Jenipapo
número 4
Lugar Invisível Região Administrativa do Distrito Federal esconde vila de cegos
Jenipapo
Somos a Jenipapo
Alinne Castelo Branco reportagem e fotografia
Álef Calado
reportagem e diagramação
Lorena Braga reportagem e edição
Rafael Procópio reportagem
Larissa Nogueira reportagem e diagramação
Karine Santos reportagem e fotografia
Manoel Ventura reportagem e edição
Brenda Knutsen reportagem, edição e fotografia
Amanda Lima reportagem e fotografia
Hellen Resende
Luana reportagem e
reportagem e crônica
Jenipapo | Revista-Laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília | Ano 3, no. 1, dezembro
de 2016 | Reitor: Prof. Dr. Gilberto Gonçalves Garcia | Pró-reitor acadêmico: Prof. Dr. Daniel Rey de Carvalho | Pró-reitor administrativo: Prof. Fernando de Oliveira Sousa | Coordenador Geral Acadêmico: Prof. Dr. Dilnei Giselli Lorenzi | Coordenador Geral de Registros e Documentos: Prof. Dr. Paulo Henrique Alves Guimarães | Diretora da Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação: Prof.ª Dr ª Christine Maria Soares de Carvalho | Coordenador dos cursos de Jornalismo e Comunicação Social-
Jéssica Luz reportagem
Alan Rios reportagem
Pedro Grigori reportagem e edição
Pedro Corrêa
ilustração e diagramação
Marianne Paim reportagem e fotografia
Karyne Nogueira reportagem, crônica e fotografia
Giovana Madureira diagramação
Jhéssika Almeida
Pontes fotografia
Jordania Correia reportagem e fotografia
Fernanda Sá
Ilustração: Gustavo Jácome
reportagem e fotografia
reportagem e edição
Publicidade e Propaganda: Prof.Dr. Joadir Antônio Foresti | Editora-chefe: Prof.ª Dr ª Rafiza Varão | Editores de arte: Álef Calado, Fernanda Sá, Larissa Nogueira, Giovana Madureira, Pedro Corrêa | Capa: Pedro Corrêa | Monitor: Lucas Lélis | Agradecimentos: Cleonice Damasceno, Degvânia Fernandes, Gustavo Jácome, Kamila Siqueira, Lorrane de Assis, Marcos Henrique Neves, Matheus de Souza, Sued Vieira, Thiago Soares, Webert da Cruz | Tiragem: 800 exemplares | Impressão: Gráfica Coronário | UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA, EPCT QS 07 LOTE 1 Águas Claras - DF, CEP: 71966-700, Tel: 3356-9237.
Comentários 51
Migrantes 39
Educação 27
Corpo 15
Sumário
Biblioteca 56
Cura 45
Mães 32
Nome 20
Corda 8
Ă gua 110
Malucos 98
Bola 86
Circo 79
Vila 64
Fogo 104
Profissionais 92
Real 84
Bicuda 72
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gritte - 1964
Editorial Tem gente que vê, mas não enxerga. Tem gente que enxerga, mas não vê. Assim se caminha pelo mundo. Nem sempre somos um, nem sempre somos outro. Olhamos para a vida enxergando pedaços com mais ou menos profundidade, incapazes de ver o todo. Felizmente, as várias formas de conhecimento nos ajudaram até aqui para que observássemos a existência e as vivências mais a fundo. Entre esses modos de pensar a realidade, o jornalismo ocupa lugar de honra na cadeia dos saberes que nos formam, pelo menos desde a decolagem da sociedade industrial – apesar de ser, também, acusado de superficialidade. A arte talvez seja sua mais intensa antonímia, pois carrega, primeiro, a centelha do universal para, só depois, particularizar. A seara jornalística é calcada no particular, só por acaso se universaliza. Essa ideia, entretanto, me parece uma verdade absoluta fadada ao fracasso quando falamos de reportagem. Há na reportagem os traços do humano que somos todos nós. É acreditando nisso, nessa possibilidade de alcançar algo que permeia nosso cotidiano de forma substancial, ultrapassando o factual, que a 4ª edição da Jenipapo nasce. E é confiando no papel do jornalismo como um elemento que permite conhecer o detalhe, num universo fragmentado, que ousamos propor um olhar diferenciado sobre aquilo que nos cerca. Neste número, queremos ser uma janela para o que esquecemos ou ignoramos e uma lupa sobre aquilo que julgamos familiar. As mães que foram marcadas pelo Zika e que começam a deixar de ocupar os noticiários. A desigualdade nos números da educação. As dores da juventude. As crianças que vencem o câncer. A biblioteca cuja história é tão rica quanto a literatura. Os circos que resistem. Os comentários agressivos travestidos de liberdade de opinião. Os indivíduos que modificam o corpo. Aqueles que vivem do lixo. Uma tal de Tereza Bicuda. A água que falta. Os nomes que mudam. As mulheres que migram. Os bombeiros que caminham sobre as cinzas. Um povo chamado malucos de BR. As meninas que querem o futebol. Os cegos invisíveis que caminham sobre um mar de lama. Quem tem olhos de ver, que veja. Boa leitura! Rafiza Varão 9
NA CORDA Período de transição, a juventude pode ser também época de angústia e desafios quando Por Alan Rios
Escuro
A cada 40 segundos, uma pessoa se suicida no mundo. 10
É uma dor inexplicável. A vontade é se sentir capaz de levantar, ter força, sair de onde se está, esquecer a solidão, fechar os olhos ou correr de todos os problemas. O melhor seria que alguém entendesse, para tirar todo o peso que esmaga, para que tudo acabasse. Não são necessariamente essas as sensações que descrevem todos os transtornos psicológicos, já que eles agem de forma diferente em cada um, mas são alarmantes os dados que demonstram a quantidade de indivíduos com problemas de saúde mental, que preocupam ainda mais quando acontecem na juventude – época idealizada e romantizada pela cultura. É comum se ouvir dos mais velhos que os problemas psicológicos com os quais os jovens de hoje sofrem são futilidades que antigamente ninguém tinha. Mas é preciso ter cuidado ao qualificar as dificuldades alheias e comparar as épocas, até mesmo porque a própria
noção desse ser jovem tem passado por alterações. A adolescência, por exemplo, é uma categoria relativamente nova, representada pela primeira vez de forma científica na obra Adolescence (1904), do psicólogo americano Stanley Hall. O livro de Hall apresenta uma abordagem psicogenética sobre essa faixa etária, e mostra os processos biológicos e psíquicos dos seres humanos para construir definições de uma personalidade intermediária, diferente da infantil e da adulta. Entre 15 e 29 anos, período ao qual chamamos de juventude, de acordo com o Conselho Nacional de Juventude (CNJ), há vários paradoxos que funcionam como uma espécie de corda bamba: o certo seria aproveitar os anos em que se tem mais entusiasmo para buscar a felicidade, ou seria usar da juventude para garantir um bom futuro profissional com estudos e trabalhos? A resposta poderia funcionar como uma
BAMBA marcada por transtornos psicológicos
rede de proteção em caso de queda, mas a falta dela pode se juntar a outros muitos questionamentos e tornar chuvosos os dias de travessia. A insegurança causada por pressões impostas, como a necessidade de se responder a essa pergunta, gera efeitos. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2014, tirar a própria vida já é a segunda principal causa da morte em todo mundo para pessoas de 15 a 29 anos de idade, matando mais jovens do que o HIV e atrás somente das estatísticas de acidentes de trânsito. Compreender a causa desses números não é simples, pois se deve levar em consideração contextos como renda, opção sexual e condutas familiares, por exemplo. As universidades, que abrigam jovens em seu ensino superior, não ficaram indiferentes ao quadro, o que motivou algumas delas a oferecerem tratamento psicológico gra-
tuito para os alunos. Jullyanne Amorin, representante do Serviço de Orientação e Acompanhamento Psicopedagógico da Universidade Católica de Brasília, relata alguns pontos necessários de atenção nesse ambiente. “A universidade, que seria um espaço de quebra de paradigmas, de diálogo com o diferente, acaba sendo, muitas das vezes, um lugar onde se repete preconceitos. As pessoas se veem obrigadas a se adequar a um padrão social, a uma heteronormatividade, a uma questão de ser um aluno bem sucedido, de ser o melhor da turma, com a questão do perfeccionismo, da idealização.” Três diagnósticos são mais comuns nesse cenário: depressão, ansiedade e transtorno borderline, que causa instabilidade emocional, insegurança, impulsividade e comprometimento das relações sociais. Os números impressionam. Só no nosso país são registrados mais de 2 milhões de casos de bor11
Companhia A partir do slogan “falar é a melhor solução”, associações de combate ao suicídio criaram uma campanha em 2016, com ênfase na web, com o objetivo conscientizar a população brasileira sobre o ato de tirar a própria vida. Intitulado de “Setembro Amarelo”, o movimento repercutiu nas redes sociais com publicações de apoio, convites para conversas e desabafos, matérias informativas e artes que representaram a angústia dos grupos de risco. Essa forma de comunicação mostra sua importância principalmente quando sabemos dos números crescentes de suicídio entre jovens, que tiveram um aumento de 15,3% de casos em dez anos. 12
O surgimento da internet possibilitou a novas gerações experiências de vida diferentes das vivências de seus pais, professores e chefes, aproximando grupos com interesses comuns – embora, em muitos casos, crie também abismos. Em 1995, surgiu o The Globe, um dos serviços online de compartilhamento de experiências que mais se aproximava dos modelos atuais de redes sociais. Mas a explosão desse tipo de site se deu sete anos depois, com o nascimento do Fotolog, em que se publicavam fotos acompanhadas de ideias ou sentimentos. Criadas essas conexões, o usuário jovem conseguiu uma forma de manifestação que agia como um papel em branco, na qual qualquer um com computador conectado à internet poderia escrever. Com o desenvolvimento das redes, surgiram as comunidades e grupos, que ampliaram a divulgação destas publicações e fizeram os manifestos serem lidos e comentados, gerando vínculos entre aqueles que antes não conseguiam ter voz. Outra rede importante para esse contexto foi o Friendster, o primeiro realmente intitulado como rede social, que concebeu a ideia de “amizade” em uma interface digital. A relação entre tecnologia e juventude, muito criticada por quem cresceu em épocas em que essa ligação era menor, pode ainda gerar frutos positivos inimagináveis décadas atrás. O celular, por exemplo, principal meio de acesso à internet de 82% dos jovens brasileiros, deu
Ilustração: Pedro Corrêa
derline por ano. Mundialmente, a depressão atinge 400 milhões de pessoas. Já a porcentagem dos que sofrem de ansiedade chega a 33% da população mundial. Esses transtornos devem ser diagnosticados por psicólogos ou psiquiatras, pois compreendê-los é importante para desmitificar alguns aspectos sobre a saúde da mente. O autodiagnostico deve ser evitado. O preconceito daqueles que não têm acesso às informações sobre a gravidade dos distúrbios mentais acaba isolando quem precisa ser acolhido, fortalecendo ainda mais o silêncio de pessoas que passam por estes problemas e precisam ser ouvidas. Sob a ótica de acesso à informação e poder de voz a quem costumava se calar, a internet pode ser vista como um apoio.
à população a possibilidade de se comunicar mais facilmente com familiares em caso de necessidade, ofereceu aplicativos que monitoram o humor e auxiliam pessoas com depressão, e tornou mais acessível a busca por informações sobre saúde mental, com milhões de resultados na busca por artigos, matérias e ajuda profissional. Mas as atitudes não moderadas, características dessa fase da vida, podem comprometer esses benefícios, como explica o psicólogo Edberto Lessa. “Os usos excessivos da internet podem trazer até transtornos de dependência tecnológica. Então, a frequência dessa situação faz com que as pessoas acabem se isolando.” Obstáculos A internet acabou se tornando um ambiente muito grande, com poucas regras e muitas contradições. Ao mesmo tempo em que promove o encontro de grupos que se ajudam, a web dá espaço para atos de discriminação, preconceito e agressões virtuais. Mesmo permitindo a criação de redes onde se pode ter milhares de amizades, pode prender o usuário a ponto de esquecer um amigo sentado ao lado. E mesmo se ela fizer mais bem do que mal, não é democrática a ponto de ser disponível para todos, pois 57% da população mundial está offline, de acordo com dados da ONU de 2015. Poder se comunicar por um meio que não exige sua identidade verdadeira pode gerar
em
erec uma sensação de que o que of o n i s de en sicológico indivíduo está fora dos liições Institu ndimento p ate mites da lei e dos padrões 454502 ul - 34 •IESB S tuito) morais. Por isso, casos de de 8 (gra 62-474 ia - 39 eilând C cyberbullying são tão coB S •IE ito) -9102 (gratu - 3107 Brasília muns, atingindo mais da e d e -9328 rsidad ito) - 3356 •Unive (gratu metade de crianças e adoBrasília e d a lic e Cató uito) lescentes entre 8 e 16 anos, rsidad (grat •Unive 6-1626 b - 396 u e iC n por exemplo (66%, segundo •U (pago) a pesquisa Realities of Cyber Parenting). Uma prática de crime virtual chama atenção pelas consequências na vida da vítima: a divulgação de vídeos íntimos, como aconteceu em 2013 com dois casos semelhanusuários da rede, a média de tes, em diferentes estados, em idade é de 22 anos. um período de quatro dias de Entre esses jovens, o grupo diferença. Giana Laura Fabi, de pessoas lésbicas, gays, bisde 16 anos, e Julia Rebeca, 17, sexuais, travestis, transexuais e foram expostas virtualmentransgêneros são uns dos que te e se suicidaram deixando mais sofrem com a repressão mensagens de despedida que na hora de expressar seus senrevelaram dor psicológica. timentos, de acordo com o Por um lado, as agressões psicólogo Felipe de Baére. “Há virtuais acabam calando variapesquisas em localidades espedos grupos que sentem medo cíficas que abordam a menor de ser reprimidos quando se incidência de LGBTs na busca expõem, dentro ou fora do amde apoios em centros de saúde biente cibernético. Por outro, a devido ao receio da hostilizaweb também pode beneficiar ção na recepção. A maioria das pessoas que passam por transequipes de saúde não está capatornos psicológicos. Neste ano, citada para atender as especifio Facebook lançou uma ferracidades dessa população e, em menta de prevenção ao suicímuitas ocasiões, reitera práticas dio com várias formas de ajuda, homofóbicas e, dessa forma, como a opção de receber apoio geram ainda maior sofrimento profissional por canais de coaos LGBTs.” municação online, falar com No Brasil, que carece de eduum amigo ou receber dicas bacação para conscientizar e dimiseadas em recomendações de nuir diferenças, outra questão especialistas. A importância impacta o psicológico juvenil: de iniciativas semelhantes para as desigualdades socioeconôcombater os casos de pouca micas. Dentre os dados globais, saúde mental na juventude fica 75% dos suicídios ocorrem em ainda mais clara quando dados países de média e baixa renda, mostram que entre 1 bilhão de evidenciando uma relação entre
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Atendimen
to CVV
•Chat http://ww w.cvv.org.b r/ •Skype http://ww w.cvv.org.b r/skype.ph p •Email http://ww w.cvv.org.b r/email.ph p •Telefone 141
a saúde mental e a receita financeira que muitas vezes acaba provocando certa abolição da juventude. Em outras palavras, várias crianças que poderiam passar a adolescência em escolas, aprendendo sobre o mundo e sobre si, convivendo com pessoas da mesma idade e com o direcionamento de professores e diretores, se veem obrigadas a adquirir responsabilidades adultas ainda cedo. Destes, são tiradas as oportunidades de possuir o apoio institucional dos colégios, de fazer amigos neste ambiente de socialização e até mesmo de se ter um período de tempo vago para usar com cultura e o lazer, por exemplo, dois campos de baixo investimento governamental e que contribuem para um estado de bem-estar.
Luzes Alcançar uma boa saúde mental na juventude não é simples como uma receita de bolo, 14
que oferece o passo-a-passo e garante sucesso se seguida corretamente. Mas isso pode ser visto por uma perspectiva positiva se pensarmos no grande número de possibilidades para conseguir se manter saudável nesses anos de tensão, pois vários caminhos podem ajudar a sair do escuro e não tropeçar nos obstáculos. Para isso acontecer, antes de mais nada é preciso falar. Falar da melhor forma sobre o tema, que encontra barreiras principalmente quando atinge seu ápice de esgotamento, o suicídio, e é tratado com distância pela mídia e pela família, dificultando, assim, debates informativos e construtivos. Deve-se falar sobre os próprios sentimentos, que reprimidos podem causar doenças mentais e até mesmo físicas, seja com amigos ou com especialistas, encontrados em clínicas de psicologia, psiquiatria e em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece atendimento 24 horas com profis-
“Não há prevençã o sem conscientização” André Lorenzetti
sionais treinados para atender diversas idades e transtornos. Quando ir ao dentista para tratar dos dentes é normal, mas ir ao psicólogo tratar da mente não é, cuidar da saúde psíquica acaba se tornando um tabu a ser enfrentado. Ao contrário do que muitos pensam, falar sobre o assunto não ajuda a aumentar os casos de transtornos e os indivíduos que manifestam esses problemas não querem chamar atenção. Essa primeira concepção foi criada no imaginário popular devido à maneira incorreta de retratar casos de esgotamento, abusando do sensacionalismo para exibir, por exemplo, as técnicas usadas pelas pessoas que decidem tirar a própria vida e não apresentando serviços de auxílio mental. Para André Lorenzetti, responsável pela comunicação do CVV com a imprensa, há uma maneira adequada de noticiar incidentes ocorridos devido a transtornos mentais, baseadas em recomendações da OMS: “Ao invés de dar detalhes da
Acervo pessoal
des específicas “Há pesquisas em localida idência de LGBTs que abordam a menor inc ntros de saúde na busca de apoios em ce ização” devido ao receio da hostil Felipe de Baére
morte, como o modo de ação, deve-se trazer as questões da prevenção do suicídio. Lembrar que pelo menos um brasileiro tira a própria vida a cada 45 minutos, e que, em 90% dos casos, a prevenção é a essência. O silêncio certamente contribui com o tabu, o desconhecimento e, consequentemente, o aumento das mortes, pois não há prevenção sem conscientização.” Larissa Tavira, psicóloga voluntária do CVV, diz que existem vários cursos que ensinam a falar, os de oratória para se expressar em público, aqueles de voz para melhorar timbres e tons, entre outros. Mas não se encontra facilmente aulas que orientam a ouvir melhor, prática tão necessária para o auxílio. Isso acaba gerando reações que mais podem atrapalhar, como ignorar a dificuldade daqueles que sofrem com frases típicas
como “você está mal na faculdade, mas no relacionamento está tudo bem”, o que proporciona desconforto e vários outros efeitos contrários aos desejados por quem quis amparar. Por isso, simplesmente ouvir, sem julgar ou fugir do assunto, é a melhor opção na hora de amparar alguém com problemas de estresse, ansiedade ou depressão, por exemplo. Esse recurso pode ser praticado por qualquer pessoa que conviva com jovens em estado psíquico que necessite de cuidados. Para quem está passando por transtornos, além de procurar por profissionais e falar sobre os próprios sentimentos, algumas atividades podem colaborar com a boa saúde, como exercícios físicos, atividades artísticas, hábitos de escrita sobre os dias e as sensações causadas, boas noites de sono e boa ali-
mentação, convivências sociais com amigos e família, despreocupações com padrões impostos pela sociedade e diversas outras intervenções que podem ser direcionadas por um especialista, de acordo com o que dialogue melhor com seus interesses. Olhando com uma visão ampla, são muitas as luzes. Talvez a forma de encontrá-las seja difícil, mas elas não estão apagadas por completo e para sempre. As dores fazem parte da vida, mas não precisam ser tão fortes. Acordar sem ânimo é comum, mas não precisa ser todo dia. Se sentir incapaz é normal, mas poucas coisas são impossíveis. A juventude ferve, borbulha de sentimentos, dúvidas, complexidades e dificuldades. Enfrentá-los é crescer.
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No Facebook Você sabia que o Facebook, a rede social com maior número de usuários no mundo, disponibiliza uma ferramenta de combate ao suicídio? Funciona assim: Ao perceber que um amigo postou um conteúdo que possa indicar uma tendência ao suicídio ou automutilação, o usuário pode escolher “denunciar a publicação”, clicando naquela setinha no canto direito superior do post. O Facebook perguntará o que está acontecendo e a resposta deve ser: “acredito que não deveria estar no Facebook”. Depois, a questão é “o que há de errado”, quando o usuário poderá escolher uma opção relacionada ao suicídio. Aquele que fez a postagem alarmante receberá, então, uma mensagem em seu Facebook avisando que um de seus amigos está preocupado com ele (sem identificar quem fez a denúncia), oferecendo algumas opções possíveis: enviar uma mensagem a um amigo, conversar com um agente do CVV pelo telefone, chat ou e-mail ou ainda receber dicas do que fazer.
Cerca de 14 pessoas tiraram a própria vida enquanto você lia esta reportagem.
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Fotos: Amanda Lima
Autonomia do Corpo Modificação corporal por razões estéticas se torna prática comum e revela possibilidades na construção da auto imagem Por Amanda Lima 17
Roberth
kalango
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Tatuagem, piercing, escarificação, implante cutâneo, bifurcação da língua, eyeball tattooing, rinoplastia, mamoplastia, lipoaspiração, abdominoplastia, labioplastia e bichectomia são alguns exemplos de modificações corporais, alterações deliberadas e permanentes do corpo feitas apenas por questões estéticas, não por motivos de saúde. Entre os que escolhem fazer esses procedimentos, há quem faça pela busca de um padrão de beleza determinado pela sociedade ou para fugir desse ideal. Body mod é o termo utilizado para se referir à modificação feita por aqueles que anseiam atingir o extremo. Devido ao visual incomum e exorbitante, os adeptos do body mod são recebidos com estranheza e exclusão. Segundo o antropólogo José Zuchiwschi, isso ocorre por causa da exigência de certo comportamento e aparência que a sociedade impõe sobre o indivíduo. Portanto, um ideal é construído coletivamente e é feita uma cobrança a partir disso. A constante imposição de modelos pode incomodar alguns e fazê-los agir de maneira oposta. O movimento reúne pessoas que rejeitam e questionam valores e práticas da comunidade que fazem parte. Parte desse grupo, Wildson Santos afirma que suas modificações são uma declaração de propriedade do próprio corpo. “Quero ser visto além da minha aparência e não quero ser mais um. É meu jeito de declarar minha liberdade para o mundo”, completa. Mas por que mudar a aparência? A identidade é um conjunto de características que distinguem uma pessoa. Há séculos existe uma padronização dessas características, feitas de acordo com a época, a cultura, e a localização. A partir da produção coletiva e individual, a pessoa molda a própria identidade. Porém, alguns ficam inconformados e fazem alterações no que consideram mais fácil para distinção: o corpo. O “aceitável” está no subconsciente de cada um e é por isso que, muitas vezes, a modificação serve de protesto. O ideal de beleza incomoda os adeptos do body mod assim como a aparência deles choca a sociedade. Pérolla Goulart, psicóloga especialista em saúde coletiva, explica que a escolha de modificar o corpo tem a ver com a identificação ou rejeição de determinada imagem. “Além de ser uma escolha estética, agrega-se a estas intervenções um caráter não só de liberdade de expressão e pluralidade, como também para marcar experiências pessoais, símbolos que são importantes, expressões de valores, entre outros. Isso traz ao indivíduo uma externalização do que é importante em sua vida”, analisa Goulart. A aparência possui uma função sociocultural e há uma moral social que exige dos indivíduos o controle dela. Segundo Pérolla, essa exigência pode trazer diversos efeitos negativos no indivíduo, como desenvolvimento de depressão e ansiedade. Wildson possuí várias tatuagens e piercings, eyeball tattoing, língua bifurcada, alargadores, chifres implantados e outras modifica-
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ções. Ele sofre julgamentos e olhares tortos desde o momento em que coloca os pés fora de casa, mas segue despreocupado e não deixa isso afetá-lo. “Eu não me importo de me xingarem ou apontarem o dedo na minha cara, porque eu sou feliz de ser como eu quero ser”, declara. Com mais de 300 tatuagens, Roberth “Kalango Corredor” é conhecido por ser a pessoa mais tatuada do Distrito Federal. Apesar do corpo com pouca pele à mostra, apenas queixo e partes intimas não cobertas, Roberth é servidor público há 25 anos e diz não sofrer qualquer tipo de preconceito no ambiente de trabalho. Ele relata, ainda, que gosta dos olhares que recebe na rua e da atenção que ganha ao frequentar um ambiente no qual não se encaixa. “Eu faço tatuagens e piercings porque acho bonito. Ser notado faz com que eu me sinta especial por mostrar que não tem problema em ser diferente”. Aos 55 anos, Roberth fez sua primeira tatuagem aos 18, assim que entrou na Aeronáutica, mas a primeira modificação extrema foi realizada há pouco mais de um ano. Ele afirma que começou o processo por enxergar o body mod como arte e hoje possui alargador de 48mm na orelha direita, nove piercings, eyeball tattooing e 312 tatuagens. “Eu tenho uma
sensação de prazer de estar fazendo o que gosto. Eu me sinto feliz assim e, mais ainda, eu sou um cara diferente e me amo por ser assim”, reforça. Cirurgias plásticas Outra vertente das modificações são os procedimentos estéticos realizados para correção de “imperfeições”. Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica (ISAPS), o número de cirurgias plásticas cresceu em 72,4%, no Brasil, de 2009 para 2016. Os dados apontam, ainda, que o país é o segundo no ranking mundial de cirurgias plásticas, perdendo apenas para os Estados Unidos. Ao contrário do body mod, a escolha pela plástica é feita a partir do desejo de alcançar um determinado ideal de beleza. A empresária Sandra Hernandes, de 35 anos, já realizou sete procedimentos cirúrgicos, todos por motivos estéticos. Aos 18 anos, colocou silicone por se sentir atrasada em relação às outras mulheres e aos 30, época de sua maior insatisfação com o corpo, fez lipoaspiração. Sandra conta que as cirurgias não foram realizadas por influência ou pressão da sociedade, mas os padrões exigidos a fizeram se sentir diferente e sem beleza alguma. Mas há preconceito também com aqueles que optam por esse caminho. Juliana San-
tana já realizou oito cirurgias ao longo dos seus 27 anos, todas com o objetivo de se sentir melhor com sua aparência. Ela relata que quando conversa sobre os procedimentos já feitos ou quando notam que ela já fez plástica, as pessoas tendem a torcer o nariz. “Costumam fazer perguntas sobre o que me motivou a realizar os procedimentos e logo falam o quão arriscado é e quão nova sou para essas coisas”. Segundo a psicóloga especialista em avaliações para cirurgias bariátricas, Andreza Sorrentino, padrões estéticos podem exercer influência negativa. Porém, a recepção desse padrão varia de pessoa para pessoa e, enquanto para um indivíduo a constante exigência pode ocasionar uma obsessão pela perfeição, para outros trata-se da sua própria visão do belo. “O processo de auto aceitação precisa ser trabalhado, seja descontruindo esses padrões estabelecidos ou os abraçando apenas para si”, explica. De modo geral, os que buscam ou fogem daquilo que consideram imposto por outros, precisam fazê-lo conscientes da decisão, sobretudo para encarar uma sociedade que fará julgamento independente da escolha. Ao declarar liberdade ao próprio corpo, disseminam uma cultura mais empática e menos excludente.
