria olhá-la. Provavelmente estava enojado. Pressionou a têmpora do vidro gelado da janela e ficou olhando a paisagem passar rapidamente. Talvez sua mãe estivesse certa a seu respeito e ela fosse mesmo uma sem-vergonha. Talvez lhe faltasse o autocontrole que as outras mulheres possuíam. Talvez tivesse desejos e impulsos que eram errados. Isso era inteiramente possível. Não havia dúvida que estes desejos tinham estragado a sua vida no passado. Não podia permitir que isso tornasse acontecer, principalmente com Earl, que era mais importante para ela do que qualquer outra
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pessoa, com exceção de Allie. E daí que ele estava desgostoso com ela, por causa da sua reação na noite anterior? Ele iria superar. Isso não era nada, comparado com os segredos que ela guardava, os segredos que permaneciam entre eles como um muro de pedras. Meg não podia dar-se ao luxo de esquecer estes segredos, nem por um minuto. Pois, se o fizesse, estaria permitindo que Earl se aproximasse demais. E se isso acontecesse, ele os descobrira mais cedo ou mais tarde, e ela o perderia. Para sempre. Porque ele jamais seria capaz de perdoála. Virou-se novamente para trás e viu que Allie continuava com os olhos fechados. Mas não acreditava que ela estivesse dormindo. Não, ela pressentia que sua filha ocultava seus próprios segredos. Então, pela primeira vez lhe ocorreu que estes segredos, longe de estar protegendo-os, talvez fossem justamente o que os mantinha separados. Capítulo XIV Quando chegaram a casa, a neve já havia sido retirada da entrada. E, o mais surpreendente, Vivian parecia estar de bom humor. Recebeu-os na porta com um sorriso, e o aroma de carne assada flutuava no ar. — O jantar estará pronto em uma hora — Vivian falou, depois se adiantou para abraçar Allie que, pela sua expressão, parecia preferir estar sendo abraçada por um urso. — Vocês podem ir para a sala e descansar um pouco — dirigindo-se a Meg e Allie. — Fizeram uma viagem longa. Meg olhou para Earl, como se ele pudesse explicar-lhe o que estava acontecendo, mas ele limitou-se a encolher os ombros. Ela virou-se para a mãe. — Como conseguiu limpar a neve da entrada? — Não fui eu — Vivian respondeu. — Um dos trabalhadores da mina apareceu hoje cedo e limpou tudo. Ele disse que estava na equipe de buscas da semana passada e ficou pensando em como três mulheres sozinhas iriam lidar com a neve acumulada na porta. — Foi muita gentileza. Quem era ele? — Stan Gruber. Meg lembrava-se vagamente de Stan. Se não estava enganada, era um homem de meia-idade, talvez cinqüenta e cinco anos, que trabalhara na mina e conversara com ela algumas vezes na cidade, perguntando como ela estava passando depois da morte de Bill. — Preparei um bom desjejum para ele, depois que terminou — Vivian prosseguiu. — O pobre homem vive sozinho, desde que a esposa morreu e os filhos mudaram-se para longe. — Isso é muito triste — Meg concordou, tentando decifrar a expressão da mãe. Aparentemente Vivian não se mostrava irritada, nem infeliz, mas por trás disso continuava sendo uma incógnita. Vivian empurrou Meg e Earl para a sala. Allie anunciou que estava muito cansada e que iria para o quarto.
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— Alguma coisa está perturbando Allie — Earl falou quando se sentaram no sofá. Momentos depois ouviram o som alto da música vindo do quarto da menina, alto o bastante para fazer os quadros nas paredes vibrarem. Meg olhou para o teto. — Ela sabe que não pode ligar o estéreo neste volume — disse. Mas não se moveu para dizer à filha que abaixasse o volume. Por enquanto, iria suportar. — E o que deu em Vivian? — Earl perguntou. — Não faço a menor idéia. — Normalmente ela me trata como um leproso e deixa bem claro que mal pode esperar para ver-me pelas costas. — Ela trata quase todo mundo assim, Earl. Não é nada pessoal. — Bem, eu penso o contrário. Por falar nisso... Volto num minuto. Desde que ele decidira, no carro, que precisava agradar Vivian a fim de conseguir cuidar de Meg e Allie, calculou que aquela seria uma boa oportunidade para começar, principalmente porque a mulher demonstrava uma gentileza que não lhe era característica. Encontrou-a na cozinha, descascando batatas na pia. — Posso ajudar em alguma coisa, Vivian? — Já está quase tudo pronto. O que há de errado com Allie? — Não sei. Ontem estava tudo bem, mas hoje está um tanto estranha desde cedo. — Earl preferia saltar num abismo, antes de dizer a Vivian o que suspeitava estar incomodando Allie. — Adolescentes — Vivian falou, como se isso explicasse tudo. E talvez explicasse. Earl puxou uma cadeira e sentou-se à mesa, observando-a, tentando encontrar um meio de iniciar a conversa. — Foi muita gentileza de Stan vir limpar a entrada. — Também achei. — Vivian continuou concentrada na tarefa de descascar batatas. — Stan é um bom sujeito. Sempre foi. É diácono da igreja do Calvário, sabia? O interesse de Vivian foi despertado. — É mesmo? — Sim, há mais de vinte anos. Já trabalhei com ele várias vezes, pois é sempre um dos primeiros a oferecer-se como voluntário quando algo acontece por aqui. Ele foi o maior responsável por toda a ajuda que recebemos, no resgate de Allie. Foi ele quem pegou o telefone e começou a ligar para todos os conhecidos. Vivian assentiu. — O que aconteceu com a esposa dele? — Teve um tumor cerebral. — Que tristeza... — É mesmo. Ele adorava aquela mulher. Vivian acabou de descascar as batatas e começou a fatiá-las numa panela com água que estava esquentando no fogão. — Você gosta de purê de batatas? — Muito. — Então vou fazer um pouco a mais. Earl sentiu-se quase bem-vindo, pela primeira vez desde que Vivian chegara naquela casa.
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— Allie divertiu-se, ontem? — ela perguntou. — Com certeza. Meg comprou o material para começarem a pintar juntas, depois comprou uma roupa nova e alguns cds para Allie. Aposto que é um destes cds que ela está ouvindo agora, neste volume absurdo. Vivian riu de verdade. — Meg também costumava fazer isso. Não importava quantas vezes eu dissesse que ela acabaria ficando surda. — Provavelmente eu faria o mesmo, se tivesse um aparelho de som. Vivian olhou-o de relance. — Você teve uma infância difícil. — Não foi uma pergunta. — Já vi piores — Earl retrucou. O assunto sempre o deixava pouco à vontade. Naquele instante Allie apareceu na cozinha. A música continuava tocando a todo volume no andar de cima. — Tio Earl? Posso falar com você? Ele percebeu que a menina queria lhe falar em particular, mas relutou em interromper a conversa com Vivian justamente agora que sentia estar aproximando-se de uma espécie de trégua. — Agora não, querida. Espere uns dois minutos, está bem? Allie baixou os olhos. — É claro — disse. — Dois minutos. Earl observou-a sair da cozinha mancando, e perguntou para Vivian: — Você tem alguma idéia do motivo que a fez fugir de casa? Vivian balançou a cabeça. — Allie está infeliz desde a morte do pai. Não vejo mais nenhum outro motivo. Ela não conversa muito comigo. Aliás, não conversa muito com ninguém. — Ela surpreendeu-o quando se virou para encará-lo de frente. — Estive pensando sobre o que você disse no outro dia, e acho que tem razão. Não posso ficar guardando ressentimentos. Isso não é bom para Allie. Earl apanhou-se sorrindo para ela. — Fico contente em saber disso, Vivian. — Agora, vá conversar com a menina. O jantar está quase pronto. Earl estava levantando quando o telefone tocou. Vivian atendeu e passou-lhe o aparelho. — É para você. Ele pegou o telefone. — Xerife Sanders — disse. — Chefe? Chefe, o senhor precisa ir até o hospital. Matt Dawson levou uma surra daquelas. Earl sentiu o peito contrair-se e o gosto de bile encheu-lhe a boca. — Estou saindo. — Desligou e voltou-se para Vivian. — Desculpeme, Vivian. Apareceu uma emergência e não posso ficar para o jantar. Quando estava pegando o casaco que deixara no cabide do vestíbulo, Allie, que o esperava sentada ao pé da escada, chamou: — Tio Earl? — Agora não, Allie. Preciso sair. Avise sua mãe, sim? — Ele abriu a porta e saiu apressado. O luminoso sol do Colorado refletia-se na neve, dando a Earl uma boa desculpa para esconder os olhos atrás dos óculos escuros, pelo menos
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da meia dúzia de pessoas com quem cruzou no estacionamento. Durante todo o trajeto até a cidade ele censurou-se por não ter interferido na vida de Matt mais cedo. Toda aquela bobagem sobre ser incapaz de agir se Matt não lhes dissesse quem o estava surrando? Talvez fosse verdade, legalmente, mas às vezes na vida era necessário burlar um pouco a lei. O que ele deveria ter feito era dirigir até a casa dos Dawson e avisado aquele imbecil para manter as malditas mãos longe do menino, do contrário acabaria tendo sérios problemas. Não precisava de provas para colocar aquele canalha na cadeia. Era isso que deveria ter feito. Mas não fez. Passara tanto tempo e gastara tanta energia tentando escapar do seu próprio passado e dos seus antecedentes familiares, tentando conquistar a confiança das pessoas, tentando provar que era um xerife sólido, confiável e cumpridor da lei, que esquecera-se de que existem ocasiões em que a lei também é falha. Mas, mesmo enquanto pensava tais coisas, Earl sabia que estava sendo um pouco duro demais consigo mesmo. O fato de sair gritando e atemorizando Ben Dawson não significava necessariamente que Ben o escutaria, nem que Matt estaria a salvo. Na verdade, poderia até ter piorado as coisas para o garoto, principalmente considerando-se que ninguém tinha poder de tirá-lo daquela casa sem alguma prova de que ele estava sendo maltratado. Provas. Deus, às vezes ele odiava essa palavra. Mel Burch era o médico de plantão, um homem que praticava medicina naquela cidade há um quarto de século. Levou Earl para um compartimento vazio, na ala de emergência. — Como ele está? — Earl perguntou. — Nada bem. Alguém espancou o garoto com um taco de beisebol, ou algo parecido. Está com fratura craniana, três vértebras fraturadas, um braço quebrado e contusões graves o bastante para me deixar preocupado. — Ele está consciente? — Está. Um pouco grogue, mas acordado. — Como chegou aqui? — A mãe chamou uma ambulância. Disse que ele caiu numa ravina atrás da casa. — Foi ali que o encontraram? Mel balançou a cabeça. — Não, ele estava dentro de casa. A mãe afirmou que o pai tirou-o da ravina, ou ele acabaria congelando. Mas o pai não estava por ali. — Meu Deus! — Estou fazendo um relatório de suspeita de abuso — Mel falou. — Mas se o rapaz negar... Earl assentiu. — Posso vê-lo? — Segundo compartimento à direita. Sentindo um peso no peito, Earl seguiu pelo corredor e entrou no quarto. Matt estava na cama, a cabeça envolta em bandagens, os olhos fundos e pretos. O braço estava engessado e enfaixado desde a axila até a mão oculta sob o lençol. Onde as bandagens não cobriam, feios hematomas eram visíveis. Earl sentiu ímpetos assassinos, naquele momento.
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— Matt? O menino abriu os olhos com dificuldade. — Xerife — ele disse, a voz rouca e grossa. — Quem fez isso com você? Matt fechou os olhos. — Filho, você não pode permitir que isso continue. Na próxima vez ele vai matá-lo. Mas os olhos do rapaz permaneciam obstinadamente fechados. — Briga — ele disse. — É mesmo? Bem, certamente não foi uma luta justa. Com quem você brigou? Matt ficou em silêncio, e Earl sentiu sua frustração crescer até o ponto em que não conseguiu mais contê-la. — Por Deus, rapaz, eu não sei por que você continua protegendo-o! Devia estar protegendo a si mesmo. Ninguém merece ser tratado assim. Ninguém! Mas Matt recusava-se a falar. Earl exalou um suspiro de desapontamento. — Virei vê-lo amanhã cedo novamente, Matt — disse, afinal. — Talvez até lá você tenha criado algum juízo. Mas não há nada que eu possa fazer para protegê-lo, se você não falar comigo. Cinco minutos depois Earl estava de volta para o ofuscante sol de inverno, colocando os óculos escuros e perguntando-se por que diabos o garoto não confiava nas únicas pessoas que poderiam ajudá-lo. Como Allie. Ela também se recusava a falar sobre o que tanto a perturbava. Como alguém poderia ajudá-la se insistia em manter o problema para si mesma? Será que aquelas crianças realmente pensavam que todos os adultos eram capazes de traí-los? Foi então que se lembrou de que Allie quisera conversar, e que ele evadira-se dizendo "agora não". Um peso de chumbo instalou-se em seu estômago, e ele praguejou baixinho. Talvez, no fim das contas, as crianças tivessem razão em não querer confiar nos adultos. Ao sair do estacionamento do hospital, ficou em dúvida sobre para onde ir primeiro. Finalmente decidiu que precisava falar com o pai de Matt Dawson, antes de qualquer coisa. A vida de Matt estava em perigo. Allie estava com a mãe e a avó, que poderiam ajudá-la caso precisasse. Mas ele não podia arriscar a possibilidade de Ben Dawson chegar perto de Matt. Os Dawson moravam a cerca de dez quilômetros da cidade, num terreno que antes fora uma concessão de mineração. A propriedade permanecera na família desde então, embora os direitos de mineração tivessem se esgotado há muito tempo, da mesma forma que acontecera com quase todas as propriedades dos arredores. Localizava-se num pequeno vale rodeado pelas montanhas, um pedaço de terra que nunca servira para o cultivo, pois, de qualquer forma, nada poderia ser cultivado naquela altitude. Millie Dawson trabalhava numa loja de ferragens na cidade, trazendo para casa todo o dinheiro que sustentava a família. Ben caçava e pescava, quando não estava bêbado. Era uma vida difícil. A neve não havia sido retirada da estrada que levava à
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propriedade, a partir da rodovia. As marcas de pneus entrecruzavam-se e alguns pontos indicavam que alguém derrapara. Earl dirigiu com todo cuidado e finalmente chegou à casa, ou melhor, à construção de madeira de três cômodos, que mais parecia um barraco. Viu a velha picape dos Dawson estacionada no terreno, mas o carro de Matt não estava à vista! Earl saiu do carro e olhou em volta, checando os arredores com a sensação de alerta de um policial que sabe que se encontra em território perigoso. Nada se movia. A porta não foi aberta até que ele bateu com força pela terceira vez. Então Millie Dawson espiou por uma fresta, os olhos amedrontados. — Sra. Dawson, quero falar com Ben. A mulher arregalou os olhos. — Ele foi embora. — O carro dele está aqui. — Não... a caminhonete não funcionava. Ele pegou o carro de Matt. O que provavelmente explicava o motivo da surra, Earl pensou. Matt não entregaria de boa vontade o seu carro ao pai embriagado. — Para onde ele foi? — Não sei. Ele não disse. Earl ficou parado ali por um instante, considerando a idéia de deixar um recado para o desgraçado, mas depois se deu conta de que, se a mulher desse o recado, provavelmente também acabaria no hospital. — Obrigado, Sra. Dawson. Desculpe incomodá-la. A porta fechou-se antes mesmo que Earl se virasse. Enquanto se afastava, Earl reparou que Millie nem mesmo perguntara o que ele queria com Ben. Ela sabia. Meg bateu na porta do quarto da filha e avisou que o jantar estava pronto. Ao perceber que Allie provavelmente não a escutara por causa da música alta, tentou abrir a porta e viu que estava trancada. Naquele instante, o constante estado de ansiedade em que se encontrava desde que Allie voltara para casa foi imediatamente transformado em puro medo. Allie nunca trancava a porta. Bateu novamente, desta vez com os punhos fechados, com toda a força. E, desta vez, Allie respondeu: — Vá embora! — O jantar está pronto — Meg gritou. — Não estou com fome. Deixe-me em paz. — Allie... O volume da música ficou ainda mais alto, ensurdecendo-a. Meg ficou parada olhando para a porta, o medo penetrando em cada milímetro de seu ser. Allie nunca agira daquela maneira. Nunca. E ela não sabia se deveria afastar-se e esperar que a menina se acalmasse, ou se entrava em pânico. Deus. E ela que pensara que fora difícil quando Allie tinha dois anos. Achava que nada poderia ser tão amedrontador quanto cuidar de uma criança voluntariosa com a sensação de que, se perdesse aquela batalha, perderia todas as batalhas de vontades pelo resto da vida de sua
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filha. Sabendo que estava sempre prestes a perder o controle. Agora que Allie era uma adolescente, não havia nenhum mapa para guiá-la, algo que lhe dissesse se deveria ser paciente ou ficar aterrorizada. E sempre se lembrando de que sua filha tentara o suicídio apenas uma semana atrás. Subitamente todos os detalhes ficaram importantes. A maneira como Allie estivera agindo, sem querer ver as amigas e nem mesmo falar com elas no telefone, na última semana. O jeito como ela se voltara para aquele rapaz problemático, Matt Dawson, enquanto mantinha todas as outras pessoas à distância. Sentiu o cheiro de incenso vindo por baixo da porta. Alice estaria consumindo drogas? Aquele incenso era novidade, algo que ela ganhara de um amigo poucas semanas atrás. Algo que ela acendera apenas uma vez, depois torcera o nariz queixando-se que o perfume era muito forte. Mas o acendera, agora. Por quê? Para encobrir outra coisa qualquer? O uso de drogas poderia explicar a mudança de comportamento da filha, Meg pensou. O pânico aprofundou-se ainda mais. Não, isso não. Mas a porta continuava fechada e ela não sabia o que fazer. Precisava falar com Earl. Ele saberia como lidar com aquela situação, saberia o que procurar. Meg sentiu-se quase envergonhada ao dar-se conta de que tinha trinta e quatro anos, mas não sabia nada sobre como as drogas eram usadas, ou sobre o "material" necessário para sua utilização. Quando estava na faculdade sempre evitara cuidadosamente os grupos de usuários, e ali na cidade, se havia quem usasse drogas, fazia isso quando ela não estava por perto. Cachimbos. Já ouvira falar sobre os cachimbos de haxixe. Como seriam? Iguais a cachimbos comuns? Provavelmente não. Deviam ser menores, mais fáceis de carregar. Cigarros. Bem, isso ela saberia reconhecer. Também reconheceria saquinhos com substâncias estranhas. Ergueu a mão para bater na porta novamente e concluiu que de nada adiantaria. Allie não a deixaria entrar. Ela precisava de Earl. — O que está acontecendo? — Vivian perguntou. Meg deu um pulo de susto e virou-se, deparando com a mãe no topo da escada. — Não sei. Allie disse que não está com fome, e a porta está trancada. Meg ficou tensa, pronta para ouvir o discurso habitual de Vivian sobre como tudo aquilo era sua culpa, por ter deixado a menina tão solta. Vivian abriu a boca e sua expressão endureceu, como se de fato estivesse prestes a dizer o que sempre dizia. Mas, então, surpreendeu Meg: — Bem — ela disse, — ou arrombamos a fechadura, ou descemos e esperamos que ela saia do quarto. A resposta tão racional foi quase um choque para Meg. Ela já havia se preparado para uma discussão e agora nem sabia o que dizer. — E se ela estiver usando drogas? — As palavras quase se grudavam em sua garganta, mas conseguiu pronunciá-las. Vivian franziu a testa, mas desta vez sua expressão denotava mais preocupação do que a irritação costumeira. — Neste caso, temos outro problema para resolver. Depois que ela sair, podemos dar uma olhada no quarto. Por enquanto é melhor deixá-
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la sozinha, Meg. — Mas... mamãe, ela pode ter tentado se matar. E se... De repente, Vivian fez algo tão inesperado que o coração de Meg parou por um segundo. Ela adiantou-se e abraçou a filha. Meg ficou tão atônita que imobilizou-se momentaneamente, mas logo o calor do abraço da mãe, que passara quinze anos sem nem sequer tocá-la, preencheu-a por inteiro, e ela desabou. Lágrimas enchiam seus olhos e corriam pelas faces. — Mamãe... — Vai ficar tudo bem, Meg. Você também fez isso algumas vezes, lembra-se? Quando tinha mais ou menos essa idade. Eu achava que você havia entrado para uma seita de adoradores do diabo, está lembrada? Todos aqueles cartazes estranhos, as velas pretas... Meg lembrava-se. Por cerca de um ano passara a usar apenas roupas pretas e a rebelar-se contra tudo e contra todos, incluindo seus pais. Sim, ela se lembrava. E tudo aquilo lhe parecera muito "legal". No entanto, nunca havia pensado em suicídio, pelo menos não da maneira tão séria com que Allie parecia pensar. — Não era nada disso — ela falou. — Eu sei. — Vivian deu-lhe uma palmadinha no ombro. — Vou descer e pegar uma chave de fenda. Vamos entrar no quarto de qualquer jeito. Meg assentiu e ficou onde estava, perto da porta, sentindo como se muitos anos e muitas vidas estivessem separando-a de sua filha. Allie, Allie, onde foi que eu errei? Vivian voltou com a ferramenta e empurrou Meg levemente para fora do caminho, inclinando-se para mexer na fechadura. A música continuava estridente, por isso Meg nem escutou quando a tranca se abriu. Vivian endireitou-se e empurrou a porta. Allie estava sentada na cama, a perna engessada apoiada num travesseiro, os olhos fechados. O cheiro de jasmim do incenso era quase sufocante e a música ensurdecedora. A menina nem mesmo ouviu-as entrar. Meg atravessou o quarto correndo, temendo que Allie estivesse inconsciente, mas quando a tocou, a menina pulou com o susto e sentouse. Vivian desligou o aparelho de som, e um silêncio abençoado instalouse no quarto. — O que vocês estão fazendo? — Allie gritou. — Por que entraram aqui? Será que não podem me deixar em paz! Só quero ficar sozinha! Este é o meu quarto! Saiam daqui! Meg tentou ser razoável. — Allie, nós ficamos preocupadas. — Preocupada, você? Ah, certo. Você me odeia. Sei que você me odeia. Só não quer me deixar em paz! Saia da merda do meu quarto! O choque imobilizou Meg. Ficou olhando para a filha como se esta fosse uma estranha. Allie nunca dissera palavrões, nunca falara com ela daquela maneira. Aquela não era a sua filhinha, seu bebezinho... — Agora chega, Allison — Vivian falou num tom firme. — Não fale assim com sua mãe. Nunca. — Por que não? — a menina gritou. — Por que não? Você está sempre falando assim com ela! Por que eu não posso? Ela me odeia. Você
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me odeia! Todo mundo me odeia! Agora, deixem-me sozinha! Meg livrou-se do torpor. — Ninguém odeia você, Allie. Nós amamos você. — Ah, está bem. Você nem queria que eu nascesse! Algo envolveu Meg, de repente, algo tão terrível que ela sentiu que seu corpo se dissolvia, que seu cérebro desligava-se e a levava para longe, distante daquela realidade que não poderia estar acontecendo. Como se todo seu ser se esvaísse, como se anos-luz de distância preenchessem o abismo entre ela e sua filha. Sentou na cadeira, sentindo como se outra pessoa controlasse seu corpo e seus atos. — Não vou sair daqui — ouviu-se dizer. — Vou ficar aqui mesmo até que você me diga o que está acontecendo. Quando Earl chegou à casa dos Williams sentia que a culpa em seus ombros pesava cem toneladas. Matt. Allie. Tanto quisera ajudá-los que acabara estragando tudo. Mas pelo menos poderia desculpar-se com Allie, fazê-la entender porque precisara sair correndo em vez de conversar com ela. Allie compreenderia. Ainda assim, sentia-se mal com tudo isso, pois Allie não havia conversado com ninguém nos últimos dias. Porque, quando finalmente ela procurou sua ajuda, ele deixou-a na mão dizendo "agora não". Deus, merecia ganhar o troféu de "burro e insensível" do ano. Vivian abriu a porta antes mesmo que ele chegasse à varanda. Tinha a expressão preocupada e Earl sentiu um aperto no coração. — O que aconteceu? — ele perguntou, sem rodeios. — Allie. Ela trancou-se no quarto e recusou-se a sair. Nós forçamos a entrada, e ela começou a gritar que todo mundo a odeia e não deveria ter nascido. Meg está com ela, agora, mas há mais de uma hora que a menina não diz nem uma palavra. Earl sentiu um arrepio percorrê-lo. Passou por Vivian e. correu para o quarto de Allie, onde encontrou a menina sentada na cama com uma expressão furiosa, as lágrimas correndo em seu rosto, e Meg numa cadeira ao lado, parecendo uma estátua de mármore. Não sabia com quem falar primeiro. Reparou que Allie nem mesmo olhou para ele, e Meg parecia não perceber sua presença. Sentiu que Vivian parava na soleira da porta, como se estivesse com medo de entrar. O perfume de incenso enchia o ar, fazendo-o pensar se Allie estaria metida com drogas. Allie primeiro,decidiu. Movendo-se cautelosamente, tentando não parecer ameaçador, aproximou-se da cama. Não esperou que ela se virasse para olhá-lo. — Desculpe por ter saído quando você queria conversar comigo — disse. — Não foi porque eu não quisesse falar com você, mas aconteceu uma emergência. — Não planejara contar sobre Matt, pois não queria deixá-la ainda mais perturbada, mas ao ver sua postura rígida e expressão impassível, decidiu-se pelo contrário. Seria a única maneira de fazê-la entender que não era apenas uma desculpa esfarrapada. — Matt Dawson está no hospital. Levou uma surra horrível. — Meu Deus... — Meg sussurrou. Por alguns segundos Allie não esboçou nenhuma reação. Então, ainda rígida, virou-se para Earl.
