REVISTA

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nº 4 /outubro/novembro/dezembro/2013 - R$ 10,00

LIBERDADE DE IMPRENSA: UMA SALVAGUARDA DA CONSTITUIÇÃO

Paulo Bonavides

MELANCOLIA E IRONIA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Chico Viana

CECCO ANGIOLIERI: O ANTIDANTE ALIGHIERI

Evandro da Nóbrega

CAPA

(COREL X6)

O POTENCIAL DA HISTÓRIA DA CAPITAL PARAIBANA NO DESENVOLVIMENTO DO SEU TURISMO CULTURAL

Guilherme Gomes da Silveira d´ÁvilaLins

O VAQUEIRO: SÍMBOLO DA LIBERDADE E MANTENEDOR DA ORDEM NO SERTÃO

Tanya Maria Pires Brandão

Feliz Natal, Feliz Ano Novo!


LANÇAMENTO

Mesa dos trabalhos de lançamento do livro BARRAGENS DE CUREMA E MÃE D´ÁGUA O historiador Emmanoel Rocha Carvalho

Aspecto do auditório do IHGP, repleto de amigos e admiradores do autor

CONCORRIDO EVENTO ASSINALOU LANÇAMENTO DO LIVRO BARRAGENS DE CUREMA E MÃE D´ÁGUA – NOS BASTIDORES DA CONSTRUÇÃO Equipe GENIUS Teve no lugar no Instituto Histórico e Geográfico Paraibano – IHGP, às dezessete horas do dia 22 de novembro de 2013, uma das mais concorridas solenidades já realizadas na sede daquela instituição, visando ao lançamento de um livro, no caso, Barragens de Curema e Mãe D´água – Nos bastidores da construção, de autoria do historiador e biógrafo Emmanoel Rocha Carvalho, Professor Aposentado da Universidade Federal da Paraíba e autor de vários trabalhos de caráter técmico e historiográfico, dentre os quais os livros Entre Talentos do Cariri - vida e obra do empresário Assis Júnior e Nos caminhos do vigário José Antônio, relato biográfico do Padre José Antônio Marques da Silva Guimarães, que foi vigário de Sousa, ali angariando muitos fieis e filhos. A sessão de lançamento do livro Barragens de Curema e Mãe Dágua, foi conduzida pelo Presidente do IHGP, Joaquim Osterne Carneiro que convidou para compor a Mesa dos trabalhos o próprio autor da obra, Professor Emmanoel Rocha Carvalho; Dra. Maria de Lourdes B. de Sousa, representante do DNOCS; José Carlos Rocha de Caralho, Professor da USP e Presidente do Instituto da Cidadania, de São Paulo; escritor Damião Ramos Cavalcanti, Presidente da Academia Paraibana de Letras; escritor Ricardo Bezerra, Presidente da ALANE-João Pessoa; escritora Ida Steinmuller, Presidente da Academia de Letras de Campina Grande. Professores, historiadores, acadêmicos, e grande número de amigos do autor estiveram

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O historiador Emmanoel Rocha, tendo ao seu lado a esposa, Cely Raquel, no momento dos autógrafos

presentes ao evento, demonstrando o prestígio de que aquele pesquisador desfruta nos vários segmentos culturais do nosso Estado. Além de reviver a epopeia da construção daquele grande reservatório, Emmanoel rememora também a figura de Raimundo Nonato de Carvalho, seu pai, mestre de obras da barragem de Mãe d´Água, na pessoa de quem – diz ele – “reverencio todos os mestre de obras

espalhados por esse sofrido Nordeste, muito especialmente aqueles que, como ele, exerceram essa função nos açudes do DNOCS, em remotas e difíceis épocas, mal remunerados e, mesmo assim, contribuindo, com firmeza e grande responsabilidade, na execução das obras, a partir do gerenciamento e contatos diretos com trabalhadores famintos, de origem quase sempre desconhecida, até a condução exemplar do pessoal do quadro, especializado ou não, que trabalhava sob sua segura e confiável orientação.” Na apresentação que fez da obra do historiador Emmanoel Carvalho, o Acadêmico Flávio Sátiro Fernandes, dentre outras coisas, observa que “o painel que o Professor Emmanoel Rocha nos traça neste livro é multifário, pois não se cinge a informações técnicas ligadas à construção das duas barragens, sendo, ao invés, um compósito de história, geografia, economia, administração, política, sociologia, agricultura e literatura.” Por sua vez, o historiador Joaquim Osterne Carneiro, Presidente do IHGP, no Prefácio que escreveu, observa que o trabalho “merece e necessita ser lido e analisado, pois é sem sombra de dúvidas uma contribuição fundamental para quem quiser conhecer em profundidade o semiárido nordestino brasileiro.” Através das fotografias que constam desta notícia, cedidas pelo autor, GENIUS divulga o que foi o evento de lançamento do livro BARRAGENS DE CUREMA E MÃE D´ÁGUA – Nos bastidores da construção. g


CARTA AO LEITOR Nesse tempo de reflexões e de esperanças, encerramos as atividades do corrente ano, fechando o número 4 desta revista, cujo combustível maior para sua movimentação tem sido, sem dúvida, o estímulo, o apoio, a receptividade manifestada por diferentes segmentos da intelectualidade paraibana, assim como pelo público em geral, a quem GENIUS se volta, mediante a divulgação de notícias e trabalhos de temática diversificada, com vistas a abranger um número cada vez mais significativo de leitores. A nossa busca tem sido no sentido de um aperfeiçoamento gradativo do periódico, seja na escolha das matérias enfocadas, seja na sua apresentação gráfica, valorizando a diagramação, a tipologia adequada e outros elementos técnicos capazes de ajudar na melhoria de sua apresentação. Neste número, continuamos a nos valer de colaboradores, não só paraibanos, mas também de outras plagas, assim como de alguns de caráter In Memoriam, com vistas a não só homenageá-los, mas igualmente mostrar às novas gerações o que foram e o que fizeram, como demonstração da inteligência nordestina. Neste último segmento, apresentamos as figuras exponenciais de João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, Raul Machado, Marcelo Deda e Firmino Ayres Leite, que se projetaram nas letras e na política. Dentre os assuntos aqui ventilados, podemos ressaltar, entre outros, os que tratam da figura do vaqueiro, como símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão; o poeta Orlando Tejo e o seu personagem Zé Limeira; os Tribunais de Contas no cenário político-legal da atualidade; a IX Festa Literária Internacional de Pernambuco – Fliporto; o potencial da história da capital paraibana no desenvolvimento do seu turismo cultural; alguns episódios curiosos em torno de Gilberto Freyre, narrados por quem trabalhou a seu lado; Cecco Angiolieri, o Antidante Alighieri; melancolia e ironia em Carlos Drummond de Andrade; Liberdade de imprensa, uma salvaguarda da Constituição; Augusto dos Anjos e a Escola do Recife e o nunca esgotado tema da seca do nordeste, sempre atual, notadamente, agora, que um flagelo dessa natureza assola toda a região do semiárido. Com essa gama de matérias, esperamos que o leitor tire bom proveito de todas elas, em suas leituras de final de ano e começo de um novo tempo. Encerrando, desejamos a todos os leitores um FELIZ NATAL, em que possam cantar os louros que obtiveram no ano que termina e um FELIZ ANO NOVO, durante o qual possam alcançar as vitórias por que almejam. ERRAMOS: Na edição anterior, mais precisamente, na matéria intitulada CENTENÁRIO DE UM LÍDER, cometemos, involuntariamente, um erro ao dizermos que Bivar Olyntho de Melo e Silva teve, de sua segunda união, com Maria Helena Mendes Braga, dois filhos, Sumaia e Eduardo, quando, em verdade, os dois filhos desse relacionamento foram Cláudio e Eduardo.

outubro/novembro/dezembro/2013 - Ano I - Nº 4 Diretor Responsável e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (Habilitação Profissional como jornalista nº 01980 - MTE - PB) Diagramação e arte: Júnior Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 3244.5633 / 9981-2335 E-mail: revistagenius@hotmail.com CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO ACIMA

SUMÁRIO

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LANÇAMENTO DO LIVRO BARRAGENS DE CUREMA E MÃE D´ÁGUA Equipe GENIUS

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OITO VEZES GILBERTO Carlos Alberto Azevedo

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OS TRIBUNAIS DE CONTAS NO CENÁRIO POLÍTICO-LEGAL DA ATUALIDADE Marcelo Deda

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LIVROS Equipe GENIUS

SECA NO NORDESTE: UM TEMA SEMPRE ATUAL Joaquim Osterne Carneiro AUGUSTO DOS ANJOS E A ESCOLA DO RECIFE Flávio Sátiro Fernandes LIBERDADE DE IMPRENSA, UMA SALVAGUARDA DA CONSTITUIÇÃO Paulo Bonavides MELANCOLIA E IRONIA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Chico Viana CECCO ANGIOLIERI, O ANTIDANTE ALIGHIERI Evandro da Nóbrega VENHO GOVERNAR SEM PREVENÇÕES E SEM PREFERÊNCIAS João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque PAIXÃO DE ALAN HEART Conto de Mercedes Cavalcanti O POTENCIAL DA HISTÓRIA DA CAPITAL PARAIBANA NO DESENVOLVIMENTO DO SEU TURISMO CULTURAL Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins

CINCO SONETOS DE RAUL MACHADO Carlos Alberto Azevedo SEIS HISTÓRIAS DE BEM CONTAR A VIDA, O TEMPO, O AMOR E A MORTE Antônio Mariano ADVOGADO DA UNIÃO É PREMIADO PELA AGU Equipe GENIUS MORRE O GOVERNADOR DE SERGIPE, MARCELO DEDA, GRANDE AMIGO DA PARAÍBA Equipe GENIUS

ORLANDO TEJO E ZÉ LIMEIRA NO SERTÃO DO PEIXE/PIRANHAS Eilzo Matos ACADEMIA RECEBE SEVERINO RAMALHO LEITE Equipe GENIUS AS TESSITURAS DE ELIZABETH MARINHEIRO Milton Marques Júnior O VAQUEIRO: SÍMBOLO DA LIBERDADE E MANTENEDOR DA ORDEM NO SERTÃO Tanya Maria Pires Brandão

NOS BAÚS DA MEMÓRIA Firmino Leite


COLABORAM NESTE NÚMERO:

COLABORADORES

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ANTÔNIO MARIANO DE LIMA - [Seis histórias de bem contar a Vida, o Tempo, o Amor e a Morte] Nasceu e reside em João Pessoa, realizando projetos literários de interesse coletivo. Editou o Correio das Artes entre 2009 e 2010. É autor de vários livros, dentre os quais se destacam Guarda-chuvas esquecidos (Rio: Lamparina, 2005), Imensa asa sobre o dia (João Pessoa: Dinâmica, 2005) e Sob o Amor (São Paulo: Patuá, 2013). CARLOS ALBERTO DE AZEVEDO - [Oito vezes Gilberto] Antropólogo. Trabalhou durante vários anos no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, onde se fez amigo e colaborador de Gilberto Freyre. CHICO VIANA - [Melancolia e ironia em Carlos Drumond de Andrade] Professor da UFPB e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua tese, publicada em 1994 com o título de “O evangelho da podridão”, enfoca a representação da melancolia em Augusto dos Anjos. Atualmente ensina português e redação no curso que leva o seu nome. (www.chicoviana.com). EILZO MATOS - [Orlando Tejo e Zé Limeira no sertão do Peixe/ Piranhas] Membro da Academia Paraibana de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 3. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Ex-Deputado Estadual e Ex-Secretário de Estado. Autor de várias obras de ficção e ensaios de política, destacando-se dentre aquelas o romance A VINGANÇA DAS COBRAS.

JOAQUIM OSTERNE CARNEIRO - [Seca no Nordeste: um tema sempre atual] Engenheiro Agrônomo, escritor e historiador. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e de várias outras instituições. Atualmente é Presidente do IHGP. JOÃO PESSOA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE – In Memoriam [Venho governar sem prevenções e sem preferências] Ministro do Superior Tribunal Militar. Presidente da Paraíba, eleito em 1928 e empossado nesse mesmo ano. O texto de sua autoria, transcrito nesta edição, foi o discurso de posse no governo do Estado, através do qual manifestou suas intenções de modificar os costumes políticos do nosso Estado. (1878, Umbuzeiro – 1930, Recife). MARCELO DEDA – In Memoriam [Os Tribunais de Contas no cenário político-legal da atualidade] Foi Deputado Federal por Sergipe, Prefeito de Aracaju e Governador do Estado de Sergipe, no exercício de cujo mandato faleceu. (*1960, Simão Dias - †2013, São Paulo) MERCEDES CAVALCANTI - (Pepita) [Paixão de Alan Heart] Romancista, poeta e cronista. Pertence à Academia Paraibana de Letras. Autora de várias obras de ficção e de poesia. MILTON MARQUES JÚNIOR - [As tessituras de Elizabeth Marinheiro] Professor Doutor, com lotação no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba.

EVANDRO NÓBREGA - [Cecco Angiolieri: o antiDante Alighieri] Jornalista, editor, autor do livro A glândula pineal do urubu, que lhe valeu uma apresentação no programa de Jô Soares. Responsável pela editoração de várias obras, dentre as quais sobrelevam O mais civilizado dos paraibanos (2005) e Ministros paraibanos em Tribunais Superiores (2012).

PAULO BONAVIDES - [Liberdade de imprensa, uma salvaguarda da Constituição] Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Doutor Honoris Causa da Universidade de Lisboa, da Universidade Federal Fluminense, da Universidade de Buenos Aires e das Faculdades Integradas de Patos (PB), sua cidade natal.

