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Como citar esse texto: ALEGRIA, João. A pele dos muros: grafites e representações sociais. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: http://joaoalegria.webnode.com. Acessado em [inserir a data].

A pele dos muros: grafite e representações sociais. João Alegria

Grafite: palavra, frase ou desenho, geralmente de caráter jocoso, informativo, contestatório ou obsceno, em muro ou parede de local público. (Dicionário Aurélio) Introdução

Este texto busca representações sociais do grafite.1 O grafite está relacionado a um fenômeno social em expansão, no campo das culturas jovens, conhecido como movimento hip hop. Ao lado de uma maneira de dançar, cantar e vestir-se – o brake, o rap e o estilo b-boy, outras formas de expressão do hip hop – o grafite busca expressar uma “visão de mundo” que os envolvidos com o hip hop pretendem afirmar perante a sociedade. Mas, qual conhecimento coletivo, ou seja, que representações sociais têm sido produzidas a partir da convivência cotidiana com os grafites, nas ruas das grandes cidades? Para dar conta de um processo social singular, ao qual o hip hop, no Rio de Janeiro, está relacionado, fomos buscar auxílio nas investigações daqueles que se dedicaram a decifrar o universo funk carioca. Com esse intuito, procedemos à leitura de livros e artigos dedicados ao tema, bem como às contribuições dos que se ocupam dessa expressão cultural enquanto processo de produção de identidades. Se a literatura especializada nos deu acesso ao contexto sócio-cultural a que nos referimos acima, ancorando o trabalho em determinadas “visões do real”, por outro lado, a realização de entrevistas, junto a diferentes sujeitos sociais, foi fundamental para que pudéssemos apreender as representações sociais relativas ao grafite. Afinal, as representações sociais ...circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens midiáticas, cristalizadas em condutas e em organizações materiais e espaciais (Jodelet 2001:17-18). A ferramenta teórica de que nos valemos — a noção de representações sociais — foi proposta pelo pensamento de Serge Moscovici e vem sendo desenvolvida por vários pesquisadores. Nosso objetivo não é produzir uma explicação definitiva para o fenômeno em questão, nem indicar o estudo das representações sociais como o único caminho para compreender os grafites. Neste texto, o próprio pensar sobre uma determinada experiência está sendo assumido como ...prácticas socioculturales cambiantes, complejas, fluidas... que, a um só tempo,


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...crean y son creadas por las identidades sociales en un juego continuo de interacciónrepresentación-acción (Massoni 2002:136). Tratamos com objetos de estudo …que en realidad son procesos. Portanto, aqui ...nos interessamos por uma modalidade de pensamento, sob seu aspecto constituinte - os processos - e constituído - os produtos ou conteúdos. Modalidade de pensamento cuja especificidade vem de seu caráter social (Jodelet 2002:22). As representações sociais

Sempre há necessidade de estarmos informados sobre o mundo à nossa volta. Além de nos ajustar a ele, precisamos saber como nos comportar, dominá-lo física ou intelectualmente, identificar e resolver os problemas que se apresentam: é por isso que criamos representações. Frente a esse mundo de objetos, pessoas, acontecimentos ou idéias, não somos (apenas) automatismos, nem estamos isolados num vazio social: partilhamos esse mundo com outros, que nos servem de apoio, às vezes de forma convergente, outras pelo conflito, para compreendê-lo, administrá-lo ou enfrentá-lo. Eis porque as representações são sociais e tão importantes na vida cotidiana. Elas nos guiam no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretar esses aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma defensiva. (Jodelet 2001:17) A noção de “representação”, como um conhecimento produzido coletivamente e capaz de produzir ordenamento social, foi desenvolvida pelos sociólogos, principalmente a noção de “representações coletivas”, de Émile Durkheim, da qual se valeram os intelectuais franceses por anos a fio. Durkheim foi quem “inventou” o conceito, na medida em que lhe deu contorno teórico e reconheceu-lhe o direito de explicar os mais variados fenômenos sociais. Para o fundador da sociologia, as representações são fruto de uma “inteligência única”, acima de todas as inteligências individuais. Uma inteligência do corpo social, ...correspondendo à maneira pela qual esse ser especial, que é a sociedade, pensa as coisas de sua própria experiência. Uma representação coletiva é homogênea e vivida por todos os membros do grupo, da mesma forma que eles partilham uma língua. Ela tem por função preservar o vínculo entre eles, prepará-los para pensar e agir de modo uniforme. Ela é coletiva por isso e também porque perdura pelas gerações e exerce uma coerção sobre os indivíduos, traço comum a todos os fatos sociais (Moscovici 2001:47). Após a Segunda Grande Guerra, a noção de representações coletivas teria caído em desuso, desaparecido das ciências humanas, não fosse a dedicação dos historiadores Duby e Le Goff à história das mentalidades. É quando, a partir do final da década de 1950, Moscovici retoma as “representações coletivas” de Durkheim desenvolvendo uma teoria das representações sociais no campo da Psicologia Social (Alexandre 2001:111).


