Jenipapo
road movie
De um projetor em Sergipe Ă s salas da capital: uma viagem aos cinemas do sertĂŁo e do cerrado do Brasil
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Editorial No fundo do lago Nas salas de cinema Na estação de trem Nas bodas de ouro Na invenção do Bina Nas linhas de ônibus No banheiro feminino Na livraria Na aula de artes Ensaio
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Jenipapo
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ditorial
Jenipapo A beleza do jornalismo
Quais os tempos do jornalismo? O tempo do grande jornalismo? Só podemos conjecturar e, em uma escola, experimentar exaustivamente todos os meses, dias, horas e minutos possíveis. Uma coisa é certa: é um tempo mais elástico, menos premente e ansioso que o tempo da página de jornal; menos instantâneo que a tela do portal; menos ao vivo que a televisão. Por ser tão sereno, o grande jornalismo mora, quase sempre, com aconchego, num amontoado de páginas de revista. Dali, de vez em quando, viaja para um códice de livro. Vira e mexe, dá o ar da graça onde bem entende. É por acreditar que o jornalismo tem temporalidades diversas; que cada uma delas tem morada privilegiada em suportes distintos; que um dia se decidiu criar esta revista, a Jenipapo. Não tinha nome, mas nasceu já com propósito: apresentar esse tempo prolongado, de uma profissão costumeiramente tão fugaz, aos futuros jornalistas do Curso de Comunicação da Universidade Católica de Brasília. Ao lado do desejo educador, a vontade de instigar nossos alunos a não correrem atrás apenas de boas histórias. A caminharem. E também a mirarem aquelas histórias, escondidas por trás das quase histórias, que ajudam a tecer fios invisíveis entre comunidades locais, regionais, nacionais, estrangeiras. Fios quase como jenipapo, fruta que se espraia do centro ao sul da América. É para esses lugares que a Jenipapo vai: para o fundo de Brasília, Curitiba, Bogotá, Boquim, para a cidade-satélite, para a estação abandonada, para dentro do banheiro de onde é expulsa a travesti. Nesta primeira edição, contamos uma história de amor; uma vida de inventos e frustrações. E esperamos que, como um livro, sejamos lidos até o fim. Com tempo, calma. Com a tardança que pede o jornalismo que se quer bom. Bem-vindos à Jenipapo. Karina Gomes Barbosa
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Jenipapo Revista-Laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília Ano 1 nº 1, setembro de 2012
Reitor Dr. Cicero Ivan Ferreira Gontijo Diretora do Curso de Comunicação Social Profª. Angélica Córdova Miletto Editora-chefe Profª. Karina Gomes Barbosa Editora de arte Profª. Rafiza Luziani Varão Ribeiro Carvalho Editor de fotografia Prof. Thiago Sabino Reportagem Carolina Alves, Guilherme Assis, Jéssica Paulino, Laniér Rosa, Ludmila Rodrigues, Luísa Dantas, Marília Lafetá, Patrick Saint Martin, Quelma Trindade, Sheylla Alves, Thamyres Ferreira Colaboraram nesta edição Ciro Inácio Marcondes, DiOliveira, Leandro Viana, Samuel Paz Agradecimentos André Luís Carvalho, Anelise Molina, Beto Barata, Gustavo Cunha Novo, Ivany Câmara Neiva, Laerte, Lunde Braghini, Paulo Manhães Fotos da capa: Guilherme Assis
Tiragem: 2.600 exemplares Impressão: Athalaia Gráfica e Editora UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA EPCT QS 07 LOTE 1 Águas Claras - DF CEP: 71966-700 Tel: 3356-9237
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“desocupem
“A solução encontrada para resolver o problema criado com a proliferação de pequenas favelas em toda a área da Nova Capital e oferecer melhores condições de vida aos trabalhadores que constroem Brasília foi a localização das respectivas famílias em terrenos próximos da “Praça dos Três Poderes”, a serem inundadas pelas águas do Lago”
Registro raro da ocupação que durou três anos
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Foto: Paulo Manhães
(Plano de Transferência da População da Vila Amaury para as cidades satélites)
a vila amaury” Por Quelma Trindade
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Em 12 de setembro de 1959 fecha-se a barragem do Paranoá. Juscelino e Sarah Kubitschek fazem descer a comporta de ferro da barragem, manobrando um trator, sob o testemunho de uma multidão. O lago começa, então, a se formar. Assim naufraga a Vila Amaury. A desocupação dos barracos de madeira tem início aos 27 dias do mês de outubro de 1959. O lugar, até então, era um canteiro de obras para viabilizar o sonho de Dom Bosco e criar algo que a natureza recusouse a fazer: um lago. Era um pequeno acampamento dos pioneiros – operários da construção civil – que estavam dispostos a sair de suas cidades natais. A maioria veio do Nordeste e de Minas Gerais. Eram pessoas que não tinham expectativas definidas nem a certeza de trabalho fixo. Normalmente, homens solteiros que vieram atrás de emprego nas construções civis e moravam nos alojamentos das companhias. Segundo os regimentos das empresas, somente os solteiros podiam morar lá. Não era uma das vilas de pioneiros, não era uma das primeiras cidades da capital. Era um lugar que o governo aceitou caladamente. Os operários se instalaram ali, embora a administração soubesse que aquela área logo teria outro destino, o que garantia o caráter provisório da ocupação. Os moradores foram avisados sobre a futura inundação. Muitos saíram. Outros tantos pagaram para ver. A vila era movimentada. Não por ser localizada no centro da nova capital, mas por ser o assentamento de aproximadamente 4 mil pessoas dispostas a construir uma cidade do futuro. Não havia área de lazer na área “de terras planas”, segundo a revista
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Fragmentos de Cultura, da editora UFG. Essas terras, sem diversão e sem morros, “se transformam em fundo do Lago... Ruas e casas são aos poucos inundadas, deixando submersa a Vila Amauri”. O ex-morador da vila Severiano Matias afirma que, mesmo sem espaços de lazer, os bares eram abertos quase 24 horas. Eram frequentados, em grande parte, por homens. Os mercadinhos vendiam, basicamente, suprimentos de primeira necessidade e não era fácil manter os familiares na incerteza de uma cidade. Aliás, é exatamente por conta de bares que a vila tem o nome de Amaury. Há quem informe que Seu Amaury era dono de um dos botecos mais frequentados do assentamento e há quem diga que ele era delegado do trabalho, engenheiro ou funcionário da Novacap, um líder da ocupação, responsável pela transferência do pessoal para a nascente da região administrativa de Sobradinho quando houve a inundação. Não se sabe nem se o nome dele era Amauri ou Amaury. Não há muitos registros sobre o que existiu lá, mas as memórias de quem viveu dizem muito de um lugar que teve apenas três anos de existência. Maria Efigênia de Almeida, goiana, ex-moradora, viveu na vila por seis meses e não gosta muito de se lembrar daquele tempo. Fala com certa acidez do período que morou lá. Estava grávida da primeira filha. “Vim pra cá em busca de emprego para o meu marido, e não sei bem o que pensei que seria. Imaginei que seria difícil, mas não tanto. Não me deixou saudades.” Ela tinha de tomar banho à noite para não ser vista nua pelos vizinhos. “Como as casas eram de madeira, cheias de tábuas, as aberturas eram grandes.”
Foto: Beto Barata
s ss Os restos de uma cidade estão alagados no coração de Brasília
E la se considerava uma pessoa de muita sorte naquele aglomerado de pessoas, pois tinha uma torneira bem na porta de casa, e água, naquele lugar, era pouca – ironia do destino. Todos os dias, segundo Maria Efigênia, logo de manhã bem cedo as pessoas iam às torneiras mais próximas encher baldes com água para usar até de noite. “Era muita terra, nada de asfalto. Mas eu era de muita sorte, tinha uma torneira na porta e isso era muito bom.” Tancredo Neves de Almeida, amazonense, ex-morador e marido de Maria Efigênia, lembra que participou de pelo menos duas reuniões com o “doutor Amaury”. “Não sei por que ele era doutor, mas todos o chamavam assim, ele era um líder comunitário, gente grande e importante. Pelo que parecia, tinha a esperança de criar uma invasão em outro ponto, que poderia dar certo, como deu o Núcleo Bandeirante.” Ele relembra que todo dia passava um carro de som bem alto, informando aos moradores que o lago logo seria construído e que, por
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Foto: Quelma Trindade
isso, todos os moradores deveriam sair. Era irritante iniciar e terminar o dia com a frase gritada: “Desocupem a Vila Amaury”. Os endereços naquele lugar eram indefinidos, e havia pontos de referência para encontrar a casa de alguém. Maria Vicentina, ou Maria do Chapéu, como é conhecida desde o tempo da Vila Amaury, por conta do marido que usava um chapelão preto, lembra com alegria o tempo que estava lá. Ex-moradora, fez muitas amizades, começou a se estruturar na vida quando chegou com o marido, ex-criador de porcos, em busca de “futuro”, para ela e para os filhos. “Me emociono quando lembro de lá. Eram tempos difíceis, mas era bonito ver as crianças brincando nas águas quando tudo o que passava ali era um córrego. Elas corriam e isso me enchia de esperança. Se via muitas casas grandes, acho que muita gente grande morou lá.”
Já Raimunda de Jesus afirma que não era um dos melhores lugares para viver: o barulho era intenso. Até hoje ela não consegue se lembrar daquele tempo sem se emocionar. Em meio às lágrimas, conta que era quase desumano morar na vila. Não havia nenhuma estrutura. “Você não é capaz de medir o quanto era ruim. Um banheiro para muitas famílias, muitas mesmo. Ter bares na sua porta e barulho o dia inteiro. Ainda não sei como consegui morar ali.” A ocupação deixou poucos rastros, entre eles pedaços de paredes, banheiros, brinquedos, como uma Atlântida candanga, capturada na foto de Beto Barata que ilustram a reportagem. O que ficou no espaço não se parece em nada com o que um dia já foi. O lago com profundidade máxima de 38 metros ocupa uma área de 48 km² e tem águas vindas da Bacia do Paranoá. Aos fins de semana, recebe famílias, jet skis, barcos, lanchas. No fundo dele, a história da Vila Amaury.
Tancredo e Maria Efigênia: ele gostou de morar lá; ela não Foto: Samuel Paz
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Fotos: Guilherme Assis
memórias em 35 mm
Por Guilherme Assis
A cultura audiovisual substituída pelo comércio. O que antes era cine, hoje é história. Um cinema de Niemeyer, um “destombado”, vários pornôs. A memória de um cinéfilo de Boquim. A história das histórias das salas de Brasília-Aracaju
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A sala é escura. Uma tela matt white para projeção da película. Aos poucos as cadeiras são ocupadas. Casais se abraçam, viúvas observam os pombinhos como se lembrassem de uma época em que isso era comum para elas. Ao fundo, os mais discretos ou os que sabem que, lá de trás, podem ver muito mais (até as nucas dos outros espectadores). Nas fileiras da frente, os que chegaram atrasados. De pé, só o lanterninha. Depois de inúmeras propagandas do patrocinador, começa o filme. Tudo como em todas as outras salas. A quadra é a 106 Sul em Brasília e o projetor digital, caríssimo, em janeiro de 2012 apresenta um clássico do dinamarquês Lars Von Trier. O filme é o que menos importa agora. Lá a sala também era escura. A tela, segundo historiadores, era uma preocupação. Na verdade, não a tela, e sim o que era projetado sobre ela. As legendas dos filmes eram transmitidas ao contrário, pois a “cabine” de projeção era atrás do grande tecido branco e não na frente, como é comum hoje. Além de prestar atenção às cenas, o espectador tinha de inverter as traduções das falas do galã e da mocinha. Não era como nas outras salas. Era em uma das ruas do centro comercial de Aracaju, Teatro Carlos Gomes. Numa noite quente de 1899, um filme num rolo de 18 metros, de título desconhecido ou perdido no tempo, foi o primeiro a ser apresentado para os sergipanos. Apenas quatro anos antes, alemães e franceses faziam as primeiras sessões no Velho Continente. Sergipe está na avant garde. O Cine Brasília ainda é conhecido por sediar o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – menos este ano, pela primeira vez na história. Com 607 (outrora) belas poltronas acolchoadas e em tom pastel, o local também atrai o público com circuitos internacionais de cinema de arte. Ocasionalmente traz algum crítico ou especialista da área e, em palestras, o espectador entende mais a linguagem do cineasta homenageado. A maioria das sessões é gratuita – as pagas custam R$ 6
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–, o que agrada a audiência brasiliense. O arquiteto da construção foi o imortal Oscar Niemeyer. O antigo Cine Rio Branco hoje é uma loja de móveis no centro comercial de Aracaju. Foi fundado em 1904 por Juca Barreto. Antes, levava o nome de Teatro Carlos Gomes. Lá, eram apresentados peças e filmes mas, cinco anos depois, virou somente cinema. “Ô lugar pra ter viado”, relata Claudemir, taxista na capital desde 1990. “Eu era mais novo e ia nas sessões pra adulto, sabe? Pornô.” Claudemir apresenta o quadro comum a vários cinemas localizados no centro das cidades. Com o passar do tempo, a multiplicação dos multiplex, a tv a cabo, o dvd, a internet, talvez a única forma de atrair espectadores para os cinemas de rua fosse exibindo sexo nas telas. Às vezes, fora dela. O Cine Rio Branco virou ponto de encontro sexual. “Tu tava vendo o filme e o baitola colocava a mão no seu p...!”, embrutece o taxista. Em 1976, por conta do clima seco de Brasília, foi comprado um ar-condicionado para a sala de cinema isolada em meio aos prédios da Asa Sul. Melhorou. A partir daí, o público cresceu. “Parece que antes as sessões não tinham muita gente, quando colocaram o ar-condicionado o pessoal gostou”, conta o aposentado José Bandeira, frequentador do Cine Brasília desde 1976. O Cine Rio Branco ficava próximo ao Edifício Maria Feliciana, antigo maior prédio do Nordeste com 26 andares. A partir de 1945, ocasionalmente, a sala era ocupada por membros de partidos políticos para reuniões governamentais. A cultura era substituída por política. Outro detalhe interessante sobre o espaço: o Rio Branco foi o primeiro monumento brasileiro “destombado”. Quem explica é Ivan Valença, 59 anos, crítico de cinema e historiador da cidade. “O cinema foi tombado e, pouco tempo depois sofreu destombamento”, diz, em referência à revogação requerida pelos proprietários em 1991. O processo jurídico pedia que fosse retirado do prédio o título de tombamento e, pelas palavras do proprietário, Luiz Barreto (filho do fundador), fosse preservada apenas a “memória do cinema” – não o local.