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— Ele vai ficar bom? — Espero que sim. Teve uma fratura de crânio, um braço quebrado, fraturas nas costelas e vários hematomas. Allie assentiu devagar, absorvendo a informação. — Posso visitá-lo? — Talvez amanhã. Sei que ele vai gostar de vê-la. Agora, sobre o que queria conversar comigo? — Não tem importância. Ela fechava-se novamente. Earl teve vontade de esmurrar-se. — Tem importância, sim. Se era importante antes que eu saísse, deve ser importante agora. — Nada mais tem importância — Allie falou. — É mesmo? Você está sentada aí, chorando. Isso parece indicar que alguma coisa ainda importa. — Só estou brava. — Com o quê? — Com tudo. Tudo. — Tudo é muita coisa — Matt falou. Ficou em silêncio por um instante, tentando deixá-la saber que não iria pressioná-la, que não iria embora novamente. Então, disse a única coisa em que pôde pensar: — Nós amamos você, Allie. Todos nós a amamos e estamos doentes de preocupação. Ela virou-se para ele, arregalando os olhos avermelhados. — Isso é mentira! Mentira! Mamãe nunca quis que eu nascesse. Eu estraguei a vida dela! Estraguei a vida do meu pai! E agora ele está morto por minha causa! Capítulo XV Meg parou de respirar. Estraguei a vida dela. Estraguei a vida dele. Era como rever um pesadelo e, no fundo de seu coração, ela sabia qual era a origem daquelas palavras. Por mais impossível que parecesse, ela sabia. Num súbito soluço, aspirou o ar para os pulmões que se comprimiam em seu peito. — Allie... — Pronunciou o nome da filha num tom rouco e entrecortado. — Allie... A menina não olhou para ela, para nenhum deles. — Allie... Você ouviu seu pai e eu discutindo, na noite em que ele morreu? Meg sentiu o olhar de Earl disparar em sua direção, mas já não se importava mais com o que ele pudesse pensar. Estava perdendo sua filha, e faria qualquer coisa para tê-la de volta. Allie encarou-a, então, com um brilho furioso nos olhos. — Você estava na casa de Sandy... — Meg falou, quase inutilmente, ainda nutrindo a esperança de estar enganada. — Voltei para casa mais cedo. Ouvi vocês. Eu ouvi tudo... — Ah, meu Deus!
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Meg sentiu o coração despedaçar-se. Tudo o que guardara consigo, para o bem de Allie e Earl, agora estava sendo revelado. E estava destruindo sua filha. — Allie... Allie, foi só uma briga. Nós dois dissemos coisas que realmente não queríamos dizer. Meu bem, você foi a melhor coisa que já aconteceu em minha vida, em toda minha vida. — Agora é fácil falar. Mas eu escutei tudo! — Allie estava soluçando e, quando Earl fez menção de tocá-la, afastou-se rapidamente. — Papai estava dizendo que a vida dele teria sido diferente, se eu não tivesse nascido. Eu ouvi! E ouvi você dizendo que também não me queria! Meg sentiu como se tivesse levado um soco no peito. Ofegou em busca de ar e esforçou-se para encontrar as palavras. — Eu nunca... Allie, eu nunca disse isso. Sei que nunca falei uma coisa destas! — Talvez não com estas palavras, mas foi o que quis dizer! Earl aproximou-se dela novamente e, desta vez, ela não se esquivou. Aconchegou-se em seus braços e recostou a cabeça em seu ombro. Ele segurou-a com força e olhou para Meg. — Talvez — ele disse num tom suave —, você devesse nos contar o que realmente falou. — Ah, Deus... — Meg respirou fundo e tentou focalizar a discussão que tão desesperadamente tentara esquecer naqueles últimos meses. — Eu estava... Bill estava falando que iria me deixar. Porque... porque eu estava ficando fria, ele disse. Fiquei com muita raiva, ele também ficou... Lembro-me de ter dito que ele não podia abandonar nossa filha, e ele disse algo a respeito de como jamais quisera ser pai, e eu gritei algo sobre como também nunca quisera engravidar, que meu desejo sempre fora terminar a faculdade, mas ele... Meg interrompeu-se. Estava ofegando, agora, destroçada por dentro e desejando apenas morrer. Mas precisava continuar, precisava salvar Allie. — Mas eu nunca disse que não fiquei feliz por Allie ter nascido. Não era sobre isso que estávamos falando, Allie, eu juro. Juro sobre uma pilha de Bíblias. Você foi uma surpresa que não tínhamos planejado, mas ficamos tão felizes quando você nasceu... Ah, meu bem, nada em minha vida deixou-me mais feliz do que ter você. O dia em que você nasceu foi o melhor da minha vida... A voz dela desapareceu sob os soluços incontroláveis. Meg esforçouse para recuperar o controle, respirando fundo várias vezes até sentir a pressão em seu peito diminuir para que pudesse voltar a falar. — Seu pai sentia o mesmo, Allie. Ele a amava tanto quanto eu, mais do que qualquer coisa no mundo. E, se pudéssemos fazer tudo outra vez, nenhum de nós teria mudado nada, exceto... exceto a maneira como você foi concebida. Mas nunca, nunca nos arrependemos de ter você... Então Allie falou algo arrepiante, a voz abafada contra a camisa de Earl. — Vocês estavam brigando por minha causa. Papai não teria morrido, se não fosse por mim. Eu deveria ter ido com ele naquele carro. Um silêncio mortal preencheu o quarto. Earl olhou para Meg, — É melhor você sair — ele disse. — Saia daqui agora. Meg levantou-se rigidamente, sentindo como se seu corpo
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pertencesse a outra pessoa. Devagar, foi andando para fora do quarto, passando por sua mãe, cuja expressão estava inescrutável. Quando chegou ao vestíbulo, pegou o casaco e saiu pela porta dos fundos até o deque. Merecia morrer, pensou. O sofrimento que causara à sua filha estava além de qualquer medida, e agora também magoara Earl. Desejava apenas enroscar-se num canto escuro e morrer. Earl ficou abraçando Allie até que ela parasse de chorar, exausta. Quando a menina descansou a cabeça em seu ombro, ele disse: — Você sabe que amo você, Allie. Amo você como se fosse minha filha. Ela assentiu devagar. — Quer que eu vá chamar sua mãe? — Não. — A voz dela estava rouca pelo choro. — E quanto à sua avó? — Não. Elas me odeiam. E eu as odeio. — Elas não odeiam você, Allie. Elas a amam, pode acreditar. Allie fungou o nariz, mas não disse nada. Então Earl continuou abraçando-a, imaginando o que diabos poderia fazer a respeito de tudo aquilo. Ficara surpreso ao saber que Bill estava pensando em separar-se de Meg. Ele nunca lhe falara sobre isso. E Earl sabia que as pessoas são capazes de dizer coisas terríveis quando estão com raiva, coisas que realmente não querem dizer, mas como explicar isso a uma menina de quatorze anos cujo coração fora destroçado por tais palavras raivosas? Mais importante, como fazê-la acreditar nisso? Mas ele teria de tentar, da única maneira que sabia. — Allie, você se lembra de quando tinha oito anos e seus pais não queriam deixá-la viajar com a família de sua amiga? Eles disseram que não queriam que você ficasse tão longe de casa por tanto tempo, com pessoas que eles não conheciam muito bem. Lembra-se? Allie assentiu. — Bem, talvez você também se lembre de que gritou com eles, dizendo que os odiava. Você não queria dizer isso, querida. Mas disse, porque estava com raiva. Porém, se seus pais não a amassem, por que se importariam com as pessoas com quem você iria viajar, ou por quanto tempo? Precisa pensar em coisas como esta, Allie, pois elas irão ajudá-la a lembrar-se de que sua mãe e seu pai sempre a amaram. Earl não obteve uma resposta imediata e calculou que Allie estivesse se sentindo magoada e ferida demais naquele momento para acreditar no que ele dizia. E a situação provavelmente iria piorar, porque era evidente que Allie estava lutando com tudo aquilo desde o dia em que o pai morrera. Oito meses sentindo-se incapaz de acreditar que fora uma criança desejada pelos pais, oito meses acreditando que causara a morte do pai, mesmo que indiretamente. Deus, aquilo era uma confusão danada. — Outra coisa que precisa saber — ele prosseguiu. — Você não teve culpa pela morte de seu pai. Não foi a discussão que o matou. Ele derrapou na neve e no gelo, e isso poderia ter acontecido a qualquer um. Só que aconteceu com ele, naquele momento. Sem nenhum motivo específico. Foi um acidente, Allie.
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Embora ele próprio não acreditasse inteiramente nisso. Earl bem poderia imaginar Bill dirigindo com raiva, em alta velocidade, fazendo a curva de uma maneira mal calculada, de uma forma que não faria se não estivesse fora de si. Mas, ainda assim, não era culpa de ninguém. Exceto, talvez, do próprio Bill. O que de fato era culpa de todos era como aquela criança sentia-se agora. Havia segredos demais naquela casa. Se Meg alguma vez tivesse admitido que discutira com Bill antes do acidente, uma grande parte de todo aquele sofrimento poderia ter sido evitada. Mesmo agora Earl pressentia que ainda havia segredos. Ainda existiam coisas que não tinham sido admitidas, nem confessadas. Meg e Vivian haviam lhe dado uma pista sobre isso, pela maneira como contornavam as coisas. E esta sensação crescia dentro dele há muito tempo. Ainda não tinham chegado ao fundo do poço. E, se não fosse por Allie, provavelmente ele as teria deixado entregues à própria sorte naquele exato momento. — Você precisa entrar — Vivian falou para Meg. — Está muito frio e vai acabar pegando uma pneumonia aí fora. — Seria bom. Vivian tocou-lhe o braço de leve, mas Meg esquivou-se bruscamente. — Eu estraguei tudo, mamãe — ela falou, num tom quase indiferente. — Matei meu pai, matei meu marido e talvez esteja matando a minha filha. De que adianta entrar? Vivian exalou um suspiro doloroso. — E tudo por minha culpa — disse. — Eu tenho sido... horrível com você, todos estes anos. Pode culpar-me por tudo. Meg olhou para a mãe, tentando sentir algum tipo de carinho, mas sentindo apenas amargura. — É um pouco tarde para isso, não acha? Vivian comprimiu os lábios. — Sim — respondeu finalmente. — Talvez seja. — Virou-se e entrou na casa. Tudo estava desabando, Meg pensou enquanto olhava para os espaços escuros entre as árvores, mal percebendo o vento frio que soprava das montanhas, ou a maneira como o céu ia aos poucos escurecendo. Todos os fios que ela estivera entrelaçando no decorrer dos anos, tentando tecer o tapete de sua vida, agora desmanchavam-se tão depressa que ela nem sequer tinha a esperança de juntar alguns fios esparsos. Não tinha mais esperança de deter a desintegração. Pouco a pouco todos os seus segredos eram revelados. E estavam destruindo Allie. E agora Earl também conhecia quase todos eles, e provavelmente jamais a perdoaria. E como poderia? Bill havia morrido por causa da discussão que tiveram, e Allie também fora atingida por isso. Seria bem possível que Earl nunca mais falasse com ela. Pois, então, que assim fosse. Meg disse a si mesma que isso não importava. Mas, em algum lugar no fundo de sua alma, sabia que a perda da amizade de Earl seria um dos piores golpes de sua vida. E que a ferida nunca cicatrizaria, não mais do que qualquer outra das suas feridas havia cicatrizado.
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À medida que a tarde transformava-se em noite e o frio penetravalhe nos ossos, Meg sentia-se diminuindo cada vez mais, até transformarse num pontinho solitário, repleto de pura agonia. Earl foi para o andar de baixo e encontrou Vivian esperando-o no vestíbulo. — Allie está dormindo — ele disse. — Onde está Meg? — Congelando lá fora, no deque dos fundos. Ela não quer entrar. — Bem, então que fique por lá — Earl falou, farto de tantas mentiras, segredos e decepções. — Preciso ir ao hospital ver como está Matt, depois vou para casa. Ligue-me se Allie precisar de mim. Vivian segurou-o pelo braço, detendo-o. — Você está zangado com Meg — disse. — Nesse momento, estou zangado com todas vocês, exceto com Allie. Vivian assentiu. — Tudo bem, você tem seus motivos. Cada uma de nós tem sua parcela de culpa nesta confusão. Mas há algo que só fiquei sabendo alguns dias atrás. Algo em que não quis acreditar, até que pensei bem no assunto. Você também precisa saber. Earl cerrou os dentes, sem saber se queria ouvir mais segredos escabrosos. O que ouvira até então já era ruim o bastante. Estivera dizendo a Meg que precisava livrar-se dos segredos para o bem de Allie, mas agora concluía que já sabia demais. Não precisava saber mais nada. Qualquer outra coisa serviria apenas para confirmar o seu desgosto por todas elas. Porque, por mais que dissesse à Allie que as palavras ditas num momento de raiva raramente eram verdadeiras, no fundo do seu coração ele acreditava que isso não era verdade. Algo acontecera para provocar aquele nível de amargura entre Meg e Bill e ele, realmente, sinceramente, não queria saber o que era. Suas recordações de Bill já estavam bastante deturpadas. E sua admiração por Meg sofrera uma morte brutal. Como ela pudera dizer que não queria ter Allie, por mais furiosa que estivesse? — Você precisa saber — Vivian insistiu. — Meg me contou que Bill... estuprou-a. Não obrigou-a com uma arma, ou coisa parecida. Mas, assim mesmo, foi um ato de violência. Mas Earl nem mesmo ouviu as últimas palavras. Sua mente havia parado de funcionar quando ouvira a palavra estupro. Não podia... não conseguiria... absorver a informação. Sem nada dizer, pegou o casaco e saiu daquela casa. Vivian esperou mais meia hora, mas quando viu que Meg tremia violentamente achou que não suportaria mais nem um minuto. Foi para o andar de cima e acordou Allie. A menina abriu os olhos, luminosos a princípio, depois obscurecendo-se enquanto lembrava-se de tudo o que acontecera. Vivian não deu-se ao trabalho de ser delicada. — Você vai sair desta cama imediatamente e ir para baixo. Precisa ajudar-me a trazer sua mãe para dentro, antes que ela morra congelada. A cada segundo que despertava, a dor de Allie crescia até que as lágrimas ameaçassem a jorrar novamente. Por um instante, viu-se tentada a virar-se e afundar a cabeça no travesseiro, sem importar-se mais com o que a mãe faria. Mas lembrou-se de como se sentira com a morte do pai. Não tinha importância se sua mãe não a amava, ela iria
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fazer o que era certo. Foi um pensamento maduro, e provocou-lhe uma sensação estranha, envolvendo sua mente e seu coração e incitando-a a agir. Allie saiu da cama, pegou as muletas e seguiu Vivian pela escada. Quando viu sua mãe tremendo no escuro do deque, foi invadida por uma onda de amor e amargura. Olhou para avó, então, e viu o medo e a preocupação em seu rosto. Então a velha encrenqueira realmente tinha algum sentimento, além da raiva. A reação de Allie foi um ressentido contentamento por alguém mais estar sofrendo, além dela mesma. — Puxa — ela disse, sem importar-se se Vivian ficaria chocada —, nós somos mesmo uma família atrapalhada. Vivian franziu a testa, mas não lhe passou nenhum sermão. Se o fizesse, Allie seria capaz de enfrentá-la. Naquele momento, sentia como se todos os adultos em sua vida tivessem estragado tudo para todos, e apanhados em sua própria montanha de lixo. Não era uma sensação caridosa. — Abra a porta — disse para Vivian. Depois, foi mancando cuidadosamente pelo piso de madeira coberto de neve e parou diante da mãe. — Vá para dentro agora mesmo — disse, encarando-a —, ou nós duas vamos morrer congeladas. Não vou entrar enquanto você estiver aqui. Os olhos vazios de Meg focalizaram-na. Depois de um instante interminável, ela assentiu e virou-se, entrando na casa. Allie seguiu-a e Vivian fechou a porta. — Sentem-se aí na mesa, vocês duas — Vivian falou. — Vou preparar um chocolate quente para aquecê-las. Meg sentou-se como se não se importasse mais com o que fazia. Allie queria sair dali, para o mais longe que pudesse, mas algo a fez obedecer. Vivian colocou uma caneca fumegante à sua frente, com um pedaço de marshmallow, que ela adorava. A menina ficou olhando o doce derreter no líquido quente, pensando que parecia a sua vida desmanchando-se numa confusão disforme. Meg tremia violentamente. Vivian foi pegar um cobertor e enrolouo nela. Mesmo estando do outro lado da mesa,Allie podia sentir o frio que o corpo rígido da mãe exalava. — Foi uma estupidez, isso que você fez — Allie falou,rispidamente. Vivian ofegou, mas a menina nem sequer olhou para ela. — Sabe de uma coisa — Allie prosseguiu —, mesmo que não faça nada certo, você ainda precisa acabar de me criar. Você me fez, mamãe. Agora precisa cuidar de mim até que eu tenha dezoito anos, quer queira ou não. Allie não acreditava nas coisas que estava dizendo. Elas surgiam de algum lugar profundo e escuro dentro de si, um lugar que estivera tentando manter bem trancado havia muito tempo. As palavras que julgara jamais ser capaz de pronunciar. Mas era bom dizê-las. Muito bom. Teria sido ainda melhor se sua mãe demonstrasse algum tipo de reação. Mas Meg nem mesmo olhava para ela. Apenas ficava ali, tremendo e olhando para a caneca de chocolate. E Allie começou a ficar assustada. Earl chegou no hospital e descobriu que Matt fora transferido para
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um quarto duplo, e que estava tão entupido de analgésicos que suas respostas não passavam de monossílabos sussurrados. Earl deu-lhe uma palmadinha no ombro e disse-lhe que voltaria no dia seguinte, depois encaminhou-se para a sala das enfermeiras. — Se os pais de Matt Dawson vierem visitá-lo — disse a Wilma Lehman, a enfermeira-chefe —, não permita que fiquem sozinhos com o rapaz. Certifique-se de que a porta permaneça aberta e que alguém os vigie. Wilma, uma mulher cinqüentona, forte e de cabelos grisalhos, assentiu. — Pode contar conosco, Earl. Sabemos muito bem o que aconteceu com ele. Satisfeito ao saber que não precisaria preocupar-se com a segurança de Matt, Earl dirigiu-se para sua casa, a fim de preocupar-se com muitas outras coisas. Precisava descobrir um meio de convencer Matt a falar sobre as surras que levava do pai. Se isso não desse certo, precisava encontrar um jeito de fazer com que a mãe do rapaz se sentisse segura o bastante para acusar o marido. Mas, se tivesse de proteger Matt, certamente precisava de outras provas, além dos hematomas e ossos fraturados que o rapaz afirmava terem sido causados por uma briga. Como homem, teria o maior prazer em chegar para Ben e dizer-lhe que se encostasse um dedo que fosse no menino, ele lhe daria uma surra da qual nunca mais se esqueceria. Mas, como xerife, não podia fazer isso. Não poderia fazer nada deste tipo, e isso era o suficiente para deixá-lo louco de raiva. Quando chegou em casa, tentando lembrar se realmente havia sobrado um pedaço de carne na geladeira, já havia se acalmado o bastante para sentir-se culpado por ter saído da casa de Meg da maneira como saíra. No entanto, não queria pensar nisso, pois pensar nisso o fazia lembrar do que o deixara tão furioso. Não queria pensar em Bill abandonando Meg, ou em Bill e Meg trocando palavras tão terríveis enquanto Allie escutava, embora eles não soubessem disso. E, acima de tudo, não queria pensar no que Vivian lhe dissera, sobre Bill ter violentado Meg. Seu amigo não era aquele tipo de homem. E, no fundo de sua mente, crescia a feia suspeita de que Meg poderia ter inventado tal acusação, a fim de explicar sua gravidez fora do casamento aos pais extremamente religiosos. Mas ele detestava o que isso faria Meg parecer. Earl retirou o bife do freezer, o último, e grande o bastante para duas pessoas. Deixou-o na pia, calculando se queria desperdiçar toda aquela carne fazendo um bife apenas para si mesmo, ou se comeria as sobras de um ensopado de frango que estava na geladeira desde a semana anterior. Tirou a vasilha com o frango da geladeira, examinou o conteúdo e decidiu que estava ressecado demais. Porém, não havia mais nada na geladeira, e na despensa apenas uma lata de sopa. Suspirando, Earl jogou os restos de frango no lixo e colocou a carne para descongelar no microondas. Qualquer coisa seria melhor do que ir ao supermercado àquela hora. Porém, ao pensar porque não fizera as compras na semana
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anterior, foi imediatamente levado de volta para Meg e Allie. Parecia não haver como escapar. Ligou a tevê e sintonizou o canal de notícias, o que não serviu nem para distraí-lo nem para animá-lo. Mudou para um programa de auditório que, pelo menos, tinha alguma música e risos. Earl nunca se sentira tão enjoado da solidão de sua vida. De repente, não conseguia mais agüentar a sua própria companhia. Apanhou-se desejando ser chamado para alguma emergência, fosse um acidente ou um crime. Não que algo assim fosse provável de acontecer. A não ser que uma ocorrência realmente grave surgisse, os policiais de plantão normalmente lidavam com os problemas na delegacia. No instante em que finalmente decidiu que iria para seu gabinete de qualquer maneira, a fim de cuidar da papelada que continuava acumulando-se em sua mesa, ouviu uma batida na porta. Ficou mais que contente ao deparar com Sam Canfield, seu amigo e subordinado, parado ali, parecendo estar com muito frio e nada feliz. Na verdade, a aparência dele estivera muito melhor quando fizeram as buscas nas montanhas, à procura de Allie. — O que houve, Sam? — Nada. Só estava me arrastando pela casa pensando em Vera, e concluí que se não saísse para fazer alguma coisa iria acabar uivando para a lua como um coiote enlouquecido. Vera era a falecida esposa de Sam. Ela morrera num acidente de esqui dezoito meses atrás. — Entre — Earl falou. — Vamos uivar juntos sobre um belo filé que estou preparando. — Parece melhor do que uivar sozinho. — Mas Sam sempre fora um homem perspicaz e, enquanto tirava o casaco, perguntou: — E quais são os seus motivos para uivar? — Nem queira saber. O que, em outras palavras, significava que Earl não queria falar sobre o assunto. Nem mesmo sabia se conseguiria. Mesmo se fosse capaz de obrigar-se a falar sobre tudo o que acontecera naquele dia, estaria traindo a confiança de Meg. Não tinha o direito de dizer a ninguém o que ouvira. — Você é quem sabe. Sam seguiu-o para a cozinha e recostou-se no balcão, enquanto Earl tirava a carne do microondas. — Dá e sobra para nós dois — Earl falou. — Espero que esteja com fome. — Ainda não, mas vou ficar. Quer que eu faça alguma coisa? — Vou fazer um purê de batata instantâneo e espinafre congelado. Acho que posso cuidar de tudo sozinho. — Não duvido. — Sam cruzou os braços. — Você está com algum problema, Earl? — Depende do ponto de vista, suponho. E isso era verdade. Saber o que tanto perturbava Allie era um problema e tanto, algo para o qual ele não poderia dar as costas mesmo se quisesse. Mas, agora que Meg sabia qual era a raiz das dificuldades da menina, teria de começar a lidar com isso. Ainda assim, ele não deveria ter ido embora. Só Deus sabia o que
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estaria acontecendo por lá, naquele momento. Allie poderia estar histérica. Vivian poderia estar atacando de sua maneira habitual. Meg parecera estar a ponto de ter um ataque de nervos. Mas ele não tinha estômago para olhar para ela agora. Não conseguiria. E isso o fazia sentir-se como um completo canalha. — Tudo bem — Sam falou. — Como você quiser. — Mas ele não estava indiferente. Earl sabia bem disso. Ele e Sam eram amigos havia anos, e Sam raramente era indiferente a qualquer coisa. — O que você sabe sobre estupro entre pessoas que se relacionam? — Earl ouviu-se perguntando. Mal acabou de falar, sentiu um peso de chumbo instalar-se em seu estômago. — Por quê? Alguém está acusando você? — Ora, claro que não. Estou falando em teoria. — Bem, em teoria, é difícil provar. Muitas vezes nem mesmo há uma agressão evidente. Ele diz que ela estava querendo, ela diz que ele a violentou. Um concurso de acusações, pura e simples. — E você, o que pensa a respeito? Sam mudou de posição, descruzando os braços e apoiando as mãos no balcão. — O que eu penso? Acho que é algo que acontece. Provavelmente acontece mais do que ficamos sabendo. Acho que a garota às vezes permite que o rapaz vá um pouco longe demais e daí, quando quer que ele pare, o sujeito pensa que é apenas um tipo de jogo, que ela realmente não quer que ele pare. Ou, então, acredita que se insistir um pouco mais ela vai perceber que realmente está querendo. Outras vezes, acredito que trata-se de a mulher dar-se conta de que não queria ter feito, mesmo depois do ato consumado. É um negócio complicado. Espero nunca mais ter outro caso destes. — Você já teve um caso deste tipo? — Sim, quando trabalhei no departamento de polícia de Boulder. Um casal de estudantes. Foi horrível. Earl virou-se para olhá-lo. — O que aconteceu? — O advogado de defesa quase estraçalhou a garota. Quando ele acabou o interrogatório, acho que nem mesmo ela tinha certeza do que havia acontecido. — Qual foi a sua opinião? — Na minha opinião ele era culpado, ou eu nem teria persistido na investigação. Mas é impossível não ter dúvidas num caso destes, Earl. Eu me perguntava: será que ele realmente fez isso? Em que ponto a coisa deixou de ser uma troca de carícias normal e transformou-se em imposição? Tudo o que sei é que quando uma mulher diz não, é o que deve ser, e ponto final. Este é o limite que não se deve ultrapassar, mesmo se ela não lhe arranque os olhos, ou mesmo se o sujeito não precise usar uma arma para obrigá-la. Earl assentiu. — Está certo. — É claro que sim. Existem muitos tipos de sedução que podem acabar em violência. Diabos, coloque um sujeito de mais de oitenta quilos em cima de uma mulher que acabou de tirar a calcinha. O que ela pode
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fazer? E se estiver apaixonada por ele? Vai gritar? Provavelmente não. Vai bater nele? Pouco provável. Mas se ela disser não, e ele não acatar, então é isso. — Sam encolheu os ombros. — No entanto, não significa que seja possível provar num tribunal. — Não. Mas seria fácil mentir a respeito. — Certamente que sim. E este é o problema. Mas não creio que muitas mulheres mintam sobre isso. Pelo menos não quando chegam ao estágio de ter de enfrentar um interrogatório sobre o que de fato aconteceu. E aí que as coisas realmente ficam feias, se quer saber, e a maioria das mulheres, se estão mentindo, desistem no mesmo instante. — Mas será que ela teria coragem de ir em frente e casar com o sujeito que a estuprou? Sam riu. — Ora, Earl! Quantas mulheres não continuam vivendo com homens que as espancam? Por que uma delas não se casaria com alguém que a violentou durante o namoro? Ela ama o sujeito, não ama? Ele pede desculpas, diz que perdeu o controle, ou então joga a culpa nela mesma, por deixá-lo tão excitado que ele não conseguiu mais parar. Por que ela não se casaria? — Tem razão. Sam foi até a geladeira e pegou uma garrafa de cerveja, tirando a tampa e bebendo um longo gole. . — Ah, muito bom... — disse, limpando os lábios com as costas da mão. — As pessoas estão cada vez piores, Earl. Você sabe disso. Como pode não saber, sendo um policial há tanto tempo? Earl encolheu os ombros. — Talvez eu não queira acreditar que o mundo está perdido. — Bem, isso é verdade. Mas sempre há exceções. Como Vera, por exemplo. Ela é a melhor pessoa que já conheci. Com exceção de você, talvez. Mas a regra básica ainda é a mesma... O que não era uma filosofia muito reconfortante, Earl pensou enquanto voltava sua atenção à comida. No entanto, sabia como Sam ficava naquelas noites em que sentia falta de Vera, como se uma parte de sua alma estivesse perdida para sempre. Ele tornava-se cínico e amargo sobre a vida em geral e o mundo como um todo. E Earl sempre ficava ao seu lado, até que o pior passasse. Subitamente ocorreu-lhe que era isso que deveria ter feito com Meg, em vez de disparar para fora da casa como se estivesse sendo perseguido por demônios. Certamente devia isso a ela, tanto quanto devia a Sam. Mas Meg era diferente. Meg significava algo mais para ele, algo luminoso, belo e positivo. E descobrir que nada disso era verdade deixara-o mais abalado do que jamais se sentira, em toda sua vida adulta. Neste caso, talvez sua vida adulta estivesse sendo simples demais até agora. Talvez devesse estar mais preparado para o choque que sentia. Mas, no mínimo, precisava de algum tempo para acostumar-se com isso. Naquele momento, era Sam quem precisava dele, e foi quase um alívio voltar sua atenção para um problema relativamente conhecido. — Vera sempre foi uma pessoa especial — concordou. — O que foi que aconteceu?