FIRMINO AYRES LEITE – In Memoriam [Nos baús da memória] Médico, poeta e político. Foi prefeito de Patos e de Piancó. Exímio sonetista, suas produções poéticas foram reunidas, após sua morte, no livro Mugidos e Aboios. (*1902, Piancó – †1981, João Pessoa)

RAUL MACHADO - In Memoriam [Cinco sonetos de Raul Machado] Grande poeta e sonetista paraibano. Autor de várias produções de grande lavor, de cunho lírico e sentimental. (*Taperoá, 1891 - †A bordo do transatlântico PROVENCE, 1954)

FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES - [Augusto dos Anjos e a Escola do Recife] Conselheiro Aposentado do Tribunal de Contas do Estado e Professor Aposentado do Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Membro Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP) e da Academia Paraibana de Letras (APL).

SEVERINO RAMALHO LEITE - [O Dorgival que eu conheci] Jornalista e escritor. Ex-Prefeito de Bananeiras, Ex-Deputado Federal, exerceu a Superintendência da PBPREV, órgão previdenciário do Estado da Paraíba, e dirigiu o jornal A UNIÃO. Assumiu, recentemente, a Cadeira 7, da Academia Paraibana de Letras.

GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D´ÁVILA LINS - [O potencial da História da Capital Paraibana no desenvolvimento do seu turismo cultural]. Médico e Historiador. Membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP).

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TANYA MARIA PIRES BRANDÃO - [O Vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão] Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutora em História Social, pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Federal de Pernambuco.


SEMIÁRIDO NORDESTINO

SECA NO NORDESTE: UM TEMA SEMPRE ATUAL Joaquim Osterne Carneiro

A seca que ocorreu na Região Semiárida do Nordeste brasileiro no ano pretérito e que tem continuidade neste ano de 2013, em face das poucas chuvas caídas, é a maior dos últimos 60 (sessenta) anos. Convém recordar que as variações climáticas que determinaram a semi-aridez e as secas do Nordeste brasileiro ocorreram há mais de 20.000 (vinte mil) anos, segundo estudos realizados por BELTRÃO (1980). No entanto, a primeira notícia de seca na Região foi registrada por GUERRA (1951), em pesquisa publicada postumamente, quando declarou que a Historia da Companhia de Jesus no Brasil, do Padre Serafim Leite, se referiu a uma estiagem acontecida na Bahia em 1559. Convém destacar que os primeiros estudos sobre previsão de seca no Nordeste do Brasil foram realizados por DERBY (1978 e 1885), quando correlacionou a grande seca de 18771879, com o fenômeno das manchas solares. Naquela época, os únicos dados meteorológicos disponíveis eram as precipitações pluviométricas da cidade de Fortaleza – CE, para o período de 1849 a 1877 e da cidade do Rio de Janeiro – RJ, para o período de 1851 a 1877. De acordo com esses primeiros estudos, as secas ocorriam em ciclos de 11 (onze) anos, ficando também constatado que, em cada ciclo, a quantidade de chuva crescia do primeiro até sua metade, decrescendo posteriormente até o seu final. No Nordeste, segundo CARVALHO et alii

(1973), “A idéia de que as secas estavam correlacionadas com os períodos de redução das atividades das manchas solares também teve aceitação por parte de estudiosos do assunto, como Thomas Pompeu de Souza Brasil Sobrinho e Rodolfo Theophilo, sendo o problema levantado pelo primeiro, no seu trabalho “O Ceará no Começo do Século XX ”, publicado em 1909. Em trabalho posterior, “O Ceará no Centenário da Independência (1922)”, o mesmo autor, com base em melhores informações, registra a curiosa observação de que, além do ciclo undecenal de atividade solar, manifestado pelo aumento das manchas solares na sua superfície, verificou-se ultimamente haver verdadeiras superexcitações daquelas atividades em períodos mais longos. Em auxilio dessa circunstância observa-se que em Fortaleza, além das oscilações de 10 a 12 anos, verifica-se o aumento das chuvas em fases de 23 a 26 anos”. Em 1924, Sampaio Ferraz ao falar no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, sobre as prováveis causas das secas do Nordeste, informou que havia uma correlação não significativa entre as manchas solares e as chuvas caídas na cidade de Fortaleza-CE. Em 1953, o mesmo estudioso dispondo de informações mais confiáveis, lançou um método empírico de previsão de secas no Nordeste, através da comparação dos anos secos com os pseudociclos das atividades solares, oportunidade em que constatou uma grande coincidência entre

os anos de calma solar e as secas, tendo informado: “Marcamos as ocorrências das secas grandes, totais e parciais, num gráfico das oscilações das manchas solares e verificamos logo a tendência delas se agruparem nas proximidades dos mínimos solares, sobretudo as secas grandes e totais”. Ainda em 1953, seguindo essa mesma linha de trabalho, Francis Reginald Hull, um inglês que residiu em Fortaleza, correlacionou as secas do Estado do Ceará, com os anos de manchas solares mínimas, a exemplo dos estudos anteriormente elaborados por Derby, Thomas Pompeu de Sousa Brasil Sobrinho, Rodolfo Theophilo e Sampaio Ferraz. O estudioso inglês acima citado, informou que o fenômeno das secas aconteceria nos momentos correspondentes aos pontos mínimos da curva de atividade das manchas solares, distando um ponto mínimo do outro de 11 (onze) anos em média. Além disso, foram assinalados ciclos de 10 (dez), de 12 (doze), de 23 (vinte e três) e de 26 (vinte e seis) anos, coincidentes com as repetições das secas observadas do século XVI para cá. Em 1945, Adalberto Serra apresentou um estudo sobre a Meteorologia do Nordeste, informando que existe uma correlação entre o deslocamento da Zona de Convergência Intertropical e as secas nordestinas. Como sabemos, a Zona de Convergência Intertropical - ITCZ / ZCIT - é um aglomerado de nuvens, com escala de poucas centenas de quilômetros,

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que estão associadas a uma zona alongada de baixa pressão, representada pelo encontro dos ventos alísios NE e SE, localizando-se entre as duas altas subtropicais dos hemisférios Norte e Sul, respectivamente. Devido a sua estrutura física, a Zona de Convergência Intertropical tem se mostrado decisiva na caracterização das condições do tempo e do clima na Região Tropical, influenciando nas precipitações dos continentes americano, africano e asiático. De conformidade com Adalberto Serra, quando a Zona de Convergência Intertropical se desloca frontalmente para o sul do Brasil e para o Golfo do México, as chuvas serão mais copiosas. De outra parte, na falta da Zona de Convergência Intertropical, o Nordeste brasileiro é dominado pelo chamado Anticiclone, vindo do Atlântico Sul e os ventos alísios sopram na direção Sudeste ou Este. Neste caso, a Zona de Convergência Intertropical é afastada para o Equador. Em seguida, o mesmo SERRA (1946) concebeu um método de previsão de seca, tomando por base a correlação estatística entre as tendências de distribuição da temperatura e da pressão atmosférica, em distintos pontos do globo terrestre. Em 1967, o pesquisador americano Charles Markhan, a partir dos estudos de Sampaio Ferraz e de Adalberto Serra, estabeleceu um

método de previsão de secas do Nordeste, correlacionando as chuvas caídas em Fortaleza, no mês de dezembro, com as possíveis alterações menores da radiação solar. Segundo esse estudo, caso a chuva em Fortaleza em dezembro seja menor que 10 milímetros, haverá 20 % de probabilidade da precipitação do ano seguinte na Região ser inferior a 800 milímetros, o que significa uma seca parcial. Caso a chuva de Fortaleza no mês de dezembro seja superior a 30 milímetros, a probabilidade da precipitação do Nordeste no ano seguinte ser inferior a 800 milímetros é de 2%. Em 1971, a SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste - firmou um convenio com o CTA - Centro Técnico Aeroespacial - localizado em São José dos Campos - SP, voltado para a previsão das secas. Nesse sentido, no final de 1978, os técnicos do CTA Luis Teixeira e Carlos Giraldi, utilizando dados estatísticos das chuvas do período de 130 anos da cidade de Fortaleza e de 45 anos das cidades de Caicó - RN, Currais Novos - RN, Crato- CE, Iguatú - CE, Limoeiro do Norte - CE, Quixeramobim - CE e Ouricuri - PE, elaboraram um trabalho sobre o prognóstico do tempo a longo prazo no Nordeste, concluindo que a cada 26 anos ocorria uma longa estiagem na Região. A partir de 1974, o CNPq, por meio do

INPE - Instituto de Pesquisas Espaciais - se engajou nas pesquisas de previsão de secas. Ultimamente, diversos estudiosos relacionam as secas nordestinas com o fenômeno “El Niño” que é conhecido há mais de 200 anos e diz respeito ao aquecimento anormal das águas do Oceano Pacifico ao longo da região do Equador. Os cientistas observaram que os ventos alísios que sopram sobre o Pacífico se tornam mais fracos quando a temperatura da água aumenta. Embora se localize no Oceano Pacífico, as conseqüências do “El Niño” se espalham por todo o mundo. No Brasil, é responsável pelas secas do Nordeste, pelas enchentes no Sul e pelo calor no Sudeste. Geralmente ocorre em intervalos que variam de 3 a 7 anos. Vale destacar que estudiosos como o Professor Caio Lócio consideram, também, que a temperatura das águas do Oceano Atlântico e outros eventos contribuem para o surgimento das secas nordestinas. CARNEIRO (2000) publicou um trabalho sobre as secas no nosso Estado. Diante do exposto, entendemos que se faz necessário implementar estudos referentes às oscilações das manchas solares, das temperaturas do Oceano Atlântico e de outros fenômenos, que ao lado do “El Niño” têm considerável influência na ocorrência das secas no Nordeste brasileiro. g

BIBLIOGRAFIA

BELTRÃO, Maria da Conceição Coutinho. O Arqueólogo e a Interpretação Paleoclimática Rio de Janeiro, UFRJ, 1980. Trabalho apresentado no Encontro sobre Seca no Nordeste. Recife, UCR, 1980. CARNEIRO, Joaquim Osterne. As Secas na Paraíba. A Paraíba Nos 500 Anos Do Brasil - Volume I. A UNIÃO - Superintendência de Imprensa e Editora, 2000. CARVALHO, Otamar de. et alii. Plano Integrado para o Combate Preventivo aos Efeitos das Secas no Nordeste. Brasília, Minter, 1975. DERBY, Orville Adalbert. As Secas e as Manchas Solares. Diário Oficial, de 8 e 9 de junho de 1878. __________________ As Manchas Solares e as Secas. Revista Engenharia, Rio de Janeiro 1885. p.85. FERRAZ, J. de Sampaio. Causas Prováveis das Secas do Nordeste Brasileiro. Rio de Janeiro, Diretoria de Meteorologia, 1924 ( Conferencia no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro em 20 de dezembro de 1924) 30 p. __________________ Iminência de uma Grande Seca Nordestina. Revista Brasileira de Geografia, 1953. GIRALDI, Carlos et TEIXEIRA, Luiz. Prognóstico do Tempo a Longo Prazo. São José os Campos, CTA, 1978. 18 p. ( Relatório técnico ECA -06-78) GUERRA. Felipe. Secas do Nordeste. Natal, Centro de Imprensa, 1951, p.30. HULL. Francis Reginald. A frequência das Secas no Estado do Ceará e sua Relação com a Frequência dos Anos de Manchas Solares Mínimas. Boletim da Secretaria de Agricultura e Obras Públicas. Fortaleza, (4): 58-63, jun. 1953. MARKHAM, Charles G. Climatological Aspects of Drought in Northeastern Brazil. Fresno, Fresno College, 1967 (Tese de doutorado) mimeografada. SERRA, Adalberto. Meteorologia do Nordeste Brasileiro. Rio de Janeiro, IBGE/CNG, 1945 (Tese preparada para a 4ª Assembléia Geral do Instituto Pan-Americano de Geografia e Historia) ________________ As Secas do Nordeste. Rio de Janeiro, Ministério da Agricultura/Serviço de Meteorologia, 1946.

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LITERATURA

AUGUSTO DOS ANJOS E A ESCOLA DO RECIFE (*) Flávio Sátiro Fernandes

O tema aqui tratado tem sido tocado, apenas, de leve, por quantos se interessam pela vida e pela obra do maior dos poetas paraibanos - Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos. De fato, Agripino Grieco chama-o, de passagem, “epígono retardado da Escola do Recife” (1); Ferreira Gullar alude ao contato de Augusto com o “espírito cientificista que se tornara tradição da famosa Escola do Recife, a partir de Tobias Barreto” (2); Jamil Almansur Haddad proclama que a “geração de Augusto dos Anjos ainda é herdeira da Escola do Recife, do pontificado de Sílvio Romero e Tobias Barreto e acaba sendo um florescimento brasileiro da poesia científica” (3); Pinto Ferreira, em considerações sobre a Escola do Recife, reconhece ter sido Augusto, “não diretamente ligado ao magistério de Tobias, porém influenciado pelo evolucionismo, dentro do clima ideológico da Escola”. (4) O tema, pois, não é original. Coube-nos, apenas, o esforço de tratá-lo mais demoradamente e, pela primeira vez, na província, quando das comemorações do centenário do poeta. Dito isso, perguntaríamos: Que aproximações poderiam ser estabelecidas entre Augusto dos Anjos e a Escola do Recife? Que influências teria o nosso grande vate re-

cebido daquele movimento? Quais os sinais dessas influências na obra de Augusto? Para responder a tais perquirições e para exata compreensão das influências recebidas por Augusto das idéias em voga, ao seu tempo, no Recife, creio necessário expor, inicialmente, o que foi a Escola do Recife, suas figuras luminares, suas fases, as teorias nela discutidas. A ESCOLA DO RECIFE Antes de tudo é preciso deixar claro que a expressão Escola do Recife não remete à velha e tradicional Escola de Direito do Recife, criada juntamente com a de São Paulo, em 1827, a qual deteve por muito tempo a hegemonia no ensino jurídico do norte e nordeste, assim como a sua congênere paulista exerceu-a no centro e sul do país. O que se convencionou chamar de Escola do Recife foi um movimento cultural de ampla repercussão, congregando pensadores, estudiosos, juristas, sociólogos, poetas, preocupados em debater os mais variados temas dentro de suas respectivas especialidades. A Escola do Recife não teve um ideário próprio e definido. Antes, foi um movimento heterogêneo, um cadinho de filosofias, de sociologias, de correntes literárias e jurídicas. Conforme assinala Pinto Ferreira, o

grande esforço válido da Escola do Recife foi o convite ao debate filosófico e cultural. A Escola teve, primitivamente, três fases. Digo primitivamente porque, consoante ainda Pinto Ferreira, “este movimento de ideias não ficou estacionado no tempo, os segmentos do tempo lhe foram indiferentes”. Para o mestre pernambucano, a Escola do Recife “é um movimento dinâmico que sobrevive na atualidade, em uma nova fase de desenvolvimento”. (5) Primitivamente, pois, a Escola teve três fases: a fase poética, a fase crítico-filosófica e a fase jurídica. Durante essas três fases, vários nomes podem ser identificados como exponenciais da Escola: Tobias Barreto, sem dúvida, a maior figura do movimento, Castro Alves, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Martins Junior, Artur Orlando e outros mais. O primeiro período - da poesia - iniciou-se de 1862 a 1863, conforme esclarece Clóvis Beviláqua. (6) Essa fase corresponde à formação daquela corrente denominada por Capistrano de Abreu, “escola condoreira”, integrada por Tobias Barreto e Castro Alves, notadamente, bem como por Vitoriano Palhares, Guimarães Junior, Antônio Alves Carvalho, Xavier Lima (7) e Sílvio Romero. (8) Lançam-se por essa época os fundamentos da poesia filosófico-científica.