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Foto: Luana Pontes
OUTRAS PALAVRAS Apesar da burocracia brasileira, alteração do nome civil é possível Por Luana Pontes
São muitos os fatores que demarcam a individualidade desde o nascimento até a criação dos vínculos sociais. Um dos mais importantes é o nome, a maneira como uma pessoa será chamada – e que, muitas vezes, parte primeiramente de um conselho familiar realizado pelos pais antes de um bebê nascer. Mas nem todo mundo se sente feliz com o nome com o qual começa a caminhar pela vida. Faz parte dos direitos de personalidade a liberdade e necessidade de alteração do prenome e sobrenome. As razões para esse desejo de mudança são as mais diversas: difícil pronúncia ou escrita, estranheza, homônimos, mudança de gênero, divórcio, religiosidade ou adoção. Quando Benjamin Duanny nasceu, em 1983, recebeu um nome feminino de seus pais, que utilizou durante anos. Com o passar do tempo, já adulto, ele não se identificava com seu nome de batismo, não se reconhecia mais como mulher. “Passei 33 anos da minha vida sendo identificado por um nome que nunca fez jus à minha personalidade”, revela Benjamin. Ao passar por um doloroso processo de auto reconhecimento, o DJ jogou fora sua identidade dada pelos pais e assumiu a mudança de gênero. Com isso, resolveu tro-
car de nome. Ele entrou na burocrática fila para alteração de nome e entregou a documentação exigida junto à Defensoria Pública do Distrito Federal, mas não foi simples. “No CREAS (Centro de Referência Especial de Assistência Social), fui acompanhado por psicólogos durante um ano. Quando decidi entrar com o processo na justiça, eles aprontaram um laudo psicológico confirmando que eu era quem dizer ser, ou seja, um homem”, lembra. Benjamin acredita que não exista força ainda na autodeclaração, quando a pessoa se declara como pertencente a um gênero desvinculado do sexo biológico. O laudo psicológico, feito por um profissional, ainda é necessário para a alteração do nome civil. “Esse é um dos motivos de grande chateação entre nós, comunidade trans: precisar de um laudo psicológico ou psiquiátrico para poder validar quem somos. Se eu, sozinho, dissesse que me considerava homem, não seria suficiente para conseguir meus direitos”. A psicóloga Liliany Silva Souza explica porquê a declaração da própria pessoa não é suficiente para a alteração do gênero. “Temos que levar em consideração que essa mudança existe para fins institucionais, perante todas as documentações oficiais. O Estado é muito vinculado às questões científicas e a transexualidade ainda é tratada como um distúrbio de personalidade, o que é lamentável. Então, precisa-se de um aval da ciência, nesse caso o atestado da medicina e da psicologia, para comprovar a existência do quadro”. 23
Ilustração: Pedro Corrêa
Liliany reforça a importância desse reconhecimento. “Precisa do olhar de um outro, o reconhecimento da sociedade e das pessoas que convivem, para essa nova identidade assumida. Quando não há esse reconhecimento, algo afeta a parte identitária da pessoa, isso afeta a representação de quem ela é”, pondera a psicóloga. Benjamin buscou auxílio na Defensoria Pública do Distrito Federal para que o processo de mudança do nome civil fosse formalizado por meio de um decreto presidencial, sancionado em abril deste ano. “A defensoria me ligou dizendo que em 30 dias sairia a nova certidão de nascimento, na qual constará de fato quem sou”, conta o DJ. 24
Processos feitos para o reconhecimento de uma nova identidade dependem do entendimento dos juízes e costumam ser extensos, como no caso de Benjamin, que demorou cinco meses para ser finalizado. “Com sorte, nosso processo cai na mão de um juiz bem informado sobre a nossa situação e direito, que queira ajudar e que não seja transfóbico”, informa. No Brasil, as possibilidades de troca e mudança de nome estão indicadas na Lei nº 6.015/73, a Lei de Registros Públicos. O processo exige muita cautela ao permitir as alterações do nome civil já que, do ponto de vista jurídico, essa burocracia serve basicamente para evitar fraudes, como impedir o
uso da medida por aqueles que tivessem a finalidade de sair ilesos de alguma responsabilidade civil ou penal, por exemplo. A advogada Bruna Meira explica como funciona a modificação na prática: “Toda alteração do nome ocorrida após o registro de nascimento, somente será efetuada por sentença jurídica”. O procedimento para a retificação do nome se dá por um processo judicial simples, no qual, após requerimento da parte interessada, ouvindo o Ministério Público e os interessados, o juiz determinará a decisão. A advogada ressalta que, para o ingresso da ação, é necessária a apresentação do laudo médico, deve ser comprovado o uso do nome social
Foto: Renato Raphael
Benjamin e comprovantes de quitação de todas as espécies. “A mudança de nome não tem legislação específica e é um preenchimento de lacuna da Lei de Registros Públicos. Fica tudo a cargo do entendimento jurisprudencial”, acrescenta Bruna Meira. No Centro de Ensino Médio do Núcleo Bandeirante, CEMNB, a orientadora educacional Miriam Arruda conta que desde que o uso do nome social foi autorizado por lei, a escola já recebeu três alunas que precisaram do recurso. “Hoje temos o caso de uma aluna do 3º ano do Ensino Médio, que tem 19 anos, e uma história bastante conflituosa”, lembra a orientadora. A aluna, que agora prefere ser identificada como Katy, é de ascendência japonesa e veio para Brasil ainda peque-
na. Sua família biológica não tinha condições de criar a menina, que na época ainda atendia pelo nome de batismo Kaio. Aos dois anos de idade, Kaio foi adotado por uma família brasileira, e desde pequeno já tinha tendências femininas, o que nunca foi problema para aqueles que o adotaram no país. Katy entrou na escola no primeiro ano do Ensino Médio e sempre foi chamada pelo nome masculino, mas de acordo com a orientadora, a estudante teve alguns episódios de depressão e precisou de acompanhamento psicológico. A escola percebeu que o aprendizado estava sendo prejudicado e decidiu aprová-la por conselho de classe. Há um ano e dez meses, o Centro de Ensino recebeu o pedido de mudança
para o nome social de Katy na lista de chamada e na carteirinha estudantil. Miriam afirma que adaptação foi um pouco problemática no início, quando outras estudantes reclamaram sobre o uso do banheiro feminino. “Nós explicamos que ela se sentia mulher e as meninas entenderam, nunca mais tivemos problema. Ela usa maquiagem, cabelo comprido, unhas postiças. Acho que essa geração de agora tem mais facilidade na aceitação da diversidade”. O Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Universidade de São Paulo (USP), realizou uma pesquisa sobre as dificuldades enfrentadas para mudanças de nomes, revela que entre os transexuais os empecilhos jurídicos são mais severos e há um alto índice de 25
Foto: Acervo pessoal
Luísa recusa nesses pedidos de mudança de nome, contabilizados em 30% dos casos. Nos outros casos, as recusas são de apenas 15%. Ainda segundo a pesquisa, a maioria dos transexuais que conseguem a alteração já têm cirurgia de mudança de sexo agendada. A análise foi realizada em 363 decisões de segundo grau da justiça em tribunais estaduais de todo o país. Do total, 89 foram pedidos de transexuais. O estudo traz, ainda, a constatação de que são cobrados mais documentos de transgêneros do que o habitual. São comprovantes policiais, como nada consta criminal ou comprovantes de créditos, para justificar a possibilidade da realização de cirurgias. A exigência demonstra que há uma investigação mais rigorosa 26
quando se trata de transexuais do que cisgêneros (pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento). O Grupo aponta que existe um preconceito até mesmo nos processos burocráticos. Atualmente, tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei João Nery (5002/2013), dos deputados Jean Willys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF), que determina que o reconhecimento da identidade de gênero é um direito do cidadão. O projeto recebeu o nome do primeiro transhomem operado no Brasil. A jornalista Luísa Amaral passou por algumas dificuldades ao realizar a troca de nomes. Antes atendia por Luiz e não tinha expectativa em reali-
zar a cirurgia para mudança de sexo porque a prioridade era o nome. Procurou um advogado com experiência em alteração do registro civil e resolveu adotar seu caso. Para fortalecer o processo, o profissional sugeriu que fosse criado um perfil no Facebook com o novo nome, para servir de prova de que Luísa já tinha uma vida social com o gênero feminino. Depois, Luísa passou por trâmites comuns para transexuais, como laudos psicológicos e paciência para esperar o tempo a finalização do processo. “Fiz primeiramente a mudança de prenome, acho que pela Vara de Registros, e depois fiz a alteração de gênero, mas, enquanto isso, fiquei esperando a decisão do juiz que, graças a Deus, não marcou audiência”. Para ela, ter uma audiência
com um juiz significava um momento de muito constrangimento. O processo de Luísa demorou pouco mais de um ano. “Acho que o nome civilmente reconhecido tão importante quanto a cirurgia, porque sua genitália você pode esconder pela roupa, mas seu nome é como seu outdoor, cartão de visitas. Isso foi parte do meu processo de alforria, foi um alívio, poder ser reconhecida de forma pública, não tem como contestar, coisas que são de suma importância, além de me livrar do temor de ser constrangida, poder abrir conta no banco, ter cartão, entre outras coisas”. Estudante na época, não colou grau com seus colegas de turma por fazer questão de formar com sua nova identidade. Foi realizada uma colação especial para realizar seu desejo. Faz três anos que ela responde por Luísa. Do espírito Existem outras possibilidades para a solicitação de mudança de nome, além das questões relacionadas à mudança de gênero. Alguns casos são mais específicos e demandam uma interpretação maior por parte dos juízes, como naqueles motivados por fatores religiosos. O renascimento de Mayara Bezerra, que é seguidora da doutrina do Santo Daime, se deu quando sua guia espiritual a presenteou com seu nome de devoção: Mirnah Maya.
A estudante de Publicidade e Propaganda, da Universidade Católica de Brasília (UCB), afirma que não atende quando chamada pelo nome que foi batizada. “É um sentimento de que não pertenço mais a este nome. Mayara está atrelado a uma pessoa que eu não sou mais”, diz a universitária. A mudança de nome faz parte das incumbências da matriarca do santuário daimista que frequenta, onde é aconselhada espiritualmente a conduzir novas identidades espirituais aos seus “filhos”. “O nome espiritual contém e revela o seu desafio e a sua potencialidade ou talento nesta vida, o seu karma e o seu dharma. Pelo significado do seu nome espiritual você pode entender melhor como realizar o seu propósito de alma”, explica Mirnah. Ela considera o nome que recebeu de sua guia como a representação de armadura. O sentimento descrito pela estudante ao ganhar o presente é de ter sido renovada. “Você tem outra oportunidade de ter um contato com seu novo ‘eu’”, frisa. Existem motivos religiosos que levam fiéis a adaptarem ou requererem a alteração do nome. Os casos são novos e a justiça brasileira ainda é rígida com esses pedidos de mudança. Maya ainda não procurou a justiça para pedir a alteração formalmente, mas há um ano vem passando pelo processo de transição social. Na universidade, por exemplo, já pediu para
os professores a identificarem pelo nome religioso. Mudanças dessa natureza ainda não são permitidas nos documentos oficiais da instituição, por isso, Mirnah Maya contou com a compreensão dos docentes para que pudesse ser chamada pelo o qual se reconhece. Há vários relatos de nomes alterados por motivos religiosos. Entre os casos mais comuns estão a inclusão do nome Mohamed antes do prenome por conversão ao Islamismo; a substituição de diferentes prenomes por Daniel, David, Elias, entre outros exemplos, por conversão ao Judaísmo; a exclusão dos nomes que contenham Aparecida, Benedito e Santa por conter elementos vinculados ao catolicismo. O nome espiritual pode advir de diversas religiões como o xamanismo, hinduísmo, daimismo, movimento rastafári e outras crenças. Na Igreja Católica, os dirigentes que assumem a liderança devem usar o nome religioso, como exemplifica o historiador e professor de Antropologia da Religião, Itacir Piasson. “Normalmente, quem escolhe o nome papal é o próprio papa eleito, conforme o perfil missionário que quer implementar em sua missão”. O professor explica que esses nomes são associados aos santos padres que deram a sua vida pela missão na Igreja, e que também há casos em que esses líderes optam também por usar 27
Foto: Acervo pessoal
Mirnah o nome de outro papa que teve sua missão bem sucedida. O nome é uma particularidade capaz de compor e definir a personalidade, seja ela qual for. Trata-se de uma maneira de reconhecimento não só social como jurídica. Os reflexos advindos da nomeação são 28
inúmeros, mesmo após a morte o nome se perpetua e distingue o indivíduo. Mudar a forma como se é chamado, de modo oficial, é reconhecer, por si mesmo, que essa marca não só individualiza, mas diz ao mundo quem a pessoa realmente é.
Fora da realidade
Distrito Federal tem alguns dos melhores números sobre infraestrutura nas escolas do país, mas ainda patina na qualidade do ensino Por Manoel Ventura
O Distrito Federal não consegue transferir os números alcançados na infraestrutura das escolas para o aprendizado dos alunos no ensino público. Ao mesmo tempo em que registra alguns dos melhores índices sobre equipamentos como bibliotecas e laboratórios de informática, os resultados dos estudantes do DF nos principais indicadores federais usados para medir a qualidade da educação estão abaixo da média nacional. A unidade da federação não é capaz de atingir as metas estabelecidas pelo governo federal. Os dados sobre o ensino público também revelam distorções dentro do próprio Distrito Federal. Os melhores resultados estão concentrados em escolas tradicionais, a maior parte delas na região central de Brasília. É o que apontam dados do Censo 2015, do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2015 e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – os últimos resultados disponíveis dessas avaliações. O Censo Escolar é aplicado anualmente em todo o Brasil e reúne informações sobre diversos aspectos das unidades de ensino brasileiras, em especial acerca de matrículas e de infraestrutura. Todos os níveis da educação básica são envolvidos: Ensino Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ele mede da quantidade de escolas que oferecem água via rede pública a unidades de ensino com televisão e internet banda larga. A educação superior não entra nesse cálculo.
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Em alguns casos, há um abismo entre o resultado local e a média nacional. Enquanto 74% das instituições do Distrito Federal têm salas de leitura, apenas 19% dos estabelecimentos têm esse equipamento em todo o país. A diferença também está em questões básicas para o funcionamento das unidades. No DF, todas fornecem água filtrada. Isso não ocorre em 16% das escolas no restante do Brasil. O Distrito Federal também está muito à frente na estrutura para pessoas com deficiência. Por aqui, 64% das dependências são acessíveis. No Brasil, apenas 24% das escolas têm acessibilidade. Dois anos depois de sediar uma Copa do Mundo de Futebol, o Brasil também patina no número de quadras de esportes. Só há esse espaço em 31% das escolas. O DF está melhor: 65% das unidades de ensino público têm quadras esportivas. Há diferenças importantes também nos números de laboratórios e de ferramentas eletrônicas. Em 82% das instituições do Distrito Federal há espaços para informática. Esse percentual cai para 45% na média nacional. As escolas com laboratórios de ciências são poucas em todo o Brasil. Na média do país, 9% dispõem do equipamento – no Distrito Federal, são 19%. Na capital também há mais aparelhos de DVD, impressoras, copiadoras, projetores, aparelhos de televisão e unidades com internet que o restante do país. Em algumas escolas, no entanto, a situação é outra. O Centro de Ensino Fundamental Cerâmica São Paulo, em São Sebastião, por exemplo, aparece nos dados entre as unidades com laboratórios de informática. Em uma sala ampla, com uma pequena janela, 20 computadores pegam poeira e não são utilizados pelos cerca de 700 estudantes. Como não há um profissional para cuidar do laboratório e nem internet em velocidade suficiente para suportar 30
as necessidades do local, a Secretaria de Educação preferiu deixar o espaço fechado. “Não adianta a gente ter tudo isso e não usar. Ou usar e não fazer diferença para o aprendizado dos alunos. Ter computadores, laboratórios, equipamentos diversos, que pouco são usados pelos reais interessados, os alunos, não contribui para o aprendizado”, diz a professora Luciley Oliveira, que dá aulas para o 5º ano na escola. Soa estranho, às vezes, falar para um aluno do Distrito Federal que a rede de ensino na qual ele estuda tem os melhores dados de infraestrutura do país. Andar pelo Centro de Ensino Fundamental (CEF) 301 do Recanto das Emas é um exemplo. Com quadra de esporte, laboratórios, salas de leituras com muitos livros, espaços para professores e equipamentos eletrônicos, a escola poderia ser um caso de excelência no ensino, mas está longe disso. Os alunos não usam esse espaço em todo o seu potencial. Beatriz Santos, de 11 anos, estudante do 5º ano, conta que nunca foi à sala de leitura do colégio e que o laboratório de informática raramente está aberto. “Nenhuma professora nos levou para ver os livros, mostrou a sala dos computadores. A gente só estuda na sala mesmo”, relata a estudante. Já a quadra é aberta para os alunos. O problema é que pouco há atividades para os alunos, principalmente os das séries iniciais, organizadas pelos professores. O local virou ponto de encontro para quem quer matar aula. “A gente sabe que está errado, mas não damos conta de usar tudo isso para o aprendizado dos alunos. Tem os equipamentos, que se transforma em números bons para o DF, mas não temos o suporte suficiente para aplicar isso com os estudantes”, reconhece o professor Diego Brandão, que dá aulas na escola. A escola obteve nota 5 na avaliação de 2015, divulgada um ano depois, considerando os dados das séries iniciais, aferidos com alunos do 5º ano. Uma queda de 0,2 ponto na comparação com a prova de 2013. Bem longe da meta do Ministério da Educação, que previa para esse ano um desempenho de 5,5. O resultado é de apenas dessa escola, mas reflete a média da educação do Distrito Federal. As outras instituições de ensino públicas do DF não conseguiram atingir a meta no último Ideb
Contrastes
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de laboratórios de inf
de laboratórios de inf
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ormática no DF
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Fonte: Censo 2015/Ministério da Educação
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Foto: Agência Câmara
Para Daniel Cara, só boa infraestrutura não significa melhor qualidade de ensino.
nas séries iniciais e nem nas finais. Para os anos iniciais do Ensino Fundamental, a média foi de 5,6 (o mesmo resultado de dois anos antes), enquanto a meta estabelecida pelo governo para o ano era de 5,8 pontos. O Ideb reúne em só indicador dois conceitos importantes para a qualidade da educação: o fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações. O indicador é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar e médias de desempenho nas avaliações do MEC: o Saeb, para as unidades da federação e para o país; e a Prova Brasil, para os municípios. Para que a prova não fosse apenas um resultado ao final do 32
ano, o governo federal instituiu um sistema de metas. Traçou um caminho de evolução individual dos índices, para que o Brasil atinja o patamar educacional que têm hoje a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico ou Econômico (OCDE). Em termos numéricos, isso significa evoluir da média nacional 3,8, registrada em 2005, para um Ideb igual a 6,0, na primeira fase do ensino fundamental. As metas são progressivas e diferentes para cada rede e escola. Ou seja, a rede pública do Distrito Federal não evoluiu no último biênio e a cada ano se distancia dos índices esperado.
Esses resultados ficam ainda mais preocupantes ao distribuirmos os números entre as escolas. O Ministério da Educação divide as instituições de uma unidade da federação entre aquelas que estão: em situação de alerta (o pior grau, que precisa ser olhadas com mais cuidado); situação de atenção; que precisam melhorar; e que podem manter os resultados atuais. Nas séries iniciais, 36% das escolas da capital do país estão em alerta. O DF fica atrás apenas de Tocantins, onde 46% estão nessa situação. Outras 37% estão em estágio de alerta. Nas demais, 14% precisam melhorar e só 13% podem manter-se como estão. Esses últimos nú-
meros estão no meio da tabela do ranking entre os estados, o que mostra uma discrepância entre os dados das escolas locais. “Historicamente, por uma série de fatores, o orçamento da educação é maior na capital federal do que nos estados. Tem os melhores índices de infraestrutura. Por consequência, o Distrito Federal deveria ter os melhores índices de ensino. É preciso investigar a fundo e entender de onde vem essa discrepância”, diz o pesquisador Daniel Cara, Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Cara tem alguns palpites. Primeiro, considera que uma infraestrutura adequada nas escolas é um fator imprescindível para a qualidade da educação e isso é um direito dos alunos, familiares e professores. Mas pondera que, como esses dados são fornecidos pelas próprias escolas, pode haver distorções. “O simples fato de haver um aparelho de DVD, a informação de que a escola tem uma sala de informática, uma sala de leitura, não significa que isso seja usado adequadamente. E nem que essas sejam as condições ideais para um professor dar aulas. Se os professores não são valorizados, se não passam por treinamentos constante, se os alunos não estão motivados, a infraestrutura vira um detalhe”, considera. Nas séries finais, apenas
1,25% das escolas do DF podem manter seus resultados, considerados satisfatórios pelo MEC. O restante precisa melhorar e está em situação de alerta ou de atenção. Ou seja, algumas poucas escolas puxam a média, nesse caso, para cima, o que não representa a realidade da educação local. Distribuir os números da Prova Brasil no 9º ano entre as regiões administrativas revela as disparidades entre as regiões administrativas. Das dez melhores escolas em 2015, oito ficam no Plano Piloto. Por outro lado, entre as unidades de ensino que pontuaram na avaliação, todas ficam em regiões administrativas afastadas do centro de Brasília. Os resultados do Censo, no entanto, demonstram que essas escolas têm os mesmos dados de infraestrutura. A estudante do 3º ano do Ensino Médio, Carla Gonzalez, é um bom exemplo para ajudar a entender esse fenômeno. Ela saiu de uma escola de Ensino Fundamental no Recanto das Emas, ranqueada entre as menores notas no Ideb, para um estabelecimento de ensino no Plano Piloto com alguns dos melhores resultados. Pelo menos, nos dados disponibilizados pelas no Censo Escolar, as escolas têm a mesma infraestrutura, mas, na prática, a situação é diferente, conta a aluna. “Na minha antiga escola, mais perto da minha casa, até
tinha computadores. Tem também uma biblioteca pequena e uma quadra de esportes. Mas a gente pouco usava. Não fazia diferença nos estudos. Eu sentia que pouco aprendi nessa escola. Na outra, no Plano Piloto, tem tudo isso também. Só que nós usamos com frequência. E é mais puxado, mais difícil, se aprende mais”, relata Carla. Para Daniel Cara, todas essas discrepâncias só reforçam o desafio que a educação brasileira tem pela frente: “Se a unidade da federal que diz ter uma das melhores infraestruturas não consegue transformar isso em resultados, imagine o estado que não consegue colocar água encanada na escola”.
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Medos, sonhose desafios dasmãesdo Zika Personagens principais de uma geração falam sobre a luta por mais qualidade de vida para seus filhos Por Jéssica Luz
Ianka Barbosa, Thérsio Felipe e Emanuel Felipe. Mãe, pai e filho foram surpreendidos por uma doença cujos sintomas se assemelhavam a uma virose. Um vírus silencioso, transmitido por um mosquito já bem conhecido no país. A família, residente em Campina GrandePB, não imaginou a batalha que teria que travar ao entrar em contato com o Zika vírus. Ianka estava grávida de Sophia. O Zika se alastrava no país e os médicos ainda não tinham informações suficientes para tratar do assunto. Apenas no sétimo mês de gravidez Ianka descobriu que sua filha nasceria com Síndrome Congênita do Zika vírus, novo nome que foi dado a enfermidade que afetou diversos bebês com as consequências da microcefalia, desde o ano passado. O Zika é implacável. Enquanto mães sonham e planejam ver seus filhos se desenvolvendo, brincando e correndo, a doença traiçoeira reduz o tamanho do cérebro e da cabeça, afetando o desenvolvimento motor e neurológico da criança. Ianka recebeu a notícia no Instituto de Saúde Elpidio de Almeida, mais conhecido como Maternidade Isea. Mas a pouca informação é capaz de causar estragos irreversíveis. Na mesma hora em que a jovem mãe soube que Sophia nasceria com microcefalia, foi bombardeada com frases impactantes sobre a doença: “você pode morrer no parto e ela também”, “não se preocupa não, quando tem essa doença normalmente nasce morto”. Tratada com desdém e sarcasmo pelos profissionais do Instituto, Ianka se lembra das frases como ecos de uma sociedade preconceituosa e despreparada, que reflete a ignorância e a falta de amor pelo próximo. 34
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Fotos: Kamila Siqueira
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Ianka Barbosa e Sophia em momento de conexĂŁo entre mĂŁe e filha.