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A retomada do conceito de Durkheim, que Moscovici protagonizou em companhia de um reduzido grupo de psicólogos sociais, deu-se a partir de um novo enfoque: o de estudar os comportamentos e as relações sociais sem deformá-las nem simplificá-las. Partindo do próprio texto de Durkheim, Moscovici explica onde buscou inspiração para definir um projeto e um campo de estudos para a Psicologia Social: ...quanto às leis da ideação coletiva, elas são ainda mais completamente ignoradas. A Psicologia Social, que deveria ter como tarefa determiná-las, não é mais do que uma palavra que designa toda sorte de generalidades, variadas e imprecisas, sem objeto definido (Durkheim apud Moscovici 2001:60). É em busca desse objeto de estudos, que ele passou a chamar de “representações sociais”, que parte Moscovici. Moscovici usou pela primeira vez a expressão num estudo sobre representações sociais da psicanálise, realizado na década de 1950 e intitulado Psychanalyse: son image et son publique. Esse mesmo estudo foi publicado no Brasil apenas em 1978, sob o título A Representação Social na Psicanálise. As proposições de Moscovici abrem novas perspectivas nas Ciências Sociais, na medida em que suas formulações ressaltam os processos cognitivos coletivos e não apenas individuais, identificando as dimensões que permeiam a apropriação dos conhecimentos científicos e ideológicos, transformando-os em realidades sociais e instrumentos próprios de uma coletividade, no estabelecimento da comunicação social e integração interpessoais. (...) Para ele, a Psicologia Social deve se interessar pela cognição social, isto é, pela criação, entre os indivíduos, das representações consensuais do universo. (Alexandre 2001:123) Porém, Moscovici acrescenta que a revolução provocada pelos meios de comunicação de massa e a difusão dos saberes científicos e técnicos transformam os modos de pensamento e criam conteúdos novos. É preciso ajustar a Gramática, encurtar o trajeto lógico, semear o discurso de imagens vivas, a fim de tornar o sentido compreensível, tangível (Moscovici 2001:60-61). Assim, como se acha formulado na obra de Jodelet (2001), a representação social é ...sempre representação de alguma coisa (objeto) ou de alguém (sujeito). A representação estabelece com o seu objeto ...uma relação de simbolização (substituindo-o) e de interpretação (conferindo-lhe significações). Para a autora, toda representação social ...é uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social (Jodelet 2001:22). Esse saber contido na representação social será qualificado como um saber prático, que ...se refere à experiência a partir da qual ele é produzido, aos contextos e condições em que ele o é e, sobretudo ao fato de que a representação serve para agir sobre o mundo e o outro... Es-


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sas questões podem ser condensadas na seguinte formulação: ...quem sabe e de onde sabe? O quê e como sabe? Sobre o que sabe e com que efeitos? (Jodelet 2002:27-28). Antes de passarmos a uma descrição metodológica, à caracterização do grupo pesquisado e à busca de representações sociais, nos moldes do referencial teórico que acabamos de expor, engendradas pelos grafites, nosso campo empírico, ––, parece-nos oportuno buscar a origem, história e inserção sócio-cultural do movimento hip hop no Rio de Janeiro. Do blues ao hip hop

O hip hop me faz entender, viver consciente e de cabeça erguida, não me abater, aprender a viver e ser um homem positivo, refletir no que eu faço, olhar meu espaço e o chão onde piso... (Leo e Xhacal, apud Souto 1997:59) A origem, como informa o antropólogo Hermano Vianna (1997)2 está nos anos 1930/40, quando grande parte da população negra norte-americana migrava do Sul para os grandes centros urbanos do Norte dos Estados Unidos. O blues, até então uma música rural, se eletrificou, produzindo o rhythm and blues. Essa música encantou os adolescentes brancos — como veio a acontecer com Elvis Presley —, que passaram a copiar o estilo de tocar, cantar e vestir dos negros, fazendo eclodir o rock’n roll. O rhythm and blues continua sendo tocado até hoje, mas, muitos músicos negros que começaram sua carreira neste gênero, partiram para novas experiências musicais, distinguindo-se cada vez mais da sonoridade rock. Para Vianna, a mais surpreendente dessas experiências foi a união do rhythm and blues, música profana, com o gospel, a música protestante negra, descendente eletrificada dos spirituals que eram cantados nos cultos dominicais pelos coros religiosos, da qual resultou o soul. Durante os anos 1960, o soul foi um elemento importante para o movimento de direitos civis e para a “conscientização” dos negros norte-americanos. Porém, já no final da década, por volta de 1968, o soul havia se transformado em um termo vago, sinônimo de black music, e perdia a pureza “revolucionária” dos primeiros anos, passando a ser encarado, por alguns músicos negros, como mais um rótulo comercial. Foi nessa época, no final dos anos sessenta, que a gíria funky deixou de ter um significado pejorativo, quase o de um palavrão, e começou a ser um símbolo de orgulho negro. Tudo poderia ser funky: uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e até uma forma de tocar música, que ficou conhecida como funk. Se o soul já agradava aos ouvidos da “maioria” branca, o funk radicalizava as propostas iniciais, empregando ritmos mais marcados (“pesados”) e arranjos mais agressivos. Como muitos estilos musicais que, apesar de serem produzidos “por” e “para” uma minoria étnica, acabam


