Jenipapo
Ver melho malagueta De baunilha a fetiches apimentados, sexo envergonhado e escancarado
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O ano dos gênios A doença medieval A solução do transplante O coração do Brasil A sexualidade investigada A TV em hashtags A chance de inovar Crônica
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Editorial
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Jenipapo
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Jenipapo R A beleza do jornalismo
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ditorial
O segundo número de Jenipapo é convite a uma viagem. As reportagens desta edição nos transportam a diversos tempos – sim, o tempo ainda é nossa obsessão. Saltamos das lembranças de um passado mítico, que em 1912 produziu gênios da arte, até a previsão de um futuro que chega já. Mas nossos pés estão mesmo é profundamente fincados no presente. Esse agora encampa sexualidades que, de cinza, não têm nada. E, na vida real, são ao mesmo tempo mais criativas, abertas e envergonhadas do que em best sellers. Nesta edição também há assuntos que o presente já deveria ter esgotado. Mas o tempo, no Brasil, parece correr mais lento para sarar algumas feridas, como a do mal de Hansen, doença medieval que ainda assola rincões do país como o interior do Tocantins. E o tempo parece menos ligeiro para fazer do transplante solução mais corriqueira e disponível de Norte a Sul. Ainda assim, há finais felizes. E existem promessas de felicidade vindoura. Ou melhor: o futuro é aqui, quando assistimos a uma novela enquanto estamos no computador, acessando as redes sociais, comentando com amigos, ouvindo rádio. Sempre que isso acontece, é tudo ao mesmo tempo. Imagina quando o futuro chegar? Pode ser logo ali, em 2014, quando o país sedia a Copa, ou em 2016, quando os Jogos Olímpicos desembarcam no Rio de Janeiro. Esses dois eventos podem servir de impulso a experiências que ajudem, quem sabe, o Brasil a superar o mantra de “país do futuro” e se tornar, finalmente, o país do presente. Para dar conta desses tempos, a Jenipapo ajudou a preparar jornalistas com vocação e ímpeto exemplares, em discussões durante manhãs de sábado produtivas – ainda que preguiçosas. A revista conta, também, com a participação de alunos que encamparam missão antiga no Brasil, com ares atuais: integrantes do Projeto Rondon escrevem e fotografam fragmentos de um país que as Forças Armadas ajudam a integrar. E, numa prova de que o futuro é imprevisível, o semestre acabou mais cedo porque Cecilia, que devia se tornar presente em dezembro, chegou em novembro. Tão pequena, minha filha contagiou o processo de fechamento com o encanto que só é possível ser transmitido por uma criança. Bem vindos à Jenipapo. Boa leitura. Karina Gomes Barbosa
Jenipapo Revista-Laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília Ano 1, no. 2, abril de 2013 Reitor Prof. Dr. Ricardo Mariz Spíndola Diretora do curso de Comunicação Social Prof.ª Angélica Córdova Miletto Editora-chefe Prof.ª Karina Gomes Barbosa Editora de arte Prof.ª Rafiza Luziani Varão Ribeiro Carvalho Editor de fotografia Prof. Thiago Sabino Reportagem Alessandra Modzeleski, Augusto Soares, Gabrielle Santelli, Luma Soares, Marcela Alves, Mariana de Ávila Colaboraram nesta edição Everton Lagares, Jorge Souza, Joyce Oliveira, Michelle Brito Agradecimentos Anelise Molina, Leandro Vianna, Lucas Lima, Lucas Muniz, Lunde Braghini, Mike Peixoto, Samuel Paz Foto da capa e quarta capa:Anelise Molina Tiragem: 4 mil exemplares Impressão: Gráfica Athalaia UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA EPCT QS 07 LOTE 1 Águas Claras - DF CEP: 71966-700 Tel: 3356-9237 WWW.PULSATIL.COM.BR
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O extraordinário ano do menino grapiúna, do anjo pornográfico, do amor platônico de Clarice e do rei do baião Por Alessandra Modzeleski
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Na passagem de ano, atualmente, não há um que não prefira ir à praia, pular as sete ondas e fazer pedidos para o ano que se inicia. Mas isso já foi diferente. Segundo o historiador da Universidade de Brasília Carlos Eduardo Vidigal, no início do século XX as regiões litorâneas eram pouco frequentadas para banho. Era na Avenida Central e nas principais ruas dos bairros antigos do Rio de Janeiro que, até altas horas, foliões seguiam grupos carnavalescos esbanjando alegria. Num desses réveillons, a classe média curtia bailes à fantasia em clubes da alta sociedade, mas estava tão animada quanto os blocos que percorriam as ruas. É o que estampava o Correio da Manhã da segunda-feira, dia 1º de janeiro de 1912. No primeiro dia do ano, o marechal Hermes da Fonseca, presidente da república, que acabara de cumprir seu primeiro ano de governo, teria de repensar o mandato junto com a população que lia a matéria O anno que passou no mesmo Correio. O texto criticava a falta de orientação pessoal e fraqueza do marechal e exigia mudanças nas atitudes dele. Entretanto, a edição, animada com a passagem de ano, citava também a visita do presidente à Floresta do Silvestre, a caminho do Corcovado, no último dia de 1911.
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O lugar estava todo iluminado à luz elétrica, cedida pela Light and Power. Fora isso, era possível contar dez ou mais comerciantes e famílias tradicionais desejando um feliz e próspero ano novo a clientes e conhecidos. Na sociedade, quem mandava eram os fazendeiros, pois o café e outros produtos agrícolas estavam com a exportação em alta. Nos centros urbanos, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, quem se destacava eram os comerciantes e também os profissionais liberais, como médicos, advogados e dentistas. Fora dos estados mais populosos, de modo geral, a sociedade podia ser dividida entre a classe média, os imigrantes, os sertanejos e a elite, que detinha o poder político: quem podia votar eram os homens alfabetizados, 40% dos habitantes. Logo no início do ano, a mídia nacional repercutia o bombardeio que aconteceu dia 10 de janeiro, em Salvador, e marcou a cidade. Travado entre as polícias estaduais e o Exército, o conflito destruiu a sede do governo baiano, a Câmara, o quartel da polícia militar e a biblioteca pública, com perda significativa de documentos históricos. O objetivo era que Aurélio Viana, governador da Bahia, renunciasse em prol de lideranças aliadas ao governo de Hermes da Fonseca, conforme
informava o Jornal do Brazil. O presidente começou a estabelecer um governo mais rígido para não perder a influência política nas províncias. O Brasil de 1912 tinha apenas 24.618.429 habitantes, de acordo com a Diretoria Geral de Estatística (DGE), órgão antecessor do atual IBGE. Desse número, 2,7 milhões viviam na Bahia, terceiro estado mais populoso. Em meio a capoeiristas, jagunços, coroneis e raparigas, na Fazenda Auricídia, rodeada por cacauais, no pequeno município de Itabuna, viviam o coronel João Amado de Faria e dona Eulália. No dia 10 de agosto, Eulália deu à luz o menino grapiúna, também conhecido como Jorge Amado – o mais novo, ilustre e passageiro cidadão de Itabuna, que, com um ano de idade, foi para a vizinha Ilhéus. Junto com o tio Álvaro, o menino aventurou-se em um mundo adulto, mas com os olhos de criança. Aprendeu a ler com o jornal A tarde, antes mesmo de começar a frequentar a escola. Nesse tempo, deliciava-se correndo de um lado para o outro nas praias do Pontal. Na vida com o tio, além dos coroneis, passou a conviver com mulheres da vida e vagabundos. “Os personagens das obras de ficção resultam da soma de figuras que se impuseram ao autor, que fazem parte de sua experiência
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vital”, conta Jorge Amado em seu livro de memórias O menino grapiúna, explicando que foram esses tipos marginais os definidores do regionalismo e da sensualidade de seus textos. “Arrancado da liberdade das ruas e do campo, das plantações e dos animais, dos coqueirais e dos povoados recém-surgidos –, o internato no colégio dos jesuítas foi o encarceramento”, narra Jorge, ao ter a farra com o tio detida pelo pai. No colégio foi apresentado aos livros, que foram novos companheiros. O mar, grande amor, foi quem lhe inspirou o talento de escritor. Aos 11 anos, o professor de português passou a tarefa de fazer uma descrição tendo o mar como tema. O menino, saudoso das praias do Pontal, não teve dificuldade em expressar-se. Na aula seguinte, padre Cabral, o professor, anunciou que sem dúvida teriam um aluno com grande vocação para escritor, tiro certeiro. E leu em voz alta para a turma o texto do jovem Jorge. Em 1945, começou a namorar Zélia Gattai. Além de ser fotógrafa oficial do autor, também registrava momentos e histórias vividas ao lado dele e dos amigos em seus livros de memórias. Foi o grande amor de Jorge Amado, além de principal leitora das obras do marido. Eles viveram durante 38 anos no bairro
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do Rio Vermelho, rua Alagoinhas, número 33, e foram casados por 56 anos até a morte do autor em 2001. Um fato importante da vida do escritor foi o tempo como deputado federal de São Paulo, em 1945. Exerceu a função por dois anos, mas não tinha gosto pelo cargo. Pensava pela cabeça dos outros. Entretanto, nesse período criou a lei que assegura o direito à liberdade de cultos religiosos, que beneficiou o próprio autor, simpatizante do candomblé. Chegou a receber um dois dos mais altos títulos, o de Obá Arolu do Axé Opô Ajonjá, em Salvador, em 1959. Gustavo de Castro, que é pai sacerdote em um terreiro de Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, conta que o Opô Ajonjá é o terceiro terreiro mais antigo do Brasil, do final do século XIX/início do século XX. “Mãe Senhora foi nos anos 1950 para a Nigéria, onde descobriu um sistema arcaico do candomblé e aplicou no terreiro.” Esse sistema, segundo ele, implica em constituir doze obás, como se fossem doze ministros. Eles eram doze figuras ilustres, intelectuais que não só davam nome ao terreiro como o ajudavam financeiramente. “Dessa forma, Jorge Amado tornou -se um interlocutor, junto à sociedade, do candomblé”, explica.
Ilustrações: Lucas Muniz
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Pelo buraco da fechadura Distante do regionalismo sedutor de Jorge Amado, que atravessa continentes, no dia 23 de agosto do mesmo ano nasceu na cidade do Recife, em Pernambuco, Nelson Rodrigues. O jornalista e teatrólogo foi criado no Rio de Janeiro e nessa terra, ainda criança, descobriu uma das maiores paixões, o Fluminense. Mal sabia ele que, no mesmo ano em que nasceu, o eterno rival do tricolor, o Flamengo, jogou pela primeira vez. Foi ainda no Rio que escancarou a realidade, as vergonhas familiares, os preconceitos, o adultério e o erotismo da sociedade carioca. “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá, um dia, aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”, dizia Nelson. A família, trágica, sempre esteve rodeada por mortes precoces e dificuldades financeiras. Seu pai, Mário Rodrigues, era jornalista, e levou os filhos para o meio. Nelson começou a carreira aos 13 anos, como repórter de polícia, em 29 de dezembro de 1925, e dali em diante nunca mais parou de escrever. Em 1940, enfrentando barreiras no relacionamento, Nelson se casou com Elza Bretanha, escondido da mãe da noiva. Após o casamento, as dificuldades
começaram a abalar o casal. A falta de dinheiro e o exílio obrigatório por diversas vezes, devido à tuberculose diagnosticada aos 21 anos (e que matou um dos irmão do autor), fizeram com que Nelson começasse a escrever para o teatro. E foi assim que, em 1941, lançou A mulher sem pecado, uma das 17 peças teatrais que enfrentaram altos e baixos de bilheteria, mas sem deixar a polêmica e a autenticidade do autor de lado. “Nelson surge dentro de uma modernidade brasileira, não pela peça em si, mas pela forma de fazer teatro. Em Vestido de noiva – que vai aos palcos em 1943, por exemplo – o diretor Ziembińsk trouxe pela primeira vez a iluminação como forma narrativa”, conta Sergio Maggio, diretor, crítico teatral e dramaturgo. Para ele, a geração de atores e diretores da época abraçou o estilo de Nelson Rodrigues. “As peças só chocaram o público brasileiro porque este estava muito atrasado em comparação ao da Europa. Hoje em dia, essas obras não têm impacto tão grande na sociedade, mas o valor delas permanece”, comenta Maggio. A polêmica gerada pelo autor foi tamanha que uma de suas – inúmeras – frases de efeito era: “Eu, como artista, se tivesse de escolher um epitáfio, optaria pelo seguinte: Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”.
“Eu, como artista, se tivesse de escolher um epitáfio, optaria pelo seguinte: aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”
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Escrita interior Depois de passar pela Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, vamos a Minas Gerais. Era o estado mais populoso do Brasil em 1912, com 4.628.553 habitantes, seguido por São Paulo e Bahia. Minas, assim como São Paulo, estava bem no cenário econômico do país. Tinha também um dos maiores números de eleitores e dominava o governo. Nesse cenário nascia Lúcio Cardoso, em 28 de setembro de 1912, membro de família tradicional e influente na política. Filho de Joaquim Lúcio Cardoso e Maria Venceslina, Lúcio teve a infância e adolescência dividas entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, até se estabilizar de vez na segunda cidade. Desde pequeno lia tudo que chegava até ele. Além de grande leitor, praticava a escrita constantemente em diários e estava sempre em contato com grandes poetas e intelectuais da boemia carioca. Como resultado escreveu, em 1934, entre 16 e 17 anos, o primeiro livro, Maleita, destacando-se de imediato. O autor assumiu a postura regionalista da época, mas sem deixar de lado a característica primordial de seus textos, o neorrealismo. As escritas barrocas, com cunho psicológico, voltadas para questões como o bem e o mal, se tornaram marca registrada de Lúcio, um dos principais romancistas da década de 30. Em 1958, lançou a obra prima Crônica da casa assassinada, um dos livros mais importantes da literatura brasileira.