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Após a constatação da Síndrome Congênita em seu bebê, Ianka foi encaminhada ao Hospital Pedro I para a realização de uma punção direcionada à descoberta da causa que levou o desenvolvimento da deformação encefálica. Caso fosse constatado que a causa era o Zika vírus, a mãe seria informada e receberia um laudo com o resultado do procedimento. A partir desse dia, mais erros surgiram na vida de Ianka: o resultado havia saído, mas ela apenas recebeu um telefonema informando que a causa era o Zika vírus. Novamente, a frieza dos profissionais de saúde balançou o psicológico da mãe. O laudo, que deveria ter sido entregue como prova da causa da doença em seu bebê nunca foi visto. No município de Esperança-PB, está Maria Carolina Silva Flor, 21 anos, que engravidou e foi infectada pelo Zika vírus. Aos seis meses de gravidez, Carolina foi informada que o ventrículo lateral de seu bebê apresentava alterações. Era necessário fazer outro exame para ter noção da real situação do bebê. Como o SUS não oferece o exame, familiares da jovem emprestaram R$150 para a realização do procedimento, que, apesar de terem feito em uma clínica especializada, não apresentou o resultado desejado. “Este exame deveria me mostrar a real situação do meu bebê, mas a enfermeira, distraída, deixou passar o principal detalhe e acabou por pedir mais exa-mes”, conta. A gravidez de Maria Carolina, além de ter sido pouco assistida e acompanhada por ela, trouxe surpresas que ela jamais pensaria que iria viver. O nascimento de Maria Gabriela foi conturbado. A mãe, que deveria ter um primeiro contato com o bebê assim que ele fosse concebido, foi privada desse momento. “Não deixaram meu marido estar presente durante o parto, não me deixaram tocar em meu bebê. Só fui vê-la realmente quando fui para o quarto. Foi somente lá que descobri a real situação da minha filha com relação à Síndrome Congênita”, relata. Maria Carolina sempre faz questão de destacar os traumas que a situação causou à sua saúde psicológica. “Como mãe e como mulher, tudo isso me assustou muito, mas apesar de ter momentaneamente meus direitos negados, consegui superar”, conta aliviada. 36
Ajuda municipal A Secretaria de Saúde de Campina Grande, na medida do possível, tenta atender todas as mães que tiveram seus bebês afetados com a Síndrome Congênita. No hospital do município foi criado um espaço que atende, em média, 160 mães e seus bebês, inclusive Ianka e Sophia. “Neste espaço nós temos o acompanhamento de diversos médicos de diversas especialidades, além de termos acompanhamento semanal, com fisioterapia, e mensal, com um neurologista e pediatra”, conta Ianka. Já Maria Carolina vê a ajuda do governo e do município de forma diferente. Sophia e Maria Gabriela recebem do governo um auxílio de R$ 880 reais, para que sejam utilizados em tratamentos, comida e necessidades do bebê. “O auxílio, querendo ou não, nos prejudica. Para recebermos o benefício não podemos trabalhar, mas como iremos cuidar de um bebê nessas condições e de nossas casas com apenas 880 reais?”, indaga Maria Carolina. As filhas de Maria Carolina e Ianka recebem o mesmo tratamento no município de Campina Grande. Entretanto, Maria Carolina precisa se deslocar 35 km de duas a três vezes por semana, com seu bebê nos braços, para o município vizinho. “Apesar de recebermos tratamento gratuito para nossos bebês, a falta de comunicação entre municípios prejudica o nosso deslocamento”, explica Maria Carolina, que também sofre com a falta de pontualidade do transporte público, podendo esperar de cinco a seis horas para chegar ao seu destino final. Maria Carolina deixa bem clara sua indignação com o governo e com o descaso que ela e outras mães sofrem. “Nós somos nordestinos, mas ainda sim somos humanos, a sociedade e o governo não veem isso”, finaliza. Segundo a assessoria de comunicação da Secretaria de Saúde de Campina Grande, o Centro Especializado que foi criado no Hospital Pedro I se deu a partir do aumento da demanda de casos de microcefalia na cidade. Atualmente, são atendidas mais de 120 crianças, sendo que apenas 15 são residentes fixas do município. Além disso, foram feitos cursos para mães de bebês, para que aprendessem a estimular as cri-
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n Com dois anos, Emanuel já entende que a irmã é especial e merece uma atenção diferenciada, além de muitos carinhos. 37
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Rafa tira um cochilo no colo da mĂŁe, NĂĄdia Prichoa.
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anças com exercícios, e até oficinas de confecção de materiais lúdicos que ajudam no desenvolvimento da cognição e da parte motora das crianças. A Secretaria também contou que todos os funcionários são capacitados para lidar com esse tipo de atendimento, e que inclusive, fazem o treinamento de profissionais de outros municípios da região que não tem experiência com bebês que possuem a Síndrome Congênita do Zika. Tratamento diferente Nádia Prichoa é bancária, mora em Águas Claras e tem apenas 36 anos de idade. Seu filho Rafael já tem nove meses e nasceu com Síndrome Congênita após sua mãe ter contraído o Zika vírus durante seu período gestacional, mais especificamente na oitava semana. Somente na 24ª semana de gestação o bebê foi diagnosticado com microcefalia. “O primeiro exame mostrou que ele havia desenvolvido ventriculomegalia, que é quando um dos ventrículos do cérebro aumenta de uma forma anormal, tanto é que achamos que ele seria diagnosticado com hidrocefalia, mas após repetirmos o exame vimos que na realidade era microcefalia”, relata. Como toda mãe, Nádia ficou desnorteada com o diagnóstico de seu filho, ela conta que a situação toda foi angustiante, ainda mais com médicos e especialistas recomendando a interrupção da gravidez. “Eles me diziam que talvez seria melhor,
pois não era garantia de que o Rafael sobreviveria ou se iria conseguir realizar pequenas ações que bebês normalmente executam, como mamar”, conta. Rafael tem mais recursos aqui no Distrito Federal. Ao contrário de Sophia e Maria Gabriela, ele dispõe de tratamento home care, no qual médicos e técnicas de enfermagem o acompanham durante a semana, auxiliando Nádia em todos os momentos que tem com seu filho, tudo sem precisar sair de casa, salvo em consultas específicas que necessitam a presença do bebê em um consultório, normalmente no Hospital da Criança, Postos de Saúde e Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), que dispõe de médicos especialistas. Apesar dos tratamentos e acompanhamentos de perto, Rafael é uma criança que passou por maus bocados já no início de sua pequena trajetória. Aos cinco meses e meio, ele perdeu completamente a capacidade de sugar. Segundo sua mãe, parecia que ele havia esquecido como se mamava. Isso, claro, acabou prejudicando sua saúde e o enfraquecendo com o passar do tempo. Foram feitos diversos procedimentos para ajudar Rafael a se alimentar, sondas nasogástrica e nasoenteral não deram certo, pois o bebê passava mal constantemente e isso o enfraquecia mais. Foram semanas internado. Após passar por uma cirurgia de gastrostomia, Rafael pode voltar para a casa e ser acompanhado de perto por sua mãe e por enfermeiras.
Nádia também tem diversas reclamações voltadas para a Secretaria de Saúde do DF e sobre a forma como são tratados os pacientes que necessitam de atendimento especial. “Chegou um momento em que a própria Secretaria me ligou perguntando se nós da família estávamos dando a assistência que o Rafa precisa”, diz. Para Nádia, um dos programas menos efetivos que foram criados para crianças com microcefalia foi o do Hospital da Rede Sarah, que apesar de ser um local reconhecido por suas recuperações, atendimento e qualidade, não demonstrou isso na prática, quando se tratou da situação de Rafael. “Lá não tem a especialidade básica para atender crianças com microcefalia, que seria um neuropediatra. Frequentamos lá por alguns meses, mas os médicos nunca tocaram no Rafa, eles só nos deram atenção quando meu filho ficou internado. Eles me ligaram para saber porque eu não estava comparecendo aos dias de consulta. Expliquei a situação do Rafa e nunca mais fui ao hospital”, relata. Melhorias Segundo a SES/DF foram registradas, no último ano, 55 suspeitas de novos casos de microcefalia. Destes, apenas 11 foram confirmados, porém nenhum deles tinha ligação direta com o Zika vírus. De todas as mães que foram submetidas a exames, 25 foram infectadas pelo Zika vírus. Destas, duas mães tiveram bebês com Sín39
drome Congênita do Zika vírus. O gerente de Epidemiologia de Campo da Vigilância Epidemiológica, Rodrigo Miranda, atua diretamente na questão da epidemia do Zika no Distrito Federal. Ele diz que o DF busca assistir todas essas mães e dar o suporte necessário para o tratamento de seus filhos, mesmo em casos em que a doença não foi causada pela infecção direta do vírus. Desde o diagnóstico até os três anos de idade do bebê, a Secretaria de Saúde do DF recebe mães e crianças para que seja iniciado um processo, q acompanhado por médicos e especialistas, que irá proporcionar uma melhora na qualidade de vida do bebê, além de buscar o desenvolvimento da saúde física e motora da criança. Rodrigo conta que a cada 15 dias, um comitê formado por infectologistas, epidemiologistas, neurologistas, geneticistas e psicólogos se reúne para criar novas ações que se fazem necessárias para evitar que a epidemia se alastre e afete ainda mais a população do DF. Além das ações direcionadas ao Distrito Federal, existe uma Rede Nacional que proporciona um diálogo entre todos os estados do Brasil, fazendo com que exista uma con-
versa plural entre estes representantes e assim a busca por ações mais efetivas para que a emergência sanitária em que o país se encontra atualmente seja solucionada. “Todo estado possui uma CIEVES (Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde). Na nossa comunicação utilizamos vários meios, tudo é sempre monitorado pelo Ministério da Saúde, que junto a profissionais da área está buscando uma solução para o problema que estamos enfrentando”, diz Rodrigo Miranda. Para o psicólogo Gleison Fernando, além do tratamento oferecido pelo governo, cada família vive um caso diferente. Segundo o profissional, a mudança de rotina da família e biológica da mulher, causam uma reviravolta e isso afeta o emocional da mãe de forma que acompanhamento psicológico se faz necessário, para que a família, de modo geral, tenha um apoio. “Creio que o processo gestacional em relação às crianças com alguma doença ou deficiência afeta tanto a gestante quanto toda a família. Desde o início da gravidez ao nascimento do bebê, o processo de acolhimento psicológico deve ser realizado o mais rápido pos-
sível, para que a família possa ter um suporte emocional e de compreensão da nova situação que estarão envolvidos”, ressalta Gleison. Necessidade Débora Diniz é professora de bioética na Universidade de Brasília e na Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro lançou recentemente o livro Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Viajando por diversos cantos do país, Débora fez uma apuração minuciosa e recorde para produzir o conteúdo da obra. Segundo ela, já existem estudos que mostram resultados e hipóteses que muitas vezes não são divulgados. “A concentração de mosquitos nas áreas de saneamento básico precário é maior do que em locais tratados. Existem suposições que ainda estão em curso que dizem que o efeito do Zika, combinado com os anticorpos da dengue, ou outras interferências de fatores ambientais, trouxe os resultados que temos hoje com relação às mães”, explica. Há uma necessidade de que o governo olhe mais por essas mulheres e por suas crianças. Nada do que foi relatado ou pleiteado por elas nessa batalha diária é demais.
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Depois de todos os problemas, Nádia Prichoa e seu marido decidiram criar a Associação de Pais de Crianças com Microcefalia do Distrito Federal. Para ela, é importante que outros pais tenham acesso a informações que o governo não passa e que seja feita uma ponte de diálogo entre instituições governamentais e famílias.
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Mulheres
em movimento
Com maior vulnerabilidade, mulheres imigrantes driblam dificuldades e buscam status de cidadãs no país Por Brenda Knutsen
Migrar não é só seguir em frente, abandonar origens ou não olhar para trás. Para mulheres e homens, são feitos desvios, retornos, idas e vindas das diferentes experiências ao longo de suas trajetórias migratórias. A migração contemporânea aponta questionamentos sobre os laços entre identidade, cidadania, indivíduo, lugar e o pertencimento. É inegável a contribuição de migrantes ao país, onde fortalecem as questões linguísticas, culturais, econômicas e sociais, mas também coexistem com eles uma crescente onda de preconceito e xenofobia. Porém, o termo utilizado para falar dessas pessoas não engloba todos os indivíduos sem distinção de sexo. O termo migrante esconde as flexões de gênero. Mas e o artigo feminino e sua vivência? Se migrar é ato de resiliência, a mulher migrante possui a artimanha para tal aventura. A ausência de política nacional migratória eficaz é um grande entrave para os direitos humanos, assim como a falta de informação sobre o contexto do refugiado/migrante por parte da população brasileira, dificultando a procura de trabalho e inserção na vida social e cultura. Também no Brasil houve um aumento no número de mulheres que migram sozinhas em busca de melhores oportunidades de vida. Isso implica em novos desafios em termos de proteção e olhares a um fato social tão complexo como é a mobilidade humana e a questão de gênero. O ano de 2015 se tornou o ano da “crise migratória” internacional, quando mais de um milhão de imigrantes chegaram à Europa somente pelo mar. Essa é a pior crise já registrada
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Haram e o Estado Islâmico, como fatores que contribuíram para a grande expulsão forçada de milhões de pessoas de suas casas rumo a países como Alemanha e outros do norte da União Europeia. Elas migram mais Em 2016, a crise humanitária ainda se arrasta com diversas denúncias de violação de direitos humanos e descaso dos 23 países que deveriam receber imigrantes. Em outubro deste ano, mais de 5.600 imigrantes que tentavam cruzar o Mediterrâneo tentando chegar à Europa foram salvos em apenas 24 horas. No meio do imobilismo europeu, mulheres seguem sendo as maiores vítimas de violências de gênero em campos de acolhimento com narrativas aterrorizantes. Segundo relatório da Women’s Refugee Commission (WRC), as descrições vão de relações sexuais forçadas como forma de pagamento pela travessia e mesmo documento de viagem até os informados à equipe do Acnur, que esteve na parceria para a construção do documento, de mulheres dando à luz a crianças que foram consequência de estupros dentro dos campos de refugiados. O Brasil recebe imigrantes desde o início da sua formação como país. Todavia, o perfil destes deslocamentos foi mudando ao longo da história por diversos aspectos que contribuíram para o modo como o governo brasileiro lida com essa questão em termos de lei e socialmente. A partir da década de 1950, o teor da movimentação da população em nível mundial trouxe maior diversidade de classe, gênero e etnia. É nesse momento que ocorre uma importante característica, o aumento perceptível de mulheres nos deslocamentos pelo mundo. Não sendo um país que está na rota usual de migração, o Brasil não possui as condições para receber essas imigrantes. Segundo o Censo da População de Rua divulgado pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura de São Paulo, estima-se que 8% dos que se encontram nessa situação são formados por imigrantes oriundos, em sua maioria, de países africanos. O fato é recente, mas mostra a falta de assistência social e principalmente emprego para esse grupo. O documento aponta ainda que a tendência é que esse número cresça, sendo representado atualmente por
Ilustrações: Pedro Corrêa
no mundo desde a Segunda Guerra Mundial, são 214 milhões de pessoas em deslocamento. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), mais de um milhão de pessoas chegaram ao continente Europeu, 3.735 morreram durante a travessia e 84% das nacionalidades são de países que estão em condição de profunda violência por conflitos internos ou atingidos por regiões vizinhas. A pesquisadora Sofia Zanforlin, especialista em migrações contemporâneas e comunicação intercultural, acredita que o termo “crise migratória” é problemático. Para ela, o que acontece hoje é uma situação causada por um contexto geopolítico, onde há muitos interesses envolvidos. “Certamente, o panorama está agudo, portanto, justifica-se falar de crise. No entanto, eu prefiro não usar o termo, porque parece que você transfere para os migrantes essa responsabilidade quando, na verdade, é efeito de uma situação maior”, completa. Atualmente, o Brasil possui pouco mais de 8 mil refugiados, com grande aumento em relação aos últimos cinco anos. Essas informações são do Ministério da Justiça e Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), que ainda apontam as cidades mais procuradas por estes indivíduos: Rio de Janeiro e São Paulo. Os estados do Sul também são bastante visados por possuírem oferta de trabalho. Desses números, cerca de 20% do contingente estrangeiro é do sexo feminino. Os sírios são os mais numerosos com 49%. Mulheres e crianças somam 42% do total. As causas desse agudo panorama são muito debatidas entre estudiosos que apontam fome, miséria, corrupção de governos, perseguições religiosas, política e crescimento de diversos grupos fundamentalistas, como o Boko
Fotos: Brenda Knutsen e Bruna Gonçalves
Mulheres imigrantes no Brasil buscam mudanças, mas encontram também racismo e xenofobia.
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88% do sexo masculino em situação de rua. No Rio de Janeiro, as mulheres mudam a paisagem cosmopolita da cidade. Os homens eram maioria das pessoas vivendo por lá, mas, segundo relatórios da Caritás (RJ), são elas as responsáveis por metade das solicitações de refúgio. Os números crescem junto com as demandas internacionais, que há décadas apontam a questão de gênero como forte atuante na mobilidade humana. A Cáritas mostrou que, no ano de 2014, as mulheres representavam entre os solicitantes de refúgio cerca de 30%, aumentando respectivamente para 2015 com 40,4% e para 50%, em 2016. Maria* lembra-se dos momentos difíceis que passou ao chegar ao país. A haitiana tinha 23 anos quando o terremoto devastou seu país, em 2010, e a situação da região, que já era crítica, piorou. Os cidadãos haitianos nunca se reergueram dos estragos causados e ouve até mesmo intervenção do Brasil para manter a ordem naquele país. “Não voltei mais no instante que tive a oportunidade de sair, sinto muito a falta da família, mas aqui saio pelo menos da miséria e ajudo meus pais”, comenta Maria, que atualmente trabalha para um órgão diplomático. Acompanhando a irmã nas aulas de português oferecidas pela Universidade de 44
Brasília, Maria conta sua história entre sorrisos e pausas para ensinar Joana*, sua irmã mais nova que chegou há poucos meses. Bem tímida, conta ter possuído muitos sonhos e esperanças quando chegou ao Brasil numa travessia trágica e feita completamente só, mas que aos poucos foi entendendo não se tratar de um país com oportunidades de sobra. “Me planejei para o Brasil ser um lugar para ter dinheiro e ir para Inglaterra, Paris. Fui desistindo aos poucos, esses estão muito longe, e aqui me acho um pouco em casa, perto do Haiti. O estudo também não tenho mais vontade, demorei a aprender português, frequentei curso para vestibular, mas era faculdade ou trabalhar para mandar dinheiro para meus pais”. Maria relata ter sofrido racismo e episódios de xenofobia no início, quando trabalhou de babá em mansões do Lago Sul. A jovem não entendia as atitudes de patrões e outros funcionários que a hostilizavam. De forma bem ingênua, Maria diz que tinha sido orientada a procurar esses perfis em uma das áreas mais ricas da capital federal por se tratar de pessoas que eventualmente pagariam bem e eram bons com os empregados. “Nunca vou entender. Se eram pessoas estudadas e educadas, porque falavam do meu cabelo? Pele? No dia, chorei muito, não queria voltar outra vez, mas fui ameaçada a não receber dinheiro e, como não tinha carta de trabalho, voltei”. O Fundo das Nações Uni-
das para a População (UNFPA) tem denunciado as questões referentes à migração feminina, que incluem escravidão e diversas outras formas de exploração. Essa forma de deslocamento requer cuidados e mais vigilância, uma vez que são elas as mais prejudicadas no trajeto migratório. A proteção dessas mulheres passa a ter mais atenção ainda quando as remessas de dinheiro enviadas por elas movimentam boa parte da casa, como é o caso de Maria. Os caminhos percorridos por mulheres migrantes são extremamente nocivos, com as possibilidades do tráfico sexual e violências física ou simbólica por meio da xenofobia. Entretanto, essa mesma perspectiva negativa abre uma outra porta, para um mundo de igualdade e liberdade, longe de opressões e com chances de oportunidades financeiras. Mesmo representando 51% da migração internacional, essas mulheres são invisibilizadas na mídia, com uma tendência que as retratem meramente no seu papel reprodutivo. A esposa e, muitas vezes, mãe é aquela que apenas acompanha o marido que migra. Porém, a mulher protagoniza, sim, a migração, como é o caso de uma das irmãs. Joana*, que fala um inglês com sotaque de difícil compreensão, conseguia dizer apenas “forró” e “saudade” em português. Foram as primeiras palavras que a irmã a ensinou, informando, logo em seguida, que iria levá-la para dançar o tal forró. A caçula veio ao Bra-
sil com ajuda de Maria para ter alguma formação profissional e fugir da violência que assola o país. Ela havia escapado de uma recente tentativa de estupro. Os outros irmãos, homens, aceitam todo tipo de trabalho para manterem suas respectivas famílias e ajudar os pais no Haiti. A caçula, tímida e dedicada a aprender logo o português, quase não tirava os olhos dos livros. Confessou um desejo: quer entrar na universidade nos próximos anos. Batalha A pesquisa Mulher migrante: agente de resistência e transformação, de 2014, consegue captar bem as demandas femininas. A pesquisa, que aconteceu a partir de esforços do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios e sua rede internacional, que interage com migrantes ao redor do mundo, surgiu da necessidade de compreender o processo migratório para a mulher. O estudo contou com mulheres paraguaias no Brasil, brasileiras nos Estados Unidos, haitianas na República Dominicana, colombianas no Equador, Filipinas na Itália e nicaraguenses na Costa Rica. Destacando a grande participação das imigrantes, o projeto quis perceber as dificuldades enfrentadas e principalmente as estratégias encontradas para a superação dos obstáculos encontrados no novo país. As análises envolveram as dimensões afetiva, profissional, social e religiosa. Além disso, pode-se destacar três fatores
que estão no âmbito da pesquisa: a mobilidade social, as redes sociais e a dimensão do retorno. A pesquisadora do Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra), Delia Dutra, foi atuante no processo. Com todos os quatro avós imigrantes, um deles brasileiro, Délia Dutra teve um pouco do contato com a família sobre os costumes e hábitos no Brasil. Mesmo conhecendo algo, teve um grande impacto cultural quando, depois de formada em Administração, em Montevidéu, e com duas grandes multinacionais no currículo, ela revolveu buscar uma formação multidisciplinar. Hoje professora, em meados de 1999 percebeu que havia a falta do desenvolvimento de elementos da comunicação, de modo intercultural. Foi quando, em um planejamento em conjunto com seu marido, que havia passado num concurso para assumir vaga na Faculdade de Comunicação na Universidade de Brasília, ela decidiu também focar na sua carreira acadêmica. “Me integrei ao Centro de Estudos Scalabrinianos como voluntária, fazia parte de um grupo de estudos, realizei pesquisa, projeto com migrantes internos, muitas entrevistas, grupos de alfabetização”, relata Délia. “Isso foi em 2007 e mexeu muito comigo. Já havia me afastado da ideia que tinha de atuação profissional anterior e decidi investir na minha formação acadêmica para o estudo das migrações”, conta. Antes de se tornar estudiosa do tema, a pesquisadora foi essencialmente uma imigrante acadêmica, sem a premissa de ter sido expulsa por guerra ou situação econômica. Foi ela que permitiu esse caminho que resultou em uma experiência 45
de migração na qual foi preciso resignificar muita coisa e trabalhar muito as certezas, as dúvidas, questionamentos que surgem para aqueles que abandonaram o lar. Os momentos difíceis também aconteceram. Longe das dificuldades enfrentadas por migrantes laborais ou ambientais, Délia teve dificuldades com a língua portuguesa. “Mesmo estudando o português no Uruguai, tive problemas de compreensão. O português acadêmico, então, é muito difícil”. Em contrapartida às questões levantadas pela temática de gênero, há mulheres que se organizam e enxergam nos movimentos sociais, lugares possíveis e ação e fala política para demandar suas especificidades como migrantes. De respeito das tradições culturais, do direito à saúde e à cidade. Um desses lugares é a Base Warmis no Brasil que busca visibilizar a situação migratória da estrangeira, bem como construir políticas públicas de inclusão e igualdade de oportunidades para lutar pelo reconhecimento das mulheres imigrantes. As mulheres membros do coletivo estão à frente da Marcha da Mulher Migrante que acontece, todos os anos, em São Paulo.
“O projeto é significativo, pois mostra para mulheres que é possível a organização para alcançar mudanças tangíveis, concretas em seu cotidiano, possuindo bagagem de cultura e conhecimento que são importantes”, relata Jobana Moya, mulher boliviana e ativista pelos direitos humanos na Warmis. “Os objetivos da Warmis para 2016 são um Projeto de Lei que garanta a construção de uma Casa de Parto na cidade de São Paulo para mulheres imigrantes, políticas públicas focadas na saúde, educação e viabilização no fortalecimento destas mulheres por meio de diversos coletivos”, complementa. A participação na construção de uma sociedade mais receptiva e igualitária para o recebimento de imigrantes, bem como a garantia dos direitos das mulheres, parte desses movimentos sociais e de outras ações concretas que conscientizem a população brasileira do direito migratório e de dignidade do estrangeiro. Como mencionado, em maior ou menor grau por todas as mulheres desta reportagem, que são migrantes e deram novo significado em suas voltas pelas várias rotas que traçaram: “É na batalha que se ganha algo.”
*Os nomes foram trocados para garantir a privacidade das fontes. 46
Diante da cura A luta de duas crianças para sobreviver ao câncer e os caminhos da doação de sangue e de medula óssea Por Alinne Castelo Branco
imediata. Ela foi diagnosticada com anemia de Fanconi, que se não for tratada se transforma em leucemia ou outro tipo de câncer. Ao longo de quatro anos de tratamento, Amanda recebeu 25 transfusões de sangue e dois transplantes de medula óssea. A transfusão de sangue para casos de anemia e leucemia não são uma alternativa para todas as ocorrências. Durante o processo clínico, é feita quimioterapia, método que utiliza medicamentos que tendem à destruição das células doentes, que precisam ser repostas por células boas. Essa reposição vem a partir da recepção de um sangue “novo” e compatível, para que só assim o corpo esteja preparado para o transplante da medula, que no caso da Anemia de Fanconi é o único meio de cura.
Compatibilidade é uma das principais condições para a recepção, tanto da medula, quanto do sangue. Maria Vitoria nasceu prematura, e na gravidez, sua mãe, Andreia de Moura, passou por complicações. Andreia ficou internada por 80 dias, pois teve pré-eclâmpsia, uma complicação da gravidez, geralmente descoberta no prénatal, que é caracterizada pelo aumento da pressão arterial, inchaço das mãos e rosto, sendo a principal causa de morte materna no Brasil. Devido à situação, o bebê e a mãe estavam em risco. Maria Vitoria nasceu aos oito meses, porém, teve que ficar internada durante 40 dias para ganho de peso. Maria Vitória tinha muita afta e era muito dispersa para os estudos, levando até cinco horas para fazer um dever de casa.