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conquistando o sucesso de massa, o funk também sofreu um processo de comercialização, tornando-se mais “fácil”, pronto para o consumo imediato e que foi dar na explosão disco que acabará por tomar conta da black music norte-americana e das pistas de dança de todo o mundo no final dos anos 1970. Enquanto acontecia a febre das discotecas, nas ruas do Bronx, o gueto negro/caribenho localizado na parte norte da cidade de Nova York, estava sendo arquitetada a próxima reação da “autenticidade” black. No final dos anos 60, um disk-jockey chamado Kool-Herc trouxe da Jamaica para o Bronx a técnica dos famosos sound systems de Kingston, organizando festas nas praças do bairro. Como os jamaicanos dos sound systems, Kool-Herc não se limitava a executar as músicas, mas usava o aparelho de mixagem e o toca-disco para construir novas músicas. Alguns jovens admiradores de Kool-Herc desenvolveram as técnicas do mestre. Grandmaster Flash, talvez o mais talentoso dos discípulos do DJ jamaicano, criou o scratch, ou seja, a utilização da agulha do toca-disco, arranhando o vinil em sentido anti-horário, gerando novos sons. Além disso, Flash entregava um microfone para que os dançarinos pudessem improvisar discursos acompanhando o ritmo da música, uma espécie de repenteeletrônico que ficou conhecido como rap. Esses “repentistas”, desde então, são chamados de rappers ou MCs, isto é, masters of cerimony. O rap e o scratch não são elementos isolados. Quando eles aparecem nas festas de rua do Bronx, também estava surgindo a dança break, o grafite nos muros e trens do metrô novaiorquino e uma forma de se vestir conhecida como estilo b-boy — adoração e uso exclusivo de marcas esportivas como Adidas, Nike, e Fila. Todas essas manifestações culturais passaram a ser reunidas por um único nome: hip hop. O rap é a música hip hop, o break é a dança hip hop e assim por diante. Como os scratches dos DJs nova-iorquinos eram feitos em cima de ritmos funky, o hip hop mescla todos os estilos black music norte-americanos, mas o fundamental é o funk mais pesado, reduzido ao mínimo: bateria, scratch e voz. Do Bronx para Bangu

Rapper’s Delight, o primeiro disco de rap, foi lançado em 1979 pelo grupo Sugarhill Gang. Foi um enorme sucesso de vendagem, o que possibilitou a contratação de Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa, entre outros, por vários selos de discos independentes. Afrika Bambaataa desenvolveu um estilo de gravar hip hop que abusa dos instrumentos eletrônicos, principalmente as drum machines. É esse estilo que mais faz sucesso hoje nos bailes funk cariocas. A percussão, que passa por inúmeros reverberadores, chega a ensurdecer ouvintes desprevenidos. Um arsenal de sintetizadores completa os arranjos criando climas “futuris-


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tas” ou “espaciais”. Neste período o hip hop se tornou visível nas ruas elegantes de nova York. Quase todas as esquinas de Greenwich Village eram palco para as acrobacias de vários grupos break, que dançavam ao som de rádios enormes, chamados de ghetto blasters, isto é, os “dinamitadores” do gueto. De maneira similar, no Rio de Janeiro eram realizados bailes, como os que aconteciam no Cassino Bangu, reunindo até 15 mil pessoas numa só noite. Uma cena inimaginável para os DJs norte-americanos do mesmo período, cujas festas não chegavam às mil pessoas. Apesar de hoje, no Rio de Janeiro, o circuito funk ser uma manifestação cultural predominantemente suburbana, os primeiros bailes foram realizados na Zona Sul, no Canecão, aos domingos, no começo dos anos 70. Os Bailes da Pesada, como eram chamadas essas festas domingueiras no Canecão, atraíam cerca de 5 mil dançarinos de todos os bairros cariocas, tanto da Zona Sul quanto da Zona Norte. Tudo ia bem até que um dia a direção da Canecão resolveu fazer um show do Roberto Carlos e “intelectualizar” a casa, na expressão de Ademir Lopes, um dos informantes de Vianna. Intelectualizado ou não, o Canecão passou a ser o palco nobre da MPB, principalmente da música brasileira que se “opunha” ao regime militar pós 1964. O Baile da Pesada foi transferido para os clubes de subúrbio, cada fim de semana em um bairro diferente. Os Bailes da Pesada eram também realizados em clubes de outras cidades, chegando até a Brasília em 1974. Alguns dos seguidores do Baile da Pesada tomaram a iniciativa de montar suas próprias equipes de som para animar pequenas festas. As equipes tinham nomes como: Revolução da Mente (inspirado no disco Revolution of the Mind, de James Brown), Uma Mente Numa Boa, Atabaque, Black Power, Soul Grand Prix. Os anos 1974-76 foram momentos de glória para os bailes. Uma equipe como a Soul Grand Prix, que cresceu rapidamente, fazia bailes todos os dias, de Segunda a Domingo, sempre lotados. Existia uma grande circulação de equipes pelos clubes e de um público que acompanhava suas equipes favoritas aonde quer que elas fossem, facilitando a troca de informações e possibilitando o sucesso de determinadas músicas, danças e roupas em todos os bailes. A divulgação dos locais das próximas festas se dava primeiro apenas com faixas colocadas em ruas de muito movimento, e o anúncio era feito pelos próprios discotecários no final de cada baile. Depois apareceram os prospectos e a publicidade na rádio Mundial. Por volta de 1975, a Soul Grand Prix desencadeou uma nova fase na história do funk carioca que foi apelidada pela imprensa de Black Rio. Essa equipe surgiu fundamentada em outras experiências, além do Baile da Pesada. Dom Filó, engenheiro negro e fundador da Soul Grand Prix, resume a história numa entrevista publicada em 1976:


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Bom, o negócio começou em 72, 73, lá no Renascença Clube, onde eu e o grupo cultural – a direção cultural do Renascença – estávamos fazendo um trabalho de cultura para os jovens. O lance era o Orfeu Negro de Vinícius, então a gente montou Orfeu, aí tudo bem, um espetáculo maravilhoso, um sucesso, mas jovem negro nenhum. Ninguém tava ligado nesse troço de cultura. Eu, com aquilo, compreendi e entrei numa de fazer som. Com o som o pessoal se dividiu e nós começamos lá nos domingos às 8 e meia. (apud Vianna, 1997:27) Os bailes da Soul Grand Prix passaram a ter uma pretensão didática, fazendo uma espécie de “introdução à cultura negra”, por fontes que o pessoal já conhecia, como a música e os esportes. Enquanto o público estava dançando eram projetados slides com cenas de filmes como Wattstax (semidocumentário de um festival norte-americano de música negra), Shaft (ficção bastante popular no início da década de 1970 com atores negros nos papéis principais), além de retratos de músicos e esportistas negros nacionais e internacionais. Os bailarinos que acompanhavam a Soul Grand Prix, e também a equipe Black Power, criaram um estilo de se vestir que mesclava as várias informações visuais que estavam recebendo, incluindo as capas de disco. Foi o período de cabelos afro, dos sapatos conhecidos como “pisantes” (solas altas e multi coloridas), das calças de boca de sino, das danças a James Brown, tudo mais ou menos vinculado à expressão Black is Beautiful. No dia 17/07/76, num Sábado, o Caderno B do Jornal do Brasil, publicou uma reportagem de 4 páginas assinada por Lena Frias intitulada: Black Rio – o orgulho (importado) de ser negro no Brasil. Para Vianna, a matéria do Caderno B foi apenas a primeira reportagem e a mais completa. Praticamente todas as revistas brasileiras publicaram matérias sobre esse mundo funk carioca. Para Vianna, esse foi o único momento em que os bailes foram discutidos com alguma seriedade, e houve várias tentativas de apropriação política e comercial do fenômeno. Os debates do Black Rio giravam em torno do tema alienação e colonialismo cultural, como o depoimento de um líder negro a um jornal da época: É claro que dançar soul e usar roupas, penteados e cumprimento próprios não resolve, por si, o problema básico de ninguém, mas pode proporcionar a necessária ‘emulação’– a partir da recriação da identidade negra perdida com a Diáspora Africana e o subseqüente massacre escravista e racista – para que se unam e juntos superem suas dificuldade. (apud Vianna, 1997:28) O soul perdia suas características de pura diversão e passava a ser um meio para se atingir um fim: a superação do racismo (no discurso do movimento negro). Os bailes da periferia continuaram a acontecer e se transformaram no que hoje a imprensa noticia como sendo os bailes funk cariocas E a música soul também se desenvolveu nos subúrbios do Rio de Janeiro. Em sintonia com o mundo a batida do drum and bass foi acelerada para um ritmo conhecido como jungle, as misturas com a música local, como samba e outros ritmos, acabaram por criar


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uma música negra carioca, presente nas bandas de maior sucesso da cidade na década de 1990. Hoje o funk e o rap, poderíamos dizer, faz-se presente em todo o Brasil, com expressões dentro e fora o eixo Rio-São Paulo. Tornou-se um fenômeno de massas, às vezes meramente comercial, às vezes buscando se firmar enquanto voz de um determinado setor urbano caracterizado pela exclusão e pela desigualdade social. O Rio de Janeiro conta com expoentes nacionais do hip hop, como MV Bill e Nega Dinda, e com outros músicos de expressão, que não se restringem à “cartilha” do movimento, como Marcelo D2 e B Negão. Entre os vários setores ligados ao rap, ao funk e ao hip hop, há tensões que se referem ao “uso” comercial da cultura negra e às representações que determinados setores provocam na sociedade, por estarem ligados à violência urbana e à “baderna”, que muitos vinculam ao funk e aos bailes. Um caso clássico dessas “ligações perigosas”, deu-se durantes o verão em que o “bonde de Vigário Geral”, uma galera funk da favela de Vigário Geral, promoveu “arrastões” nas praias da zona sul do Rio de Janeiro, comprometendo toda a imagem do funk e dos bailes de subúrbio. Se a presença do hip hop se fez notar primeiro pela música, hoje não é difícil identificar, pelas ruas e espaços de lazer da cidade, os modos de vestir, dançar e se expressar visualmente que lhe são característicos. Mas, a partir de que representações sociais se colocam esses jovens “porta-vozes” do movimento hip hop? E quais representações, por outro lado, o senso comum elabora, a partir dos grafites espalhados pela cidade?3 Da rua Lopes Quintas à praça Santos Dumont

Os grafites do movimento hip hop foram inicialmente concebidos como intervenções em espaços públicos, especialmente em locais de grande circulação de pessoas. Como já indicamos acima, em seus primórdios, na cidade de Nova York, eram estampados nas estações de metrô e nos muros vizinhos a essas estações. No Rio de Janeiro, também podem ser encontrados nos principais corredores de circulação da cidade, como a área da Leopoldina e Rodoviária Novo Rio, arredores da Avenida Brasil e Suburbana, algumas ruas e avenidas de escoamento da Zona Sul, principalmente no bairros de Botafogo e Jardim Botânico. Para este trabalho, optamos por delimitar o campo empírico a uma área específica da rua Jardim Botânico, que vai da esquina com a rua Lopes Quintas (Jardim Botânico) até a Praça Santos Dumont (Gávea). Por uma extensão de quase um quilômetro, de um dos lados da rua, está o próprio Jardim Botânico do Rio de Janeiro e, do outro lado, um imenso e único muro que circunda o Jockey Club, atualmente, quase todo coberto por grafites.