Entre os dias 18 de dezembro de 1991 e 26 de março de 1998 desenrolou-se, em Aracaju, um teatro jurídico. De um lado, segundo a peça cedida por Ivan, o “Estado passava por sérias condições financeiras e não tinha interesse de adquirir o cinema”. Do outro, o comércio imobiliário gritava pelo retorno do prédio a quem queria vendêlo imediatamente. Em 1998, saiu no Diário Oficial do Estado: “São expedidos ofícios aos proprietários do imóvel, encaminhando cópia do decreto e certidão que invalida o tombamento do Cine Rio Branco”. Sergipe perdia não apenas o cinema mais antigo do Brasil em funcionamento contínuo, mas a valorização cultural. Missão social A Jenipapo foi no fundo do baú cultural para encontrar histórias sobre cinemas de Brasília. Foi também a Aracaju para mostrar um dos vários pedaços do Brasil que perdeu completamente os tradicionais cinemas de rua. Boquim, município do interior de Sergipe, é outro palco de história nesse texto. Aqui na capital, a maior renda per capita do país. Acolá, uma cidade nordestina até a raiz da macaxeira que vira farinha para o povo comer. Um povo que se agrada com quem se preocupa com essa cultura. Brasília tem 77 salas de cinema. Aracaju, apenas 14. Aqui, um prédio no centro de Taguatinga, famoso por ser uma das primeiras construções de alvenaria da cidade, foi casa do Cine Paranoá. Lá era festa! Alunos saíam mais cedo do colégio e trocavam os uniformes por camisetas. Tudo para burlar a entrada, que era fiscalizada. O cinema contava com uma sala de espera ampla, após a entrada, com grandes sofás confortáveis revestidos em couro. Logo ao centro do salão principal, um platô com expositores e fotos dos filmes que seriam exibidos, segundo a Administração da cidade. A primeira exibição no local, o filme Hércules de Tebas (Giorgio Ferroni, 1964, Mark Forest como Hércules). Anos depois, viraria ponto de encontro para quem procurava sexo. De Hércules a
Dionísio. Mais tarde se tornou uma igreja. Ou melhor, duas igrejas. O prédio, que hoje se chama Paranoá Center, já foi palco para pastores da Igreja da Graça de Deus e da Igreja Mundial do Poder de Deus, ambas com relações indiretas a Igreja Universal, conhecida por fechar vários cinemas e construir templos exuberantes. Acolá, também no centro de Aracaju, próximo ao porto da Barra dos Coqueiros, havia o Cine Palace, considerado o mais luxuoso da cidade. A inauguração foi em 1º de janeiro de 1956. Os 850 lugares ficaram lotados de gente que queria conhecer a nova tecnologia do Cinemascope, à época um processo novo. Ivan Valença, como amante da sétima arte, conta o fim do Palace. “Aracaju tem uma característica estranha: costuma queimar etapas no desenvolvimento, passar batido por fases que em cidades mais estruturadas são inevitáveis e que servem para preparar o mercado. O fim do Cine Palace mostrou o que era futuro e já é o presente dos cinemas em todo o mundo: apenas partes de shopping centers, mais chamarizes de público para lojas e lanchonetes.” A crítica de Ivan expressa um quadro comum em várias outras cidades do Nordeste. A última exibição no Palace, no ano de 1996, foi Prazer de Matar, filme menor com Antonio Banderas e Victoria Abril. Hoje é uma esquina chamada Center Palace onde funcionam salas comercias. O Cine Drive-In, outro pioneiro na capital brasileira, é um cinema à moda norte-americana. O termo drive-in surgiu na Europa, onde alguns bancos, supermercados e lojas de conveniência atendiam os clientes dentro do carro. Nos Estados Unidos, se refere a redes de fast-food, onde lojas como Burger King e McDonald’s oferecem serviços ao cliente no pleno conforto automobilístico. No Brasil, por bem ou por mal, drive-in se refere ao sexo praticado em alguns locais públicos por casais, segundo o oráculo da internet. Desde 1973, no Planalto Central, próximo à Esplanada dos Ministérios, mais precisamente numa área do Autódromo
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d Nelson Piquet, o Cine Drive-In mantém a tradição dos cinemas para carros. No auge, comportava mais de 500 carros de estudantes da UnB, casais de idosos, cinéfilos e demais frequentadores do cinema ao ar livre, como é chamado. O detalhe? Esse cinema é o último no gênero do Brasil, segundo a Filme B. De volta a Aracaju, o Cine Vitória. Inaugurado em 1943 por João Moreira Lima com o filme E as Luzes Brilharão Outra Vez, o cinema ficava no Edifício Pio XI, na rua Itabaianinha – próximo ao mercado de artesanato. Tinha 1.200 poltronas e durou 40 anos. Em 1973 foi arrendado e passou a depender de donos que não faziam gestão alguma do local. Lima, o fundador, que temia o fechamento, em 1982 enviou uma carta ao então presidente João Figueiredo. Em quinze breves parágrafos, Lima, que também dirigia o Cine Vera Cruz, recorreu, em súplicas, ao poder máximo do Executivo, na tentativa de manter na cidade uma sala histórica, onde rodaram filmes como Sansão e Dalila, Quo Vadis, Ivanhoé, A Roda da Fortuna, Cantando na Chuva. Trecho da carta dizia:
“Senhor presidente, minhas dificuldades na direção dos cinemas começaram há uns dez anos. Eu completava 30 anos na direção destes cinemas que obedeciam orientação católica. Havia, no Brasil, quase uma centena de cinemas com esta mesma orientação. O primeiro impacto que ocorreu foi com o extinto Instituto Nacional do Cinema. O Cine Vitória foi multado porque não encontrava, no mercado, filmes nacionais próprios para os nossos cinemas. A Lei determinava 100 dias anuais para exibição obrigatória de produção brasileira. Recorri, mas não valeram as explicações[...] Não tive direito a voz, apesar de ir representando os exibidores de Sergipe, todos atingidos pelos filmes nacionais de péssimas qualidades.”
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Moreira Lima tentou, mas a sala foi vendida para o Banco do Nordeste por 150 milhões de cruzeiros em 1984. Sapateiro e cinéfilo Nosso próximo personagem não é um cinema. Encontrei numa das ruas de paralelepípedo de Boquim o cinéfilo Heró Sapateiro. Antes de achar essa figura folclórica conversei com Luiz, filho de Antônio do Cinema. Antônio era o dono das antigas salas da cidade. Luiz não sabia falar sobre o patrimônio do pai, apenas a data de inauguração e o número de poltronas: 1960 e “350 acolchoadas com 100 de madeira”. Se era para falar do cinema, do glamour, dos filmes, Heró, “que mora na Rua dos Correios”. No interior de Sergipe e em grande parte do Nordeste é assim mesmo: todo mundo se conhece e sabe onde mora. Atravesso a rua da casa de Luiz e encontro a tal Rua dos Correios. Heró não estava na casa, mas arrisquei perguntar para alguns jovens que jogavam dominó na calçada. “Seu Heró acabou de descer a rua de bicicleta, foi na casa de Miguel”, responde um deles. Desço a rua e encontro um senhor sentado numa cadeira de bambu ao lado de um amigo. Os óculos ao estilo Woody Allen já me deixaram com boas expectativas, apesar do abadá em contraste. Heró é sergipano simples em palavras e nível cultural imensurável. O admirador do cinema começa a me contar suas experiências do Cine Santo Antônio. “Se me perguntarem qual o primeiro filme que vi, respondo que
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‘O Cine Santo Antônio Foi inaugurado em dez de março de mil novecentos e sessenta. O primeiro filme foi Torturado Pela Angústia. O segundo, Em Cada Coração Uma Saudade. Terceiro: A Carrocinha com Mazzaroppi. Quarto: Curuçu, o Terror da Amazônia[...]’
Heró, cinéfilo sergipano e fã de Charlton Heston
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“Aí o cabra diz: Meu fi, já chega. Precisa falar mais nada não.” A mente decorou em versos os primeiros filmes. Dá uma gargalhada, orgulhoso das lembranças. Só nesse momento entendo que me deparei com um homem-memória, talvez a maior personalidade da cidade. Heró continua a me contar sobre suas experiências no lazer, considerado por ele o mais importante da cidade. Como é de praxe levar a paquera para assistir a um bom filme, no escurinho que só o cinema proporciona, pergunto: “Heró, e as namorada?”. Recorda com prazer não de uma, mas quatro namoradas. E, com vergonha, lembra a vez em que as quatro foram ao cinema no mesmo dia. “Primeiro eu ia encontrar uma, né? Não sou besta. Quando vi a outra entrando, me enrolei na cortina. Vai dar problema. Nesse dia eu saí e não assisti filme. Parece que adivinharam”, ri. “Nessa época tinha 27 anos.” Interrompe o assunto das namoradas para me fazer uma pergunta que se envaidece de sempre saber a resposta: “Meu filho sabe o ator de Planeta dos Macaco?”, agora é ele sem plural. “Essa eu pulo, Heró.” “Charlton Heston”, diz, enquanto aperta os olhos e abre um sorriso que quase encosta nas orelhas. Heró revela um repertório para mim ainda desconhecido. “Salomão e a Rainha de Sabá com Yul Brynner e Gina Lollobrigida. Rômulo e Remo com Steve Reeves...”, enumera, meneando a cabeça como se eu soubesse do que ele estava falando com sotaque sergipanês carregado, que só entendi plenamente com a ajuda da minha mãe (sergipana) e do Google. “Mazzaroppi, O Vendedor de Linguiça, Conde Drácula, Gerra dos Mundos...”, quando ia fazer uma lista de outros filmes que viu, pausa a voz, arregala o olho, fita meu gravador e me surpreende: “Você tá me entrevistando, é?”, questiona, aos quinze minutos de entrevista. Heró esbanja a pura simplicidade característica de seu povo nordestino. “Vai pa Recór?”, Miguel, o amigo banguela que o acompanha, me
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pergunta. Continuo sorridente. Voltando ao filme do Drácula, pergunto: “O Drácula era o Bela Lugosi?”. “Não, rapaz”, me repreende. “Era Christopher Lee”, corrige. Depois lembro que o Drácula de Lugosi foi feito em 1931. O Drácula de Lee, em 1958. Com 63 anos de experiência, Heró diz que o espaço para exibição de filmes na cidade faz muita falta. Os olhos se enchem de lágrimas ao explicar que, além de se divertir, fazia muitas amizades após as sessões. “Queria muito o cinema de volta. Queria muito.” “A morte comanda o cangaço, com Alberto Ruschel. A Lei do Sertão com Maurício Morey. O Cabeleira com Milton Ribeiro. Arara Vermelha com Milton Ribeiro também. A Lei do Cão com Paulo Frederico e Jece Valadão. Obsessão, Jece Valadão e Edson França. Bonitinha mas Ordinária com Jece Valadão. Paixão de um homem com Valdick Soriano. O Poderoso Garanhão com Valdick Soriano...”. Heró é enciclopédia oral de cinema brasileiro. E o apelido Heró não está ligado aos filmes eróticos, como meu preconceito achava. O homem é um amante do cinema. “Você sabe quem era o ator de Ben Hur?”, lá vem o velho novamente com seu questionário, quase um Show do Milhão sobre filmes. “Ih, não sei, Heró.” “Charlton Heston”, sorri novamente. Heró menciona ainda as belas atrizes que venerava: “Briggite Bardot, Sofia Loren, Gina Lollobrigida...”. Ia continuar a lista, se lembra de algo importante e solta outra pergunta: “Você já assistiu Moscou contra 007, rapaz?”. Já imagino que o protagonista do filme poderia ser mais uma vez o tal do Charlton Heston, mas algo me diz pra ficar calado. “Sean Connery”, revela. Alívio.
peças antigas do Cine Santo Antônio onde, ocasionalmente, são apresentados alguns filmes. De fato existe o antigo prédio e, por insistência (leia-se 12 e-mails e oito ligações), consegui autorização para fotografar o último projetor utilizado por Antônio do Cinema. Departamentos da Universidade Federal de Sergipe, contatos na Secretaria de Cultura, Prefeitura. Nenhuma informação. Lá é comum motorista não parar na faixa de pedestre, motoqueiro não usar capacete. É comum departamentos públicos não funcionarem sexta-feira. É comum “essa gente” não responder e-mail, afirma Pablo José, jornalista que conheci num ponto de ônibus. De volta a Aracaju, conversei com Isaac Galvão, diretor do Centro de Criatividade da capital. O órgão em que trabalha é responsável por organizar, direcionar e realizar metas para o ramo audiovisual na capital. “De Brasília, é? Pra qual jornal?” A pergunta só veio depois que ele percebeu que a entrevista não era por e-mail, mas ao vivo. É minha vez de questionar: “E as salas de cinema de rua que não funcionam mais?” “Pois é! Não tem nenhuma e talvez nem no estado todo. Só em shopping mesmo, e é caro”, pondera. “A gente tem um projeto bom aqui rapaz, deixa eu achar pra você.” Isaac encontra um folder na gaveta. O título do material é: Projeto Orlando Vieira, 80 anos. Existe de fato trabalho produzido naquele setor, mas nada de relevância em relação às poucas salas de cinema d’além shopping. Ele me explica que há uma verba destinada para 2013 que será utilizada para reabrir um cinema na Rua do Turista em Aracaju. “Agora sim serão sessões voltadas para cultura e não comércio”, afirma, ao reforçar que as sessões serão gratuitas.