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O escritor, católico confesso, tinha grandes dúvidas que lhe perturbavam por conta da sua orientação sexual. Clarice Lispector, também escritora, sofria com o amor platônico que sentia pelo sedutor escritor mineiro. Chegaram a trocar diversas cartas em meados dos anos 60. Ainda nos anos 60, em 1962, Lúcio teve um derrame cerebral que paralisou o lado direito do corpo. Por conta disso, passou a dedicar-se à pintura. Foi por conta dessa reviravolta na vida do escritor que Beatriz Damasceno, doutora em letras pela PUCRJ, lançou o livro Lúcio Cardoso em corpo e escrita. “Como pesquisadora, quis saber como o artista pôde conviver seis anos sem a escrita que lhe parecia vital, após um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Foi daí que nasceu o livro”, explica. Depois do AVC, Lúcio se expressou com as artes plásticas e chegou a fazer algumas exposições pelo país. Para a pesquisadora, o escritor era diferente de outros da época, pois investigava, sondava o interior de cada personagem. Além disso, naquele período, existia um preconceito com escritores intimistas e católicos, pois todos os artistas precisavam se posicionar politicamente. Para Damasceno, muitos escritores foram influenciados pela sociedade pelo contato com a escrita e a arte, principalmente pelo cotidiano. “Qualquer literatura sofre influência, a literatura não é inocente, o que ela não tem como nenhuma arte é a ‘função de...’, ou ‘ter que prestar conta de...’. Tanto Nelson quanto Jorge e Lúcio, escritores do mesmo contexto histórico, destacaram-se,
seja pelo regionalismo, posição política, romantismo e obsessões.” Cenário definitivo Cenário de grande influência na vida dos escritores, o Rio de Janeiro ganhou, em outubro daquele distante 1912, um novo ponto turístico, o bondinho do Pão de Açúcar. A estrutura inicialmente de madeira, suspensa a uma altura de 396 metros, ligava a Praia Vermelha ao Morro da Urca, comportando 22 passageiros, segundo o jornal O Estado de São Paulo. Em 22 de outubro de 1912, teve início, na região Sul do país, uma terrível guerra. Na divisa entre Santa Catarina e Paraná, a população entrava em conflito pela abundância de erva-mate e madeira na região, que não estava definida à a qual território pertencia. Além disso, a construção da estrada de ferro Brazil Railway Company, organizada pelo empresário americano Percival Farquhar, que interligava os estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul, agravou a disputa, retirando diversas famílias do local. Após a conclusão da obra, a empresa adquiriu uma área com mais de 180 mil hectares onde realizou exploração madeireira, agravando ainda mais o conflito. Em dezembro, o jornal O Imparcial publicou o retrato de Vidal Ramos, presidente de Santa Catarina, e do dr. Carlos Cavalcante, presidente do Paraná, cobrando providências para amenizar a disputa na divisa dos estados. Outra inovação na capital da república veio do céu: “Os irmãos Rapini iniciaram a semana de aviação no Rio de Janeiro, fazendo
lindos voos sobre a cidade, partindo da pista do Jockey-Club”, informava O Imparcial, em uma publicação do dia 27 de dezembro. Vários curiosos prestigiaram o evento, pois o 14-Bis, avião criado por Santos Dumont, era uma invenção relativamente nova, do ano de 1906. Dos livros à canção Mas o ano não terminou. 1912 precisava de uma música para ditar o andamento dos meses. E que tal o baião? O Nordeste estava em um processo de declínio econômico, pois produzia cana-de-açúcar e a principal commodity era o café. Em Pernambuco, a cidade de Exu não estava em situação diferente. Ana Batista de Jesus (Santana) deu à luz Luiz Gonzaga do Nascimento, filho de José Santos (Januário). “Fez ‘cum’ ela o sanfoneiro um casamento feliz e das nove que ‘nascêro’ um desses nove é Luiz.” O menino Lua, apelido familiar, vivia em ambiente propício para aflorar o talento. Januário, sanfoneiro conhecido da região, tocava em tudo que era baile. Luiz substituiu o pai uma vez em uma das festas, contrariado da mãe. Em 1924, já ganhava tanto quanto o velho sanfoneiro tocando. Na terra onde quem manda é coronel, Luiz Gonzaga, ainda jovem, apaixonou-se por Nazinha, branca, alfabetizada e filha de um dos coroneis. O pai da menina, ao saber do assanhamento, disse que Luiz não era homem pra ela, era um “sem eira nem beira”. Lua, ferido pelas palavras do coronel, foi até ele e o ameaçou com uma faca. Entretanto, o homem levou o menino na conversa e fez com que ele desistisse de fazer besteira. Eis que a história não acaba quando
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o acontecido chega aos ouvidos de Santana, que deu uma surra no filho. Sentindo-se humilhado, Luiz partiu para o Ceará, começando um novo ciclo em sua vida como soldado Nascimento, no Exército. Por ali ficou até se estabelecer no Rio de Janeiro. Com um dinheirinho aqui outro ali, começou a tocar músicas do exterior, como blues e jazz, mas não obteve sucesso. Em um desafio de rádio – onde a nota do candidato variava de 0 a 5 – depois de muito tentar, Luiz conseguiu nota máxima e fez ali todos dançarem com o xote de Exu. Em 1942, começou a fazer sucesso nas rádios, no entanto os discos pela gravadora Victor não eram cantados, pois ainda não tinha essa permissão. Ele queria dar voz ao jogo de fole, que contagiava com som frenético. Foi em 1945 que gravou o primeiro disco cantado, Dança Mariquinha. Nesse mesmo ano, nascia Gonzaguinha, filho do primeiro casamento, com Léia Guedes dos Santos. Humberto Teixeira foi grande compositor das músicas de Luiz. Em 1947, na terceira participação juntos, criaram Asa branca, música do folclore nordestino. Gonzagão, o chapéu de lampião e sanfona branca tornaram-se conhecidos por todo o país. O baião foi a alegria popular. Era um ritmo novo, acompanhado de dança e instrumentos como o triângulo, a sanfona e o acordeom e a zabumba, sempre aliados ao canto, com letras ligadas ao cotidiano da região. O Trio Asa Branca, que leva no nome a homenagem ao rei, existe desde 1992. Formado por João Salviano na sanfona, Branco no zabumba e Breno no triângulo,
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o trio tem como repertório as músicas de Gonzagão em todas as apresentações. “Às vezes fazemos show pra uma galera muito jovem, então toco outras músicas de outros artistas. Mas eles mesmos pedem, ‘toca Gonzagão’, aí a festa está completa. É incrível a reação dos jovens, crianças, pessoas que não conviveram com a música dele e, mesmo assim, dançam e cantam todas”, conta João Salviano. “Ele foi um homem de muita coragem, de caráter, de determinação sem tamanho. O mestre. Focado no que queria, valorizar a música nordestina, sofreu e lutou até conseguir: hoje está aí o resultado. Todo nordestino que se preza tem orgulho de ter como ídolo Luiz Gonzaga. O forró hoje é o que é por causa dele e somos muito gratos por isso”, completa. Luiz começou a entrar em declínio nos anos 1960, com o auge da bossa nova e de músicas estrangeiras. O filho Gonzaguinha, mesmo com a difícil relação com o pai, ajudou-o a se reerguer, fazendo a turnê Vida de viajante, em 1979, primeira vez em que sobem ao palco e cantam juntos, unindo duas gerações de Gonzagas. Regina Echeverria, autora da biografia Gonzaguinha e Gonzagão, conta sobre a importância da música de Gonzagão para o Nordeste. “Gosto mais especialmente de Vida de viajante e Olha pro Céu, porque retratam com uma poesia belíssima a vida de milhões de brasileiros”, comenta, sobre as músicas do rei. “Luiz Gonzaga e outros mostraram ao país que existia vida e poesia no Nordeste, além da seca”, finaliza.
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Fuga de 16 16
miranorte Acometida pelo mal de Hansen, mulher se esconde com a família. O preconceito é quase tão doloroso quanto a doença Por Everton Lagares
O Triunfo da Morte, obra de Pieter Bruegel que retrata a devastação causada pela peste negra na Idade Média
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Manchas vermelhas ou e s br a n q u i ç a d a s , c a ro ç o s , inchaço nos braços ou pernas, dores nas articulações e fraqueza muscular. Isso tudo pode acontecer em qualquer região do corpo de uma pessoa com hanseníase – com maior incidência nos olhos, mãos e pés. Uma doença milenar, mas que ainda assusta pelo número de infectados no país, mesmo com uma queda drástica nos números de detecção. Em 2000, de acordo com o Ministério Saúde, foram cerca de 44 mil novos casos; já em 2010, menos de 35 mil. Além de sentir muitas dores, uma pessoa com hanseníase ainda enfrenta o preconceito de quem não sabe como lidar com os portadores. Maria Inalva, 30 anos, moradora da Vila São José, em Miranorte, Tocantins, é portadora desse parasita que ataca os nervos, a pele e pode afetar órgãos como olhos e fígado. É o bacilo de Hansen, o Mycobacterium leprae. A doença só é transmissível ao contato prolongado, mas não ao primeiro e único contato. Além disso, após o início do tratamento o bacilo não é mais transmitido. Isso permite ao paciente levar uma vida comum, em contato com outras pessoas. Quando não há preconceito, é claro. Durante o pré-natal da segunda gestação, aos 24 anos, Nalva, como gosta de ser chamada, descobriu a doença. A preocupação, na hora, não foi com o feto, pois o bacilo não é congênito e não traria complicações para a criança. Nalva ficou preocupada foi com seu casamento. “Meu marido é de uma família grande e conceituada aqui na região. Pensei que ele ia me deixar, pois os sintomas logo
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começaram a aparecer. Fiquei com vergonha do meu corpo e, na minha cabeça, meu casamento estava destruído”, conta Nalva, emocionada. Ela está no fim do tratamento e casada até hoje. Antes do diagnóstico, ainda durante o pré-natal, uma enfermeira da cidade foi atrás de Nalva, já que as faltas nas consultas começaram a ser constantes. Cleibiomar, a enfermeira e vizinha, já não encontrava a gestante nem no posto de saúde nem pelas ruas de Miranorte. No posto de saúde, em uma consulta que parecia de rotina, a doença foi detectada. Nalva relata que a certeza do mal de Hansen fez com que o chão desabasse: a vergonha e o medo se apoderaram da jovem; a vida mudaria a partir dali. A gestação evoluiu e Nalva realizou uma espécie de fuga de Miranorte. Procurou um lugar onde, literalmente, pudesse se esconder das outras pessoas. A Vila São José foi o local de refúgio para ela. Junto do marido, Flaviano, e do filho mais velho, Nalva faltava a mais e mais consultas do pré-natal. A mudança da cidade para uma região no entorno fez com que a família morasse, nestes últimos seis anos, em uma casa muito simples, feita de taipa, madeira e com o chão batido. Nos fundos, um pequeno lago de água parada, com lodo e sujeira em volta. As árvores são abundantes no lugar, onde há outras casas assim, simples. Mas só na casa de Nalva há uma Brasília vermelha estacionada. O carro está conservado, pois o marido costuma sair de casa para ir trabalhar, ou ir à cidade, de bicicleta. Testemunha Já reclusa na vila, ela sentia
as dores piorarem. As manchas começaram a surgir no corpo e, sem entender os sintomas, a gestante via manchas formigarem, pinicarem, deixando o local afetado dormente e sem sensibilidade ao calor. Hoje, Nalva tem certeza: agora que tudo passou, é outra pessoa. “Antes eu colocava o meu pezinho no salto e não queria mais nada, só passear, ir a festas e andar, pois era muito vaidosa. Hoje dou valor em tudo. A Nalva de antes morreu, hoje sou outra.” A enfermeira Cleibiomar esteve presente durante todo o tratamento da paciente. Ela lembra que Nalva pesava 45kg antes de desenvolver a doença. Agora tem 70kg. Ela lembra também que era muito difícil levar a vizinha para o tratamento, pois a vergonha e o medo do preconceito sempre eram maiores. “Era preciso pegar no braço dela, colocá-la no carro para conseguir ir ao posto de saúde. Lá tínhamos que ser rápidos, era apenas descer para tomar o medicamento e voltar para casa. A Nalva tinha muita vergonha das pessoas.” Hoje a hanseníase está na lembrança, não preocupa Nalva. Para conseguir enfrentar todas as dificuldades durante os seis anos de tratamento, ela sempre buscava forças na família. Ano que vem os dois filhos e o marido poderão voltar para o centro da cidade, pois além de enfrentarem a doença com a única mulher da casa, também conseguiram aumentar a autoestima dela. Depois de tanto tempo, enfim, a paciente venceu o próprio preconceito. “Às vezes quando ia sair, mesmo que fosse ao posto de saúde, pegava uma camiseta de manga longa, pra tentar esconder um pouco as cicatrizes, mas meu
Gerhard Hansen, médico norueguês que descobriu o bacilo Mycobacterium leprae, causador da hanseníase
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marido sempre me falava: ‘Vista um blusa mais leve, as pessoas devem gostar de você como você é’. Meu marido é tudo pra mim.” Futuro O ano de 2013 será especial para a dona de casa que venceu a hanseníase. Mesmo com vergonha, falando baixo e com certa dificuldade de tocar no assunto, Nalva, sentada na garagem ao lado da Brasília vermelha, conta que não chegou a terminar o Ensino Médio, mas ainda quer fazer faculdade. “Engravidei cedo, depois tive a doença e acabei não voltando a estudar, deixei tudo pra trás. Vou voltar à escola. Quero ser enfermeira, para orientar as pessoas com hanseníase”, destaca. Nalva conta que pior que as dores é o preconceito das pessoas. Ainda tem gente que a olha com desprezo. De outro lado, com atitude mais gentil, um grupo de pessoas a tratou com tanta naturalidade que a surpreendeu. “Os rondonistas entraram na minha casa como se já nos conhecêssemos, como se fosse mais uma visita.”