Ilustração: Pedro Côrrea
Em julho de 2004 nasceu Amanda, primeira e única filha de Elivânia Alves da Rocha, que veio para Brasília em busca de um futuro melhor. Criança saudável e muito quieta, nunca foi de fazer bagunça, muito menos de conversar. Elivânia criou a menina sozinha, e sempre tiveram uma a outra como companhia. Entre os seis e sete anos de idade, a análise médica dizia que Amanda era anêmica. Esse diagnóstico foi dado várias vezes até que a mãe se cansou e indagou ao médico o porquê dos resultados sempre se repetirem, já que ela havia mudado a alimentação da filha e nenhuma melhora era apresentada. O médico sugeriu que fossem feitos exames mais avançados. Com os resultados, a internação de Amanda foi
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Numa reunião de pais, a professora sugeriu que levassem a criança ao pediatra. O médico que atendeu à família perguntou sobre exames de sangue, que já fazia certo tempo que não eram feitos. O diagnóstico apontou plaquetas em baixa. No Hospital Universitário de Brasília, com seus 10 anos, Maria Vitória foi diagnosticada com anemia de Fanconi. Em um ano foi tratada, e não recebeu transfusões de sangue, mas precisava de um transplante de medula óssea. Em consequência da pré-eclampsia na gestação de Maria Vitória, os médicos alertaram a mãe, Andreia, que ela não teria mais filhos. Cinco anos após conceber Maria Vitória e receber o alerta médico, nasceu Maria Eduarda, que se tornaria doadora da medula óssea de Vitória. Ambas as famílias citadas aqui foram acolhidas pela Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (ABRACE). Instituição sustentada pelo governo e por doações, dá assistência às famílias de crianças e adolescentes portadores de doenças no sangue que não tenham condição financeira para tratá-los. Por isso, contam com uma equipe de assistentes sociais, dentistas, psicólogos, e oferecem palestras sobre a doença, medicamentos, além de contato direto com Hospital da Criança. Com os procedimentos quimioterápicos, o cabelo cai e partes do corpo, como a boca, 48
ficam em carne viva. A magreza e fraqueza vêm por conta dos enjoos e dos vômitos. Segundo o Instituto do Câncer (INCA), 10 mil pessoas poderão ser diagnosticadas com câncer no Brasil ainda para o ano de 2016. Não é novidade que o sistema de saúde público do Brasil não é dos melhores. A terapia oferecida nos hospitais demora e alguns pacientes até vêm a óbito. Há uma espera também por medicamentos inacessíveis, que chegam a 30 mil reais. Amanda Rocha foi internada muitas vezes, quando achavam que estaria tudo bem, era internada novamente. A mãe conta como foi a descoberta da doença. “No início eu chorei, e eu acho que toda mãe chora, fica triste. Mas assim, nunca deixei de acreditar. Eu confiava sempre em Deus”. Amanda recebeu o primeiro transplante de medula após quatro anos na fila de espera. Apesar de o doador ser 90% compatível, o corpo da menina rejeitou a doação. Um processo de caça a um novo doador começou. O sentimento maternal falou mais alto, e a mãe decidiu ser a doadora da medula. Elivânia era 50% compatível com a filha. Após o procedimento de transplante, em 18 dias Amanda estava liberada do hospital. Elivânia entrou na justiça para adquirir o Micofenolato, uma droga imunossupressora (que diminui a atividade ou eficiência do sistema imunológico) para prevenir rejei-
ção em transplante de órgãos e exige muita paciência e fé de quem precisa dela. Segundo ela, o remédio ficava em torno de 32 mil reais. O processo foi parar no Ministério Público de Curitiba – pois é a cidade onde seria realizado o transplante de Amanda – sempre acompanhada da assistente social em todos os trâmites na justiça. Após a compra do medicamento, ela teve que prestar conta de tudo. Junto com a equipe do Hospital das Clínicas de Curitiba, Elivânia foi buscar o medicamento que vem de São Paulo e foi deixado no Aeroporto de Curitiba. As idas e vindas a Curitiba eram cansativas, tanto para a família de Maria Vitória, quanto para a família de Amanda. Maria Vitória foi 16 vezes, Amanda foi entre 20 e 30 vezes desde o diagnóstico até o transplante – e continua indo mesmo após o procedimento. O acompanhamento clínico segue e não tem uma data definida para parar, uma vez que os médicos têm que continuar analisando testes e ver se há uma progressão dos casos. Mesmo com as atuais consultas, que variam de dez em dez, seis em seis, de quatro em quatro, ou até de três em três meses, as meninas são dadas como “livres da doença”. Quando foi diagnosticado que a irmã seria a doadora para a Maria Vitória, e que Elivania seria a doadora para a filha, o Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB), que
Fotos: Alinne Castelo Branco
Amanda e Elivânia Rocha: a mãe foi doadora para a filha.
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Andreia Moura: sua segunda filha foi doadora de medula para a mais velha.
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deu assistência durante todos os processos antes do transplante, direcionou as famílias à Curitiba. Lá fica localizado o Hospital das Clinicas de Curitiba, referência no Brasil para o tratamento de diversos tipos de cânceres e em transplantes de órgãos e tecidos. Muito conhecido como hospital universitário, pois se tornou em 1953 patrimônio da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 1979, foi criado o Serviço de Transplante de Medula Óssea (STMO), realizando o primeiro transplante da América Latina. No deslocamento BrasíliaCuritiba é utilizado meio de transporte aéreo comercial, já que os casos são emergenciais, ou os pacientes não podem permanecer em locais públicos por muito tempo, mesmo com uso de máscaras. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece a pacientes, acompanhantes e doadores o Transporte Fora de Domicílio (TFD) regido pela Portaria MS/SAS nº 55, de 24/2/1999, que dispõe sobre a rotina do tratamento fora de domicílio no SUS. O programa dá assistência integral à saúde, incluindo o acesso de pacientes residentes em um determinado estado a serviços assistenciais localizados em municípios do mesmo estado ou de estados diferentes. As despesas permitidas pelo TFD são aquelas relativas a transporte aéreo, terrestre e fluvial; diárias para alimentação e pernoite para paciente e acompanhante, devendo ser
autorizadas de acordo com a disponibilidade orçamentária do município/estado. Também cede as passagens para os doadores aparentados, ou seja, que são da família, o que aconteceu nos dois casos citados, sendo a assistente social da ABRACE, a pessoa que facilita e guia as famílias para recorrerem ao auxilio sempre que é necessário. Caso o TDF não ceda, a ABRACE compra as passagens e entrega em mãos. Rodolfo Duarte, hematologista da Fundação Hemocentro de Brasília (FHB), explica que os tipos de sangue que mais faltam são os mais frequentes no país. “A população brasileira tem uma característica de ter uma maior frequência de tipo O e de tipo A, tanto positivo quanto negativo. Porém, os negativos, apesar de serem mais raros, acabam sendo mais demandados. Então, os tipos O e A- são que realmente mais saem, e, portanto, aqueles que a gente mais necessita de estar repondo nos nossos estoques, em especial o O-, porque além de tudo ele é considerado doador universal”. Rodolfo explica que os procedimentos de doar medula óssea e doar sangue são diferentes. Em casos como a leucemia, o organismo está produzindo um sangue doente ocasionando o câncer. Para tratar, será colocado outro organismo produtor de sangue de uma pessoa saudável. Com o uso da medula óssea, as células vão recolonizar a pessoa
cujo sangue doente foi destruído, e só a partir daí a medula passa a produzir o apropriado, para que a pessoa seja considerada livre da doença. Para doar a medula, deve-se comparecer ao hemocentro da cidade, onde é feito o cadastro da medula. O voluntário fará uma coleta em um tubinho de sangue, sendo submetido a um teste de histocompatibilidade (tipagem HLA), feito no laboratório para identificar suas características genéticas. O resultado e seus dados pessoais serão incluídos no Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME). As informações genéticas são cruzadas com os dados dos pacientes. Sendo compatível, é de responsabilidade do Instituto Nacional do Câncer (INCA) entrar em contato com aquele doador, que é colocado num serviço especializado para a retirada da medula óssea. Segundo Rodolfo Duarte, existem dois procedimentos para o transplante. Um deles é com a ida ao centro cirúrgico, ambulatorial, com anestesia, rápido, indolor e seguro. A medula óssea é um tecido esponjoso, presente no interior dos ossos longos e chatos, sendo comumente chamada de “tutano”. Na medula são produzidos os componentes sanguíneos: as hemácias, os glóbulos vermelhos, leucócitos, glóbulos brancos e as plaquetas, sendo retirada do osso da bacia do doador por conta da alta quan51
tidade ali existente. O outro procedimento é parecido com a doação de sangue, porém corresponde à ingestão de um medicamento que faz com que as células que estão dentro do tutano do doador fiquem “soltas” pelo organismo, e a pulsão, ou seja, a retirada da medula é feita pela veia. A recepção é feita como uma transfusão para ambos os procedimentos. O receptor se transforma em um “clone” do doador, começando a produzir o mesmo tipo de sangue e o mesmo tipo de cabelo do doador. Em centro cirúrgico, o doador é submetido à anestesia geral ou peridural. A medula é coletada na crista ilíaca (osso da bacia) – por meio de uma agulha que perfura a pele e atinge o osso, sendo realizadas repetidas aspirações. A medula é então armazenada em bolsa e infundida no paciente receptor, como se fosse uma transfusão. O doador fica internado por um mínimo de 24h. Já para o paciente receptor, a fase antes do transplante consiste em reuniões com médicos (oncologistas, hematologistas e pediatras), enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, para discussão do caso. Em um segundo momento, são realizadas reuniões com os pacientes e familiares para esclarecer os procedimentos que serão realizados, além da apresentação da equipe multidisciplinar. A família recebe orientações sobre como lidar 52
nos períodos de internação do paciente e sobre a importância da colaboração e auxílio nas atividades diárias. Após o esclarecimento, o paciente ou o responsável legal assina o termo de Consentimento Informado, e, então, acontece o agendamento do transplante. No início, o paciente necessitará de um cateter venoso para viabilizar o recebimento de quimioterapia, transfusões, antibióticos, medicamentos e principalmente o transplante da medula. Isis Magalhães, oncologista e hematologista do Hospital da Criança de Brasília José de Alencar (HCB) menciona que a arma principal de tratamento é a quimioterapia, Na fase pré-transplante, acontece o chamado condicionamento, quando o paciente prepara o seu corpo para receber as células sadias da medula óssea por meio do transplante. O condicionamento é realizado com altas doses de quimioterapia com a finalidade de destruir todas as células imunes para o recebimento de uma nova medula óssea. Há diversos efeitos colaterais: alopecia (perda dos cabelos), feridas na boca e no ânus, náuseas, vômitos, perda de apetite, diarreia, e mau funcionamento do intestino. Segundo Isis Magalhães, os pacientes são classificados em protocolos de riscos e assim delineia a intensidade de tratamento para que só assim o corpo esteja preparado para o processo de transplante, caso seja
necessário, por que existem pacientes que conseguem cura apenas com quimioterapia. O transplante é um procedimento que dura, em média, duas horas. Se as células transplantadas forem de cordão umbilical, o procedimento é realizado em 20 minutos. Segundo a Associação da Medula Óssea (AMEO), após o paciente condicionar sua medula, ele receberá uma nova, sadia, como se fosse uma transfusão por meio do cateter. O dia da transfusão é feito no dia “zero”, um novo dia de aniversário para o paciente. Isis Magalhães explica que, após o transplante, o paciente entra em remissão. “A remissão completa não quer dizer cura. Normalmente, os cânceres pediátricos ainda tem chance de voltar. Se em cinco anos a criança não tiver recaída, dizemos que ela está curada”. As primeiras quatro semanas pós transplante geram muito stress. “Nesse período ocorrem as grandes complicações infecciosas, podendo levar o paciente à óbito. Mesmo nos melhores centros, pós transplante tem um índice mortalidade de 10 a 20%”, afirma Ísis Magalhães. Com tantas medicações que são dadas desde a descoberta até se estar livre da doença, o órgão que sofre com tudo isso é o fígado. Alguns medicamentos fazem os pelos do corpo crescerem muito, além de causarem vários outros efeitos colaterais. Mas, diante da cura, isso é o de menos.
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O monstro dos comentários
Entre memes e piadas, discriminação e intolerância se travestem de opinião justa e democrática Por Rafael Procópio
A distância e o anonimato são seguranças fundamentais para se debater e opinar através do púlpito público que é a internet. Exemplo disso aconteceu com Rafaela Silva, a primeira brasileira medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Em 2016, a judoca se viu no centro dos holofotes por conta do próprio mérito. Porém, quatro anos antes, virou notícia por uma experiência discriminatória. Nas Olímpiadas de Londres, foi desclassificada por usar um
golpe ilegal. As redes sociais logo se manifestaram: críticas e mais críticas para atleta, passando desde acusações de “trapaceira” pelo uso do golpe; até por “burra”, tendo sua condição de ser humano e brasileira questionada, terminando na ofensa racial de “macaca”. O caráter democrático do mundo online proporciona diversas situações, que abrem a possibilidade de comentar, ausente nos meios de comunicações tradicionais. Porém, em casos como o da judoca Rafaela
Silva, o informal, o preconceito e a intolerância se concentram no que se chama de “brincadeira” ou até de “liberdade de expressão”, sendo que para muitas pessoas, não há qualquer distinção entre os termos. Outra grande comoção no esporte, mais especificamente no futebol, aconteceu no dia 12 de fevereiro de 2014. Os atos racistas cometidos pela torcida do time peruano Real Garcilaso contra o jogador brasileiro Tinga repercutiram mundo a fora. A cobertura foi intensa, 53
incluindo os veículos digitais. No globoesporte.com, um dos maiores portais esportivos do país, por exemplo, a notícia bateu recordes de comentários, que em sua maioria, eram palavras de repúdio. Porém, uma quantidade considerável dessas críticas mostrava uma intolerância grande e também preconceito qunato à constituição étnica e ao próprio povo peruano. Falta de paciência com o tema, por estar desviando do assunto futebol, também foi uma “queixa” apresentada na matéria em questão e nas que se seguiriam. Mas por que isso acontece? Segundo Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Escravidão Negra no Brasil e vice-presidente da Comissão Nacional da Igualdade Racial, a internet possibilita a sensação de impunidade. “Por estar atrás do computador, sem possibilidade de ser identificado, o cidadão se considera fora do alcance de ser penalizado pelas manifestações criminosas de intolerância, racismo e xenofobia que muitas vezes acontecem quando você está de forma presente e é logo objeto da reação daquele que você ofendeu”, comenta. Para Humberto, esses comentários não evidenciam um crescimento do preconceito, apenas uma facilidade de liberar esses pensamentos. “Há uma clara demonstração de nichos dessa onda de raiva escondida, como no racismo e xenofobia, 54
por exemplo, que antes, permaneciam isolados, e agora com a internet estão saindo para a luz do dia”, completa. A ferramenta A interação direta com o público/consumidor é, hoje em dia, mais que um complemento para os veículos online, é um diferencial que se torna cada vez mais uma necessidade para se sobressair entre tantos concorrentes. Possibilitada pela rapidez da comunicação no ambiente virtual, os veículos acabam por cativar o público, por meio da empatia e, muitas vezes, da informalidade. Manter um sistema de comentários em um site ou blog é uma maneira de aproximar o leitor e de manter um espaço para discussão. Porém, nem tudo são benesses. Muitos portais e sites pessoais estão deixando para trás essa ferramenta, muito também pelo conteúdo que os usuários apresentam. A agência de notícias britânica Reuters, por exemplo, desde 2014 não trabalha com comentários em suas postagens em seu site, exceto em matérias opinativas. Isso não é um movimento isolado: notadamente, desde 2012, sites de grande influência, como CNN e Vice, vêm diminuindo e até excluindo de forma completa, ou em algumas editorias, essa ferramenta de interação com o leitor. A discussão de ideias por parte dos usuários têm ficado no âmbito das redes sociais de seus veículos originais.
No Brasil, o movimento ainda é tímido, mas já é perceptível. No globoesporte.com, citado anteriormente, algumas notícias não tem mais o espaço para comentários. Talvez o caso mais emblemático até o momento seja o do jornalista Leonardo Sakamoto, que desde março de 2015, desabilitou seu blog para postagem de comentários. O jornalista, que é muito conhecido por sua posição política bem definida, termina as postagens que anunciam essa decisão dizendo que “fica a torcida para que o diálogo prevaleça sobre a intolerância”. Além da exclusão completa do sistema de comentários, os mantenedores dos veículos podem optar por uma mediação, que filtra o que vai ou não aparecer anexado ao texto, notícia e equivalentes. Cosette Castro, doutora em Comunicação e Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona e professora da Universidade Católica de Brasília, é veementemente contra essa prática. “Quando você tem um mediador, significa que não acredita na responsabilidade do outro e que tem medo do que o outro vai dizer. O livre pen-
sar é livre pensar, e só estimulamos isso com a diferença. Quando você tem esse papel onipotente que os jornalistas propõem e as empresas também, você está infantilizando sua audiência”, argumenta. Já o usuário da ferramenta tem ao seu favor um mecanismo de defesa, o anonimato, a possibilidade de omitir informações do público na hora de comentar algo. Muitas vezes, o próprio site já oferece uma caixa para marcação em que, ao clicar, o usuário imediatamente torna seu comentário anônimo. Anônimo apenas para o público, pois qualquer site, automaticamente copia o Internet Protocol (IP) em seu livro de visitas. Esse número funciona como uma identificação para cada computador. “Em princípio, os comentários devem conter nome, endereço, porque você se responsabiliza por sua fala, e também dá visibilidade para essa fala. Não é só colocar um comentário ‘anônimo’ e se ver livre. Mas existem exceções: se você vai prestar uma informação, uma denúncia.Tem alguns casos em que essa informação não pode ser pública por que coloca em risco a vida, a inte-
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gridade das pessoas”, completa a professora. O troll A partir de 2009, o “troll de internet” se torna uma figura mais frequente na web justamente pelo uso mais constante dos comentários. O termo, importado e assimilado dos jogos de interpretação e das obras de fantasia em inglês, designa o individuo que procura desestabilizar e aborrecer o outro por vias virtuais. Os ataques racistas em massa à jornalista da rede Globo Maria Julia Coutinho e à atriz Taís Araújo, da mesma emissora, que aconteceram em 2015, por exemplo, foram cometidos por um pequeno grupo de pessoas que procurava, justamente, visibilidade. Na ocasião, o preconceito foi destilado utilizando ofensas à características físicas das mulheres negras, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outros comentários pejorativos de cunho racial. A Polícia Federal foi colocada no encalço dos participantes do grupo que orquestrou os ataques, configurando-se como crime de injuria racial. O delito, mesmo cometido em ambiente virtual, não está imputável, como explica André Mansur, Bacharel em Direito e exAssessor Jurídico da Defensoria Pública de Taguatinga. “Se
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houver condenação, mesmo se o crime for cometido no ambiente virtual, o autor será apenado de acordo com a pena correspondente do tipo penal que ele infringiu”, explica. O crime de injuria racial, mesmo afiançável, pode render até três anos de prisão para o praticante. Leandro Santos, conhecido na internet como Mussum Alive, é criador do site Bebida Liberada e apresentador do Allcool, programa do Youtube, no qual ensina a preparação de diversos drinques. Com quase 150 mil inscritos no canal, já está acostumado a lidar com críticas e comentários na internet. “Geralmente, quando encontro um troll que tem como intenção apenas criticar ou falar mal do trabalho, sem se pres-tar a fazer uma crítica séria sobre o conteúdo, eu encaro e trato como uma brincadeira e tiro sarro da pessoa. Como os comentários quase sempre são carregados de raiva e ódio, procuro sempre manter a linha. Evito responder demais, porque, geralmente, quem faz esse tipo de coisa, busca chamar a atenção mesmo. Mas quando o comentário é ofensivo ao extremo, eu deleto e bloqueio a pessoa. Apesar de ser aberto a todos, o per-
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Leandro Santos, o MussumAlive.
r Foto: Acervo Pessoal
fil ainda é meu e como dizem: ‘Meu mundo, minhas regras’”, afirma. Leandro, que é negro, trata o racismo e o preconceito destinados a ele, como figura pública, de forma diferente. “Antes de me tornar público na internet, eu não sofri preconceito, pois era anônimo e só convivia com meu circulo de amigos. Depois do MussumAlive, já experimentei muitas demonstrações de ódio e racismo, mas sou adepto da filosofia de que as ofensas só irão fazer mal se eu aceitá-las. Quando alguém me ofende e eu respondo com brincadeira, ou ignoro, ela vai se sentir ofendida por não conseguir me fazer mal”, explica A maneira como os usuários se comportam ao comentar na web revela traços da formação a qual foram submetidos durante a vida. “Não existe um manual sobre como deveríamos nos comportar nos mais diversos ambientes da internet, por isso devemos contar com a nossa formação ética, com a nossa educação, quando estivermos interagindo com outras pessoas nesses espaços”, explica o psicólogo Felipe de Baére. Baére também discorda da ingenuidade que ataques travestidos de brincadeiras
possam ter. “A brincadeira só deveria ter uma conotação positiva se ambos os envolvidos estiverem se divertindo. Caso haja algum dano à outra pessoa ou a não concordância do alvo da brincadeira, o sentido já deveria ser outro. A provocação e as reações emocionais desencadeadas nas outras pessoas pelo troll não são inocentes, não ocorrem a despeito da vontade desse personagem virtual. A depender do assunto ou da forma que o troll se utiliza para desestabilizar um debate ou qualquer outro contexto dialógico, ele pode estar agenciando comportamentos violentos, o machismo, o racismo, a LGBTfobia, entre inúmeras outras formas de preconceito e de violência por meio de sua zombaria”. Se depender dos trolls, os monstros dos comentários, o bom senso e a igualdade da sociedade ainda estão longe de ser alcançados. Por enquanto, só resta brigar nos comentários.
Para Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Escravidão Negra no Brasil, quem ofende na Internet se considera livre de punições.
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Momentos
C onstantes
Biblioteca na Ceilândia guarda a história de uma família construída entre livros Por Fernanda Sá
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Fotos: Webert da Cruz
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Gilles Deleuze, famoso filósofo pós-moderno, dizia que a memória é um movimento em construção com direito à certos abalos, como saltos, rupturas e acelerações. Existem histórias que mesmo com suas ondulações, se mantêm na linearidade do tempo, e pelo seu fator afetivo perpassam gerações. Para alguns, se definiria no sentido mais tradicional de “histórias de família”. Para outros, como Drummond, no seu poema Memórias, existe um arcabouço de histórias que mesmo que findas, ficarão. É nesse sentido afetivo de várias gerações firmadas no tempo, que uma família e uma biblioteca, permanecem vivas, resistindo ao efeito das rupturas e os abalos da memória. Em 1986, o Brasil vivia uma tentativa democrática com a chamada Sexta República Brasileira ou Nova República, na qual o país ainda ensaiava passos para novos arranjos políticos. Naquele período na capital, José Sarney era o presidente da república, na televisão acontecia a lendária Copa do Mundo de Futebol e na cidade de Ceilândia, a 26 Km de Brasília, a educadora Cilene Rodrigues Carneiro Freitas, tomava posse na Secretaria de Educação do Distrito Federal, aos 19 anos. Jovem, nascida e criada na cidade mais populosa do DF, Cilene assumiu o cargo de professora na rede pública de ensino em 31 de março de 1986. Naquele ano, exerceu a profissão de educadora ministrando aulas. Em 1991, ela foi convidada para trabalhar na Coordenação Regional de Ensino, polos mediadores da própria Secretaria de Educação do Estado, responsáveis por dialogar com escolas públicas, professores e comunidade escolar. Foi lá que recebeu o maior desafio de sua vida: implementar a primeira biblioteca pública da Ceilândia. A cidade, que tanto desejava uma biblioteca, surgiu por uma demarcação de terras, por volta dos anos 1960, com moradores que vinham de ocupações irregulares e acampamentos em diferentes pontos do Distrito Federal e Entorno, desde o norte de Taguatinga, nas antigas terras da Fazenda Guariroba, até Luziânia–GO. Naquele período, as pessoas que faziam parte daquele aglomerado vinham de outros estados, principalmente do Nordeste, em busca de melhores condições de trabalho e esperança com as 60
novas possibilidades que o centro do país poderia oferecer. Melânia Batista Novais Souza, 70 anos, antiga moradora da cidade, lembra que o início não foi fácil. “Eu vim pra cá nos anos 70 e ainda era o governo do presidente Ernesto Geisel, aqui não tinha nada. Não tinha asfalto, não tinha água, mas meu marido veio para cá para trabalhar e aqui construímos nossa vida”. Baiana, de Vitória da Conquista, viu na cidade a oportunidade de ganhar uma moradia. Com o crescimento da região, na época, o então governador do Distrito Federal, Hélio Prates da Silveira, criou um plano de erradicação das ocupações irregulares para transformar o que até então eram barracos e terra, numa cidade promissora. Naquele período foi criada a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), justificando o nome criado para a cidade com as iniciais CEI, acrescentando com o sufixo lândia, Ceilândia, onde foram demarcados lotes residenciais e instituições públicas. Ceilândia se transformou numa região populosa, com o comércio fortalecido e uma identidade própria. Com escolas, hospital, postos de saúde, feiras, centro administrativo, o lugar ainda tinha uma carência cultural, uma sensação incompleta que surgia da própria comunidade. Foi nesse contexto que Cilene, e outras educadoras da Coordenação Regional de Ensino, recebeu a missão de suprir essa carência. Primeiro nascimento A Biblioteca Pública foi construída em 1993, ao lado da Administração Regional, num espaço de 200m², num auditório, com uma estrutura improvisada. O lugar ainda era precário e necessitava de inúmeros reparos. Após ser definido o espaço, o administrador da cidade solicitou um grupo de educadoras, do qual Cilene fazia parte, para executar todo o processo de organização da Biblioteca, desde a captação dos primeiros livros, à instalação de mobiliário, seleção e o processamento do acervo bibliográfico e treinamento da equipe de trabalho. Cilene relembra como foi a montagem. “Ao chegar nas instalações, encontramos um espaço vazio, sem nenhum mobiliário e, o principal, não
Fotos: Acervo pessoal
Cilene e Amina em dois momentos
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tinham livros. Saí a campo por vários dias para comprar e conseguir doação dos móveis, de obras literárias, com a comunidade”, relatou. “Foram muitas idas e vindas aos comércios, residências, outras instituições, buscando doações e outros itens necessários para o funcionamento da biblioteca, não foi fácil”. Com muito orgulho, a educadora relembra que muitas dessas visitas, com o objetivo de angariar materiais, foram feitas com seu Opala preto quatro portas, modelo 78, carro que foi uma relíquia da família. Foi com ele, entre livros e poeira, que descobriu um dos melhores momentos da sua vida, estava grávida. O processo de dedicação à montagem da biblioteca coincidia com incômodos e mal-estar devido à gestação complicada. No mesmo período, foi elaborada uma proposta de Cooperação Técnica entre a Administração Regional de Ceilândia, a Secretaria de Estado de Educação e de Cultura do Distrito Federal, para regularizar e oficializar o funcionamento do local. O período de organização durou aproximadamente nove meses, o mesmo tempo da gestação.