E as salas, onde estão? Boquim fica a 88 quilômetros da capital. Lá havia três cinemas. Todos do mesmo dono. Consultada, a Prefeitura de Boquim informou que um desses cinemas ainda existe. Na verdade o que existe é apenas um memorial feito para guardar algumas
Pouco investimento Existe um projeto do Ministério da Cultura (MinC) chamado Cinema Perto de Você. Instituído pela Lei 12.599/2012, sancionada no dia 23 de março pelo Executivo, o programa oferece capital para os empreendedores. Este projeto
atenderá, prioritariamente, os nada menos de 92% dos municípios brasileiros que não possuem nenhuma sala de projeção. Boquim poderá ser uma delas. Aracaju, por ser uma capital, também será beneficiada. Brasília, provavelmente. O necessário para a implantação de uma nova sala é apenas um empresário interessado na empreitada concorrer ao edital. O Cinema Perto de Você disponibilizará mais de R$ 500 milhões para abertura de salas em todo território nacional. Isaac, o diretor, nunca tinha ouvido falar no assunto. O projeto tenta corrigir um paradoxo da indústria exibidora nacional. Segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine) a renda de bilheteria dos filmes estrangeiros exibidos no Brasil foi de R$ 1,27 bilhão em 2011. Há, sem dúvida, um crescimento do número de ingressos vendidos ano após ano. O problema é que grande parte desse dinheiro circula apenas nos grandes empreendimentos comerciais cinematográficos como Severiano Ribeiro, Cinemark, Cinematográfica Araújo, rede Arco-Íris, United Cinemas Internacional Brasil, entre outras. De todo esse valor produzido, não há interesse para investimento em cidades do Nordeste e de outros recantos do país onde não há sequer projetor de filmes. Pedro Butcher, analista e especialista em cinema da agência Filme B, apresenta um quadro desproporcional aos valores altíssimos produzidos pela indústria audiovisual: “As salas de cinema no Brasil não são suficientes. Apenas 8% dos municípios brasileiros têm salas, e o índice de habitantes por sala do país (uma sala para cada 82 mil habitantes) é considerado um dos mais baixos do mundo”. Butcher concorda com a enorme desigualdade na localização de cinemas, mas aponta um futuro promissor. “Há também muita concentração no Sudeste (reproduzindo a concentração de renda do país) e, nos estados do Nordeste, os cinemas estão bastante concentrados nas capitais. No entanto, nos últimos dois anos começaram
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Bernardo ˜ sayao
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Especialista Vladimir Carvalho, cineasta paraibano, documentarista, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e diretor do longa Rock Brasília: Era de Ouro (além de outros clássicos do cinema nacional), relembra seus momentos de lazer nas tardes de sábado quando frequentava o Cine Cultura na W3 Sul. “Gostava muito das exibições nacionais. Os filmes belos que hoje não são tão prestigiados.” Uma vez nomeado embaixador cultural, Carvalho opina sobre a tendência mercadológica predominante. “O cinema norteamericano domina os grandes complexos, o que tira o espaço dos cineastas brasileiros. Infelizmente essas empresas dão preferência ao grande circuito hollywoodiano.” Autor de 22 filmes como Romeiros da Guia (1962), Mutirão (1975), Barra 68 (2000) e o premiado Rock Brasília (2011), no início de seus 77 anos apresenta uma das grandes diferenças entre os cinemas tradicionais e os de shopping centers. “Antigamente havia várias sessões gratuitas. Ou então bem baratinhas, algo em torno de 5 reais. Pipoca era barata e tinham telas com as cenas dos filmes antes de entrar na sala. Hoje não existe isso e sessão barata é mais de 15 reais.” Sobre o Cinema Perto de Você, Vladimir explica que é “um começo apenas, porém um começo mal divulgado. Poucos empresários conhecem. Acima de tudo, poucos empresários gostariam de competir com a hegemonia dos shoppings”.
Por Thamyres Ferreira
a ser abertos cinemas em cidades do interior (Feira de Santana, Caruaru) com resultados expressivos. E há expectativa de crescimento em cidades de médio porte.” No mercado cinematográfico, o Brasil é um dos países mais importantes do mundo [apenas considerando fatores mercadológicos]. Porém, como é visível em outras estruturas socioculturais do país, existe um contraste gritante no que diz respeito a investimento onde ainda não há cinema. São 5.565 municípios ao todo. Apenas 445 possuem salas de projeção.
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Por Marília Lafetá
Isso aqui, meu senhor, é uma
carta de amor...
Prezada Nazy, Felicidades. Tenho plena certeza que vais surpreenderte muitíssimo, quando terminar de ler minha carta. (...) Muitos rapazes neste momento estarão se dirigindo a muitas moças sem nunca ao menos uma vez terem visto-as antes.”
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“Porto Alegre, 6 de julho de 1961.
Brasília, sábado, 3 de março de 2012. Ana e Gonçalo estão apreensivos com a grande festa que planejaram para esta noite. Os convites foram enviados há meses, para garantir que todos da família compareçam. Até os parentes de São Paulo confirmaram presença! As horas passam. A ansiedade só aumenta. Aquele frio na barriga se intensifica, ora pela felicidade de ver a família toda junta, ora pelo nervoso para que nada dê errado. Eles só querem que tudo termine logo! A festa perfeita deu muito trabalho para ser organizada... 20h. Começa a missa dedicada a eles na Paróquia Nossa Senhora de Nazaré, no Lago Sul. O celebrante, padre Rambo, emociona ao cantar Como é grande o meu amor por você, de Roberto Carlos. Música apropriada para o casal – e para a ocasião. Fim da cerimônia. “Agora falta só metade”, pensam os dois, ainda preocupados com a festa. Descem para o salão, onde a família os aguarda com aplausos e sorrisos emocionados. Rodam o local com os fotógrafos nos calcanhares para garantir imagens com cada um dos presentes. Querem guardar mais essa memória no álbum que têm de suas vidas juntos. A comida – petiscos de frutos do mar, especiarias brasileiras no jantar e doces variados – está impecável; a decoração de cetim em tons de dourado e branco, com enfeites de flores envelhecidas nas mesas, é perfeita; a música, com os maiores sucessos dos anos 80 e da atualidade, é agradável. As pessoas estão felizes e aproveitando ao máximo. Alguns brincam de fotógrafos, alguns paqueram, outros dançam. Tudo saindo como o planejado. Um organizador da festa chama a atenção de todos para um vídeo que será apresentado no palco. A luz se apaga. O filme começa... Água Branca, Piauí, 23 de outubro de 1928. Nasce Gonçalo Carneiro Lima, filho da dona de casa Joana Coimbra do Espírito Santo e do agricultor Miguel Carneiro Lima. Foi o primogênito de seis irmãos, cinco meninos e uma menina. Com dez anos já ajuda a família trabalhando na única farmácia da cidade como auxiliar de
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enfermagem. Dá injeções. 14 de janeiro de 1942. Nasce Ana Alves de Lima, a segunda mais velha de sete irmãos – seis meninas e apenas um menino –, filha da também dona de casa Antonia de Sousa Lima e do barbeiro Domingos Alves da Silva (qualquer semelhança de sobrenome é mera coincidência – ainda). Com oito anos, Ana tem medo daquele cara que aplica injeções. O evita ao máximo, atravessa a rua quando o vê de longe. Culpa da agulha.Gonçalo, que até então só conhecia os pais dela, mal sabe que seu futuro está tão próximo. Aos 28 anos, se torna militar – onde passa a ser chamado pelo nome de guerra, Lima. Morando no Rio de Janeiro, também faz curso de enfermagem. Depois de seis anos, é transferido para Porto Alegre, RS. Enquanto isso, do outro lado do país, Ana, 18 anos, faz o ginásio, trabalha no comércio como operadora de caixa, ajuda a mãe a cuidar dos cinco irmãos mais novos e sonha em se formar na escola. É o último ano. Ninguém a conhece mais como Ana, porque a mãe resolvera, tempos atrás, trocar o nome da filha. Motivo: apareceram
duas prostitutas na cidade chamadas Ana. Passou a se chamar Nazi. Em um fim de tarde, se arruma para ir à escola – está um pouco atrasada. Despedese dos pais na sala de casa e, rapidamente, cumprimenta a visita. Lima, um homem feito de 32 anos, está em Água Branca para reencontrar os antigos conhecidos Domingos e Antonia. O visitante se encanta com aquela moça que sai de casa toda arrumada. Pergunta o nome e nunca mais o esquece. Nazi (só não sabe bem como escrevê-lo. Em cada carta muda a ortografia). Ela nem lembrava mais do rosto que a amedrontava quando criança. Depois do encontro, ele não a tira mais da cabeça. O ano é 1960. Dali em diante, a paixão toma conta de Lima. Ele volta para Porto Alegre e leva Nazi no pensamento. As noites sem dormir se tornam cada vez mais frequentes e o desejo de casar cresce à medida que o tempo passa. Conversa vai, conversa vem, ele acaba falando sobre Nazi para a família. “Por que você não manda uma carta para ela?”, sugere Clarinda, a irmã mais nova. É exatamente o que ele faz. Em julho de 1961 os pensamentos viram palavras e chegam até Nazi pelo correio. Ela está participando do concurso de Miss Comércio – em que seria eleita vencedora em outubro – e fica surpresa, mas lê a carta. Conversa com a mãe a respeito, “como qualquer filha obediente da época faria”. A mãe aconselha: “Dê uma chance a ele. Eu o conheço e garanto que é um homem bom e de caráter”. Nazi confia e responde. É a primeira conversa que têm um com o outro, mesmo tendo se conhecido quase que a vida inteira. Lima não perde tempo: já na primeira carta faz o pedido de casamento. Confiando na opinião da mãe e nas palavras gentis dele, Nazi disse sim. Daí até o casamento se passam seis meses e seis cartas. Salão de festas, março de 2012. Todos têm o olhar grudado na tela. Ninguém quer perder um detalhe sequer dessa história de amor tão inesperada e certeira. Muitos têm lágrimas nos olhos, muitos cochicham
sem acreditar no que o destino foi capaz de armar. Silêncio. O vídeo continua... Agosto de 1961. Na segunda carta, Lima pede os nomes completos dos pais dela para que, educadamente, peça sua mão oficialmente em casamento. Na terceira, ele comenta como seria a viagem de avião de Nazi de uma ponta a outra do país, onde enfim se casariam no início do ano seguinte. Os custos estão altos na conta dele, por isso não há como Lima buscála, apenas custear a ida. A quarta carta é a menor, resultado de preocupação e ciúme. Isso porque a carta anterior de Nazi demora a chegar, deixando-o apreensivo e um pouquinho enciumado. Ao ler a inquietação do noivo, ela acha graça, sorri e o responde. Já na quinta, em meados de novembro, Lima manda a passagem junto com a carta e especifica como seria a ida a Porto Alegre, partindo de Fortaleza. Na sexta e última carta, os detalhes finais e definitivos estão escritos. Nazi vai de ônibus de Águas Branca até Fortaleza, onde pega um voo às 8h e faz quatro escalas: a primeira em Recife, a segunda – para almoçar – em Salvador, a terceira no Rio de Janeiro – onde ela conheceria Solimar e Antônio, seus futuros cunhados – e a quarta em São Paulo, seguindo finalmente para Porto Alegre, onde ele a espera. Eles se encontram pela primeira vez como noivos no dia 22 de dezembro de 1961. Passam o Natal e o ano novo juntos e se casam no dia 1° de março de 1962, com a presença apenas da mãe e da irmã dele e do padre e com direito até a anúncio no jornal da cidade (coisa muito chique na época). A lua de mel durou 11 dias e foi na cidade de Tramandaí, a mais ou menos duas horas de Porto Alegre. Começam a vida a dois no Rio Grande do Sul. A maior emoção chega
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nove meses depois, quando descobrem que Nazi está grávida. Em agosto de 1963 nasce a primogênita, Soraia. Em março de 1965 têm o segundo filho, que recebe o nome de Eugênio Carlos. Um tempo depois, se mudam para Brasília, onde em 1967 vem o terceiro filho, Marcos Aurélio, e em 1970, nasce Júlio César. Têm oito netos e moram com um dos filhos numa casa própria em Taguatinga. Lima é militar da reserva. Qual o segredo de um casamento tão feliz e duradouro? “Entrosamento, paciência e amor verdadeiro que, mesmo nascendo com o tempo, ainda permanece vivo em nossos corações” garante Lima; “E ter bom humor também ajuda na hora de dividir a vida com um companheiro”, complementa Nazi. De volta ao salão de festas. O vídeo acaba. A luz é acesa. Todos aplaudem e vão abraçar o casal. Depois que a multidão se dispersa, o DJ coloca uma música lenta e Lima chama a mulher para dançar, como se ainda estivessem na lua de mel, cinquenta anos atrás.