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A rua Jardim Botânico é um importante corredor urbano, por onde passam diariamente milhares de pessoas, veículos e centenas de coletivos. Nessa área, estão situados dois dos edifíciossede da Rede Globo de Televisão, dezenas de centros médicos e comerciais, dois hospitais públicos, o Jardim Botânico e outros locais de lazer e turismo, escolas etc., levando uma grande diversidade de pessoas a circular por ali. São pessoas de todas as classes sociais num vai-e-vem constante, uma vez que a Jardim Botânico é uma importante via de deslocamento para os moradores de duas grandes favelas cariocas – Rocinha (São Conrado) e Santa Marta (Botafogo) –, mas também é via de passagem obrigatória para os moradores de bairros “nobres” das imediações, como Horto, Lagoa (pelo lado da avenida Borges de Medeiros) e Gávea. Optamos por realizar entrevistas em condições semelhantes às que estão postas para quem observa os grafites do muro do Jockey Club ao passar defronte a eles diariamente. Durante cerca de um mês, a bordo de ônibus coletivos que trafegam pela rua Jardim Botânico, instamos os mais diferentes passageiros a discorrerem sobre os grafites. A abordagem sempre foi feita de maneira informal, sem que o motivo da sondagem fosse explicitado, estabelecendo uma conversa entre pessoas que vivem uma situação de proximidade momentânea. O padrão adotado para a “entrevista” com os “informantes” foi construído a partir de um estímulo inicial simples, como: “[apontando:] você já havia visto isso?”; ou “[apontando] nunca havia notado esse desenho...”. Deixando o interlocutor falar livremente, apenas com a intervenção necessária para o assunto não ser interrompido. A seguir, buscava-se descobrir se os “entrevistados” relacionavam os grafites com algum grupo específico de pessoas, que fossem parte de um segmento ou manifestação social. Mais uma vez o estímulo à fala foi bem simples: “quem será que fez?” ou “será que é o mesmo grupo que faz?”. Por fim, sempre que possível, tentou-se identificar a “origem” social do testemunho, à medida que os entrevistados eram levados a falar minimamente de si. Após cada coleta, os depoimentos foram registrados num diário, sempre num momento posterior e fora do espaço específico do campo empírico. O conjunto de cinqüenta depoimentos colhidos para estudo nesse trabalho foi, então, organizado numa ordem numérica simples, sendo cada fala acompanhada de indicações sobre sexo, faixa etária e profissão. A voz das ruas

O que diz a voz das ruas ao se referir aos grafites urbanos? Como os cariocas, a bordo dos coletivos que trafegam pela rua Jardim Botânico, dão aos grafites um lugar na ordenação que fazem do mundo ao seu redor?


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Ao ouvir os depoimentos, constatamos, em primeiro lugar, uma forte tendência à compreensão dos grafites como sendo uma manifestação artística no campo das artes visuais. ‘Maneiríssimo’. É uma forma de se expressar. Só que através da arte. Uma arte das ruas. Como atesta a fala da vendedora de uma loja do tradicional Shopping da Gávea, vizinho à região pesquisada, que todos os dias atravessa a rua Jardim Botânico em direção ao trabalho. Depois acrescenta: ...não está na tv, não é de gente famosa, mas é uma arte, sim. Eu gosto de ver. Acho que a cidade fica mais bonita. Ainda mais nesse muro aí. De um lado o Jardim Botânico, que é lindo. Do outro esse muro horrível. Com os desenhos fica muito mais interessante (dep. 29, fem, adulto). Para os entrevistados, enquanto uma manifestação das artes visuais, os grafites demonstram apuro estético. A secretária de uma clínica odontológica da rua Jardim Botânico ressalta: ...quem faz [grafite] é um artista. Presto atenção, paro para analisar os desenhos (dep. 4, fem., adulto), apontando a complexidade e riqueza visual dos “desenhos”. A desempregada, que vive de “bicos”, traz, em seu discurso, uma possibilidade de fruição: ...uma coisa linda. Cada desenho mais bonito que o outro. Quando o ônibus pára, eu fico me distraindo e olhando os desenhos. Eu adoro (dep. 25, fem., adulto). Ao que acrescenta o porteiro de um edifício residencial: ...eu gosto, porque enfeita a cidade (dep. 21, masc., adulto), atribuindo aos grafites uma função decorativa, do espaço público urbano. Na fala dos esntrevistados, o espaço público aparece como “horrível”, “sujo”, “velho”, indicando abandono e falta de cuidado, esse muro horrível, como afirma a vendedora do shopping. A cidade já é muito suja. (dep. 1, fem., jovem), diz a estudante. Olha como esse muro ‘tá’ velho e abandonado, tem lugar que parece até que vai cair, não é? Então, com o desenho fica mais bonito (dep. 8, fem., adulto), acrescenta a empregada doméstica, deixando claro que a intervenção urbana, realizada com grafites, embeleza a paisagem da cidade. “Enfeita” a cidade, no dizer do porteiro que citamos acima. Essa atribuição de uma função decorativa aos grafites é recorrente nos depoimentos e, cremos, de grande importância. Ao designar-lhes uma função, o pensamento coletivo justifica a presença dos grafites nos muros e paredes da cidade, é uma forma de reconhecimento, atribui valor positivo, que ultrapassa a mera aceitação imposta pela convivência a contragosto. Por outro lado, enquanto um fazer artístico, a grafitagem exige o domínio de uma técnica, que envolve um processo e materiais específicos, como explicam duas estudantes: ...não é qualquer um que sabe fazer, tem que aprender, praticar muito (dep. 10, fem., jovem). Dá muito trabalho. Às vezes leva um dia inteiro. E tem que ter grana também, porque o spray custa caro. Então, antes de fazer o grafite tem que planejar e fazer o desenho no papel. Depois põe