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Novos conhecidos Os tais rondonistas citados por Nalva são alunos da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus Santiago (URI/ Santiago). Eles entraram na história da paciente num período em que a doença já estava superada, mas mesmo assim não deixaram de fazer a diferença. Cléton Salbego, aluno de enfermagem da URI/Santiago, faz questão de expor a experiência com Nalva. “Essa paciente foi muito importante para minha formação acadêmica, mas
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principalmente como pessoa. Ela foi um exemplo de cidadã e batalhadora. Inúmeras vezes eu disse a ela: ‘És um exemplo de mulher brasileira, guerreira, mãe, esposa’. Admiro-a.” Em Miranorte, os alunos da URI/Santiago fizeram um diagnóstico e levantaram as principais necessidades da comunidade, identificando, na área da saúde, algumas doenças endêmicas, como a hanseníase e a dengue. Os trabalhos foram coordenados pela professora Carla da Silveira Dornelles. Os alunos identificaram alguns usuários do sistema de saúde municipal em tratamento de hanseníase, como Nalva. Em seguida ao preparo, foram feitas ações com agentes comunitários de saúde, técnicos em enfermagem, enfermeiros – uma equipe multiprofissional – a fim de capacitar os multiplicadores. A ideia era explicar detalhes quanto ao tratamento e a atenção aos portadores de hanseníase. Todos contra a hanseníase De acordo com a Organização Mundial de Saude (OMS), o Brasil lidera o ranking de países com casos de hanseníase. No início da década de 90, o governo brasileiro se comprometeu em eliminar a doença até 2010, mas enfrenta problemas para cumprir o programado – que já está mais de dois anos atrasado. De acordo com a OMS, cerca de 50 mil novos casos são registrados todos os anos no país. Já o Ministério da Saúde diz que são 35 mil. Os dados são destoantes, mas a preocupação é uniforme. Arthur Custódio é militante há 28 anos no Movimento
de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) e atual coordenador do movimento. Para ele a decisão de acabar com a hanseníase é política, apenas. Por isso o Morhan atua conscientizando os direitos e existência da doença, mas também faz pressão com os gestores, mantendo a hanseníase na agenda política. O militante também alerta que Tocantins, estado em que Nalva vive, é o segundo em incidência no país. Só perde para Mato Grosso. Questões de higiene e clima propiciam a proliferação do bacilo e ajudam no aumento de casos, fazendo com que as lideranças não consigam controlá-la. Além disso, para Arthur Custodio, o objetivo de “aumentar a pressão”, nesse caso, “é para que a doença alcance patamares de indicadores mais baixos e de detecção mais precoce”. Quando o assunto é o termo correto para a doença, a polissemia toma conta. Desde 1976 o mal de Hansen já não pode mais ser chamado de “lepra”. Arthur lembra que nenhum termo que crie uma identidade é correto. “Leproso, mofético, hanseniano, hansênico. Isso mostra preconceito. Não falamos gripéticos, resfriandos”, compara.
registrar memória, pois minha intenção não é que o leitor termine a leitura com pena dos personagens”, conta. Foram 18 entrevistas com pacientes, além dos profissionais envolvidos nos tratamentos, para que o livro pudesse ser escrito. A escolha dos sete personagens publicados na obra foi feita de forma que fosse possível abranger as cinco colônias de SP e, ao mesmo tempo, falar de situações de internação diferentes entre si. Oficialmente, no dia 26 de janeiro é comemorado o Dia Mundial de Combate à Hanseníase. No caso de Nalva ou de alguns dos personagens de Alexandre, a doença foi vencida, mesmo que as pessoas infectadas tenham sofrido com o preconceito e dores. Mas ainda há muitos casos que nem sequer foram detectados.
Everton Lagares integrou, em julho de 2012, uma das duas primeiras equipes de cobertura jornalística do Projeto Rondon, em parceria pioneira entre a Universidade Católica de Brasília e o Ministério da Defesa. Foi orientado pelo professor Lunde Braghini na operação Capim Dourado, no Tocantins. A outra operação, Açaí, foi orientada pelo professor Thiago Sabino e cobriu o Pará.
Em livro Como forma de provocar reflexão sobre as internações compulsórias em antigos leprosários em São Paulo, no século passado, e desmistificar a doença, Alexandre Melo escreveu o livro Causos de Colônia. “Em meu livro, não falo de sequelas dos meus personagens, embora eles as tenham em grande quantidade. A proposta do livro é resgatar e
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o fio da vida
Um é de Brasília, o outro de São Paulo. Homens diferentes, dependentes da mesma cura: a medula óssea de outra pessoa Por Marcela Luíza
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o tratamento com TMO é feito para curar doenças da própria medula, quando o transplante é do tipo alogênico. Para casos que não atingem a medula óssea, como câncer de mama e tumores sólidos, é possível utilizar o transplante autólogo. No caso de Arthur tratavase de um transplante do tipo alogênico, pois sua doença atingia diretamente a medula, mas ele só descobriria isso cerca de dois meses após a primeira consulta. Foi difícil chegar à resposta certa para a alteração detectada no exame de sangue do adolescente. A leucemia foi a primeira suspeita do dr. José Carlos, que a descartou após uma biópsia de medula óssea. Com a eliminação da possibilidade de câncer, um grande mistério passou a rondar a saúde de Arthur. Enquanto os médicos estudavam o caso, o rapaz passou a fazer exames de sangue semanalmente e a tomar remédio para suprir a deficiência de ferro no organismo. Em junho de 2005, Arthur foi diagnosticado com uma doença rara, a hemoglobinúria paroxística noturna (HPN). A cura consistia no transplante de medula óssea. A HPN é um defeito na célula que produz as hemácias. De acordo com o oncologista José Carlos Córdoba, “na superfície dos glóbulos vermelhos existem proteínas que inibem a ação dos anticorpos. Na HPN esses inibidores estão defeituosos e fazem com que o corpo encare as hemácias como inimigas”. José Carlos ainda explica que a urina de quem possui a doença apresenta cor de coca-cola, por conta da hemoglobina que é expelida das células. O termo “noturno” vem daí: a urina de cor
Foto: Zupani
Era para ser mais um jogo de futebol com os amigos, como Arthur D’ Almeida, na época com 17 anos, sempre fazia. Mas não foi o que aconteceu. Alguns repararam que ele estava amarelado, um cansaço inexplicável tomara conta de seu corpo na noite daquela quarta-feira. No dia seguinte, no banheiro da igreja, Arthur se assustou com o sangue que saiu da urina. Era abril de 2005. Ele estava doente e logo descobriria que precisaria de um transplante de medula óssea (TMO). A medula óssea é o órgão que produz o sangue. Após o primeiro ano de idade, ela passa a ser localizada nos ossos do organismo chamados chatos: bacia, costelas, ossos da coluna e esterno. A medula é fundamental para o bom funcionamento do organismo: ela acomoda a célula precursora do sangue, responsável por dividir, diferenciar e produzir as hemácias, os leucócitos e as plaquetas. Em 1956, foi realizado, nos Estados Unidos, o primeiro transplante de medula óssea do mundo; no Brasil, a novidade chegou 23 anos depois. Hoje, existem dois tipos de transplante: o autólogo, em que o paciente recebe material retirado de seu próprio organismo – esse tipo foi feito pelo ator Reynaldo Gianecchini, que em 2011 descobriu um câncer no sistema linfático – e o outro, chamado transplante alogênico, em que o doente recebe cerca de 10% da medula de um doador. No segundo caso a chance de se encontrar alguém compatível fora do núcleo familiar é de uma em cem mil. De acordo com o médico de Arthur, o onco-hematologista pediátrico José Carlos Córdoba,
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estranha se acumula em maior quantidade à noite, apesar de o problema ser constante durante todo o dia. A causa exata da HPN é desconhecida. Sabe-se que não é genética nem contagiosa. Também não é influenciada pela alimentação ou pelo uso de antibióticos. Mas é rara e fatal em muitos casos; o jogador de futebol Alex Alves, por exemplo, morreu no dia 14 de novembro de 2012 após um transplante para se curar da HPN.
Foto: Jorge Borges
Bancos de dados Registros de doadores de medula óssea foram criados em várias partes do mundo para facilitar o processo de doação. O Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea no Brasil (Redome), criado em 2000, faz parte do banco de dados que reúne informações de doadores de medula em 46 países, o Bone Marrow Donors Worldwide (BMDW). As informações desses bancos são
Arthur D’ Almeida precisou de transplante de medula aos 17 anos; a irmã foi a doadora
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compartilhadas entre os países, possibilitando que um brasileiro receba a medula de um estrangeiro e vice-versa. O Centro de Transplante de Medula Óssea (Cemo) é a unidade do Instituto Nacional de Câncer (Inca) especializada no transplante de medula óssea e responsável pela coordenação do Redome. O Brasil possui o terceiro maior banco de dados do mundo, com 2,9 milhões de doadores cadastrados. Está atrás dos Estados Unidos, com 5 milhões de doadores, e da Alemanha, com 3 milhões. No Brasil, as informações genéticas dos cadastrados no Redome são checadas com os dados dos pacientes cadastrados no Registro Nacional de Medula Óssea (Rereme). Arthur não precisou recorrer ao Redome. A irmã, Elizabeth D’ Almeida, que na época do transplante tinha 14 anos, foi a doadora. Os dois fazem parte dos 25% de irmãos de mesmo pai e mesma mãe que têm compatibilidade. As chances de se encontrar um doador não consanguíneo pelo Redome passaram de 15% para 70% nos 12 anos de existência do banco. Avanços significativos têm ocorrido no país com relação ao tratamento por TMO. “Nos últimos 15 anos, o Brasil cresceu na busca por doadores e na organização da fila do Rereme”, destaca José Carlos. Entretanto, faltam campanhas para conscientizar a população sobre a importância de ser um doador voluntário e, mais do que isso, falta esclarecimento. É mito que a coleta da medula por punção é feita sem
anestesia, ou que o doador pode morrer. Os riscos são apenas os anestésicos. A situação da prévestibulanda Juliana Bezerra, 19 anos, ilustra bem a desinformação. “Já quis ser doadora de medula, mas lá em casa não deixaram por medo de acontecer alguma coisa. Já falei sobre isso e não gostaram”, afirma. Além da desinformação, o fato de o processo de doação ser doloroso reprime muitos de se cadastrarem no Redome. Segundo o Inca, para se registrar no banco é necessário colher 5 ml de sangue e, somente ocorre a doação se houver compatibilidade com algum paciente. A coleta da medula pode ser feita de duas formas: por aférese – coleta de material sanguíneo por meio de um aparelho automático – ou por punção. O segundo, apesar da agulha utilizada, é feito com anestesia geral e a recuperação acontece em 15 dias. Mas, se para quem doa os riscos são apenas os presentes em qualquer cirurgia, para quem recebe o perigo é bem maior. “A médica me explicou que eu teria mais chances de ter câncer, que poderia ter um problema de trombose ou de pressão. A doença poderia sumir e voltar novamente. E eu tinha 99% de chance de ficar estéril, mas nada disso aconteceu”, comemora Arthur. Mesmo com tantos riscos, dados do Inca mostram que o procedimento significa a cura para os 1.050 pacientes à espera de um transplante em todo o país. Arthur foi encaminhado para São Paulo para fazer o transplante no hospital do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (GRAACC). Lá, foi
acompanhado pela médica Adriane Sebe, que realizou o transplante no dia 1º de setembro de 2007. O GRAACC é referência no país no tratamento contra o câncer infantil e nele funciona, no segundo andar, o ambulatório de TMO. Mas a viagem de Arthur revela um outro problema a ser superado pelo país: a falta de hospitais capacitados para a realização de transplantes de medula óssea. Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia e Belo Horizonte são cidades que se destacam. Curitiba, pioneira nesse tipo de tratamento, foi onde ocorreu o primeiro TMO do Brasil. Segundo o Inca, existem em todo o país 61 centros para transplante de medula óssea, 22 dos quais para transplantes de doadores não-aparentados. Esses centros não contemplam todos os estados e estão concentrados na região CentroSul do país. No DF, por exemplo, o TMO autólogo começou a ser feito nos últimos anos, mas não em todos os hospitais. Pacientes como Arthur D’ Almeida ainda precisam se deslocar. Apesar de o governo se comprometer a ajudar com as despesas de alimentação e hospedagem, passados seis anos da cirurgia, Arthur ainda espera receber o dinheiro do benefício. Hoje, aos 25 anos, Arthur cursa Psicologia na Universidade de Brasília (UnB), participa de projetos de iniciação científica, namora e trabalha na igreja. Está curado. Mas ele se lembra daqueles que, diferente dele, não conseguiram vencer a doença. “Quem eu conheço que não conseguiu fazer o transplante foi pela falta de doadores”, lamenta.