Lima e Nazi, namorados há cinquenta anos: acima, no dia do casamento; abaixo, ao comemorarem as bodas de ouro, em 2012 Fotos: Acervo pessoal / Leandro Viana
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perfil Por Ludmila Rodrigues
inspetor Bugiganga Brasileiro que afirma ser inventor do identificador de chamadas segue luta na Justiça em busca de reconhecimento pela criação
Ilustração: DiOliveira
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O número 2001.01.1.108596-4 carrega uma história longa e ainda sem fim. A combinação surgiu no ano de 2001, quando uma empresa chamada Lune Projetos entrou com uma ação na Justiça contra “Vivo S.A e outros”, pedindo os royalties a que supostamente teria direito pelo identificador de chamadas. Em outras palavras, o Bina. O que muitos não sabem é que a Lune pertence ao inventor da popularíssima tecnologia. Toda essa história tramita em segredo de justiça por diversos tribunais e instâncias jurídicas do país. Em 1977, com 37 anos, Nélio José Nicolai teve uma ideia que revolucionaria o mundo das telecomunicações: um identificador de chamadas, que permitiria a quem recebesse a ligação saber o número de origem. A ideia surgiu com o crescimento dos trotes aos serviços públicos e de emergência, mas não tinha exclusivamente essa finalidade. “Na década de 60 o Brasil quase não tinha telefone, para comprar um era um sofrimento. Começaram a criar muitas empresas de telefonia, centrais telefônicas”, lembra Nélio. Um protótipo simples foi inventado e apresentado ao serviço de emergência do Corpo de Bombeiros. Era um aparelho grande, feito em uma máquina de calcular. Não foi bem aceito. Nélio não conseguiu inventar nada mais sofisticado porque, segundo ele, naquela época a Telebrasília (empresa operadora de telefonia do grupo Telebrás em Brasília e no Distrito Federal antes da privatização) não possuía laboratórios. Para Nélio, o processo da invenção foi simples, ao ponto até de ninguém acreditar. De acordo com ele, em todos os sistemas inventados antes – sem sucesso – as pessoas partiam do caminho errado, “queriam identificar pela origem, sempre modificar a origem”. E a ideia, que Nicolai diz ter vindo de Deus, foi a contrária, modificar o destino. “Todos os projetos que saíam vinham assim, se tivesse um milhão de telefones, um milhão de sinalizadores eram necessários para mandar a um só. Ao colocar só um destino, um telefone,
Em 1992 Nicolai melhorou o Bina e registrou uma nova patente, de forma aprimorada. A primeira fabricante a usar a tecnologia foi a Ericsson. Nicolai chegou a fazer um contrato com a empresa, transferiu a tecnologia para eles em 1997. Contudo, em 1998 a Ericsson repassou o Bina para todas as outras fabricantes. Não pagaram nada ao inventor. Outra empresa, essa de Santa Catarina, chamada Intelbrás, também contratou os serviços do inventor, pagou apenas os quatro primeiros meses de uso do Bina e depois suspendeu o contrato, mas continuou comercializando aparelhos com o identificador. As centrais começaram a avançar em 1992 e, com o advento das novas tecnologias, as centrais eletromecânicas foram sendo trocadas por eletrônicas. Por conta disso, a patente de 1992 tinha opções para central eletrônica e celular. Nélio não processou as fabricantes porque não conseguia arcar com os custos judiciais no exterior. Mas entrou contra todas as operadoras de telefonia. Hoje, TIM, Claro (Antiga Americel), Vivo (Antiga TCO), Oi (Antiga Brasil Telecom) são processadas. Chegam a um total de 40 as companhias acionadas judicialmente. O inventor ganhou em 1a e 2a instâncias e agora espera a liquidação de sentença, decisão a ser tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nélio diz que não briga por dinheiro. Mas no total dos processos, pede indenização no valor de R$ 550 milhões. Os advogados dele são menos modestos: calculam os royalties com uma taxa de 20% sobre cada cobrança. Esse valor, com correção monetária, chega a um total de R$ 185 bilhões. Se todo o dinheiro fosse pago, ele se tornaria o homem mais rico do mundo. O homem atrás dos números Nascido em Belo Horizonte, Nélio José Nicolai não era um garoto interessado pelos estudos. Sempre foi apaixonado por futebol e saídas com os amigos. “Meu negócio era bola, só queria saber de bola”,
relembra. Gostava tanto que chegou a jogar no Cruzeiro, por um período. Motivado por um grupo de amigos a se inscrever para o Exército, para ser cabo, descobriu que, sem diploma, nada conseguiria fazer. Depois da inscrição negada, resolveu estudar e trocou os campos pela sala de aula. Entrou no que hoje chamamos de 5ª série, na época 1º ano industrial. Sempre grande e forte, foi colocado em uma turma onde a idade dos meninos variava entre os 11 e 12 anos. “Parecia um filme que passou aí uma vez, um cara grandão no meio dos meninos”, fala, sorrindo. Os meninos menores acabavam chamando-no de tio e professor, o que acabou lhe desmotivando nos estudos. Pensou em desistir; ali não era seu lugar. Com o tempo foi se acostumando e virou uma espécie de herói na escola. No ano de lançamento do Bina, 1982, havia um concurso de operário padrão: as empresas escolhiam um trabalhador por estado e depois um era eleito nacionalmente. Na época, Nélio tinha aparecido com o invento e ganhou a maioria dos votos. Foi eleito operário padrão de Brasília e, no ano seguinte, o primeiro operário padrão do sistema Telebrás no Brasil inteiro. Em retrospecto, sonhava alto: para ele, se não fosse a falta de reconhecimento do país, teria sido o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio Nobel. Com o reconhecimento mundial, vários países chamaram Nélio para trabalhar, mas ele recusou todas as propostas, porque se considera inventor e não pesquisador ou cientista, como muitos o chamam. Muitas empresas o queriam para a mão-de-obra. Ele afirma não ter jeito para a parte prática, mas se lhe derem um problema e pedirem uma solução, ele providencia. Nélio também possui outros inventos, como o sistema de mensagens bancárias, que informa ao cliente todas as movimentações feitas na conta e compras com os cartões por meio do envio de um sms para o celular. Também é invenção de Nicolai a tecnologia do Salto (Sinal de Advertência para Linha Telefônica Ocupada), aquele
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conseguia puxar a identificação de todos, puxando a identificação da própria central”, explica o inventor (Entendeu, leitor?). O identificador recebeu o nome de Bina, que significa “B, que recebe, identifica A, que é a origem”. No mesmo ano em que criou o identificador, ele chegou a mandar o projeto para o centro de pesquisa da Telebrás (empresa pública que controlava as várias prestadoras estatais de serviços telefônicos que atuavam nos estados brasileiros, além da Embratel), para que esta o desenvolvesse, mas a empresa não se interessou. Achava que identificar o assinante que chamava era quebra de privacidade – outros tempos. Em 1980, após ter apresentado o primeiro protótipo ao Corpo de Bombeiros para testes, Nélio uniu-se a três amigos, Daniel Catoira, Afonso Feijó e José Pereira Pinto. Juntos, desenvolveram um protótipo industrial. Contudo, a patente foi registrada por Daniel e Afonso, que hoje processam Nicolai, alegando que a ideia teria sido apenas deles. Em 1982 o Bina foi apresentado como Bina 82 – por conta do ano da invenção – em seminário do extinto Ministério da Desburocratização, em Brasília, por meio do então ministro, Hélio Beltrão, já falecido. Nélio conta que, por causa da repercussão do Bina e da não aceitação da Telebrasília, foi demitido em 1984. O motivo da demissão, sustenta ele, é que, para a empresa, ele estaria atrapalhando o sistema telefônico, já que as pessoas só queriam saber de comprar o Bina. No mesmo ano da demissão, ele resolveu mostrar seu invento ao mundo, magoado com a falta de reconhecimento no Brasil. Viajou para os EUA, Canadá e México para apresentar a tecnologia. Nélio mostrava como era feito o processo de identificação e os países iam implantando em seus sistemas. Em Toronto, no Canadá, chegaram a acertar contrato com o inventor. Contudo, lançaram o aparelho e deixaramno para trás. Em 1999 os Estados Unidos já possuíam cerca de 65 milhões de telefones fixos com o Bina.
barulhinho ouvido durante a conversa telefônica e que anuncia que alguém está ligando (hoje conhecido como chamada em espera). Todas as grandes telefônicas do planeta dispõem desse serviço. Nenhuma paga royalties ao brasileiro. São criações dele também os MicroPABX, divisores de linhas e sistemas de acionamento de serviços de emergência (190, 191, etc.). Foi Nicolai quem também inventou a tecnologia que permite contabilizar diretamente as chamadas sem a interferência da prestadora do serviço, princípio que permitiu a difusão mundial dos números 0900. Inventos parecem mesmo ser a seara de Nicolai. Ele não trabalha desde que foi demitido da Telebrasília. Com tantas brigas judiciais ninguém o quer por
Nicolai acredita que teria ganho o Nobel se tivesse sido reconhecido
pedras no caminho o outro lado da reportagem Escrever essa matéria para a Jenipapo parecia algo fácil. Consegui encontrar o inventor, marquei com ele até rápido demais. Contudo, após uma primeira entrevista, o protagonista dessa história sumiu. Quando digo sumir, incluo não atender telefone, não responder e-mail, desaparecer do Facebook, não aparecer mesmo. O detalhe é que muitas coisas ainda precisavam ser esclarecidas e checadasa para a reportagem. Nem sequer pessoas que diziam conhecê-lo queriam atender o telefone. O momento de fechar a revista se aproximava cada vez mais e quem disse que eu tinha caracteres para preencher uma página de Word? Quem dirá páginas e páginas de uma revista, que, além de circular por diversos lugares do país, ainda me valeria nota para passar no semestre? Ninguém queria falar comigo. A foto dele, que ainda precisava ser feita, foi substituída por uma caricatura, já que o segundo encontro, como combinado, seria para entrega de documentos que me
serviriam de embasamento para a matéria e para uma foto. Que nunca aconteceu. Nem sequer a foto do protótipo do invento se pode conseguir – ninguém sabe, ninguém viu onde está o primeiro Bina. Diz que está num Cefet em Minas. Uma luz no fim do túnel, como dizem, parecia estar surgindo: encontrei o escritório dos advogados de Nélio José Nicolai. “Quem sabe eles não poderiam me arranjar uma foto dele e responder a algumas perguntas?” A princípio a advogada que me atendeu pouco me ajudou; me disse o “caminho sem me apontar a direção”. Enfim consegui achar os processos e, com algumas ajudas, entendê-los um pouco. Com a advogada ganhei apenas a promessa de que responderia ou encaminharia para que alguém respondesse as perguntas que enviei por e-mail. Quem sabe um dia vocês encontrem essas respostas em outro lugar, porque se fosse depender delas, essa matéria não estaria aqui.
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perto, ele mesmo reconhece. Fica em casa lendo e relendo os processos que possui e, claro, inventando. Ele e a mulher, Luzia Nicolai, com quem é casado há 44 anos, têm quatro filhos. Apenas o mais velho não mora com os pais, e nenhum dos três mais novos trabalha. Aos fins de semana, o inventor frequenta a Comunidade das Nações, na 513 Sul. Com a escassez de renda gerada na família, três apartamentos já foram vendidos para pagar honorários de advogados e ajudar no sustento da casa. Quando a situação fica difícil, ele vende cotas de 1% da indenização – já foram 15. A última teria sido negociada por R$ 100 mil. Com tantos processos e sem trabalho, Nicolai vira e mexe fica com o nome sujo na praça.
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próxima parada Por Patrick Saint Martin
De Bogotá a Curitiba, sistemas eficientes de transportes públicos mostram como andar de ônibus em Brasília poderia ser bem melhor
Fotos: Patrick Saint Martin
Curitiba (pág. oposta) e Bogotá: lá os ônibus funcionam Muitos brasilienses reclamam dos ônibus da cidade. Precários, quebram frequentemente e compõem um sistema de trânsito pouco inteligente. A equipe da Jenipapo visitou Curitiba e Bogotá, exemplos de transporte público, para uma comparação. Curitiba, com seu 1,75 milhão de habitantes, tem o título de melhor transporte público do mundo, dado pelo Institute for Transportation and Development Policy, dos Estados Unidos, em 2010. Já Bogotá, capital da Colômbia e quarta cidade mais populosa da América Latina, com 10,76 milhões de habitantes, é exemplo de transporte público, citada até pela ONU no estudo “Rumo a uma Economia Verde - Caminhos Para o Desenvolvimento Sustentável e a Erradicação da Pobreza”, que faz parte do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente 2011.
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O “melhor do mundo” Quando cheguei à cidade paranaense, estava esperançoso em ver um sistema de transporte eficiente e rápido. Saí do aeroporto em direção ao hotel e confirmei as primeiras expectativas. A rapidez vem pelo nome da linha: “Ligeirinho”. As novidades começaram na parada, que são em forma de túneis, que os curitibanos chamam de “tubos”. São 364 espalhados pela cidade. Ao esperar pelo ônibus, me deparei com a placa de horários: o próximo chegaria às 15h04. Me espantei com a exatidão. Esperei. Eram exatas 15h04 e nada de ele chegar. Imaginei então que nenhum transporte público poderia ser tão pontual. Mas foi. Menos de um minuto depois, lá estava o ônibus parando à minha frente. Paguei os R$2,60 (40 centavos a menos que a maioria das passagens em Brasília) e entrei. As surpresas não pararam por aí.
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O sistema é bem parecido com as portas dos metrôs. No mesmo “tubo”, as pessoas entram e saem do ônibus – me fazem pensar se os tubos não deveriam ser maiores. O conforto do transporte me fez arregalar os olhos: era como entrar em um ônibus de viagem. Sem contar a música ambiente e o sistema de voz com aviso da próxima parada, além de dicas de segurança e cidadania. Não há como pedir para descer em determinada parada, pois o veículo estaciona em todas. E o que mais chamou minha atenção: os ônibus da linha são automáticos. Automáticos? Não é possível! E era apenas o começo. Ao todo, são 1915 ônibus operantes em Curitiba, integração total das 18 linhas espalhadas pela cidade. Todos os dias, 700 mil pessoas usam o transporte da capital paranaense, uma média de 21 mil viagens por dia útil. Domingo a tarifa é R$1. Em um teste realizado pela Urbanização de Curitiba S.A. (Urbs), um passageiro consegue fazer 700 viagens sem chegar à origem (e sem sair do sistema) pagando uma única tarifa, e, pasmem, o teste foi feito em 2008. Hoje, garantem que se pode chegar a quase 1000 viagens diferentes. Com tal integração, cada curitibano viaja 14 minutos menos. E tem mais: existem 340 ônibus reservas, prontos para atender a qualquer necessidade. Muito prazer, este é o transporte público de Curitiba. Além do sistema consagrado, nada menos do que 92% dos ônibus do transporte coletivo curitibano têm total acessibilidade. É o maior percentual do país, segundo estudo feito pelo Mobilize Brasil. O segundo índice é de Belo Horizonte (MG), com 70%, seguido de Rio de Janeiro (RJ) com 60%. Brasília aparece na oitava posição, com 24% das frotas acessíveis.