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na parede. (dep. 16, fem., jovem). Essa percepção do domínio técnico exigido na realização dos grafites varia, em função da maior ou menor proximidade com os “artistas”. As duas estudantes aparentam conhecer grafiteiros, mas, mesmo nos casos em que isso não ocorre, há o reconhecimento que é preciso adquirir um conhecimento específico para, então, “grafitar”. Além da técnica e da disponibilidade de recursos, a grafitagem, na representação dos entrevistados, implica em criatividade, qualidade que a sociedade reserva aos artistas, que são entendidos como pessoas únicas, que enxergam as “coisas da vida” de um modo diferente das pessoas comuns: ...quem faz é um verdadeiro artista. Sabe inventar os desenhos de um jeito diferente, bem colorido. Eu gosto (dep. 37, fem., adulto). Acho que as pessoas fazem isso por causa da criatividade (dep. 5, fem., adulto). Também chama a atenção o fato de os entrevistados reconhecerem, através da observação das obras, uma temática dominante: ...tem uma ‘parada’ de consciência aí, contra as drogas, contra a discriminação (dep. 34, masc., adulto). Os grafites abordam o que os passantes chamam de “realidade”, a “vida da gente”, procurando “dar mensagem”, como revela o testemunho de uma empregada doméstica: Isso aí é para ‘dar mensagem’ para a gente, não é meu filho? Eu gosto de ver sim. É bem bonito. Mais bonito que se o muro estivesse aí sem nada, não é? (...) Tem aquele desenho que fica lá perto do Hotel Glória que tem um monte de pretinho magrinho, sabe qual é? É a mensagem. Está falando da realidade, não é? (dep. 8, fem., idoso) Ou como interpreta o estudante universitário: Estava até olhando aquele ali da garota [um grafite] bem agora. Ela entre o diabo e o anjo com um cigarro na mão. Não sei se é cigarro ou se é alguma outra droga o que ela fuma. Tem uma história ali, de um lado a pessoa que seduz, o diabo, não é? Do outro lado veio alguém e pintou um anjo. Esse diabo é ‘manero’. Eu gosto mais do diabo [risos]. (dep. 15, masc., jovem) Na representação social dos grafites, acredita-se que eles ...falam das coisas que acontecem na realidade. Porque ...geralmente é o pessoal de baixa renda que faz. (dep. 4, fem., adulto). Na voz de uma professora de escola pública, cada grafite ...fala da vida. Das coisas que acontecem. Da discriminação com os negros e com os pobres. (...) E é para fazer denúncia, para conscientizar (dep. 30, fem., adulto). Exposto na rua, o grafite parece impor a realidade aos passantes. Você passa, a ‘madame’ passa por aí, qualquer pessoa passa e o grafite ‘tá’ sempre chamando atenção para a realidade. Não tem como se esconder disso (dep. 36, masc., jovem), acrescenta o auxiliar de escritório. Parece evidente que, para os entrevistados, os grafites expõem o ponto de vista dos excluídos, chamando a atenção de todos para a “realidade” da vida, e que os mesmos são realizados em situações de risco para os grafiteiros:


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Os meninos vêm fazer essas pinturas de noite, escondidos da polícia. ‘Tá’ certo que fica até bonito, mas se a polícia pegar dá muito problema. Eles batem. E se prenderem, vão ficar misturados com os bandidos. Traz muito sofrimento para os pais. Os filhos não obedecem mais os pais. Em vez de ficar em casa, saem para fazer isso pela rua. Eles andam em bandos. Eu já vi porque trabalhei num hotel ali em Copacabana e era de noite. Então a gente via. Ali em Copacabana é muito perigoso. Muita gente pela rua, sabe? (dep. 18, fem, idoso) Na voz dessa faxineira há um misto de preocupação com o que pode acontecer aos grafiteiros e insatisfação com a forma como se comportam “os meninos” transgressores. O depoimento faz emergir determinados aspectos do que se convencionou chamar de cultura do medo (Zaluar 1985). Como resultado desta cultura do medo e de uma série de outras variantes, o Rio de Janeiro passou a ser representado como uma cidade partida (Zuenir Ventura 1994), o que faz com que determinados habitantes, principalmente os das áreas mais pobres sejam apresentados como definitivamente perdidos para o convívio social. Assim, a grafitagem é tratada, por alguns, como o resultado da ineficiência das famílias em submeter os jovens à sua autoridade, determinando um comportamento em sociedade que fosse mais aceitável: ...esse pessoal tinha é que estar na escola, no quartel, porque os pais não educam mais. Entendeu? (dep. 31, masc., adulto), afirma um outro porteiro, em consonância com uma outra professora, que diz: ...ninguém mais dá educação aos filhos. As pessoas vêm e pintam o muro dos outros. Estão estragando, não é? (dep. 22, fem, idoso). Nisso há uma condenação à transgressão, não aos grafites. Por trás está uma concepção essencialista de juventude, como se fosse uma das partes de um ciclo universal e imutável da vida – infância, adolescência e/ou juventude, idade adulta e velhice. O que está sendo questionado é o comportamento de determinados jovens — entre a legalidade e a contravenção —, em função da sua juventude e de fatores como a ausência reguladora da família. Este pensamento do senso comum sobre a juventude, impede a percepção das diferenças entre os jovens em termos de ...culturas, classes, grupos e configurações sociais (Novaes 1997:119). E, certamente, contribui para impedir que os grafites sejam entendidos como expressão cultural de um segmento dos jovens que habitam o Rio de Janeiro. Magro (2002), analisando os jovens das periferias de São Paulo e uma outra expressão do hip hop, o rap, em busca de processos de construção de identidade, também aponta para a emersão de concepções essencialistas de adolescência. Já para Vianna (1997a) a juventude, como faixa etária, não pode mais ser definida de forma unívoca e universal — como ela o foi pelos depoimentos que ouvimos —, por “padrão de consumo” recorrente, pelo “pertencimento a um único grupo”, ou pelo “investimento em determinados signos”. Para o autor, nas últimas