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Diagnósticos que se cruzam Primeiro de dezembro de 2010, verão no Brasil, Palê Zuppani aproveitava para fazer o que mais ama: fotografar. Tudo parecia dentro dos planos do rapaz alegre de 29 anos, formado em Relações Internacionais, que descobrira a paixão pela fotografia ainda na universidade. Mas, após passar mal, Palê recebeu a notícia que mudaria radicalmente sua vida. O diagnóstico era claro: leucemia. Ele precisava de um TMO. Três anos após Arthur ser curado, Palê dava entrada no hospital Albert Einstein, em São Paulo, onde ficaria internado durante os oito meses de tratamento. Seu médico, Fábio Kerbauy, seria a pessoa que realizaria o transplante – “meu segundo pai”, descreve Palê. O irmão do paciente não era compatível, assim, a solução foi recorrer ao Redome. Funcionou: havia três possíveis doadores compatíveis. Em junho de 2011 Palê
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recebeu a nova medula. Tudo parecia resolvido, mas não foi o que aconteceu. A leucemia havia voltado e ele precisaria de um novo transplante. “Muito mais difícil que o diagnóstico, muito mais pesado que o primeiro, foi o segundo transplante”, ocorrido em maio de 2012. A fórmula para enfrentar tudo isso? Alegria contagiante, jeito “vira-lata” – como ele mesmo descreve –, confiança na cura e o apoio da família. Para Palê tudo era uma questão de tempo. Tempo que, aliás, ganhou outro significado na vida dele. “Eu tinha 27 anos quando descobri a doença. Era a fase em que você quer abraçar o mundo, mas a vida falava para eu não acelerar tanto porque não dava. Tive que ficar mais tranquilo, mais simples”, explica. Em maio de 2012, o fotógrafo Palê Zuppani realizou o segundo transplante de medula óssea. Para ele o sistema funcionou. “Sou uma pessoa que teve a sorte que muitos
não tiveram. Usufruí do tratamento de bons hospitais, tive o apoio da família, mas a cura não teria vindo se não fosse pela doação de um desconhecido, em um sistema do governo. A conscientização da população é que precisa mudar. Se cadastrar no Redome não significa necessariamente que você tenha que doar”, afirma. Quem doou não se arrepende. “Por mim, eu já teria doado minha medula novamente, mas por enquanto não tem ninguém precisando. Estou no banco de medula e se alguém precisar estarei disponível sempre”, garante Elizabeth D’ Almeida. A irmã de Arthur explica que o processo é simples e rápido. Simples pois, segundo ela, as únicas dores que sentiu foram no momento de tirar o curativo, pois “puxa os pelos da pele”, e na região em que “eles furam para tirar o sangue da medula”. Rápido, pois ela recebeu alta após três dias de ter feito a doação.
Foto: Zupani
O fot贸grafo Pal锚 Zuppani, autor da imagem que abre esta reportagem, fez dois transplantes de medula a partir de doadores an么nimos
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o coracao do Brasil l
O que é o interior do interior do país? Onde se escondem e onde se revelam as verdades, as identidades e as paixões mais arraigadas no coração desse continente brasileiro? Dez estudantes e dois professores do Curso de Comunicação Social tiveram a oportunidade de desbravar uns pedaços desse Brasil interior e responder a essas perguntas. Duas equipes acompanharam, nos meses de julho e agosto de 2012, as operações Açaí e Capim Dourado do Projeto Rondon, do Ministério da Defesa, no Pará e no Tocantins, respectivamente. Nesses lugares, documentaram
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o empenho de jovens recrutados em universidades de todo o país para ajudar. Os sorrisos das crianças que brincam com os voluntários; a atenção dos moradores às palestras; os cenários-palafitas muito diferentes do cerrado; as lições de higiene e as sessões de cinema. Do carimbó às infindáveis plantações de abacaxi, desbravaram, cada um a seu modo, uma cultura que, muitas vezes, não conheciam sequer de ouvir falar. Nas imagens, um apanhado desta experiência, resultado do projeto de cobertura jornalística do Rondon. (Karina Gomes Barbosa)
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Foto:Joyce Oliveira
Em vários tons Muito além do novo sucesso da literatura erótica feminina, a sexualidade da mulher é exercida com criatividade, mas ainda é escondida Por Mariana de Ávila
Lúcia* gosta de ser dominada. Gosta da dor quente e ardida de um tapa. Gosta da sensibilidade que o clamp (uma espécie de prendedor) deixa nos seios. Gosta de saber que, apesar de estar numa posição submissa, uma palavra dita por ela lhe dá o poder de parar. A palavra, que pode virar o jogo, é chamada de safeword ou palavra de segurança. Lúcia é adepta há 10 anos do BDSM, sigla usada para resumir práticas de bondage e sadomasoquismo. Lúcia conheceu o bdsm após enfrentar uma experiência desagradável – para dizer o mínimo. Aos 17 anos, foi estuprada, engravidou e sofreu um aborto espontâneo. Quando estava no hospital, conheceu Bruno*, enfermeiro de 26 anos.
Os dois saíram algumas vezes, mas ela sentia medo e insegurança. Um dia, foram a um motel. Bruno propôs uma brincadeira. Lúcia logo aceitou. Se quisesse que ele parasse, deveria dizer a palavra de segurança que haviam combinado. “Morango” significava parar; “mamão” era um alerta. Ele, então, vendou os olhos dela e começou a tocá-la. Lúcia gritou no mesmo momento: “morango!”. Ele parou, retirou as vendas e a abraçou. Repetiram o procedimento várias vezes, até que ela se sentisse segura. Em um ano, Lúcia diz ter aprendido muito sobre BDSM. Gostou tanto do que aprendeu que incluiu as práticas na rotina do atual casamento, com Pedro*, que já conhecia, mas não praticava,
o BDSM. “Ele nunca tinha feito nada além do vendar e amarrar de leve”, conta. Hoje, o que os dois mais gostam de fazer são os jogos de dominação e submissão. Lúcia explica que são até leves, “baunilha apimentada”. “baunilha é o sexo comum, sem nada de BDSM. Seria algo perto do sem graça. Baunilha apimentada seria aquele sexo em que se usam algumas coisas do BDSM”, esclarece. Raramente usam algemas. Lúcia não gosta. Prefere cordas de tecido ou de linha, algo mais rústico. Além disso, costumam usar vibradores, chicotinhos, bolinhas tailandesas, prendedores para os mamilos e géis de massagem. “E também as mãos, para dar uns tapinhas”, completa.
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O BDSM é um dos atrativos que fizeram com que o livro Cinquenta tons de cinza estampasse listas e listas de livros mais vendidos em todo o mundo. No Brasil, de acordo com dados divulgados pela editora Intrínseca, a tiragem inicial do livro foi de 200 mil exemplares. Escrito pela britânica E.L. James, o livro conta a história de um relacionamento que tem início numa atração instantânea entre o multimilionário Christian Grey e a jovem estudante Anastasia Steele. Ela se apaixona perdidamente (e ridiculamente) pelo misterioso empresário, que gosta de práticas sexuais heterodoxas. O livro já chegou às prateleiras com uma parcela garantida de público, que a autora havia conquistado quando escrevia fanfics (ficções de fãs, derivadas das obras originais) de Crepúsculo na internet. Apesar do hype, nem todo mundo curtiu o livro. “Olha, achei aquele livro um saco. É um romance. Uma história de amor, apenas, com uma linguagem sequer erótica, mas que acho bastante fraquinha”, opina a historiadora Mary Del Priore, sem papas na língua. Priore é autora de diversos livros sobre a história da sexualidade da mulher no Brasil. O livro também não agradou Lúcia. Segundo ela, a história passa uma impressão errada do que realmente é BDSM. Com leitura fácil e sem tropeços, Cinquenta tons de cinza contém passagens que brochariam até mesmo o excitável Marquês de Sade, um dos luminares da literatura erótica. Como exemplo, vale citar um trecho em que Anastasia Steele pergunta a Christian se irá fazer amor com ela, e ele responde: “Em primeiro
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lugar, eu não faço amor. Eu f***... com força”. Outra pérola classuda do livro. Ao dizer que não é familiarizada com sexo anal, Grey avisa: “Seu c* vai precisar de treino.” Desde agosto de 2012, Cinquenta tons... (o primeiro volume de uma trilogia) tem lugar garantido na estante dos mais vendidos das livrarias. O livro pode até ter apresentado o BDSM pra muitos leitores, porém está longe de ser vanguarda. A literatura erótica já havia se manifestado na Antiguidade. O gênero, chamado de priapeia, reunia poemas dedicados a Príapo, deus da fecundidade. A divindade era representada com um membro de tamanho exagerado e sempre ereto. Na verdade, é difícil saber se dá pra chamar Cinquenta Tons de Cinza de literatura erótica. Não seria pornográfica? Falta definição cristalizada para as duas. Para Ronnie Cardoso, doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), a diferenciação não é muito convincente. “A definição mais aceita estabelece a dicotomia entre sexo explícito, grosseiro e vulgar, que estaria presente na pornografia, e sexo implícito, nobre, galanteador, que faria parte do erotismo. Contudo, há um valor mais moral que estético pautando essa oposição”, explica. O “be a bá” do BDSM A simples sigla de quatro letras significa muita coisa. Em alguns lugares, é destrinchada em “bondage e disciplina”, “dominação e submissão” e “sadismo e masoquismo”. Lord Anderson resume a sigla em bondage, dominação, submissão e masoquismo. Seja nessa
versão mais simples ou na mais elaborada, já dá pra sacar o que BDSM envolve. Bondage talvez seja a palavra menos conhecida. A prática envolve cordas, algemas, lenços e qualquer outro objeto que possa imobilizar uma pessoa. Lord Anderson completa: “Não apenas amarrar, mas imobilizar de forma artística. Envolver o corpo d@ submiss@ de forma artística” (Em tempo: Lord Anderson, como gosta de ser chamado, pratica SM há 12 anos e assume a posição de dominador). “O Lord do nome é pra ser uma referência nobre, tipo my lord, como um nobre feudal sobre seus súditos”, explica. Para ele, uma das coisas que mais excitam é a confiança que a submissa deposita nele. “O controle, a entrega, saber que aquela pessoa confia tanto em você que aceita se colocar numa posição vulnerável”, explica. Anderson, dominador, além de dar ordens para submissa, gosta de escolher o que ela usa, colocá-la em posições e atos de submissão. Exemplo: ajoelhar, fazer reverências e demonstrar respeito. As tarefas passadas por ele variam bastante. “Pode ser ela se vestir como empregada e fazer trabalho doméstico; pode ser ela se comportar como cadelinha, andando de quatro, latindo, comendo e bebendo como uma cadela”, conta. Tanto Lúcia quanto Lord Anderson ressaltam que a prática do BDSM leva sempre em consideração uma outra sigla, SSC, que significa São, Seguro e Consensual. O sexo, portanto, deve ser SSC. “São” significa que os participantes daquele momento BDSM devem estar lúcidos a ponto de conseguir assumir riscos
e fazer tudo com segurança. Não é recomendado o uso de bebidas alcoólicas e entorpecentes. “Seguro” representa o cuidado para que não aconteçam acidentes ou ferimentos graves. “Consensual” serve pra lembrar que tudo que vai ser feito deve ser de comum acordo entre os participantes. “A ‘sub’ escolhe ser submissa. Embora o dominador esteja no controle durantes as sessões, no momento em que ela decidir que não aceita, não quer mais, tudo acaba”, esclarece Anderson, que trabalha como auxiliar de escritório em uma empresa de RH. Para ele, as mulheres podem exercer a sexualidade por meio do BDSM assumindo fantasias, por exemplo. “Elas são incentivadas a conhecer e explorar seus corpos e a experimentar o que gostam, sem vergonha e sem censura. São incentivadas a se entregarem sem medo de serem julgadas”, diz. Ele ainda acrescenta que isso não tem nada a ver com violência e machismo. “Trata-se de sexualidade, que é vivida em conjunto. Dominador e submissa agem juntos para alcançar o prazer”, explica. Descolados, mas nem tanto Nem só mordaças, cordas e chicotes aquecem a relação de Lúcia e Pedro. O sexo sem firulas também está presente na vida do casal. “Rola rapidinha, masturbação conjunta, amassos, papai-mamãe, fetiches variados”, ela lista. No entanto, nem tudo são flores. Há uma prática que desperta muita vontade e curiosidade em Lúcia, mas pouca aceitação por parte de Pedro. Ela quer sair da teoria e conhecer o swing na prática. Como
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formas de viver, e o poliamor é uma delas”, resume. Segundo Regina, a maioria das pessoas tem relações extraconjugais. Safadeza? Não exatamente. “Porque variar é bom. Só por isso. Quem não gosta de variar?”, provoca. Mercado erótico Os produtos e brinquedos que apimentam a relação de Lúcia não são artigos raros. Eles podem ser encontrados facilmente na maioria das sex shops ou pela internet. Na última década, o mercado erótico deu um salto gigantesco. A presidente da Associação Brasileira do Mercado Erótico (Abeme), Paula Aguiar, elenca alguns fatores para esse crescimento. Um deles é a internet, que, segundo ela, possibilitou às pessoas que desconheciam os produtos tomar contato com eles. Um segundo ponto são as mudanças do espaço dedicado à sexualidade feminina. “Outro fator foi a questão da transformação da mulher na busca pela sua sexualidade, orgasmo, prazer, e a abertura que isso teve nas revistas femininas”, completa. Além disso, determinantes para alavancar o mercado erótico foram as novas maneiras de abordar o sexo em livros, filmes e televisão – como Cinquenta tons... ou a série De pernas pro ar, que rendeu duas comédias nacionais com Ingrid Guimarães sobre uma empresária do ramo erótico. Nas vendas pela internet, as mulheres representam 55% do público consumidor. “O mercado erótico tem quase 40 anos, mas, nos últimos dez anos houve esse grande boom. Não só brasileiro, como também mundial”, explica Paula Aguiar.