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— Está se referindo a esta noite? — Sam acabou de beber a cerveja e foi pegar outra. Earl sentiu-se ligeiramente inquieto. Seu amigo raramente bebia, e nunca exagerava. — Bem — Sam continuou, abrindo a segunda garrafa, — não aconteceu nada. Eu estava sentado na sala, vendo um jogo na tevê. Não estava pensando em nada, exceto que já vira o time de San Francisco jogar melhor. Então, estendi a mão do jeito que costumava fazer, para pegar a mão de Vera quando ela ficava no sofá ao meu lado. Por um instante, tive certeza de que ela estava ali. — Bebeu um longo gole da cerveja. — Pode parecer uma estupidez, depois de um ano e meio, mas foi um choque danado perceber que não havia ninguém ali, quando estendi o braço. Earl sentiu um aperto no peito de simpatia pelo amigo. — Não é estupidez nenhuma. — É claro que sim. Depois de dezoito meses presume-se que a pessoa tenha se acostumado com a nova realidade. De qualquer forma, depois que me recuperei do choque, comecei a pensar que deveria vender a casa. Mudar de ares. Deixar tudo tão diferente que eu não precise ficar procurando Vera cada vez que entro num cômodo da casa. — Isso poderia ajudar. — Ou talvez não, Earl pensou. Talvez Sam ficasse ainda mais solitário do que agora. Ele não fazia idéia. Além disso, vender um imóvel em Whisper Creek era o mesmo que perder dinheiro. — Não é um bom momento para vender — disse. — Nunca é, por aqui. — Você poderia tentar mudar os móveis de lugar, trocar as cores das paredes... — É... Poderia também destruir os canteiros de flores que ela plantou, acabar com a horta, mudar a fachada da casa... — Sam deixou a frase no ar e tornou a beber. — Droga! Tudo nesta minha maldita vida me faz lembrar dela. Earl virou o filé na frigideira. — E... — Não conseguiu pensar em nada mais útil para dizer. — Mas isso não é tão ruim, na verdade — Sam falou, após alguns minutos. — Lembrar-me de Vera. Até que é bom. Eu me recordo de como ela era especial, do que tínhamos juntos. Acho que não quero esquecer. — E claro que não. — Mas seria melhor se não doesse tanto. — Eu poderia lhe dizer que o tempo é capaz de curar tudo. — É. Ouvi isso tantas vezes que já decorei — Sam falou, com um sorriso triste. — Aposto que sim. — Fica cada vez mais difícil de acreditar. Earl assentiu. — Imagino que sim. — Mas, de maneira geral, está ficando mais fácil. Apenas de vez em quando é que me pego desprevenido. Alguma coisa me pega. Mas até isso está acontecendo com menos freqüência. Bem, acho que já chega de choramingar e atormentá-lo com meus problemas. Agora quero saber o que está havendo com você. — Nada que eu possa comentar. Depois de um instante, Sam falou. — OK. Então, o que vamos fazer a respeito do garoto Dawson? — Bem que eu queria saber. Tudo o que penso está tão cheio de falhas que acabo concluindo que não vai dar certo.
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Sam quase sorriu. — Ah, a vida... Não é maravilhosa? Bem, se você quiser olhar para o outro lado, posso levar Ben Dawson para trás de uma árvore e aplicarlhe um bom corretivo. — Já pensei nisso. O problema é que nós acabaríamos indo para a cadeia, e ele voltaria com tudo em cima de Matt. — Engraçado, por que será que toda a escória do mundo raramente recebe o que merece? — Ah, mas ele vai ter o que merece, mais cedo ou mais tarde — Earl falou, tirando o bife da frigideira e deixando-o num prato. — Mais cedo ou mais tarde. É para isso que estou aqui. No entanto, momentos depois, quando ele e Sam estavam vendo o jogo na tevê e comendo com os pratos no colo, Earl apanhou-se pensando que talvez não fosse somente para isso que ele estava ali. Talvez punir a escória do mundo não fosse o suficiente. Talvez às vezes fosse necessário segui-los até o fundo do poço e ajudá-los a sair. Capítulo XVI Earl insistiu em levar Sam para casa, desde que seu amigo conseguira acabar com quatro garrafas de cerveja antes do final do jogo. Mas isso era bom, Earl pensou, pois Sam caiu direto na cama e já estava dormindo antes mesmo que ele saísse pela porta. Não estava realmente embriagado, apenas zonzo e sonolento. Mas quando voltava para casa, dirigindo pelas ruas escuras de Whisper Creek, Earl de repente reparou em como tudo estava quieto e vazio. Não que isso fosse novidade. Aquela era uma cidade de gente trabalhadora, e a maioria das lojas e restaurantes fechava entre as seis e nove da noite. Às dez horas, quase todos os habitantes estavam bem acomodados em suas casas, a não ser que estivessem trabalhando no turno da noite na mina. Normalmente Earl gostava da quietude das ruas à noite, ainda mais quando havia neve. Isso o preenchia com uma sensação de magia que o remetia a algum momento de sua infância, que há muito ele esquecera. No entanto, aquela noite estava diferente. Naquela noite ele era capaz de sentir a solidão das ruas desertas, uma solidão que mais parecia um vasto e ecoante vazio. Naturalmente, ele sabia que Whisper Creek não havia mudado. Algo dentro dele se modificara, e o que as ruas faziam-no sentir era um reflexo disso. Vagou pelas ruas por algum tempo, observando as fachadas das lojas, dizendo a si mesmo que estava apenas agindo como um bom xerife, mesmo sabendo perfeitamente que estava duplicando os esforços de seus policiais subordinados. Mas não queria ir para casa. Não queria sentar no silêncio e solidão de sua existência até que chegasse a hora de ir para a cama. Alguma coisa sobre o que acontecera com Meg e Allie naquele dia, e depois com
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Sam, fizera com que ele sentisse que havia um imenso vazio no meio de sua vida. Um vazio que ele nunca percebera antes. Finalmente parou numa loja de conveniência e entrou para tomar um café com rosquinha. O atendente no balcão era seu conhecido, um sujeito de meia-idade chamado Cal Tinker que embarcara na carreira de gerente noturno de loja depois de sofrer um acidente que lhe custara o emprego na mina. Quando Earl foi pagar, Cal não aceitou o dinheiro. — Você sabe que oferecemos café e rosquinhas como cortesia para a polícia. — Mas eu não estou de serviço. — Não faz mal. Foi um prazer atendê-lo. — Obrigado, Cal. — Uma mão lava a outra. Sinto-me bem mais tranqüilo trabalhando à noite quando sei que vocês vão aparecer de vez em quando. Se a loja não pagasse o café e as rosquinhas que vocês consomem, eu mesmo pagaria. A loja estava vazia naquele momento, por isso Earl demorou-se por ali, tomando seu café sem nenhuma pressa. Dali a uma hora o local estaria cheio, quando o pessoal da mudança de turno parasse para tomar café, ou para comprar um lanche para o trabalho. Mas, agora, eram apenas ele, Cal e a cidade silenciosa. — Minha filha quer ir para Harvard — Cal falou, apoiando-se no outro lado do balcão. — Harvard, é? Uma excelente faculdade. — E cara, também. Eu disse a ela que pode ir, contanto que imagine um jeito de pagar as mensalidades. A mãe dela e eu já estamos trabalhando, e eu disse que não iremos procurar outros empregos quando ela pode muito bem estudar na faculdade de Colorado Mountain e depois transferir-se para Boulder. Ela ficou toda nervosa, disse que seu futuro depende disso. Earl esboçou um leve sorriso. — E o seu também. — É o que estou pensando. Ela é um bocado inteligente e talvez consiga uma bolsa de estudos. Então, conversaremos sobre Harvard. — Parece muito justo. — É claro que sim. Você é esperto, Earl, por nunca ter tido filhos. Eles nos deixam malucos. Isso fez com que Earl voltasse a pensar em Allie. Talvez não tivesse seus próprios filhos, mas considerava a menina como sua. Sem dúvida. — Então — Cal prosseguiu, desconhecendo o rumo que os pensamentos de Earl tinham tomado —, tenho uma menina de dezesseis anos certa de que sua vida ficará arruinada se não for para Harvard, e uma de treze anos que jura que sua vida será destruída se não arrumar um par para o baile da escola na sexta-feira. Agora, eu pergunto, quando é que estas crianças de treze anos começaram a arrumar namorados? — Não faço idéia. Voltando mais de vinte anos em sua memória, Earl descobriu que nem mesmo lembrava-se da idade que tinha quando sentiu o primeiro interesse por garotas. Sabia com certeza que nunca tivera uma
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namorada antes da sexta série, quando finalmente reuniu coragem para convidar Rita Murchinson para ir à matinê. Só aquele encontro havia sido o bastante, e não convidara mais ninguém até o ano seguinte. Atualmente Rita tinha cinco filhos, estava casada com um dos mineiros e trabalhava na farmácia local. — Tenho quase certeza de que só fui convidar uma garota para sair quando tinha uns quinze anos — falou. — Eu devia ter dezesseis. — Cal balançou a cabeça. — Aquela menina é nova demais para sair com rapazes, e não consigo imaginar um menino da idade dela querendo sair com garotas. Mas talvez eu esteja caduco. Talvez eles estejam amadurecendo mais depressa do que nós, quando tínhamos esta idade. — Isso é verdade — Earl concordou. — Mas, cem anos atrás... Cal assentiu. — Vou ter isto em mente. Cem anos atrás minhas filhas estariam trabalhando ou casadas, com a idade que têm. Só de pensar nisso sinto um calafrio. — Bem, pelo menos sua filha mais velha quer ir para Harvard. Se você tiver sorte, ela não mudará de idéia por causa de algum rapaz bonitinho que aparecer. Cal animou-se. — Você tem toda razão. Talvez Harvard não seja uma má idéia, no fim das contas. — Além disso, ela não vai conseguir uma bolsa de estudos se começar a tirar notas baixas por sair com namorados em vez de estudar. Cal parecia estar sentindo-se consideravelmente melhor quando Earl saiu da loja. Earl desejou que ele próprio também estivesse. Mas, ao contrário, pensava em como as preocupações de Cal eram normais. Tão normais quanto quaisquer preocupações de outros pais. E como os problemas de Allie eram fora do normal. Nenhuma garota de quatorze anos deveria estar pensando nas coisas sobre as quais ela tanto sofria. Nenhuma criança deveria perguntar-se se seu pai a odiava, ou se sua mãe a amava. Tal pensamento fez com que o estômago dele revirasse. Quando voltou para casa, viu a luz vermelha da secretária eletrônica piscando. — "Earl, aqui é Vivian. Preciso de ajuda com Meg. Você pode passar por aqui?" Ele foi. Sem pensar duas vezes. Ignorando toda a raiva e desgosto que sentia pela situação, ele foi. Porque precisava ir. Vivian abriu a porta antes mesmo que ele batesse. — Obrigada por ter vindo — disse. — Há horas que Meg não se move, nem diz uma palavra. Não consigo fazê-la falar comigo, ou ir para a cama. Nada. — Onde está Allie? — Com Meg, na cozinha. A pobrezinha está muito assustada. Sob a luz clara das lâmpadas fluorescentes, Allie e Meg pareciam dois fantasmas. Mas Allie estava bem viva, voltando os olhos imediatamente para ele, expressando sua angústia. Meg não moveu um músculo. Seus olhos estavam fixos na mesa e nem sequer se mexeram. — Ela parece que está morta — Allie falou, num tom acima do
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normal. — Parece que não consegue me ouvir. — Ela não está morta, Allie. Earl já vira muitos cadáveres para saber a diferença. Meg estava catatônica. Deus... Ele já havia visto pessoas assim, antes. Às vezes voltavam a si, eventualmente. Era como se as coisas tivessem se tornado mais dolorosas do que podiam suportar, e mergulhavam para dentro de si mesmos por algum tempo. Esperava que não fosse nada pior do que isso. — Então, o que há de errado com ela? — Acho que as coisas foram demais para ela, Allie. Foi para algum lugar quieto dentro de si mesma. Mas vai ficar bem. Ele esperava que sim. Pois, por pior que estivessem as coisas, se Meg tivesse um surto psicótico naquele momento, tudo ficaria muito além do seu próprio controle. Os olhos da menina estavam cheios de lágrimas, quando olhou para ele. — Tem certeza? — Tenho, sim. Agora, não está na hora de dormir? Você tem aula amanhã. Ela estendeu a mão e segurou a dele. — Você não vai embora? Vai cuidar dela? — Prometo. As lágrimas começaram a correr pelo rosto de Allie. — Eu disse coisas terríveis para ela, tio Earl. Coisas terríveis. Earl não acreditava que Allie tivesse dito nada tão ruim assim. Achava que ela não tinha idade, nem crueldade o bastante para dizer algo que resultasse no estado em que Meg se encontrava. Porém, ali estava uma chance de lhe ensinar uma lição. — Você falou estas coisas de coração, Allie? A menina balançou a cabeça. — Não muito. — Então era porque estava com raiva. As pessoas dizem coisas que não querem, quando estão zangadas. Agora, já para cima. Vivian vai ajudá-la a deitar-se. — É claro que sim — Vivian falou. — Vamos, querida. Earl ficou sozinho com Meg, que continuava rígida e em silêncio. Sozinho com suas emoções desencontradas. Sentou na frente dela e imaginou como poderia penetrar na barreira que ela erguera em torno de si. Agora que seu primeiro impacto de raiva e desgosto havia passado, Earl foi capaz de considerar a situação de Meg com um pouco mais de simpatia. O fato de estar viúva há oito meses já teria sido um grande problema para a maioria das mulheres. Mas isso acontecera logo depois de uma discussão, e Earl podia apostar que ela sentia-se tão responsável pela morte de Bill quanto Allie se sentia. Talvez mais ainda, porque fora ela quem brigara com ele. Só isso já seria uma carga pesada para qualquer pessoa carregar e, aparentemente, ela nunca contara a ninguém sobre a discussão, portanto não havia quem a ajudasse a lidar com aquele segredo. Além de todo estresse causado pela viuvez e pelo seu segredo, Meg também tivera a presença desaprovadora de Vivian em todos aqueles
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meses, o que certamente era capaz de esgotar as energias de qualquer um. E, depois, havia Allie, fugindo de casa na semana anterior e exibindo um comportamento suicida. Mais pressão, culminando com a revelação de que Allie escutara a discussão fatal. E havia também a reação dele, Earl admitiu com uma pontada de culpa. Não era de se surpreender que Meg tivesse mergulhado para dentro de si mesma. Tudo isso deveria ter se tornado insuportável. Problemas demais e nenhuma ajuda à vista. Ele nem mesmo se atrevia a somar a isso a possibilidade de que Bill realmente tivesse violentado Meg todos aqueles anos atrás. E esperava, sinceramente, que Allie não tivesse ouvido esta acusação, no decorrer da discussão entre os pais. Se tivesse ouvido, ela teria mencionado? Não, ele concluiu, não era de admirar que Meg estivesse ali sentada, mais parecendo uma estátua. E o problema continuava sendo o que fazer a respeito. Se é que ele poderia fazer algo a respeito. Sentado à sua frente, olhando para ela, Earl foi invadido pelos seus antigos sentimentos de amizade e respeito misturando-se com os sentimentos mais novos, de atração e talvez algo mais do que isso, acrescentados agora com o que sentira depois de todas as revelações daquele dia. Era uma tempestade de emoções confusas e, imerso em tudo isso, ele ainda teria de descobrir um modo de ajudá-la a lidar com os próprios sentimentos? Até ele estava começando a sentir-se sobrecarregado. Já havia saído daquela casa uma vez, naquele dia, a fim de impedir-se de dizer coisas das quais poderia arrepender-se. Não iria embora agora por não saber como lidar com este problema. Em vez disso, prometeu a si mesmo que se Meg ainda estivesse naquele estado pela manhã, ele a levaria direto para o hospital. Isso lhe daria oito horas para tentar ajudá-la. Desejava apenas ter alguma idéia de como fazer isso. Earl não gostava de sentir-se impotente. Seu trabalho o fazia sentirse assim com freqüência, mas ele mantinha sua vida pessoal sob rígido controle, sempre certificando-se de que seria capaz de resolver todos os problemas que surgiam. Agora, no entanto, nada estava sob controle e ele não sabia o que fazer. Seu peito doía com tantos sentimentos confusos que ele nem mesmo queria tentar identificar. Sem saber o que fazer, começou a falar. Coisas sem muita importância, mantendo a voz num tom baixo e tranqüilizador. Tinha a impressão de que as palavras não importavam, precisava apenas oferecer-lhe algo externo a que se agarrar, para que ela pudesse sair do abismo em que mergulhara. Passou a falar sobre Matt Dawson. — O garoto está muito mal, Meg — disse. — Braço quebrado, costelas fraturadas, crânio fraturado, hematomas... eu seria capaz de matar o pai dele. Mas não posso fazer nada, porque sou um policial. Será que já lhe disse como é difícil ser um policial? Todos pensam que tenho muita sorte, porque posso dar um jeito nos canalhas deste mundo e jogálos na cadeia. Bem, ninguém sabe como são realmente as coisas. Não sabem como há pouco que posso fazer, numa situação como essa. Não posso prender o pai de Matt, a não ser que tenha alguma prova de que ele surrou o garoto. Matt continua negando, e ninguém jamais
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testemunhou as surras. A mãe dele tem tanto medo que não vai dizer nem uma palavra. Earl continuou falando, esperando por algum sinal de reação ou de consciência, mesmo que pequeno. Contou-lhe sobre a visita de Sam, como ele havia estendido a mão à procura da esposa, depois percebeu que aquele assunto talvez não fosse o mais indicado. E, de alguma forma, apanhou-se falando sobre Bill. — Bill era meu amigo. Mas isso não significa que eu o achasse perfeito. Pelo contrário. Muitas vezes discordei de coisas que ele dizia ou pensava. Sei que agora toda esta maldita cidade o considera um herói, pela maneira como ele defendeu o sindicato durante a greve. E acredito que isso realmente tenha sido uma atitude heróica. Mas ele não era o tempo todo assim, e quero que você saiba disso. Sei que ele tinha um gênio forte, e que às vezes era egoísta. Muito egoísta, aliás. Eu costumava achar errado quando ele deixava você e Allie aqui sozinhas, em todos aqueles fins de semana que saíamos para acampar nas montanhas. Às vezes eu até me negava a acompanhá-lo, pois achava que você queria têlo em casa nos finais de semana, pelo menos de vez em quando. Enquanto falava, Earl percebeu que estava pensando em Bill de uma maneira que jamais pensara antes. Dando-se conta de que, no fundo, Bill jamais fora realmente um bom pai e marido. Não que ele não tivesse desempenhado bem estes papéis, mas uma parte dele sempre permanecera como um homem solteiro. Um jovem solteiro. Um sujeito que julgava ter todo o direito de sair em quase todos os fins de semana para fazer o que bem quisesse. Naquela época Earl não pensara no que isso poderia significar. Ele sempre fora uma pessoa compreensiva, que não julga nem avalia as decisões ou o estilo de vida dos outros, contanto que não fizessem nada fora da lei. Sempre presumira que Meg e Bill fossem felizes em seu casamento e com a maneira como viviam. Agora já não tinha tanta certeza. Se ele fosse casado com Meg, achava que não iria querer passar tantos fins de semana longe dela. E claro que gostaria de sair de vez em quando para acampar e caminhar nas montanhas, como sempre fizera, mas iria querer a companhia dela e de Allie. Bill sempre parecera preferir sair sem elas, embora algumas vezes tivesse levado Allie, e Meg, também. Mas estas ocasiões haviam sido exceções à regra. Earl sempre guardara a impressão de que Meg e Allie não queriam acompanhar Bill em suas excursões. De que ficavam satisfeitas por ele ir sozinho. Agora, tinha suas dúvidas. — Ele deveria ter ficado mais tempo em casa com você e Allie — ouviu-se dizendo. As palavras vinham do seu coração mas, ainda assim, ficou surpreso em ouvi-las. — Foi culpa minha, suponho. Eu não devia mostrar-me tão disposto a acompanhá-lo em todas aquelas excursões. Excursões que eles faziam juntos desde os tempos de juventude. Excursões que deveriam ter-se tornado menos freqüentes depois que Bill se casara, mas que não ficaram. Earl sentiu um gosto amargo na boca. Não gostava de pensar que talvez tivesse uma ponta de responsabilidade nos problemas entre Bill e Meg. Mas, agora, acreditava que tinha. — De qualquer forma — ele continuou —, Bill às vezes era um bocado egoísta. E algumas de suas opiniões me faziam pensar que era
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um tanto desmiolado. De certo modo, no fundo ele continuava sendo uma criança. A idéia de construir aquela casa sozinho, desde as bases, enquanto Meg se desdobrava nos cuidados com uma criança pequena. O que, Earl pensava agora, significava que Bill raramente estava por perto para ajudar com Allie. E Meg sempre esforçando-se para cuidar do bebê e ajudar a construir a casa. Na época, Earl os via como duas pessoas amigas construindo um sonho. Mas talvez Bill estivesse construindo uma espécie de fuga. Talvez, pensando bem, Bill tivesse passado um tempo enorme tentando escapar do casamento. Encarando por este ponto de vista, não era de se surpreender que ele estivesse falando em separação, no final. Deus, era estranho como as coisas podiam ficar diferentes, se examinadas sob uma luz diferente. E isso explicava porque Meg achava que poderia ter sido estuprada. E porque levara tanto tempo para acreditar nisso. Sim, ele podia entender. Meg continuava sem nenhuma reação e, com um suspiro, Earl levantou da cadeira e aproximou-se dela. — Venha, Meg — disse num tom delicado, segurando-a pelo braço. — Você precisa deitar-se. Para seu alívio, ela levantou e deixou-se levar para o quarto. Quando Earl lhe disse para deitar na cama ela obedeceu, encolhendo-se e afundando o rosto no travesseiro. Ela havia desistido, Earl pensou. E tal idéia encheu-o de pânico. Ao sair para o corredor, ele encontrou Vivian à sua espera. Ela estava parada na porta de seu quarto, a expressão tensa. — Allie está dormindo — disse. — Como está Meg? — Na mesma. Está deitada na cama, o rosto escondido no travesseiro. Vivian assentiu devagar, como se relutasse em aceitar a notícia. — Estou precisando de uma xícara de chá. Quer me acompanhar? Earl aceitou, pois não havia mais muito o que fazer e estava determinado a não ir embora, por enquanto. Ainda teria de encontrar um meio de chegar até Meg. Talvez Vivian pudesse lhe dar uma pista que fosse útil. Vivian levou a chaleira ao fogo. Earl reparou que ela não usava o microondas para ferver a água. Era uma tolice reparar nisso, mas ele reparou. É difícil perder os velhos hábitos. Talvez tivesse alguma relação com a maneira como Vivian tratava Meg, isso também era um hábito antigo. Quando a água ferveu Vivian despejou-a sobre os saquinhos de chá nas xícaras e levou-as para a mesa. Não perguntou se ele queria açúcar ou leite. As portas de correr envidraçadas sacudiram um pouco, sob o vento que soprava da montanha. E tudo o que ele viu, ao olhar para elas, foi o reflexo da cozinha. — Bem — Vivian falou —, Meg não pode continuar deste jeito. Vai ter de superar. — Ela vai superar, com certeza. — Mas Earl não tinha certeza de nada. — Vai, sim — Vivian falou, num tom firme. — Ela retira sua força de
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mim.