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Tobias Barreto embebe-se do panteísmo do “Ahasverus”, de Edgar Quinet e em sua poesia já estremece “um brado de revolta de um espírito abalado pelos desgostos e pela filosofia do século”. (9) Dessa fase é o poema O Gênio da Humanidade, síntese da evolução humana, provavelmente inspirado no Ahasverus. Outro de seus poemas, Ignorabimus, traz à tona preocupações religiosas do autor: Quanta ilusão!... O céu mostra-se esquivo E surdo ao brado do Universo inteiro... De dúvidas crueis prisioneiro, Tomba por terra o pensamento altivo. Dizem que Cristo, o filho de Deus vivo, A quem chamam também Deus verdadeiro, Veio o mundo remir do cativeiro!... E eu vejo o mundo ainda tão cativo! Se os reis são sempre os reis, se o povo ignaro Não deixou de provar o duro freio Da travessia e da miséria o trato; Se é sempre o mesmo engodo e falso enleio, Se o homem chora e continua escravo, De que foi que Jesus salvar-nos veio?... E em outro, intitulado Epicurismo, defende essa filosofia de vida: Se as crenças são um engodo, Se falha o verbo da fé, Se o homem se acaba todo Com a matéria que ele é, Se o coração nada aspira, Se este bater é mentiroso, Se além não há desfrutar, Da vida a idéia suprema, O grande, o sábio problema É viver muito e gozar... Também Sílvio Romero cultiva a poesia científica. E mais: foi seu ardente defensor,

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conforme assinala França Pereira, no Prefácio à segunda edição de A poesia científica, de Martins Junior. (10) São, assim, Tobias e Sílvio Romero os precursores da chamada poesia filosófico-científica, que vai ter, ainda, na Escola do Recife, um teorizador e praticante apaixonado, na pessoa de Martins Junior, de que falarei adiante. A segunda fase é a fase crítico-filosófica, iniciada pelos anos de 1868 a 1870 e que se estende até 1882, quando, com o concurso de Tobias Barreto, para professor da Faculdade de Direito, tem começo a fase jurídica da Escola. Durante a segunda fase têm curso as mais diversas correntes filosóficas, críticas e religiosas, sobressaindo-se como autores mais acatados e discutidos Spencer, Heckel, Hartmann, Schopenhauer, Kant. Mas é fora de discussão que nessa época a Escola elege, por intermédio de Tobias, notadamente, o monismo e o evolucionismo, como as ideias principais de seu pensamento, a ponto de Luís Washington Vita, citado por Pinto Ferreira, observar que a doutrina adotada pelos pioneiros da Escola do Recife foi um somatório daquelas duas teorias. (11) O evolucionismo teve, como se sabe, em Herbert Spencer um de seus mais importantes defensores. A nota fundamental que o evolucionismo spenceriano distingue na evolução é o progresso. Evolução significa progresso, conforme proclama o filósofo inglês em seu ensaio intitulado Progresso. O progresso, segundo Spencer, investe todos os aspectos da realidade. «Quer se trate - diz ele no ensaio citado - do desenvolvimento da Terra, quer se trate do desenvolvimento da vida na sua superfície ou do desenvolvimento da sociedade, ou do governo, ou da indústria, ou do comércio, ou da linguagem, ou da literatura, ou da ciência, ou da arte, sempre no fundo de todo progresso está a evolução que vai do simples ao complexo

através de diferenciações sucessivas». (12) E nos seus Primeiros Princípios, assim definia a evolução: «A evolução é uma integração da matéria e uma concomitante dissipação de movimento, durante a qual a matéria passa de uma homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coerente e durante a qual o movimento conservado é passível de uma transformação paralela». (13) Ao lado do evolucionismo, a outra doutrina, também acatada pelos pensadores foi o monismo, cuja figura maior foi, sem dúvida, o filósofo alemão Ernst Haeckel. Spencer e Haeckel dominam, por conseguinte, com suas teorias, o ambiente cultural do Recife, de fins do século passado e princípios do atual, graças à ação intelectual de Tobias Barreto, o grande mentor da Escola do Recife, e da dos demais que o acompanhavam naquele movimento. Finalmente, a terceria fase da Escola, a fase jurídica, inicia-se em 1882, ano em que Tobias presta concurso para professor da Faculdade de Direito do Recife. Despontam nessa fase, além do grande sergipano, as figuras de Clóvis Beviláqua, José Izidro Martins Junior e Artur Orlando, este mais sociólogo que jurista. Deles, contudo, não nos interessa, aqui, a produção jurídica, valiosa, sobretudo aquela saída do espírito lúcido de Clóvis Beviláqua e consubstanciada no grande edifício jurídico que, foi, sem dúvida, o Código Civil Brasileiro, promulgado em 1916. Não nos interessa, igualmente, a produção histórico-jurídica de Martins Junior, representada, sobremodo, por sua História Geral do Direito e sua História do Direito Nacional. Deste interessa-nos, sim, a sua produção poética, pois a ela estaria ligado Augusto dos Anjos como seguidor do gênero poético praticado pelo mestre pernambucano. De fato, foi Martins Júnior um aficionado da poesia filosófico-científica. E tamanho


era o seu entusiasmo a esse gênero que chegou a teorizar sobre ele, escrevendo e publicando um opúsculo intitulado A poesia científica, em que faz a apologia dessa poesia e de seus precursores em França e no Brasil e onde, a certa altura, diz: «Os nossos literatos e poetas que hoje impugnam a poesia científica, ou têm de se sujeitar a ela dentro em pouco ou têm de desaparecer da liça. A lei da seleção permite que fiquem no campo apenas os mais fortes, isto é, aqueles que na luta descoberta por Darwin, a qual se realiza também na ordem moral, se puderem adaptar ao meio». Em seu Visões de hoje, podemos colher versos com estes, em que é flagrante a aproximação entre a sua poesia e a de Augusto dos Anjos: Estendem-se no pó do solo os velhos cultos Mitos fenomenais espalham-se insepultos Numa grande extensão de esquálido terreno. O ar é fino e puro; o espaço azul sereno. Júpiter, Jeová, Osiris, Buda, Brahma, Jazem no escuro chão sob esta lousa - a lama! Como coisas senis, fossilizadas, negras, Amontoam-se além as bolorentas regras Da Bíblia, do Alcorão, do A Vesta e Rig-Veda. Trôpegos, sem valor, curvos de queda em queda, Fogem, na treva espessa, Adon, Moloque, Siva, Ormud, Vichnu, Abriman, Baalath... E MAIS: Buscando demonstrar pela transformação De uma simples monera a gênese do mundo Orgânico; ensinando o dogma fecundo Do progresso; afirmando a lei da seleção E seu correlativo - a luta na existência!

Tentam reconstruir, fiéis à experiência, O vetusto castelo informe do Direito Que precisa de ser, sob outra luz, refeito! Vemos, aqui, - Littré, Spencer, Buckle, Comte; É a filosofia alevantando a fronte. Ali - Haeckel, Pasteur, Darwin, Lyel, Broca; É a ciência pura e refulgente roca Que serve à fiação metódica dos fatos Ou feios como a morte ou belos como os cactos. (14) É bom salientar que essas três fases da Escola projetam-se no futuro, influenciando o ambiente cultural do Recife, do Nordeste e do Brasil, por muitos anos. Nenhum desses períodos se esgota no tempo que lhe foi atribuído mais para efeito didático, vale dizer, quando se iniciou a fase crítico-filosófica ou quando teve começo a fase jurídica, isso não significou o esgotamento dos períodos anteriores. Ao contrário, conjuntamente, as construções poéticas, filosóficas, críticas, científicas, jurídicas, da Escola estenderam-se em larga por um vasto período da história cultural do País, como teremos oportunidade de salientar a seguir. O CONTATO DE AUGUSTO COM A ESCOLA DO RECIFE Augusto dos Anjos nasceu em 1884, quando já se encontrava em grande ebulição o movimento de que ora aqui tratamos. Em 1903, com 19 anos, pois, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, centro dos grandes debates, palco das apaixonantes discussões filosófico-científicas travadas pelos que faziam a Escola do Recife e seus seguidores. E aqui nós temos uma comprovação da extensão da influência da Escola por um vasto período de tempo. À época em que Augusto frequentou a velha academia, longe de arrefecer, o movimento levado a efeito por Tobias Barreto e outros permanecia

influenciando, com toda vitalidade, a ambiência cultural do Recife, apesar de decorridos quase vinte anos da morte de sua figura maior. Um depoimento eloquente do quadro vivencial constatado àquela época é dado por Gilberto Amado, contemporâneo de Augusto dos Anjos, na Faculdade de Direito: “O espírito de certas épocas penetra a gente de maneira que se aprende no ar, recebe-se a Doutrina dos tempos pelos poros mesmo sem ter estudado, passado os olhos por livro algum. Quase todo rapaz do meu tempo em Pernambuco era agnóstico, espencerista, monista... Havia, porém, uma minoria que, não chegando aos extremos, refugava o fenomenismo, o mecanismo e afirmava-se espiritualista, teologista. Como se ouve hoje, no Rio, perguntar: “Você é Flamengo ou Fluminense?”, ouvia-se na Faculdade do Recife, no velho convento: “Você é monista ou dualista?” Fiquei sabendo como o século XIX, que acabava de morrer, interpretava o que Spinoza chamava substância, Descartes mecanismo, Leibnitz mônada, Kant a “coisa em si” e o que esse século deparava na palavra de Deus a Moisés - Ego sum qui sum”. Terá sido, porém, na Faculdade de Direito o primeiro contato de Augusto dos Anjos com o ideário da Escola do Recife? Terá sido lá o primeiro encontro de Augusto com Haeckel e com Spencer? Terá sido na Faculdade o seu primeiro conhecimento acerca da poesia filosófico-científica defendida tão ardentemente por Martins Júnior? Certamente que não. Já se tem dito e repetido que Augusto teve um único professor de Humanidades - seu pai, Alexandre dos Anjos que, conforme assinala Francisco de Assis Barbosa, aplicaria o seu cabedal de conhecimentos como preceptor dos filhos desde as primeiras letras aos exames preparatórios e até mesmo ao ensino do Direito. (15) Observa, ainda, Francisco de Assis Bar-

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bosa que o “Doutor Alexandre Rodrigues dos Anjos possuía tendências abolicionistas e republicanas. Pelo menos, foi a fama que deixou, como a de ter vasta erudição, verdade que era em letras clássicas além de atualizado com a cultura do seu tempo, leitor de Spencer e até Marx, que citou num artigo “Considerações sobre o salário”, por sinal antimarxista, estampado no Almanaque do Estado da Paraíba. Fora contemporâneo de Tobias Barreto, na Faculdade de Direito do Recife”. (16) É natural que, dotado de tal bagagem intelectual, tenha, como professor do filho, transmitido a este conhecimentos a respeito das teorias mais correntes ao seu tempo. Contudo, essa ação paterna não terá tido força para influenciar a poesia de Augusto. Prova disso é a sua produção anterior ao término do curso de Direito, na qual encontramos versos que falam do amor, da vida, da natureza, de namorados, do mar, do sol, de luz, de estrelas. Aqui e acolá, uma nota de tristeza, de desalento, de desencanto, de desesperança. Jamais, porém, as perquirições de ordem filosófica, as preocupações, as indagações de toda ordem a respeito do homem, da natureza, do ser; jamais o cientificismo, com toda a sua terminologia esdrúxula e que haveria de ser uma das marcas indeléveis de sua poesia. O que vai influenciar de maneira marcante o espírito de Augusto, assinalando novos rumos à sua poesia, é a sua estada na Faculdade de Direito do Recife, onde o estudo das concepções jurídicas e filosóficas que já lhe tinham sido apresentadas, certamente, por seu pai, vai ser revigorado ao sopro dos ventos que, na velha Faculdade, impulsionavam os espíritos jovens de então, consoante o depoimento já visto de Gilberto Amado. Observa R. Magalhães Júnior que quando após a morte do pai, em janeiro de 1905, Augusto dos Anjos retornou ao Recife, a