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Ao contrário de Brasília, Curitiba renova sua frota regularmente. A última, ainda no ano passado. Foram 557 ônibus zero quilômetro, representando uma redução na emissão de poluentes de quase 100 toneladas por mês. A política de renovação constante, adotada pela Urbs e pela Prefeitura, prevê a idade média do transporte em 4,6 anos. Ao contrário do que o usuário vê no Distrito Federal, a qualidade dos ônibus é preponderante. “O usuário valoriza muito isso. Nós fizemos uma licitação recentemente que determina que a vida média desses transportes tem que ser menor que cinco anos”, afirma Luiz Filla, gestor de operações do transporte coletivo. É ele quem projeta, junto a uma enorme equipe, tudo o que deve ser executado. A essência do sistema da cidade é que o transporte coletivo é prioridade no sistema viário, o que é previsto em lei. Assim, todas as medidas tomadas no trânsito e na liberação de ocupações, construções, instalações diversas – como comércio, indústria e serviço – partem da análise do impacto ou importância para o transporte. “O fator principal do sucesso desse transporte de Curitiba é que, desde uma alteração da lei na década de 70, ele tornou parte do plano de crescimento da cidade”, garante Filla. Além de tudo isso, há dois anos Curitiba passou a ser a primeira cidade de que se tem notícia a ter uma frota de ônibus em operação regular movida apenas por biocombustível, sem adição de óleo diesel ou qualquer outro combustível mineral. O projeto 100% Biocombustível começou em agosto de 2009 com seis ônibus na Linha Verde. Hoje, são 30. A meta é chegar a 140 ônibus até o fim do ano. Painel de 7,20m por 1,80m, formado por 21 telas de LCD de 46 polegadas onde são projetadas as imagens captadas por câmeras de circuito fechado de televisão, instaladas em pontos-chave. Bancadas individuais com duas telas de computador, que permite ações simultâneas, como receber e enviar mensagens, seja para os painéis instalados
nas ruas, seja para controladores de semáforos ou para motoristas do transporte coletivo. Computadores de bordo em todos os ônibus operantes e reservas, num total de mais de 2 mil veículos, GPS e equipamentos acoplados à mecânica dos ônibus. Esse arsenal permite que operadores e fiscais do transporte saibam em tempo real a situação de cada veículo – em que ponto do trajeto ele se encontra, se está no horário, a velocidade desenvolvida, se parou fora do ponto e em quanto tempo chegará à próxima parada. Futuro? Presente em Curitiba. O Centro de Controle Operacional (CCO), onde estão todos esses equipamentos e operadores, é um dos mais modernos do país, instalado na Urbs. Reúne técnicos, fiscais, agentes e operadores do transporte coletivo e do trânsito que acompanham em tempo real o que acontece nos ônibus e nas ruas, formando um núcleo de comando on-line que tem comunicação direta com motoristas de ônibus e do trânsito em geral. O CCO também agiliza a chamada de socorro quando necessário em casos de acidentes, e permite análise permanente das condições de tráfego, ajudando no planejamento de obras e do trânsito. Nos terminais, o usuário também será informado, em painéis luminosos no próprio ponto de parada, do tempo previsto para a chegada do próximo ônibus. Esse sistema está em teste nos terminais. Aqui na capital federal, a Rodoviária do Plano Piloto também experimenta os equipamentos.
transporte desses e estão satisfeitos”. Não é bem assim. Há, sim, pessoas que enchem a boca para elogiar tal sistema. É o caso de Arnaldo Machado, 68 anos. “Tenho carro mas não uso. Para quê? Tenho ônibus toda hora, não enfrento estresse para estacionar e ainda pago barato”, garante. Mas o discurso não é unânime. Aliás, ouvimos duras críticas. “Eles dizem que o transporte funciona, mas eu, por exemplo, pego ônibus de madrugada. Espero três horas por um, e com risco de ser assaltado. O que eles fazem com os motoristas é desumano com relação à carga horária. Muitos estão encostados no INSS e já vi até motorista tendo mal súbito enquanto dirigia”, afirma Wesley Macedo, de maneira irritada. Ademir Silva dos Santos Mendes, taxista, também rebate o título de “melhor do mundo”. “Desde 1995 só vem piorando. O trânsito também não está nada bom. Você vê, uma linha de metrô já vai tirar 200 ônibus de circulação. Imagine mais linhas? Está faltando metrô”, afirma, sobre a primeira (sim, primeira) linha de metrô da cidade.
Solução para o DF? As novas faixas exclusivas para ônibus estão criando polêmica entre os brasilienses. Perguntado qual seria a saída para o DF melhorar o transporte, Luiz Filla foi taxativo. “Primeiro tem que tratar o transporte público como prioritário. Esse tipo leva mais de 100 pessoas em uma só viagem. Portanto tem que tratar como prioridade doa a quem doer, mas politicamente falando não é uma atitude fácil.” Os brasilienses devem imaginar: “sorte dos moradores de Curitiba, que têm um
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O TransMilenio é o xodó da capital colombiana, onde o velho e o moderno convivem nas ruas
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Bogotá de A a Z A expectativa de Bogotá era semelhante à de Curitiba. O que me encheu os olhos foi o sistema de transporte da cidade, o TransMilenio, com ônibus articulados que transitam por estações em faixas exclusivas. As informações encontradas na internet e o site do sistema eram lindos, mas a realidade... A capital da Colômbia é realmente grande, populosa e com habitantes bastante simpáticos. Mas o trânsito, ah, o trânsito não é nada organizado. Assim que cheguei, pedi um táxi. Como em Curitiba, pude ter a primeira impressão da cidade e do transporte. Uma definição: caos. Ônibus, ônibus e mais ônibus! Ok, há muitos taxis também, tanto é que existe uma faixa exclusiva para eles, mas o transporte público é grande maioria. Por todos os lados. O taxista, perguntado se aquele era um dia atípico, ri. “É assim todos os dias.” Se em Brasília não se usa buzina, em Bogotá deve ser lei usá-la. O sistema de transporte público não é exclusividade do TransMilenio. Existem as oito linhas que atendem grande parte da capital, com infraestrutura e corredores excelentes. Mas, por outro lado, ainda opera pela cidade o antigo sistema, com ônibus velhos, pequenos e, pior, desrespeitosos. Falaremos do TransMilenio. É o xodó da capital, reconhecido por conta do investimento do poder público no modo coletivo. Foi inspirado no transporte de Curitiba e dá para perceber isso pelas faixas e estações com “tubos” semelhantes. As principais contribuições desse sistema são a criação de corredores de infraestrutura destinada ao serviço, ao lazer e à acessibilidade, possível por meio de passarelas interligadas às estações, que colaboram para o acesso rápido e fácil dos passageiros, inclusive os que têm necessidades especiais. O sistema conta com 84 quilômetros de corredores exclusivos, alimentados por 1290 ônibus articulados. Números confirmam que, por conta do TransMilenio,
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“Tem que tratar o transporte público como prioritário” Luis Filla
cerca de 7 mil veículos por dia deixaram de circular pela cidade. Dados fornecidos pelo TransMilenio afirmam que 69% das viagens diárias são realizadas por veículos de massa, 24% por carros e 7% das viagens por ônibus privados, escolares e caminhões. Os dados são importantes, mas podemos perceber a estatística na própria cidade. Todos, eu disse TODOS os ônibus de Bogotá andam cheios. Abarrotados. Sejam TransMilenio ou não. A tarifa do sistema “rico” também agrada: a passagem tem o preço único de 1.700 pesos colombianos, o equivalente a R$1,90. Cada passageiro recebe um cartão magnético para liberar a catraca e acumular várias passagens no mesmo cartão, evitando assim as filas nos caixas. Já o sistema “pobre” de Bogotá é bem diferente. São ônibus acanhados, que transportam poucos passageiros e circulam nas principais avenidas da cidade. Não têm nenhuma padronização, pertencem a várias companhias diferentes e param em praticamente todos os lugares. Literalmente, eles param no meio da rua, assustando e quase atropelando os pedestres. Não há paradas! A quantidade não deixa a desejar, é
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verdade, mas chegam a ser tantos que tomam todas as faixas de uma avenida. Não há aquela organização de veículos maiores na faixa da direita. Se vira, malandro! A passagem custa 1.400 pesos durante o dia e 1.450 à noite, aos domingos e feriados. Isso dá cerca de R$1,50 a R$1,65. Ah, não há cobrador, deve-se pagar ao motorista. Capital da precariedade? A Jenipapo tentou conversar com a Secretaria de Transportes do Distrito Federal, sem sucesso. No site da Secretaria, o cidadão pode acompanhar os projetos “em elaboração”, como o próprio órgão admite. Entre eles, o Plano Diretor de Transporte Urbano do DF (PDTU), que ainda está em construção, e o Programa de Transporte Urbano do DF (PTU), que inclui ações como as tais faixas exclusivas. Por enquanto, são muitas siglas e promessas, como a de que a idade média dos ônibus de Brasília já caiu de 14 anos para cinco depois das licitações mais recentes (será?). Diante das perspectivas, podemos afirmar: com seus 2,57 milhões de habitantes, Brasília deve aprender muito com Curitiba. E aprender algo com Bogotá.
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Seguindo o exemplo de Curitiba, Brasília tenta adotar as faixas exclusivas de ônibus
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Banheiro feminino:
Por Carolina Alves
só para mulheres? Projeto de lei coloca em evidência discussão sobre gênero e sexualidade e propõe a criação de um terceiro banheiro para a comunidade LGBT
Tirinhas publicadas na Folha de S. Paulo, cedidas por Laerte
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Sapatos de salto alto, vermelhos. Saia preta e blusa de bolinhas. Cabelos longos e pretos, dois anéis em cada mão, que é pra dar sorte. Unhas pintadas. Brincos de argola. Essa é Luisa Minelli. Ela senta em uma lanchonete do Aeroporto Internacional de Brasília, pede um café e mancha a xicara branca com o batom. Depois, anuncia: “Vou ao banheiro!”. Enquanto caminha, 10 homens a olham, por cerca de cinco segundos. Alguns demoram mais. As mulheres se mostram mais interessadas, 15 acompanham os saltos vermelhos. Ela entra no banheiro, fecha uma das cabines. Na saída diz: “Estava apertada”. A cena seria sem importância se Luisa não tivesse um documento de identidade em que consta o nome José Alves da Silva. Ela é travesti.
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“Me maquiar, usar salto e saia é muito importante pra mim, é o que sou. E frequentar o banheiro feminino está conectado com esse mundo de que sinto fazer parte.” Laerte Coutinho, como é mais conhecido, ou Sônia, nome que escolheu quando começou a se travestir em 2009, é um dos cartunistas mais celebrados do país, tem 42 anos de carreira e se assume como travesti. Ele se identifica com o gênero feminino e usa o banheiro das mulheres, como Luisa Minelli, mas em janeiro deste ano foi orientado a não fazer mais isso. O caso aconteceu em uma pizzaria de São Paulo. Quando estava saindo do reservado o dono do local falou com Laerte para que não usasse mais o banheiro das mulheres, pois uma das clientes, acompanhada da filha, tinha reclamado da presença dele. “Conversei com a senhora, mas ela insistiu que eu estava errado e até abusando. Eu disse que não voltaria mais ao lugar. Cheguei em casa e contei a história no Twitter. Recebi respostas surpreendentes. O caso foi tomando volume e veio a lei.” Laerte acionou a Secretaria de Justiça de São Paulo baseado na Lei Estadual 10.948/2001. O argumento é que o caso dele poderia ser lido como discriminação por orientação sexual. Apesar de não mencionar a questão do banheiro, a lei considera atos discriminatórios:
I- Praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidadora ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica; II-Proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público;
O vereador paulistano Carlos Apolinário (DEM) apresentou, em fevereiro, o Projeto de Lei nº 36/2012, que prevê a criação de um banheiro destinado a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, depois que o caso de Laerte ganhou repercussão. A lei obrigaria shoppings, supermercados, restaurantes, cinemas e locais de diversão a ter um terceiro banheiro, além do feminino e do masculino. O texto da lei se refere a esse banheiro como unissex. O projeto está tramitando na Câmara Municipal de São Paulo e vai ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça. O vereador também apresentou um PL para criar o Dia do Orgulho Heterossexual, que chegou a ser aprovado na Câmara Municipal, mas foi vetado pelo prefeito Gilberto Kassab (PSD). Dimitri Sales, advogado e excoordenador de Política para Diversidade Sexual de São Paulo, afirma que o Direito não se presta a regrar esse tipo de situação. Para Foto: Carolina Alves
Tancredo e Maria Efigênia: ele gostou de morar lá; ela não
ele não existe – nem nunca vai existir – uma lei que defina essa questão. “O legislador não pode criar discriminações que sejam diretas. Ele pode criar as chamadas discriminações negativas, aquelas que elevam a condição de igualdade, mas não pode criar discriminações que gerem desigualdades. Se o projeto do Apolinário for aprovado deve ser vetado de pronto pelo chefe do poder Executivo por inconstitucionalidade material.” Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, publicada em 2010, perguntava se “os governos deveriam ter a obrigação de combater a discriminação contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais”, ou se “isso é um problema que as pessoas têm de resolver entre elas”. Sete em cada dez entrevistados preferem a segunda alternativa. Apenas 24% dos entrevistados entenderam que o combate à discriminação da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTTs) deve ser objeto de políticas de governo. A maioria absoluta dos pesquisados, 93%, acreditam que há preconceito contra travestis. Entretanto, quando perguntados se são preconceituosos, apenas 29% admitem e só 12% confirmam ter muito preconceito. Dia a dia A advogada Copelha Rousseff tem como nome de registro Luis Rocha Leal. Ela usa batom vermelho, lápis nos olhos, blusa nude e saia de oncinha, um colar de bolinhas rosa de várias voltas e saltos
“A medida ideal seria arrancar o gênero do banheiro” Keila Simpson
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altos. Esses trajes aparecem inclusive nos tribunais, mas ela afirma que nem sempre teve essa autoconfiança. Copelha tinha 12 anos quando começou a usar roupas mais apertadas. Expulsa de casa aos 15 anos, foi morar com a avó. Ela conta que já sofreu constrangimentos ao usar o banheiro feminino em Paris. Tudo começou quando um funcionário do aeroporto tentou impedir que ela entrasse no local:
- Esse banheiro não é permitido. - Por que não? - Porque você não é mulher. - Como você sabe? -Eu sei. - Quer que eu tire a roupa? As outras mulheres, menos incomodadas que o burocrata, falavam: “Deixa ela entrar!”. A travesti entrou e retocou sua maquiagem e, ao contrário do que aconteceu com Laerte Coutinho, teve o apoio de outras mulheres. Para Monajanaína Rabelo de Andrade Gomes, que nasceu com a genitália feminina e se traveste de homem, as mulheres aceitam mais facilmente os transgêneros. “As mulheres são mais flexíveis, o problema é os homens aceitarem.” A questão dos banheiros para travestis não é nova. Em 2006, no Rio de Janeiro, uma escola de samba inaugurou um banheiro exclusivo para a comunidade LGBT. A ideia surgiu depois de um episódio em que uma criança de 6 anos viu uma travesti trocando de roupa no banheiro feminino. Apesar da criação do novo banheiro, nenhuma proibição foi estabelecida. No ano passado, na Argentina, a lei do terceiro banheiro também foi proposta por