Fotos:Leandro Viana
o marido tem ressalvas, Lúcia está tentando convencê-lo aos poucos. A estratégia inicial é chamar uma menina para fazer sexo a três. Ela também tem vontade de experimentar a dupla penetração. Mas com dois homens, sem brinquedinhos no meio. Porém, a ideia parece estar anos-luz à frente da cabeça do casal adepto do BDSM. “Acho que tudo que é diferente tem que ser gradativo”, explica Lúcia. O envolvimento com outra pessoa, mesmo estando em um relacionamento sério, é defendido pela psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, autora do Livro do amor e A cama na varanda. Ela, inclusive, dá uma definição para isso – um tipo de envolvimento que vai muito além de um swing. “Poliamor é a possibilidade prática de você amar e ser amado por várias pessoas ao mesmo tempo. Acredito que seja uma tendência, porque o amor romântico dá sinais de estar saindo de cena”, explica. O amor romântico povoa as mentalidades desde o século XIX. No entanto, ele está perdendo a vez, pois, de acordo com Regina, atualmente, a busca das pessoas é pela individualidade. “A grande viagem do ser humano é pra dentro de si mesmo, todo mundo quer saber suas possibilidades, seu potencial. E o amor romântico propõe o oposto, a fusão entre os amantes, que eles se transformem em um só”, esclarece. Embora o amor romântico esteja em ato final, as cortinas do palco continuam abertas para receber o que está vindo por aí. “Está se abrindo um espaço para as pessoas experimentarem novas
Clamps, artefatos muito utilizados pelos praticantes do BDSM
Não vale só falar, tem que fazer Gostando ou não do livro, a publicação de Cinquenta tons de cinza fomentou a discussão sobre sexo, que, no entanto, não deixou de ser tabu. Para a historiadora Mary Del Priore, fala-se muito e pensa-se e pratica-se pouco. Na imprensa feminina, por exemplo, é comum o sexo aparecer como receita de bolo. “Como gozar”, “Como ter mais prazer na cama”, “Descubra posições novas” são exemplos hipotéticos (ou não) de possíveis (ou reais) matérias nessas publicações. As revistas, nesses casos, tentam vender um modelo ideal de sexualidade. Del Priore apresenta uma contrapartida. “Agora, ao mesmo tempo, através de estudos feitos por pesquisadores médicos, a gente vê que a mulher tem dificuldade de gozar, que ela ainda não se sente à vontade na cama, que tem certas posições que a mulher brasileira vê com preconceito”, explica. Ela não nega que a sexualidade, pelo menos no Brasil, esteja espalhada (às vezes, escancarada) em todo canto. “Está em toda parte, está no outdoor, está na televisão, está na revista feminina.” Ainda assim, no país, hoje, ela acredita que haja um paradoxo, que tem a ver também com não se sentir à vontade com o próprio corpo. Mary Del Priore chama isso de submissão ao espelho. Ou seja: as mulheres queimaram sutiãs, conquistaram a liberdade reprodutiva com a chegada da pílula anticoncepcional e ocuparam o mercado de trabalho; no entanto, trocaram a submissão ao marido e aos filhos, de uma sociedade patriarcal, pela submissão ao espelho. “Hoje, a mulher é absolutamente
prisioneira da imagem do seu corpo, prisioneira da balança, prisioneira da academia, prisioneira daqueles quilinhos a mais que deseja perder”, explica. Para a historiadora, essa necessidade de corpo perfeito é uma nova forma de prisão para a mulher. “Estamos em uma sociedade que tem horror à gordura. A mulher tem que combater o peso o tempo todo”, completa. Contra essa ditadura, Del Priore elogia uma frase da badalada cantora paraense Gaby Amarantos. “Acho fantástico quando a Amarantos diz ‘A minha gordura só incomoda aos outros. Ela não me incomoda’”. A fotógrafa Letícia Oliveira tenta justamente deixar as mulheres mais confortáveis com o corpo. Ela faz ensaios sensuais. A maioria, como conta, é feita com mulheres casadas. Ao fotografar, Letícia escutava lamentos do tipo: “Gordinha não é sensual porque não tem corpo de violão”. Com o objetivo de incentivar as clientes, ela fez um ensaio. Na época, em 2010, tinha 96 quilos. O intuito era estimular as mulheres mais cheinhas a se sentirem à vontade com a exposição. Depois de um tempo, em fevereiro de 2012, Letícia emagreceu 35 quilos e decidiu fazer outro ensaio. “Fiz o primeiro ensaio para que minha cliente acreditasse naquilo que queria passar”, explica. O segundo foi feito pra ela mesma. Sexo bonito de se ver Hollywood tem o Oscar para celebrar os melhores (nem sempre) do cinema. O cinema pornô também possui uma premiação, e com mais categorias que o Oscar. É o AVN, Adult Video News Awards.
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Nele, desfilam aqueles tipos de filmes que, em sua maioria, são estigmatizados. E com razão. Muitos pornôs são machistas e asquerosos. Na linha desses filmes, as paródias de produções famosas também ganham público. Avatar, Crepúsculo e Alice são apenas alguns exemplos de filmes que ganharam versão pornográfica. Cansada de assistir a filmes que esbanjam gozo na cara, seios siliconados e performances exageradas, a sueca Erika Lust despontou no ramo e, atualmente, se destaca por assinar filmes com uma pegada mais leve. E leve não significa que sejam filmes sem sexo, ou que tenham apenas “sexo baunilha”. Os filmes mostram, sim, sexo. O diferencial é que ele é apresentado de maneira muito menos escrachada do que os pornôs convencionais. Um dos premiados, e mais recentes, filmes da diretora sueca é Cabaret Desire. Assim como os outros filmes de Lust, este também traz a marca delicada e refinada da diretora, mostrando o sexo não com algo escandaloso, mas apreciável. Há uma outra vertente de filmes, que, embora apresentem o sexo como destaque, não entram facilmente no rótulo de eróticos. São produções que podem ser encontradas fora das sessões privadas e adultas das locadoras. Calígula é um exemplo.
O filme mostra a zona que era o Império Romano e a devassidão do imperador conhecido como Calígula, que mantinha relações sexuais com a irmã. Outro filme que segue essa linha é Saló ou os 120 dias de Sodoma, do italiano Pier Paolo Pasolini. O longa é baseado na obra homônima de Marquês de Sade. O filme, tão polêmico quanto Calígula, pode causar desconforto aos espectadores de estômago mais fraco. Sem medo de sentir prazer. Será? Dados indicam que mulheres compram muito mais produtos eróticos que homens. Em lojas fixas, a venda para elas representa 68%. Outro indicador é de que 45% das compradoras são casadas. Embora estejam batendo ponto em lojas e feiras eróticas, há ainda medo de assumir certos comportamentos. Em novembro de 2012, aconteceu em Brasília o 3º Bazar Sexy e Fashion. No evento, havia várias sex shops e lojas de lingerie vendendo produtos, participantes realizando palestras, minicursos, dentre outras atividades. Antes mesmo de começar o evento, quatro mulheres sentadas na segunda fileira chamaram atenção. Não por terem feito algo espalhafatoso. Na verdade, era justamente o contrário. Uma delas devia ter seus trinta e poucos anos. As outras três já
eram mais velhas, uns 60, talvez. Uma dessas mulheres, ao ser abordada para uma entrevista, logo disse: “Não, moça. A gente não!”. Outra tentativa frustrada de conversar com elas: “Mas eu não vou revelar o nome de vocês. Posso garantir isso”. Depois disso, veio a explicação: “Entrevista essas mocinhas mais novas. A gente está aqui escondida”. Ou seja: elas não tiveram coragem de contar para os maridos, filhos e família que estavam em um evento sobre sexo. Prova de que falar do assunto ainda gera desconforto. Há mais de dois mil anos, o sexo era visto como uma coisa suja, feia e abominável. Para os homens, existia mais condescendência; para as mulheres era outra história. Elas tinham de se mostrar puras e tinham de ser virgens, se quisessem arrumar um marido. Graças, principalmente, aos movimentos de contracultura das décadas de 60 e 70, esse cenário começou a mudar bastante. Ainda existem homens e mulheres que não veem o sexo como uma coisa saudável, desejável e boa. No entanto, para Regina Navarro, isso está se alterando. “A gente está no meio de um processo de mudanças das mentalidades, que só vai ser concluído daqui um tempo. Cada vez mais, as pessoas estão percebendo o amor, o sexo, o casamento de forma diferente”, explica.
Tomara. *Os nomes de Lúcia, Pedro e Bruno foram trocados para preservar a identidade dos personagens.
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Foto:Joyce Oliveira
Géis, vibradores e essências, como as da foto, são muito procuradas no mercado erótico brasileiro
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como falar de sexo
preliminares Por Mariana de Ávila
Na reunião de pauta, já dava para saber o que seria difícil nessa reportagem. Ali, já percebi que não acharia tão fácil personagem disposta a falar sobre sexo. E dá até pra entender. Para a matéria vingar, precisaria encontrar uma mulher disposta a me contar detalhes de sua vida sexual. É algo particular, íntimo. Procurei no twitter, facebook, até que me lembrei de um blog chamado Cem Homens. A autora é uma mulher que causou um bafafá quando afirmou que poderia atingir a marca de transar com cem homens em um ano. Mas não a queria como personagem. Mandei um email perguntando se ela conhecia alguém que toparia ser entrevistada. Ela disse que não, mas se dispôs a ajudar, colocando um pedido por personagens no blog. Não demorou muito para que eu recebesse uns cinco emails. “Que ótimo! Tenho uma personagem para a reportagem”. Lá pela terceira pergunta veio o baque. Antes de contar ela
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me pediu, novamente, para não revelar seu verdadeiro nome (E olha que eu já tinha garantido que a identidade seria preservada). “Como você conheceu o s a d omas o qu ismo? ” Lú ci a : “Com 17 anos eu fui estuprada. Fiquei grávida e sofri um aborto espontâneo”. Ela contou assim, desse jeitinho mesmo. Nesse momento, conversávamos pelo gtalk. Não sei qual seria minha reação se estivéssemos cara a cara. Não precisei dizer nada na hora. Na verdade, agradeci por ela continuar mandando mensagens nos 10 minutos seguintes. Não estava preparada para ouvir (no caso, ler) isso e nem sabia muito bem o que perguntar, se teria o direito e a coragem de continuar questionando sobre o estupro. Optei por mesclar as questões. Uma hora perguntava sobre seus brinquedinhos favoritos, outra, quando ela dava a deixa, tentava, com cuidado, entrar no episódio novamente. Uma preocupação da
reportagem era sobre os nomes trocados dos personagens. Com nomes inventados, será que as pessoas realmente acreditariam que a história é real? Fiquei ressabiada que os nomes modificados interferissem na credibilidade da história. No entanto, isso não afetou, ao final da reportagem, minha confiança em Lúcia. Durante meses, conversamos muitas vezes. Ela me falava do Bruno e de como era difícil ter contato com ele, devido, principalmente, a sua esposa ciumenta. Tentei conversar com Bruno, mas Lúcia me alertou mais de uma vez pra tomar cuidado que a esposa poderia atender o telefone e não ser nada simpática. Tentei falar com ele 2 vezes. Com medo que a esposa atendesse, configurei as opções de privacidade do celular para que meu número não aparecesse. Ainda bem. A voz de uma mulher atendeu. Desliguei. Depois disso, tentei ligar mais uma vez, mas não tive sucesso. (M.A.)
Entrevista Jeni
Foto:Mike Peixoto
erika Lust 43
por orgasmos realistas no cinema por no Por Mariana de Ávila
Erika Lust nasceu em 1977, na Suécia. Desde 2000, mora em Barcelona, onde escreve, produz e dirige seus filmes, produzidos pela Lust Films, da qual é fundadora. A diretora assistiu ao primeiro filme pornô aos 13 anos, com algumas amigas. Ficaram chocadas por “aquilo ser considerado sexo”. Anos depois, começou a carreira na área ao perceber uma lacuna: filmes diferentes “daquilo”. Os estudos nas áreas de ciência política e feminismo contribuíram para dar gás aos projetos. Os livros Hard Core e Porn Studies, de Linda Williams, tiveram um significado especial para Erika Lust ver o valor do pornô. “Não apenas como ferramenta para excitar, mas como uma lente pela qual podemos ver e entender a sexualidade”, explica. Em entrevista realizada por e-mail à Jenipapo, Erika Lust conta como s mulheres se comportam diante da pornografia.