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Em abril de 1994, a biblioteca foi aberta ao público e para Cilene foi o momento de comemorar um duplo nascimento. “Me afastei para arranjar os últimos preparativos para o nascimento da minha filha Amina, em 2 de maio de 1994. Ela nasceu junto com a Biblioteca Pública de Ceilândia, rodeada de muito amor e carinho”, afirma. Amina Carneiro Freitas, hoje com 22 anos, lembra que desde pequena acompanhou o trabalho da mãe de perto. “Eu e meu pai íamos todos os dias no início da noite buscar minha mãe na biblioteca, e, como eu era criança, era um passeio muito divertido. Via aquele prédio e achava incrível lá estar cheio de livros”. Ela relata como era a convivência com o espaço. “Amava ficar lendo gibi da Turma da Mônica na Gibiteca. Ficava lá por horas. Acho que consegui ler todos os gibis. Também ficava procurando livros com títulos que me interessavam, livros de saga, de histórias e filmes que eu gostava. Gostávamos de sentar nos caixas da sala de empréstimo e simular situações, carimbar fichas e carteirinhas, emprestar livros e receber de volta, mas tudo de brincadeira.”
Segundo nascimento Apesar do caráter improvisado ao lado da Administração Regional, o número de frequentadores era alto. A cidade já tinha mais de 350 mil habitantes com uma biblioteca de 200m². Não estava sendo suficiente. Na época, Ceilândia passava por um processo de mobilização desde os anos 1980 para ser construído um Centro Cultural e Desportivo, que seria um complexo projetado com auxílio da comunidade e tinha como planejamento construir além de um espaço grande destinado a uma nova e maior biblioteca, um lugar para cursos, auditório e demais ambientes de vivências culturais. Já existia um terreno destinado para esse centro e uma obra sendo executada, mas em 1986 ela foi embargada e paralisada por medidas judiciais e problemas com a licitação para selecionar a empreiteira que a executaria. Com a falta de avanço nas negociações para retomada do espaço, grupos de artistas, entidades de cultura e comunidade criaram o “Movimento Retomada”. Em 1997, o grupo foi importante no ativismo e nas articula-
ções com a Administração Regional da Ceilândia, o que possibilitou um entendimento de que a continuidade da construção paralisada, era de fundamental importância para a cidade. A perspectiva do movimento era de que, no ano seguinte, a demanda fosse analisada como proposta prioritária pelo Governo do Distrito Federal. Em setembro de 1998, com a retomada e com a garantia de um espaço cultural para a cidade, a Biblioteca Pública de Ceilândia foi remanejada para o Centro Cultural e Desportivo, sendo instalada num prédio de 1263m², com dois pavimentos. Embora houvesse o reconhecimento da comunidade pelo trabalho de Cilene e das demais educadoras, não houve interesse do governo, na ocasião, de renovar a colaboração com o mesmo grupo de trabalho. Em função disso, a equipe de educadoras foi convidada a sair da biblioteca, deixando anos de trabalho para trás. Esse foi um período doloroso para Cilene. “Várias ações pedagógicas de alcance nacional foram descartadas, tudo que construímos e pensamos. Por esse contexto, nesse meio tempo a instituição
Amina, Anya e Cilene
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ficou ‘jogada às traças’, como diz o ditado popular”. Coincidências à parte, Amina Freitas, que nascia com a inauguração da primeira biblioteca, estava grávida de uma menina e acompanhou de perto o processo. “Por coincidência do destino, fiquei grávida numa época que a biblioteca estava ‘abandonada’, por problemas no governo, e minha gravidez foi muito complicada. Tive complicações e alguns problemas de saúde, foi bem difícil”, relembra. Turbulências passadas, em janeiro de 2015, a mesma equipe foi convidada a retomar a coordenação da biblioteca, que agora tinha estava num novo local e com novos desafios para dar continuidade às ações. O espaço passou por um período de revitalização e estava sendo preparado para mudanças, não somente estruturais, mas contava com uma nova força motivadora de trabalho. Cilene conta que momentos marcantes ainda estavam por vir. “Fizemos o aniversário da instituição, de 22 anos, em dezembro de 2015, juntamente com a assinatura da autorização, com vistas ao seu funcionamento pleno”. Nesse mesmo período, nascia sua neta Anya Carneiro Freitas, com o renascimento da nova e recém estruturada Biblioteca Pública da Ceilândia. Cilene tem, ainda, outra filha, chamada Amanda. Legado Atualmente, a biblioteca está em pleno funcionamento. É considerada referência no Distrito Federal e Entorno, citada em âmbito nacional em eventos na área de bibliotecas e educação como um centro estimulador do processo de ensino-aprendizagem e como espaço democrático de atividades de pesquisas escolares, incentivo à leitura e busca pela construção do conhecimento. Ela tem como missão ser um centro de informação e promoção da leitura, que oferece aos estudantes e a comunidade em geral. Sua clientela é formada 90% por estudantes provenientes da Rede Pública de Ensino e os outros 10% são de concursandos e comunidade em geral, que buscam um ambiente tranquilo e agradável para de64
senvolver o prazer da leitura. Para Leandro Silva Souza, 31 anos, que frequenta a biblioteca desde seu tempo de escola, o lugar sempre foi vivo e o ajudou em sua trajetória. “Eu lembro quando saía da escola e fazia trabalho em grupo, pegávamos enciclopédias e fazia trabalhos de escolas. Naquele período não tínhamos acesso à internet, então a gente passava horas ali dentro”. Hoje, Leandro é formado em Direito e concursado da Polícia Militar e entende que o local foi fundamental nos seus estudos. “Foi muito legal ver como desde adolescente frequentava a biblioteca e depois passei horas aqui estudando para concurso. O lugar daquela época para hoje só melhorou”. Hoje, a biblioteca leva o nome de Carlos Drummond de Andrade, escolhido por um concurso de participação de estudantes locais. É a maior da rede do Distrito Federal, tem uma frequência de aproximadamente 600 estudantes ao dia, 13 mil leitores cadastrados e um acervo formado por 81 mil livros. Dispõe de ambientes, como o Espaço do Concursando, Área Digital (16 computadores com internet), Salão de Estudo e Pesquisa, Casinha do Doce Saber, Espaço de Convivência, entre outros. Além disso, há diversas ações pedagógicas desenvolvidas ao longo do ano. Para Cilene, o local é um marco em sua história de vida e um local que atravessou gerações. “É uma emoção contar essa história e entendo a importância disso. Lembro de tudo com muito amor e carinho de dedicação com esse lugar e por lidar com questões que me atravessam pessoalmente”. Amina deseja um futuro para sua filha mais próximo à biblioteca. “Acredito que a Anya também vai adorar brincar e ler os gibis da Gibiteca, na biblioteca que a vovó ajudou a construir. São momentos da vida que nenhum meio tecnológico pode comprar. Hoje em dia, as crianças já nascem mexendo na internet e em smartphone. Não posso mudar isso, mas farei com que a Anya também veja o lado fora da vida virtual, que é brincar, ler e viver a vida real”.
Ilustração: Pedro Corrêa
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Fotos: Karyne Nogueira
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Calçada que liga a quadra QN16 ao ponto de ônibus da Rodovia DF-001.
Vila invisível
O Riacho Fundo 2, Região Administrativa do Distrito Federal, esconde conjunto habitacional de cegos criado para ser modelo, mas que sofre com falta de estrutura Por Karyne Nogueira
São cerca de 1500 metros de piso tátil que separam os conjuntos da QN16 do Riacho Fundo 2, Região Administrativa do Distrito Federal, do resto do mundo. As placas de concreto, colocadas em 2012, não estão desgastadas e rachadas por causa das bengalas que transitam sobre elas todos os dias, mas por causa daquele motorista imprudente que estaciona o carro em cima da calçada, ou do vizinho que deixou em frente ao lote o resto de areia da reforma da sua casa. A cegueira, para o escritor português José Saramago, é como um mar de leite, mas para os deficientes visuais que moram ali, naquela quadra, a visão é lamacenta, pois a água desse mar se fundiu com a poeira que os tratores furiosos levantaram quando construí-ram os apartamentos do Programa Habitacional Morar Bem e destruíram o pavimento tátil que ligava a quadra ao ponto de ônibus da Rodovia DF001. Aparentemente, a construtora esqueceu de consertar. É o que acha Valdevino Correa de Brito, cego que se aventura cotidianamente em uma rota cheia de obstáculos para trabalhar e estudar, para exercer sua cidadania. Valdevino é habitante da Vila dos Cegos e con-
vive diariamente com a falta de conscientização e a omissão de alguns moradores com relação àqueles que não enxergam ou que possuem baixa visão. Porém, quanto mais se percorre a quadra, mais as simples atitudes mudam de forma positiva a vida dessas pessoas. Os vizinhos cautelosos, que dirigem em uma velocidade baixa e os que não colocam o saco de lixo em cima das calçadas existem e mudam o destino de 46 portadores de deficiência visual que moram nos conjuntos 6, 10, 12 e 14 da QN16 do Riacho Fundo 2. Antes de serpentear pelas ruas deste vilarejo, é preciso apresentar um cenário amplo, onde da terra vermelha surgiu uma nova cidade dentro do Planalto Central. A 21ª Região Administração foi construída em 1995, quando um acampamento à beira da pista fixou resistência e se organizou em cooperativas para reivindicar o direito à moradia própria. Depois de oito anos, a cidade ganhou independência e, nessa altura do campeonato, de acordo com a primeira PDAD (Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios), feita em 2004, já contava com 17.386 habitantes, boa parte atraídos por lotes a preço de banana. 67
No caso da QN16, a pedido da antiga primeira dama do Governo do Distrito Federal, Weslian Roriz, o terreno foi cedido em 2006 com o intuito de criar uma quadra residencial voltada para deficientes visuais. Depois de análises em relação às rendas mais baixas, 73 famílias de deficientes visuais foram contempladas com lotes no local. Os moradores sem deficiência que já possuíam inscrições foram beneficiados simultaneamente com a chegada dos moradores cegos. Seria bom acreditar que essas famílias teriam, a partir daquele momento, um teto digno sobre suas cabeças e, pelo menos naquele lugar, poder ir e vir, sem medo de ter a liberdade sob os próprios pés. Mas não foi exatamente isso que aconteceu. Logo depois da entrega dos loteamentos, muitos deficientes visuais venderam os terrenos e com o tempo foram saindo da cidade. De acordo com a Administração do Riacho Fundo 2, as invasões de moradores não portadores de deficiência visual na QN16 fizeram com que, na ocasião, as empresas especializadas em fazer as adaptações desistissem de elaborar os recursos que aliavam a urbanização e a acessibilidade. Segundo o vice-presidente da Associação Brasiliense de Deficientes Visuais (ABDV), Willian Ferreira, os recursos básicos necessários para a inserção dos portadores de deficiência visual na sociedade são as calçadas acessíveis com rampas, os semáforos sonoros, a disponibilidade de transporte e espaços públicos acessíveis, além do piso tátil. O piso, em especial, é quase o protagonista dessa vila. Em 2012, os pavimentos adaptados foram colocados nos conjuntos onde os cegos residiam e em trajetos entre as suas casas até duas paradas de ônibus. Feita de concreto e não de borracha, como é mais comum, a calçada adaptada é fundamental para os deficientes visuais, pois serve como um direcionamento que proporciona autonomia aos cegos. Mas é só até aí que vai a estrada de tijolos amarelos da Vila dos Cegos. O piso tátil foi colocado 68
em apenas quatro conjuntos da quadra, porque, na época, as grades das casas que avançaram e ocuparam as calçadas impediram que o pavimento especial fosse estendido por toda QN16. Quando o piso orienta os deficientes visuais até os pontos de ônibus, a falta de transporte público, de segurança e acessibilidade são obstáculos diários para aqueles que desejam sair da vila. De segunda a sexta, ao raiar do sol, o músico e estudante de direito Valdevino Correa de Brito, já está percorrendo o caminho que o leva à parada de ônibus situada na Rodovia DF-001. O trajeto é tortuoso e em muitas partes não possui o piso tátil que antigamente existia. A construtora JC Gontijo, responsável pela construção do Residencial Parque do Riacho, destruiu parte do pavimento para erguer os apartamentos do Programa Habitacional Morar Bem. Já a pavimentação da área foi feita pela construtora Artec, que reconstruiu a calçada, mas não colocou o piso tátil, por onde, um dia, Valdevino já andou. Segundo a construtora, a pavimentação ainda não foi concluída e prazo para a entrega da obra é até o dia 30 de novembro. O fluxo intenso da Estrada Parque Contorno (EPCT) não assusta mais o músico, que prefere pegar a condução ali do que no ponto de ônibus mais próximo da sua casa, pois no local só passam duas linhas, com certa infrequência. Mesmo com a quase cegueira imposta pela retinose pigmentar, que lhe permite ver somente pontos de luzes involuntariamente, Valdevino não desiste de conquistar seu espaço como cidadão e garantir o pão de cada dia para sua família. “A deficiência não me impede de viver”. Para ele, as verdadeiras tribulações são as impostas pela sociedade, cotidianamente, mas não o impossibilitaram de chegar no último semestre do curso de Direito e, apesar da precariedade da faculdade, estar finalizando sua monografia sobre a dificuldade de acesso e de permanência da pessoa com deficiência no serviço público.
Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, Margarete Valdevino
Margarete Valdevino
essa coisa é o que somos
Saramago 69
Nilson
Nela, Valdevino propõe cotas niveladas em grau de deficiência, respeitando as particularidades de cada deficiente, seja ele físico ou mental, na inserção do serviço público. Possivelmente, com essa alteração da Lei de Cotas, o massoterapeuta, operador de áudio, auxiliar de cozinha e ascensorista, Reginaldo Estevão possa cessar a busca por um emprego, que já leva três anos. Diagnosticado com glaucoma aos seis meses de vida, o capixaba perdeu completamente a visão aos 31 anos de idade, e hoje, oito anos depois do apagão irreversível, não para de procurar um trabalho, apesar de acreditar na falta de confiança das pessoas em relação aos cegos. Há nove anos morando na QN16, os profundos olhos azuis de Reginaldo, imersos na escuridão do glaucoma, não viram nem a quadra e nem o Riacho Fundo 2 crescer, mas ele sentiu na pele uma das consequências da urbanização desordenada: a criminalidade. A presença da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal (APC-DF), que fica a cerca de seis minutos de distância da Vila dos Cegos, não intimidou as duas tentativas de assalto que Reginaldo sofreu à luz do dia. As agressões verbais sofridas nas abordagens aconteceram em um clima tenso, nas quais o medo ganhou uma intensidade inexplicável e traumática. Há também a agressão indireta, que priva e machuca os deficientes visuais da vila. Isso acontece quando, por exemplo, a vizinha não se sente responsável pelo lixo que colocou em cima da calçada adaptada, só porque mora em uma casa alugada. Esse tipo de atitude faz com que muitos cegos prefiram dividir o espaço do asfalto com
Só num mundo de cegos as c 70
os carros. Para Reginaldo, não vale mais a pena andar pelo piso tátil e esbarrar em motocicletas. Já Valdevino está cansado de tropeçar nos cacos de vidros deixados no lixo das calçadas. Margarete Gomes Barreto, moradora do conjunto 14 da QN16, escorregou no asfalto molhado e quebrou a patela do joelho direito. A baiana, que foi contemplada com um lote em 2009, começou a perder a visão aos 22 anos de idade e, depois de uma série de exames, foi diagnosticada com retinose pigmentar. Geneticamente transmitida, a doença que afetou a ex-operadora de telemarketing acabou antecipando também a aposentadoria do irmão, que era policial militar. Hoje, Margarete cuida da casa e de Cauã Silva Barreto, seu filho de 12 anos que, no dia do acidente, arrastou a mãe até a calçada e buscou ajuda para socorrê-la. Os vultos são os únicos resquícios da visão de Margarete, que não consegue mais distinguir cores e algumas formas, mas que ainda espera escutar na sua quadra, um intermitente som do semáforo sonoro, indicando que o sinal está verde e ela pode seguir em frente. De fato, é isso que todos querem, seguir em frente. Enquanto a vila segue encoberta por um domo invisível para Brasília, ignorada pelo Riacho Fundo 2 e excluída pela QN16, os áudios não param de chegar no Whatsapp do grupo Amigos Para Sempre, em que deficientes visuais de todas os estados do país dividem experiências sobre a cegueira. Entre as ondas sonoras das mensagens trocadas, as ruas de alto-relevo da Vila dos Cegos continuam a receber os choques das bengalas.
Pelo menos o piso tátil do conjunto 6 fica do lado esquerdo da rua, porque do outro, a brita do vizinho já se espalhou pelo asfalto. No conjunto 10, o meio-fio, considerado um recurso improvisado de direcionamento para os deficientes visuais, ainda está pintado de verde e amarelo, resquício da última Copa do Mundo. Já no conjunto 12, as bocas de lobo colocadas em 2014 agora impedem que a água da chuva alague as calçadas das casas e quitinetes. O Ponto de Encontro Comunitário (PEC), que fica próximo ao conjunto 14, privilegia os portadores de deficiência visual dali com a Academia Para Especiais (APE). De acordo com a Administração do Riacho Fundo 2, as adaptações das ruas da QN16 são uma prioridade e as reivindicações dos moradores serão encaminhas para os órgãos competentes. Em relação à falta de ônibus na parada mais acessível da vila, a ouvidoria do DFTrans disponibiliza o número 162 para registrar reclamações com relação ao itinerário fantasma que teoricamente existe e teoricamente atende a população. Sobre a ausência do piso tátil na calçada que direciona ao ponto de ônibus da Rodovia DF-001, o jogo de empurra-empurra entre as construtoras responsáveis pela edificação do Programa Habitacional até hoje não informou uma previsão para a revitalização do pavimento. É provável que a terra encubra os remendos do piso tátil que restou ali, mas não disfarça a profunda desesperança que esmorece a voz daqueles vileiros. Apesar de não enxergarem, direcionam os olhares para um horizonte que não foi feito para eles e que permanece nos limites que a sociedade impõe à vila.