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uma legisladora. A justificativa é evitar a dificuldade, especialmente das travestis, para usar o banheiro feminino e os abusos sofridos no banheiro masculino. Para Carlos Apolinário (DEM) a razão para se criar o banheiro unissex é outra. No projeto ele justifica: “Ainda que muitos não concordem, homens e mulheres têm o direito inalienável de seguir esta ou aquela orientação sexual. É o que se chama livre arbítrio. Mas os direitos não podem ferir os direitos dos outros”. Segundo o advogado Dimitri Sales, “os projetos do Apolinário, embora sejam revestidos de um discurso pela moralidade, têm por trás uma tentativa de se projetar pensando nos seus privilégios como parlamentar”. Já segundo Tania Navarro Swain, historiadora e ativista do movimento feminista, quem quis “aparecer” foi o próprio Laerte. “Na minha opinião, é mais um homem que pretende se impor e exercer um poder sobre as mulheres ao invadir um espaço reservado socialmente a elas. Queria publicidade e conseguiu. Para mim, mais um pobre coitado.” Denilson Lopes, professor de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), discorda. Ele acredita que pensar em travesti como um invasor do espaço feminino é desconsiderar a construção da subjetividade que é o transgênero travesti. “Foi uma simples vontade de usar o banheiro. Existem diversas formas de ser homem e de ser mulher, não existe a mulher ou o homem, existe um leque de possibilidades. Cada vez que entra no banheiro você diz quem você é; cada vez que entra no banheiro você dá uma declaração de gênero.” No Brasil, não há uma lei que determine como a divisão dos banheiros deve ser feita. Essa escolha pode levar em consideração vários fatores. Laerte Coutinho diz que existem três identidades a serem consideradas e elas não precisam ser congruentes entre si. Primeiro, existe o sexo definido pela biologia, macho ou fêmea. Segundo, há a questão do gênero, que é uma construção social, o feminino e o masculino. Além disso, há também a orientação sexual, que é diferente e independente. Denílson
Lopes explica: “Existe uma confusão no Brasil entre gênero e orientação sexual. A pessoa que tem uma identificação masculina pode ter diferentes orientações sexuais. Então, um homem heterossexual é tão homem como um homem homossexual”. Para Laerte, a divisão mais correta seria a baseada no gênero. Hoje, em geral, utiliza-se o argumento fundamentado na biologia. Segundo Dimitri Sales, o ser humano pode ser analisado a partir de vários prismas, jurídico, social, psíquico, entre outros. “Ou a gente reconhece o gênero como sendo qualificador primário da pessoa, aquilo que diz quem a pessoa é – o gênero e não a sua genitália – ou a gente não avança no reconhecimento de direitos.” O pesquisador Denilson Lopes alerta para os perigos de se confiar plenamente no argumento biológico, que considera apenas a genitália. “Há um histórico dos chamados argumentos biológicos e científicos que foram utilizados para afirmar preconceitos diretos. A mulher no século XIX era considerada cientificamente inferior ao homem, isso era natural, era biológico. No fundo, é afirmar certos espaços para certos gêneros.” Assim como aconteceu com Laerte, pode acontecer de mulheres ficarem constrangidas
com o uso do banheiro por travestis. Em relação a isso Sales é enfático: “Se o banheiro é público é preciso aprender a conviver com as diferenças. Se não quer que uma travesti conviva no banheiro, use o banheiro da sua casa. Ninguém é obrigado a aceitar, mas é obrigado a respeitar. E no espaço público prevalece a razão pública, permeada por princípios fundamentais”. A historiadora Tania Navarro Swain discorda: ”O ideal de uma sociedade que não seja dividida a partir de corpos sexuados está longe de ser alcançado. Assim, os banheiros femininos são um lócus de uma segurança muito relativa e de uma certa privacidade. A intrusão neste espaço por um homem vestido de mulher é mais uma violência que se exerce contra as mulheres. Ele (Laerte) não pretendia ser transgênero ou travesti, apenas queria se impor. Esta é uma típica atitude masculina que acredita ter todos os direitos sobre os corpos e os espaços femininos. Se apenas uma mulher recusasse sua presença ele não teria nenhum direito de infligi-la. Foi uma ato de prepotência inaceitável”. Banheirão “A divisão de banheiros por gênero pode ser interpretada de muitas formas, físicas e metafísicas. Mas não existe nada – nem a posição em pé – que justifique a existência de banheiros dessemelhantes. Pra mim, a melhor disposição do serviço é o banheiro único, com atendimento de quesitos como acessibilidade, número de unidades, segurança, limpeza e bom funcionamento”, afirma Laerte. Keila Simpson, vice-presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT) concorda: “A medida ideal seria arrancar o gênero do banheiro. Eu não preciso de um terceiro banheiro, não é preciso colocar a minha população mais estigmatizada do que ela já é”. A filósofa espanhola Beatriz Preciado, no artigo “Sujeira e Gênero. Mijar/Cagar. Masculino/Feminino”, propõe uma subversão em relação às definições impostas. “Não vamos aos banheiros para evacuar, senão para fazer nossas necessidades de gênero. Não vamos mijar, senão reafirmar os
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códigos da masculinidade e da feminilidade no espaço público. Por isso, escapar do regime de gênero dos banheiros públicos é desafiar a segregação sexual que a moderna arquitetura urinária nos impõe há mais ou menos dois séculos:
público/privado, visível/invisível, decente/obsceno, homem/mulher, pênis/vagina, de-pé/sentado, ocupado/livre...”
Preconceito e segurança “A existência de banheiros especiais para quem assim o desejar é simbolicamente importante, mas não elimina o medo dos homossexuais de ambos os sexos, travestis e transgêneros de serem agredidos. De modo que não é uma solução”, afirma Denílson Lopes. Segundo Monajanaína Rabelo de Andrade Gomes, o preconceito ainda é grande: “Emprego eu só consigo de segurança por conta da minha aparência. Fiz um entrevista numa empresa de telefonia pra ser secretária e o empregador me disse que não tinha nada contra, mas não contratava homossexuais. E ele concluiu isso pela minha aparência: quando a fisionomia não é de acordo com o emprego eles não consideram a qualificação profissional”. Monajanaína revela ainda que a escolha do banheiro tem a ver com o medo de ser agredida, justamente por conta da discriminação: “Uso o banheiro feminino porque é mais seguro. Já escutei várias frases que nem gosto de repetir”. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo atesta o preconceito que chega ao nível extremo, a intolerância. O estudo constatou que 6% dos entrevistados seriam homofóbicos, ou seja, considerados como tendo forte preconceito contra a comunidade LGBT, enquanto 39% apresentaram um preconceito mediano, 54% manifestaram um grau de preconceito classificado como leve e somente 1% não expressou qualquer nível de preconceito. O resultado revela que ainda existe uma grande discriminação. Cena travestida João Silvério Trevisan, autor de Devassos no Paraíso – A homossexualidade no Brasil, diz no livro que, ao contrário dos dias atuais, a profissão de ator/atriz no século XVIII era considerada vergonhosa pelos portugueses, a ponto de se negar a esses profissionais a sepultura religiosa. Dentro desse contexto, foi promulgado, em 1780, um decreto que proibia a presença de mulheres nos palcos dos teatros. Com a ausência da presença feminina nos grupos teatrais, os papéis
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destinados a mulheres eram interpretados por homens travestidos. De acordo com o texto do escritor, “consagrada no ambiente teatral, a prática profissional do travestismo ocorria num contexto social nada inocente de disseminação da pederastia, que com certeza lhe adicionava conotações não exclusivamente profissionais. Vale lembrar que, já na primeira metade do século XIX, era comum e escandalosa, numa cidade como o Rio de Janeiro, a prática homossexual – sobretudo no baixo comércio, onde imperavam os imigrantes portugueses, que muitas vezes mantinham casos de amor com seus empregados caixeiros”. Essa dificuldade de aceitação é real e ainda atual. Segundo a travesti Keila Simpson, há uma dificuldade da travesti se inserir socialmente porque a imagem dela está muito ligada a sexo. “Nunca ninguém associa que uma travesti andando na rua com um homem esteja com um amigo, sempre veem uma relação de casal e isso faz com que a ‘transfobia’ seja mais forte ainda.” Keila começou com a militância e a prostituição ao mesmo tempo. “Cheguei na Bahia em 91 para trabalhar diretamente com a militância e continuei fazendo a prostituição porque não tinha como, ia sobreviver do quê? Então, conciliava as duas coisas.” Luisa Minelli também já se prostituiu. “A gente não consegue emprego bom. Se você não for cabelereiro, meu bem, esquece. Já tentei vaga pra vendedora, secretária, mas sempre me falam que não tenho o perfil da empresa. Pra mim é preconceito.” As discussões sobre gênero e sexualidade caminham para a aproximação de dois mundos, uma vez que a inserção da comunidade LGBT se torna cada vez mais presente. E questões cotidianas como usar o banheiro vão forçar discussões antes ignoradas. Por enquanto, existem dois banheiros e uma grande polêmica.
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Leia-me até o fim O hábito de leitura do brasileiro passa longe de um conto de fadas: são apenas quatro obras no ano inteiro. O que fazer para dar a essa história um final feliz?
Por Luísa Dantas e Laniér Rosa
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Foto: Samuel Paz
O livro é a possibilidade de uma viagem sem limites. Ao tomar esse objeto nas mãos, o leitor pode encostar-se em um lugar qualquer. Escolher: se prefere os pés repousados na posição vertical ou horizontal – o que lhe parecer mais confortável. Dali a alguns instantes, ele, provavelmente, terá que mudá-los de posição, tendo em vista que um fenômeno chamado câimbra interromperá a concentração e lhe trará um momentâneo desconforto. Será necessário, por vezes, anunciar aos conhecidos que se encontram a poucos metros o início de uma nova viagem, ou leitura: “Não perturbem!”. E, como assegura Ítalo Calvino, embarcar na leitura para que “o mundo à sua volta se dissolva no indefinido”. Mas apesar dos milhões de bibliófilos e das apaixonantes descrições do ato de ler, o brasileiro parece não estar convencido das possibilidades de viagem, paixão e aprendizado que um livro pode trazer. Nas terras tupiniquins, a informação de que o brasileiro está lendo mais anima um pouco, até olharmos as letras miúdas da mais recente pesquisa lançada. Dos quatro livros que lê durante os 365 dias do ano, o compatriota conclui somente 2,1 deles, segundo estudo divulgado em 2012 pelo Instituto Pró-Livro (IPL). Brasileiros como Luan de Deus, 28 anos, que nunca foram a uma biblioteca e só leram livros na escola porque, enfim, eram obrigatórios. Luan afirma que os volumes literários o cansam bastante e que nunca foi habituado a gastar tempo com eles. “Quando vejo aquele monte de texto em jornal e livro, me desanima. Pelo menos as revistas são mais criativas e interessantes”, compara. Livros substanciais também não fazem muito a cabeça de Renan Demétrio, 23 anos. “Prefiro ler jornais na internet ou revistas. Livros são muito cansativos”, diz o auxiliar administrativo. Ele confessa que nunca finalizou a leitura de uma obra sequer, apesar de ter concluído o Ensino Médio. Graciela Bertão, 29 anos e estudante de Administração, se intitula leitora assídua – “mas só de romances”, enfatiza. Na coleção,
mais de 20 obras que a fazem viajar com histórias “melosas”, como gosta de chamar. “Já li outros livros, mas gosto mesmo dos romances. Quanto mais água com açúcar, melhor”, confessa. Assim como Graciela, há outros brasileiros que nadam contra a corrente e fazem da leitura um hábito cada vez mais constante. Avista-se, então, uma moça de cabelos curtos e negros, olhos grandes e lábios grossos, uma espécie de Amélie Poulain brasileira. Seu nome é Beatriz Bandeira. Assim que pisa no tapete vermelho da Livraria Cultura, a expressão da garota muda. De repente, as incontáveis prateleiras cor de creme, recheadas de livros literários e várias histórias, a transportam para outro mundo. Ao desacelerar o passo, inicia uma espécie de ritual, e passeia com os dedos volume por volume. Apanha a obra As mentiras que os homens contam com delicadeza, como se tivesse medo de quebrá-lo. Lê a contracapa, brinca com as páginas, toca as folhas com as mãos. “Tenho mania de ler a contracapa de todo livro que compro. Além disso, sempre leio a última frase da obra. Às vezes me dou mal e leio um spoiler, mas não adianta: é mania mesmo.” Beatriz tem 18 anos, é estudante de Psicologia e leitora compulsiva, ou uma “rata de biblioteca”, como se define. O gosto é versátil: na prateleira, de Dostoiévski a Marcelo Rubens Paiva, seu escritor favorito. “Leio desde pequena e todos os tipos [de livros]”, conta. Aprendeu a ler aos quatro anos e não parou desde então. “Acho que foi meu pai quem mais me influenciou; ele gosta bastante de ler, além de ser excelente escritor.” Para Beatriz, ler vinte livros em um ano é bastante normal. “Emendo um no outro, devoro as páginas mesmo. Literatura é uma paixão antiga.” O problema é que essa realidade não acompanha a grande maioria dos brasileiros. Mais precisamente, a vida sem literatura de 88,2 milhões de pessoas. É o que indica o estudo Retratos da Leitura no Brasil, a última pesquisa do Pró-Livro, divulgada em março deste
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Crescimento gradativo Quem nunca se deparou com frases de efeito retiradas (ou não) de obras de Clarice Lispector ou Caio Fernando Abreu nas redes sociais? Se para muitas pessoas esses fragmentos de literatura soam extremamente sensíveis e verdadeiros, para outros a nova febre apenas desqualifica o trabalho dos autores. É comum ver trechos que não são de Caio ou Clarice espalhados por Facebook e Twitter – na verdade, muitos internautas nem sequer sabem quem é o primeiro. “Caio Fernando Abreu? Ah, o Caio F., né? O das frases”, comenta uma internauta em um blog sobre literatura. Outro garoto posta uma frase de Carlos Drummond de Andrade como se fosse dele – do tal Caio F. A preocupação com os donos das falas, porém, se manifesta, em grande parte, nos leitores em quem o hábito de ler entrou na rotina. “Fico indignada com esse pessoal que sai postando mil frases sem saber se o autor é mesmo aquele. Por exemplo, tenho certeza que ninguém nunca leu Morangos Mofados ou Ovelhas Negras do Caio. Se brincar, nem sabem que ele já morreu”, reforça Beatriz, diante da tela do Facebook com uma citação errada. Mas se há quem se preocupe com a leitura fragmentada (e duvidosa) na tela do computador, outra preocupação bem maior não se espalha pelo mural do Facebook: nos últimos três meses, metade dos brasileiros não leu sequer parcialmente um livro, de acordo com os dados do Instituto Pró-Livro. A pesquisa constata ainda que o hábito da leitura está ligado diretamente à frequência na escola. Entre os estudantes brasileiros, que incluem alunos do Ensino Fundamental à Graduação, apenas 16% não lêem. O problema, entretanto, atinge todos os lados: a média de obras lidas é 1,4 para quem não está estudando contra 3,4 para quem estuda.