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Qual a diferença entre mercado erótico e indústria pornô? A indústria pornô se refere apenas ao negócio de imagens pornográficas – seja ele em filme, impresso ou na internet. Geralmente, mercado erótico inclui uma categoria mais ampla de itens com a intenção de excitar: livros, brinquedos, lingeries, jogos, cosméticos, etc. Qual foi o primeiro filme pornô a que você assistiu? Quando? Com quem? Minha primeira experiência foi um vídeo que algumas garotas e eu encontramos durante uma noite fora, quando eu tinha uns 13 anos. Definitivamente, não foi erótico – nós rimos e ficamos um pouco espantadas por AQUILO ser considerado sexo. Não me lembro do nome ou sobre o que era, mas era terrível. É verdade que filmes pornôs, geralmente, têm mais apelo entre os homens? (Se sim, isto está mudando?) Em termos gerais, os homens tendem ser mais antenados à imagem sexual, e mulheres à fantasia sexual. Isso não significa dizer que mulheres sejam criaturas menos visuais, mas objetos sexuais aparentemente têm pouco a ver com a excitação delas. Por exemplo, a imagem de um homem sorridente, sexy, nu e vendado, visto apenas da cintura para cima, poderia ser bem mais tentadora que a imagem de um pênis. Ambas possuem carga sexual, mas uma é implícita enquanto a outra é explícita – e essa pode ser uma diferença fundamental entre o que excita uma mulher e o que excita um homem. Então, o
pornô que está mais direcionado às mulheres, mais implícito, é mais atraente, em minha experiência – e quanto mais pornô assim, melhor! Mas acredito que as coisas estão mudando: os vários gêneros sentem-se confortáveis assistindo pornô. As mulheres casadas são, hoje, um mercado/alvo da indústria pornô? Definitivamente não! Mulheres são dificilmente um alvo, e as que têm parceiros são menos ainda. É o resultado de centenas de anos de instituições vendo esposas e mulheres como seres assexuados. Por que você faz filmes eróticos para mulheres e casais? Minha carreira no cinema pornô começou com a sensação de que alguma coisa estava faltando. Depois de estudar ciência política e feminismo, entendia o que precisava ser mudado na indústria. Vi a lacuna enorme no que dizia respeito a mulheres e casais, em que estética, autenticidade e paixão estavam faltando. Depois de estudar teorias feministas na universidade, e particularmente depois de ler Hard Core e Porn Studies, de Linda Williams, vi o valor do pornô. Não apenas como ferramenta para excitar, mas como uma lente pela qual podemos ver e entender a sexualidade. Você já leu Cinquenta tons de cinza? Ainda não – apenas trechos. Por que você acha que o livro está sendo chamado de ‘mommy porn’ (pornô para mães)? Bem, até onde sei esse termo foi cunhado para um gênero
específico da literatura erótica, baseado no público-alvo. Livros desse gênero devem empregar linguagem implícita para descrever sexo e usualmente giram em torno de uma história romântica. Também, antes do hype, ele não era imediatamente identificado como um romance erótico (a capa e título não são sugestivos), o que com certeza tem a ver com a ideia de que as mulheres – particularmente as mães – não deveriam gostar abertamente de sexo. Independentemente do conteúdo dos livros, acredito que esse rótulo é muito bobo! O que faz seus filmes diferentes? Por onde começar… Primeiro e principalmente, me engajei em retratar a sexualidade e o desejo femininos. Em segundo lugar, me esforcei por um nível de autenticidade e ingenuidade em meus personagens, seleção de atores e roteiro. Finalmente, e uma das mais perceptíveis diferenças, é que foco bastante em produzir uma estética que expresse beleza. Todas essas coisas combinadas criam algo diferente do pornô com que a maioria das pessoas está familiarizada: uma vitrine de movimentos atléticos, péssimas (ou nenhuma) histórias, partes do corpo falsas ou totalmente depiladas e orgasmos dignos de um Oscar, todos representados em péssimos cenários, com péssima luz e sem um pingo de paixão ou prazer real. Você estudou ciência política e teoria feminista. Como esse conhecimento é aplicado quando você escreve e dirige? É triste dizer, mas o sexo ainda é uma questão muito política:
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quer estejamos falando sobre leis que governam a produção e o consumo do pornô, ou negociando interesses públicos com a vida privada de alguém. Às vezes me sinto como um político quando estou representando o pornô indie e espalhando a mensagem da sexualidade positiva para a mulher, simplesmente porque mantenho uma imagem pública, e tomando partido em um discurso social. Minha formação certamente me ensinou bastante sobre negociação, pensamento crítico e o relacionamento entre sociedade e governo. Mas foi o meu foco particular no feminismo que influenciou minha maneira de ver o mundo e, posteriormente, a direção que minha produção cinematográfica iria tomar. Pornô é um tópico muito controverso nos estudos feministas. Qual o seu ponto de vista? Se o feminismo pode ser definido simplesmente como uma “igualdade política, social e econômica entre os sexos” (Dicionário Webster), então eu poderia assumir que a liberdade e expressão sexuais recaem nas categorias sociais. Há muita coisa sobre o pornô, no pornô comercial em particular, que não promove a ideia de igualdade entre homens e mulheres: principalmente porque hoje em dia as mulheres são ligeiramente marginalizadas na indústria, tanto em voz quanto em audiência. Mas, para dizer francamente, quando mulheres procuram, assistem e aproveitam a pornografia, de qualquer tipo que seja, ela estão aproveitando e explorando a sua sexualidade, o que só pode empoderador e
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incentivar a igualdade social. O que você acha da afirmação de que pornografia é exploração feminina? Acredito que o estado atual do pornô é certamente explorador – mas é assim que foi desenvolvido, não é o modo inerente. Para mim, esse termo se refere a um tratamento injusto, que apenas entra em cena no sentido de que o pornô é um negócio. Mas cada vez mais e mais os envolvidos no negócio pornô estão caminhando para garantir tratamentos mais justos, o que é um grande passo para eliminar a exploração nesse campo. Como as mulheres podem empoderar-se com pornô? A coisa mais importante para uma mulher é encontrar alguma coisa de que ela goste, porque o pornô pode ser uma grande ferramenta para excitação e para expandir a percepção e o conhecimento do sexo e do erotismo. A maioria das mulheres me conta que o pornô não apenas as excita, mas também as inspira, especialmente quando assistem com seus companheiros. Também pode ser uma coisa libertadora para algumas mulheres, dependendo do quão fechada a sexualidade delas é. Também existem várias mulheres que tiveram uma má experiência com o pornô convencional e então eliminaram a possibilidade inteiramente – mas se elas encontrarem alguma coisa de que gostam, então o papel do sexo na vida delas tende a mudar drasticamente. Isso pode resultar em um entendimento mais profundo sobre as próprias fantasias e necessidades sexuais,
e a sua satisfação, que as empodera, ao enriquecer a qualidade de vida! Isso se aplica a mulheres casadas, com vidas sexuais mais “tradicionais”? Absolutamente – sexo, erotismo, sensualidade, paixão, intimidade: isso não está limitado a certas pessoas. Eu encorajo todos que querem explorá-lo a fazê-lo, e a deleitar-se com os resultados!
{...} vitrine de movimentos atléticos, péssimas (ou nenhuma) histórias, partes do corpo falsas ou totalmente depiladas e orgasmos dignos de um Oscar, todos representados em péssimos cenários, com péssima luz e sem um pingo de paixão ou prazer real.
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capítulos em #caracteres Redes sociais se incorporam ao hábito de assistir a novelas Por Gabrielle Santelli
Uma voz surge atrás da porta. É o pai que ainda está no hall de entrada conversando ao telefone. Sérgio chega de mais um dia de trabalho. A filha Verônica abre a porta. Ele continua ao telefone, mas a mulher, Rosângela, começa a se preocupar: a novela já deve começar e ele ainda não está pronto. O telefonema acaba. Sérgio vai para o quarto. Volta vestindo uma roupa mais casual e pergunta “da janta”. Na televisão, o Jornal Nacional mostra uma reportagem de como o Brasil parou no dia 19 de outubro de 2012. Verônica e Rosângela arrumam a mesa. Sanduíches, amendoim, salame, refrigerante e cerveja. Tudo tem
que ficar pronto para o último capítulo de Avenida Brasil. Rosângela Cordeiro, dona de casa, 49 anos, sempre gostou de novelas e ainda acompanha Vale a Pena Ver de Novo. Sérgio Cordeiro, policial militar, 48 anos, não nega: adora assistir novela e até chega a desmarcar alguns compromissos por causa delas. Verônica Cordeiro, professora, 22 anos, não gosta de novelas, mas começou a acompanhar Avenida Brasil só por causa da repercussão nas redes sociais. Heraldo Pereira e Renata Vasconcellos finalmente encerram o Jornal Nacional. Pai, mãe, filha – e até a cadelinha de estimação
Pity –, correm para os devidos lugares no sofá. A filha arrisca o palpite que todo mundo vai casar e ter filhos. Silêncio. A novela começou. Olhos bem atentos na televisão. Carminha salva Nina e Tufão. “Agora, a Carminha virou Santa Carminha de Calcutá”, comenta Sérgio. Hora do intervalo. Novela vai e novela vem. Adauto se prepara para o pênalti. Momentos de tensão. Adalto vai bater. Bateu! “Gooooooool”, comemora a família. Foram 70 minutos de inquietações sobre os acontecimentos, indignações sobre o que não foi respondido e comentários sobre o Rio de Janeiro, cidade natal da família.
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TV na rede Enquanto a geladeira está em 95,8% e o freezer em 16,4 % das casas brasileiras, a televisão está presente, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2011 (Pnad) do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), em 96,9% dos lares do Brasil. Enquanto isso, os computadores com acesso à internet estão em 36,5%. O acesso à internet, aliás, está em crescimento no Brasil. De acordo com o IBOPE Nielsen Online, no terceiro trimestre de 2012, o número de pessoas com internet em casa chegou a 69,5 milhões, enquanto no mesmo período do ano anterior o índice era 16% menor. Além disso, conforme dados do IBOPE Media, a presença da internet entre 2002 e 2003 era de 24% na população, enquanto entre 2011 e 2012 o valor chegou aos 55%. O hábito de assistir novela está mudando desde o sucesso das redes sociais. Em dezembro de 2012, conforme dados do Socialbakers, o Brasil tinha cerca de 65,6 milhões de internautas com conta no Facebook, ficando atrás apenas
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dos Estados Unidos, que registra 163 milhões de contas. De acordo com o Relatório de Tendências de Consumo em TV e Vídeo de 2012, divulgado em agosto de 2012 pelo Ericsson ConsumerLab, 73% dos telespectadores brasileiros acessam redes sociais enquanto assistem à televisão. Em 2011, o hábito estava presente para apenas 48%. A pesquisa também mostra que seis em cada dez mulheres veem televisão e usam as redes sociais juntamente. Entretanto, apenas 40% dos telespectadores discutem em tempo real sobre o que estão assistindo. A pesquisa, ao todo, realizou 14 entrevistas qualitativas e 12 mil entrevistas on-line quantitativas, no Brasil, Chile, China e mais nove países da Europa, Ásia ou América. O IBOPE Nielsen Online já mostra, em uma sondagem realizada em 13 regiões metropolitanas com pessoas de 10 anos ou mais, entre os dias 13 e 29 de fevereiro de 2012, que 43% dos entrevistados veem televisão enquanto navegam na internet e, destes, 59% praticam a atividade diariamente, ou seja, um a cada seis brasileiros navega enquanto vê TV.