coisas serão como verdadeiramente o são Saramago
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Lições de vida de um cego para uma vidente Por Karyne Nogueira
O par de tênis preto e de solados gastos de Nilson Conceição Siqueira tem quase um terço de sua idade. No bolso da frente da calça jeans clara, o celular está conectado ao fone de ouvido de cor branca, que combina com a blusa que está vestindo. Será que ele sabe disso? Não, ele não sabe porque a catarata congênita, em 35 anos, nunca lhe permitiu distinguir as cores das camisetas, as cores que piscam nos semáforos ou simplesmente a cor do céu. Da casa do amigo de Nilson até a parada de ônibus são seis minutos de caminhada. Ele não é morador da Vila dos Cegos, mas visitante. Andamos juntos naquele dia, em que ele me permitiu guiá-lo, mas quem precisava de direcionamento era eu, pois ao ficar atenta no trajeto que Nilson percorria, informando-o sobre os obstáculos no caminho, fui eu, a vidente, como os deficientes visuais chamam as pessoas que enxergam, que deu alguns tropeços. Serena e com passos firme, a bengala do baiano encontrou pedras, buracos, lama e eu. Tímido, Nilson falava pouco, mas foi suficiente para saber que, com aquele sotaque, ele vinha de longe, do município de Bom Jesus da Lapa, no estado da Bahia. Às 17h45 da tarde, a via de mão dupla que dá acesso à saída do Riacho Fundo 2 tinha um fluxo intenso. Sem nenhuma faixa de pedestre, depois de esperar um minuto, conseguimos atravessar as pistas e chegar ao ponto de ônibus. Havia tamanha responsabilidade naquela travessia, eu tinha uma vida literalmente nas minhas mãos. Mas ele confiou em mim, obedeceu meus comandos e acreditou na minha palavra quando o coloquei 72
dentro do ônibus com destino à Rodoviária do Plano Piloto. Confiança. Como desenvolver um sentimento tão importante em tão pouco tempo por um completo estranho? “Acho que a gente tem que acreditar nas pessoas, talvez assim o mundo se torne um lugar melhor”, Nilson disse, meio cabisbaixo. A própria falta de convicção tem uma razão que o persegue há 14 anos. Foi em sua cidade de origem, na festa de natal do ano de 2002 que uma tragédia aconteceu. A mãe de Nilson só não queria ir embora da festa, mas isso foi motivo suficiente para um desentendimento entre ela e o marido, que acabou tirando a vida da própria mulher com sete facadas. Com a prisão do pai e sob a guarda dos tios, Nilson e os três irmãos, que também são cegos, se mudaram para Goiânia e, logo depois, para Brasília. Na capital federal, as condições precárias da família chamaram a atenção de uma promotora de justiça que se solidarizou e deu uma casa para os refugiados. As marcas do ato do pai até hoje não cicatrizaram completamente. Antes, Nilson já aprendia a conviver com a herança genética do pai, a catarata congênita atingiu a ele e a todos os irmãos. Mas agora ele não cultiva ódio. “Eu perdoei ele”, diz, antes mesmo de saber do seu suicídio. Falar sobre a família faz Nilson vacilar a voz e atropelar as sílabas, não é à toa que hoje ele mora sozinho. Com o auxílio da aposentadoria no valor de um salário mínimo por mês, o morador de São Sebastião se adaptou à casa de quatro cômodos e à uma vida solitária. É no Centro de Ensino Especial para Deficientes
Nilson Visuais (CEEDV) que Nilson encarna o estudante que fora adormecido há anos e se divide entres aulas de braile, artes cênicas, música e cozinha. Além da escola, a Vila dos Cegos faz parte de seu itinerário frequente, quando aproveita para visitar os amigos e tomar o cafezinho da tarde. Foi em uma dessas idas ao Riacho Fundo 2 que conheci Nilson. Cheio de confiança e autonomia, sem saber, ele reavivou em mim reflexões e sentimentos que há muito tempo eu preferia deixar em segundo plano. Na parada de ônibus, ele me deu uma lição de paciência. Durante os vinte minutos de espera, enquanto eu estava inquieta com a demora do ônibus, ele transparecia a calmaria de um monge tibetano. Além do voto de confiança que estabelecemos ali, o maior aprendizado que ele me transmitiu foi saber perdoar, pois conviver com mágoas e ressentimentos é profundamente doloroso, e isso está acima de qualquer deficiência. Nilson não quer feridas na alma, ele pretende seguir sua vida, pegando sempre os mesmos ônibus para estudar e visitar os amigos, conservando na memória a imagem sonhada de sua família que nunca será apagada. 73
Mais que uma lenda Louca e fora dos padrões, Tereza Bicuda, símbolo histórico de uma pequena cidade do Goiás, representa uma legião de mulheres do Brasil Colônia Por Marianne Paim e Lorena Braga
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De lábios grossos, cabelos desgrenhados, pobre, infeliz, mulata, dissimulada e manipuladora, essa é uma imagem que se pode fazer de Tereza Bicuda, vista como assombração por moradores da pequena Jaraguá, município goiano que fica a 240 km da capital do estado. Mulher que não parecia se adequar aos padrões da época, Tereza maltratava a mãe, montava nela como em um cavalo, corria atrás de crianças na rua que a incomodavam, era preguiçosa e não frequentava a igreja. Como lenda, sua história se perde no tempo. Como fantasma presente, sua história ainda assusta os jaraguenses. Mas, o que há de real em Tereza Bicuda? Como em todo interior pacato, a família dos Bicudos era conhecida por todos que ali moravam, na rua estreita, de ladrilhos gastos, com a tradicional serra de Jaraguá ao fundo. Na rua das Flores, localizada na parte baixa da cidade, onde as casas possuem grandes portas feitas com madeira resistente, duas janelas largas e uma pintura simples que mescla branco nas paredes e outra cor mais clara nas bordas de janelas, tipicamente coloniais. Herdeira dessa família, logo depois que a mãe morreu, Tereza se viu sozinha. Saía pela rua gritando, correndo atrás das crianças que a
importunavam. Um dia, como está no destino de cada um de nós, morreu, não se sabe como. Na primeira tentativa de enterrá-la, a levaram para o cemitério. Depois, para as imediações de uma igreja. Nos dois locais, os moradores começaram a ouvir gritos. Quem passava pelas imediações, à noite, jurava que ouvia a voz de uma mulher e alguns até diziam que viam uma pessoa com os mesmos traços de Tereza circulando pelas ruas de Jaraguá. Acredita-se que esse medo vem da descrença da personagem na igreja. Com receio, a levaram para a serra da região e a enterraram lá. Desde então, não se escutou mais os gritos na cidade. O lavrador Limiro Prado, de 75 anos, conta outra história. Para ele, Tereza morreu enquanto andava perto de um córrego e, como era espraguejada de pai e mãe, morreu à míngua na cabeceira das águas. “Todo mundo tinha medo de beber dessas águas, porque era proibido por muita gente. Até os padres falaram para ninguém beber, pois ela, infeliz, morreu lá”. Assim como Limiro acredita na sua versão, outros dizem que ela morreu de solidão ou por alguma doença. Devido à necessidade de se contar histórias, 75
gerações se viram diante da familiaridade e união entre ouvir e escrever. Narrar um fato a uma pessoa, e assim passá-lo adiante, foi uma habilidade desenvolvida pelo ser humano há tempos, uma técnica para não se esquecer do que era mais importante. Assim, pela oralidade, as histórias ganhavam remendos, mais lugares, personagens modificados e consequentemente novos significados. Todas as versões conhecidas sobre a lenda de Tereza Bicuda têm como similaridade a personalidade da jovem – e pouco se tem certeza quanto a sua família. Para a historiadora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Dulce Madalena Rios Pedroso, Tereza era negra, filha de escravos. Filha de Lourenço Bicudo, escravo da família Bicudo de Andrade, que transmitiu seu sobrenome ao servo. A historiadora ainda lembra que durante o século XVIII e XIX era comum os sobrenomes das mulheres serem flexionados de acordo com o gênero, o que transformou Bicudo em Bicuda. A aposentada e moradora de Jaraguá, Floríza Lopes Gonçalves, mais conhecida como Dona Santa, ouviu desde criança as lendas sobre Tereza, contadas pelo seu pai. Desde então, ela escreveu à mão a história construída a partir das várias versões existentes e reuniu-as em dois livros que pretende futuramente publicar. Para Dona Santa, Tereza era uma mulher má, principalmente pela forma como tratava a mãe, não pelo sobrenome legado pelos proprietários. “Ela era bicuda devido ao seu comportamento agressivo, de sempre responder com grosseria as pessoas e, principalmente, a sua mãe”. Nos registros feitos por Dona Santa, Tereza era alta, morena, cabelos lisos e de voz rouca. Sua personalidade era difícil e ainda tinha como aliada a preguiça de ajudar a mãe Safina, de estatura baixa, que ganhava a vida lavando roupa e buscando água em córregos perto da cidade. “Um dia, ela andou a rua das Flores todinha, montada na mãe. Pôs freio de cavalo, bateu o pé na mãe e andou montada nela. Nesse mesmo dia, ela morreu por causa das pancadas da filha”, conta a aposentada. Após a perda da mãe, a vida de Tereza ficou conturbada. Sozinha e sem amigos, 76
ela enlouqueceu e logo seu comportamento agressivo incomodou os moradores da região. No livro Histórias populares de Jaraguá: Tereza Bicuda, organizado pelas pesquisadoras Ione Maria Valadares e Nei Clara de Lima, do Centro de Estudos da Cultura Popular da cidade, existem relatos de nove moradores que contam suas versões sobre a história dela e principalmente sobre como morreu ou não, como o raizeiro José Leite, que escutava de seus pais que ela foi enterrada viva. “Contavam que ela não morreu e eles sepultaram ela assim mesmo. Sepultaram no oitão da igreja”. Um dos pontos mais similares entre o que se fala é que, depois de morta, Tereza foi levada para ser finalmente enterrada ao pé da Serra de Jaraguá, que é chamada só pela dona de casa, Elisa Brito, como morro Maria Bicuda. Ela diz que um dia decidiu subir no monte para apanhar caju e mangaba e escutou a voz de Bicuda. “Quanto mais eu apanhava as frutas, mais eu subia, até que percebi a altura em que estava. Comecei a gritar meu marido para me ajudar a descer, mas enquanto eu gritava escutava uma voz dizendo ‘desce pra cá, desce pra cá’”. Com medo, Elisa desceu o morro correndo, deixando para trás todas as frutas. O fotógrafo Welton Rodrigues conta que, quando a enterraram no morro, foi colocada uma cruz para identificar o túmulo, que depois sumiu. Não se tem registro fotográfico dessa cruz, mas segundo o oficial de justiça, Fabiano Pampa Castro, ela pode ter sido queimada. “Acho que pela grande quantidade de queimadas durante os anos, não é possível encontrar a cruz no lugar, mas o que fica mesmo é a história e a imaginação”, conclui. Cultura popular Para o doutor em Comunicação e Semiótica, o professor da Universidade Católica de Brasília, Luiz Carlos Iasbeck, a história de Tereza reúne todos os ingredientes que são necessários para que se perpetue. “Essa figura lendária, que teria tido atitudes reprováveis pela comunidade, encarnou uma espécie de mal coletivo que reúne os medos da população que a alimenta: tratar mal a mãe é sintoma de um monte de outros males e
o d a z i t Ba A ser ra de Terez a
Fotos: Marianne Paim
nta a S Dona
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Livro de anotações de Dona Santa, escrito a mão, sobre Tereza. 78
desconfianças. Uma pessoa do mal pode também contaminar outras. E a força do mal é tamanha que não se desfaz nem com a morte”, descreve. Essa representatividade vai além. Após sua morte, Tereza Bicuda começou a assombrar os moradores da cidade. No dia 2 de novembro, dia de Finados, as ruas ficam desertas e ninguém cita o nome da dita cuja. “Nas noites de lua cheia, se você tentar subir a Serra, a própria Tereza aparecerá para você e lhe montará como ela fazia com a mãe”, conta Dona Santa. Em Jaraguá, é possível encontrar alguns fatores que podem confirmar que Tereza realmente existiu. O oficial de justiça Fabiano Pampa Castro, sempre se interessou pela história e, para saber mais sobre a personagem, foi atrás de materiais visitando as bibliotecas e a prefeitura da cidade. Dentre os documentos mais importantes está a certidão de batismo, casamento e assentamento fúnebre de uma possível Tereza Bicuda, negra, filha de escravos, o que confirmaria uma das características da personagem lendária. A história é tão significativa que as irmãs Christina e Fernanda Guedes compuseram uma música falando de Tereza. “Morei em Jaraguá até os seis anos de idade e, mesmo depois que mudei pra Goiânia, continuei indo para lá nas minhas férias. Lá, lendas como essa fazem parte dos casos que ouvimos desde criança. Sempre contei essas histórias para os meus filhos e crianças da família”, relata Christina. A canção teve boa repercussão e virou até mesmo trilha de um documentário realizado por estudantes da Universidade Federal de Goiás em 2011 sobre Tereza. “Um pessoal da UFG fez um filme sobre a Tereza Bicuda e colocou minha canção como trilha. Muitas crianças me procuram para que eu conte as histórias da Tereza. É claro que enfeito bastante! É uma canção que vendo muito como faixa pelos aplicativos de música também, mesmo para fora do Brasil”, contou a cantora. Um trecho da música pode levar a uma
reflexão sobre Tereza Bicuda. Nele, se diz: “Nem a terra quis Tereza, que virou assombração e Tereza na braveza, disparou nada à nação”. Loucura feminina A lenda de Tereza Bicuda representa mais uma história popular presente no território brasileiro que tem como personagem principal uma mulher, condenada pela sociedade. Até o século XIX, as mulheres deviam seguir os padrões colocados pela medicina e pela igreja. Se fugissem desse padrão, eram consideradas loucas, pois era preciso neutralizar ou normatizar a mulher, estabelecendo limites para sua ação. No Brasil colônia, por exemplo, ela deveria ficar restrita ao ambiente doméstico. Segundo um estudo feito pela doutora em História, Regina Calerio, e pela psicóloga Jacqueline Machado, chamado Loucura feminina: doença ou transgressão social?, a fuga dos padrões considerados normais era vista pela sociedade como um perigo. “‘Loucos’ eram todos aqueles que incomodavam a sociedade, aqueles que não ficavam presos às convenções, como os velhos e crianças abandonadas, os venéreos, os aleijados, os transgressores, os epilépticos, as mulheres transgressoras, os doentes mentais”, relatam. Paras as mulheres era ainda mais difícil, pois, em um tempo de muita submissão masculina, ou se aceitava os padrões ou se era tachado como portador de distúrbios mentais. “Essa era a imagem da mulher que prevalecia, inclusive no imaginário feminino: submissa, disposta a aceitar os valores impostos; desobedecer ou manifestar seus desejos e necessidades, ser sujeito de sua própria existência significava ‘estar louca’”, concluem as pesquisadoras. Se ela existiu ou não, o que sabemos é que muitas Terezas Bicudas foram imaginadas e suas histórias se encontravam em algum ponto que até hoje faz parte da cultura da cidade. Mais que uma lenda, a história de Tereza Bicuda reflete
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Ilustrações: Pedro Corrêa
uma sociedade que mudou muito pouco no tratamento de uma mulher marcada pelo abandono e pela falta de compreensão. Na narrativa do enterro na serra, em seu último suspiro, Tereza rendeu-se. O caminho para a redenção era cheio de galhos tortos e secos. A subida para o seu local de sepultamento parecia mais uma escadaria das lamentações tortuosas. Boatos dizem que ela se colocou a chorar e aquele choro ecoava como uma música fúnebre, na calada de uma noite, fazendo de seu enterro uma peça teatral já no seu terceiro e último ato. Enterrada, Tereza entregou-se. As cortinas se fecharam, a peça se encerrou. Para os moradores e igreja, uma alma seguiu para o obscuro. Para Bicuda, era apenas uma pausa. Às duas da manhã, o sino da Igreja do Rosário toca. Em um dia de finados, ainda dizem que a braveza de Tereza dá as caras. Uma forma de manter a própria história viva e se tornar referência, sendo então compreendido que, talvez, tudo que ela queria era ser a mulher que estava dentro dela: livre. Tereza, que parecia ter pedido a razão por sua malcriação, perdera, na verdade, a vontade de ser compreendida. Afinal, nem mesmo a terra a quis.
RESPEItÁVEL
CIRCO
Sobrevivendo aos trancos e barrancos, espetáculos circenses no país se mantêm com esforço Por Hellen Resende
O circo no Brasil encanta das grandes cidades ao interior, nas favelas, nos clubes executivos e comunidades isoladas, onde apresentações culturais são raras. Em um país repleto de elementos da tradição oral, os circenses mantêm viva a cultura popular. É um espetáculo a forma como eles não deixam essa tradição morrer e se renovam a cada desafio. Além de equilibrismo, se contorcem para vencer as dificuldades e fazer mágica com os recursos que têm. O descaso com a cultura se revela por meios das incontáveis barreiras com as quais se deparam. Mas diante desse cenário, não deixam a lona cair. Na maior escola
de circo da América Latina, pulsa a vontade de perpetuar o conhecimento do picadeiro. Em um ônibus itinerante, a magia chega a qualquer lugar. Companhias se reinventam e ousam no fazer artístico. Um dos maiores desafios é a aquisição dos alvarás de ocupação para utilizar um espaço nas cidades onde chegam. Após a conquista da permissão para montar o circo, há os percalços básicos que afetam aos artistas: matricular os filhos nas escolas ou conseguir um atendimento médico se torna mais complicado quando não se tem endereço fixo. Nas pequenas companhias, os preços dos espetáculos precisam se adequar à
realidade do público – e o baixo cachê não combina com as altas contas de luz e de água. Os profissionais circenses, muitas vezes, seguem as suas jornadas de trabalho movidos somente pelo amor ao ofício. Incansáveis, eles percorrem com a grande lona, e com uma vontade gigante, os caminhos mais estreitos do país. Levam as suas apresentações às metrópoles ou às pequenas vilas, consolidando as características do circo brasileiro: democrático e itinerante. Na música A Carreira, de Chico Buarque, o cantor fala sobre os burlescos e a característica nômade atribuída ao circo vira poesia: “Hora de ir embora quando o corpo quer ficar,
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toda alma de artista quer partir. Arte de deixar algum lugar quando não se tem pra onde ir”. No caso dos circenses do Brasil, eles têm um destino: mais de oito milhões de quilômetros quadrados os esperam, ansiosos pela magia do espetáculo. Circo Teatro Artetude O circo é popular e, por dispensar uma estrutura estática e sofisticada, chega às praças, às escolas, às comunidades carentes, sempre revelando as contradições e desigualdades dos locais onde se instala. Partindo de uma instituição para meninos de rua com destino a todo o Brasil, o Circo Teatro Artetude é um exemplo que adentrou as realidades esquecidas. A companhia existe há mais de 10 anos e foi criada pelos irmãos Saúde, os palhaços Raquaqua e Chaubraubrau. Hoje, eles possuem um ônibus itinerante, equipado com telão, 82
som e luz, um picadeiro móvel. Após ganharem o Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua 2012, com o projeto “Circulação-circo sobre rodas”, eles levaram a arte burlesca à Chapada dos Veadeiros-GO e à Chapada Diamantina-BA. O Artetude circula por todo o país com números circenses e se desloca a todos os lugares onde o ônibus consegue chegar. Ankomárcio Saúde estagiava no ano de 2001 como profissional de educação física em uma escola para meninos e meninas de rua do Distrito Federal. Lá, o então educador físico via como as atividades circenses conseguiam arrebatar até aqueles meninos mais arredios. “Eu percebi que os meninos, que muitas vezes pulavam muros ou abriam carros, e passavam por aquela adrenalina para cometer pequenos delitos, podiam experimentar as mesmas sensações fisiológicas sen-
do desafiados a andar de perna de pau, a dar um mortal, a fazer uma palhaçada”. Essa experiência despertou em Ankomárcio o amor pelas artes circenses. Atualmente, como artista de rua, ele o vivencia plenamente, com o Artetude. “Para mim, todos são o respeitável público”. Maria Flor, de 3 anos, faz parte desse respeitável público. Filha de um dos palhaços da companhia Artetude, Maria é categórica e diz gostar de circo por causa do pai. A mãe dela, a produtora cultural Carla Ramos, conta do encantamento da garotinha quando assiste ao palhaço Espiga de Milho, ou para ela, ninguém mais que seu pai. A menina, que acompanha as apresentações com a família, aprendeu desde cedo a valorizar a produção cultural. Ao contrário de Maria Flor, Ankomárcio e o irmão, Ruiberdan Saúde não nasceram em família circense. A vocação apare-
Fotos: Acervo Artetude
ceu em suas vidas diante de um cenário de mudanças, transformando os seus destinos e as realidades daqueles meninos de rua e dos tantos outros que encontram a beleza da vida por meio do grupo que eles criaram. Mas o caminho que o Artetude percorre em seu picadeiro itinerante não é só de flores. Eles já tiveram o patrocínio da Petrobrás e haviam conseguido um espaço físico na Casa da Cultura do Guará, cidade do Distrito Federal. Mas os circenses da companhia esbarram em uma antiga questão brasileira: o interesse dos políticos. A cada troca de governo, os investimentos obtidos no mandato anterior são esquecidos e deixados de lado. Eles perderam o espaço na Casa da Cultura e, por enquanto, estão sem patrocínio, mas não esmorecem com as dificuldades. Em um espaço no setor de chácaras de São Sebastião, cidade do DF
com altos índices de criminalidade, eles proporcionam aos moradores da região e de toda a Capital Federal o encantamento da arte, que não perde o seu brilho diante dos obstáculos. Um dos membros do circo é Marco Aurélio, o palhaço Tapioca. Há 10 anos na companhia, ele sonhava desde de criança com a profissão de circense. Começou a trabalhar com o riso em Brasília, no ano de 2001. O artista não encontrava na capital do país escolas especializadas nas habilidades que ele queria desenvolver. Assim, decidiu dar um salto na sua carreira. Começava aí a sua história na Escola Nacional de Circo (ENC). Fundada em 1982, a ENC fica no Rio de Janeiro e é a maior referência do ensino e do aperfeiçoamento de artistas da lona na América Latina. Sendo a única instituição de ensino diretamente ligada ao Ministé- r i o
da Cultura, existem bolsas de estudo que contemplam pessoas de todas as regiões do país. Em um espaço amplo e apropriado para a aprendizagem, Marco Aurélio tornou-se especialista em acrobacia, perna de pau, monociclo e rola rola. Ele estudou na escola por um ano e diz ter ficado encantado com as oportunidades do lugar. “Me deu uma base forte, sólida, que eu levo até hoje”. UdiGrudi O Brasil tem um imenso potencial para se tornar referência no desenvolvimento dos seus profissionais cênicos. Faltam investimentos em nível local e federal e a ampliação do currículo de cênicas, incluindo o estudo do circo. Assim pensa Marcelo Bere, que fez pós-doutorado na Inglaterra, estudando palhaços. “Matérias sobre essa arte deveriam ser ensinadas como parte do 83
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virou uma constelação só”, afirma Marcelo. A professora de artes cênicas da Universidade de Brasília, Léo Sykes, é a diretora artística do Udigrudi e diz que a magia do circo revelas as grandes dificuldades de trabalhar com arte no país. “Talvez aí seja o lugar onde as contradições ficam mais à vista. Palhaço trabalha com isso, dizer o não dizível, mostrar o escondido, revelar as falhas, furos e fantasias”. Carência e riqueza Os profissionais do Artetude e do renomado Udigrudi refletem os artistas circenses de todo o Brasil. Ankomarárcio Saúde, do Artetude, luta com as contrariedades para exercer a sua paixão e conta da sua trajetória com um grande sorriso e brilho nos olhos. Ele é realizado e obteve sucesso profissional. A pequena Maria, que sonha em ser palhaça, é também público e representa todas as crianças que assistem encantadas aos números mágicos do picadeiro. Há quem retrate esse dualismo entre carência de incentivos e riqueza artistica. Mário Bolignesi é um deles. Pesquisador e professor no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, ele escreveu os livros Circos e Palhaços Brasileiros e Palhaços. “Olhe, há três décadas atrás, houve avanços. Incentivos como a cria-
Fotos: Thiago Soares (menino) e Acervo Artetude
ensino do teatro. O tema virou assunto de especialistas, apesar de ser um tópico tão popular. Os fazedores dos espetáculos hoje – os pequenos, médios e grandes circos e todos seus componentes, aqueles que fazem trabalho a sua vida ou seu hobby, aqueles que treinam e se apresentam – são, antes de mais nada, insistencialistas (sic)”. Marcelo é co-criador do Udigrudi. Criado em 1982, mas profissionalizado em 1986, com a compra da lona, é um dos pioneiros em circo teatro contemporâneo do Brasil. Um momento decisivo para a companhia foi a profissionalização. “Não era só arte: era comércio e nós passamos a ser vendedores de sonhos”. Em seus espetáculos, os palhaços também são músicos. Eles utilizam materiais reciclados para a criação de instrumentos musicais e possuem cenários interativos. A companhia viajou por diversos países da América e Europa e percorreu 20 estados brasileiros. Um dos elementos para o sucesso do grupo é a formação acadêmica e prática dos seus membros, que fazem os resultados artísticos alcançados mais ricos e refinados e ao mesmo tempo de grande espectro popular. O super Udigrudi não está isento do descompromisso do Estado com a produção artítica no Brasil: “No Udigrudi, quando a lona furava, a gente colava uma estrela. Com o passar dos anos, nossa lona
ção de prêmios de fomento à atividade circense nos três níveis: federação, estados e municípios. No tocante à formação, em âmbito nacional, a Escola Nacional de Circo ainda sobrevive. No entanto, os incentivos atuais são mínimos e limitadíssimos. A luta dos circenses é pela ampliação das formas de incentivo e fomento às atividades burlescas. Não houve avanços no que diz respeito à uma legislação de âmbito nacional no tocante à atividade circense”. Bolignesi reiterou a questão dos alvarás e dos impasses enfrentados ao chegar a um município. É no picadeiro que os profissionais com alma circense fazem a vida valer à pena. E é o olhar de plateia que falta ao poder público, quando não enxerga as infinitas realidades da vida e da cultura do povo, distante dos centros culturais e dos points de arte. Olhares emocionados com a artista no tecido, o riso que não se contém diante das palhaçadas e o espanto pelo risco do equilibrista, que não desaponta em cena. A vida dos homens e mulheres de circo que guardam na cartola as tristezas de ser um artista desvalorizado. O poema do ator Luís Gustavo, dedicado a Domingos Montagner, poetiza essa forma de viver e de ser, diante dos desequilíbrios:
“Acho que alguém disse aí na plateia que eu me desequilibrei. Não, eu não me desequilibrei. Eu tava brincando, não me desequilibro nunca. Eu brinco todas as noites com equilíbrio porque eu sou de circo. É sempre assim, eu sempre entro no picadeiro brincando, abrindo uma porta que dá para o infinito, iluminado por milhões de candelabros. Eu brinco, eu sou palhaço. Eu brinco, danço, eu ondulo, eu brinco com as crianças, eu quebro meu coração em direção ao risco porque eu sou de circo. Eu brinco com a vertiginosa audácia do trapézio. E lá no alto, no topo da lona, no meio de um salto mortal, sou capaz de roubar um holofote porque eu sou de circo. Sento no cavalo como quem senta numa poltrona, ando na corda como quem anda numa avenida, ando de bicicleta sem guidão, sem assento, sem pedal, sem roda. E com as mãos, eu dinamizo dezessete laranjas de tal forma que elas mais parecem estrelas iluminando o firmamento, porque eu sou de circo. Não, eu não me desequilibro. A alegria me alarga e eu vou do mineral a Deus. Como pode alguém achar que eu me desequilibro? Minha vida começou aqui nesse picadeiro e aqui ela não vai terminar nunca porque ela é maior que eu, só não é maior que meu circo.”
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Foto: Thiago Soares
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Cleiber de Carvalho Portugal e sua famĂlia, do Circo Real PortuguĂŞs.
Tempo infinito Por Hellen Resende
Encontrei com eles numa praça perto da minha casa, em Taguatinga-DF. Cheguei numa tarde de muito sol. Enquanto conversava com os artistas, caiu uma chuva forte. Quando fui embora, já havia estrelas no céu. Lá é assim, parece que o tempo é infinito, a gente se perde nas histórias de uma realidade distante da nossa. Recém-casados que dormiram debaixo do carro que quebrou na estrada; marido que fazia número de facas com a esposa, que torcia para que o amado estivesse de bom humor e com boa pontaria; circense que já foi acusado na rádio de dar gatos e cachorros de rua para os leões comerem; advogado que ia processá-los e se apaixonou por uma artista... É um universo, sim, fantástico, mas ao mesmo tempo muito real. As pessoas que estão ali são profissionais da magia. Elas levam os filhos à escola
e dividem tarefas. Ana lavava roupas quando a conheci. Há 15 anos, ela “fugiu com o circo”. O marido, Cleiber Portugal, é um dos donos do circo, neto de um saltimbanco que veio para o Brasil. Eles têm filhos pequenos que já se apresentam. Enquanto eu estava no trailer onde vive a família, pessoas chegavam, comiam biscoitos e participavam da conversa. “É uma irmandade”, escutei de alguém. Entender a opção por uma vida sem luxo e diferente da nossa é mais fácil quando a sentimos de perto. “Nós somos isso, somos de circo”, Cleiber encerrou. Eles se mantêm firmes como as estacas que seguram a lona. “Os 10 reais que as pessoas pagam para ver o espetáculo ao mesmo tempo que não valoriza os artistas, é a forma pela qual os pobres podem ter acesso”. Foi ouvindo essa frase sábia que me despedi, cheia de vida, do respeitável Circo Real Português. 87
Brenda Marques
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Capital
Feminina
Com bola rolando e força de vontade, time brasiliense incentiva futebol feminino a dar certo Por Karine Santos
Uma quadra comum, no meio de uma pracinha, sem cobertura. Em volta, uma grade de mais ou menos um metro. Do lado de fora, alguns bancos e uma menina, cheia de empolgação e suor diz: “Meu sonho é conhecer a Marta, eu passo o dia todo vendo vídeos dela jogando”. O nome dela é Brenda Marques e tem 11 anos, mesma idade de sua amiga Thaís Alves, que demonstra conhecer Brenda há muito tempo. “Quando nós duas éramos pequenas, nós jogávamos bola no meio da rua. Aí, me chamaram para vir para essa quadra jogar, e eu chamei ela”, relembra Thaís. Essa era a vista horizontal: Brenda, Thaís, uma quadra e mais um bocado de garotas jogando bola. Bastava uma olhada para cima e a realidade que se enxergava era outra: centenas de urubus. Há poucos metros dali, o maior lixão a céu aberto da América Latina, o Lixão da Estrutural. É lá que cerca de 40 meninas jogam futsal todos os sábados pela manhã. Meninas como Brenda e Thaís, que têm sonhos e que passaram a acreditar que eles seriam possíveis após o Capital Feminina Futebol Clube começar a fazer parte da vida delas. Tudo começou na 3ª série do Ensino Fundamental de Camilla Orlando Santana Veríssimo, que também nadava. Após algumas lesões, entretanto, teve que se decidir entre a grama e a piscina. O campo lhe instigou mais. Poucos anos depois, na sétima série, um amigo a incitou: falou
do futebol feminino nos Estados Unidos, que era para lá que ela deveria ir. E Camilla foi. Aos 22 anos de idade, conseguiu uma bolsa para estudar Educação Física na Lincoln Memorial University (Tennessee), e lá jogou três temporadas de futebol na maior liga universitária da América, a NCAA (National Collegiate Athletic Association). Em 2012, Camilla parou de jogar futebol, mas de alguma forma ela queria estar envolvida com a bola e fazer algo que incentivasse mais pessoas a não desistir do esporte. Foi aí que surgiu uma ideia, que pouco a pouco foi construída. No dia 8 de agosto, também de 2012, nasceu o Capital Feminina. O time é quase todo composto por mulheres, da presidente até as professoras, e pretende promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino. Camilla não está sozinha no negócio. Ela tem uma sócia, Monaliza Souza, ou Mona, como todas a chamam. As duas se conheceram quando jogavam no Cresspom (Clube Recreativo e Esportivo dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar do Distrito Federal), time de futebol feminino. Monaliza começou a jogar bola aos 8 anos, 89
no colégio. Só com mulheres, quando ela já tinha 18. “Tive sorte por entrar em um time muito bom na época, nele fui campeã brasiliense quatro vezes”. Além do Cresspom, Monaliza jogou no Minas e no Atlético Mineiro. “Meu sonho é ver time de base para tudo quanto é lado e oportunidade, que é a nossa missão: criar oportunidades para o maior número de mulheres ter acesso ao futebol. Para isso acontecer, precisa de programas, de projetos como o nosso, de programas dentro das escolas, precisa de incentivo, da parte da CBF, dos órgãos que realizam o futebol”, conta. We Love Soccer O esporte nos Estados Unidos, de maneira geral, é impulsionado desde a infância. Há categorias para crianças, times para ensino médio e superior, além de ligas amadoras, profissionais e semiprofissionais. A Seleção Americana de Futebol Feminino é uma das grandes potências mundiais. Elas já foram quatro vezes campeãs olímpicas, possuem três títulos mundiais e a melhor jogadora e melhor técnica do mundo são dos Estados Unidos. Quando Camilla voltou para o Brasil, queria tentar fazer com o que ela viveu em terras americanas também pudesse acontecer na vida de meninas em solo brasileiro. “Quando eu estava lá, queria muito que minhas amigas tivessem a mesma oportunidade que eu estava tendo”. Prometendo impulsionar os sonhos das garotas e dar maior 90
visibilidade ao trabalho delas, surgiu a ideia de aliar os treinos às aulas de inglês, pois um dos requisitos para conseguir uma bolsa nos Estados Unidos é saber o idioma americano, diz Camilla. “O que mais dificulta as brasileiras de irem para lá, não é a qualidade técnica do futebol, é o inglês”. Daí surgiu o We Love Soccer, curso ofertado gratuitamente para as meninas que participam do projeto social da Cidade Estrutural. Uma van busca as garotas para as aulas, que acontecem na Escola Americana na Asa Sul, duas vezes por semana. A Cidade Estrutural é considerada um dos locais mais violentos do Distrito Federal e é mais um daqueles lugares que sofrem com a desigualdade social, falta de estrutura e investimento. Segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios de 2013, os habitantes com Ensino Superior na Estrutural não chegam a 1% – e a maior parte da população, 47,29%, não concluiu o ensino fundamental. Em Brasília, 53,34% de sua população possui Ensino Superior completo e apenas 9,49% não concluiu o Ensino Fundamental. Trabalhos como o do Capital Feminina dão esperança a pessoas acreditarem em um futuro melhor. Roberta Duarte tem 15 anos e diz que os benefícios do projeto na vida dela são muitos: “Se eu não tivesse no futebol eu estaria em outra coisa, outra vida, o Capital dá várias oportunidades”. Além do projeto social, que é
voluntário, o clube também funciona como uma empresa, pois as sedes da Asa Sul e da Asa Norte têm fins comerciais. Mulheres Ser esportista nunca foi uma tarefa fácil para as mulheres, como explica o historiador Bruno Alves Dourado. “O futebol feminino encontrou bastante resistência no Brasil e no mundo. A figura da mulher sempre foi inferiorizada e menosprezada ao longo da história da humanidade e sua figura sempre considerada como frágil e incapaz de realizar coisas tal qual os homens faziam. Esse machismo histórico sempre foi um ledo equívoco no que diz respeito a capacidade da mulher em praticar esportes, dentre outras atividades. Ao redor do mundo, principalmente na Inglaterra, existiram diversos times femininos já na primeira metade do século XX, mas que foram proibidos de praticar o futebol justamente por essa consciência sexista que colocava a mulher como um ser frágil, dirigida somente aos trabalhos domésticos e fins reprodutores.” No Brasil, há apontamentos que dizem que o primeiro jogo oficial aconteceu em 1921, entre senhoras do bairro de Tremembé e Cantareira, da Zona Norte de São Paulo. Já outros dizem que o futebol como é praticado hoje, começou em 1958, com o time do Araguari de Minas Gerais. Na década de 1940, foi criado um decreto-lei do Estado Novo, que proibia a “pratica de esportes incompatíveis com
Fotos: Karine Santos
Com unhas pintadas e bola na mĂŁo, meninas se preparam para mais um treino.