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Para Karine Pansa, presidente do instituto e da Câmara Brasileira do Livro, os indicadores são baixos, mas houve uma melhora de qualidade nos livros adquiridos. “Se aprofundarmos a análise dos resultados, percebemos indicadores que mostram melhor qualidade nessa leitura, com crescimento no número de pessoas que afirmaram ler mais hoje do que em relação à última pesquisa”, avisa. Para a especialista em linguística da Universidade de Brasília Marcia Elizabeth Bortone, o hábito é fundamental para distinguir um país letrado de um país ainda em processo de letramento. “As pessoas estão começando a construir o hábito da leitura, mas ele está ainda muito restrito às camadas mais altas da sociedade. As classes mais baixas, de pouco poder aquisitivo, ainda não usam a leitura funcionalmente e também não têm como comprar livros.” E completa: “Essas pessoas precisariam ter acesso às bibliotecas públicas de qualidade, a feiras de livros com preços bem acessíveis, entre outras medidas, para que a leitura chegasse ao grosso da população”. De acordo com a pesquisa, “assistir televisão” é o que os brasileiros gostam de fazer nas horas vagas. “Ler (jornais, revistas, livros e textos na internet)” ficou em sétimo lugar. Mas, se comparado com as pesquisas passadas, os dados colhidos não são tão ruins, uma vez que o mercado brasileiro de livros está aquecido. “Muitos fatores têm contribuído para conscientizar a população sobre a importância do hábito da leitura, como a queda constante nos preços, o aumento do poder aquisitivo, principalmente da chamada nova classe média, e o crescimento das novas tecnologias, como os e-books, que apresentam mais familiaridade com os jovens”, destaca Karina, presidente do IPL. Em 2007, o estudo apontou que 40% dos entrevistados reforçaram suas leituras. Agora, esse índice chega a 49%. Na apuração dos dados, o Centro-Oeste foi a região brasileira que mais se destacou. A média de livros lidos pela população foi de 2,12 livros, um pouco superior que a média
nacional, de 1,85 exemplar. “Percebemos um grande movimento dos interessados pela leitura por iniciativa própria, já que o índice ficou bem acima dos indicados pela escola”, informa o IPL.
Para Beatriz Bandeira, a livraria é um santuário
Foto: Samuel Paz
ano. Cerca de cinco mil pessoas em 315 municípios foram ouvidas para a sondagem, respondendo questionários avaliativos sobre o hábito de leitura.
De Crepúsculo ao padre Imagine a seguinte situação: você entra na livraria e a primeira coisa que se destaca na entrada são duas palavrinhas: mais vendidos. De um lado, livros de capas pretas com apenas um símbolo; de outro, obras grossas e pesadas sobre mitologia – versões que seguem o modelo de O Senhor dos Anéis. Nessa categoria de best-sellers se encaixam Crepúsculo e outros obras, como A cabana, de William Young, As crônicas de gelo e fogo, de George R. R. Martin e A Última Música, de Nicholas Sparks. Lá no meio, avista-se um verde e amarelo: o Guia politicamente incorreto da história do Brasil, do curitibano Leandro Narloch. O jornalista de 32 anos carrega no currículo experiências como repórter da revista Veja e editor das revistas Superinteressante e Aventuras na História. Admite sem delongas que tinha, sim, preconceito com best-sellers – até ver seu trabalho se tornar um. O livro está há mais de 100 semanas na lista de obras de não ficção mais vendidas, de acordo com ranking da revista Veja. “Lembro que um chefe meu estava lendo O Livreiro de Cabul e eu perguntei ‘Por que você está lendo isso?’. Só depois descobri que se trata de um excelente livro, obrigatório em qualquer faculdade de jornalismo. Acredito que devemos ser neutros em relação a best-sellers – um livro não é necessariamente bom ou ruim porque vende bem”, conta Narloch. Mas se para muitos as obras de Paulo Coelho e J.K. Rowling são as favoritas nas prateleiras, para outros os conhecidos best-sellers não são assim tão procurados. Leonardo Coelho, estudante de Jornalismo, não os evita completamente – no cardápio literário constam obras de Dan Brown e Suzanne Collins; mas também não estão no posto de preferidos. “Fui criado em
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um ambiente em que o pessoal sempre valorizou mais a literatura clássica (especialmente os alemães e os russos) e você acaba sendo influenciado pelo meio em que é criado. Isso não significa que eu não leia mais vendidos ou os despreze, só não os priorizo”, afirma. A especialista Marcia Elizabeth Bortone acredita que a diferença está justamente no fato de as pessoas usarem a leitura no diaa-dia, seja por fruição, seja funcionalmente. “Se ele lê, entende e gosta de best-sellers, autoajuda, romances juvenis de aventura e de amor e até gibis ou fotonovelas, deixe que leia isso. Não repreenda, estimule! Qualquer leitura é melhor do que nenhuma.” De acordo com a pesquisa sobre hábitos literários, em 2000, o número de leitores correspondia a 26,6 milhões. Em 2011, o volume cresceu para 71,9 milhões. No ranking de preferências, os livros literários ocupam a quarta posição, atrás de jornais e revistas. Em primeiro lugar, livros didáticos, seguidos pela Bíblia e livros religiosos ou de autoajuda. Ágape, do padre Marcelo Rossi, é best-seller: está há mais de 80 semanas no ranking de “Autoajuda e esoterismo”, de acordo com levantamento da Veja. O preço da obra em livrarias digitais, como nos sites Americanas, Cultura e Saraiva, ajuda a alavancar as vendas: varia de R$ 9,90 a R$ 17. “Hoje é cool ter um livro grosso embaixo do braço. Há 10 ou 20 anos os jovens tinham vergonha de andar com livros por aí. O preço deles está baixando cada vez mais – e com os sites de comparação de preço pela internet, a pressão por menores valores vai aumentar muito”, comenta Leandro Narloch. Livros Delivery O professor de inglês Henrique Antero é consumidor de livros pelos endereços eletrônicos. Entre as preferências estão os sites Estante Virtual e Submarino – ele diz que os descontos são bons; a entrega, satisfatória. “É bem mais prático pela comodidade da entrega em domicílio; a variedade é maior também. Aproveito
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as promoções de boxes, onde consigo comprar três livros pelo valor de dois. Geralmente ainda pego frete grátis ou pequenos valores”, revela. Além das compras pela rede, os e-books, livros digitais oferecidos para tablets, computadores e celulares, são apontados, atualmente, como o novo formato de leitura. Quem já teve contato com os livros eletrônicos se diz satisfeito: mais precisamente 54% dos entrevistados pelo Pró-Livro. Apenas 6% afirmam não ter interesse e não ter gostado dos e-books. Narloch acredita que essa novidade não muda muita coisa – ainda são livros, só que em outra plataforma. “Li esses dias que biografias enormes, aquelas com mais de 800 páginas, devem acabar – com o livro digital, um livro grosso não dá mais status para o leitor”, pondera. Para o escritor e jornalista, o acesso a livros raros ou em outras línguas também ficará mais fácil. “Livros que quatro anos atrás demoravam um mês para chegar hoje estão num tablet em 30 segundos. O leitor brasileiro não está mais preso às editoras nacionais”, reforça. Mas há quem discorde. Henrique Antero não é adepto da tecnologia de leitura; para ele, a nova onda de livros digitais não é a mesma coisa de se ter a obra na mão. “Meus olhos ficam cansados quando leio por muito tempo na tela do computador. Além disso, sou do tipo que prefere ter o livro na mão, sentir a página, guardar na prateleira. Não consigo me acostumar aos e-books, por mais que tente.” Vai um livro aí? Você sabe quantos livros foram vendidos no Brasil em 2010? De acordo com levantamento do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), foram 437 milhões de exemplares, resultando em faturamento de mais de R$ 4 bilhões. De acordo com a presidente do IPL, o brasileiro tem comprado mais livros; o problema é que as aquisições costumam sempre vir de quem já tem o hábito de ler. “Eles são incentivados principalmente pelo
maior número de lançamentos, redução no preço e formas de acesso, como a internet. Neste aspecto, a pesquisa mostrou que não houve a ampliação de leitores”, alerta Karine Pansa. A aquisição de obras literárias também aumentou, de 45% em 2007, para 48% em 2011, de acordo com levantamento da CBL e da Federação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Segundo a pesquisa, o faturamento das editoras cresceu, de 2009 para 2010, 2,63%. No entanto, os números podem ser maiores, pois apenas 141 das 498 editoras do país responderam o questionamento da federação. Entre os canais de vendas de livros no Brasil, as livrarias continuam em primeiro lugar, seguidas por distribuidores domiciliares, internet e supermercados. É o que informa o levantamento da Associação Nacional de Livrarias (ANL), divulgado em 2010. O crescimento editorial brasileiro naquele ano foi de 8,12%; já o número de exemplares vendidos cresceu 8,3%. O estudante de Direito Felipe Campos estudou os três anos de Ensino Médio no Colégio Marista Champagnat, em Taguatinga, e conta que “o pessoal só lia porque era obrigado a ler. Os livros do Programa de Avaliação Seriada (PAS) – alternativa ao vestibular da Universidade de Brasília –, no caso, eram os essenciais”. O rapaz de 22 anos afirma ter o hábito da literatura, mas só consegue finalizar os livros que o interessam. “Eu não consigo pegar essas obras clássicas e ler até o final. Não é a quantidade de páginas que me impede, mas sim, a linguagem utilizada”, conta. Felipe prefere obras como As crônicas de gelo e fogo, de George R. R. Martin, que, juntas, totalizam mais de duas mil páginas (por enquanto, já que a série ainda não está terminada). “Na faculdade, é difícil ler os livros indicados pelos professores. Acho muito chato. Já livros que envolvem mitologia ou investigação me interessam mais”, completa. Leandro Narloch defende o ponto de vista de que, sim, a cultura do livro tem que ser iniciada na infância, mas sem os
mecanismos automáticos a que várias escolas estão acostumadas. “Me incomoda um pouco aquela mensagem professoral de que ‘ler é importante’, ‘ler é bonito’. O importante é conhecer o mundo, discutir idéias – seja por jornais, por livros ou pela televisão. A insistência em fazer os alunos lerem só gera tédio com as obras. O melhor é fisgá-los pelas histórias, pelas ideias curiosas e novas”, pondera. Já para Karine Pansa o problema parte de dentro da escola – literalmente. “A formação leitora [nas escolas] não está consistente. Os estudantes hoje associam a leitura apenas a tarefa, a obrigação. A pesquisa retrata que é necessário apresentar uma escola mais atrativa, que desenvolva o papel de formar leitores de maneira mais agradável. Falta o papel do professor-leitor. Hoje a escola não desempenha, adequadamente, o papel de criar novos leitores.” Para a linguista Marcia Elizabeth Bortone é preciso que escola, pais e comunidade se engajem em um trabalho de incentivo. “Oferta de livros, ampliação de bibliotecas e aumento de horas dedicadas à leitura no espaço escolar são métodos que as escolas precisam implantar com urgência. A leitura é o grande impasse na educação”, ressalta.
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Foto: Divulgação
“A insistência em fazer os alunos lerem só gera tédio com as obras. O melhor é fisgálos pelas histórias, pelas ideias curiosas e novas”, diz Leandro Narloch
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Fonte: Instituto Pró-Livro / Arte: Angélica Novais
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obras primas
do cotidiano
Foto: Samuel Paz
Escolas públicas do DF comprovam que é possível o ensino comprometido da arte para crianças e adolescentes
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Por Sheylla Alves e Jéssica Paulino
Já imaginou uma criança de sete anos fazendo uma releitura do Davi de Michelangelo? Meninos e meninas criando arte de verdade e de primeira qualidade. Essa deve ser a perspectiva da educação artística no Brasil. A “aula de artes” não é mais vista como a hora do relaxamento, da bagunça e da diversão. Pelo menos é o que diz a legislação. Desde 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação (Lei nº 9.394), tornou-se obrigatório o ensino de educação artística em todas as escolas dos níveis fundamental e médio. A aula de arte cresceu. Hoje não são somente as canetinhas que reinam no ambiente escolar, mas também o mármore, as tintas a óleo, sprays... Tudo para os projetos artísticos dos alunos. E pode ser surpreendente, mas no Distrito Federal, é nas escolas públicas que, em geral, se encontram os melhores exemplos de aplicação da LDB. Cada escola tem uma política interna e uma estrutura diferenciada para o ensino de arte. Algumas têm salas específicas na rede pública de ensino. O Centro de Ensino Fundamental (CEF) 08 do Gama é uma escola como qualquer outra no DF. Muro cinza, carteiras de madeira, tijolinhos formando paredes. Também é um exemplo de que a aula de arte não é mais a mesma de anos atrás. Seguindo o estilo de “salas ambientes”, a arte tem sua própria sala. Lá, o aprendizado acontece de forma diferente. Os materiais necessários para as produções artísticas são levados pelos alunos ou doados para a escola. Jô Braga, professora de arte da instituição, realizou recentemente um projeto em que os alunos criaram releituras das obras do artista plástico Athos Bulcão, pioneiro na arte brasiliense. Além desse, já foram realizados outros projetos, como releituras de obras de Tarsila do Amaral – o Abaporu entre elas. A escola é um ambiente de aprendizado e por isso segue algumas regras, como a típica fila indiana. Mas na aula de arte a situação muda. No
CEF 08, os alunos podem trabalhar em duplas, trios, formam rodinhas e assim as atividades são feitas. Uma das grandes dificuldades das escolas públicas é realizar projetos que sigam a proposta pedagógica do Ministério da Educação (MEC), devido à falta de condições efetivas. O MEC não distribui nenhum livro didático para a disciplina de Educação Artística, ao contrário de disciplinas como Biologia, História e Geografia, que possuem livros didáticos-base oferecidos ou indicados pelo ministério. Também não há, na LDB, nenhuma posição clara sobre os materiais didáticos, apenas a referência à necessidade de utilizar algum material educativo ou recurso didático. Por conta dessa falta de apoio, na maioria das vezes o conteúdo teórico é disponibilizado pelos professores por meio de xerox de livros em copiadoras das escolas – isso quando existe essa possibilidade. Em outros casos os próprios professores fazem as cópias do material e levam para sala. Ainda assim, melhorou. A professora e artista plástica Patrícia de Kaiser afirma, diante de sua trajetória: “O ensino de arte percorreu um longo caminho até ser o que é hoje. Antes eram ministradas aulas de desenho geométrico, onde não havia nota a ser dada ou era auto-avaliação. Já os livros didáticos, apesar de muitas fotos, possuem pouco conteúdo e assim por diante”. Isso acontece, segundo ela, por conta da mudança no currículo das escolas. Quando o ensino de arte tornouse obrigatório, foi retirada a disciplina de desenho geométrico do currículo. Muitas editoras de livros didáticos apenas renomearam os livros de desenho geométrico para Educação Artística, esquecendo o conteúdo interno do livro. O professor Frank Alves dá aulas há 13 anos. Trabalha no Centro de Ensino Médio 01 do Gama e, para ele, mesmo com avanços, a LDB já precisa de atualizações. “As diretrizes curriculares são necessárias para nortear, mas não devem constituir o único caminho”, opina. Deveriam ser
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levadas em consideração, diz, a cultura regional de cada estado e a recente inserção do ensino da cultura indígena e afro nas diretrizes curriculares. Frank defende que esses conteúdos são fundamentais para a compreensão de valores das nossas raízes. Muito além do livro Frank Alves sustenta que a teoria sobre arte, presente nos materiais didáticos, deve ser aliada à vivência. “Busco desenvolver atividades que despertam a sensibilização, com auxílio de materiais expressivos, música, filmes, jogos dramáticos e outros recursos, inclusive ferramentas multimídia.” Frank conta que faz a ponte com a teoria a partir da experiência prática. O professor também agrega novas tecnologias às ferramentas didáticas. “Elas fazem parte do universo dos alunos.” Um passo além da inclusão de diferentes materiais e técnicas de ensino é a vivência mais próxima da produção artística. Em países europeus os alunos desde cedo são incentivados a conhecer a herança da produção clássica ocidental. Visitam os museus, que expõem grandes nomes artísticos, vão a galerias de artistas contemporâneos e expõem suas próprias obras. Normalmente as visitas são orientadas por um especialista em arte e outro em história, assim a contextualização está sempre presente. As visitas orientam os alunos a entenderem melhor o processo artístico ensinado em sala de aula. Estar de frente com a técnica do sfumato na obra A Anunciação, de Da Vinci, é tão prazeroso (e didático) quanto a emoção ao se deparar com as densas camadas de tinta em Noite Estrelada, de Van Gogh. No Brasil, a iniciativa das visitas a museus era algo raro para os estudantes, em geral porque a estrutura da educação não semeava essa ideia. Hoje, muitas escolas já possuem projetos para levarem seus alunos a lugares onde a arte vive.