Era um comentário interessante vindo de uma mulher que parecia odiar a filha. — O que aconteceu com você, afinal? — ele perguntou, intrigado. — Até uns dias atrás, mal conseguia falar com ela. Vivian suspirou profundamente, segurando a xícara com as duas mãos. — Andei pensando muito — respondeu. — Sobre o quê? — Sobre o que estive fazendo. — Ela encolheu o ombro e remexeu no saquinho de chá. — A fuga de Allie foi um choque terrível. Depois, Meg contou-me que Bill a havia estuprado. — Ela balançou a cabeça e apoiou o rosto nas mãos. — Meg disse que eu estava dificultando as coisas para Allie. Fiquei pensando em tudo isso. — E? — E... quando vocês foram para Denver não tive ninguém com quem ficar irritada, exceto eu mesma. E fiquei um bocado irritada, acredite. Fiquei sozinha nesta casa vazia e tudo o que ouvia era a minha própria voz, e as coisas que andei dizendo. Sempre fui uma mulher muito zangada, sabe? É mais fácil. — Mais fácil do quê? Vivian tirou as mãos do rosto. — Mais fácil do que sentir qualquer outra coisa. É isso. Earl assentiu, compreendendo. Ele também tinha uma tendência de irritar-se, quando seus sentimentos afloravam. — É mais fácil do que me preocupar — ela prosseguiu. — Mais fácil do que ter medo, do que sentir dor. Minha mãe costumava agir da mesma maneira, brigando comigo o tempo todo. Eu nunca a vi chorar. É um tipo de força, imagino. — Suponho que sim. — Mas não é saudável — Vivian falou. — Já entendi isso. Talvez dê certo para mim, mas não está ajudando Meg ou Allie. — Ela suspirou novamente, tirou o saquinho de chá da xícara e deixou-o no pires. — Quando eu era criança, na fazenda onde morava, sempre havia algum problema. O tempo ficava ruim, ou não chovia o bastante, frio demais, pragas de gafanhotos... Não importava o que fosse, mas sempre era alguma coisa. Então minha mãe ficava irritada e meu pai zangava-se à toa, como se o fato de zangar-se contra o tempo fizesse alguma diferença. Meus irmãos e eu andávamos pela casa na ponta dos pés, com medo de irritá-los ainda mais. Agora, imagino que eles estivessem apenas preocupados. — É bem provável. — Mas eu sou do mesmo jeito — Vivian falou. — Sempre fui do mesmo jeito. Estive preocupada com Allie em todos estes meses, mas ficava atormentando Meg pela maneira como ela estava educando a menina. Deus me perdoe, mas estive zangada com Meg durante quinze anos por causa da morte do meu marido. Não foi por culpa dela. Mas eu a culpei e zanguei-me com ela porque era mais fácil do que chorar. Vivian estava chorando, agora, as lágrimas correndo em seu rosto enrugado. — Este é o meu jeito. Mas, desde a semana passada, comecei a
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perceber que estava envenenando a todos. E talvez seja tarde demais para reparar os danos que causei. Não sei. Mas sei que não estava agindo como uma boa cristã. Estava sendo maldosa, e fraca. Agora eu entendo tudo. Earl sentiu um impulso natural de lhe dizer que ela não era má pessoa, mas lembrando-se dos destroços emocionais no andar de cima, guardou as palavras consigo. — Tem sido difícil para Meg. — Eu sei. Não fui justa com ela. Mas não quero que ela se entregue. Em minha família, ninguém se entrega. Ela disse isso como se houvesse amplas justificativas, mesmo agora que mudara seu comportamento, e Earl apanhou-se sentindo pena daquela mulher e das suas emoções contidas e distorcidas. Earl finalmente voltou-se para a velha frase, da qual se lembrava sempre que cometia algum erro: — Você não pode mudar o passado, Vivian. Tudo o que pode fazer é tentar melhorar, de agora em diante. Vivian assentiu novamente. — Você tem razão. — É, às vezes, até os mais fortes precisam se entregar. Meg teve de suportar muita coisa. — Mais do que eu imaginava. — Eu também. E Earl ainda não conseguia aceitar parte disso. Especialmente a idéia de Bill violentando Meg. Isso era o mais difícil de engolir, e ele perguntava-se por que teria de engolir. No fundo, queria fingir que nunca ouvira aquilo. — Então... — Ele hesitou, maldizendo-se, e perguntou: — Você acha mesmo que ela foi estuprada por Bill? Vivian tirou um lenço do papel do bolso e enxugou os olhos. — Parece uma história um tanto forçada — respondeu. — No início, não acreditei nela. — Mas agora... — Estive pensando sobre isso, também. Não há como saber com certeza. Mas acho que ela acredita que foi isso que aconteceu. E, provavelmente, era só o que importava. Se Meg se sentisse violentada, então tinha sido violentada, e nenhum fato concreto poderia mudar isso. Porém, se acreditasse nela estaria sendo desleal ao seu melhor amigo. Era uma escolha angustiante. — Eu sei que criei Meg para acreditar que o sexo fora do casamento era pecado — Vivian falou. — Sei também que, quando estava no colégio, ela me prometeu que esperaria até o dia em que se casasse. Mas quem pode saber com certeza? Os filhos crescem e passam a ter idéias próprias. Mas havia algo em seus olhos, quando contou-me... eu acredito nela. E Earl estava lembrando-se de como Bill detestava ser contrariado. Sempre dissera a si mesmo que Bill lutava pelo que queria, que era do tipo agressivo, mas, em retrospecto, descobriu-se vendo o caráter do amigo por um outro prisma. Bill sempre obtinha o que queria. E, às vezes, ia longe demais para alcançar seus objetivos. Lembrou-se de uma ocasião, quando estavam no colegial, em que Bill queria sair com Debbie Jakstrow. Mas Debbie estava namorando um
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dos jogadores do time de futebol, Ted Askew, se não estava enganado. Bill começara a espalhar pela escola que Ted tinha uma outra garota, e Debbie terminou o namoro com ele. Mesmo na época isso parecera uma infantilidade, e Bill confessara estar envergonhado do que fizera. Mas conseguira sair com a garota. Na verdade, namorou com ela até o final do ano letivo. Esse fora apenas um dos muitos incidentes. Deus, Earl apanhou-se pensando, ele teria sido tão cego aos defeitos do seu amigo? Sua lealdade o teria feito desvirtuar a verdade, ignorar o que se passava bem debaixo do seu nariz? Talvez. Talvez. Graças à maneira como fora criado, a dois passos do esgoto, Earl nunca tivera muitos amigos. Em retrospecto, ainda lhe parecia surpreendente que Bill, vindo de uma das melhores famílias da cidade, fizesse amizade com um rapaz que ia para a escola vestido com trapos e cujos pais eram aquele tipo de gente que ninguém queria conhecer. Algo os havia aproximado desde a escola primária, e os mantivera unidos até a morte de Bill. E, por tudo isso, o julgamento de Earl ficara afetado. Pela honra de ser considerado amigo de um dos "melhores" sujeitos da escola. Pela força da lealdade que ele sempre dedicava a qualquer pessoa que o tratasse bem. O que ele poderia fazer? Sacrificar seu único amigo de infância porque o sujeito às vezes agia como um idiota? Aliás, quem não agia como um idiota, na juventude? Mas, de certa forma, Bill continuara agindo como um idiota ao longo da vida. De maneiras que Earl recusava-se firmemente a enxergar. Tal compreensão o fez sentir-se profundamente nauseado. — O que você acha? — Vivian perguntou. — Sobre Bill tê-la violentado? — Estou aqui justamente pensando que isso é bem possível. Bill sempre conseguiu ter o que queria. Vivian suspirou e bebeu um gole do chá, encolhendo-se tanto que Earl achou que ela poderia acabar desaparecendo no ar. — Meg não era feliz — disse, num fio de voz. — Ela fingia ser, mas eu sabia que não era verdade. Não queria ver. — Ninguém quer ver a verdade. Mas talvez ele também tivesse visto, Earl pensou. Nos pequenos detalhes. Deus, se pudesse pôr as mãos em Bill, agora, arrancaria a verdade dele a qualquer custo. Com raiva e nojo de si mesmo, Earl levantou-se e começou a andar pela cozinha. — Maldição — disse, sem importar-se se isso deixaria Vivian chocada. — Sempre pensei que eles vivessem bem. Mas tudo isso está me fazendo pensar. Fico lembrando de coisas... Coisas demais. Bill querendo sair em quase todos os fins de semana. A maneira como os dois tinham interrompido as freqüentes viagens para Denver. Como Bill começara a ficar horas bebendo no bar da cidade, antes de voltar para casa. Como, pouco a pouco, o brilho de alegria fora desaparecendo dos olhos de Meg. E ele sempre se perguntava por que o casal nunca tivera outros filhos. Subitamente, lembrou-se do dia em que terminaram a construção da casa. Allie devia ter uns dois anos na época. Bill acabara de apertar o último parafuso na porta da frente, e depois abriu um champanhe para
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comemorar. Os três fizeram um brinde à casa nova. Earl ainda podia ver Meg e Bill, como se ambos estivessem à sua frente naquele exato momento. Empoeirados, sujos, cansados e rindo. Mas Bill olhava para a casa. E Meg olhava para Bill com uma expressão ansiosa, algo até doloroso. Por que isso lhe parecera tão marcante? Em retrospecto, ele só podia concluir que Meg havia amado Bill, mas Bill jamais a amara de verdade. Isso foi como um soco em seu estômago. Mas não podia ser verdade. Pois, se fosse, Earl achava que Bill não ficaria casado por tanto tempo. Não podia imaginá-lo casando-se com Meg somente porque ela estava grávida. A não ser que... A não ser que Meg fosse algo que Bill desejasse possuir. Não amar, apenas possuir. Então, ele entendeu. Ele entendeu perfeitamente. Jovens solteiras não cresciam em árvores, naquela cidadezinha. Bill provavelmente achou que ganhara um grande prêmio e que até valeria a pena sacrificar a vida de solteiro por causa de Meg. Para ter alguém esperando quando chegasse em casa, que o alimentasse e aquecesse sua cama quando ele achasse conveniente. Foi muito fácil. Pelo menos até que algo melhor aparecesse. Ou até que a mulher não estivesse mais aquecendo-lhe a cama tão bem quanto antes. O que Meg havia dito? Algo acerca de Bill tê-la acusado de estar "fria". Isso se encaixava. Bill também quisera Debbie, no colégio. E estivera disposto a qualquer coisa para tê-la. Conseguira seu intento, e ficara com ela durante seis meses. Depois, a abandonara sem maiores explicações. Ele nunca gostara realmente de Debbie, até Earl sabia disso, mas eram jovens e os sentimentos volúveis. No entanto, Bill a cobiçara e conseguira conquistá-la. E ficara com ela... até que ela se transformasse em algo que ele não queria mais. Talvez tivesse feito o mesmo com Meg. Talvez Bill nunca tivesse sido capaz de amar alguém de verdade, nem mesmo Allie. Deus, talvez nem mesmo Allie. Porque, se tivesse sido capaz de amá-la, como poderia estar pensando em abandoná-la? Como poderia ter dito o que disse, sobre a menina ter arruinado sua vida? Naturalmente Meg poderia ter falado algo sobre não querer engravidar, o que era compreensível no calor da discussão, mas nada sobre Allie ter arruinado sua vida. Fora Bill quem dissera isso. Bill seria capaz de dizer algo assim de coração. Sentindo-se zonzo e nauseado, Earl parou diante da porta envidraçada e encostou a testa no vidro gelado. — Acho que eu nunca conheci Bill como ele realmente era. — Ninguém conheceu — Vivian falou. — Você só enxergava o que ele queria que você visse. Era um manipulador. Eu sempre soube disso mas, contanto que ele estivesse cuidando bem de Meg e Allie, não podia intrometer-me. Meg o amava. — Sim, ela o amava. — Earl perguntou-se o que Bill havia desejado obter dele. Talvez jamais soubesse. — Mas ele só pensava em si mesmo — Vivian continuou. — E Meg estava sempre cedendo. Os homens são todos assim. — Não este homem aqui. — Pode ser — Vivian falou, embora seu tom de voz indicasse que
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não acreditava muito nisso. Earl virou-se para encará-la. — Por que você tanto atormentou Meg, nestes últimos meses? Vivian encolheu-se ainda mais. — Já lhe disse. Força do hábito, eu acho. Além disso, eu estava com raiva. Tinha raiva por ela estar lamentando a morte daquele homem. Ele nunca foi bom o suficiente para ela, nunca. Houve um tempo em que Earl chegara a pensar que nenhum homem seria bom o suficiente para Meg, incluindo ele mesmo. Mas, depois daquele dia, já não tinha tanta certeza disso. Já não tinha certeza de nada. — Para onde isso vai nos levar, Vivian? A mulher encarou-o, a expressão constantemente infeliz parecendo mais infeliz do que nunca. — Não sei — respondeu. — Eu não sei. Earl também não sabia. No entanto, sabia que teria de encontrar uma maneira de consertar aquela confusão. Devia isso a Allie, se não fosse por mais nada.
Capítulo XVII Vivian foi deitar-se. Não pediu a Earl que fosse embora, mas, ao contrário, ofereceu-lhe o quarto vago. Ele considerou a oferta como um indicativo de que ela não queria estar sozinha, no caso de Allie ou Meg precisarem de alguma coisa no meio da noite. Earl podia entender isso. Porém, ressentia-se um pouco, também. Ressentia-se por Vivian estar buscando seu apoio, depois da maneira como sempre o tratara. Por outro lado, achava que era um grande progresso o fato de ela estar pedindo ajuda, mesmo daquela maneira indireta. Mas era um grande progresso para ela, Earl pensou. Não via como isto poderia beneficiar qualquer outra pessoa. Mesmo se Vivian modificasse completamente o seu comportamento, muito tempo se passaria antes que Allie ou Meg aceitassem a idéia de que ela não as desaprovava. E a reabilitação de Vivian não fazia a menor diferença no fato de que Allie e Meg ainda tinham problemas maiores para resolver. Não mudava o fato de Meg continuar catatônica em seu quarto. Earl foi ver como ela estava e encontrou-a na mesma posição em que a deixara antes, como se quisesse enfiar-se para dentro do travesseiro e esconder-se até o fim de seus dias. Não podia culpá-la por isso, não depois de tudo o que ouvira e descobrira naquele dia. Havia problemas, e havia problemas. Alguns eram graves e frustrantes, e podiam incomodar um bocado. Outros eram tão imensos e insuportáveis que pareciam abrir um buraco no coração e na mente, modificando tudo, para sempre. Os de Meg pertenciam à segunda categoria, a da mudança para sempre. Earl sentiu algo dentro de si enfraquecer e suavizar-se, em relação
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à Meg. A raiva e a indignação a que estivera agarrando-se cedia lugar a uma dor profunda, uma dor aguda e infeliz pela preocupação que sentia por ela. Não queria baixar a guarda. Não queria ceder. Não queria abrir espaço para os sentimentos que lhe causariam ainda mais sofrimento. Eleja sofrera o bastante naqueles últimos meses. Sofrera pela morte de Bill, sofrera pela perda de Meg e Allie. Em algum momento, a dor havia cessado e ele continuara com sua vida, mas, agora, sofria novamente pela dor renovada de Allie e Meg. Deus, será que isso nunca acabaria? Foi então que decidiu deixar as coisas seguirem o seu próprio rumo. Ficar contendo seus sentimentos não faria bem algum. Se havia algo que aprendera naquele dia, fora isso. Esconder-se não ajudava nem um pouco. Finalmente, aceitando que tudo ficava pior antes de começar a melhorar, estendeu-se ao lado de Meg na cama e fechou os olhos. Quando ela emergisse do seu torpor, ele estaria ao seu lado. E iria pagar o preço por isso. Porém, protegido pelos olhos fechados, oculto na privacidade dos seus próprios pensamentos, Earl admitiu algo que sempre soubera. Gostava demais de Meg para afastar-se dela. Para onde quer que toda aquela confusão a leve, ele ficaria sempre ali, bem ao seu lado. Quando Earl acordou, a luz do abajur ainda estava acesa e a casa continuava em silêncio. Meg havia mudado de posição, aconchegando-se contra ele, o braço estendido em seu peito, a respiração sussurrando em seu rosto. Provavelmente fora isso que o despertara, ele pensou. Não estava acostumado a dormir com outra pessoa, especialmente alguém que quase se enroscava nele. Mas seu corpo gostou, não havia dúvidas quanto a isso. Earl sentiase quente, excitado e ereto como nunca antes, e a sensação deixou-o um pouco envergonhado, pois tais reações não lhe pareciam apropriadas para o momento. No entanto, seu corpo respondia à razão. Gostava de ter Meg tão perto e, para ser honesto, o mesmo acontecia com seu coração, sua mente e sua alma. Era como se o vazio que Earl recentemente descobrira em sua vida tivesse encontrado algo que o preenchesse. Tal pensamento amedrontou-o. Depois de tudo o que descobrira, não sabia se poderia confiar seus sentimentos a Meg, sem importar-se se ela os aceitaria. Na verdade, tinha quase certeza de que não iria aceitálos. E como poderia, em meio a todo tumulto que estava sofrendo? Ela estava fragilizada, agora, como um vaso de cristal rachado que pode quebrar-se sob a mínima pressão. E, mesmo se não estivesse ela sempre pensara nele como sendo apenas um amigo. Era isso que ele era, Earl pensou fechando os olhos e enrijecendo sob as sensações que o invadiam como uma onda descomunal. Apenas um amigo. O fato de que sempre desejara ser algo mais do que isso não importava. Ser capaz de admitir isso a si mesmo, depois de tanto tempo, o deixava aterrorizado. Porque as mentiras que sempre dissera a si mesmo eram confortáveis e tinham escondido o fato de que se sentia desleal a Bill por todos os pensamentos furtivos e desejosos, que sempre banira no instante em que lhe ocorriam.
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Mas não se sentia desleal, agora. A impressão que sempre guardara de Bill havia se alterado irrevogavelmente naquelas vinte e quatro horas, de forma que Earl já não era mais capaz de sentir-se desleal. Com uma inquietude que atingia até o fundo de sua alma, ele fechou os olhos com força e tentou encontrar o equilíbrio que ameaçava abandoná-lo. Mas não conseguia ocultar as sensações de seu próprio corpo, e não podia esconder-se da realidade de que Meg já não era mais a esposa do seu melhor amigo. Tudo o que podia fazer era agarrar-se ao fato de que ela precisava dele apenas como amigo. E ponto final. Nada mais. Ele estaria traindo a confiança dela, se tentasse ir além disso. E, talvez, estivesse traindo Allie, também. Mas sua mente recusava-se a se concentrar em Allie naquele momento. Meg estava tão perto, a respiração doce e suave em seu rosto, o corpo quente contra o seu. O braço descansando como um peso leve em seu peito. Ficava cada vez mais difícil pensar em qualquer outra coisa, exceto a dor física que o preenchia, cada vez mais difícil ignorar o desejo que latejava dentro dele. O que precisava fazer, decidiu, era mover-se. Imediatamente. Mas não conseguiu obrigar seu corpo a obedecer, embora uma parte de sua mente lhe dissesse que não queria acordá-la. No fundo, não queria admitir que estava paralisado por uma necessidade tão profunda que sobrepujava tudo o que já havia sentido antes. Mas, então, ela enrijeceu e sua respiração se modificou, e ele soube que não estava mais dormindo. Agora, não tinha mais desculpas para não se mexer, mas ainda assim não conseguia obrigar-se a se afastar. Precisava tanto daquela proximidade. Mais do que qualquer outra coisa em toda sua vida. — Earl? Foi pouco mais que um sussurro, mas havia tanta dor naquela única palavra que ele sentiu um aperto no peito. Subitamente, foi capaz de mover-se, mas apenas na direção dela, e não para longe. Virou-se de lado até ficar de frente para ela, abraçando-a. A sensação era tão boa que, por alguns segundos, nem conseguiu falar. — Bem-vinda de volta — disse, num tom rouco. — Como está Allie? — Preocupada com você. — Não sei o que aconteceu. Foi como se eu me transformasse num pontinho minúsculo dentro de mim mesma. Não conseguia me mover, nem falar... mas podia ouvi-lo. E Allie, também. — Foi demais para você. Isso acontece. — Não. Eu não deveria... Mas qualquer coisa que ela estivesse prestes a dizer foi sufocada por um soluço. As lágrimas começaram a correr em seu rosto, incontroláveis, como se ela as estivesse contendo há muito, muito tempo e já não pudesse mais suportar. Earl amparou-a em seu choro, sentindo como se cada lágrima o atingisse direto no peito. Não fazia idéia de quanto tempo ela chorou, e nem se importou. Cada soluço soava como se estivesse sendo arrancado do fundo da alma, e os sons que sacudiam-lhe o corpo penetravam em seu coração.
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Ficou murmurando palavras de consolo, mal sabendo o que dizia ou se ela o escutava. Não parecia haver muito mais o que fazer, no entanto, e qualquer conforto só poderia vir de dentro dela mesma. Aos poucos Meg foi se acalmando, exaurida. Um soluço errante escapava de vez em quando, como se fosse um profundo suspiro, mas a tempestade havia passado. Earl descobriu-se acariciando-lhe os cabelos e pensando que se soubesse de seus segredos antes poderia tê-la aconselhado a agir de outra forma. Era uma percepção confortadora. — Allie vai me odiar para sempre — ela disse, a voz rouca e abafada. — Acho que não, Meg. Allie ama você e quer desesperadamente acreditar que você a ama. Ela vai superar. — Meu Deus! Não acredito que a magoei tanto. Isso Earl não podia negar. Allie realmente fora profundamente magoada pelo que ouvira, e embora Meg pudesse convencê-la de que sempre a amara e quisera, não seria capaz de apagar as palavras de Bill. Somente Bill poderia fazer isso, e Bill não estava mais ali. — O que vou fazer, Earl? — Meg perguntou com tristeza. — O que posso fazer? Sei que Bill jamais diria o que disse se soubesse que Allie poderia ouvi-lo. Eu jamais diria, não importa quanta raiva e mágoa estivesse sentindo. Mas como posso convencer Allie disso? — Não sei, Meg. Tudo o que pode fazer é continuar amando sua filha o máximo que puder. Com o tempo, Allie acabará compreendendo tudo por si mesma. Meg deixou escapar um soluço trêmulo. — Queria poder arrancar a minha língua. Ele também já se sentira assim, uma ou duas vezes em sua vida. Como todas as outras pessoas, também já sofrera acessos de raiva e deixara-se levar pelo momento. Menos agora, do que em seus tempos de juventude, mas dissera muitas coisas das quais ainda se arrependia. — Já é tarde demais para isso, Meg. — Eu sei. É tarde demais, para tudo... Meg pressionou o rosto no ombro dele, como se tentasse impedir que as lágrimas voltassem, e disse algo que ele não conseguiu ouvir. — O que foi? — ele perguntou. Seus dedos mergulhavam nos cabelos sedosos de Meg, e ele pensava que poderia ficar abraçando-a daquele jeito pelo resto da vida. Ela levantou a cabeça e repetiu o que dissera: — Você me odeia, Earl? Odiá-la? Não, por Deus. Estava zangado com ela, um pouquinho, embora até isso já estivesse desaparecendo. Estava furioso com Bill, pelo que suspeitava ter sido uma atitude muito pouco amável em relação a Meg. E estava muito bravo consigo mesmo pelos anseios que sentia, tão fora de hora e de lugar, por aquela mulher. Mas, odiá-la? Seria simplesmente incapaz disso. — Não, eu não a odeio — respondeu. — Jamais poderia odiá-la, Meg. — Mas fiz coisas horríveis... — Não, você é humana. Talvez a parte mais difícil de se ser humano é justamente nos permitirmos falhar de vez em quando. Você ficou com raiva, disse coisas das quais se arrepende. E bem provável que tenha se
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arrependido no instante seguinte ao que falou. — Ah, sim, eu me arrependi. Mesmo antes de Bill entrar naquele carro e sair em disparada. Earl hesitou, mas decidiu dizer, pois achava que era isso que ela estava pensando, embora não admitisse: — Você não o matou, Meg. Ela prendeu o fôlego, então ele sentiu novamente as lágrimas quentes ensopando sua camisa. — Earl, você não sabe... — Eu sei — ele interrompeu, categórico. — Você não o matou. Vocês tiveram uma briga, e isso é normal. As pessoas brigam e discutem o tempo todo. Mas você não entrou no carro e saiu dirigindo em alta velocidade numa estrada congelada só porque estava com raiva, não é? — Mas... Ele tornou a interromper. — Escute, Meg. Hoje pensei muito sobre Bill. Estava lembrando-me de coisas que havia esquecido. Talvez porque não quisesse encarar o fato de que Bill tinha defeitos como qualquer outra pessoa. Mas a verdade é que Bill não gostava de ser contrariado. Nunca. Ele sempre queria tudo do seu jeito. Imagino que as coisas que você disse tenham-no deixado irritado, que ele tenha compreendido que não poderia simplesmente desistir de um casamento sem mais nem menos. Ele não zangou-se porque você discutiu e argumentou, mas sim porque percebeu que não poderia agir como bem entendesse. E era bem próprio dele sair daquela maneira, como se estivesse fugindo do fogo do inferno. Eu próprio já havia o havia visto agir assim antes. De certa forma, ele nunca cresceu realmente. Ela balançou a cabeça e enxugou os olhos. — Preste atenção, Meg — ele falou. — Você não obrigou Bill a entrar naquele carro, nem a dirigir em alta velocidade. Ele estava fugindo porque não conseguiu obter o que queria. Foi isso que ele fez, agiu como uma criança temperamental. Algo estranho aconteceu, então. Earl ouviu-a emitir um som como se fosse um riso breve e tristonho, e Meg levantou o rosto. Sob a luz do abajur, ele viu as lágrimas umedecendo-lhe o rosto e ainda trêmulas em seus cílios. — O que foi? — ele perguntou, confuso. — É que... isso é a pura verdade, Earl. Bill às vezes realmente se comportava como uma criança mimada. Ele assentiu e, quase sem querer, apertou-a levemente em seus braços. Aquela era a verdade sobre Bill e, por algum motivo maluco, o fato de expressá-la em voz alta o fez sentir-se melhor. Como se algum tipo de segredo terrível de repente deixasse de ser segredo. — Eu gostava muito dele, Meg — Earl falou. — Como se fosse um irmão. Mas devo admitir que havia algumas coisas nele das quais não gostava tanto assim. E muitas pessoas gastaram tempo demais tentando impedir que Bill tivesse seus ataques de vontades. Tempo demais evitando que ele ficasse zangado. Todos nós fizemos isso. Diabos, eu via a maneira como você andava em volta dele na ponta dos pés, durante quinze anos. E eu fazia o mesmo. — E isso era errado?