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fim de prestar os exames do segundo ano de Direito, ao chegar ali encontrou a tradicional Academia abalada com a morte, no ano anterior, de José Izidoro Martins Júnior, o teórico da poesia científica, como antes enfatizei. E ressalta R. Magalhães Júnior: «Todo o barulho em torno de Martins Júnior - decerto excessivo, fruto do entusiasmo generoso e pouco crítico da mocidade estudiosa - deve ter levado Augusto dos Anjos a dar especial atenção a seus versos e às teorias do poeta desaparecido, que influiu também sobre Cruz e Sousa, com quem se relacionou à passagem deste pela capital pernambucana em 1884, como «ponto» da Companhia Julieta dos Santos».(17) Antes, a imprensa recifense já dera guarida a poesias de tom marcadamente filosófico-cientificista, inspiradas, sem dúvida, no epígono maior - até então - daquele gênero, ou seja, Martins Júnior. O jornal do Recife, por exemplo, publicara em 8 de abril de 1903, um poema de Uldarico Cavalcanti, intitulado Ao verme que primeiro tripudiar sobre o meu cadáver: Podes tudo roer, verme putrido e imundo! Esta é a tua missão: devastar a matéria. Tu primeiro virás, depois virá segundo. E milhões virão mais tripudiar, no fundo da cova onde atirar-se a peste ou a miséria! Podes tudo roer! Nada, nada te impeça Na tua faina! Roe a mortalha, o caixão Depois roe-me também: tronco, membros, cabeça. Tudo, enfim, verme, o que à tua gula apeteça Mas não toques, maldito, o pobre coração. Se tanto não saciar tua voracidade Não toque o coração tua boca voraz, Com o ciúme, as paixões, a tortura e a saudade

Que lá estão devastando a minha mocidade, Tu te envenenarás! Tu te envenenarás! E na edição de 24 de setembro de 1904, de autoria de José Gomes de Matos, o Diário de Pernambuco publicava o seguinte poema: ONTO SENTIMENTAL (Ao filósofo e mestre Laurindo Leão) Quando te vejo, a tábida caveira Dos meus olhos febris transfigurada Pelos teus olhos rútilos... Na estrada Repleta de urzes, cardos e poeira. Quando te vejo, esvai-se a derrocada Das leis morais em rápida canseira; E lá, da treva ao clarão, do fogo à geada, Vida nova melhor do que a primeira. Como alguém, pela lei do transformismo, Fez os seres nascidos das moneras, Fez da monera um ser todo espontâneo Tal dos teus olhos, flor do misticismo, Faço nascido, ao som de mil quimeras, O amor que vibra do meu crânio! Como se vê, a poesia científica preconizada por Martins Júnior angariava adeptos e arrebanhava seguidores, mas só alcançaria a culminância com o gênio inigualável de Augusto dos Anjos. AS IDÉIAS DA ESCOLA NA POESIA DE AUGUSTO Foi Eudes Barros que afirmou ter Augusto dos Anjos tentado versar em um livro


de poemas todo o monismo e o evolucionismo de Haeckel e de Spencer. Retirado o que a afirmativa tem de exagero, nós vamos encontrar, efetivamente, na obra de Augusto sinais visíveis e evidente dessa influência, pelo uso de termos e expressões próprios de algumas correntes filosóficas veiculadas no âmbito da Escola, pela referência nominal a alguns pensadores alemães nela acatados, pela adesão irrefutável à poesia filosófico-científica, capitaneada por Martins Júnior. Termos como monera, substância, mônada, transformismo, homogeneidade, nous, pneuma, noumenalidade; expressões como teleológica matéria, energia intracósmica, energia monística, metafísico mistério, vida fenomênica, energia intratômica, motor teleológico, matéria dissolvida; referências expressas ou simples alusões a Haeckel, Spencer, Hoffimann, tudo isso, além das circunstâncias outras repassadas ao longo destas minhas palavras, reafirmam o óbvio, ou seja, a influência recebida por Augusto da Escola do Recife. Estão no “Monólogo das Sombras” estes versos:

Está em «Os doentes», de 1912:

Os dois tercetos a seguir são de «Agonia de um Filósofo», de 1912: No hierático areópago heterogêneo Das ideias, percorro, como um gênio, Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Tentava compreender com as conceptivas Funções do encéfalo as substâncias vivas Que nem Spencer nem Haeckel compreenderam...

Rasgo dos mundos o velário espesso; E em tudo, igual a Goethe, reconheço O império da substância universal!

Em «Psicologia de um vencido», de 1909, Augusto proclama-se, materialisticamente,

O célebre poema «Debaixo do Tamarindo», de 1909, contém esses dois tercetos:

«...filho do carbono e do amoníaco,»

Quando pararem todos os relógios De minha vida e a voz dos necrológios Gritar nos noticiário que eu morri, Voltando à pátria da homogeneidade, Abraçada com a própria Eternidade, A minha sombra há de ficar aqui! Está em «As cismas do destino», de 1908 Um dia comparado com um milênio Seja, pois, o teu último Evangelho... É a evolução do novo para o velho E do homogêneo para o heterogêneo.

e em um de seus sonetos, de 1911, considera o filho morto um «Agregado infeliz de sangue e cal». No «Último Credo», de 1908, o poeta diz: Como ama o homem adúltero o adultério E o ébrio a garrafa tóxica de rum, Amo o coveiro este ladrão comum Que arrasta a gente para o cemitério! É o transcendentalíssimo mistério! É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum, É a morte, é esse danado número Um, Que matou Cristo e que matou Tibério.

“Sou uma sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras... Polipo de recônditas reentrâncias, Larva do caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias!

Vamos encontrar em «Noite de um visionário», de 1910, estes versos:

A simbiose das coisas me equilibra. Em minha ignota mônada, ampla, vibra A alma dos movimentos rotatórios... E é de mim que decorrem, simultâneas, A saúde das forças subterrâneas E a morbidez dos seres ilusórios!

.............................

Creio, perante a evolução imensa, Que o homem universal de amanhã vença O homem particular que eu ontem fui!

O motor teleológico da Vida Parara! Agora, em diástoles de guerra, Vinha do coração quente da terra Um rumor de matéria dissolvida.

Diversas outras passagens poderiam ser indicadas, mas fiquemos só nestas que bastam para exposição do tema que escolhemos para evocar o grande poeta paraibano. g

Depois de dezesseis anos de estudos Generalizações grandes e ousadas Traziam minhas forças concentradas Na compreensão monística de tudo.

Creio como o filósofo mais crente, Na generalidade decrescente Com que a substância cósmica evolue...

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NOTAS: (1) Poetas e prosadores do Brasil, Rio de Janeiro, Conquista, 1968, págs. 70/78. (2) Toda a poesia de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, págs.14/18. (3) Introdução a As Flores do mal, São Paulo, Abril Cultural, 1984. (4) História da Faculdade de Direito do Recife, recife, UFPe, Ed. Universitária, 1980, I, pág. 27. (5) id., pág. 22. (6) História da Faculdade de Direito do Recife, INL, Brasília, 1977, pág. 350. (7) Clóvis Beviláqua, ob. cit., pág. 350. (8) Pinto Ferreira, ob. cit. Tomo 2, pág. 83. (9) Pinto Ferreira, ob. cit. Tomo 2, pág. 46. (10) Prefácio de A poesia científica, Imp. Industrial, Recife, 1914, 2a. Edição. (11) Ob. cit., Tomo I, pág. 24. (12) Apud Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, Mestre Jou, S. Paulo, 1970, verbete «Evolucionismo». (13) id., ib. (14) Apud R. Magalhães Jr., Poesia e vida de Augusto dos Anjos, Civ. Brasileira, Rio de Janeiro, 1977, págs. 110/111. (15) Notas Bibliográficas apensas ao EU, Liv. São José, Rio de Janeiro, 1965, 30a. Ed. (16) id. Ib. (17) R. Magalhães Jr., ob. cit., pág. 109. (18) Zenir Campos Reis, Augusto dos Anjos: Poesia e Prosa, São Paulo, Editora Ática, 1977, pág. 25. (19) id. ib. (*) Texto básico de Palestra proferida no Conselho Estadual de Cultura do Estado da Paraíba, por ocasião das comemorações do Centenário de nascimento de Augusto dos Anjos, em 1984.

Conheça a HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DA PARAÍBA, do Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes, segunda edição, em primorosa produção da Editora Fórum. História Constitucional da Paraíba veio a lume, em segunda edição, incorporando ao seu texto o relato das Constituintes e Constituições paraibanas de 1967 e 1989, não retratadas na sua versão primeira. À época, o Brasil se achava a debateranecessidade da convocação da Assembleia Nacional Constituinte que iria elaborar a Constituição Cidadã, assim intitulada pelo Deputado Ulisses Guimarães, no ato da promulgação. Após isso, iriam os estados se lançar à tarefa de sua constitucionalização à luz dos princípios e normas contidos na nova Carta da República. O importante desta obra é que, apesar de se voltar para o estudo e análise das Constituintes e Constituições de um estado membro da federação¸ela é da maior valia para quem se dedica ao estudo do constitucionalismo brasileiro, notadamente de sua história, haja vista o relato minudente dos principais fatos e circunstâncias que cercaram o funcionamento daquelas assembleias, as quais redundaram em diferentes constituições que, ao longo de mais de um século, disciplinaram a vida político-administrativa daquele estado, refletindo, em suma, a própria história constitucional do Brasil e, de resto, as dos demais estados brasileiros, as quais em muito se assemelham. História Constitucional da Paraíba, abarcando a construção institucional do Estado da Paraíba, de 1891 a 1989, é obra única no país, mencionada pelo constitucionalista Paulo Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional, como uma das mais recentes contribuições à história constitucional do Brasil.

LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO - Editora Fórum. Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba, o Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes é autor de diversos livros e artigos divulgados em diferentes revistas especializadas do campo jurídico. Em linguagem simples, ele trata de temas de grande relevância e, às vezes, polêmicos, pela maneira como os aborda¸ não deixando de emitir suas opiniões e ideias que, em diversas ocasiões, se confrontam com o que pensam alguns doutrinadores. Tribunal de Contas, fiscalização municipal, responsabilidade dos Prefeitos, ação popular, controle social, improbidade administrativa, servidores públicos, prestação de contas, gastos com a manutenção e desenvolvimento do ensino, crimes licitatórios, concurso público, ouvidorias, controle externo, Câmara de Vereadores, responsabilidade fiscal, são questões que ele versa, ministrando a seus leitores proveitosas lições de Direito Administrativo, com incursões pelo Direito Constitucional e pelo Direito Financeiro. “Em direito – diz o Professor Flávio Sátiro Fernandes – vale muito a confrontação de ideias e o cotejo de opiniões que não devemos temer revelar, pois, ao expô-las nada mais estamos fazendo do que contribuir para o debate que enriquece a nossa ciência e contribui para o ideal maior de justiça”. E sobre as suas ideias, opiniões e sugestões, expostas neste livro, confessa: “Elas podem parecer ousadas, umas, e ingênuas, outras, mas, afinal de contas, de ousadias e ingenuidades faz-se o mundo...”

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CIÊNCIA POLÍTICA

LIBERDADE DE IMPRENSA, UMA SALVAGUARDA DA CONSTITUIÇÃO Paulo Bonavides

NOTA DO AUTOR Um dos assuntos constitucionais mais relevantes da atualidade, pelas implicações pertinentes à conservação do Estado de Direito, designadamente em países da periferia, é, por sem dúvida, o que entende com a garantia e a manutenção da liberdade de imprensa, em sistemas presidenciais de governo, minados de crises e expostos a frequentes ameaças - ostensivas umas, ocultas e dissimuladas outras de supressão dessa liberdade, historicamente tão dificultosa de conquistar e conservar, conforme perceberá o leitor. Atravessa o Brasil contemporâneo um de seus momentos institucionais mais graves e delicados da nova fase republicana, inaugurada com a Carta Política de 1988, consoante certidão que nos passa o abalo provocado pelas manifestações populares de junho de 2013, nas principais metrópoles da nação. Subjugar a crise e sustentar as vigas do regime, parece-nos unicamente possível, prevenindo as tragédias políticas do passado – ditaduras, golpes de Estado, atos institucionais, censura aos meios de comunicação, mutilação do corpo representativo nas duas casas do Congresso, decretos de recesso parlamentar, cassação de mandatos legislativos, ofensas de toda ordem à Constituição, eis o cortejo de ocorrências, que estão na memória das cinco repúblicas que o Brasil atravessou em mais de

120 anos de sua história constitucional, desde a queda do Império. Com o longo exórdio dessa reflexão preliminar, afigura-se-nos de todo o ponto justificável e oportuno reproduzir trabalho de nossa lavra, estampado em Fortaleza, há cerca de 30 anos, precisamente em 15 de fevereiro de 1986, no jornal O POVO. Vive o Brasil o chamado momento constituinte, em que todas as preocupações políticas fundamentais convergem para a solução do problema institucional. O País se vale dessa oportunidade histórica para intentar o estabelecimento de um sistema de Governo erguido sobre as sólidas bases da liberdade, da democracia e da juridicidade dos Poderes. A Constituinte e a Constituição, indissociáveis como valores, trazem a um tempo a promessa redentora e a ameaça potencial de mais um equívoco irremediável. Como a hora é de esperanças e de eventual retificação de rumos, vamos abster-nos de comentários sobre o que, de imediato, nos aguarda nessa rota ainda balizada de incertezas, para lembrarmos tão somente a importância que tem a imprensa como instrumento de sustentação do futuro pacto constitucional; a imprensa, que abre ou desobstrui caminhos e que, dos meios de comunicação, é talvez o mais apto a formar opinião. Contribui sempre poderosamente

para consolidar valores e aperfeiçoar representações básicas de cultura política em todas as sociedades onde atua livre e desembaraçada de obstáculos. Tudo isso nos ocorre na data festiva em que o jornal O POVO principia o programa comemorativo de 60 anos de empenho e fidelidade à causa que o fez nascer: a defesa dos interesses populares. O transcurso desse acontecimento nos leva, por conseguinte, a um passeio de reflexões acerca do que tem sido o jornal como elemento civilizador e como órgão de expressão da vontade coletiva, sem a qual não há em nenhuma sociedade poder legítimo nem instituições genuinamente democráticas. Em fins do século XVIII já a imprensa exercia um notável influxo no campo da divulgação das ideias e da formação da opinião pública. Entrava o periódico a concorrer também com o livro na preparação ideológica da sociedade. Os 900 jornais aparecidos na França, durante a Revolução de 1789, foram tão subversivos para a época quanto os textos de Montesquieu, Rousseau e Sieyès; em nada inferiores, por conseguinte, ao “Espírito das Leis”, ao “Contrato Social” e ao “Que é o terceiro Estado?”, alavancas revolucionárias de mudança que prepararam o advento de uma nova idade para as estruturas políticas e sociais do ocidente. Mas o jornal sempre teve uma vantagem