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Frank Alves avalia que, hoje, muitos fatores colaboram para que o ensino da arte seja levado a sério: “A própria formação dos professores de arte, atualmente, está mais rica e voltada para a realidade dos alunos”. Por isso, ele procura mostrar aos alunos que a arte é parte integrante da vida do homem e que é impossível dissociar-se dela. Isso porque, desde sempre, o homem se expressa de alguma maneira. Em outras palavras, o professor encara a arte “como a própria vida”. Como ele faz isso? Um exemplo é estudar os fundamentos da linguagem visual. Isso pode ajudar os alunos, afirma, “a perceber
Tarsila do Amaral (ao lado) e Athos Bulcão em releituras dos estudantes do Gama, no DF
Fotos: Samuel Paz
Um saber importante No início da história do homem na Terra, a arte já estava presente. Nas paredes das cavernas eram pintados animais e cenas da vida cotidiana. Nos materiais para uso diário de caça, também estavam estampadas as técnicas artísticas. É o que hoje chamamos de arte rupestre. Mas essa produção e qualquer outro movimento posterior só começaram a ser tratados como item obrigatório na formação escolar na passagem do século XIX para o século XX.
que as campanhas publicitárias utilizam determinados recursos visuais para convencer as pessoas a comprar coisas que não precisam”. Ensinar a ser artista? Levar o ensino da arte a sério não significa que todo aluno deve sair da escola um pintor, escultor, ator, cantor ou instrumentista, por exemplo. Significa que a educação artística é importante para a construção do intelecto do estudante e que isso contribui para sua formação humanística. Segundo Dhyana Aguiar, essa visão é confrontada pela própria sociedade que acaba entendendo que a aula não é importante: “Apesar de a nossa sociedade ser rica em cultura ainda não aprendeu a valorizar e por isso perdemos muito em aprender sobre nós mesmos, além da perda de apreciação da arteeducação”, aponta. Dyhana é bacharel em artes plásticas pela Universidade de Brasília e psicóloga pelo Uniceub. Ser artista, assim, transcende o ensino das técnicas e também da teoria. Aquele mesmo Michelangelo, inspiração para o trabalho de alunos, era pintor, escultor, arquiteto e até poeta. Casos como o dele, no Renascimento, eram comuns. Bons artistas também eram bons arquitetos, médicos e escritores. Mas não foi o conhecimento técnico que o tornou o pai da Capela Sistina. Para a artista plástica Patrícia de Kaiser, o “ser artista” é dotado de sensibilidade e tem a necessidade de mostrar o que sabe fazer de melhor. “Sua arte está no sangue, na veia que pulsa artisticamente no corpo. Sua sensibilidade está acima de rótulos e aprendizados.” Formada pela Universidade de Brasília (UnB), ela tinha 19 anos quando entrou em sala para dar aula pela primeira vez. Patrícia não concordava com o método de desenhos e folhas para pintar. Já no segundo ano como professora, organizou um projeto de vernissage – processo de “envernizamento”, usado em préestreias de demonstração particular para
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Não tem desculpa A desculpa de que a arte não tem importância para o brasileiro já é clichê. Hoje o Brasil abriga uma grande quantidade de museus, acervos, galerias, espaços culturais e até igrejas – que podem promover o estímulo à educação artística nacional. Rio de Janeiro e Minas Gerais concentram importantes nomes da arte. O Museu Histórico Nacional (RJ) foi criado em 1922, e a história se encontra com a arte no Brasil. Em 1922 ocorreu, em São Paulo, a Semana de Arte Moderna, em que artistas tentaram pela primeira vez marcar uma identidade própria na arte nacional. No Museu do Oratório em Ouro Preto
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(MG) são conservadas obras tipicamente brasileiras. Durante determinado período Aleijadinho chegou a morar lá. Em Minas também está o Museu de Arte Contemporânea Inhotim, em Brumadinho. Lá estão abrigadas obras tanto de artistas nacionais como de renome internacional, como Adriana Varejão e Beatriz Milhazes. Já o Museu de Arte de São Paulo (Masp) é o mais importante do Hemisfério Sul e abriga mais de oito mil peças de artistas renomados como Cézanne e Rodin, além dos brasileiros Di Cavalcanti e Anita Malfatti. O incentivo à arte por parte dos institutos e fundações de arte deixa claro o desejo de que o Brasil tenha mais apreciadores. Além das obras, muitas oficinas são ministradas por professores ou até pelos próprios artistas. O Centro Cultural da Caixa tem espaços em diversos estados. Em Brasília sempre há oficinas junto às exposições. Já o Museu Nacional Honestino Guimarães, que abriga exposições itinerantes, sempre recebe escolas públicas e privadas. Lá os alunos são acompanhados por guias e pelo professor. Dhyana Aguiar, há pouco tempo, montou a Casa de Cultura Dhyana Aguiar, escola de arte, fruto de um sonho antigo. Lá a arte voa livremente, os professores fazem o que gostam e, por isso, a educação artística é diferenciada e específica. Segundo ela, a sociedade ainda não entendeu que o aprendizado artístico é tão importante quanto o ensino de português e matemática. “A aula de arte não é a hora do entretenimento, tem um conteúdo que deve ser seguido”, afirma.
A arte no vestibular As mudanças recentes para o ensino artístico em Brasília tiveram forte influência pela decisão da UnB de cobrar artes plásticas, cênicas e música no vestibular e na avaliação seriada (PAS). Cecília Lima é estudante do Ensino Médio na rede pública do Distrito Federal e está inscrita no PAS. Ela acredita na importância da educação artística no ensino do país. “A disciplina não é brincadeira, tem que ser levada a sério. Acho importante ter questões de arte em provas de vestibular, até porque a arte e a história meio que andam juntas e uma auxilia a outra.”
As paredes da sala de aula são a galeria dos jovens artistas
Foto: Samuel Paz
Foto: acervo pessoal
convidados – com os alunos. “Sempre procurei mostrar os diversos estilos. Depois de conhecidos, os alunos partiam para a produção deles.”
Patrícia de Kaiser acredita que a sensibilidade do artista está além do aprendizado
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ENSAIO
o que podem os quadrinhos?
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Por Ciro Inácio Marcondes
Qual não foi minha surpresa quando, ao ler um artigo de Richard Abel, pesquisador do primeiro cinema, descobri que o filme “Regador regado” (Arroseur Arrosé, 1985), dos irmãos Lumière, havia sido “muito provavelmente” baseado em uma história em quadrinhos de Christophe, um famoso pioneiro da HQ francesa? Este filme, uma piada registrada em uma só tomada, é do ano da primeira exibição pública cinematográfica, e do ano da primeira publicação americana em quadrinhos, o Menino amarelo de Richard Outcault. Mais interessante: é considerado o primeiro filme de ficção, ou seja, a primeira vez que se apresentava ao público uma encenação cinematográfica, e, agora, provavelmente é também a primeira adaptação cinematográfica. A partir de uma história em quadrinhos. O dado histórico é interessante porque afunila ainda mais as relações já tão próximas entre HQ e cinema, colocando ambos não apenas dentro de um patamar comum, que os gerou – o advento da modernidade, dos avanços científicos e da cultura de massas no fim do século 19 –, como também localiza os dois meios de expressão dentro de uma origem no mesmo gênero: a comédia. Esta ligação não seria à toa e não perderia a continuidade em mais de 30 anos de trajetória dos quadrinhos. Sabe-se, em primeiro lugar, que de Töpffer, a Ângelo Agostini, ao próprio Christophe e a uma infinidade de tabloides britânicos do séc. 19, as raízes dos quadrinhos se localizam no cartum, na charge, nas publicações de humor da primeira fase industrial da imprensa. E sabe-se que, desde o Menino amarelo até os anos 30, quando impactam os quadrinhos de aventura, são especialmente formas de humor – seja de um tipo anárquico (Sobrinhos do capitão), arquetípico (Krazy kat) ou até surrealista (Felix) – que predominam nas publicações de jornal. Estes quadrinhos se juntavam a outros modelos que alçavam voos
substanciosos para fora do gênero, como a delirantemente óptica Upside downs, que mudava de sentido quando se virava a tira de ponta-cabeça (flertando com a arte moderna da época), ou a obraprima Little Nemo, de Winsor McCay, verdadeiros poemas surrealistas em linda art-nouveau, um fenômeno inclassificável. A primeira era dos quadrinhos, portanto, longe de ser um anedotário vintage de velharias de curiosidade somente histórica, foi um fenômeno que passeou no campo fértil da criação selvagem, ainda sem um grau de imposição que os restringisse ao mercado infantil ou à desqualificação atribuída aos produtos de massa, mesmo que ainda não se cogitasse enxergar aquilo como “arte”. Tudo isso serve para se pensar que, antes que os quadrinhos tivessem seu espectro de atuação muito reduzido pelas censuras dos anos 50 (no mundo todo), estas matrizes no humor, na poesia e no surreal que se instalaram nas origens se desenvolveram até a forma de potentes narrativas de guerra, ou inacreditáveis contos de terror, no fim dos anos 40. Mesmo aprisionados pela condição de cultura “menor” e pelos termos da indústria editorial, a trajetória histórica comprova bem o potencial expressivo dos quadrinhos, tudo a partir de uma relação que de certa maneira se opõe ao “primo rico” cinema: sem grandes efeitos de tecnologia, tudo se resume à “química” que se pode produzir
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entre duas coisas: sequências de imagens paradas e palavras. A simplicidade do processo material de produção das histórias em quadrinhos acaba sendo proporcional à sua maleabilidade expressiva, e à capacidade de representar a partir da transformação do traço. Ao contrário do que argumenta Scott McLoud, a maioria dos quadrinhos se utiliza de traços cartunescos ou caricaturais não porque haja algum tipo de “identificação icônica” (uma abordagem nada semiótica) entre nós e o cartum, mas sim provavelmente porque as HQs surgiram no ambiente da charge, onde estas deformações eram premissa, e depois migraram para histórias de humor, nas quais esse tipo de ilustração é obviamente adequado. E por que isso se tornou um axiomático para esta forma de arte? Ora, porque... é fácil fazer assim, e se pode fazer assim. Como o cinema registra imagens fotográficas, foi natural que ele se tornasse uma narrativa gráfica de premissa mais realista (veja que, quando efeitos especiais entram em jogo, quase sempre dão vazão à fantasia). No caso dos quadrinhos, a abertura ao humor, ao sonho, ao delírio e à fantasia se tornou flagrante na medida em que a imaginação e o traço dos ilustradores tornassem isso possível. A última fronteira, portanto, é a revolução da linguagem. Se os quadrinhos são um dispositivo de
representação no limite da imaginação, então sua configuração estética também deveria acompanhar esse potencial, e acompanha. Se, no cinema, desde Eisenstein, a montagem entre planos é pensada como dispositivo potencializador de representação, nos quadrinhos equivale a noção de configuração. Se no cinema ou na pintura a noção de moldura pode ser problematizada, mas em geral possui um aspecto limitador, nos quadrinhos ela é parte muito mais ativa, já que a forma, a ordem e o aspecto dos quadros configuram a página e atribuem sentido ativo àquilo que está sendo visualizado dentro deles – e ao que está sendo imaginado entre eles. Este avanço não é pouca coisa, porque possibilita a ideia de que cada artista, ao configurar sua história em quadrinhos, tem em mãos a possibilidade de recriar a linguagem desta forma de arte, só para si. Talvez “o que podem os quadrinhos” não seja a pergunta mais conveniente. Já que, em uma época em que quase todas as formas expressivas históricas sofrem de um esgotamento de suas possibilidades, os quadrinhos, aprisionados por décadas pelo desinteresse geral e pelos códigos de censura, encontram na atual libertação o caminho para a maturidade e passa a tomar conta dos campos da arte e da comunicação. Cabe a flexão: o que então poderão, a partir de agora, os quadrinhos?
Ciro I. Marcondes é crítico e professor de História e Linguagem cinematográfica pelo Instituto de Educação Superior de Brasília. Foi professor de Histórias em Quadrinhos pela UnB. Edita o site www.raiolaser.net.
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