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— Não. Mas tampouco era bom para nós. — Mas ele não era assim o tempo todo. — Não. — Isso era verdade. Muitas vezes Earl achava que não poderia ter tido um amigo melhor do que Bill. Vezes em que Bill fazia-se presente de maneiras que faziam-no sentir-se bem por ter uma pessoa como ele por perto. — Ninguém é completamente ruim, Meg, da mesma forma que não há ninguém completamente perfeito. Nós o amávamos, e creio que ele nos amava também, pelo menos da maneira como podia amar. — Da maneira dele — Meg falou, depois ficou em silêncio por um instante. — Você tem razão. Eu estava me sentindo como se ele nunca tivesse me amado, porque queria me deixar. Mas, talvez... — Deixou a frase no ar. — Ele a amava o máximo que podia. Embora não acreditasse muito nisso, Earl sentiu-se razoavelmente confiante em fazer tal afirmação. Pelo menos assim Meg poderia acreditar que Bill a amava. E, certamente, Bill não voltaria do túmulo para contradizê-lo. Algumas mentiras podiam ser boas. E, agora que pensava nisso, Earl concluiu que a maioria das mentiras de Meg tiveram um bom motivo. O problema surgiu apenas quando as mentiras começaram a devorá-la por dentro. Meg relaxou ao seu lado e ele perguntou-se se teria voltado a dormir. Pensou que deveria levantar-se da cama e ir sentar na poltrona ao lado. Não era uma atitude muito sensata, permanecer ali deitado, para nenhum deles. Provavelmente não conseguiriam lidar com as explosivas emoções envolvidas no que poderia acontecer, caso ele continuasse onde estava. Ainda assim, Earl não conseguia obrigar-se a se afastar,e quando sentiu a mão dela enrijecer contra suas costas, puxando-o mais contra si, soube que nada no mundo o arrancaria dali. — Eu queria... — Ela sussurrou as palavras, mas deixou-as no ar. — Queria o quê? — Ter conhecido você primeiro. O coração dele parou. Aquilo não podia ser verdade. Meg estava apenas sentindo-se deprimida e emocionalmente esgotada. Não podia estar realmente dizendo que teria preferido ficar com ele do que com Bill. Afinal, ele não tinha a classe de Bill, nem sua boa aparência, ou sua personalidade excitante. Ele era um homem comum, quieto, com pouca instrução. Tivera uma vida difícil, e demonstrava isso. Meg merecia algo muito melhor. Quando seu coração retomou as batidas, estas eram lentas, pesadas. Como se ele soubesse que estava pairando a beira de algo grandioso. Apanhou-se fechando os olhos com força e esperando... esperando... Então, sentiu. Uma carícia leve como as asas de uma borboleta perpassou-lhe o rosto, com tal delicadeza que ele nem teve certeza de têla sentido. Depois, novamente. Seu coração disparou, obrigando-o a respirar fundo. Seu corpo ficou mais pesado, e cada nervo parecia estar despertando para a sensação do corpo dela contra o seu. Não. Não podia permitir-se sentir essas coisas. Era perigoso. Meg não tivera nenhuma intenção ao beijá-lo no rosto, não havia nada exceto gratidão por ele estar ali, ouvindo-a. Ela devia estar sentindo-se tão
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sozinha, sem ninguém para conversar, para compreender as mágoas com que tinha de lidar além da perda do marido. Era apenas gratidão. Mas, então, ela pressionou-se mais um pouco, a mão colando-se em suas costas como se quisesse puxá-lo para si. Earl parou de respirar. — Earl... Ele voltou a respirar. E conseguiu falar: — Não... — A palavra soou pouco convincente. — Você vai se arrepender... — Não... Earl sentiu um peso no peito ao imaginar que Meg estava concordando com ele, e cerrou os dentes para impedir-se de gritar que sim, ele a desejava, que seria capaz de qualquer coisa para ter a chance de amá-la somente uma vez. — Não — ela repetiu. — Eu preciso. Preciso de você. Earl... por favor... Se houvesse uma resposta racional para isso, ele a desconhecia. — Meg... — Por favor — ela disse novamente. — Preciso de você... Não sou fria. Mas sinto-me tão vazia... Ele estava perdido. Também precisava dela, e tanto que não havia como negar-lhe nada. Só rezava para que, no dia seguinte, ela não o odiasse por isso. — Você tem certeza, Meg? Tem certeza? — Sim, eu tenho. Preciso de você há... muito, muito tempo. Quanto tempo?Earl perguntou-se. Quanto tempo? Mas não podia perguntar a ela. Nem tinha certeza se queria saber. Não queria considerar a possibilidade de ter sido barrado pela amizade e casamento. Queria apenas lidar com isso agora, pois aquele era o momento pelo qual havia esperado desde que a conhecera. Meg respirava bem próximo ao rosto dele, provocando-lhe uma sensação tão complexa e avassaladora que ele achou que poderia explodir. Uma sensação tão poderosa que, por um instante, pensou que não havia mais nada além disso, além da própria sensação. — Earl? Ele abriu os olhos e fitou-a, vendo seu medo, vendo que ela estava prestes a envolver-se em si mesma se ele a rejeitasse. Não podia suportar isso. Virando a cabeça, Earl pousou os lábios nos dela, mal os tocando até que o delicioso instante de antecipação chegasse ao seu extremo, pronto para estilhaçar-se. Uma parte dele sabia que jamais esqueceria aquele momento, que jamais esqueceria o sabor dos lábios dela. Então, beijou-a. Não era o primeiro beijo que trocavam,mas foi tão intenso e profundo como se fosse. Aqueles lábios, proibidos para ele por tanto tempo, receberam-no de bom grado, levaram-no a um lugar seguro e quente, oferecendo-lhe uma segurança que ele não podia acreditar que fosse apenas ilusória. A língua de Meg era quente contra a dele, provocante, incitante, dizendo-lhe que fosse lá o que fosse que Bill pensava de sua sexualidade, ela era tão ardente como uma chama. Suas mãos acariciavam-lhe as costas, puxando-o mais contra si, e quando ele cedeu, ela virou-se sob o corpo dele. Earl parou de beijá-la por um instante, olhando-a.
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Os lábios dela estavam levemente inchados pelos beijos, as faces afogueadas e os olhos pesados de desejo. Ela jamais vira uma mulher tão bela, em toda sua vida. A necessidade incontrolável de penetrá-la crescia a cada segundo. Mas, para isso, ambos teriam de despir-se, e Earl teve medo de que este simples ato pudesse levá-los de volta à realidade. Por isso, hesitou. Então, Meg abriu os botões de pressão da camisa dele com um único gesto rápido, e Earl não precisou de outro encorajamento. Porém, não queria ser brusco com ela, de maneira alguma. Assim, foi despindo-a aos poucos, desembrulhando-a como se fosse um presente há muito desejado, tratando cada peça de roupa como se o papel do presente fosse tão precioso quanto o seu conteúdo. Saboreando cada gesto, cada momento. O suéter que ela usava deslizou suavemente, revelando os seios no sutiã de renda. Eram mais cheios do que ele antecipara, e Earl demorou-se um pouco mais, admirando-os. Baixou a cabeça, então, e começou a beijá-los devagar, descobrindo o sabor e a textura de sua pele, as saliências e concavidades, como se quisesse guardá-los para sempre na memória. E guardaria. Tinha quase certeza de que, depois daquela noite, ela não iria querer estar tão próxima dele outra vez, e uma parte de si lhe gritava avisos para que parasse, antes que destruísse para sempre a amizade que os unia. Mas, aos poucos, os clamores foram diminuindo até perderem-se no desejo que latejava em seu sangue e ecoava em seus ouvidos. Somente enquanto a abraçava e despia, Earl percebeu há quanto tempo desejava fazer isso. E o quanto desejara. Explodindo em sua memória, surgiram imagens de todas as noites em que dormira com o rosto dela em sua mente, todas as noites em que desejara que ela estivesse ao seu lado. E, agora, ela estava ali. Earl ajoelhou-se e tirou-lhe a calça jeans, mergulhando os dedos nas pernas nuas. Ela estremeceu e sussurrou o nome dele, provocandolhe uma explosão de paixão. Ela o queria agora, e isso era tudo o que ele podia pensar. Nada mais importava. Tirou as próprias roupas rapidamente, depois as últimas peças dela, o sutiã e a calcinha. Meg jazia nua à sua frente, os braços estendidos para ele, os quadris pulsando num ritmo suave que refletia o pulsar de seu próprio corpo. — Tem certeza? — ele perguntou, a voz enrouquecida. — Sim... sim... Earl não podia mais esperar. Era como se cada célula de seu corpo respondesse ao chamado de cada célula do corpo dela. Precisava senti-la sob si, precisava de seu calor, como jamais precisara de algo em toda sua vida. As pernas dela entreabriram-se quando ele baixou o corpo, e quando suas coxas entrelaçaram-se nos quadris dele, foi como se uma onda de intenso prazer o envolvesse por inteiro. Mas ele prolongou-se, relutante em apressar os momentos preciosos. Acariciou-lhe os mamilos com a ponta da língua, e ela gemeu em resposta, pressionando as pernas contra ele, tentando empurrá-lo mais para o fundo de si mesma. Earl não se apressou, no entanto, e continuou beijando-a, sugando-lhe os seios até que ela começasse a mover-se impaciente sob ele, agarrando-se aos seus ombros e repetindo seu nome sem parar. Até que, finalmente, ele não conseguiu mais resistir e penetrou-a.
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Por um instante, o prazer foi tão intenso que ele não se moveu. Seus olhos se fecharam e ele manteve-se imóvel, permitindo que a maré de emoções o invadisse. Tão bom. Tão bom... Quando abriu os olhos, viu que ela o fitava com um sorriso sonhador. — Earl — ela murmurou. — Earl... — Como se seu nome fosse a resposta a todas as esperanças que ela acalentara. E ele nunca se sentiu tão bem-vindo, em toda sua vida. Impulsionou-se dentro dela e ouviu-a gemer baixinho, mergulhando os dedos em suas costas. Os movimentos rítmicos aceleraram-se, até que o prazer intenso o preenchesse completamente, levando-o para fora de si, para um lugar onde nada existia exceto a exigência máxima do orgasmo. Earl perdeu todo o contato com a terra e encontrou o paraíso, e Meg estava ao seu lado o tempo todo. Sentiu-a estremecer de prazer, e entregou-se totalmente ao seu próprio clímax. E sentiu-se renovado. Ele cochilava, e ela dormia. As horas silenciosas da noite passavam lentamente, e Earl as contava a cada vez que despertava, desejando que passassem ainda mais devagar. Porque, com a manhã, a realidade também chegaria. Os problemas de Allie ainda teriam prioridade, e a culpa de Meg seria novamente despertada. Poderia até estender-se a ele. E ele precisava ir para o trabalho, embora não quisesse deixar Meg e Allie nunca mais. Earl temia a chegada do dia. Mas, finalmente, não pôde mais evitar o fato de que teria de encarar o mundo. Levantou-se, vestiu-se em silêncio e saiu do quarto. Tinha de ir para casa tomar um banho, barbear-se, mudar de roupa e, depois, para o seu escritório. Ligaria para Meg dali, decidiu. Hesitou, antes de afastar-se da cama, desejando beijá-la uma última vez, mas sem querer acordá-la. Depois de tudo o que Meg havia passado, provavelmente dormiria a manhã inteira, e ele não queria privá-la da cura que o sono lhe proporcionaria. Ouviu o despertador de Allie tocar quando passou pela porta de seu quarto. Logo ela sairia para a escola. Earl esgueirou-se sem ruído pela escada e para fora da casa, saindo para a manhã fria e cinzenta. E depois partiu, deixando quilômetros de distância entre si mesmo e aquelas com quem tanto se preocupava. Capítulo XVIII Quando Meg abriu os olhos à luz da manhã penetrava suavemente pelas persianas do seu quarto. Por alguns segundos, foi invadida por uma profunda sensação de felicidade, como jamais sentira antes. Então, lembrou-se. Ela e Earl tinham feito amor. E, enquanto uma parte de si queria agarrar-se ao significado maravilhoso disto, lembrar de cada momento e desfrutá-lo como algo precioso, outra parte estava perplexa diante de seu comportamento. Como pudera fazer isso, quando sua filha dormia no quarto ao lado? Como pudera ter tanto prazer em
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tais circunstâncias? E quanto a Earl? O que ele não estaria pensando agora, depois da maneira descarada com que ela lhe pedira para fazer amor? Como fora capaz de pensar nisso, quando Allie estava sofrendo tanto? Deus, ela odiava-se. O desprezo por si mesma preencheu-a até que sua garganta ardesse e lágrimas queimassem seus olhos. O que havia de errado com ela? E como podia ter agido de maneira tão... tão... Nem mesmo encontrava uma palavra para descrever-se. Sabia apenas que era a pior das mulheres que já pisara a face da terra. Virando-se na cama, tentou esquivar-se da luz que entrava pela janela, e afundou o rosto no travesseiro ao seu lado. O cheiro de Earl. Muito leve, mas o bastante para provocar-lhe um aperto no peito e fazer com que as lágrimas começassem a correr soltas. Earl. Ele nunca ficaria com ela, nunca. Ela não tinha o direito de sequer pensar nisso. O que havia pensado, na noite anterior? Como pudera entregar-se de tal forma, principalmente depois que ele se mostrara tão relutante? Ele devia estar perguntando-se com que tipo de mulher Bill havia se casado. Que tipo de mãe ela era para Allie. Nunca mais conseguiria olhá-lo de frente. Deus,destruíra a mais sincera amizade que jamais tivera, e tudo por alguns minutos de... o quê? Fuga? Afirmação? Necessidade? Nem mesmo tinha certeza do que a levara a agir daquela maneira, e nem tinha certeza se queria saber. Estava começando a compreender que havia coisas dentro de si que seria melhor deixar bem guardadas e ocultas, distantes da luz do dia. Sua alma, pensou, era muito feia. Finalmente obrigou-se a levantar, tomar um banho e vestir calça comprida e um suéter. Vivian já devia estar acordada, e ela temia encará-la. Se sua mãe já a odiava pelo que acontecera com Bill e seu pai, certamente a odiaria muito mais se soubesse o que ela fizera na noite anterior. E Meg não poderia culpá-la por isso. Merecia cada chicotada de raiva e desgosto que o mundo quisesse infringir-lhe. Vivian estava na cozinha, como sempre, mas foi a presença de Allie que deixou Meg surpresa. Vivian disse-lhe bom-dia, mas foi para a filha que Meg direcionou sua atenção. Allie estava sentada à mesa, segurando uma caneca com chocolate quente, parecendo muito pequena e infantil. Mas olhou para a mãe com uma expressão preocupada e perguntou: — Você está bem? Algo no peito de Meg estilhaçou-se. Ela fez que sim e aproximou-se da mesa devagar, sentando diante da menina. — E você — perguntou —, está bem? Allie assentiu, fixando os olhos na caneca. Vivian deixou uma xícara na frente de Meg e disse: — Preciso limpar os banheiros. Vou deixá-las aí conversando. Vagamente, Meg registrou a surpresa por sua mãe se retirar, o que era tão pouco característico dela. Mas, ao mesmo tempo, ficou surpresa ao perceber que se sentia tão pouco à vontade sozinha com Allie, como se precisasse de uma espécie de abafador entre si mesma e a dor de sua filha. Isso a incomodou. Nunca antes precisara de nada, nem de ninguém, para comunicar-se com a menina.
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— Sinto muito — disse, achando difícil pronunciar até mesmo aquelas poucas palavras. Sua boca estava seca, exigindo um grande esforço para falar. Allie assentiu, sem desviar os olhos da caneca. — Não fui à escola hoje — Allie falou, reafirmando o óbvio. Meg conseguiu mover a cabeça levemente. — Pensei que... Achei que nós precisávamos conversar. Meg concordou, mas perguntou-se como conseguiria falar,quando seus lábios pareciam ter-se transformado em chumbo. E não podia imaginar como faria Allie acreditar que tanto ela como Bill a amavam. Não depois do que ela ouvira. A lembrança daquela briga estivera amargamente presente na memória de Meg desde a morte de Bill. Tanto sofrimento havia sido infligido, tantas coisas terríveis tinham sido ditas, e não havia mais como remediar. Não havia mais nenhuma chance de melhorar. E nada do que dissesse seria capaz de apagar as palavras de Bill, palavras que deviam estar gravadas na alma de Allie. E Meg, que vivera com o ódio de sua mãe por tantos anos, sabia exatamente o que Allie estava sentindo. — O papai não queria que eu nascesse, não é? Ah, Deus, que pergunta. E tudo já fora muito além de quaisquer mentiras que ela pudesse inventar. Allie sabia disso. Lutando contra o peso que parecia esmagá-la, Meg falou: — No início, não. Mas isso não quer dizer que ele não a queria, depois que você nasceu, Allie. Às vezes as pessoas não querem engravidar. Pode acontecer de surpresa, ou na hora errada. Mas não significa que a gente não mude de idéia, depois que o bebê nasce. Seu pai a adorava, era capaz de tudo para vê-la feliz. Tanto quanto Bill era capaz de amar, Meg pensou com uma súbita onda de raiva e ressentimento. Sabia muito bem o quão pouco Bill era capaz de ter sentimentos verdadeiros. Ela passara todos os anos de seu casamento sentindo-se como uma estranha. Sentindo-se distanciada. Na noite anterior, com Earl, ela não se sentira assim. Sentira-se mais próxima a ele do que jamais se sentira com alguém em toda sua vida. O que havia de errado nisso?, perguntou-se. Por que deveria sentir que fora uma traição? Allie ergueu os olhos e encarou-a. — Então por que ele disse aquelas coisas, sobre eu ter arruinado a vida dele? — Porque estava com raiva, querida. Estava com raiva de mim, não de você. Ele nunca, nunca teria dito tais coisas se soubesse que você estava ouvindo. Ele queria ferir a mim. A menina assentiu, em dúvida. — Mas ele devia sentir isso sempre, para dizer o que disse. Uma dor profunda atingiu o peito de Meg. — Meu bem, o seu pai não precisava ter casado comigo. Se ele realmente não quisesse ser o seu pai, poderia simplesmente ter ido embora. Ninguém o obrigou com uma arma. Ele queria ter você, depois que se acostumou com a idéia da minha gravidez. E você não arruinou a vida dele. Seu pai disse isso somente porque eu tentei usá-la como um motivo para ele não me deixar. Eu não deveria ter feito isso, Allie, foi
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errado. Mas foi por isso que ele disse o que disse. Para mostrar-me que não ficaria comigo apenas por sua causa. Mas, se por acaso ele tivesse se mudado daqui, ainda iria querer vê-la em todos os fins de semana. Iria querer levá-la para acampar nas montanhas, como sempre fez. Tenho certeza disso, Allie. — Pode ser. — O queixo de Allie tremeu levemente, mas firmou-se. — E quanto ao que você falou? Eu impedi que você terminasse a faculdade. — Você não me impediu de nada. Eu estava exagerando, tentando mostrar que ele havia desistido de muito pouco por sua causa. Ele fez tudo o que sempre planejou fazer, Allie. Concluiu os estudos e depois voltou para cá, a fim de trabalhar na administração da mina. Este sempre foi o plano dele. Quanto a mim... Não tive tanto empenho em terminar a faculdade. Eu fazia o curso de Belas-Artes e, para ser sincera, não era nenhuma grande artista. Razoável, talvez. Poderia ter conseguido um trabalho na área de publicidade,ou algo assim, mas estou muito satisfeita com meu emprego na seguradora. — O que não era totalmente verdade, mas ela temia que Allie não compreendesse. — De qualquer forma, isso não é importante, pois eu não a trocaria por nada deste mundo, querida. Por nada. — É mesmo? — A expressão da menina era dolorosamente esperançosa. — Sim, é verdade. Eu não faria nada diferente, se fosse para ter você. Allie assentiu e Meg julgou perceber um leve sorriso nos cantos de seus lábios. — Você deve ter sofrido muito quando papai falou que ia embora. Meg foi invadida por uma onda de amargura, ao lembrar-se daquele dia. — Sofri, sim — respondeu. Porém, não da maneira como Allie provavelmente pensava. O seu orgulho havia sido ferido. Ela sentira como se tivesse desperdiçado todos aqueles anos que dedicara a Bill e ao seu futuro juntos. Mas nada disso se comparava à dor que sentia no coração e na alma, quando pensava que poderia ter perdido Allie. Aquelas tinham sido preocupações superficiais, mas achou que sua filha não precisava saber disso. — Por que ele queria ir embora? — Allie perguntou. — Estava apaixonado por outra pessoa? Meg não podia mentir sobre isso, embora achasse que seria mais fácil. — Não. Ele apenas... cansou-se de mim. Ou melhor, acho que, na verdade, ele enjoou de mim. — Ah, mamãe... — A expressão da menina era triste, quase de pena. — Você deve ter se sentido tão mal. — Sim, é verdade. Foi por isso que fiquei com tanta raiva. — Então, pode ser que ele tenha enjoado de mim, também. Talvez não fosse só por você. Foi bondade de Allie dizer isso, mas Meg não podia permitir que ela acreditasse nisso nem por um instante. — Ele não estava enjoado de você, Allie. Seu pai jamais se sentiria assim a seu respeito. Ele a amava. O rosto de Allie ficou sombrio e ela começou a chorar.
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— Queria tanto poder acreditar nisso. A depressão de Meg desapareceu como fumaça, incinerada pela raiva que sentia de Bill, e de si mesma. Levantando-se, fez a volta na mesa e ajoelhou-se ao lado da cadeira de Allie, puxando a menina para seus braços e apertando-a com força. — Está tudo bem, querida — murmurou. — Tudo bem. Eu juro que seu pai amava você. Ele sempre a amou muito. Era a mim que ele não amava. Juro por Deus, ele disse todas aquelas coisas para atingir-me, e não a você. Mas Allie continuava a chorar, inconsolável, e Meg encarou a terrível possibilidade de que nada do que dissesse seria capaz de fazer com que a menina se sentisse melhor. A cura teria de vir de algum lugar de dentro da própria Allie, e poderia demorar muito tempo. Mas, assim mesmo, Meg continuou falando, enquanto seus joelhos doíam no chão frio e duro, enquanto as lágrimas de Allie ensopavam seu suéter, enquanto acariciava os cabelos macios da menina. — Lembro-me da primeira vez em que seu pai a viu, logo depois que você nasceu — disse. — Ele não conseguia parar de sorrir. Acho que nunca o vi tão feliz, exceto talvez quando ele jogava beisebol com você. Ele iluminou-se como um sinal de néon e tudo o que conseguiu dizer foi: "Uau!”. Meg sabia que Allie estava ouvindo, tentando conter os soluços para não perder nenhuma palavra. — No dia em que você começou a andar, ele ligou para todos os amigos para contar a novidade. Tinha certeza de que você seria uma bailarina, porque desde então seus movimentos eram muito graciosos. E como ele ficou orgulhoso, quando você tinha apenas dois anos e começou a escrever as letras do alfabeto, depois de vê-las no "Vila Sésamo". Foi ele quem lhe comprou aquele "Garibaldo" de pelúcia. — É mesmo? — Foi um som abafado, acompanhado de uma fungadela. — É, sim. Foi então que ele decidiu que você seria a próxima "Einstein". Mal podia esperar que você crescesse para começar a jogar bola com ele. Também costumava sentar no chão com você e ajudá-la a montar os quebra-cabeças.Você se lembra disso, não é? Ele comprou o seu primeiro triciclo, embora você ainda fosse muito novinha para andar. Mas ele se contentava em vê-la empurrando o triciclo de um lado para outro. Meg prosseguiu falando, aos poucos trazendo as lembranças do passado mais recente para que Allie visse que seu pai a amara até o final. Quando finalmente calou-se, estava com a voz rouca e as lágrimas de Allie tinham cessado. A menina recostava-se nela calmamente, toda a raiva e resistência desaparecidas. Os joelhos de Meg imploravam para que ela ficasse de pé, mas ela temia estragar aquele frágil momento de conforto que sua filha encontrara. Por fim, a dor ficou intensa demais. — Preciso me levantar, querida. Meus joelhos estão me matando. Allie assentiu e se afastou. As pernas de Meg não queriam obedecer, mas ela conseguiu se levantar e fez uma careta de dor. — Puxa, acho que estou ficando velha! Allie esboçou um leve sorriso, e Meg puxou uma cadeira ao lado
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dela, para que ficassem próximas. — Como está se sentindo? — perguntou à menina. — Será que ajudei um pouco? Allie fez que sim. — Estou me sentindo melhor. — Ainda estava hesitante, mas caminhava na direção certa. — Você entende o problema pelo qual estou passando, não é? Allie balançou a cabeça em negativa. — Ainda estou tão zangada com seu pai que seria capaz de dar-lhe um soco. Mas ele não está mais aqui para ouvir os meus gritos, e nem para lhe confirmar que não disse aquelas coisas de coração. E isso me deixa ainda mais zangada. Um leve sorriso, como um raio de sol entre as nuvens de tempestade, surgiu no rosto de Allie. — Eu também estou meio brava com ele. — Você tem todos os motivos para isso. Allie exalou um suspiro trêmulo. — Ele não falou de coração. — Não querida, pode ter certeza disso. Ele realmente queria me deixar, mas todo o resto da discussão foi porque estava com raiva de mim e queria me ferir. — Você o amava, mamãe? Meg ficou surpresa ao perceber o quanto teve de voltar para trás em suas lembranças, a fim de responder aquela pergunte. Fora há muito, muito tempo. Mas Allie não precisava saber disso. — Sim, meu bem, eu o amava. Muito. Por uns poucos anos. Depois, a total indiferença que ele lhe dedicava começou a cobrar seu preço. Pouco a pouco seus sentimentos foram se esvaindo, transformando-se em outra coisa. Familiaridade, lealdade, preocupação com a filha. Mas não mais o tipo de amor romântico que sentira por Bill no início. Que a levara a casar-se com ele. — Sinto muito — Allie falou. — Ele magoou você também. Meg hesitou, querendo dizer alguma coisa, mas sem ter muita certeza do quê. Não queria que as lembranças que Allie guardava do pai fossem maculadas por tais coisas, mas não sabia se poderia apagar a verdade essencial do que acontecera. Allie escutara a discussão. Sabia que o pai planejava ir embora. E quando Bill disparara para fora de casa naquele dia, havia jurado que nunca mais voltaria. — De nada adianta ficar pensando nisso — Meg falou. — É melhor nos lembrarmos das coisas boas. É tudo o que importe, agora. — Acho que sim. — Depois de um momento, Allie estendeu a mão e entrelaçou os dedos com os de Meg. — Sabe, quando eu fui para as montanhas... — Sim? — Eu estava querendo me matar. Meg prendeu o fôlego, sentindo a garganta tão apertada que não conseguiu falar. Passado um instante, esforçou-se para dizer: — Nós... pensamos neste possibilidade. — Bem, eu mudei de idéia. Matt... Bom, ele me ajudou a entender as coisas e a encará-las de um jeito diferente.Por isso, decidi que não faria nada daquilo. Eu realmente escorreguei naquele penhasco, mamãe. De
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verdade. Meg assentiu e apertou a mão da menina. — E agora? — perguntou. — Ainda pensa em se matar? — Não. Só queria ter tido a chance de conversar com papai mais uma vez, antes de ele morrer. Aquela, Meg pensou, foi uma das coisas mais tristes que já ouvira em sua vida. A intenção de Earl de ligar para Meg por volta das dez e meia a fim de saber como ela estava, acabou virando fumaça. Ben Dawson finalmente decidira aparecer no hospital tentando ver Matt, e não se mostrou disposto a aceitar a recusa das enfermeiras. Dois enfermeiros foram chamados para contê-lo, enquanto Earl estava a caminho do hospital. Dawson estava bêbado, e totalmente enlouquecido por ter sido impedido de ver o filho. Quando Earl chegou, o homem começou a gritar que ninguém tinha o direito de impedir que ele visitasse um parente, e ameaçava atacar os dois enfermeiros que bloqueavam a passagem para o quarto de Matt. Earl não estava com a menor disposição para agüentar a gritaria de Dawson. — Saia de perto desta porta — ele disse, a voz num tom de firme comando. — Meu filho está lá dentro! Você não pode me obrigar a sair. — Seu filho não estaria lá se você não tivesse lhe dado uma surra. Agora, saia desta porta. — Nunca encostei um dedo naquele menino! Porém, algo na maneira como Dawson desviou os olhos indicou claramente que estava mentindo. Earl não ficou nem um pouco surpreso. — Você não tem provas contra mim! A discussão não contribuía em nada para melhorar o humor de Earl, principalmente sabendo que de fato não tinha provas para colocar Dawson na cadeia. Tinha somente suspeites e, baseado apenas nisso, não havia muito que pudesse fazer. — Tenho um rapaz que é surrado com demasiada freqüência — ele falou. — E, neste exato momento, você não está agindo como um bom cidadão, Dawson. Posso prendê-lo por arruaça e por ter ameaçado as enfermeiras. — Elas não me deixaram ver o meu filho. — Fui eu quem deu-lhes esta ordem. Você pode se achar muito esperto, Dawson, mas é mais estúpido que uma pedra. A cidade inteira sabe quem é que está surrando Matt. Portanto, deixe-me esclarecer muito bem as coisas para você: é melhor que eu não veja mais nenhum arranhão naquele menino. Porque, do contrário, vou passar o resto da minha vida vigiando-o, até que consiga uma prova para enfiá-lo para sempre na cadeia. — Se ele disse que eu bato nele, está mentindo. — Ele nunca disse quem o espanca. Uma pena, porque se ele dissesse uma palavra eu o trancaria numa cela tão depressa que você nem iria perceber. É só isso que preciso, Dawson. Uma palavra de Matt. Por isso, trate de nunca mais encostar um dedo nele.