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sobre o livro: a característica de sua atuação mais rápida, quase fulminante, superior ao livro na medida em que fazia pulsar com mais vigor e imediatismo as paixões aquecidas pelo brilho da palavra incendiária. Os grandes jornalistas do passado, senhoreando almas e corações, se comparam aos tribunos imortais. Tiveram na porfia política dos três últimos séculos um lugar de equivalente destaque e importância. Não nos move aqui o sentido de assinalar a valia literária dos periódicos e das gazetas, que também tem sido enorme, como está a demonstrar a Inglaterra de Swift, Addison, Pope e Steele, ou o Brasil de José de Alencar e Machado de Assis. Importa-nos sobretudo ilustrar o caráter político do jornalismo, que teve possivelmente sua idade de ouro, pelo menos na Europa e no Brasil, durante a derrubada do absolutismo real e a implantação da monarquia constitucional. Benjamin Constant, jornalista, fazia Napoleão tremer de ódio. A imprensa de Paris, depois da Revolução, sentiu, porém, cair sobre seus prelos o braço da repressão, das leis autoritárias, da censura, visto que a contradição napoleônica, filha da Revolução, não podia conviver com a liberdade e o Direito, com a Constituição e com as franquias populares. Napoleão podia fazer um Código: promulgar Constituições nunca, outorgá-las sim, como tantas vezes o fez para cimentar, em vão, pela via plebiscitária, as paredes oscilantes do arbítrio e do poder. Em Portugal o século XIX é esplêndido. Reflete as lutas de opinião que a tribuna e a imprensa testemunharam entre liberais e ultramontanos; entre os adeptos de D. Pedro, o libertador, e de D. Miguel, o usurpador. Durante a guerra fratricida, os dois irmãos disputavam a mesma coroa, o mesmo trono, com uma diferença fundamental: o primeiro simbolizava o poder do povo, o poder da liberdade, o poder da burguesia, o poder revolucionário, o poder heróico da Ilha Terceira e do Batalhão Acadêmico do Porto; o segundo, ao contrário, representava o poder de Roma, de uma Cúria que nada aprendera com a Revolução, ou seja, o poder da Inquisição, que escandalizava a Nação portuguesa, intentando ainda sobreviver, como sobreviveu, durante cerca de duas décadas, às luzes do século XIX; era, enfim, a bandeira de todos os retrógrados, de quantos não percebiam o amanhecer de uma época política diferente, com o povo estreando, mediante a representação constitucional e parlamentar, as primeiras manifestações de sua vontade governante, base da nova legitimidade e da nova soberania. Escritores e jornalistas da liberdade foram Garrett, Herculano, Castilho Antônio e José Estevão, entre outros. Este último, a chamada Águia do Marão, um gigante da tribuna e da

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eloquência parlamentar, bem distintos todos eles de um José Agostinho de Macedo, o foliculário da Reação e do altar, frade devasso que intentou manchar a glória de Camões e se mordia de inveja diante do talento e da superioridade de Bocage, o poeta do povão, só comparável neste século ao nosso Patativa do Assaré. De Macedo, porém se vingou exemplarmente Bocage improvisando a “Pena de Talião”, sátira imortal que os séculos não apagarão. A imprensa foi também força participante no processo de emancipação do domínio português durante as lutas da Independência e da consolidação do Primeiro Reinado. Em Londres, circulou o “Correio Braziliense”, a primeira gazeta nacional, desatada dos vínculos coloniais. Igualmente expressiva nos primeiros momentos da nacionalidade veio a ser a função patriótica da “Sentinela da Praia Grande”, com o jornalismo político dos Andradas, significativamente em favor da legitimidade constituinte, contra a qual, numa demissão de seu idealismo liberal, se volveu truculento o primeiro Imperador. A “Sentinela”, positivando a crítica independente, representou, em verdade, uma tomada de consciência em favor da livre circulação das ideias. José Bonifácio, a primeira vítima do poder pessoal que a dinastia de Bragança trasladara às nossas instituições, encarnou com aquele jornalismo a resistência legítima aos que buscavam oprimir a imprensa. Não menos significativa a batalha de Frei Caneca no “Typhis Pernambucano”, contra o ato de força que foi a dissolução da Constituinte. O jornalista-sacerdote fuzilado no Recife pela reação imperial sustentou em cada página daquele diário os ideais republicanos e patrióticos da Confederação do Equador. Evaristo da Veiga, com “A Aurora Fluminense”, se revelou outro gigante do Primeiro Reinado, contribuindo poderosamente com a pena e o talento para a Abdicação. Sem a imprensa, os governos da Regência não teriam por sua vez amparado a causa liberal contra as pressões reacionárias, vitoriosas enfim a partir da Lei de Interpretação do Ato Adicional. Com a Maioridade e o Segundo Reinado, não arrefece o prestígio da imprensa nem a base de sustentação que ela oferece, fora dos prelos conservadores, aos ideais republicanos e aos princípios da monarquia constitucional federativa, tão energicamente propugnados por Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. O historiador político poderá fazer esta indagação inarredável: Teria sido possível o movimento da Abolição sem o concurso dos jornais, sem a pregação cívica e antiescravagista dos editorialistas do Império? Não é sem razão que a colaboração de Rui Barbosa no diário “A Imprensa” abrange vá-

rios tomos debaixo de um título que exprime tudo: “A Queda do Império”. Rui atuava no ânimo da tropa. Seus artigos circulavam nos quartéis. Foram eles, segundo confessaram os autores do golpe de Estado de 15 de novembro de 1889, que desfizeram as últimas resistências de Deodoro à marcha militar do Campo de Santana, onde se decretou o fim do Império. Se a República nasceu em grande parte da propaganda veiculada por jornalistas de escol, não poderia ela portanto ter sido um período de menos glória para o jornalismo brasileiro. O movimento civilista contra Hermes, bem como a Reação Republicana de Nilo Peçanha e os dois 5 de julho, e afinal a Revolução mesma de 30, jamais teriam sido possíveis sem o concurso do periodismo político. A primeira cadeia nacional de jornais — os “Diários Associados” — teve sua expansão estimulada em 1937 por um episódio político de nossa história: a campanha de Armando Sales à Presidência da República. A candidatura paulista pôs em mão de Assis Chateaubriand os meios financeiros para aquisição de mais jornais, inclusive o nosso saudoso “Correio do Ceará”, de A. C. Mendes, comprado naquela época. Se o artigo de fundo, ou o editorial, conforme se chama hoje, já não tem na imprensa da sociedade industrial ou pós-industrial a força política do passado – pelo menos em termos de proselitismo ideológico e de imediato influxo sobre a condução de uma política de governo — nem por isso é desprezível o poder com que orienta e forma opinião, ao lado dos demais meios de comunicação. Há pouco mais de 40 anos, para demonstrar o que continua sendo em nossa vida republicana o prestígio do jornal na decisão de acontecimentos políticos culminantes, uma entrevista de José Américo de Almeida, concedida a Carlos Lacerda, deixou o “rei nu”, acabando numa única manhã com oito anos de estorvos à liberdade de imprensa. Não se disparou um só tiro para pôr abaixo aquele órgão temido e desprezado da Nação, o célebre DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), a criação mais repressiva do regime de exceção introduzido por Vargas no País. Não podemos concluir essas ligeiras considerações históricas sobre a função libertadora da imprensa na política nacional sem aludirmos à Nova República e à derrota da candidatura de Maluf, verdadeiramente inconcebíveis não fora a adesão maciça e corajosa dos meios de comunicação ao movimento das diretas. O quarto poder — a imprensa, a televisão e o rádio — foi assim decisivo para fulminar vinte anos de vergonha nacional e resgatar a honra do País dilacerada com a trucidação das liberdades públicas. g


LITERATURA

MELANCOLIA E IRONIA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Chico Viana*

RESUMO Na poética de Drummond, o sentimento de ser gauche, inadaptado, deriva de uma melancolia à qual se associa uma contraparte irônica. Pretendemos neste trabalho, além de demonstrar em produções do autor a presença desse enlace, destacar alguns procedimentos lingüísticos que se vinculam à representação da ironia. Esta incide basicamente sobre o corpo, por cuja senectude o eu lírico sublinha, melancolicamente, o crepúsculo do desejo. Palavras-chave: melancolia e ironia; erotismo e literatura; ironia e metalinguagem. Melancolia e ironia têm uma base comum – a percepção do contraste entre a pequenez do homem e o seu desejo de transcender a si mesmo rumo a uma experiência do Infinito. Tanto o melancólico quanto o ironista, seja lamentando os reveses da vida, seja reagindo a eles com ceticismo e afetada indiferença, manifestam a consciência do impasse entre a relatividade do indivíduo e o Absoluto a que ele em vão aspira. A angústia em face dessa constatação encontra-se, por exemplo, em Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Olavo Bilac e, numa feição moderna, em Carlos Drummond Andrade. Desde Sócrates, que a utilizava na maiêutica, a ironia se liga à ideia de perda e dissimulação. O filósofo grego dela se servia com o intuito de extrair, à maneira de um parto, a verdade da mente de seus interlocutores. Esse método acabava irritando os adversários, que percebiam o fingimento de Sócrates; diante disso, a ironia adquiriu uma conotação satírica, jocosa, que a acompanha até hoje. Para Friedrich Schlegel, a ironia socrática “é a única inteiramente involuntária e, no entanto, inteiramente lúcida (...). Nela tudo deve ser sério: tudo sinceramente aberto e tudo profundamente dissimulado (1997:36-7).

Em nível filosófico-existencial, a ironia é fruto do contraste entre a autoconsciência do homem e uma natureza que ele não pode compreender nem dominar; “o triunfo da natureza vingadora sobre a loucura das presunções humanas disfarça as convicções em aparências contrárias e se compraz em saborear essa duplicidade” (LAMBOTTE; 2000:118). O ironista dissocia essência e aparência; ao exprimir o contrário do que pensa, ele realça a arbitrariedade que caracteriza o sentido das palavras e, com isso, demonstra o seu desencanto ante a inexistência do Sentido Absoluto. Se nada representa essencialmente coisa alguma, tudo pode significar tudo e até mesmo traduzir o seu oposto. Ironia é disfarce, dissimulação. Mas ela não deve ser confundida com a hipocrisia. O ironista diz o contrário do que pensa; o hipócrita pensa o contrário do que diz. Se digo com ironia que uma pessoa estúpida é inteligente, procuro através de uma expressão oposta afirmar a sua estupidez. Se o digo com hipocrisia, procuro de má-fé negar essa verdade. O que “torna a ironia fina é o afastamento entre a letra e o espírito” (REBOUL; 1998:132) – mas trata-se de um afastamento essencialmente linguístico. A postura irônica constitui tanto um prolongamento quanto uma alternativa ao desencanto melancólico. Modernamente, ela representa uma forma de tolerar, e de reagir, à “inadequação (do homem) ao mundo real, que é o mundo do capital” (GINZBURG; 1999:31). Obviamente, não liberta o indivíduo da melancolia – apenas a disfarça, permitindo que ele de alguma forma conviva com o luto, a perda, o desencanto com a realidade. Tanto a melancolia quanto a ironia têm a sua poética, ou a sua retórica. É pela linguagem que se explicita a intenção de operar num ou noutro sentido, procedendose ao deslizamento em função do qual o que seria derrota em razão da perda transforma-

se, de algum modo, em triunfo. Tais considerações vêm a propósito da obra de Carlos Drummond de Andrade, na qual melancolia e ironia se alternam ou se confundem, concorrendo para traduzir com desencanto e humor o percurso existencial do eu lírico. Desde o primeiro livro, Alguma poesia, Drummond se utiliza de procedimentos estilísticos em que se destaca o enlace entre a representação melancólica e o contraponto irônico. A própria autoatribuição de gauche, referida no “Poema de sete faces” (3), é uma maneira jocosa de tratar o sentimento de inadequação à realidade. “Em Casamento do céu e do inferno” (4), terceiro poema do livro, não é gratuita a referência a essa “lua irônica/ diurética”, que prosaicamente aparece como “uma gravura de sala de jantar”, e sob cujo império se orquestram as antíteses indicadas no título. Um dos traços estilísticos da ironia é o uso expressivo de fonemas que, pelo exótico, contrastam com as formas predominantes na língua. Isto se verifica em várias passagens da obra drummondiana. Destaquemos, a título de exemplo, o efeito de encolhimento e compassiva depreciação que o fonema i, substituindo o fonema a, concede ao vocábulo janela – transformado em jinela. Está no segmento Sabará (7), de “Lanterna mágica”, no qual o poeta menciona as “casas encardidas onde há velhas nas jinelas”. Através desse recurso fonético, sugere um apequenamento que intensifica a ideia de decrepitude do lugar. Outro exemplo ocorre em “Fuga”, poema no qual se critica a alienação dos brasileiros em relação à Pátria. Nele, a similaridade de fonemas finais em palavras contíguas, presente no penúltimo verso, concorre para ironizar nosso fascínio pelo estrangeiro. Se a nossa basbaque admiração passou da Europa para os Estados Unidos, somos os bárbaros que “se entregam perdidamente/ sem anatólios nem capitólios/ aos deboches americanos” (18). Procedimento