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décadas, a juventude foi definida ...como um estado de rebeldia, revolta, transitoriedade, turbulência, agitação, tensão, mal-estar, possibilidade de ruptura, crise psicológica, conflito (em outros textos encontramos as palavras instabilidade, ambigüidade, liminaridade, flexibilidade, inquietude). Tudo isso pode ser resumido em um único conceito: mudança. Mas não qualquer tipo de mudança: a juventude é uma mudança “revoltada” (Vianna 1997a:12). Hoje sabemos ...através das ciências da complexidade, que estados turbulentos não são necessariamente desprovidos de ordem, e que muitos fenômenos que antes eram tidos como perfeitamente ordenados atualmente são tidos como caóticos (Vianna 1997a:13). Como então esperar encontrar ordens rígidas (às quais a “turbulência” juvenil é colocada em contraste para ser definida) no mundo extremamente complexo em que vivemos? Curiosamente, no “complexo” mundo contemporâneo, diferentes setores da sociedade e representantes de distintas faixas etárias optam por vestir-se, ouvir, ou comportar-se “como os jovens” e viceversa. Neste sentido, é exemplar o depoimento “careta” de uma jovem estudante, ao assumir em seu discurso o mesmo lugar social do porteiro e da professora, adultos, que buscaram caracterizar os grafites como produto de uma “típica” juventude transviada: A pessoa reforma a casa, pinta tudo, gasta um dinheirão. Aí vem o ‘pivete’ e pinta. (...) Grafite na camisa tudo bem, porque é uma coisa sua, que te pertence. Agora, na parede dos outros, não. Têm uns garotos da minha idade que acham legal. Eu sou assim, meio careta. (dep. 1, fem., jovem) Podemos afirmar, após essas fala, que os grafites aparecem nas representações sociais dos cariocas, que transitam pela rua Jardim Botânico à bordo dos coletivos, como uma forma de arte urbana, como voz dos excluídos e como arte de jovens transgressores. Mas, no que esse saber de senso comum difere do que nos aponta, sobre o grafite, a história de afirmação social do funk e do hip hop? Como indica Vianna (1997), a musicalidade suburbana de origem negra americana sempre foi considerada uma forma de trazer a “consciência negra” para os “bailes”. Disse-nos um jovem: É grafite. Tem a ver com o hip hop. Com o pessoal do hip hop. (...) É igual à letra dos raps, fala da vida da gente aqui no Brasil. No Rio de Janeiro. O ‘lance’ da violência, ‘brow’. Foi nessa rua aqui que teve aquela ‘parada’ do ônibus. ‘Tá ligado?’. (dep. 28, masc., jovem) Apesar dessa fala, como vimos, os depoimentos coletados na rua Jardim Botânico não estabelecem relação direta entre o grafite e o hip hop, nem mesmo do grafite com o rap – a face mais visível do hip hop. Falas como essa última, ou como a do office boy que afirma ...nós, do movimento hip hop lutamos contra a discriminação de cor, sabe como é? Contra as diferenças. E esses grafites falam da nossa luta. Do pessoal que tem o dim-dim querendo mandar em todo o mundo. Não