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a natureza feminina”. Essa lei perdurou até 1979, porque o esporte praticado por garotas não agradava famílias conservadoras. Daniele Mendes tem 24 anos e uma longa história no futebol. Está terminando Educação Física, já jogou em vários times e hoje atua como lateral esquerda no time feminino do Gama. Para ela, mesmo essa lei não existindo mais, acabou atrapalhando a modalidade até hoje. “O futebol feminino está em evolução constante, a coisa que realmente precisa mudar é a visão dos dirigentes que tomam conta das instituições e a mentalidade das atletas que precisam evoluir, precisam se questionar, precisam ter profissionalismo, mudou bastante em relação ao que era antes. Para a modalidade avançar, a forma contratual deve ser modificada, não fazer só porque ama o futebol, são várias questões envolvidas.” Logo após a lei ser revogada, a criação de times
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femininos foi se espalhando. Um deles foi o Radar, time carioca que conquistou vários títulos dentro e fora do Brasil. A primeira seleção feminina foi convocada em 1988 e era composta exclusivamente por jogadoras do Radar. A partir daí o esporte na modalidade feminina começou a se desenvolver mais. A Fifa passou a criar torneios para as mulheres, como a primeira Copa do Mundo, que ocorreu em 1991, na China. O futebol feminino foi incluído nas olimpíadas de Atlanta em 1996, consolidando o esporte como relevante. Para Gustavo Dias, o incentivo às mulheres no esporte é mínimo até hoje. “Foi depois de vários embates por parte das entidades esportivas e das mulheres que algumas poucas decisões institucionais criaram campeonatos femininos de futebol no âmbito olímpico, da FIFA e da CBF. Hoje, é notável que o incentivo ao futebol feminino é praticamente nulo, apesar de existirem torneios
Ilustrações: Pedro Corrêa
Ao centro, Camilla Orlando, Presidente do Capital Feminina e a turma da Estrutural.
exclusivos voltados a elas (Libertadores, Copa do Brasil, Mundiais de seleções), nos quais ainda prevalece a mentalidade sexista/machista de que a mulher não merece igualdade de condições com o homem, seja salarial ou de estrutura. A prova é que somente no fim desse ano de 2016 é que uma treinadora mulher assumiu o comando da Seleção Feminina de Futebol.” A mulher ainda sofre preconceito em vários campos sociais. No mercado de trabalho, por exemplo, os salários ainda são desiguais. Esse cenário vem sendo derrubado a cada dia, acredita Monaliza. “É uma cultura que está mudando. Existe, mas não como antes. Antigamente era muito raro ver uma menina numa quadra. Hoje em dia, em qualquer quadra que você passa tem duas, três meninas jogando. No colégio, as elas conseguem jogar mais, é uma cultura que vem mudando e a gente está muito feliz com isso”, afirma a jogadora.
Brenda, Roberta e Thaís chamam Camilla e Mona de tia. A falta de carinho, ou carência, também são um pouquinho supridas nessas partidas de futsal. Essas garotas têm sonhos, como Camilla teve um dia. Brenda pediu numa cartinha que escreveu para o Papai Noel que o desejo de conhecer a jogadora Marta pudesse se realizar. Talvez ela o realize. Talvez, daqui há alguns anos, uma outra menina da Estrutural anseie conhecer a Brenda, que também quer ser jogadora de futebol, como Marta. Talvez sem o esporte e pessoas que acreditam nele, Brenda e milhares de outras pessoas nem pudessem sonhar.
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Fotos: Jhéssika Almeida
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À direita, Wiliam Martins, gari do Serviço de Limpeza Urbana do DF.
Profissionais do lixo Os excluídos necessários e o lixo desnecessário Por Jhéssika Almeida
o
lix O coletor de
Sorriso largo, mãos calejadas e a pele vermelha de tanto pegar sol. A aparência esconde a verdadeira idade, apenas 34 anos. O pique é de um maratonista, que entre uma cidade e outra, percorre as inúmeras ruas de Brasília para recolher o lixo depositados na porta das casas. Casado com Joana, William Martins é um pai atencioso que se preocupa em ensinar técnicas do futebol para o seu único filho. Desde pequeno, o gari gosta de futebol. Assim como a maioria das crianças que sonham em um dia se tornar um grande jogador, William também sonhava. Mas a realidade humilde fez com que ele abandonasse o sonho para buscar o seu sustento. William já trabalhou em supermercados, como pedreiro e até mesmo bicos. Até se tornar gari, passou por muitas dificuldades. Antes de trabalhar no Serviço de Limpeza Urbana do DF (SLU), entretanto, chegou
perto do antigo desejo: era professor numa escolinha de futebol. Nessa escolinha, ele pode aliar sua grande paixão à uma fonte de renda. Mas a realidade não demorou a chegar: William se viu obrigado a deixar o futebol quando a escolinha começou a enfrentar problemas financeiros até, finalmente, ser fechada. O trabalho executado pelo gari é de grande importância, uma vez que por meio dele a cidade fica limpa e organizada. “O lixo vai ficar na porta das casas trazendo doenças para as pessoas. Se a gente não fizer a coleta por dois dias, a cidade vira um caos”. Mesmo com a relevância do serviço, os trabalhadores ainda se sentem discriminados. “Às vezes, vejo as pessoas reclamando quando passa o caminhão ao lado, tampam o nariz e olham para a gente como se fossemos o próprio lixo”. Existem muitos riscos na profissão de gari, mas William garante que a empresa fornece
os equipamentos de segurança para os trabalhadores. Para ele, mesmo andando na traseira dos caminhões segurando apenas uma corda, a parte mais perigosa ainda é na hora de recolher os sacos. “Eu já me perfurei com uma seringa e não foi fácil. Tive medo de pegar alguma doença, sem contas as inúmeras vezes que já me cortei, com caco de vidro”, relata. O motorista Rafael Coelho, colega de trabalho de Wiliam, trabalha há dois anos na SLU. Durante esse tempo, afirma que aprendeu a respeitar a profissão. Rafael acredita que as pessoas ainda não enxergam o seu valor. Rafael Coelho diz que o amigo gari sofre mais discriminação por ficar muito exposto, os olhares são de desprezo. Ser coletor de lixo sem nenhuma dúvida não é uma tarefa fácil. Ao colocar o seu uniforme todos os dias, William Martins se destaca. Tem a habilidade de pegar os sacos de lixos com 95
agilidade e jogá-los com precisão no caminhão, enquanto fixa os olhos na próxima lixeira. Embora árduo, William acha seu trabalho gratificante, pois visa o bem-estar da população. Sem os Williams, o lixo não sairia das nossas casas, ficaria ali a espera de um destino, abarrotado de doenças.
de a r o d a t a c A
lixo
A sorridente Ernanda Maria de Jesus é bastante sonhadora. Atualmente é catadora, mas no futuro pretende ser bióloga ou quem sabe, até mesmo chefe de cozinha. Trabalhar em um lixão nunca foi o fim da linha, apenas o recomeço. A catadora, que está sempre olhando para os lados (costume que adquiriu depois que foi trabalhar no Lixão), encanta com a sua simpatia. A mãe de Ernanda trabalha em lixão há 25 anos, criou a ela e aos irmãos com o dinheiro de reciclagens. A família está dividida entre Bahia e Brasília, mas a maioria dela também vive da reciclagem de lixo. Ernanda veio para Brasília há dez anos, em busca de melhores condições de vida. A falta de escolaridade somada à falta de emprego na Bahia fizeram com que ela se mudasse de vez para a capital do país. Ernanda não via perspectivas em sua terra natal. Mãe de seis filhos, dois ainda de colo, a baiana arretada mora numa invasão próxima ao local de trabalho, chamada 96
de Santa Luzia. Talvez o lugar, onde falta saneamento básico e energia precise se chamar realmente assim, pois os moradores que ali vivem estão expostos a todo tipo de doença, ficando a mercê da sorte. Ernanda trabalha com separação dos resíduos sólidos no aterro controlado do Jóquei, ou Lixão da Estrutural. O Lixão funciona sete dias da semana e 24 horas por dia, a céu aberto, faça sol ou chuva. É até melhor que faça sol, pois, quando a chuva vem, o Lixão se transforma em um verdadeiro lamaçal, trazendo muitas possibilidades de infecções e de doenças. O dia a dia é frenético. Filas e mais filas de caminhões são formadas para recolher o que pode ser ainda útil. Para conseguir os melhores resíduos é preciso ser ágil. O catador de lixo é autônomo e sofre com os aspectos desumanos da sua profissão. Ao contrário dos coletores de lixo da SLU, sequer conta com materiais básicos de segurança, a não ser que os adquiram com os próprios recursos. O risco de acidentes e o medo de cortes com seringas e cacos de vidro é constante. Ernanda diz, com tristeza, que muitos catadores já morreram atropelados por estarem distraídos e não perceber a aproximação do caminhão de lixo. Além desses problemas, os catadores também correm o risco de não ter onde trabalhar quando o Lixão da Estrutural for desativado – o que deveria ter ocorrido em 2014, quando a Política Nacional de Resíduos
Sólidos determinou a extinção de todos os lixões do Brasil. O destino dos catadores é indefinido. “O governo não tem um local certo para colocar os catadores. Foram prometidos os galpões onde a gente iria trabalhar, mas até agora nada foi feito”, conta Ernanda. Ser catador é viver na incerteza, sem saber como será o dia seguinte.
Tecnólogo d o
lixo
Refael Luiz Aguilar sempre foi curioso, desde pequeno gostava de desmontar aparelhos. A partir de um curso técnico de informática, começou a aprimorar os seus conhecimentos e hoje é professor de robótica. Apesar de não ser exatamente um catador como Ernanda, é assim que ele se define. Refael Luiz é diferente. Ele enxerga, em meio aos aparelhos eletrônicos que as pessoas descartam, materiais essenciais para desenvolver outros equipamentos. Refael trabalha na Estação de Metarreciclagem da cidade de Valparaíso de Goiás, uma iniciativa da ONG Programando o Futuro. O papel dessa entidade é, por meio da coleta de lixo eletrônico, promover a capacitação profissional de jovens e adultos da própria comunidade, oferecendo cursos de informática, eletrônica de reparos e robótica livre. Na Estação de Metarreciclagem, Refael desenvolveu uma
Ernanda Maria de Jesus, catadora do lixĂŁo da Estrutural.
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Jean Carlos de Jesus se orgulha de trabalhar com lixo.
impressora 3D a partir dos resíduos de lixo eletrônico. O modelo criado por ele veio da tecnologia Rip Rap, desenvolvida por um grupo de americanos com código do protótipo livre (sem necessitar pagar por ele). As impressoras desenvolvidas por Refael estão sendo utilizadas para a montagem de peças para aviões de aeromodelismo para se tornar mais uma atividade entre os jovens e adultos da comunidade. “A gente consegue mostrar para a população até que ponto isso que a gente está utilizando é lixo”. Refael acredita que as pessoas descartam muito porque são levadas pelo consumismo e não pensam no impacto que isso causa ao meio ambiente. “Eu acho que nós, como sociedade, devemos pensar muito bem no lixo que nós estamos gerando cada vez que queremos algo novo”. O lixo eletrônico não pode ser descartado de qualquer maneira e o constante volume desse material afeta a reciclagem apropriada dos resíduos.
e
r verd o d e d n e e r p Em
Os tesouros da calçada que são lixo para uns podem ser riqueza para outros. É o que descobriu Jean Carlos de Jesus, que é empreendedor verde. Ele encontrou maneiras criativas de contribuir com o planeta, usando a reciclagem de lixo.
Jean Carlos de Jesus é bastante criativo, comunicativo e alegre. A paixão com que fala sobre o trabalho que realiza é motivadora. Catador desde os 8 anos de idade, morava em uma invasão na Asa Norte com a sua família. Desde cedo, ele percorria as ruas da cidade para fazer a reciclagem do lixo que encontrava, foi assim que aprendeu a importância da reciclagem dos resíduos sólidos. A decisão de se tornar empreendedor veio depois de participar de uma exposição sobre materiais recicláveis em São Paulo. Foi a partir daí que Jean e alguns colegas começaram a aprender e fabricar sapatos a partir dos materiais reciclados. Desse projeto dos sapatos vieram outros, como o das casinhas para crianças feitas de paletes de madeira usados para fazer caixotes de feiras e supermercados. Com essa ideia, Jean consegue faturar um salário mínimo por mês. As vendas cresceram e ele precisou criar redes sociais para vender e expor o seu trabalho. “Fazer do lixo um luxo: essa é a nossa ideia”. Além das casinhas, também são confeccionados pufes de pneus velhos. Os materiais que sobram dos aterros sanitários vão para a cooperativa Diversidade, em que Jean Carlos de Jesus trabalha. De lá, ele leva para o seu ateliê onde sai suas criações.
“A gente só quer ter uma identidade e que a sociedade abrace a nossa causa”. Para Jean, o ideal seria que as pessoas fizessem em suas próprias casas a reciclagem e reutilização dos materiais que elas mesmos produzem, pois cada material leva um tempo diferente para se decompor do meio ambiente. Mesmo que seja para ele motivo de orgulho, viver da reciclagem de resíduos é, sem nenhuma dúvida, uma profissão com diversos problemas. O empreendedor conta, com revolta e tristeza, a dificuldade que vem enfrentando para conseguir os materiais para a confecção das casinhas. “Grande parte dos materiais de qualidade são divididos com as grandes cooperativas e destinados para as usinas. Eles querem destinar o que sobra para os catadores”, denuncia. A indústria da reciclagem e reutilização oferece um grande potencial para o empreendedor verde. Mesmo nos ramos tradicionais da reciclagem de papeis, alumínio e plástico, ainda há diversas formas de reutilizar o lixo. Jean, Ernanda, Refael e Willian são apenas mais uns de tantos que enxergam no lixo transformação e sustento. Dignidade e respeito são, talvez, as únicas recompensas que a sociedade poderia retribuir a eles. Além de condições melhores de trabalho, pedem uma população mais consciente com o que descarta. 99
Fotos: Jordania Correia
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Malucos de BR Artesãos fazem do espaço público da rodoviária do Plano Piloto seu local de exposição Por Jordania Correia
Na Rodoviária do Plano Piloto, histórias se cruzam, culturas se chocam, línguas se confundem. Entre idas e vindas, chegadas e partidas, mais de 800 mil pessoas passam diariamente pelo coração de Brasília. A “torre de Babel” construída pelo arquiteto Lúcio Costa, inaugurada por Juscelino Kubitschek em 12 de setembro de 1960, é o elo entre o centro urbano da Capital e as cidades satélites que compõem o Distrito Federal. Entre tantos passageiros, há uma categoria especial, que não usa terno e gravata, não tem a barba aparada ou as unhas pintadas. Não se preocupa se o cabelo está bagunçado, tampouco se a saia combina com a blusa. Esses passageiros são vistos como hippies da rodoviária do Plano Piloto. Mas os “malucos de BR” ou “malucos de estrada” dispensam o uso do termo hippie. As roupas coloridas, os cabelos longos e despenteados não são meras coincidências com o movimento que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960, formado por jovens de classe média que se revoltaram contra os valores sociais de sua época e as desigualdades da sociedade capitalista. O que os “malucos de BR” querem, entretanto, se aproxima dos valores dos estrangeiros da contracultura: que seus direitos de manifestação cultural sejam respeitados. “A nossa luta é diária para ganhar respeito na rua. A gente não vive do artesanato pelo dinheiro, a gente vive por que a gente optou sair do sistema, por que o sistema é uma forma opressora. Vive-
mos em um país extremamente capitalista, a gente precisa do dinheiro para sobreviver. Mas a gente não está aqui na rua para sobreviver, a gente está aqui para viver cada momento. A gente vive o hoje. A gente vive o agora. Nós vivemos da arte”. Com essas palavras, Vitória de Jesus Santana, 18 anos, prega um dos lemas da “malucada”, como denominam o grupo formado por vários “malucos de BR”. Quem nunca ouviu “ei, moça, só um minutinho” ou “vem aqui dar uma olhadinha” não passou pelo ateliê construindo irregularmente na plataforma F da rodoviária. “Tem uma lei federal que os artesãos podem expor em qualquer praça pública. Mas aqui não é uma praça, a gente é teimoso, precisamos ganhar o nosso, aqui passa muita gente e tivemos que vir pra cá” . Assim, Gabriel Oliveira, 19 anos, justifica o motivo que o fez escolher o local. “Maluco de BR” de nascimento, Gabriel cresceu vendo o pai e a mãe fazendo pulseiras, colares e brincos. O filho de artesãos herdou o talento dos pais e aprendeu com eles a viver do artesanato. “A gente só vive da arte lá em casa, a única coisa que a gente tem para sobreviver é isso. Não roubamos, não matamos ninguém, só queremos um espacinho pra vender nossas coisas”. Não há permissão para ocupar a plataforma F. A rodoviária do Plano Piloto, como local público, não autoriza a comercialização de quaisquer tipos de produtos, a não ser que este esteja dentro das regularidades, ou seja, que o espaço utilizado
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Carrega o p Como se port Uma coroa, um Ou coisa q
Seu Epaú trabalhava no circo, mas trocou o picadeiro pela estrada.
seja consentido pela Administração da rodoviária. Dentre os pré-requisitos para concorrer a uma licitação e utilizar legalmente os espaços públicos do DF estão: ter moradia fixa e comprovação de renda. Estes são apenas dois critérios básicos que já eliminariam “os malucos de BR” de uma possível licitação. “Eles estariam aptos se preencherem os pré-requisitos”, explica a Gerente de Gestão de Território da Coordenação de Desenvolvimento da Administração Regional de Brasília (Codes), Bianca Lazarini. Outra solução apontada por Bianca para que eles pudessem comercializar de forma mais adequada seu material, são as feiras itinerantes. As feiras possuem uma licença eventual para que os feirantes exponhamseus produtos, com duração de uma semana a 30 dias. “É muito importante que os hippies se associem, que estejam organizados para ter direito a esses espaços, 102
porque antes a gente tinha ocupação de espaços discriminados por ambulantes e feirantes em vários locais públicos no DF, o que não é permitido. Essa pode ser uma possível saída para os hippies da rodoviária, se vincular a esses feirantes para que possam ter direito a um espaço nas feiras itinerantes.” A única associação que os “malucos de BR” fazem parte é a irmandade. Para se associar não tem burocracia, muito menos papelada. Joana D´Arc conheceu essa associação de perto. Ela veio de Manaus para trabalhar em Brasília como cuidadora de idosos, mas, chegando na capital, se deparou com uma realidade totalmente diferente. Além do combinado, tinha que lavar, passar e cozinhar. Com a promessa de receber R$ 1.300 por mês, Joana fez as malas, deu adeus a sua família e aterrissou no Plano Piloto. Foi na rodoviária que ela conheceu a “malucada” e por
peso da dor tasse medalhas milhão de dólares que os valha Paulo Leminski
Carla largou o emprego e escolheu o artesanato como modo de vida.
eles foi abrigada após sair do serviço de cuidadora de idosos. Já faz cinco meses que está fora de casa e ainda não sabe quando vai voltar. “Me acolheram porque eu estava na rua. Não posso voltar pra Manaus como eu vim pra cá, com uma mão na frente e outra atrás”, conta Joana. A Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) é responsável pela inspeção das atividades informais na rodoviária do Plano Piloto. Com base instalada na Administração da Rodoviária, a Agefis realiza um trabalho que visa combater a comercialização de produtos por ambulantes, e os “malucos de BR” se enquadram nessa categoria. “Primeiro orientamos, depois, se insistir, a gente faz a apreensão. O local que a lei permite que eles exponham é em evento cultural. A gente evita fazer apreensões e quando fazemos, levamos para o depósito e deixamos uma ordem de apreensão. Para retirar a mer-
cadoria tem que pagar o custo da operação que foi feita”, explica o Gerente de fiscalização da Agefis, Vitor Eduardo Perotto. O trabalho realizado pela Agefis levanta discussões entre a população, que se divide entre os que são contra e a favor das apreensões. “É um serviço exaustivo e muitas vezes as pessoas não entendem que é necessário para o seu próprio bem-estar. Se a gente permitir que os hippies e os ambulantes fiquem na rodoviária, daqui há uns dias ninguém consegue passar”, reforça o Gerente de Fiscalização. Porém, no dia seguinte, o cenário é o mesmo. Pano estendido no chão. Colares, pulseiras, cordões, anéis estão expostos. Na mochila, o alicate, um rolo de arame, sementes, cascas, madeira e pedras. São com esses produtos, que para alguns não possuem nenhum valor, que os “malucos de BR” tiram o seu sustento. Trabalham para a sua subsistência e o artesanato é a 103
única fonte de renda. “Todo dia é uma batalha. Aqui nessa rodoviária a gente não tem estabilidade, hoje a gente pode expor, amanhã a gente não sabe. Troca plantão dos policiais e a gente sofre muito mais preconceito”, desabafa Danilo Jamal. Jamal conhece muito bem o preconceito. Negro, nordestino e “maluco de BR”, está de passagem em Brasília e carrega na sua bagagem as lembranças do menino de Salvador que, agora, é um homem de 34 anos. Saiu de casa aos 16. Ele poderia ser mais um número nas estatísticas de criminalidade, mas ao invés disso, encheu uma cestinha de balas e, entre um ônibus e outro, conseguiu pagar sua faculdade de Letras. Após se formar, percebeu que a vida de servidor público tiraria a liberdade que sempre prezou, por isso decidiu viver de outra forma: viver do artesanato. Já são mais de oito anos na estrada, mas agora as viagens são mais longas do que as que fazia nos ônibus da capital baiana. Ao contrário de Jamal, Dariana Machado sonha um dia cursar medicina e não precisar viver do artesanato. A jovem, de 18 anos, divide com a mãe e a tia um lugarzinho no chão da rodoviária. Aprendeu a fazer artesanato na tribo indígena em que nasceu, nos rincões do Maranhão. Com 8 anos, conheceu a escola. Foi lá que aprendeu a falar português. Antes, a única língua que conhecia era a da sua tribo. Ela está cursando o 1° ano do Ensino Médio e divide o tempo entre as atividades 104
escolares e os brincos de pena que vende na rodoviária. Mas Dariana quer mais, quer um dia ser chamada de doutora. “Já tentei fazer outras coisas, mas a arte está no sangue, não tem jeito”, diz Brenda Rocha, “maluca de BR” há 25 anos, que sonha um dia ter um lugar em que possa expor seu trabalho. Nascida no interior do Ceará, descobriu seu talento ainda criança, nas aulas de artes. Com 51 anos de idade, o artesanato já lhe proporcionou algumas conquistas, como seu Epaú, com quem é casada há mais de 26 anos e o seu cantinho em Goiânia. Agora ela não vive mais como antes, sem rumo certo, sempre viajando. Brenda recorda dessa época e da dificuldade de criar os seis filhos no estilo de vida que escolheu. O coração sempre apertava quando chegava a idade escolar e tinha que deixar as crianças com algum parente. “Eu tinha que ver um futuro melhor para eles. Essa vida que eu levo, bem no fundo, não quero para os meus filhos. Quem vê de longe é lindo, maravilhoso, somos todos irmãos, temos uma vida sem preocupação. Mas quem tá dentro é totalmente diferente, vive-se em risco, trabalhamos pelo dinheiro, temos contas a pagar, temos que educar nossos filhos longe de nós”, conta Brenda. Para regulamentar o artesanato como profissão, foi criada a lei n° 13.180, sancionada pela ex-presidenta da república, Dilma Rousseff. Na lei consta que os artesãos terão direito a uma linha de crédito especial para
financiar a compra de matéria-prima. Por meio da Carteira Nacional do Artesão, que deverá ser renovada anualmente após a contribuição na Previdência Social, os artesãos terão direito também a aposentadoria, além da criação de um programa de formação, a Escola Técnica Federal de Artesanato. Por um lado, essa iniciativa ajudará muitos artesãos, mas por outro levanta questionamentos entre a categoria, se os pequenos artesãos terão condições de contribuir com a Previdência. Com 56 anos de idade, a rodoviária do Plano Piloto se tornou muito maior do que o sonho de Lucio Costa quando a projetou. Tornou-se muito mais do que Juscelino Kubitschek pensou na hora do seu discurso de inauguração, que dizia: “Em torno dessa magnífica plataforma, não tardará a instalar-se um centro borbulhante de vida, com as suas instituições de cultura, as suas salas de espetáculos, as suas lojas, as suas galerias, as suas vielas de porte veneziano, seus trevos, terraços e cafés, onde se encontrará o ambiente propício à vida em comum, o lugar de encontro, o convívio tão necessário ao citadino”. Esse lugar de encontro, que se tornou a rodoviária, é repleto de memórias, contos e fábulas. Os “malucos de BR” fazem parte desta história. Talvez alguns capítulos estejam apagados, mas eles seguem seu caminho, hoje na rodoviária do Plano Piloto, amanhã em qualquer outro lugar.