N.A. Os números de páginas entre parênteses referem-se à coletânea Reunião (V. bibliografia). outubro/novembro/dezembro 2013 |

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semelhante ocorre em “Jardim da praça da Liberdade” (17), através da referência aos “tanques langues” que ressaltam a pouca brasilidade do lugar. O efeito é diferente do que se verifica no poema “Igreja”, onde a inversão de joelhos em geolhos parece visar ao destaque do substantivo olhos, nele incluído. Que olhos? Certamente os do eu poético, hipnotizados pelo movimento piedoso, porém involuntariamente erótico, das pernas em genuflexão. O melancólico se sente privado de um bem inomeável, que procura representar por meio de objetos substitutivos; ensina-nos a psicanálise que, por meio da sublimação, esses objetos adquirem o valor e o sentido da Coisa perdida. Em vários poemas, num tom ora mais, ora menos pungente, o sujeito poético drummondiano refere o sentimento de luto por esse objeto, buscando representar o vazio que o inabilita para o convívio interpessoal. Em “Carrego comigo” (79), de A rosa do povo, o objeto é metaforizado no embrulho que ele não recorda onde encontrou. Tratase de um enigma, de um segredo que o eu lírico esconde dos próprios olhos. Esse embrulho o impede de aderir à convocação para transformar o mundo. Escreve então o poeta: “Vem do mar o apelo,/ vêm das coisas gritos./ O mundo te chama:/ Carlos! Não respondes? //Quero responder./ A rua infinita/ vai além do mar./ Quero caminhar. // Mas o embrulho pesa”. Adiante ele reconhece que esse “fardo sutil” mais o carrega do que é carregado, inabilitando-o, no contexto histórico que o poema reflete, para uma prática coletiva capaz de levar às transformações sociais. A ironia “se liga à consciência dos meios expressivos” (MUECKE; 1995:21) e se revela com particular intensidade na atitude metalinguüística. A metalinguagem não deixa de ser uma forma de dissimulação, e portanto de ironia, já que nela ocorre uma aparente recusa de representar o mundo. Em vez de evocar a experiência humana e se constituir em sinal de uma realidade que deve nomear, a linguagem se volta para si mesma. Por efeito desta suspensão, o processo compositivo integra-se ao produto artístico e os meios se confundem com o resultado. Sabemos o quão esse procedimento é comum em Drummond, para quem é vital o testemunho acerca do combate com as palavras. Em composições como “Consideração do poema” (75) e “Procura da poesia” (76), o poeta não apenas reflete sobre a linguagem poética e o fazer poético, como também sugere procedimentos para a elaboração do poema. Talvez a maior ironia esteja em que tais “conselhos”, que refletem um impasse no processo criativo, possam se

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constituir numa fórmula para a criação. É possível que o próprio poeta não acreditasse neles. O apelo à metalinguagem demonstra a tendência que tem o eu poético drummondiano a refletir, a mentar a experiência do mundo e da própria poesia. Em “O elefante” (105), composição metalingüística de A rosa do povo, Drummond constrói uma alegoria do processo de composição poética, figurando através desse curioso animal o produto artístico. É à primeira vista intrigante que o objeto-poema seja representado por um elefante, animal nada sutil; poucos talvez melhor que ele, no entanto, para sugerir o descompasso entre a poesia e um mundo marcado pelos horrores da Segunda Guerra e pelo clima de espionagem e medo gerado pela ditadura Vargas. Tal como o poema, o elefante é feito de produtos heterogêneos para cuja harmonização é necessário um criterioso artesanato. O animal incorpora a madeira de móveis velhos e o marfim indizível que, tanto no plano literário quanto fora dele, lhe conferem riqueza e valor. Misto de imponência e fragilidade, o elefante segue pelas ruas à procura de amigos e irmãos, num mundo “que já não crê nos bichos”. Desastrado e carente, é a própria imagem do eu lírico e da sua inabilidade para se comunicar com as pessoas. Ao contrário das composições anteriormente citadas, a metalinguagem aqui serve de instrumento a referências subjetivas e se afirma como elemento confessional, o que é confirmado em versos finais do poema: “Ele não encontrou/ o de que carecia,/ o de que carecemos,/ eu e meu elefante,/ em que amo disfarçar-me” (106). Outra das fontes de ironia em Drummond liga-se à temática do desejo sexual. Para ele o amor começa tarde, aparece em tempo de madureza e somente quando já se tornou merecido. O eu poético trata com jocosa impiedade os arroubos sexuais – sobretudo os tardios –, que tornam os homens joguetes das mulheres. Em Brejo das almas há vários poemas dedicados à busca frustrada do amor sexual, que é tratado na perspectiva da perda, do logro, e suscita a desforra irônica. A tônica dessas composições é o contraste entre o desejo e a impossibilidade de satisfazê-lo devido à decadência física ou à evanescência do objeto erótico. Essa evanescência, obviamente, nada tem a ver com a vaporosa imagem da mulher no Romantismo, a qual se dilui numa miragem idealizada. Liga-se antes à percepção de que o amor é um jogo em que não há triunfo, pois o troféu-objeto, difuso e ambíguo, esquiva-se ao conhecimento e à

posse. Essa ideia aparece de maneira lúdica e irônica na segunda estrofe de “O procurador do amor” (38), onde a mulher emerge como uma “sombra que se confunde/ com as mulheres gordas e magras/ entra numa porta, sai por outra/ como nos filmes americanos,// e reaparece olhando as vitrines”. Através desse jogo especular, cujo dramático enredo é ilustrado pela referência aos filmes americanos – que influíram na caracterização da mitologia amorosa moderna –, revela-se a impossibilidade de definir os contornos do objeto amoroso. Como um voyeur insaciável o eu poético divisa apenas bicos de seios, que não o satisfazem. “Mas onde seio para a minha sede? – indaga-se ele no final da quarta estrofe, utilizando-se da paronomásia para vincular, por meio das palavras sede e seio, o apetite inesgotável à matriz que o poderia saciar, sugerida metonimicamente pelo vocábulo seio. Em “Toada do amor” (6), de Alguma poesia, a referência ao que as mulheres “mais escondem” é feita de maneira jocosa. Nos versos “Mariquita, dá cá o pito,/ no teu pito está o infinito”, concorre para o efeito irônico, além da aliteração e da homofonia da vogal i, o emprego entre infantil e semvergonha (docemente pornográfico) do substantivo pito para designar o órgão sexual feminino. A rima desse vocábulo com infinito equipara registros linguísticos diversos e unifica, sob o primado do corpo, diferentes dimensões do amor. Outra composição que revela o tratamento irônico da sexualidade é “O amor bate na aorta” (33), de Brejo das Almas. Como em “O procurador do amor”, o objeto amoroso esquiva-se à posse, e o desencanto da perda se compensa por uma espécie de jogo que, graças à sublimação e à racionalização, tende a afastar a melancolia. Para isso concorre o tratamento lúdico da linguagem, que através de rimas internas, paronomásias e da enumeração caótica acentua o propósito irônico. Em ambas as composições Drummond personifica o substantivo amor, desidealizando-o e trazendo-o para o plano concreto das relações humanas. Assim é que o amor transforma-se em Amor, com maiúscula, sendo tratado como um “bicho instruído”. Ele subverte as referências por que se pautam as convencionais relações humanas – ou, no dizer do poeta, “vira o mundo de cabeça para baixo” e inculca no homem o impulso animalesco de trotar as ruas em busca da mulher, numa insaciável procura que tem muito de voyerismo e não conduz à satisfação. Muitos dos procedimentos linguísticos


usados em “O amor bate na aorta” operam no sentido da desautomatização e da ambiguidade. Para sugerir que os encontros e desencontros amorosos viram “o mundo de cabeça/ para baixo”, confunde-se a própria linguagem em construções paronímicas e homonímicas mediante as quais o amor ora bate, ora ronca na porta, na aorta ou mesmo na horta. Referências à natureza associamse a designações da anatomia humana, indicando estas últimas a decadência física e a consequente impossibilidade de satisfazer o desejo. Um das referências a essa impossibilidade encontra-se no verbo constipar: “fui abrir e me constipei” – escreve o poeta no terceiro verso da segunda estrofe de “O amor bate na aorta”, sugerindo um duplo incômodo físico decorrente da extemporânea pretensão amorosa. Constipa-se quem se atreve a sair à noite para um encontro amoroso; e constipam-se sobretudo os velhos, nos quais é frágil a saúde respiratória. O verbo constipar indica contenção ou congestão de fluxos secretórios. No contexto do poema, ele representa o preço pago em razão do impulso erótico extemporâneo e antecipa outras referências irônicas ao amor senecto, que ronca na horta – certamente mais de sono que de prazer – entre o apelo sublimado das laranjeiras e as solicitações picantes das uvas; meio verdes, estas se confrontam com os desejos já maduros. A antítese entre verdura e madureza intensifica-se por meio da enumeração caótica, pois os substantivos que esses termos qualificam – uvas e desejos – pertencem a campos lexicais diferentes.

Os procedimentos acima, que expõem a degradação corporal com vistas a depreciar as pretensões do sujeito, ligam-se à chamada ironia disfemística. Nela, “os sentimentos mais líricos são equiparados a afeçções mórbidas, e as reações mais poéticas são cruelmente adstritas às reações fisiológicas” (PAIVA; 1961:18). Há uma substituição do corpo erótico ou pulsional pelo corpo anatômico, com o intuito de ilustrar o que no organismo é deterioração, carência, impossibilidade. Como as representações físicas esgotam-se na imanência corporal, na qual se destaca a crueza das referências mórbidas, faltam os ingredientes de imaginação e fantasia que normalmente compõem o erotismo. Como uma espécie de complemento à boca “murcha dos velhos”, cujos “dentes não mordem” – mencionada em “O amor bate na aorta” –, vão aparecer em “Sentimento do mundo” as dentaduras duplas, que infindavelmente ostentam o seu “sorriso técnico”. Graças a elas a boca enfim se liberta “das funções poético-/sofísticodramáticas/ de que rezam filmes/ e velhos autores”, de modo que pouco significam os atos simbólicos vinculados ao órgão bucal em face do desmonte orgânico representado pela perda dos dentes. Resta ao eu lírico, ironicamente, esperar que as dentaduras venham consolá-lo de “não sei quantas fomes/ ferozes, secretas”(56). Em “Necrológio dos desiludidos do amor”, também de Brejo das almas, as referências anatômicas visam a ironizar o romantismo dos amantes que, por desencanto, suicidam-

se. Para isso o autor confere literalidade a significados convencionalmente simbólicos e se utiliza de um léxico que destroi, por sua vinculação aos processos fisiológicos, a aura tradicionalmente conferida ao amor. Isto se pode perceber melhor no seguinte fragmento do poema: Os médicos estão fazendo a autópsia dos desiludidos do amor. Que grandes corações eles possuíam. Vísceras imensas, tripas sentimentais e um estômago cheio de poesia (41). Percebe-se nesse trecho que, limitados à esfera física, os termos associados à representação amorosa ganham outro sentido. Terminam destacando, em razão do seu emprego impertinente, a cômica impertinência de certos arroubos emocionais. A ironia se completa com a referência à atitude das mulheres, que se deleitam com ver os homens as perseguirem sem jamais alcançá-las (vv. 3 e 4 da primeira estrofe). Como dissemos no início deste trabalho, melancolia e ironia são indissociáveis. A prevalência de um ou de outro desses estados afetivo-espirituais, se determina a tonalidade da obra, não esconde no entanto o vínculo genético e estilístico que existe entre ambas. Em Drummond, a ironia é certamente um jeito reto de rir do “anjo torto” que o mandou ser gauche na vida. É uma forma, se não de destruí-lo, de desconcertá-lo com a imprevista e superior aceitação desse duro desígnio. g

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, V. M. de. Teoria da literatura. Coimbra, Almedina, 1982. ANDRADE, C. D. de. Reunião (10 livros de poesia). 5. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973. FREUD, S. Luto e melancolia. In: ---. Obras completas. Vol. xiv. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago,1980. GINZBURG, J. Melancolia e história em Álvares de Azevedo; relato de pesquisa. In: Seminário Literatura & História; perspectivas e convergências. UFSM – Santa Maria, RS, 02-03 ago. 1999. LAMBOTTE, M-C. Estética da melancolia. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000. MUECKE, D. A ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, Perspectiva, 1995. NESTROVSKI, A. Ironias da modernidade; ensaios sobre literatura e música. São Paulo, Ática, 1996. NOVAIS PAIVA, M. H. de. Contribuição para uma estilística da ironia. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1961. REBOUL, O. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 1998. SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos. Trad., apres. e notas Márcio Suzuki. São Paulo, Iluminuras, 1997. (Biblioteca Pólen). SILVA, A. R. da Silva. Melancolia e ironia. In: http://www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/AntonioRicardoRodriguesdaSilva.htm SONTAG, S. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre, L&PM, 1986. outubro/novembro/dezembro 2013 |

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LITERATURA

CECCO ANGIOLIERI, O ANTIDANTE ALIGHIERI Evandro da Nóbrega

O primeiro filósofo com quem convivi, a partir dos sete anos (depois viriam outros, de Sócrates a Adorno) foi Ninim, vaqueiro tirador de leite das vacas de meu pai. Como se passava isso em Patos (PB), sempre o chamei Ninim das Espinharas. Era de infinita bondade. Conhecia tudo de pastorar gado e de aboios. E, todos os dias, me dizia inesquecíveis frases, ao estilo destas: *O Mundo é doido e a mãe num sabe; *Quando a gente morre, tudo isto se acaba; *O Céu só tem uma coisa ruim, as virgens eternas... CÃO-DE-RABO VERSUS ANJO DA GUARDA Certa vez, Ninim me explicou sua, como direi, teoria dos espíritos-de-porco. Segundo ele, quando nasce uma pessoa, o “povo do Céu” manda um anjo da guarda para acompanhá-la na passagem terrena. Nos Infernos, irritado com isso, o Cão-de-Rabo, vulgo Belzebu, destaca um de seus inumeráveis “secretários” (diabos, diachos, coisas-ruins, demônios, capirotos ou que outros nomes tenham) para também acompanhar o infeliz, atazanando-lhe a vida. CECCO VERSUS DANTE Para uma revista literária que o escritor, conselheiro, historiador e constitucionalista Flávio Sátiro Fernandes batizou de Genius, nada melhor que trazer logo dois gênios, no caso dois dos maiores poetas italianos de todos os tempos: Dante e Cecco. Dante Alighieri (circa 1265–1321) também teve seu cão perseguidor, o diabrete incansável que o tirou do sério. Foi outro poeta, Cecco Angiolieri (circa 1260-1312), uma espécie de “anti-Dante”. Dante é universal e sempiternamente louvado, ao passo que Cecco, nem tanto... Enquanto Dante mostrava-se sério,

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A iconoclastia de Cecco Angiolieri contrastava com a seriedade de Dante Alighieri.