Autora: Leusa Araujo Editora: Casa da Palavra Preço sugerido: R$ 19 Capítulos: Prólogo; Cida, Empregadinha; Cida, Empreguete; Epílogo; Biblioteca da Cida
A pesquisa também mostra que as novelas são as mais comentadas nas redes, com 40%. Enquanto isso, em segundo lugar, aparecem os jornais e noticiários (38%) e em terceiro (31%), os esportes. O costume de assistir a programas de televisão com a companhia de computadores, smartphones e tablets conectados em redes sociais, como o Twitter e o Facebook, é conhecido como Televisão Social. Esse termo foi definido pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) Mobile Experience Lab, que na pesquisa Understanding Television as a Social Experience (Entendendo a Televisão como uma Experiência Social, na tradução) determinou a existência de quatro níveis de atividade. O primeiro é o nível dos Criadores, que são responsáveis pela produção, publicação e divulgação de conteúdos. Os Entusiastas, presentes no segundo nível, são os fãs e críticos que só curtem e compartilham os comentários. O terceiro nível é do Remix, que compartilham as mensagens para os amigos da rede e, por último, estão os Consumidores,
que observam o movimento. Segundo Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia e autor do livro Hollywood brasileira, panorama da telenovela no Brasil, antes das redes sociais, para o telespectador compartilhar as suas impressões e reações sobre uma telenovela, havia núcleos fragmentados, como o salão de cabeleireiro, a roda de amigos, a reunião entre vizinhas e a fila do banco. A audiência encontrava nas seções de cartas de revistas especializadas em TV uma forma mais oficial e de grande circulação de manifestar suas opiniões sobre determinada trama ou personagem. O que a internet possibilitou foi reunir essas muitas instâncias em um mesmo território – o virtual – e propiciou maior interação entre o público que acompanha a telenovela. Portanto, “a influência exercida pelo telespectador era exatamente a mesma de hoje. A única coisa que mudou foi a forma de praticar tal poder”, diz Mauro Alencar. O autor do Almanaque da Telenovela Brasileira, Nilson Xavier, considera que a TV Social é uma ferramenta para as
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mesmo dia, vem desde quando os seus pais contavam histórias para ele dormir. Como os pais de Pedro eram criativos, a história nunca acabava na mesma noite e, assim, ele deveria esperar ansiosamente pela noite seguinte para saber o que ia acontecer. Nas redes sociais, Tapajós sempre está fazendo alguma publicação. Durante o horário político das eleições de 2012, como os moradores do Distrito Federal tinham acesso primeiro à novela, ele preferia fazer comentários misteriosos para não dar spoilers, ou seja, contar antes algum acontecimento esperado pelo o espectador – isso porque seu Twitter, @philosopop, tem seguidores de todo o Brasil. Em geral, quando a novela está sincronizada com o resto do país, os comentários são sobre todas as dimensões da novela. Para ele, “não se comenta apenas a narrativa, mas sim os atores, as interpretações, o cenário e a música. Como a novela é uma obra de várias pessoas, é interessante que haja crítica de várias subjetividades”. Por meio do computador e de smartphone, o professor Rafael
Rosa, 26 anos, faz comentários que às vezes geram debates entre os amigos e conhecidos nas redes. Esse hábito foi se incorporando à rotina juntamente com a consolidação de Avenida Brasil. “De repente, ver novela era um processo muito mais interessante se feito na companhia virtual de amigos via Facebook”, conta. Verônica Cordeiro não gosta nem um pouco de novelas, mas teve a necessidade de acompanhar os últimos capítulos de Avenida Brasil. Os responsáveis não foram os pais noveleiros. “A culpa foi das caras congeladas”, confessa. Verônica conta que não estava entendendo mais nada do que estava acontecendo nas redes sociais, e por causa da repercussão fora e dentro das redes acabou ligando a televisão. Ela também afirma que no trabalho chegou ao ponto de não tem com quem conversar, porque “todos os outros professores ficavam comentando. Na sala de professores, ou você assistia ou sentava para corrigir as provas e não interagia com ninguém. E, como não gosto de ficar isolada, comecei
Foto:Gabrielle Santelli
emissoras medirem aceitação de seus programas, além de ser uma maneira de assistir televisão, mais interativa. Para ele, “não somos mais telespectadores passivos, mas opinamos em tempo real, trocando informações com internautas de todas as partes, movidos pela mesma audiência”. Nilson Xavier também tem dois blogs, nos quais faz comentários sobre novelas. Porém, é no Twitter que ele se sente mais à vontade para um olhar crítico e debochado sobre o que vai ao ar. Nas redes sociais, ele diz que gosta de fazer piada e ser sarcástico. “É uma postura diferente da que tenho em meus comentários nos blogs, onde levo tudo mais a sério, e de uma maneira mais profissional. Mas, no Twitter, também mantenho uma postura responsável sobre o que tuíto, afinal por trás de todo deboche existe um pouco de verdade, e o deboche também pode levar à reflexão”. Pedro Tapajós, 42 anos, DJ, professor de inglês e mestre em Comunicação Social, vê telenovelas desde criança. A paixão por narrativas em série, ou seja, aquelas que não terminam no
a ver só para falar que odiava”. Avenida Brasil ficou conhecida nos trending topics mundial como #Oioioi. A popularização da hashtag ocorreu a partir do capítulo 100, quando Carminha descobriu que Nina era Rita. O termo #oioioi100, de acordo com a ferramenta People Browsr, foi utilizado 89.600 vezes no Twitter, enquanto #oioioifinal foi citado 404.106 vezes. Além disso, segundo estudo da E.Life, o último capítulo de Avenida Brasil gerou mais de 300 mil publicações no Twitter – a média era de aproximadamente 2.700 tweets por minuto. No Facebook, segundo o relatório Tendências 2012, o assunto mais comentando na rede social foi Avenida Brasil, deixando o Corinthians e o carnaval para trás. De acordo com Raquel Recuero, pesquisadora de redes sociais, esse movimento é “uma percepção do impacto cultural de uma novela que conseguiu impactar a audiência com determinadas construções. Os bordões das personagens vão representar também uma inculturação das próprias novelas”.
Jaynne Lima, fã das empreguetes
Transmídia Além de Avenida Brasil, Cheias de Charme também movimentou as redes sociais. A estratégia,
porém, dos autores Filipe Miguez e Izabel de Oliveira foi a utilização de Narrativa Transmídia – quando desde o começo da história se planeja a participação de diferentes meios de comunicação para o completar ou desenvolver a trama. Esse conceito foi apresentado, em 2008, pelo pesquisador Henry Jenkins no livro Cultura da Convergência. Um dos primeiros exemplos que o pesquisador cita é o filme Bruxa de Blair, de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, lançado no Brasil em 1999. A ação do filme foi divulgar em uma página da internet uma documentação sobre bruxas descoberta ao longo do tempo. Com o sucesso do site e do filme, uma série de quadrinhos foi criada e lançada apenas nos Estados Unidos. O maior exemplo, porém, é a trilogia Matrix, com roteiro e direção dos irmãos Wachowski. Além dos filmes, a série utilizou um desenho animado, quadrinhos e jogos para completar a história. Os críticos, porém, não gostaram muito da estratégia, pois seguindo a narrativa do cinema, algumas partes do filme ficaram sem lógica para o espectador comum, menos para os fãs que consumiram os produtos da série. Entretanto, a primeira ideia sobre o uso de diversas mídias surgiu em 1966, a partir da Declaração da Intermídia (Statement on Intermedia),
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do artista Dick Higgins. Na declaração, ele afirma que devido ao desenvolvimento dos meios de massa, a sensibilidade das pessoas mudou e, assim, seria necessário que alternativas fossem encontradas pelos artistas. A opção encontrada por Higgins foi o uso da intermídia, que seria a criação de obras de arte que tivessem interseção com várias plataformas, ou seja, obras que misturassem o uso das mídias. Cheias de Chame inovou ao disponibilizar o clipe Vida de Empreguete primeiro na web e ao criar as campanhas “Empreguetes Livres” e “Empreguetes para Sempre”. Segundo a ferramenta PeopleBrowsr, no dia 22 de maio de 2012, quando começou a primeira campanha, a hashtag #EmpreguetesLivres foi utilizada 4.361 vezes no Twitter, enquanto no início da segunda campanha, dia 27 de agosto, a hashtag #EmpreguetesParaSempre foi citada 1.409 vezes. Para Nilson Xavier, “é ótimo que uma novela esteja enxergando e tirando proveito das mídias sociais que até então figuravam como ‘concorrentes’ da TV”. A novela também utilizou como estratégia transmídia o
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lançamento de materiais de limpeza (rodo, vassouras e pazinhas de lixo); sandálias e sapatilhas das personagens Cida (Isabelle Drummond), Penha (Taís Araújo), Rosário (Leandra Leal) e Ariela (Simone Gutierrez); esmaltes e batons. Além disso, lançou o livro Cida, a Empreguete Um Diário Íntimo, de Leusa Araújo, que conta detalhes da infância e adolescência da personagem que não foram citados na trama. A estudante Jaynne Lima, 19 anos, é fã das Empreguetes de Cheia de Charme, mas o amor por novelas veio desde o lançamento, no Brasil, em 1997, de Chiquititas. Desde então, tem o costume de acompanhar todas as novelas lançadas, principalmente, pela Rede Globo. A maior influência veio da família noveleira, que diariamente se reúne na cama da mãe para ver as novelas das 21h. Como Jaynne faz Letras-Espanhol na Universidade de Brasília (UnB) durante a noite ela não consegue participar do momento em família durante a semana, pois quando chega em casa só consegue acompanhar as novelas das 23h, que voltaram a ser incluídas na programação da Globo, em 2011, com o remake O Astro.
Para não ficar desatualizada, antigamente, Jaynne e sua irmã procuravam os vídeos pelo Youtube, mas hoje já vão direto para os sites oficiais. “Já sei o que aconteceu porque já li na internet. Como não vi, tenho que ver! E quando foi disponibilizado no site foi maravilhoso. Você pode ver, em menos de uma hora que acabou a novela, o capítulo inteiro!”, conta. Quando se trata de redes sociais, Jaynne é mais reservada. Antes ela comentava de tudo um pouco, mas agora as publicações são apenas em ocasiões especiais. Um dos casos foi quando Cida e Elano, interpretados Isabelle Drummond e Humberto Carrão, se beijam. Como boa noveleira, às vezes até prefere diminuir o tempo de sono, só para poder rever tudo o que perdeu. E, nos finais de semana, Jaynne procura sair apenas no momento em que a novela das 21h termina. Quando está em casas de amigos, acaba até arrumando confusão porque quer assistir e o motivo é simples. “Estou na frente de uma TV e não vou assistir à novela? Por quê? Por quê? Eu tenho que ver!”.
Colaborou Augusto Soares
Foto:Divulgação.
No livro Hollywood Brasileira você comenta que a novela é uma obra aberta que vai se modificando ao longo da exibição dos capítulos, pois a audiência acaba se assumindo como coautora. Como as redes sociais e a tecnologia ajudam nessa coautoria? O público assume uma função de “quase coautoria” porque pode ajudar a interferir no encaminhamento de uma trama, mas nem sempre isso acontece. É importante sublinhar, no entanto, que tanto a “quase autoria” do público quanto o uso que se faz das redes sociais dependem exclusivamente da disponibilidade do autor da novela em abrir concessões ou não. Há autores que têm uma postura amplamente favorável ao feedback da audiência. Já outros preferem não abrir mão de uma trama previamente engendrada.
Em 2009, as audiências de Viver a Vida e Passione tiveram média de 35 pontos, enquanto Avenida Brasil atingiu 51 pontos. O que está estimulando a volta das altas audiências? As redes sociais são responsáveis? Não, as redes sociais não são responsáveis por um aumento da audiência televisiva. É importante perceber que as redes sociais são uma ferramenta para a divulgação e propagação da televisão, e não a razão em si para seu sucesso. Ou seja, nas redes sociais vemos o reflexo ou a reação do que se produz na TV, e não a criação de um estímulo para que o internauta seja instigado a acompanhar determinado programa ou novela
Cheias de Charme inovou ao realizar as campanhas “Empreguetes Livres” e “Empreguetes para Sempre”. O que você acha dessas mudanças? A propagação das novelas pela internet tem sido criativa e enriquecedora. Permite ao telespectador estender as tramas para além da exibição do capítulo. No caso de Cheias de Charme, além de acompanhar o sucesso das Empreguetes, o público também assume uma postura semelhante à dos personagens quando ficção e realidade se cruzam na campanha Empreguetes para Sempre, por exemplo. A atitude do público é importante para que se crie um contexto favorável à trama. (G.S.)