O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração Carlos Drummond de Andrade 105
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Fotos: CBMDF
Perto do fogo Durante o período de seca no Distrito Federal, militares do Corpo de Bombeiros auxiliam população na luta contra queimadas Por Álef Calado e Larissa Nogueira
Primeira quinzena de julho de 2016. Pássaros, atraídos pelas plantações de morango e jabuticaba, passeiam pelo quintal da chácara do agricultor José Bezerra da Silva, de 73 anos. Infelizmente, ele não compartilha da mesma euforia dos animais. José cruza a porta da casa humilde onde mora com a mulher e dois dos cinco filhos com mais um balde cheio de água nas mãos. O chacareiro tenta, a todo custo, apagar um incêndio iniciado no terreno vizinho que já se alastrava para dentro de sua propriedade e ameaçava parte do cultivo das frutas, cuja venda, em barraquinhas nas beiras de estradas, sustenta a família. Algumas semanas depois, José conta que o seu maior medo era o de acabar perdendo os frutos. Com a ajuda da família e dos vizinhos, ele conseguiu erradicar o fogo e salvar a plantação. Tudo parecia bem, quando uma queimada ainda maior atingiu, em cheio, a chácara. Quem completa a história é a dona de casa Francisca da Silva, esposa do agricultor. Mais uma vez, ele deixou a segurança do lar e, ao invés de chamar o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (CBMDF), saiu para combater as chamas, salvar o mundo. Despreparado, sozinho e assustado, José não teve sorte. Os restos mortais e o boné favorito do chacareiro foram encontrados, dois dias depois, por agentes do Instituto Médico Legal (IML).
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O incêndio que o vitimou foi apenas mais um dos 1.528 registrados no mês de agosto. Juntos, foram responsáveis pela destruição de aproximadamente 3,7 mil campos de futebol – ou 3.698,14 hectares. Ao todo, de janeiro a setembro deste ano, o CBMDF já registrou 5.835 ocorrências e a queima de 15.103,16 hectares de área florestal, cerca de 15 mil campos de futebol. De acordo com o Primeiro Sargento do batalhão, Joberth Borges Medeiros, a maioria dos Incêndios Florestais ocorridos na unidade federativa são provenientes de ações humanas. “De julho a outubro, nós registramos o maior número de ocorrências, justamente porque é o período de seca do DF. Além das causas naturais, que ocorrem devido à ação do calor ou de objetos que absorvem o mormaço e levem a mata seca a entrar em combustão, temos também a ação do homem, que incendeia lotes para realizar a limpeza total da área. Isso, sem falar, quando eles são causados por ação criminal”, explica. Ele fala ainda que todas as ocorrências têm a mesma importância e que a proporção do incêndio só é definida quando a equipe chega ao local. “O tamanho vai depender também do ponto onde ocorreu a ignição, das condições gerais da vegetação – se estava alta ou rasteira, completamente seca ou verde – e da eficiência da ação do corpo de bombeiro”, ressalta. No meio das chamas Ao identificar um foco de incêndio, independentemente do tamanho, a primeira atitude a ser tomada é isolar a área, pegar o telefone e discar 193. “Acontece de as pessoas tentarem apagar e não conseguirem. Além de perder um tempo valioso, as chamas acabam se espalhando e ganham força. Então, quando os bombeiros chegam, aquela pequena ocorrência já virou algo gigantesco”, adverte Joberth. Infelizmente, a dona de casa Sheila França não contou com a ajuda do Corpo de Bombeiros Militar quando um incêndio atingiu as casas de alguns condomínios onde ela mora, no Jardim Mangueiral. “Foram momentos difíceis e muito estressantes. Nós não tínhamos nenhum respaldo do CBMDF, que estava ocupado tentando apagar 108
outras duas queimadas. Tudo ficou por conta dos moradores dos condomínios. Da janela da minha sala dava para ver as labaredas altíssimas se aproximando dos quintais das casas. As pessoas corriam desesperadas de um lado para o outro procurando baldes e mangueiras para tentar apagar o fogo. Foi assustador”, relata. Sheila conta que o calor era insuportável e que a mistura de fumaça e fuligem tornava o ar praticamente irrespirável. “O fogo queimava com força, parecia estar com raiva e nós não estávamos conseguindo detê-lo. Vi alguns vizinhos desesperados, tentando, a todo custo, salvar as casas vazias. Enquanto os homens capinavam a lateral do condomínio, tentando impedir que as chamas se espalhassem ainda mais, nós tentávamos contato com os bombeiros. A única informação que conseguimos foi a de que um monomotor com água já estava sobrevoando o local, mas teríamos que aguardar porque as duas viaturas disponíveis ainda estavam atendendo as outras ocorrências”, lembra Sheila. Com relação ao atendimento do órgão, Joberth relata que o CBMDF trabalha por demandas prioritárias e que cada quartel tem uma equipe especializada para atender determinados casos. “A gente não pode deixar de atuar em outras ocorrências, por isso, agimos de forma estratégica. As unidades de praticamente todas as cidades satélites têm pessoal pronto para dar resposta a incêndios florestais. Além disso, também temos guarnições específicas para efetivar esse combate utilizando viaturas ARF, ABTF e AT”. Dependendo das condições do local e do tamanho da ocorrência, o CBMDF pode solicitar a ajuda de uma aeronave para combater as chamas. “O uso do veículo varia muito do tipo e do horário do incêndio. Se tivermos um horário complicado, mais quente, e em mata densa, por exemplo, as chamas vão ser maiores. Decorrente disso, a gente precisa da aeronave para pulverizar com água, baixar essas chamas e possibilitar o bombeiro chegar perto para efetivar o combate.” Apesar de trabalharem por quase três horas, Sheila ressalta que a ajuda dos bombeiros foi crucial para que eles conseguissem apagar o fogo. “A retirada do matagal acabou surtindo efeito e, com
Extinção e rescaldo são as últimas etapas de combate aos incêndios.
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a ajuda do batalhão, conseguimos conter o fogo. Ainda assim, foi necessário que algumas famílias saíssem de casa por conta da fumaça. Depois que tudo se acalmou, mais precisamente no outro dia, fui até um dos locais atingidos e percebi que tudo era puro carvão”, conclui. Renovação pelo fogo O Distrito Federal passou por períodos de estiagem que somam 120 dias sem chuva. As precipitações, que deveriam “desembarcar” na segunda quinzena de setembro, acabaram atrasando um pouco e chegaram só em outubro. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), o período de seca que assolou o Distrito Federal foi um dos maiores já registrados. O dia 14 de setembro foi o mais quente do ano na capital federal, quando os termômetros chegaram a marcar 34,2ºC, e a umidade relativa do ar ficou abaixo dos 20%. Durante a escassez, o Cerrado é um dos biomas mais atingidos. As pequenas árvores de troncos retorcidos, folhas grossas e vegetação rasteira do ecossistema são, frequentemente, alvo das chamas, graças a características naturais, como a predominância de altas temperaturas, o clima predominantemente seco, a baixa umidade relativa do ar e a própria configuração da flora. Descargas elétricas, tocos de cigarro arremessados pela janela do carro, e até mesmo o atrito entre rochas podem gerar faíscas e iniciar incêndios de proporções catastróficas. Um estudo feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostra que as vegetações são as mais afetadas pelos incêndios florestais; aproximadamente 82% dos focos registrados no mês de maio se concentravam nessa região. O que pouca gente sabe é que as chamas, dependendo da proporção, não são assim tão prejudiciais para o ecossistema e até colaboram para sua manutenção. Os troncos mais grossos, acostumados com as incidências, possuem folhas revestidas de súber, uma espécie de tecido feito de 110
células mortas que age como isolante. A vegetação predominante no Planalto Central é conhecida como a fênix dos biomas, por ser capaz de se recuperar de condições extremamente desfavoráveis em um curto período de tempo. Além disso, o fogo contribui para a germinação de algumas espécies de sementes impermeáveis, que necessitam de choque térmico para sair da chamada dormência vegetativa, condição que impede o florescer do grão. A elevação na temperatura acarreta riscos na casca, favorecendo a penetração da água e iniciando o processo de germinação. A Caliandra, uma das mais delicadas e belas flores do cerrado, por exemplo, chama atenção no meio da vegetação seca por conta das cores vibrantes de suas pétalas e floresce uma semana depois de queimadas. Prevenção Um dos maiores planos de prevenção a incêndios do Distrito Federal é a operação Verde Vivo, promovida pelo CBMDF. O programa acontece durante o período de seca e promove palestras em escolas e em regiões onde há chances de queimadas com o objetivo de conscientizar a população sobre a importância de não enfrentar as chamas. O batalhão promove ainda oficinas de produção de abafadores para pessoas da comunidade rural. O trabalho do Corpo de Bombeiros com o Verde Vivo é crucial para que casos como o de Manoel da Paixão, 64 anos, que morreu carbonizado ao tentar apagar um incêndio próximo a sua residência, no setor de chácaras do Park Way, não voltem a acontecer. “Ele falou para minha avó que estava indo apagar o fogo e que já voltava. Minha avó se preocupou porque as chamas já estavam muito altas e foi para o meio da roça atrás dele. No caminho, ela encontrou um dos meus tios, que avisou para ela o que tinha acontecido”, conta a assistente de serviço gerais Eliane Santos, neta da vítima. “Ele saiu para apagar o incêndio e não voltou mais”, lamenta.
Evite Tragédias Princípios de incêndio
Mantenha a calma e avise todas as pessoas presentes no local. Ajude-as a deixar o ambiente, devagar, para não criar pânico
Se o fogo é pequeno e está relativamente controlado, você pode tentar apagá-lo com baldes de água ou usando um extintor veicular
Não tente salvar objetos próximos ao fogo Não fique muito próximo às chamas. Mesmo que você não se queime, a fumaça tóxica pode fazer muito mal a saúde
Mantenha a calma e abandone o local imediatamente
Cubra o rosto com uma camiseta e evite respirar a fumaça. O ideal é usar um pedaço de pano molhado para cobrir a boca e o nariz
Ilustração: Pedro Corrêa
Dê preferência às escadas de emergência. Os elevadores podem parar a qualquer momento
Se você estiver sentindo algum mal estar, informe ao corpo de bombeiros
Cubra o rosto com uma camiseta e evite respirar a fumaça.
Do lado de fora, chame os bombeiros e informe as proporções do incêndio Quando o socorro chegar, informe se ainda existem pessoas no local e afaste-se
Incêndios maiores
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Pouca água
para muita gente
Para não sofrer com racionamento, o brasiliense está aprendendo a ser responsável pela própria água Por Pedro Grigori
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Pensionista, Maria da Conceição, 63, recebe do governo um salário mínimo por mês. Dona de um grande lote na QSD 55 de Taguatinga Sul, completa a renda alugando duas quitinetes no imóvel e vendendo roupas usadas em um bazar. Ao todo, moram 11 pessoas na residência, o que faz a conta de água pesar. Em outubro de 2016, por exemplo, foram consumidos 42 mil litros de água, totalizando um valor de R$ 390,27. Neste ano, Maria se viu obrigada a diminuir a despesa, porque pela primeira vez, a casa sofreu com o racionamento de água. “Moro aqui há mais de 20 anos, e nunca tive que ficar com medo de abrir a torneira e não sair nada, agora isso acontece”, desabafa. Para diminuir o uso, a mulher tenta de tudo. Limitou o número de
lavagens de roupa, reaproveita a água do tanque e agora todos do lote passam menos tempo no banho, mas, mesmo assim, a conta não apresenta grande diferença. “Não sei mais onde posso economizar”. O quadro da moradora de Taguatinga Sul não é único. Racionamento de água, chuva cada vez menos frequente, pouco investimento do governo na captação de recursos hídricos, na contramão do aumento anual da população, está deixando de ser o futuro da capital federal e se tornando o presente. Em 2016, O Distrito Federal passou pela maior crise hídrica da sua história. O Reservatório do Descoberto, principal responsável pelo abastecimento da capital, ficou pela primeira vez com o volume útil abaixo dos 20%.
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Para 2017, a previsão não é animadora. O assessor de Projetos Especiais da Caesb, Klaus Neder, relata que a expectativa é que, daqui para frente, a situação só piore. “A cada ano os reservatórios saem do período da chuva com um nível de água menor do que no ano anterior, e assim ficam mais propícios a enfrentar baixas ainda mais severas no próximo período de seca”, explica. Entre as propostas da Caesb para normalizar o abastecimento da capital, está a utilização das águas do Corumbá IV. O projeto trará um aumento de 29,4% na oferta diária de água no DF e tem previsão de conclusão para julho de 2018, totalizando um investimento de R$ 275 milhões. Enquanto isso, a alternativa que resta ao brasiliense é depender cada vez menos da concessionária de água local. Entre as possibilidades para isso, desde o século passado, arquitetos desenvolvem projetos cada vez mais modernos para colar o selo de sustentável nas obras que produzem. Do começo dos anos 2000 para cá, esses programas começaram a ser implantados no Distrito Federal, e estão se tornando cada dia mais acessíveis para a classe média. A pensionista Maria Aparecida, por exemplo, poderia aproveitar o lote grande para instalar um sistema de aproveitamento da água da chuva, ou talvez, viabilizar um projeto de reaproveitamento de águas cinzas, dois tipos de propostas bem sucedidas para diminuir o consumo mensal. 114
Do céu Mesmo sendo localizado no cerrado brasileiro, no período de chuva, o Distrito Federal sofre com a água que alaga e causa transtornos. Temporais, que em determinadas épocas do ano são suficientes para transformar as vias da Asa Norte em cachoeiras, somem por meses, e depois fazem falta. Segundo o arquiteto e pesquisador na área de arquitetura bioclimática e sistemas sustentáveis Mário Viggiano, o líquido que escorre pelo telhado e vai bueiro abaixo está sendo desperdiçado. “A água da chuva é boa, é limpa, e se bem tratada, pode ser utilizada para diversas atividades dentro de uma residência. E a população tem que ter consciência disso”, afirma. Pensando nisso, ao comprar uma residência no Gama Oeste, o biólogo Márcio Rubens, 34, decidiu gastar um pouco mais e investir num projeto que aproveite as águas pluviais. “No meu trabalho, mexo muito com a natureza, então sentia uma cobrança interior para fazer algo que trouxesse uma diminuição do meu impacto na Terra”, diz. A infraestrutura escolhida contém calha, filtros, um reservatório e um sistema de abastecimento. Foram instalados no quintal da residência dois tanques de 50 mil litros cada, e durante os períodos de chuva, o biólogo consegue captar até 100 mil litros de água. Nesse esquema,
a água da chuva cai no telhado e escorre até a calha, onde é captada. Depois, passa por uma espécie de peneira, que impede que folhas e impurezas maiores desçam o cano. Segue para o primeiro filtro, e depois é armazenada em um reservatório, e bombeada para uma caixa d’água especial, que distribui o líquido para os locais ideais. Após a filtragem, a água da chuva pode ser utilizada para regar plantas, dar descarga e lavar calçadas, áreas externas e roupas. Infraestruturas completas, como a de Márcio, chegam a custar de R$ 5 mil a R$15 mil, variando de acordo com o tamanho do lote. “Na minha antiga casa, com três pessoas, pagava cerca de R$ 130. Hoje, em épocas de chuva, nunca mais passou dos R$ 90”, conta. Para quem não pode gastar tanto, existem padrões de projetos mais acessíveis, contendo apenas a calha, um filtro simples e reservatório de abastecimento de até 100 litros, com gastos inferiores a R$ 1 mil. O morador de Santa Maria, Josue Lopez, 35 anos, tem em casa um programa simples que custou pouco menos de 500 reais, e foi instalado sem muito trabalho. O barril que armazena a água tem 60 litros, utiliza-
imagem: Bikku/ Visual
dos para lavar a área da casa e a calçada. “Ao comprar a casa onde estou morando agora, percebi que havia calhas no telhado.Então, conversei com um amigo arquiteto que me indicou um esquema simples, onde só precisei comprar uma espécie de coador, um filtro simples e um barril. Não traz grande impacto na conta de água, mas já é um consumo que eu evito”, afirma Josue. Seja em grandes ou pequenos projetos, o aproveitamento de águas pluviais está ficando cada vez mais comum no Distrito Federal. A arquiteta Tânia Fernandes, especializada
em infraestruturas com consciência ambiental, conta que residências grandes no Park Way e chácaras no Lago Oeste são os locais da capital onde os mecanismos são mais instalados. “Quanto maior for o telhado da casa, mais água poderá ser captada. Por isso, a instalação em lotes grandes é mais proveitosa. No começo, o investimento pode ser alto, mas é um valor que, a longo prazo, retorna para o cliente por meio da redução das contas de água”, reforça. Tendo métodos completos de aproveitamento da água da chuva em casa, a redução do consumo e do valor da conta
de água pode chegar a 50%. O tamanho e o formato do projeto não devem ser escolhidos aleatoriamente. Ao surgir o desejo de instalar uma infraestruturadessas em casa, o cidadão deve entrar em contato com um arquiteto, que irá fazer um estudo para identificar qual tipo de projeto é mais adequado para a residência onde ocorrerá a instalação. “Mostramos diversas opções para os clientes, que, na maioria das vezes, são conquistados pelo custo benefício que as propostas trazem. Porém, sempre tento vender a ideia de uma maior consciência ambiental, pois já 115
é visível que a nossa água potável está acabando. Então, precisamos usar nossos recursos do modo mais inteligente possível”, aconselha Tânia. Outra vantagem desses projetos pluviais é que eles não necessitam de uma grande obra para serem instalados. Esquemas mais simples podem ser anexados sobre o solo, e mesmo os mais complexos não necessitam que os reservatórios sejam submersos. Reaproveitamento Com período de chuvas cada vez menores,os sistemas pluviais seriam bastante úteis por três meses do ano, mas não auxiliariam na época da estiagem. “Há 20 anos, era possível re-gistrar chuvas impactantes em pelo menos seis meses do ano, hoje, esse período se resume a novembro, dezembro e janeiro”, relata o assessor de Projetos Especiais da Caesb, Klaus Neder. Porém, para esse período, esquemas para reutilizar águas cinzas podem ser usados para dar uma força no
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abastecimento das residências. As águas cinzas são líquidos que, se bem tratados, podem ser reaproveitados dentro do lote. O pesquisador Mário Viggiano é responsável pela criação de itens utilizados em projetos para reutilizar esses líquidos, e garante a qualidade do material final, mas relata que é um procedimento bem mais trabalhoso. “Por ser originada de lavagens e banhos, a água cinza possui pelos de roupa e os mais diversos tipos de resíduos corporais de humanos, o que obriga a filtragem a ser muito mais rígida”, explica. A água cinza, após o tratamento, é indicada para descargas em vasos sanitários e principalmente regagem de jardins. “Mesmo após passar por tantos filtros, a água sai da instalação cheia de nitrogênio, e com um odor um pouco forte. Particularmente, indico o sistema para irrigação de certos tipos plantas de jardins que necessitam desse elemento”, conta o pesquisador. O advogado Ricardo Passos, 53, comprou um lote no Lago Sul há sete anos, e antes de construir, decidiu que a obra contaria com infraestruturas que diminuíssem o consumo de água da concessionária. Portanto, instalou em casa um sistema de aprovei-tamento da água que capta até 120 mil litros, e um reservatório de águas cinzas tratadas com capaci-dade de armazenar até 8 mil litros. “Optei por esses sistemas porque queria reduzir o valor da minha conta de água, diminuir o impacto da minha
família no meio ambiente e valorizar o meu imóvel”, explica o advogado. Após passar pelos filtros, as águas cinzas da casa de Ricardo são usadas para regar o jardim do advogado, que destaca a economia que o projeto traz: “Minha casa possui grandes jardins e alimentá-los era uma atividade que gastava muita água potável. Com esse esquema, além de economizar na conta, tenho na consciência que estou poupando mensalmente milhares de litros de água potável que agora podem ser utilizados para consumo”. Porém, reutilização de águas cinzas no Brasil ainda não é algo barato, variando de R$ 10 mil a R$ 20 mil. Infraestruturas como essas são indicadas principalmente para quem ainda está construindo, pois parte do mecanismo tem que ser instalado embaixo do chão. Os filtros, de carvão e areia, desgastam com o tempo, e precisam de, em média, duas trocas por ano. “Faço duas manutenções no sistema por ano, apenas para trocar os filtros, que custam valores irrisórios perto da economia que consigo”, relata Ricardo. No exterior, esses sistemas são usados há décadas e, devido a apoio do governo, já não custam tão caro. Nos Estados Unidos, várias normas e leis têm sido criadas visando a permissão e incentivo do reuso das águas cinzas. Por lá, a prioridade é o reutilizá-la por meio de irrigação subterrânea, e vários estados possuem cartilhas que auxiliam a montagem e implantação de sistemas. Em 1995,
Foto: Marco Peixoto
Klaus Neder diz que chuvas impactantes no DF reduziram em, pelo menos, trĂŞs meses.
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por exemplo, o Department of Water Resour-ces da Califórnia já lançava um catálogo chamado Graywater Guide (“Guia de águas cinzas”, em tradução livre), que indica onde usar do líquido após a filtragem. Regularidade No Brasil, ainda não existe legislação sobre programas de reutilização de águas cinzas. Sobre aproveitamento de água das chuvas, existe apenas uma norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a NBR 15527, que mostra onde a água pluvial deve ser utilizada após a filtragem. O advogado Ricardo Passos conta que, ao realizar a construção da residência onde mora, recebeu várias visitas de fiscais da Caesb para verificar os sistemas, e que, algumas vezes, até tentaram embargar a construção. “Entrei em contato com a concessionária para descobrir o motivo da tentativa de embargo, pois não havia nenhuma lei que eu estava descumprindo, na realidade, não havia nenhuma lei nem que eu deveria seguir”, relembra. Segundo o pesquisador Mário Viggiano, que apresentou Ricardo aos sistemas disponíveis no mercado, essa censura da Caesb acontece porque esses são esquemas que diminuem a venda de água da concessionária. “Se uma família usa 20 mil litros de água por mês, e 118
com sistemas assim consegue captar 20 mil litros de água, ele só comprará da concessionária a água potável que consumirá. Então, a empresa que antes recebia valores entre 100 e 200 reais de conta de água, de uma hora para a outra receberá R$ 50. Eles não querem isso, independente da economia de água, o que eles se importam é com o faturamento”, denuncia Mário. Segundo o diretor da Caesb, Marcelo Teixeira, o órgão não se opõe a reutilização de água, seja a da chuva ou a cinza. “Nessa época de escassez hídrica que vivemos, são alternativas válidas para reduzir o consumo de água”, reforça. Marcelo, no entanto, faz algumas ressalvas e recomendações. “A água da chuva, ao passar pelo telhado, carrega uma série de partículas de sujeira que inviabilizam o consumo. Caso passe por algum processo de tratamento, decantação e desinfecção, também pode ser usada para lavar louças e roupas, mas nunca para consumo. É muito arriscado”, diz o diretor. Apesar de não se opor ao uso desses recursos e tecnologias, a Caesb não assume responsabilidades quanto a eles. “Se alguém faz, é por livre desejo e interesse. Nós não fiscalizamos e não damos certificados a quem quer que seja sobre a qualidade dessa água”, relata. Representante do Conselho
de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal (Cau-DF), o conselheiro Rogério Markiewicz assinala dificuldade de relacionamento com a concessionária de água e o governo do DF. “Fica muito difícil ter um diálogo com o governo sobre isso. O Cau incentiva e apoia essas medidas sobre sustentabilidade e educação ambiental, mas precisamos de ajuda governamental para tornar essa prática mais usual”, declara. Para o pesquisador Mario Viggiano, os sistemas são seguros se a instalação for bem planejada. “Antes de começar a obra, é importante fazer separação da água, para que a potável não entre em contato com a reutilizada, e desmembrar o sistema de esgoto, para que as águas cinzas que serão filtradas não entrem em contato com o material que sai do vaso sanitário e da cozinha”, finaliza. Mais importante do que a diminuição na conta de água, ter instalado em casa um esquema como esses traz segurança. Em 2016, foram seis cidades do DF que sofreram com problemas de racionamento diários, número que deve apenas aumentar ano após ano. Sem garantias seguras de melhoras na situação hídrica, a única alternativa do brasiliense se tornou depender cada vez menos da água fornecida por empresas públicas.
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NĂŁo deve ser reproduzido - Magritte - 1937
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. José Saramago
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Jenipapo
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