Dante Alighieri (circa 1265–1321) também teve seu cão perseguidor, o diabrete incansável que o tirou do sério. Foi outro poeta, Cecco Angiolieri (circa 1260-1312), uma espécie de “antiDante”. Dante é universal e sempiternamente louvado, ao passo que Cecco, nem tanto...

compenetrado, o blasfemo Cecco levava vida dissoluta: jogo, bebida, mulheres, brigas, sonetos mordazes... Sua família era rica e nobre, além de haver fornecido um banqueiro ao Papa. Mas Cecco se afastou logo cedo do pai e da mãe. BECCHINA VERSUS BEATRIZ Nos poemas, Cecco dizia odiar os dois, o pai e a mãe, alegando serem contra a ligação amorosa que mantinha com a desabrida Becchina, musa de sua vida e poesia. Becchina, já se vê, era o contraponto à Beatriz (Beatriz) de Dante. Pronuncia-se bek-kína e é diminutivo do aparentemente já diminutivo Domenichina (diga domenikina, ‘Dominguinha’). Não era nobre, mas filha do curtidor de couros Benci. Cecco [pronunciado tchékkô, com ênfase na primeira sílaba] é um dos diminutivos de Francesco [frántchèskô], por si já diminutivo de Franco. Assim, Francesco Angiolieri da Siena adotou o apelido de Cecco Angiolieri (forçando um pouco, Chico dos Anjinhos). Mas nem pense em chamar Francesco Petrarca de Cecco Petrarca! “SE EU FOSSE FOGO”... Constituída por mais de uma centena de sonetos muito bem resolvidos (alguns dos quais apenas atribuídos a ele, sem certeza de autoria), a obra de Cecco viu-se ignorada por muito tempo. Mas, depois, veio sua revalorização. O mais famoso desses sonetos não é um dos que Cecco compôs para, sobre ou contra Dante, mas aquele cujo incipit reza: “Se eu fosse fogo...” Depois do soneto sobre o Florentino (ver mais abaixo), vêm, por importância, os que cantam os beijos de Becchina — e outro, hilariante, “dedicado” a um cavaleiro de Siena, Neri. Este ótimo soneto intitula-se “Quando Ner Picciolin voltou da França”... Sim, Ner Picciolino voltara da França todo metido a besta, com um ridículo sotaque francês e ostentando uma riqueza que não tinha... Ah, em tempo: devo o interesse por


Cecco, desde os anos de 1980, ao falecido amigo italiano Arialdo DeBernardi, que me presenteou com livros sobre ele. O historiador Humberto Cavalcanti de Melo, grande apreciador da Literatura italiana, também me estimulou a persistir na tradução dos sonetos de Cecco. Se livro sair deste esforço, Humberto será o prefaciador. COMO FOI A BRIGA DOS POETAS Dante emitira comentário maldoso sobre o colega Cecco, vate bem menos famoso que ele. Teria o Florentino insinuado que Cecco não passava de um begolardo nos palácios dos nobres, onde contava lorotas para goderar refeições deles. Begolardo, já no italiano da época, significava charlatão, fanfarrão, bufão, contador de vantagens. Cecco não gostou, claro. Tascou um soneto ferino (e bem escrito) em cima de Dante, fazendo-o calar-se, pelo menos no tocante ao próprio Cecco, já então conhecido como autor de ótima paródia (séria!) de um soneto de Petrarca. Por esse tempo, estava Dante em Verona. Cecco, por seu turno, achava-se em Roma. Ambos eram refugiados, por causa de problemas políticos em suas cidades natais, Florença e Siena. Noutros sonetos (vide abaixo), Cecco já citara Dante. De início, eram amigos, mas, depois do dantesco comentário, seguido da ceccoesca resposta em versos, degringolou a amizade. SONETOS EM TRÊS VERSÕES Mais adiante, neste mesmo artigo, o leitor verá três versões do soneto de Cecco: 1) no original, em arrevesado dialeto itálico-medieval; 2) na tradução livre, em prosa; e 3) numa tentativa de recriação minha, em português.

—, opôs Cecco a figura de sua Becchina, robusta, sensual, desabrida, brava, saída do povo. Se Dante tinha sua Beatrice (da família Portinari), Cecco dispunha de sua Becchina (dos Anzóis...). O sienense chegou a enviar sonetos mordazes ao poeta florentino, criticando acerbamente isso de “tremer as pernas” ante as moças (ou vice-versa) — e não obteve resposta: Dante evitava contato com seu diabinho pulga-de-cós... Apesar disto, e ignorado pelos “dantistas” por séculos, Cecco foi, sem dúvida, com seu estilo cortante, o mestre, o paradigma do verso cômico, humorístico, sardônico da Literatura italiana.

Representação moderna de Cecco pelo xilogravador florentino Pietro Parigi.

Não temam o linguajar italiano do século XIII: os textos em nosso vernáculo explicam o sentido da coisa. Mas é bem verdade que nem todo leitor italiano de hoje pode facilmente entender o falar ceccesco antigo, dialetal, abstruso, medievalesco, cheio de apóstrofos e abreviações (por exemplo, <s’ i’> em lugar de <si eo> = <si io> = se eu). O estudioso dos poetas desse recuado tempo tem que conhecer o “espírito da língua” italiana, sua História ortográfica, os dialetos locais etc. BEATRICE VERSUS BECCHINA Em vários sonetos, Cecco ridicularizou a visão de Dante de uma mulher idealizada. À Beatriz poético-dantesca — aquela de tanto gentile e tanto onesta pare la Donna mia quand’ella altrui saluta, tímida, pudica, reservada, tremelicante

NEM OITO, NEM OITOCENTOS Não se quer, evidentemente, emprestar a Cecco importância igual à de Dante, poeta que influiu de maneira decisiva no surgimento de um mundo novo. Dante chega a ser a própria Teologia cristã poetizada, versificada, “lirismificada”. Tampouco se pode negar a Cecco o valor que também indubitavelmente ele teve e tem. Nas últimas décadas, numa espécie de resgate de seu papel, a herança dele vem sendo cada vez mais estudada — não apenas na Itália, mas noutros países civilizados. À exceção, porém, de pouquíssimos intelectuais, isto não ocorre no Brasil, que em certos momentos parece dedicar-se apenas ao balípodo e/ou ao correr empós trios-elétricos. Nas nações avançadas, Cecco Angiolieri já é tema (além da óbvia poesia) de novas edições críticas, pesquisas, música, teatro, romance, concursos — e também é a designação de vitorioso time de futebol italiano! Quem lá pensaria em fundar uma squadra di calcio com o nome de “Dante Alighieri Futebol Clube”?!... Com Cecco, no entanto, ocorre justamente o contrário... E a crescente fama de Cecco vem servin-

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se a banha chupo, sugas tu o lardo.

do, hoje, até para criticar figuras da Política italiana via charges. Mas vamos, agora, diretamente aos sonetos de Cecco, no original, em tradução em prosa e na recriação em português.

Escovas sempre a roupa, se a guardo; e, se discurso bem, nunca tens paz; se banco o rico, és nisto contumaz; se romano virei, tu és lombardo.

SONETO ORIGINAL S’i’ so bon begolardo [Di Cecco Angiolieri a Dante Alighieri]

Nenhum de nós dois pode, Deus garante, recriminar o que o outro fez, por falta de siso ou fado inconstante.

Dante Alighier, s’i’ so bon begolardo, tu mi tien’ bene la lancia a le reni, s’eo desno con altrui, e tu vi ceni; s’eo mordo ‘l grasso, tu ne sugi ‘l lardo.

E se de mim falares outra vez, vou perseguir-te e te cansar, oh Dante — pois sou o aguilhão e tu, a rês.

S’eo cimo ‘l panno, e tu vi freghi ‘l cardo: s’eo so discorso, e tu poco raffreni; s’eo gentileggio, e tu misser t’avveni; s’eo so fatto romano, e tu lombardo. Sì che, laudato Deo, rimproverare poco pò l’uno l’altro di noi due: sventura o poco senno cel fa fare. E se di questo vòi dicere piùe, Dante Alighier, i’ t’averò a stancare; ch’eo so lo pungiglion, e tu se’ ’l bue. VERSÃO LIVRE, EM PROSA De Cecco Angiolieri para Dante Alighieri. Você, Dante, me chama charlatão, mas não é tão diferente de mim. Se no almoço chupo manteiga à mesa dos poderosos, Você, na ceia, lhes suga o toucinho [a forma lardo também existe em português]. Se sou conviva permanente, Você sempre aparece na hora das refeições. Se tento virar gentil-homem à força, Você também desta maneira vai-se quase transformando em senhor de grandes posses. Quando me destaco, Você morre de inveja. Pelo exílio, me tornei romano; e Você, lombardo,

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Dante Alighieri, alvo preferencial de Cecco, no detalhe de uma pintura de Rafael.

igualmente por desterro. Mas, graças a Deus, nenhum de nós dois pode reprovar algo no outro, pois tudo isto vem da falta de juízo e da desventura ou mau destino. Então fica assim, Dante Alighieri: se persistir em dizer essas coisas sobre mim, juro que haverei de deixá-lo cansado — pois doravante vou conduzi-lo, vez que sou o aguilhão e Você não passa do boi. SE SOU UM FANFARRÃO... [Recriação de Evandro da Nóbrega] Se sou um charlatão e não um bardo, não ficas, Dante, nem um pouco atrás! Se almoço com uns, o jantar te traz;

OUTRO SONETO CONTRA DANTE Dante aconselha Cecco a louvar, não a amada Becchina, mas... um Marechal!... E, na irônica resposta, Cecco revela os “podres” desse Comandante... Definitivamente, o poeta satírico italiano Cecco Angiolieri era mesmo uma espécie de antiDante — ou, como disse um crítico dele conterrâneo, “o moleque do círculo (literário) de Dante”. Insistindo num ponto: o florentino Dante Alighieri (circa 1265–1321) e o sienense Cecco (1260-1312) eram de início amigos. Empenharam-se até naquilo que a Literatura ítala chama de tenzone, disputa ou “desafio” em que dois poetas usam seus recursos literários concorrendo a primazia. Antes de adotar o dolce stil nuovo e de enveredar pela construção de sua Commedia (depois Divina Comédia), Dante também fez poemas humorísticos. Posteriormente, deixou essa seara para Cecco, que terminou se firmando como o Pai da Poesia Satírica italiana. CATUCANDO O CÃO Perderam-se os poucos sonetos que Dante fez para provocar, no bom sentido, a reação de Cecco. Mas sobreviveram pelo menos quatro dos sonetos elaborados por


Cecco em resposta aos de Dante. O último deles foi Se sou um fanfarrão, que o leitor já conhece (ver acima). Pois é: num soneto (ou noutro escrito qualquer ou, ainda, quem sabe, num comentário verbal ou epistolário), Dante achou de dizer que Cecco era um begolardo — um charlatão, fanfarrão, bufão — que, no estilo bobo-da-corte, contava vantagens para “goderar” comida nos palácios dos ricos. A resposta ferina que Cecco lhe deu, como se viu acima, arruinou para sempre a amizade da dupla. O MARECHAL E UNS FALSOS FLORINS Torcendo o nariz aos elogios que Cecco destinava, em sonetos, à sua amada Becchina, Dante o aconselhou a cantar não a discutível beleza da pobretona, mas as glórias épicas, militares — por exemplo, as de um marechal bem conhecido dos dois (e de todos), posto à frente de um pequeno exército pelo rei napolitano Carlos II (1254-1309). Na resposta poética, mais uma vez Cecco ironizou a visão de Dante. E esse soneto-resposta — visto adiante — dá bem a medida das risadas provocadas entre os que ouviram e/ou leram a nova peça ceccoesca... Isto porque o marechal (um comandante, enfim) era conhecido por comprar os favores sexuais de incautas beldades da época com... florins que pareciam de ouro, mas em verdade falsos! CARLOS II, O COXO O pior é que, no ultimo terceto desse poema, Cecco faz a velada ameaça de levar o comportamento do marechal (et pour cause, a admiração de Dante por ele) ao conhecimento de seu patrão/patrono, o rei Carlos II. Esse Carlos II era aquele mesmo cognominado “o Coxo”, que foi rei de Nápoles e Sicília entre 1285 e 1309, além de príncipe de Salerno, rei titular (nominal) de Jerusalém, conde de Anjou e filho de Beatriz de Provença. Daí a referência à Provenza, no segundo terceto — que, por sorte, rima com Florença (Fiorenza), onde se encontrava Dante. Essa Beatrice (não a de Dante, mas a mãe de Carlos II!) era mulher de Carlos I de Anjou, que conquistara o mesmo Reino de Nápoles e Sicília na década de 1260. O dialeto toscano em que Cecco escrevia, o linguajar sienense, é hoje de leitura difícil mesmo para um italiano. Mas foi com base no toscano que Dante, Cecco e outros grandes escritores construíram a língua padrão moderna. SONETO ORIGINAL Lassar vo’ lo trovare di Becchina