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Por um instante, Earl pensou que Dawson recomeçaria a gritar impropérios, mas o homem mudou de idéia, preferindo bancar o indignado. — A lei não pode me dizer como devo criar o meu filho. Só quero o melhor para ele. Earl cerrou os dentes com força. — Mandá-lo para o hospital não é o melhor para ele. — Você não pode provar nada. Ainda está tentando se vingar porque acabei com você naquela luta. Earl não podia acreditar que Dawson se referia a uma briga de escola que acontecera quase trinta anos atrás. — Não dou a mínima para aquela briga — disse. — Há pelo menos vinte e cinco anos que não penso nisso. O que realmente me importa é aquele garoto que está deitado numa cama de hospital. Já o avisei, Dawson. E costumo avisar apenas uma vez. O pai de Matt encarou-o com desprezo, depois lhe deu as costas e seguiu pelo corredor, ameaçando processar o hospital, o gabinete do xerife, e qualquer pessoa que encontrasse pela frente. Earl esperou um pouco, certificando-se de que ele fora embora, depois entrou no quarto. Matt estava pálido e assustado. — Ele já foi, Matt. Mas talvez você queira pensar um pouco nisso. Assim que sair daqui, não poderei mais protegê-lo, não enquanto você não me disser quem está lhe dando estas surras. Pense no assunto. Matt deveria ficar no hospital por mais um ou dois dias, Earl pensou ao sair para o estacionamento e checar se a velha caminhonete de Dawson não estava mais ali. Dali a um ou dois dias, caso nada acontecesse, o rapaz estaria novamente à mercê do pai. Dawson seria bem capaz de surrá-lo pelo que acabara de acontecer. Tal pensamento fez com que seu estômago revirasse. Já passava do meio-dia, quando Earl finalmente chegou ao escritório. Pensou que Meg deveria estar se perguntando o que acontecera com ele, por que teria se esgueirado para fora de casa tão cedo e nem havia ligado. Depois daquela noite, ele lhe devia muito mais do que isso, sabia melhor do que ninguém. No entanto, ainda sentia-se inseguro, e sua mão hesitou antes de pegar o telefone. Sentia-se culpado pelo que acontecera entre eles. Não porque não quisesse Meg, ou ter feito amor com ela, mas porque ela era a viúva de seu melhor amigo. Porque ele sentia que havia se aproveitado do frágil estado emocional em que ela se encontrava na noite anterior. Mesmo tendo lhe perguntado várias vezes se ela tinha certeza do que fariam, Earl ainda sentia um peso na consciência. Ela não estava plenamente consciente. Havia sofrido algum tipo de esgotamento nervoso que durara horas, e Earl tinha a impressão de que agarrara-se a ele por desespero, mais do que por desejo. Ele deveria ter sido forte o bastante para impedir que acontecesse. Pelo bem de ambos. Mas não fora, e castigava-se pela sua fraqueza, mesmo sabendo que desejara Meg por muitos anos. Isso também o envergonhava, mas o segredo fora revelado e não podia mais ocultá-lo de si mesmo. Não podia mais fingir que não ansiara por ter Meg em seus braços desde a primeira vez em que a vira. Talvez nunca tivesse traído Bill de fato, mas o traíra muitas vezes em pensamento.
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E isso não o deixava nada orgulhoso de si mesmo. Porém, isso era o que menos importava. O mais importante era que talvez tivesse magoado Meg na noite anterior. Tal possibilidade o preocupava, e ele não sabia o que faria, caso ela estivesse sentindo-se no inferno, agora. Meg confiara nele, e ele abusara de sua confiança. Não tinha como escapar disso. Precisava ligar imediatamente, tentar impedir que ela se sentisse como se tivesse sido usada. Quaisquer outros problemas que ela tivesse a respeito do que acontecera, considerando-se que Bill estivera bem no centro de todos eles, Earl não queria que começasse a se perguntar quais seriam os motivos dele. Assim, finalmente pegou o telefone e discou, suando frio até que ela atendesse. — Olá, Meg — disse. Meu Deus, isso era jeito de começar? A rouquidão de sua voz era uma clara indicação de como ele derretia apenas por ouvi-la. Fora capaz de esconder isso por tanto tempo, então o que havia de errado com ele agora? — Olá — ela respondeu. Reservada, incerta. Earl sentiu um aperto no peito. — Desculpe por ter saído tão cedo — ele falou. — Precisava vir para o trabalho. — É claro. Bem, isso não era nada encorajador. E agora? Earl não sabia mais o que dizer. Não havia como iniciar uma conversa casual quando se sentia tão preocupado. Finalmente, disse: — Você está bem? — Estou bem. Mais nada. Nenhuma doçura, nenhum reforço. Ele cerrou os dentes. — Meg... sobre ontem à noite... — Não quero falar sobre isso, Earl. Cada vez pior. — Tudo bem. Então, vejo você mais tarde. Ele desligou, sem esperar uma resposta. Depois, ficou ali sentado por um longo tempo, olhando pela janela, ignorando a papelada em sua mesa, pensando em como provavelmente traíra a amizade de Meg e como sua maldita vida ficaria vazia, se Meg não fizesse mais parte dela. Capítulo XIX Allie estava sentada nos degraus da frente,encolhida numa jaqueta e vendo a noite cair sobre o mundo, quando Earl chegou. Ele desceu do carro e foi sentar ao lado dela. Nenhum deles falou por algum tempo. Allie pegou um punhado de pedrinhas e começou a atirá-las sobre o tapete de folhas mais adiante. A neve estava derretendo, devolvendo à paisagem as características mais habituais do final de setembro. — Tio Earl? — O que é, Macaquinha?
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— Meu pai gostava de mim? Earl sentiu o coração rasgar-se em dois. Virando-se, enlaçou a menina a quem amava como se fosse sua filha, e a fez recostar a cabeça em seu ombro. — Ele amava você, Allie. Mais do que amou qualquer outra pessoa. É a pura verdade. Ela assentiu contra o braço dele, e Earl ficou aliviado em ver que não estava chorando. — Foi o que minha mãe disse. — Ela está certa. Seu pai a adorava. Você foi a melhor coisa que aconteceu na vida dele. — Tudo bem. Allie suspirou profundamente e Earl sentiu-a relaxar um pouco, suavizando-se em seus braços. Abraçou-a e fechou os olhos, incapaz de suportar a súbita onda de emoção que o invadiu. — Sua mãe também a ama muito, Allie. Ela faria qualquer coisa para vê-la feliz. E eu também. Não duvide, nunca, que todos nós a amamos muito. Ela suspirou novamente, aconchegando-se mais contra ele. — Mamãe estava me lembrando de todos os bons momentos que passei com papai. — E foram muitos, não é? Todas aquelas vezes em que acampamos juntos, e quando fomos para Denver, conhecer o novo parque de diversões. — Ganhei de vocês dois no tiro ao alvo. — É verdade. Acho que nunca me senti tão envergonhado. Allie deixou escapar um risinho. — Mas lembra-se de como seu pai ficou orgulhoso de você? Ele tinha orgulho de tudo o que você fazia. Como aquela vez que você pescou um peixe enorme. — Que peixe era aquele? — Não faço a menor idéia. Nunca havia visto um daquele tipo. Mas era um bocado grande para uma garotinha como você. Você quis jogá-lo de volta na água, e nós jogamos. — Você se lembra do leão da montanha que vimos, naquela vez que fomos acampar? Ele se lembrava. Os três estavam escalando alegremente as rochas num belo dia de verão nas montanhas, quando subitamente depararamse com um enorme gato amarelado dormindo numa pedra sob o sol. Imobilizaram-se no mesmo instante, e Bill, bem como ele próprio, empurraram Allie para trás deles. Ela espiara o felino por entre as pernas de ambos. O leão havia acordado, então, e olhara para eles com uma expressão que lembrava desdém, depois se afastara lentamente na direção das árvores. Vários minutos se passaram, enquanto Earl e Bill esperavam que o animal tomasse uma distância segura antes de tornarem a se mover. Allie observara tudo com os olhos arregalados de admiração. Havia muitas outras recordações como aquela, e Earl parecia vêlas brincando nos olhos da menina, quando ela endireitou o corpo e fitouo.
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— Ele não falou de coração. — Não, querida, não falou. Ele só estava zangado. — Mesmo assim, eu sinto muito pela mamãe. Ele a deixou triste de verdade. E nem pretendia se desculpar. — Você não deve se preocupar com isso agora. Acho que, de certa forma, sua mãe sabia o que estava acontecendo, antes mesmo de ele dizer. Normalmente as pessoas sabem. Allie assentiu e olhou na direção do bosque. — É uma pena que eles não fizeram as pazes. — É, sim. — Earl não lhe disse que Bill jamais fizera as pazes com ninguém, após uma briga, em toda sua vida. Allie não precisava saber disso. — Ele era "legal", não é, tio Earl? Meu pai não era uma pessoa má. — Meu Deus, claro que não! Um pouco desligado, às vezes, mas não era má pessoa, nunca. Você se lembra dele o bastante para saber disso. — Às vezes acho difícil me lembrar dele. — O que quer dizer? — Não sei. E como se tudo ficasse meio embaçado. Quando vejo as fotos dele, consigo me lembrar melhor de como ele era. Mas... na maior parte do tempo, lembro-me dele como se fosse uma sensação. — Depois de algum tempo, provavelmente é assim que a maioria das pessoas se sente. — Você acha que papai teria dirigido mais devagar se eu estivesse no carro com ele? O coração de Earl apertou-se. — Não, querida, não acho. E não se culpe por isso. Ele não estava dirigindo assim tão depressa, o problema foi que a estrada estava coberta de gelo. Foi isso que o matou, Allie, não você, nem sua mãe. Nem mesmo o temperamento dele. Foi o gelo. Não que ele realmente acreditasse nisso, mas estava convencido que não faria bem algum a Allie pensar de outra forma. Pouco depois Meg saiu da casa, usando um casaco, e sentou do outro lado de Allie. Nenhum deles falou por um longo tempo, enquanto a luz do dia ia lentamente se esvaindo. Earl podia sentir a tristeza no ar. Não o sofrimento angustiante que estivera pressentindo antes, mas uma tristeza quase doce, como se estivessem se despedindo de algo. Que parecia erguer-se sobre o vale com a noite, e deslizar vagarosamente por entre as árvores até preencher todo o espaço. Ele permitiu que a sensação o envolvesse, perguntando-se o que isso significaria. Principalmente considerando-se que ainda havia alguns buracos para tapar, a julgar pela maneira como Meg o tratara no telefone. Mas não queria preocupar-se com isso agora. Ao contrário, deixou a emoção preenchê-lo, a emoção do adeus percorrendo-o por inteiro. As coisas, boas ou más, iam e vinham em sua vida. E havia vezes, como agora, quando ele parava um pouco e lembrava-se de que o que parecia importante no momento acabaria sendo insignificante depois de um ano. Que, provavelmente, dali a um ano ele estaria preocupando-se com outras coisas, e talvez nem se lembrasse mais daqueles instantes que passara com Meg e Allie ao seu lado. Não se lembraria da sensação de que estava deixando escapar algo importante.
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Às vezes pensar dessa maneira servia para acalmá-lo, quando o pior estava acontecendo. Mas, de alguma forma, naquela noite isso o fez sentir-se ainda mais triste, como se jamais quisesse perder estes momentos. Como se o fato de esquecê-lo pudesse ser a pior das perdas. A porta atrás dele abriu-se e Vivian espiou para fora. — O jantar está pronto. Arrumei um lugar para você, Earl, por isso nem pense em ir embora. Era engraçado, Earl pensou, como ele e Vivian tinham encontrado uma espécie de entendimento. Uma semana atrás, ele acreditava que seriam inimigos até o fim de seus dias. Ficou curioso em saber o que a teria feito mudar de idéia a seu respeito. Depois, perguntou-se que importância teria isso. Meg, ele reparou, nem mesmo olhou em sua direção quando entrou na casa. Mas Allie tomou-lhe a mão, puxando-o para dentro. Bem, disse a si mesmo, duas entre três não era tão mal assim. A ironia de tal pensamento provocoulhe um leve sorriso. Vivian havia assado um peru, e o estômago de Earl começou a roncar no instante em que o viu na mesa. — Peru recheado — ele disse. — Eu morri e fui para o céu, certo? No que se referia a Vivian, ele não poderia ter dito nada mais apropriado. Ela enviou-lhe um sorriso sincero. Os olhos de Meg passaram por ele rapidamente, como se nem mesmo o vissem. Allie parecia incerta com a atitude da mãe, como se tentasse descobrir por que ela mostrava-se tão distante com Earl. Ótimo. Mais um problema para a cabecinha da menina. Earl teve um súbito impulso de sacudir Meg até que seus dentes chocalhassem. Depois daqueles últimos dez dias, não podia acreditar que ela tornasse a fazer algo para aborrecer Allie. A refeição mais parecia um banquete de Ação de Graças, incluindo velas acesas nos castiçais no centro da mesa, e o clima deveria ser de alegria. Em vez disso, estava quase sombrio. Allie tentou conversar sobre seu retorno às aulas no dia seguinte. Vivian e Earl encorajaram-na, mas o assunto logo se esgotou. Earl comentou sobre seu dia de trabalho, chegando eventualmente ao ponto em que se encontrara com o pai de Matt Dawson. O interesse de Allie aguçou-se. — Eu gostaria de visitar Matt — ela disse. Meg falou pela primeira vez. — Iremos amanhã depois da escola, se você quiser. — Talvez ele já tenha saído do hospital a esta hora — Earl avisou. — O médico está prestes a dar-lhe alta. — Mas e quanto ao pai dele? — Allie perguntou. — Se ele machucar Matt outra vez? — O que Matt precisa fazer — Earl falou —, é dizer-me quem faz isso com ele. Se ele ao menos me dissesse, eu o tiraria daquela casa e providenciaria um lar adotivo provisório. Mas, a não ser que ele esteja disposto a falar, não há muito que eu possa fazer, até que outra pessoa disponha-se a servir de testemunha. Até agora, ele continua afirmando que se feriu em brigas com pessoas desconhecidas. Meg falou: — Mas nós removemos crianças pequenas de lares onde não há qualquer evidência, exceto os ferimentos ou ossos fraturados.
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— O caso de Matt é diferente. Ele tem idade suficiente para delatar quem está lhe infringido os abusos, só que se recusa a acusar o pai. Meg balançou a cabeça e baixou os olhos para o prato. Diante dela, as velas acesas vacilavam e formavam desenhos fantasmagóricos. — Isso é tão triste — ela disse. — Vou conversar com ele — Allie anunciou. — Vou falar com ele do mesmo jeito que ele falou comigo. Talvez eu consiga convencê-lo de que está agindo como um idiota. — Sim, mas se eu fosse você não começaria dizendo que ele está sendo idiota. Allie olhou para ele. — Ora, tio Earl, eu sei disso. — Só estava checando. A menina enviou-lhe um sorriso, entre exasperado e brincalhão, que Earl não via nela há muito tempo. Meg captou a troca de olhares e, por um segundo, um leve sorriso brincou em seu próprio rosto. Mas logo sua expressão fechou-se novamente, e Earl viu o reflexo de Vivian no rosto dela. A idéia de que a doce e carinhosa Meg pudesse se transformar numa outra Vivian entristeceu seu coração. E, pela maneira como Vivian olhava para a filha, Earl teve a nítida impressão de que a mulher queria lhe dizer alguma coisa, mas que se continha porque não estava sozinha com Meg. Assim, logo depois do jantar Earl ofereceu-se para lavar os pratos, com a ajuda de Allie. A menina, que ainda estava usando as muletas, encarou-o como se ele estivesse maluco. — Você pode ajudar — ele disse. — Pode ficar sentada numa cadeira conversando comigo, está bem? Vai me ensinando onde guardar as coisas. Vivian pegou Meg pelo braço. — Você vem comigo, mocinha — disse, num tom firme. — Precisamos conversar. Meg parecia prestes a recusar mas, depois de um instante, encolheu os ombros e seguiu a mãe. — Uau! — Allie exclamou. — O que será que a mamãe fez? — Provavelmente nada. Mas este é um jeito danado de bom para se começar uma conversa. Allie riu. — Eu sempre fico nervosa quando alguém me chama de "mocinha". É sempre um sinal de que estou encrencada. Earl assentiu e começou a levar os pratos da mesa para a pia. — Eu sei como é isso. Também detestava ser chamado de "rapazinho". Ou, pior ainda, quando me chamavam pelo nome completo: "Earl Patrick Sanders, venha já aqui!”. — Ah, sim, o nome completo — ela falou, compreensiva. — Alexandra Bethany Williams. É pior do que "mocinha". — Sempre fiquei pensando, será que existe uma escola onde os pais aprendem a fazer isso? Porque todos os pais que eu conheço fazem a mesma coisa. — Os professores chamam a gente de "mocinha" e "rapazinho". Mas quase nunca chamam pelo nome inteiro. — Provavelmente porque nunca se lembrem do nome completo do
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aluno. O que é uma bênção, eu acho, ou a escola inteira teria começado a me chamar de Earl Patrick Sanders. Ela riu e fitou-o com curiosidade. — Você se metia em muitas encrencas? — Digamos que eu encrencava-me mais do que deveria. — Como Matt? — Um pouco pior do que Matt. — Ah... — Allie encarou-o com um misto de admiração e prazer, diante daquela informação. Earl esperava não ter dito exatamente o que não devia dizer para uma jovem tão impressionável. — Bem, mas com o tempo acabei me emendando — falou. — Finalmente descobri que estava apenas tornando as coisas mais difíceis para mim mesmo. A menina assentiu. — Não é nada divertido meter-se em problemas. — Não. Mas algumas pessoas fazem isso para chamar a atenção. Infelizmente, conseguem o tipo errado de atenção. Por isso que eu acabei ficando esperto e me endireitei. Olhe só para mim, agora. — É... O xerife mais bravo do condado. — Bravo? — Ele parou, com um prato na mão. — Eu não sou bravo. Ela riu, e o som fez um bem imenso ao coração dele. Pelo menos Allie ficaria bem, pensou enquanto acabava de lavar os pratos. As crianças tinham uma capacidade incrível de recuperação. Earl não tinha tanta certeza quanto à mãe dela. Vivian levou Meg para o escritório e a fez sentar numa poltrona. O momento a fez lembrar-se claramente das vezes em sua infância quando um de seus pais queria ter uma "palavrinha" com ela. Não gostava da sensação, mas agora não estava com a menor disposição de dizer à sua mãe que fosse amolar outro. As últimas vinte e quatro horas estavam cobrando seu preço e, embora ela não estivesse tão mergulhada dentro de si mesma quanto estivera na noite anterior, ainda escondia-se em algum compartimento seguro em sua mente. Longe dos problemas de Bill e Allie, longe das lembranças do que fizera com Earl. Longe dos temores do que ele poderia estar pensando dela agora. Mas os pensamentos de Vivian mantinham-se num rumo diferente, e ela deixou isso bem claro. — Precisamos conversar sobre estes últimos quinze anos. Meg olhou para ela, sentindo um vago lampejo de surpresa. — Acho pouco provável que consigamos cobrir todo este período em quinze minutos. Vivian apoiou as mãos na cintura e franziu a testa para ela. — Vamos falar sobre nós, sobre mim principalmente, e iremos cobrir o assunto em quinze minutos. Se for apenas por este tempo que você pode me dedicar sua atenção. Meg sentiu uma pontada de vergonha. — Desculpe-me — ela disse, e tentou novamente recolher-se para seu cantinho seguro. Porém, Vivian não iria deixá-la escapar tão fácil. — Eu estava errada — Vivian afirmou. Meg tornou a encará-la, a incredulidade despertando-a novamente.
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— Você? — Sim, eu. Estava errada acerca de uma porção de coisas, e já está na hora de assumir minha parcela de responsabilidade. — Não, mamãe, você não estava errada. Papai teve um ataque cardíaco por minha causa, e eu não estava prestando atenção à Allie. — A voz de Meg vacilou um pouco, mas firmou-se. Ela recusava-se a se entregar novamente à tristeza que persistia em apertar-lhe a garganta. Tristeza pelas suas omissões, pelos seus atos, por não ser uma pessoa melhor. — Você não teve nada a ver com a morte de seu pai — Vivian falou. — Foi mais fácil para mim culpá-la, mas Earl tem razão. O choque que ele sentiu ao vê-la não o teria matado, se ele já não estivesse com um problema grave no coração. Só que foi... foi mais fácil para mim, jogar toda a culpa em você. — Vivian sentou-se subitamente, como se as pernas não conseguissem sustentá-la. — Eu culpo demais os outros, e com muita facilidade, mas está na hora de admitir que algumas coisas simplesmente acontecem. E mais fácil ser uma pessoa zangada e amarga, Meg. E muito mais fácil do que sentir qualquer outra coisa. Foi assim que eu sempre agi. Meg assentiu, surpresa ao perceber que a mãe mostrava-se tão sincera e perceptiva. Perguntando-se o que teria provocado tal transformação. — O que você me contou sobre Bill... sobre ele tê-la obrigado a... Bem, isso me fez pensar muito. Você deveria ter-me contado tudo na época, minha filha. Passei dias e dias me consumindo, perguntando-me por que, se isso era verdade, você não me contou quando aconteceu. E, finalmente, descobri a resposta. Você sabia que eu ficaria zangada, não importava o que dissesse. Meg assentiu, reparando que os olhos da mãe estavam úmidos, e sentiu uma pontada aguda emergindo de dentro de si, algo muito próximo de uma vingança odiosa. Vivian suspirou e tirou um lenço do bolso do avental. — Acho que isso significa que não fui uma boa mãe. Você estava machucada, ferida por dentro, e sabia que eu me zangaria com você. — Vivian balançou a cabeça. Alguma coisa rompeu-se dentro de Meg, e um fluxo de afeição por sua mãe começou a fluir e a percorrê-la. Era a primeira vez que sentia uma afeição genuína por aquela mulher, em quinze anos. — Você nem sempre foi assim, mamãe. Nem sempre. — Mas não fui boa o bastante para você — Vivian repetiu, obstinada. — Você deveria ser capaz de procurar-me, quando estava ferida. Mas não pôde. E eu ataquei-a por coisas que não eram sua culpa. Talvez algumas vezes fiz o que era certo, mas calculo que não tenham sido muitas. Por isso, agora... preciso tentar consertar o que fiz de errado. Deus sabe que esta é a minha obrigação como cristã. — Consertar o quê? — Preciso lhe dizer que você não matou seu pai. E que, se eu soubesse que Bill a violentara, jamais teria permitido que você se casasse com aquele canalha. Teria mantido você em casa, a ajudaria a criar Allie. E, francamente, não sei como conseguiu ficar casada com ele durante quinze anos. Ele sempre a tratou como se você não valesse nada.