mauro Alencar pingue pongue
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campo de oportunidades Brasil abrirá as portas para receber os principais eventos da indústria esportiva. Entre os desafios, nascem as oportunidades tecnológicas para motivar o crescimento empreendedor do país Por Augusto Soares e Luma Soares
Quando foi anunciado em 2007 pela Fifa como sede da Copa do Mundo de 2014, e o Rio de Janeiro o responsável por sediar os Jogos Olímpicos de 2016, o Brasil assumiu a responsabilidade de realizar os dois maiores eventos esportivos do planeta num intervalo de dois anos. A incerteza de que o país conseguirá atender a todas as demandas ainda é presente, mas convive com a esperança dos brasileiros de que o Brasil receberá as competições esportivas com a mesma excelência da última Copa, na África do Sul, em 2010, e a Olimpíada de Londres, em 2012. Para se ter uma ideia, estima-se que mais de 3 bilhões de espectadores de todo o mundo estejam
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sintonizados nas partidas da 20ª edição da Copa do Mundo. Mais de 3 milhões de turistas brasileiros e 800 mil turistas estrangeiros viajarão pelas 12 cidades-sede dos jogos e acompanharão diretamente cada disputa. Segundo o Ministério do Esporte, com esse número de torcedores e turistas, a tendência é que a economia no Brasil sofra um aumento significativo de mais de R$ 183 bilhões. Em torno de 45% desse valor serão gerados, exclusivamente, pelos estádios e em eventos que acontecerão após o Mundial. Os holofotes do mundo estarão apontados para um lugar que, aos olhos de outros países, parece carregar a imagem do samba, futebol e carnaval. Uma visão que não é falsa, mas que esconde
muitas virtudes que o Brasil possui, mesmo que sejam pouco aparentes. Levando em conta a atenção que o país receberá, a questão é: como esses eventos esportivos beneficiarão nossas cidades? Uma das principais alternativas são as inovações tecnológicas como possíveis oportunidades de empreendedorismo, que já impulsionam setores econômicos do país. “Nós percebemos que o fluxo de visitantes de outros países é crescente e tende a se acentuar nos próximos anos, especialmente com a vinda de grandes eventos comoa Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016. Esse trabalho deverá movimentar um grande ciclo, que tem por base a economia do nosso turismo e dos nossos negócios”, destaca Renan Rigo, sócio
semana de 2013, que será realizada entre os dias 21 e 27 de outubro. Antes mesmo de Brasília dar início ao evento, o país já terá aberto as portas para a Copa das Confederações nas seis cidadessede: Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza e Recife. Os jogos, que servem de ensaio e preparação para o grande Mundial, também serão destaques da semana da tecnologia no DF. Ao se falar dos desafios do empreendedorismo tecnológico, Renan destaca a importância de investimentos nessa área no país. “Administração e empreendedorismo deveriam ser matérias que a gente tem na escola, no Ensino Fundamental, para começarmos a moldar uma mente mais proativa.” Oportunidades de inovação De Goiânia, seguimos para Brasília em busca de empresas que investem em inovações de última geração. Encontramos o Centro de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade de Brasília (CDT/ UnB), que faz o trabalho de incubar empresas de tecnologia para ingressar no mercado. Uma delas é a Ambiente Eficiente, empresa especializada em consultoria e arquitetura sustentável. Tecnologia aliada à natureza. Essa é a maneira de divulgar a Copa do Mundo como uma “Copa Verde” – iniciativa para realização de grandes eventos sustentáveis. A empresa está aproveitando a onda de construção e reforma dos estádios para buscar parcerias com as redes hoteleiras da cidade, lembrando que a capital federal possui cerca de 52 hotéis. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
Renan Rigo quer estar à frente na Copa: apresenta o país aos estrangeiros na internet
Foto: Mantovani Fernandes
fundador da empresa Say hello to Brazil, que decidiu apresentar uma maneira inusitada de receber os turistas. Criada em Goiânia em 2012, a Say hello to Brazil é um portal de conteúdo que busca alcançar o cotidiano do brasileiro e mostrá-lo aos estrangeiros que pretendem conhecer o país. Em um cenário global, no qual as inovações tecnológicas já estão sendo vistas por alguns pesquisadores e teóricos como commodities (mercadoria), muitos empreendedores enxergam nesses grandes eventos uma oportunidade de lançar novas tecnologias no mercado. Ao mesmo tempo em que as iniciativas despontam no mercado tecnológico, as dificuldades vividas por empreendedores também aumentam de proporção. Renan Rigo revela as dificuldades de se iniciar algum trabalho voltado para a área social e de compartilhamento de informações e acredita que o país ainda é muito carente de parcerias entre empresas e universidades. “A realidade para o setor tecnológico pode muitas vezes estar em soluções simples, mas que precisam do envolvimento de todas as partes da sociedade.” Por outro lado, a importância dos grandes eventos esportivos foi reconhecida em outubro de 2012, quando o ministro da Ciência e Tecnologia, Marco Antônio Raupp, anunciou o tema da Semana Nacional da Ciência e Tecnologia de 2013: Ciência, Saúde e Esporte. “Vamos encher isso aqui de tecnologia”, ressaltou Ideu de Castro, diretor do Departamento de Popularização e Difusão da Ciência do MCT e responsável pela organização da
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Foto:Samuel Paz
A empresa da arquiteta Darja Kos Braga busca investir em soluções verdes para a Copa de 2014
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e Estatística (IBGE) de 2012, Brasília possui a maior proporção de hotéis em relação a outras capitais do país. Segundo a arquiteta da empresa Darja Kos Braga, o principal desafio é a realização de parcerias no mercado imobiliário de Brasília, que é extremamente fechado. “Aqui só se entra por meio de parcerias. Nossa indústria de construção é bastante diferente, mas estamos tentando melhorar essa eficiência aqui no DF, nos aproximando, cada vez mais, do padrão lá fora”, revela a consultora, que presta serviços de soluções sustentáveis para o ramo da construção civil. Em relação ao setor da construção civil, aliás, Brasília ainda não chegou ao nível de São Paulo e Rio de Janeiro, mas por outro lado, o Estádio Nacional Mané Garrincha é o favorito para se tornar o primeiro estádio a buscar certificação máxima de construção sustentável do mundo. Situação muito parecida à da Ambiente Eficiente é a da empresa Ecofossa, também incubada pelo CDT/UnB. O negócio procura promover a tecnologia de tratamento de esgotos por meio de parcerias. “Pretendemos promovêla com pontos turísticos, como a Torre de TV Digital e o Zoológico de Brasília, que receberão atenção com os grandes eventos que estão por vir”, conta Ricardo Porto, representante da empresa. Pesquisa anual realizada pelo Instituto de Filosofia Global Entrepreneurship Monitor 2011 (GEM), em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), revela que o
Brasil é o terceiro país com o maior número de empresas, ficando atrás, apenas, da China e Estados Unidos. Cerca de 27 milhões de brasileiros são empreendedores no país. Nos últimos cinco anos, mais de 600 mil negócios foram registrados no Brasil. O fundador da empresa Say hello to Brazil diz que com a realização da Copa e da Olimpíada, o país está gerando oportunidades para pequenas e grandes empresas criarem projetos inovadores, capazes de motivar e estimular o crescimento de tecnologias de última geração, além das universidades federais, que estão motivando estudantes na conquista de projetos de novas tecnologias. Ainda assim, há muito que superar. Ao mesmo tempo em que o Brasil é o 13º maior produtor de ciência do mundo, o país ocupa a 46ª posição no ranking de inovação científica, o que demonstra a real dificuldade do país em elevar a confiança de iniciação das pesquisas e projetos. “Percebo que o Brasil está despertando para esse movimento tecnológico, mas ainda tem muito a fazer. O governo federal tem começado a dar incentivos nessa área, mas ainda é pouco para um povo tão criativo quanto o brasileiro”, declara Renan. Segundo dados da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), nos últimos 11 anos, o número de contratações e liberações de recursos para processos de pesquisa e desenvolvimento de mercados na base tecnológica cresceu 400%. Em janeiro de 2010, o Governo Federal definiu as cinco principais áreas para receberem investimentos de infraestrutura para a Copa de
2014: aeroportos e portos, que estão sob responsabilidade do governo federal; mobilidade urbana e estádios – a cargo de estados e municípios – e hotelaria – com a iniciativa privada. Para apoiar os projetos empreendedores do país, o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) estabeleceu os programas ProCopa Arenas, voltado para o financiamento dos estádios, e que já aprovou investimentos de R$ 3,8 bilhões, e o ProCopa Turismo, voltado à modernização do parque hoteleiro brasileiro, aprovando R$ 754,5 milhões em iniciativas privadas. Projeto 14Bis Brasil Além da questão de infraestrutura, há outras iniciativas para explorar o lado inovador do país. O Projeto 14Bis Brasil, parceria do Ministério do Esporte com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Fundação de Estudos e Pesquisas Socioeconômicos (FEPESE), busca promover ideias inovadoras para os jogos de 2014 e 2016, com o objetivo de engatilhar empresas brasileiras para oportunidades nacionais e internacionais, explorando o mercado tecnológico empreendedor. O projeto tem o intuito de tornar as oportunidades tecnológicas a “seleção brasileira da inovação”, em referência à excelência das ideias. Em 2012, durante a Olimpíada de Londres, o 14Bis organizou na Embaixada do Brasil, em Londres, a exposição Brazil at Heart, dando oportunidade de os visitantes ingleses e turistas de outros cantos do mundo de experimentar os produtos e serviços das empresas brasileiras, principalmente o lado
empreendedor do país. A coordenadora de eventos do 14Bis Brasil, Luciana Hervoso, conta que o projeto surgiu com a intenção de divulgar para o mundo que o Brasil, além de ser samba, futebol e carnaval, também é inovação e desenvolvimento tecnológico. “Temos investimentos nessas áreas pelos institutos de inovação de universidades. Temos várias incubadoras funcionando pelo país acelerando os negócios de empresas. E a gente quer mostrar isso para outros países”, diz. O Ministério do Esporte destinou ao programa R$ 3,6 milhões em 2012. Apesar de a UFSC e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) serem as duas únicas universidades brasileiras parceiras do projeto, com a aproximação da Copa e da Olimpíada, muitas instituições do país já estão recebendo atrações relacionadas a tecnologia e esporte por meio do projeto.
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cidade digital Uma das esperanças para o mercado de tecnologias do DF é a construção da Cidade Digital. A estrutura do parque pretende acomodar diversos setores do ramo de desenvolvimento tecnológico para estimular a economia. Embora o enfoque do parque seja o desenvolvimento de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), ele também pretende formar empresas de inteligência, que cuidam da parte de design dos produtos. A primeira instalação do parque concluída é o Datacenter do Banco Brasil, o maior da América Latina, focado em automação bancária, área em que o Brasil é referencia no mundo. O edital de construção das empresas do parque ainda será lançado e, espera-se, atrairá a atenção de investidores internacionais. Fernando Silveira, diretor da Católicatec da Universidade Católica de Brasília (UCB), acredita que a Cidade Digital é mal aproveitada. Para ele, não há preocupação em promover o local aproveitando os grandes eventos esportivos que acontecerão no país. “Essas pessoas investindo lá são muito focadas nesse mercado de risco, que é o de TI, e que já estão de olho em movimentos e mercados globais, como a Europa e os países do Bric. Não é a Copa do Mundo que vai trazer esse investidor. O holofote já estava focado no Brasil há bastante tempo .”
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o Brasil pelos olhos de seus protagonistas Por Michelle Brito
O burburinho na sala de aula era um só: “Viu só? Já saiu o edital para a cobertura do Projeto Rondon. Vou fazer a inscrição, é uma excelente oportunidade”. Sorri baixinho, enquanto vestia a camisa amarela lembrandome de tudo que já havia passado para estar ali, no 22º Batalhão, em Palmas (TO), me preparando para mais uma viagem. Caiu a ficha. Conferi os itens básicos: câmera, gravador, bloco de anotações, caneta e muita disposição. Assim começa mais um dia. Logo bem cedo encontro a minha equipe. O ambiente tornou-se familiar, e, entre uma risada e um “bom dia”, trocamos experiências do dia anterior na mesa do café da manhã. Apuramos boas histórias, conhecemos pessoas e realidades distintas. “Vamos produzir belíssimas matérias!”, dizemos animados. Sigamos. Naquela manhã,
nosso destino era um município bem distante do local onde estávamos alojados. Acomodeime no meu assento e logo me perdi olhando para a paisagem do estado do Tocantins. Enxerguei um país que não está na mídia, muito embora escute diariamente as lamúrias brasileiras; confesso que entrevistar olhando nos olhos dos protagonistas desta triste realidade me deixou inquieta, incomodada. “A profissão que escolhi tem dessas coisas”, pensei. Entretanto, como transferir tal sentimento para uma foto, um vídeo ou uma matéria? Tarefa difícil. Tamanha responsabilidade para a primeira equipe de cobertura jornalística das atividades do Projeto Rondon. Já estávamos cientes desde o disputado processo seletivo. Chegamos ao município. Os olhos curiosos dos rondonistas nos fitavam e logo escutamos alguém dizer: “A equipe de comunicação
chegou!”. Quanta satisfação. Como de costume, descemos tripé, câmeras, gravador e todo o aparato necessário, incluindo o sorriso no rosto. Logo procuramos saber com os professores e alunos quais atividades estavam acontecendo no local. A recepção calorosa repetiu-se copiosamente nos quinze municípios que visitamos. Esse ato se tornou o nosso combustível diário. Faz entrevista daqui, conversa dali. Pergunta, conhece os projetos, descobre novas culturas e sotaques. Enfim, boas histórias apuradas. E agora? Como transformar o material apurado em uma matéria digna da mesma em pouquíssimo tempo? A expressão “a pauta vai cair” abala quem já está aflito. Lembrei-me das valiosas aulas de técnicas de produção jornalística. Da espinha de peixe, do lide, do sutiã e da pirâmide invertida. Aliviada, servi-me de tudo um
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pouco. O sufoco e a adrenalina só amenizam quando o texto é publicado no site oficial do Projeto Rondon. A equipe vibrava e ganhava ânimo extra para seguir madrugada adentro, produzindo. “Posso te filmar?”, perguntei para uma rondonista. Ela, tímida, respondeu que não gostaria de aparecer. Respeitei, mas sutilmente convenci a moça a me conceder a entrevista. Após a edição e o vídeo postado, ela elogiou o nosso trabalho. Sentada na cama, antes de ir dormir, lembrei-me deste episódio. Percebi o quão afinado estava o meu cuidado e respeito com o próximo. Reparei que essa mudança também havia acontecido nos meus companheiros de viagem. A dimensão do cuidado havia afetado a todos. Junto com o respeito, o cuidado é virtude necessária em qualquer profissão, e o Rondon molda o futuro profissional. O incômodo aumentou. Olhando para as crianças pela porta da sala de aula de uma escolinha feita de madeiras e tijolos de barro, eis que um sentimento pesado me deixou aflita. Eu, universitária, tenho a responsabilidade de fazer a diferença por aqueles que não têm a oportunidade de estudar. Carrego comigo – e sei que compartilho com os meus companheiros – o sentimento de transformação. De pé descalço, Daniel, o menino franzino, olhava curioso para o nosso equipamento. O garoto tornou-se o mascote dos rondonistas daquele município. Integrante de uma família desestruturada, o garoto, que já colecionava passagens pela
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polícia, acompanhava diariamente os alunos nas oficinas. Recebia abraços e a atenção que nunca haviam lhe proporcionado. Declarou que queria ser como um de nós, e viajar pelo país para ajudar crianças assim como ele. A bagagem de aprendizado e cidadania que trouxemos pesa muito. Sobre as diversas experiências vividas e partilhadas, um estudante expressou-se bem adequadamente, compartilhando comigo a sua experiência no relatório final da Operação Capim Dourado. O seguinte trecho traduz a volta de todos nós para casa: “Mais brasileiros do que nunca, tornaremos às nossas casas com uma pitadinha gostosa daquela sensação de dever cumprido, e de retribuição. Ainda que bem singela a tudo que o Brasil nos proporcionou por meio do seu povo, nada mais justo que devolver à sociedade um pouco do conhecimento que por ela nos foi custeado”. Cada elogio, dica ou puxãode-orelha serviu para enriquecer o nosso trabalho. Atentos, direcionamos nossos olhares e ouvidos para as dicas do professor que nos acompanhou na Operação Capim Dourado. Somos focas, mas fomos tratados como profissionais. Viver jornalismo não é fácil, o fardo é pesado. Aprendemos a ter jogo de cintura, a utilizar bem o tempo e as ferramentas disponíveis. Fazer a cobertura das ações do Projeto Rondon – um projeto de extensão gigantesco que nos proporciona tamanha experiência cidadã – foi uma honra.
Michelle Brito é estudante de jornalismo. Em julho de 2012, integrou uma das duas primeiras equipes de cobertura jornalística do Projeto Rondon, em parceria pioneira entre a Universidade Católica de Brasília e o Ministério da Defesa. Ela foi orientada pelo professor Lunde Braghini na operação Capim Dourado, no Tocantins. A outra operação, Açaí, foi orientada pelo professor Thiago Sabino e cobriu o Pará.
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