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‘tá’ vendo o caso aí dos Estados Unidos lá no Iraque? A gente quer acabar com essa coisa da dominação (dep. 13, masc., jovem), são exceções, protagonizadas por pessoas que têm um vínculo direto com o movimento hip hop, que buscam afirmar sua identidade e expressá-la culturalmente, a partir das distinções que caracterizam “seu” lugar no mundo (Woodward 2004), portanto, adquiriram um conhecimento especializado sobre o grafite, distinto do saber de senso comum, que nos interessa. No conjunto, a leitura dos depoimentos deixa claro que há uma desconexão entre a maneira como os entrevistados apreendem os grafites das ruas e, por outro lado, o lugar que o grafite ocupa enquanto uma expressão cultural visual do hip hop. Essa desconexão se manifesta, por exemplo, na inexatidão com que o grafite é nomeado: às vezes como “desenho”, como “pichação” e só raramente como “grafite”. Ou na incapacidade coletiva de perceber nos grafites o produto da expressão visual de um segmento específico da sociedade, como indicamos. As falas que coletamos reproduzem, com alguma fidelidade, o tratamento similar que a grande imprensa dá ao universo funk, como sintetiza Souto: ...é visto como sinônimo de brigas, atos de vandalismo e mortes. Uma visão que conta com o apoio de vários setores do aparelho do Estado, que também passa a ver o funk como ...inimigo público e a adotar práticas estritamente repressivas (...) Com o que, novamente, a questão social se transforma numa questão de política (Souto 1997:61; Cecchetto 1997), o que reforça o papel da comunicação social na elaboração e expressão das representações sociais. Neste caso, principalmente pela insistência na reafirmação e difusão de um conceito essencialista de juventude, estabelecendo uma relação mimética com o pensamento de senso comum, de mesmo teor. Trata-se de uma espécie de “cegueira” do corpo social, criando representações onde, aos “outros”, são atribuídas identidades construídas a partir da sua exclusão. Hoje, o próprio funk e o hip hop deixaram de ser fenômenos restritos aos jovens oriundos das camadas de baixa renda, para ocupar espaço no seio da classe média carioca, como nos faz ver Souto (1997). Um processo em curso e que não se faz sem conflitos e contradições, como fica claro no depoimento que ouvimos do Office boy: Lá na minha comunidade também tem. Eu acho legal, mas lá eles desenharam uns caras com armas e com touca na cabeça. Acho que eles ganharam dinheiro para fazer isso. [(?): isso aqui?] Não. Não. Aqui não. ‘Tô’ dizendo que eles ganharam dinheiro para fazer a pintura de lá. Aqui no asfalto o pessoal faz para se mostrar. Para mostrar que sabe. E aqui nesse muro tem muito desenho de ‘playboy’. Tem muito desenho aí que é só para enfeitar o muro. (dep. 17, masc., jovem) Nada disso, entretanto, dentre os que ouvimos, pareceu-nos ter provocado uma reação coletiva contrária aos grafites. Assim, acreditamos que, pela análise dos depoimentos, poderíamos


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concluir que os grafites — independentemente de seu vínculo de origem com o movimento hip hop — ganharam espaço e função na ideação coletiva, na medida em que se tornaram objetos de uma representação social que os identifica como sendo uma manifestação artística sobre as dificuldades de estar no mundo, mesmo que elaborada num contexto de transgressão.

Bibliografia citada

Alexandre, Marcos (2001). “O papel da mídia na difusão das representações sociais”. In: Comum, v.6, no. 17. Rio de Janeiro, jul/dez. pp111-125. Cecchetto, Fátima (1997). “As galeras funk cariocas: entre o lúdico e o violento”. In: Vianna, Hermano (org.). Galeras Cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. pp.95-118. Jobim e Souza, Solange e Passareli, Carlos (2004). “Espaço urbano e constituição subjetiva da desigualdade social: uma possível leitura das políticas da diferença”. Rio de Janeiro, mimeo. 14pp. Jodelet, D. (2001). Representações Sociais: um domínio em expansão. In D. Jodelet (Ed.), Representações Sociais ( pp. 17-43). Rio de Janeiro: Editora da UERJ. Magro, V. M. d. M. (2002, agosto). Adolescentes como autores de si próprios: cotidiano, educação e o 'hip hop.' Caderno Cedes, pp. 63-75. Campinas. Massoni, Sandra H (2002). Estrategias de comunicación: una mirada comunicacional para la investigación sociocultural. In: Orozco Gomes, Guilermo (org). Recepción y mediaciones: casos de investigación en América Latina. Buenos Aires: Grupo editorial Norma. Moscovici, S. (2001). Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história. In D. Jodelet (org.), Representações Sociais ( pp. 45-66). Rio de Janeiro: Editora da UERJ. Novaes, R.R. “Juventudes cariocas: mediações, conflitos e encontros culturais”. In: Vianna, H. (org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. p.119-160 Souto, Jane (1997). “Os outros lados do funk carioca”. In: Vianna, Hermano (org.). Galeras Cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. pp.59-94. Ventura, Zuenir (1994). Cidade Partida. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1994. Vianna, Hermano (1997). O mundo funk carioca. 2a ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. Vianna, Hermano (1997a). “Introdução”. In: Vianna, H. (org.). Galeras Cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro, Editora UFRJ. Zaluar, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo, Brasiliense, 1985. Woodward, Kathryn (2004). “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”. In: Silva, T. T. da (org.). Identidade e diferença. 4a ed. Petrópolis, Vozes.


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Notas 1

No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, editado pela Nova Fronteira, consta o vocábulo “grafite” como substantivo feminino, portanto, “a grafite”. No entanto, neste texto vamos adotar seu uso corrente como um substantivo masculino.

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No final dos anos 80 do século passado, precisamente em 1988, o antropólogo Hermano Vianna publicou os resultados de sua dissertação de mestrado num livro chamado O Mundo funk carioca. Este livro, reeditado 10 anos mais tarde, em 1997, tornou-se um trabalho muito importante e inaugural, abrindo todo um conjunto de estudos acadêmicos destinados à temática, especialmente no campo dos estudos de antropologia urbana. Neste texto adotaremos, para uma localização histórica das nossas questões, as informações trabalhadas por Vianna e seu histórico internacional e local do funk.

3

Não raro os grafites são confundidos com as “pichações”. São duas expressões diferentes. Neste trabalho nos ateremos aos grafites, principalmente por considerar que as pichações — basicamente assinaturas pessoais grafadas em espaços públicos —, não estão relacionadas, por origem, a um movimento cultural e sim a uma manifestação puramente transgressora, que tem a ver como determinados setores “se sentem” na vida em sociedade, mas cuja expressão não é elaborada a partir de uma mobilização coletiva.


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