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— Nem sempre, mamãe. — Meg prendeu o fôlego para impedir que a dor se espalhasse pelo seu peito. — Como você poderia saber? Depois da maneira como eu a tratava... bem, eu a preparei para aquele homem. Provavelmente fiz com que ele parecesse bom aos seus olhos. Reconheço que ele foi um bom pai, e era um homem trabalhador, mas nunca foi um bom marido. Sempre achei que, para ele, você era uma espécie de troféu, que podia exibir e depois guardar na prateleira. Tais palavras descreviam exatamente como Meg passara a se sentir no decorrer do seu casamento, e que nunca tivera coragem de dizer. Ela fechou os olhos contra a dor que ameaçava derrotá-la. Todos aqueles anos... tantos anos. Havia negado a si mesma, encontrado desculpas pelo fato de Bill ter sido forçado a casar-se por causa de Allie. Dizia a si mesma que ele realmente a amava, pois do contrário já a teria abandonado. Iludira-se completamente, ao acreditar que tinha um casamento perfeito. Mas agora... agora via como tudo fora na verdade. Um castelo de cartas que ela criara para si mesma, uma ilusão na qual insistira. Bill sempre estivera presente para Allie, mas nunca para ela. Se Allie não tivesse se transformado numa surpresa maravilhosa, para a qual nem mesmo Bill estava preparado, ele a teria deixado bem antes. E, finalmente, nem mesmo a menina fora o suficiente para que ele ficasse. Fossem lá quais fossem os desejos ocultos de Bill, Meg sabia que não estava incluída entre eles. E, no final, tivera de admitir que Bill jamais fora o que ela própria desejava. Não que tivesse sido ruim. Apenas não fora maravilhoso. Nem mesmo ótimo. Dizia a si mesma que este era o rumo normal da paixão, que ardia por uns poucos meses e depois se assentava. Mas ela nunca se sentira essencial para Bill. E, com uma sinceridade brutal, agora admitia que ele tampouco fora essencial para ela. Tudo havia sido uma mentira, uma falsidade. — Desculpe-me — Vivian falou. — Não pretendia ser tão sincera, ao falar sobre seu casamento. Sei que você o amava. — Será? Não consigo me lembrar... — Era quase uma súplica. — Você o amava, sim — Vivian falou. — Eu via a maneira como você se iluminava, quando ele aparecia. Você o amava. É uma pena que ele nunca mereceu, mas você o amava. Bill era um homem vazio, Meg, superficial. Eu sempre soube disso, mas ele era quem você queria, portanto mantive minha boca fechada. E provável que, na primeira vez em que fiquei em silêncio, era justamente quando deveria ter falado. Mesmo através da dor, Meg sentiu um sorriso surgir em seus lábios. — Está tudo bem, mamãe — ouviu-se dizendo. — Este foi um erro que tive de cometer por mim mesma. — Pode ser. — Vivian balançou a cabeça. — Em parte foi por isso que fiquei de boca fechada. Quando uma mulher tem aquele brilho nos olhos, jamais dará ouvidos à razão. Mas, voltando aos meus erros... — Mamãe, não precisa fazer isso. Está tudo bem. Subitamente, Meg achou impossível suportar a idéia de ver a mãe humilhar-se. E, por mais que já tivesse ficado furiosa com a mãe, apesar das muitas críticas que poderia ter oferecido, ela confiava que sua mãe sempre agira com honestidade, estivesse certa ou errada.
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— Não — Vivian falou com firmeza. — Preciso desabafar com você, Meg, pelo bem da minha alma. E você precisa ouvir, para não passar o resto da vida pensando que me desapontou e me magoou. A verdade é que tenho sido dura e áspera demais. Minha desculpa sempre foi a maneira como fui criada. Mas, então, vejo como você é diferente com Allie, e percebo que deveria ter aprendido melhor as lições da minha infância. O que me fez sofrer, quando criança, certamente a fez sofrer também. Eu deveria ter sido uma pessoa melhor do que a minha mãe. Aquilo era algo tão triste para se dizer, Meg pensou. E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu um impulso de aproximar-se dela e tocá-la. — Nós podemos melhorar tudo, a partir de agora — disse. — Talvez. — De repente, Vivian parecia muito velha e cansada. — Meg, eu tenho sessenta e quatro anos. Não sei se conseguirei mudar meus hábitos, a esta altura da vida. Mas vou tentar. E isso me leva a outro ponto. — O quê? — O que eu ficava dizendo sobre você deixar Allie solta demais. Você cria a sua filha com mais liberdade do que foi criada, mas não vejo nenhum dano que isto possa estar causando. Exceto por este mau pedaço por que passamos, ela me parece uma criança saudável, feliz e inteligente, e tem um ótimo coração. Por isso, você não pode estar assim tão errada no que está fazendo. Devia ser muito difícil para Vivian estar admitindo isso, e o coração de Meg aqueceu-se. — Obrigada, mamãe. Eu estava me sentindo péssima com toda esta história. Preferia morrer a dizer qualquer coisa que pudesse magoar Allie. — Você não sabia que ela estava escutando. As pessoas falam qualquer coisa, quando estão com raiva. Deus sabe que eu falo. Mas acho que a Allie está começando a compreender isso. — Espero que sim. Meg pensou em Allie na cozinha com Earl. Mesmo ali, com a porta fechada, podia ouvir o riso da menina. Sim, ela estava sentindo-se melhor. Com a ajuda de Deus, Allie continuaria rindo. — Mais uma coisa — Vivian falou. — Depois a deixarei em paz. Meg, se você encontrar uma chance para ser feliz, agarre-a com as duas mãos. Não permita que o que aconteceu entre você e Bill a faça pensar que não merece ser feliz. Porque você merece, e já está mais do que na hora de ser. Isso dito, Vivian saiu e deixou-a a sós com suas lembranças, seus medos, e até mesmo com um frágil lampejo de algumas esperanças que enterrara há tanto tempo que mal se lembrava delas. Meg sempre aceitara as coisas do jeito que eram. E ainda estava aceitando. Passara muito tempo dizendo a si mesma que esta era uma atitude madura. "Nada é perfeito, e precisamos nos conformar com aquilo que possuímos. O segredo da felicidade é ser feliz com o que se tem." Todos esses velhos aforismos lhe ocorreram, todos os ditados que a guiaram através de grande parte de sua vida adulta. Mas, agora, Meg perguntava-se se seriam mesmo citações sábias, ou meramente úteis. Parecia-lhe agora que aceitar o que tinha simplesmente a deixara num
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estado apático, vivendo de um dia para outro com poucas esperanças e ainda menos sonhos. Talvez não fosse o suficiente ser feliz com o que se tinha. Talvez os seres humanos precisassem de sonhos, de aspirações. Do contrário, por que não simplesmente sentar diante da tevê e deixar o tempo passar? Era isso que ela estivera fazendo, percebeu. Depois dos primeiros anos de casamento, quando se dera conta de que Bill jamais a amaria da maneira como ela queria ser amada, que todos os seus sonhos haviam sido versões modificadas dos romances que lia, ou das séries da televisão, sonhos que nunca seriam realizados, desistira. Começara a aceitar. Acomodara-se. Dizia a si mesma que era feliz. Mas nunca fora realmente feliz. Tantas partes de seu ser jamais tinham sido preenchidas, satisfeitas. E Allie passara a ser sua razão de viver, a única coisa que lhe trazia alegria diariamente. Além disso, estivera vivendo numa paisagem emocional completamente árida. Mesmo o último ano havia sido um deserto. Não por causa do luto e da dor, mas porque ela não quisera encarar o quão pouco realmente perdera. A ausência de Bill em sua vida não fora tão devastadora quanto ela poderia esperar. Tivera de assimilar uma culpa terrível devido à discussão que antecedera ao acidente, mas não precisara assimilar nenhum sofrimento insuportável. Ficara triste, naturalmente. Sentia saudade dele. Não queria que ele morresse, mas a morte de Bill não destroçara seu coração. Simplesmente a deixara mais vazia do que sempre fora. Era doloroso admitir tudo isso. Doloroso dar-se conta de que vivera quinze anos num estado de alienação inacreditável, fazendo tudo apenas porque era isso que se esperava dela. Não porque a satisfizesse, ou a deixasse feliz. Exceto por Allie. Sempre exceto por Allie. Todo amor que ela possuía dentro de si era dirigido para sua filha. Meg perguntou-se se Allie percebia isso. Talvez uma parte dos problemas da menina, no decorrer daquele ano, tivesse sido pressentir que era a única coisa realmente importante na vida de sua mãe. Era uma carga terrível para uma criança carregar. Não era de admirar que Allie passasse a esconder-se cada vez mais em seu quarto e nos chats da Internet. Ela precisava de seu próprio espaço. Não queria sentir que sua mãe dependia dela para conversar ou divertir-se. Mas talvez fosse assim que ela se sentia. Meg distanciara-se de todas as suas amizades, depois da morte de Bill, principalmente, ela admitia agora, porque se culpava por não estar sentindo o tipo de tristeza que seus amigos esperavam que ela sentisse. Porque fingir que estava sofrendo a deixava exausta. Bem, estava na hora de sacudir a poeira e restabelecer suas amizades. Hora de reconstruir sua vida. Meg estava imersa nesses pensamentos quando Allie entrou mancando na sala e sentou de frente para ela. — Você está bem, mamãe? — perguntou. — Vovó e eu estávamos passando a limpo algumas coisas. Estou bem, agora. Muito melhor. — Que bom. Eu estava preocupada com você.
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Meg sentiu um aperto no peito. Allie não deveria estar preocupando-se com ela, não naquela idade. — Querida, eu vou ficar bem. Já estou bem. Às vezes fico um tanto confusa com as coisas que acontecem, mas não é nada demais. Desculpe por tê-la assustado. Allie encolheu os ombros. — Então estamos quites. Eu também lhe dei um susto danado, não foi? — Isso é verdade. Allie assentiu. — Acho que tem sido difícil para nós duas. Eu pensei que o papai não me amava. E você sabe que ele não a amava. Teria sido tão bom se tivéssemos uma chance de conversar, antes que ele morresse. — Imagino que as pessoas se sintam assim, sempre que alguém morre. — Pode ser. — Allie suspirou e recostou na cadeira. Meg, levada por um incontrolável impulso de amor e carinho, levantou-se e foi sentar-se no braço da poltrona dela, onde poderia acariciar-lhe os cabelos e oferecer-lhe conforto. — Não fui uma mãe muito boa nestes últimos meses — disse. — Estava absorvida demais comigo mesma. — Nós todas não estivemos? — Allie perguntou, com um sarcasmo adolescente. — Nós todas ficamos agindo como umas malucas. Tínhamos coisas demais com que lidar. — E você acha que já lidamos com tudo? Allie deu de ombros. — Um pouco, talvez. Meg percebeu que aquela era a conversa mais adulta que já haviam tido, e descobriu-se desfrutando o momento intensamente, ao mesmo tempo em que admirava-se ao ver o quanto Allie amadurecera naquele último ano. — Você está se sentindo melhor em relação ao seu pai? — Acho que sim. Você e tio Earl acreditam que ele me amava de verdade. Vocês devem saber. Movida pela preocupação, Meg deslizou do braço da poltrona para o chão, encarando a filha. — Quero que você saiba, Allie. Seja lá o que aconteceu de errado nesta casa, e por mais erros que seu pai e eu cometemos, ao menos uma coisa nós fizemos certo. Nós dois amamos você mais do que qualquer coisa em nossas vidas. Allie assentiu, e parecia que seus olhos já não estavam mais tão assustados como estiveram naqueles últimos meses. — Acredito em você, mamãe. Acredito mesmo. Não estou mais preocupada com isso. Fiquei pensando que é bobagem deixar que algumas coisas que papai disse num momento de raiva estraguem tudo o que sempre tivemos. — E quanto a não estar com ele no carro? Ainda pensa nisso? Allie desviou os olhos por um instante. Quando tornou a fitar a mãe, sua expressão estava triste. — Um pouco. Uma parte de mim acha que é muito errado eu estar aqui me divertindo, saindo com meus amigos e tudo o mais, quando ele está morto. Mas, quando penso bem, acho que uma grande tolice. Eu não
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morri. Isso significa que tenho o direito de viver. — Esta é uma observação muito madura, Allie — Meg falou. — E muito comum que as pessoas sintam-se culpadas por estarem vivas depois que perdem um ente querido. — Você se sente assim? — Às vezes. Eu me senti assim quando meu pai morreu. E um pouco, também, quando Bill morreu. Exceto que, agora que tenho você, tenho também um bom motivo para viver. Não que eu tenha tido muito sucesso nisso. — Não foi tão mau assim. — Allie sorriu. — Foi um ano difícil, não é? Vou conversar com a psicóloga da escola amanhã, e ela vai me ajudar a solucionar tudo isso. Mas e quanto a você, mamãe? Quem vai ajudá-la? — Sabe de uma coisa? Estou me sentindo muito melhor, depois desta última semana. — Por quê? Pensei que estivesse morta de preocupação por minha causa. — E eu estava, querida. Mas você também me fez encarar uma porção de coisas. O fato de deixarmos tudo às claras fez com que eu me sentisse bem melhor. Exceto em relação à Earl, ela pensou. A noite anterior ainda queimava em sua lembrança, juntamente com a vergonha e a humilhação. Mas Earl já havia ido embora, quando ela e Allie saíram do escritório, e depois que a menina foi deitar-se Meg viu-se sozinha na casa vazia e silenciosa. E sentiu que seu coração parecia ter sido invadido pela neve. Capítulo XX Meg saiu do trabalho mais cedo, no dia seguinte, a fim de buscar Allie na escola e levá-la para visitar Matt Dawson no hospital. Matt deveria ter alta na manhã seguinte, mas por enquanto continuava na cama e sob efeito dos analgésicos. Meg conversou com ele por alguns minutos, mas ao perceber que o rapaz não se sentia à vontade com sua presença, pediu licença e deixou-o a sós com Allie. Encontrou uma poltrona vaga na sala de espera, onde poderia esperar confortavelmente e tentar ler uma revista. Mas só conseguia pensar em Earl. Ele havia ligado no dia anterior, mas ela estava tão envergonhada que praticamente engasgara quando tentara falar. A noite, ele fora ver Allie e mal falara com ela. Mas, também, ela tampouco falara com ele. Desde então, ele não tornara a procurá-la. Não que isso fosse incomum. Às vezes passavam até uma semana sem se encontrar. Mas isso foi quando eram apenas amigos. Já não eram mais somente amigos. Algo muito forte acontecera entre eles, e Meg sabia que não seria capaz de retomar a amizade como antes. Porém, ocorreu-lhe que, ao mesmo tempo, não sabia que mudanças poderia esperar. Ou queria que alguma coisa mudasse.E, talvez, esta fosse a raiz de todos os seus problemas.
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Allie tinha um plano, e pressentiu que Matt sabia disso. Ele tentava não olhar para ela, e ficava resmungando sobre como não agüentava mais ficar naquele lugar e como estava enjoado de ter gente à sua volta o tempo todo. Allie ignorou os palavrões, calculando que ele estava apenas tentando chocá-la, e recusou-se a ser dispensada. — O que você vai fazer? — ela perguntou. — Já lhe disse o que vou fazer. Vou dar o fora deste hospital o mais depressa que puder. — Estou perguntando o que você vai fazer a respeito do seu pai. — Nada. Não tenho nada para fazer com ele. Allie suspirou e deu a volta pela cama, de forma que pudesse encará-lo de frente. Quase esperava que ele desviasse o rosto novamente, mas ele não o fez. — Lembra-se de quando estávamos lá na montanha? — ela indagou. — O que tem isso? — Você disse que não se mataria porque não queria dar tal satisfação a ninguém. — E daí? — Bem, você me convenceu a desistir de me matar. — Ótimo. Matt não parecia encantado com isso, mas Allie percebeu algo diferente nos olhos dele. Como se fosse realmente importante. Isso lhe deu coragem de enfrentá-lo e, pousando as mãos na cintura, disse com firmeza: — Então você mentiu para mim. — Nunca menti para você. — Mentiu, sim, Matt Dawson. Você disse que não se mataria para não dar o gostinho a ninguém. — Mas não vou me matar! — Pois eu não sei como se chama isso que você está fazendo. As surras que seu pai lhe dá estão ficando cada vez piores. O que acha que vai acontecer, quando você sair daqui? Principalmente depois que o tio Earl impediu que seu pai entrasse no quarto para vê-lo? Por alguns instantes Matt pareceu tomado por uma violenta onda de raiva, e Allie teve de resistir ao impulso de se afastar. — Pare com isso! — ele gritou, furioso. — Não, eu não vou parar. Você está cometendo suicídio, Matt. Desta vez ele o mandou para o hospital, na próxima você poderá ir direto para o necrotério. E de que vai adiantar tudo isso? Seu pai irá para a cadeia pelo resto da vida, você estará morto, e sua mãe... — Deixe minha mãe de fora desta história. — Não. Por quê, Matt? Ela deveria estar protegendo você. Se o seu pai for preso por matá-lo, provavelmente ela também será. — Ela não tem nada a ver com isso. — Tem, sim. — Saia daqui! Me deixe em paz! — Não. Matt fechou os olhos e virou o rosto, tentando desligar-se. Mas Allie já fora longe demais, e não iria desistir agora. Puxou uma cadeira para
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perto da cama e sentou, esperando. Após um longo tempo ele pareceu acalmar-se, mas não olhou para ela. — Diga-me apenas uma coisa, Matt — Allie falou finalmente. — Por que deixa que ele faça isso com você? Matt demorou um pouco para olhá-la, mas, quando o fez, sua expressão era de dor e medo. — Para que ele não faça com minha mãe. Allie prendeu o fôlego e sentiu o coração disparar. Nem podia imaginar uma situação como aquela, tão assustadora e trágica. Talvez as coisas que seu pai dissera à sua mãe não fossem tão ruins, no fim das contas. Não sabia por que, mas a idéia de que Matt era surrado pelo pai não a deixava tão chocada quanto pensar que ele apanhava para proteger a mãe. E, pior ainda, ela não entendia porque Matt subitamente parecia tão envergonhado, como se ele tivesse feito algo errado. Ele não tinha nada de que se desculpar. No entanto, havia algo que ela compreendia. — Seu pai não vai bater em mais ninguém se estiver na cadeia, Matt. Se você disser ao xerife Sanders que foi ele quem o espancou desse jeito, ele vai ficar preso por muito tempo. — Ela esperava que fosse verdade. Não fazia idéia de quanto tempo alguém ficava preso por bater numa pessoa, mas deveria ser bastante, ou, pelo menos, o suficiente para que Matt se recuperasse. — Sua mãe também vai ficar a salvo, Matt. — Ele não vai fazer nada. — Quem? O xerife? Ele vai, sim. Você não imagina o quanto ele quer colocar seu pai na cadeia, pelo que tem feito com você. Matt não respondeu. Mas tornou a fechar os olhos. — Diga a verdade para ele, Matt. Conte tudo. Assim, quando você sair daqui amanhã, seu pai não estará esperando para rachar-lhe a cabeça com um taco de beisebol. Ele não vai poder tocar um dedo em você. Matt encolheu os ombros, como se tentasse fugir do que ela dizia, e o movimento provocou-lhe uma careta de dor. — Olhe só para você! — Allie exclamou, desesperada. — Olhe só, Matt! Ninguém tem o direito de fazer isso, ninguém! Ele tem de ser preso! Seguiu-se um silêncio tão prolongado que Allie imaginou ouvir o próprio coração se dilacerando. Matt a ajudara quando ela precisava, e não podia suportar a idéia de não ser capaz de ajudá-lo. Principalmente levando-se em conta o tanto que gostava dele. — Matt? — Havia um misto de impaciência e desespero na voz dela, enquanto uma lágrima corria pelo seu rosto. — Matt, por favor. Ele abriu os olhos e, ao ver a lágrima que ela derramava, algo em sua expressão se modificou. Fitou-a por um instante e disse: — Está bem. Vou falar com o xerife. Allie não esperou que ele mudasse de idéia. Levantou da cadeira e bateu palmas de alívio. — Vou pedir para minha mãe chamá-lo agora mesmo. — Allie, espere... — Não, não vou esperar, e você não vai mudar de idéia. Vou chamar o tio Earl imediatamente. — Allie abaixou-se e pousou um tímido beijo no rosto dele. — Tudo ficará bem agora. Ninguém irá machucá-lo de novo, Matt.
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Pegou as muletas e saiu claudicando do quarto, à procura da mãe. Meg ergueu os olhos preocupada, ao ver a filha chegando. Deixou a revista de lado e levantou-se num salto. — Allie, o que aconteceu? Você está chorando... — Está tudo bem, mamãe. Escute, você precisa ligar para o tio Earl agora mesmo. Matt vai contar quem o espancou. E, mamãe... — Sim? — Mamãe, eu adoro você. Equilibrando-se numa perna, Allie circundou os braços em volta de Meg, abraçando-a com tanta força que ela mal conseguia respirar. Ah, mas foi tão bom... — Eu também adoro você, minha querida. Allie sorriu. — Tudo vai ficar bem, mamãe, eu prometo. Ligue para o tio Earl, enquanto faço companhia a Matt. Não quero que ele mude de idéia. Meg viu a filha afastar-se no corredor, mancando na direção do quarto de Matt, e sentiu como se um furacão tivesse acabado de passar em sua vida, varrendo para longe todas as teias de aranha, as poeiras de tristeza de um ano inteiro. Mamãe, eu adoro você. Tudo vai ficar bem. E, por algum motivo, Meg acreditava nisso. Pegando a bolsa, foi ligar para Earl. O telefonema de Meg fez com que o coração de Earl se animasse. Talvez ela o tivesse perdoado por ter ido embora tão cedo no dia anterior. Mas, assim que ela começou a falar, toda sua animação desapareceu. Até que se deu conta de que estava sendo um tolo, pois o que ela dizia era uma das melhores notícias que ele já tivera nos últimos tempos. — Matt quer falar comigo? — ele repetiu, esperando não ter entendido errado. — Isso mesmo. Allie disse-me que ele quer lhe contar quem é que o tem espancado. — Estarei aí num instante. A caminho da porta Earl encontrou Sam, que acabava de chegar, e pegou-o pelo braço. — Venha comigo. Vou precisar de uma testemunha. Sam o seguiu sem retrucar. Algo acontecera com o tempo, desde a hora do almoço. No instante em que Earl pisou para fora o ar frio atingiu-o como um soco. — Diabos! — ele disse, fechando o zíper do casaco. — Quem foi que abriu a porta do Pólo Norte? — Está frio, não é? Se quer saber, teremos um inverno daqueles este ano. Posso até ver a quantidade de neve que vai cair. — Se continuar assim, estará frio demais para nevar. Mas Earl sabia que estava exagerando. No entanto, uma coisa era certa: aquele frio estava completamente fora de época. — Então, o que aconteceu? — Sam perguntou finalmente, depois que entraram no carro e afastaram-se da delegacia. — Meg ligou do hospital. Parece que Matt Dawson está pronto para acusar quem anda espancando-o. — Até que enfim. Já estava mais do que na hora. — Só espero que ele não mude de idéia antes de chegarmos lá. E é por isso que quero que você me acompanhe. Se nós dois ouvirmos o que
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tem a dizer, será mais difícil para ele voltar atrás, depois. — Acha que ele faria isso? Isto é, há tempos que ele recusa-se a falar. Se decidiu contar tudo agora, deve ter pensado bastante. — Ou não. Mas sei que preciso tirar Ben Dawson de circulação antes que o garoto saia do hospital. — Isso não vai ser difícil. Eu o vi entrando no bar cinco minutos atrás. Provavelmente vai demorar-se por ali, pois a mulher dele recebeu o pagamento da loja onde trabalha. — É, pode ser. — Pois aposto que ele vai ficar bebendo por umas duas horas. Pararam no estacionamento do hospital, e Earl demorou-se um instante para admirar a vista. O hospital localizava-se numa colina e, de onde estavam, era possível avistar a maior parte do vale e as colinas menores que rodeavam a cidade de Whisper Creek. Sob a luz da tarde, tudo parecia tingido de dourado. E muito frio, ele pensou sentindo o vento penetrar pela gola do casaco. Só então se deu conta de que havia parado ali porque estava relutante em encontrar-se com Meg. Que estupidez. Entrou no hospital com passos largos, com Sam ao seu lado, ignorando os olhares das pessoas que se perguntavam o que os dois policiais estariam fazendo ali. Nem se incomodou em esclarecê-los. Viu Meg primeiro. Ela estava sentada na sala de espera e levantouse assim que o avistou. — Allie ainda está no quarto de Matt — ela disse quase num tom de desculpas, como se esperasse que ele ficasse zangado por encontrá-la ali. — Ela está com medo que ele mude de idéia. — Tudo bem. Foi por isso que corremos para cá, e porque Sam veio também. Assim ficará mais difícil para Matt mudar de idéia, mais tarde. Meg assentiu. Earl teve de controlar o impulso totalmente impróprio de tomá-la em seus braços e perguntar se ela iria mantê-lo naquela miséria pelo resto de seus dias. Perguntar se ela estava bem. Se havia algo que ele pudesse fazer para tornar sua vida melhor. Diabos, ele estava enlouquecendo. Seus pensamentos não seguiam nenhum padrão lógico. Obrigou-se a afastar os olhos dos dela. — Vamos, Sam. Por mais incrível que parecesse, deixar Meg naquela sala de estar foi uma das coisas mais difíceis que ele já teve de fazer. E era também um sinal de que estava perdendo o juízo. Matt pareceu desanimado ao vê-los entrar no quarto, mas o rosto de Allie iluminou-se de alegria. — Tio Earl! — ela cumprimentou-o com um abraço caloroso. Earl pensou em pedir para que ela esperasse lá fora, mas decidiu que o rapaz teria menos probabilidades de retirar o que diria se Allie estivesse presente. — Como está se sentindo, Matt? — ele perguntou. — Bem. — Parece que lutou nove rounds com o Mike Tyson, garoto. Deve estar todo dolorido. Matt encolheu os ombros. Earl disfarçou um suspiro e esperou que Sam apoiasse seu bloco de
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anotações na mesinha-de-cabeceira e pegasse uma caneta. — Muito bem — começou. — A mãe de Allie me disse que você quer fazer uma declaração sobre quem o surrou. Os olhos de Matt voltaram-se para Allie, como se ele estivesse reconsiderando. Ela adiantou-se. — Conte tudo a ele, Matt. Ninguém poderá ajudá-lo se você não falar. De qualquer forma, ele já sabe de tudo. Só precisa de uma testemunha, não é, tio Earl? — É verdade. Você não estará dizendo nada que eu já não saiba. Preciso apenas que você fale. — E o que vai acontecer, depois? — Eu vou buscar seu pai e o tranco numa cela. E, se depender de mim, ele não verá a luz do dia novamente até que você esteja adulto e fora do alcance dele. — E quanto à minha mãe? — Nada vai acontecer com sua mãe. Mas, se ela tiver um tantinho de juízo, deveria mudar-se daqui antes que seu pai saia da cadeia. Matt assentiu devagar, e olhou para Allie. — Você só precisa contar a verdade — ela falou. Earl ficou emocionado ao ouvi-la, pois isso era algo que ele próprio lhe dissera muitas vezes, no decorrer dos anos. Você só precisa dizer a verdade. Talvez estivesse na hora de ele começar a praticar o que pregava. Matt respirou fundo e assentiu brevemente. — Está bem — disse. — Está bem. O meu pai me bate. Quando ele bebe fica com raiva de tudo, e quer bater em alguém. E eu estou sempre por perto. Acho que sempre lhe dou um motivo para isso. Como quando passei a noite na montanha, junto com Allie. Ele ficou muito zangado por eu não estar em casa. — Não há nada que justifique o que ele faz com você. — Earl olhou de relance para Sam, que escrevia rapidamente no formulário. — Quantas vezes ele o espancou? Matt balançou a cabeça. — Não sei. Muitas vezes, desde que eu tinha uns doze anos. — Uma vez por semana? — Acho que sim. É, mais ou menos. Quase sempre quando mamãe recebe o pagamento da loja. Às vezes não é tão ruim. — Desta vez foi a pior? — Aquilo era óbvio, mas Earl queria que o rapaz falasse, que lhes desse o máximo possível de informações. — Esta foi a primeira vez que ele me bateu com um taco de beisebol. Normalmente ele me dá socos. — Você revida? Matt tornou a negar e, de repente, parecia mais uma criança de nove anos do que um adolescente de dezesseis. — De que adiantaria? — perguntou. — Só iria deixá-lo ainda mais zangado. — E por que você não foge? — Não. — Matt desviou os olhos e engoliu em seco. — Se eu não estiver ali, ele bate em minha mãe. Earl interrogou-o por mais algum tempo, arrancando os detalhes que poderiam ser confirmados por outras pessoas, pessoas que se
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lembravam dos ferimentos do rapaz e que serviriam como testemunhas. Quase uma hora depois, achou que obtivera o bastante. — É isso, Matt. — Ele inclinou-se e tocou-lhe o ombro. — Há boas chances de seu pai declarar-se culpado e que você nem precise testemunhar contra ele. E, amanhã, quando você sair daqui... Matt assentiu e olhou para o xerife, em expectativa. — Vai para minha casa, está bem? Pela primeira vez, em dias, Matt sorriu. Earl teve a sensação incômoda de ter sido transformado numa espécie de herói para o garoto. Bem, isso logo passaria, depois que Matt fosse morar com ele. Passando o braço pelos ombros de Allie, Earl levou-a para onde Meg estava. Sam, com uma perspicácia muito bem sintonizada, que Earl sempre admirara, ficou para trás. — Você deve orgulhar-se de Allie, Meg — Earl falou. — Ela convenceu Matt a nos contar o que estava acontecendo. — Eu tenho muito orgulho dela — Meg falou com carinho,evitando o olhar dele e voltando-se para a filha. — Sempre tive. — Allie retribuiu seu sorriso, e ela perguntou: — E agora, o que vai acontecer com Matt? — O tio Earl vai levá-lo para a casa dele. Agora, finalmente, Meg o encarou. — Vai mesmo? Earl não soube dizer se ela estava impressionada ou em dúvida. Esperava que fosse o primeiro. — É claro que sim. O garoto não pode ser deixado na mão de estranhos, neste momento. Meg assentiu. — Você é um bom sujeito, Earl Sanders. Ele sentiu o coração aquecer-se, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, Meg já se voltava para Allie. — Precisamos ir para casa, querida. Está na hora do jantar. Allie não tinha os mesmos escrúpulos que a mãe. — Você vem também, tio Earl? Por favor? Houve um tempo em que ele nem pensaria duas vezes. Mas agora hesitou, olhando para Meg. Se ela não quisesse... — Sim — ela disse, olhando rapidamente na direção dele. — Venha também, Earl. Sei que Vivian está fazendo um belo espaguete à marinara. — Isso eu não posso recusar — ele disse, quando o que realmente queria dizer era que jamais recusaria a chance de passar mais tempo com elas. — Mas, primeiro, tenho de efetuar uma prisão. Uma prisão que lhe daria imenso prazer. Earl e Sam não tiveram muita dificuldade em encontrar Dawson. Ele ainda estava no bar onde Sam o vira entrando, bebendo um copo atrás do outro. Seus olhos estavam vermelhos e desfocados e, por mais estranho que fosse, não armou nenhuma confusão. Earl até havia esperado uma briga, pois não importaria-se de ter uma boa desculpa para desfechar um ou dois socos naquele cretino. Mas, talvez Dawson tivesse pressentido isso. Qualquer que fosse o motivo, não disse nem uma palavra enquanto eles o algemavam e transportaram-no para a delegacia, onde seria fichado. Nem mesmo resmungou quaisquer ameaças.
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Depois que deixaram Dawson trancado na cela, Earl e Sam saíram da delegacia. Sam estava pronto para iniciar a patrulha e Earl planejava passar pela casa dos Williams e lidar com o último problema remanescente em sua vida: Meg. — Diabos — Sam falou. — Fiquei desapontado. Tinha certeza de que aquele velho bastardo iria armar a maior confusão. Esperava poder acusá-lo por agressão e desacato a autoridade. Apesar de tudo, Earl sorriu. — É, eu também. Mas acho que foi melhor assim. Talvez eu não tivesse conseguido me conter, se ele me provocasse. — Tem razão. — Sam enfiou as mãos nos bolsos do casaco e olhou para o céu que escurecia. — Vem aí mais neve, posso sentir nos meus ossos. Vai nevar antes do amanhecer. Vejo você amanhã, Earl. — Até amanhã, Sam. Separaram-se na calçada, cada um para o seu carro. Earl viu Sam afastar-se na direção sul da cidade, depois entrou no carro e ligou o motor. Porém, em vez de sair imediatamente, ficou parado ali pensando se iria resolver seus problemas com Meg naquela noite. Conseguiria penetrar na barreira invisível que ela erguera em torno de si? Chegar ao âmago do que tanto a incomodava? Fazer com que ela o perdoasse? Mas, talvez a pergunta mais importante fosse: o que ele esperava obter? Era uma pergunta que raramente se fazia, pois na maior parte de sua vida Earl sentia que não merecia grande coisa. Ah, sim, ele trabalhava e merecia ganhar, a isso tinha todo direito. Mas jamais almejara ser promovido ou condecorado, por exemplo. Nem mesmo achava que merecia a promoção, quando ganhara o cargo de xerife. Earl aprendera, desde muito cedo, o desapontamento de desejar mais do que poderia ter. E, embora fosse sempre o primeiro a encorajar as pessoas a perseguirem seus sonhos, ele próprio era bastante conservador em tais questões. Geralmente adaptava seus objetivos e desejos para ajustarem-se ao que sentia-se capaz de fazer. O que, agora que pensava bem, o transformava num belo covarde. Ele teria rido de tal pensamento, exceto que, por algum motivo, seu coração começava a bater de maneira desconfortável. Estava prestes a comprometer-se com algo que poderia ter um resultado desastroso, e este não era o seu estilo. Pensou em Meg e apanhou-se acomodando seus desejos à sua percepção do que seria possível. Entender-se com ela, explicar-se, retornar à amizade descomplicada. Ao menos isso lhe asseguraria de que sempre continuariam amigos. Tinha certeza de que conseguiriam superar o que acontecera naquela noite, principalmente considerando-se que nenhum deles parecia muito disposto a lembrar. Meg ficaria encantada em agir como se nada tivesse acontecido. Mas era isso que ele realmente queria? Earl fez-se esta pergunta com muita cautela e nervosismo, pois não sabia se de fato queria ouvir a resposta. Não estava acostumado a analisar o que aconteceria com seus desejos se não houvesse obstáculos para impedir que os realizasse. Levara a vida inteira aprendendo a ansiar apenas pelo que fosse razoável e possível. Mas aquilo era importante demais. Earl sentia em seu coração e em sua alma. Precisava saber o que poderia almejar se nada se colocasse em
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seu caminho. Porque, desta vez, ele sabia que não se contentaria com meias medidas. Portanto, encarou o problema de frente. E perguntou-se: "Se eu pudesse ter qualquer coisa que quisesse, qualquer coisa, o que seria?" A resposta veio em silêncio, uma ansiedade faminta em seu peito. Ele analisou-a e, agora que estava olhando, soube exatamente o quanto lhe custaria, se a perdesse. Chegara o momento em que teria de ser tudo ou nada. E o nada, desta vez, parecia-lhe um imenso vazio no fundo do inferno. Mas já não podia mais esconder de si mesmo. Ele havia olhado, analisado e reconhecido. Com a idéia formada na cabeça e o coração disparando, soltou o freio de mão do carro e dirigiu para a casa de Meg. Nunca mais as coisas seriam como antes. Capítulo XXI O jantar transcorreu muito bem, na verdade.Vivian ficou contente por vê-lo, Allie tagarelou alegremente durante toda a refeição, e até Meg relaxou o bastante para participar da conversa e dos risos. E isso dificultou ainda mais a resolução de Earl de falar sobre as coisas que queria. Temia estragar a alegria de Meg, levar de volta ao rosto dela aquela expressão triste e desanimada de antes. Não, ele queria vê-la sorrindo e conversando. Era uma desculpa muito boa para não enfrentar uma situação difícil. E ele quase foi covarde o bastante para se conformar. Earl fez o possível para prolongar a refeição e até descobriu-se disposto a usar Allie como desculpa para não tirar Meg da mesa para uma conversa particular. No entanto, ele não era homem de evitar as coisas difíceis por muito tempo. Esta era uma das ocasiões em sua vida em que teria de encarar o medo e seguir em frente. Estava apenas esperando o momento certo. E quando Allie e Vivian foram para o andar de cima, ele não teve mais desculpas para adiar. Meg olhou-o, um tanto surpresa por ele não estar preparando-se para ir embora. Bem, era compreensível. Desde a morte de Bill, ele sempre saía depois que Allie ia se deitar. Exceto pela outra noite. A noite perigosa. A noite que ela tanto queria esquecer. Mas Earl ficou sentado ali teimosamente, tentando encontrar as palavras para abordar o assunto que não ficara resolvido entre eles. Tentando encontrar um jeito de iniciar uma conversa que o aterrorizava. Limpou a garganta. — Huhum... Bem, parece que Vivian mudou bastante. Mal acabou de falar, queria dar um soco em si mesmo.Vivian! Por que colocara a mãe dela na conversa? Era um começo perfeito, sem dúvida... — É verdade. — Meg relaxou um pouco, como se estivesse aliviada pelo rumo que ele tomara. — Ela disse que esteve repensando seus atos.
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— Pelo que ela me contou, teve uma infância muito difícil. — É, sim. O pai dela era fazendeiro, mas eram muito pobres. Quando ela se casou com meu pai as coisas melhoraram. Ele possuía uma fazenda maior, terras melhores. Ainda havia muito trabalho duro, mas não o tipo de situação em que um ano de colheitas ruins significava passar fome. Nós tínhamos de economizar às vezes, mas nunca passamos fome. — Ainda bem. Eu sei como é passar fome. O rosto de Meg suavizou-se e, por um instante, Earl achou que ela poderia tocá-lo. Então ela disse: — Eu sei, Earl. Você teve uma infância terrível. Ele balançou a cabeça. — Não foi pior do que a de muitas crianças que vejo por aí. Mas posso entender como estas coisas nos afetam. — Elas afetaram você? — É claro que sim. — Como? Essa era a pergunta que ele tivera de responder a si mesmo, naquela noite. A resposta que não queria dar a ela. Mas sentiu-se obrigado a dar, especialmente considerando-se o que queria dela. — Tenho esta tendência de minimizar minhas expectativas. — Minimizar? Mas, Earl, você é o xerife desta cidade. Foi eleito. Muitas pessoas nem teriam coragem de se candidatar. — Eu também não teria coragem, se o velho Bob Sweet não insistisse tanto em me apoiar. Ganhei a eleição por causa dele. — Mas a reeleição foi mérito apenas seu. — Pode ser. Meg franziu a testa, olhando-o como se não estivesse contente com o que ouvia. — Sobre que outras coisas você tem poucas expectativas, Earl? — Ah, muitas coisas. — Ele tentou mudar de assunto. — Então... Você está se sentindo melhor, sobre Allie e tudo o mais? Ela fez que sim, enviando-lhe um olhar que dizia que não pretendia esquecer o que ele dissera, nem a pergunta que ele não respondera. — Sim, Allie e eu conversamos bastante. O mais triste é que ela decidiu que lamenta por mim, porque Bill não me amava. — Que droga. Tal idéia incomodava a ele, também. Não por causa de Allie, mas por Meg. Ela merecia que alguém a amasse mais e melhor do que Bill a amara. Earl sentiu uma pontada de raiva contra seu amigo, sentiu como se camadas de lealdade mal dirigida estivessem se desfazendo, revelando a verdadeira superficialidade de Bill. Porém algo mais permanecera, e foi sobre isso que ele falou agora: — Bill não era de todo mau, Meg. — Não. Ninguém é. Ele tinha boas qualidades. — Mas não era capaz de... sentimentos profundos — Earl falou. — Olhando para trás, agora, eu acho que permanecemos amigos durante tanto tempo porque eu o admirava muito. Meg assentiu. — É bem provável. Ele gostava de ser admirado. Talvez fosse um dos seus impulsos mais fortes. Por isso não era má pessoa: ele precisava
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de aprovação. E a minha falha foi justamente ter parado de aprová-lo, de admirá-lo. — Por que fez isso, Meg? — Porque... você vai achar que estou maluca, mas... poucos anos atrás eu me dei conta de algo que aconteceu antes de Bill e eu nos casarmos, e que foi muito... ruim. E não foi por minha culpa. — Você está se referindo ao estupro. Meg ofegou, fitando-o com os olhos arregalados. — Eu nunca lhe falei sobre isso! — Sua mãe me falou. O que Bill fez foi errado, Meg. Posso compreender que seus sentimentos tenham sido afetados, quando você deu-se conta do que realmente aconteceu. Porque estive pensando sobre tudo e concluí que ele era bem capaz disso. Bill sempre se dispôs a tomar o que queria, e um pouco de resistência nunca foi um impedimento para ele. Ao contrário, considerava um desafio. Então, fiquei pensando sobre isso, e sobre outras coisas que ele fez quando estávamos no colégio, e concluí que você estava dizendo a verdade. Você não imaginou tudo isso, Meg. Ela deixou escapar o ar, como se o estivesse prendendo há muito tempo. — Às vezes não tenho muita certeza. Earl resistiu ao impulso de abraçá-la, sabendo que ainda não era o momento certo. Mas, ah, como queria tomá-la em seus braços e apertá-la com força... — Pois pode ter. — Como você sabe? Não estava lá. — Sei porque conheci Bill. Por mais triste que seja, isso é algo que ele faria. Meg assentiu devagar, depois levantou-se e afastou-se dele, parando na frente da estante de livros. Ficou observando os livros, como se os títulos a deixassem fascinada. Mas Earl reparou que ela cruzara os braços no peito, como se para impedir-se de tremer. Também não deixou de reparar em seu corpo esguio, nas linhas delicadas da sua nuca e das costas, nos quadris arredondados. Tudo o que ele impedira-se de notar, em todos aqueles anos, saltava aos seus olhos, implorando por sua atenção. Na hora errada, como sempre. — Assim mesmo — ela falou finalmente —, eu não deveria permitir que isso afetasse meus sentimentos por ele. Diabos, Earl, nós estávamos casados há dez anos e eu nunca tive sérios motivos para queixar-me dele. Nunca. Como poderia deixar que esta lembrança envenenasse tudo? — Porque, talvez, as coisas não fossem assim tão perfeitas como você pensava. Talvez você não fosse tão feliz como queria se convencer. — Eu não era, mesmo — ela admitiu, baixinho. — Mas dizia a mim mesma que o casamento é assim para todo mundo. Ninguém tem um casamento perfeito. — Suponho que não. Mas há uma diferença entre perfeito e "frio". E, não importa quanta culpa eu sinta por dizer isso, mas às vezes Bill era um sujeito extremamente frio. Ele nunca permitiu que ninguém se aproximasse o bastante de seu coração. Exceto Allie. — Sim, exceto Allie — Meg concordou. — Bem, fico envergonhada de admitir, mas também não lamentei muito a morte dele. Senti-me muito
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culpada, mas não triste demais. Acho que superei tudo muito depressa. Isso é terrível, Earl, mas não sinto falta de Bill. Há meses que nem penso nele. — E sente-se culpada por isso? — Sim, é claro. Ele era meu marido! — Meg — Earl falou, com toda delicadeza —, não creio que isso faça alguma diferença. Seja lá o que tenha acontecido entre você e Bill no passado, tudo indica que quando ele morreu você já não o amava mais. Isso não é nenhum crime. Como poderia ser um crime? A não ser que se pense que o amor tem de ser eterno. — E não é? — o tom de voz dela era quase amargo. — Não, não é. O amor é algo que tem de ser cultivado pelas duas pessoas. Se uma delas parar de cultivá-lo, ele morre. Ou, talvez, quando uma das pessoas deixa de sentir, com o tempo a outra pessoa também cessa de amar. Mas você não fez nada errado. Os sentimentos não são errados. É o que fazemos com eles que realmente conta. — O que quer dizer com isso? — Quero dizer que você não fez nada errado pela maneira como se sentia, Meg. Nada. Acredite em mim, não existe nenhuma lei que a obrigue a sentir saudade de Bill, seja por um determinado tempo ou com uma determinada intensidade. — É... — Meg virou-se devagar e olhou para ele. — Então, por que me sinto como se o estivesse traindo com você? As palavras atingiram-no como um soco no estômago.Porque ele nutria os mesmos sentimentos. Porque havia esperado, secretamente, que Meg não se sentisse daquela forma. Mas ela sentia. — Eu também me senti assim — confessou. — Por algum tempo. — O que o fez mudar? — O simples fato de que as coisas mudaram, Meg. Bill se foi. Ele não é mais o seu marido. Você é uma mulher livre, e isso significa que, seja lá o que você e eu decidirmos fazer, não tem mais nada a ver com Bill. Ela assentiu, pensativa, mas Earl não teve certeza se acatava suas palavras. Mas, afinal, que importância teria isso? Os argumentos lógicos tinham pouca influência nas emoções. Se ela sentia que havia traído, então havia traído. — Você tem razão — ela disse finalmente. — Sei que tem razão. E se fosse qualquer outra pessoa no mundo, não creio que eu teria me sentido desta forma. Então a sua amizade com Bill realmente estava interpondo-se entre eles. Pela primeira vez em sua vida, Earl desejou jamais ter conhecido Bill Williams. — Parece — ela falou, hesitante — um tanto incestuoso... Ah, meu Deus! Earl sentiu uma pontada no estômago. — Sei que é estupidez — Meg continuou. — Somente porque você e Bill eram amigos... — Sempre fui seu amigo também, Meg. — Sim, é verdade. Todos estes anos eu sempre contei com ela. Mais, ainda, do que contei com Bill. Em retrospecto, acho que ele sempre pressentiu que nunca foi realmente ligado a mim, que estava apenas desperdiçando seu tempo. Meg fechou os olhos por um segundo, depois o fitou com uma
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intensidade que chegava à sua alma. — Na verdade, Earl, eu sinto-me culpada porque, pelo menos mil vezes nestes últimos quinze anos, desejei tê-lo encontrado antes de conhecer Bill. Earl não conseguia respirar. Seu diafragma congelou-se por um instante, deixando-o zonzo como se tivesse sido atingido por um soco. Sabia que precisava dizer alguma coisa, mas estava preso entre uma respiração e outra. — É horrível, não é? — ela disse, adiantando-se como se quisesse certificar-se de que ele compreendia o quanto ela era horrível. — Foi horrível, a maneira como eu pensava nisso às vezes e tentava afastar tal idéia como se fosse algo importuno, perguntando-me de onde teria surgido. Bem, não posso fingir que não sinto mais isso. Talvez a verdade seja que estive traindo Bill o tempo todo. Mas Earl não concordava com isso. Aspirando o ar finalmente, levantou-se e encarou-a. — Não, Meg. Pensar assim não é o mesmo que trair. Estes pensamentos surgem quando a gente não é feliz, quando algo essencial está faltando. E, para ser totalmente sincero com você, eu também passei estes quinze anos desejando tê-la conhecido primeiro. Earl viu-a empalidecer, depois o intenso fluxo de cor em suas faces. Estava fazendo tudo errado, pensou, e teria muita sorte se ela voltasse a falar com ele. No entanto, era tarde demais para voltar atrás. Meg ficou em silêncio por tanto tempo que ele receou que estivesse procurando uma maneira de despachá-lo delicadamente. Tentou pensar em algo para dizer, mas, em vez disso, viu-se considerando o fato implacável de que estava totalmente perdido. Porque a queria demais. — Você acha que somos pessoas horríveis por nos sentirmos desta maneira? — ela perguntou finalmente. Earl balançou a cabeça, grato por ela ter-lhe dado algo em que se concentrar. — Não, Meg. Acho que o que sentimos é perfeitamente natural. Aconteceu. Mas não fizemos nada, permanecemos fiéis a Bill, portanto não temos nada do que nos culpar. — Também acho. — Meg, os sentimentos sempre nos pegam de surpresa. Eles nascem antes mesmo de nos darmos conta de que existem. Não são inerentemente errados, mas tornam-se errados se nós os alimentamos, os encorajamos. E nenhum de nós fez isso. Sempre tentamos afastar as emoções perturbadoras no instante em que éramos assaltados. — Eu fiz isso, sem dúvida. Tinha vergonha até de pensar. — Está vendo? — Mas e agora, Earl? E agora? Ele torceu as mãos, sentindo-se subitamente desajeitado. Não sabia dizer palavras doces e românticas, tudo o que tinha era o que havia em seu coração. — E agora? — repetiu. — Bem, isso depende de você, eu acho. Porque, se eu pudesse ter uma única pessoa neste mundo, seria você. Os olhos dela arregalaram-se, e ela levou a mão ao peito. — Eu? — Sim, você.
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Ele havia falado, havia escancarado as comportas de seu coração, e isso já não lhe parecia mais um segredo pecaminoso. Ao contrário, era lindo, tão lindo que todos os seus temores se evaporaram. — Eu amo você, Meg. Nem tenho certeza de quando comecei a amála tanto, mas sei que a amo mais do que minha própria vida. Faria qualquer coisa por você, qualquer coisa. Tudo o que desejo neste mundo é estar ao seu lado e tentar fazê-la feliz. Earl prendeu o fôlego, esperando pela resposta, esperando que Meg lhe dissesse que ele não entendera direito, que embora estivesse contente em tê-lo como amigo, jamais iria querê-lo como marido. Tinha certeza absoluta de que ela almejava mais do que um xerife do interior e de origem humilde. Mas, aos poucos, viu que um sorriso surgia nos lábios dela, trazendo consigo um brilho de vida em seus olhos. Quis aproximar-se mais e abraçá-la, mas pressentiu, de um jeito indizível, que ainda não era o momento. Que ela teria de vir para ele quando estivesse preparada. — Está falando sério? — ela perguntou. — Nunca falei tão sério em minha vida. Queria casar-me com você amanhã mesmo, e acho que Allie ficaria feliz com isso. Lamento pela morte de Bill, Meg. Lamento muito. Mas ele se foi e nós estamos vivos. Temos o direito de viver e de sermos felizes. Dê-me uma chance de fazê-la feliz, Meg. Por favor. Ela deu um passo na direção dele, um passo hesitante. Depois, outro, mais firme. — Peça-me, Earl — disse, baixinho. — Bill nunca me pediu. O coração dele deu um salto e uma sensação de júbilo o invadiu. — Meg, eu amo você de todo coração. Quer se casar comigo? Um sorriso explodiu no rosto dela e lágrimas encheram-lhe os olhos. — Sim, Earl — respondeu. — Quero muito me casar com você. Ele não precisava de mais nada. Pegou-a no colo e girou, de pura alegria, e quando ela riu o coração dele disparou ainda mais. — Tem certeza? — ele perguntou outra vez. — Meg, tem certeza mesmo? Acha que vai conseguir ficar casada com um policial? E, depois, há o problema com Matt. Eu estive pensando em adotá-lo. Mas se acha que não vai dar certo... Ela pousou o dedo em seus lábios, silenciando-o. — A única coisa que não vai dar certo é a minha vida sem você, Earl. Para todo o restante nós daremos um jeito. Earl abraçou-a com força, por um longo tempo, saboreando a alegria e o conforto de estarem tão próximos, a doçura e o calor que preenchia seu coração. Pouco depois, subiram até o quarto de Allie para acordá-la e perguntar o que ela achava. A menina pulou para fora da cama e abraçou-os, dando gritinhos de alegria. Meg olhou para a filha, observando seu rosto cuidadosamente. Queria ter certeza absoluta de que não deixava nada para trás, por estar tão enlevada com seus próprios sentimentos. Não queria repetir os mesmos erros dos últimos meses. — Tem certeza, querida? — ela perguntou à filha. — Não vai se sentir... relegada, ou algo assim?
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Allie balançou a cabeça com firmeza. — Por um algum tempo tive medo de perder você, mamãe. Mas agora, não. Sei que você me ama. Meg abraçou-a com força, sentindo o coração repleto. Então, Allie anunciou que iria contar a novidade aos seus companheiros de Internet. Vivian aceitou a notícia com calma e até esboçou um sorriso. — Não posso dizer que não havia percebido alguma coisa entre vocês — ela disse. — Bem, creio que não vão precisar mais de mim. Meg e Earl trocaram um olhar. E Meg falou: — É claro que vou precisar de você, mamãe. Sempre precisei. Mas tem certeza de que quer ficar para ajudar-me a cuidar de tanta gente? — Tanta gente? Há mais alguém aqui que não conheço? — Matt Dawson — Earl respondeu. — Estou pensando em adotá-lo. — Bem, o garoto não dá trabalho algum. E faz bem ao meu coração ver um rapaz comendo com tanto apetite como ele. — Então você fica? — disse Earl. Vivian inclinou a cabeça para o lado, encarando-o. — É uma oferta generosa, vindo de alguém a quem eu tanto ofendi. — Já esqueci tudo, Vivian. Além disso, já ouvi ofensas muito piores em minha vida. Vamos fingir que nada aconteceu. Mais tarde, Meg e Earl estavam abraçadinhos na cama, desfrutando de uma doce intimidade. E ela confidenciou-lhe algo que o fez sentir-se o homem mais afortunado do mundo. — Nunca me senti assim tão feliz — ela disse, aconchegando-se contra o corpo dele. — Nunca, exceto na noite em que Allie nasceu. Isso o deixava em excelente companhia, Earl pensou enquanto olhava a neve de setembro caindo lá fora. Em excelente companhia, sem dúvida. ***Fim***
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