Torcendo o nariz aos elogios que Cecco destinava, em sonetos, à sua amada Becchina, Dante o aconselhou a cantar não a discutível beleza da pobretona, mas as glórias épicas, militares — por exemplo, as de um marechal bem conhecido dos dois (e de todos), posto à frente de um pequeno exército pelo rei napolitano Carlos II (1254-1309). [Di Cecco Angiolieri a Dante Alighieri] Lassar vo’ lo trovare di Becchina, Dante Alighieri, e dir del mariscalco: ch’e’ par fiorin d’or, ed è di ricalco; par zuccar caffettin, ed è salina; par pan di grano, ed è di saggina; par una torre, ed è un vil balco; ed è un nibbio, e par un girfalco; e pare un gallo, ed è una gallina. Sonetto mïo, vàtene a Fiorenza: dove vedrai le donne e le donzelle, di’ che ‘l su’ fatto è solo di parvenza. Ed eo per me ne conterò novelle al bon re Carlo conte di Provenza, e per sto mo’ gli fregiarò la pelle. VERSÃO LIVRE, EM PROSA Você quer, Dante, que eu deixe de cantar minha amada Becchina para louvar os méritos do Marechal. Deixarei, pois, de fazer sonetos para ela [Cecco continuou a produzi-los às pencas!] e passo agora a elogiar esse militar — embora os florins dele não sejam de ouro, mas de uma liga

de cobre com latão... Seu açúcar não é de Caffa, não é O autêntico — é apenas sal... Ele parece servir pão de trigo, mas aquilo é somente forragem... O Marechal parece ser uma torre, mas é tão só um pequeno balcão... Posa de galo, mas é apenas uma galinha... Desta forma, soneto meu, vá até Florença [onde está Dante com toda essa admiração pelo Comandante] e fale aí às mulheres e às donzelas, jurando-lhes que sua beleza não passa de aparência. E eu, por mim, todas essas novas contarei ao bom rei Carlos, conde de Provença — e bem hei de preparar a cama e massagear as costas do Marechal! DEIXAREI DE CANTAR BEQUINA, MINHA DOCE AMADA [Recriação de Evandro da Nóbrega] Não mais canto Bequina, a amada minha, oh Dante! E louvo agora o Marechal, que, parecendo açúcar, é só de sal; ouro promete, mas só dá farinha. Sala parece, mas é camarinha; tem-se por trigo, sendo um capinzal; falcão quer ser, não sendo nem pardal; semelha um galo, mas é só galinha. Que meu soneto vá até Florença e jure que a beleza das donzelas não é real, mas só de parecença. E saberei — levando tais novelas ao bom rei Carlos, conde de Provença — se o Marechal tem quentes as costelas... CHOQUE DE ESTÉTICAS... Cecco já vinha ironizando o dolce stil nuovo e as concepções estéticas de Petrarca e do contemporâneo Dante. Um dos sonetos chega a ridicularizar a visão dantiana de uma mulher idealizada, no caso Beatriz (Beatrice), que nunca chegou a se casar com Dante e que, em verdade, esposara um ricaço. Não importa: Dante fora ao próprio Inferno para revê-la, mais ou menos como o músico/poeta/cantor Orfeu fizera, na Mitologia greco-romana, com outra bella, sua Eurídice: Che farò senza Euridice?... Pois é como se disse: à Beatriz poético-dantesca — aquela de “tanto gentile e tanto onesta pare / la Donna mia quand’ella altrui saluta”, tímida, pudica, reservada, tremelicante —, opôs Cecco a figura de sua amante Becchina, que, como já se disse, era robusta, sensual, desabrida, brava, saída do povo. g outubro/novembro/dezembro 2013 |

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TEXTOS E DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA

VENHO GOVERNAR SEM PREVENÇÕES E SEM PREFERÊNCIAS (*) João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque

Srs. Deputados: Agradeço cordialmente a vossa manifestação. Recebo-a primeiro como a demonstração pública das disposições em que vos achais, de colaborar, dentro das vossas funções constitucionais, com o novo Governo, e depois com a promessa de que essa colaboração não faltará enquanto for boa a gestão dos negócios públicos. Dar-vos-ei, neste particular, tudo quanto houver de possível nas minhas energias. Eleito pelos sufrágios espontâneos dos meus generosos conterrâneos, unidos todos sem indagarem, no momento, qual a corrente política a que obedeciam, se, por um lado, devo envaidecer-me, por outro encho-me de apreensões, ante as responsabilidades maiores que me impôs esse gesto fidalgo e generoso. A ele procurei não ser insensível na organização do meu governo. Não olhei amigos, não atendi unicamente às aspirações legítimas de correligionários. Procurei cercar-me de elementos partidários de matizes diferentes e de não partidários. Não tive preocupações pessoais. Impressionei-me apenas com os nomes que o consenso geral apontava como dignos da investidura. Procurei atender, só e só, ao interesse da nossa terra. A escolha, pode-se dizer, foi mais vossa do que minha e creio convosco que ela não desmerecerá da vossa estima e confiança procurando realizar as nossas comedidas e comuns aspirações. Deveis ter notado que não vos dei antes uma plataforma, um programa de governo cheio de esperanças e de promessas. Também não atendi às solicitações insistentes que me fizeram a respeito, daqui e de outros pontos do país. Não foi por originalidade que fugi à praxe. Não gosto de prometer para faltar. Somos filhos do infeliz e abandonado

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Nordeste, o que quer dizer, somos filhos de um Estado cujas rendas dependem de condições climatéricas. Quando nos aparece o flagelo da seca, bem o sabeis, a dor, a morte e o luto espalham-se pelas nossas fazendas, pelos nossos campos, pelos nossos lares, tudo é ceifado – lavouras, criações, vidas humanas. Já ouvi até homens de governo, estadistas, dizerem que o remédio seria o despovoamento da região para as zonas sulinas do país, mais protegidas pela natureza e pelos poderes públicos. Isso revela completo desconhecimento do problema. Esquecem-se, os que assim se externam, de que, se o despovoamento fosse praticável ou aconselhável, a Espanha, a Itália, os Estados Unidos, a Inglaterra (no Egito) tê-lo-iam adotado, em vez de gastar, sobretudo estes dois últimos países, centenas de milhares de contos para aproveitamento in loco de trabalho das suas populações, habitantes das regiões secas. Esquecem-se de que o Nordeste possui a maior área aproveitável do mundo para a cultura do algodão; esquecem-se de que nele se colhe o algodão que alimenta os milhões de fusos das fábricas brasileiras; esquecem-se de que, despovoado o solo nordestino, desapareceria a sua principal cultura, seriam fechadas essas fábricas, estariam milhões de operários sem trabalho, milhares de famílias na miséria. Ao demais, a colocação da população nordestina, já calculada em cinco milhões de almas, nas regiões sulinas, não traria como consequência fatal, irremediável, a desorganização do trabalho nessas mesmas regiões? E o custo do deslocamento, transporte e localização dessa mesma massa, dessa considerável população, não seria maior, muito maior, do que a soma que a nação precisa ainda para despender na conclusão das obras que o nordestino vive a implorar no seu abandonado infortúnio? Bem se vê que não vale a pena insistir que o Brasil, como

disse há pouco o Sr. Dr. José Américo de Almeida, não conhece o Nordeste. Irmãos criados separados nunca se querem fraternalmente. Prosseguindo em nossa ordem de considerações e, como ia dizendo, quando se manifesta a calamidade, as rendas públicas desaparecem. O Tesouro fica sem recursos para satisfazer as mais urgentes necessidades do Estado. Vivendo a Paraíba, sob a ameaça da seca constante e apavorante, seria insensatez fazer-vos promessas ou incutir no ânimo do povo esperanças de realizações, que nem o candidato, nem ninguém, tem a certeza de satisfazer. Os problemas da Paraíba são conhecidos de todos nós: porto, estrada de penetração, construção de novas estradas de rodagem e conservação das existentes, saneamento, crédito agrícola, cultura do algodão etc., etc. A ordem pública não merece aqui ser incluída: 1º, porque é dever dos governantes assegurar a paz, a tranquilidade a todos indistintamente; 2º, porque o aparelho que a assegura é permanente e os seus gastos se incluem entre as despesas ordinárias do Estado. Não trago a convicção de extinguir o cangaceiro nos nossos sertões; venho com o propósito de não lhe dar tréguas, esteja onde estiver e seja quem for o seu protetor ou o seu homiziador. Quem se sentir humilhado com a ação da polícia, que não o acolha em suas casas e propriedades. O cangaceirismo é o produto da falta de justiça e da nossa viciada educação política, feita em gerações sucessivas. Não é possível corrigir hábitos inveterados de um povo apenas em um ou dois quadriênios. Façamos, portanto, uma reeducação, persistindo a perseguição uniforme aos cangaceiros, sem preferências e também sem crueldade contra os indefesos sertanejos que, dentro do seu desesperado viver, são, antes, vítimas do cangaço do que seus protetores e,


por fim, esse mesmo povo infeliz, sofredor, nos ajudará a extinguir essa repugnante praga que tanto nos envergonha e deprime. Mas, continuando, poderei resolver um, alguns ou todos os problemas que acabo de enumerar? Não sei, nem ninguém saberá: tudo depende dos recursos que o Estado nos possa fornecer. Quereis, entretanto, saber qual o meu programa? Resume-se nisso: “fazer o maior bem possível à Paraíba”. No tocante à política, a sua direção superior continuará a inspirar-se nos altos conselhos do eminente Sr. Senador Epitácio Pessoa, não por uma questão de simples homenagem, mas por um dever que os dirigentes da Paraíba têm para com o seu grande filho e benfeitor. Eleito presidente da comissão diretora do Partido – por ser o Presidente do Estado e somente enquanto o for, conforme ficara isto resolvido pelos chefes do mesmo Partido, após a morte do nosso saudosíssimo Solon de Lucena – tomarei a iniciativa de propor alterações em algumas das bases do seu programa: 1º, para só permitir a renovação do mandato legislativo em circunstâncias especiais; 2º, para incluir nesse programa político a revisão da legislação eleitoral, a começar pela Constituição Federal, com o intuito de proibir sejam eleitores os semianalfabetos. A vitaliciedade nas funções a Constituição só o permitiu, entre nós, muito restritamente. Temporariedade é a regra dominante. Os nossos maus hábitos políticos, porém, têm contrariado esse salutar princípio constitucional. Deputados e Senadores perpetuam-se nas funções, fiados apenas no valor que lhes dá o oficialismo dos seus Partidos. Descuram-se de seus deveres, perdem o estímulo, não indagam das necessidades do Estado, submetem-se a um incondicionalismo que os desprestigia e não cuidam de conquistar a renovação do mandato à custa de serviços. A reeleição só deve ser permitida como recompensa destes. É preciso conter o profissionalismo político. De outro modo, será fechar a porta das assembleias dos corpos legislativos às aspirações legítimas de outros correligionários dedicados, esforçados, dignos e merecedores de recompensas. A renovação dos representantes nesses corpos legislativos, além de ser de boa prática democrática, consulta melhor os interesses e o prestígio dos partidos. Quanto à reforma da legislação eleitoral, devo logo acentuar que não sou infenso ao

Não trago a convicção de extinguir o cangaceiro nos nossos sertões; venho com o propósito de não lhe dar tréguas, esteja onde estiver e seja quem for o seu protetor ou o seu homiziador. Quem se sentir humilhado com a ação da polícia, que não o acolha em suas casas e propriedades.

voto secreto; mas não acredito que ele seja o elixir infalível, capaz de curar todas as moléstias do nosso organismo político. Todos sabem que não há boa construção sem bons alicerces. Do mesmo modo, não há democracia sem boas eleições; não há boas eleições sem bom eleitor; não há bom eleitor sem voto consciente e não há voto consciente sem eleitor independente. Antes do voto secreto, que não modificará os nossos vícios eleitorais, pois que o leitor continuará a depositar na urna a chapa que lhe foi entregue pelo cabo eleitoral ou o mandão da aldeia, à porta da seção, ou mesmo dentro da seção, nas vilas e cidades do interior, tendo apenas o trabalho de colocá-la no envelope, fornecido pela mesa eleitoral, quando estiver recolhido ao compartimento reservado; antes do voto secreto, precisamos do voto consciente e obrigatório, obrigatório sim, porque todo cidadão tem o dever cívico de escolher e eleger os seus governantes e representantes. O voto consciente só obteremos reformando, antes de tudo, a Constituição, para que a lei eleitoral possa elevar o senso do eleitorado, permitindo, assim, a constituição deste com aqueles que tenham claro discernimento, tenham

pleno conhecimento do ato que praticam, saibam o que significa ser intendente ou conselheiro municipal, deputado, senador, governador ou presidente, saibam, em uma palavra, realmente ler e escrever. Meus conterrâneos, não quero terminar sem dirigir-me particularmente ao povo de minha terra. Venho governar sem prevenções e sem preferências. Conheço as minhas deficiências e, por isso mesmo, não posso prescindir da colaboração daqueles que desejam, sinceramente, trabalhar pelo bem comum. Onde estiver o interesse da nossa Paraíba, ali estarei com a minha autoridade, com a minha assistência, parta de onde partir a ideia, esteja onde estiver o orientador desse interesse: entre os que não têm cor política, entre os homens de governo, ou de oposição, seja quem for. Afastado, desde muito, de vossa vida íntima, só agora vim a saber que desapareceu o único jornal de oposição que aqui existia. Acentuo o fato com pesar. Um órgão de oposição bem orientado, com a liberdade de ação que não possuem os jornais governistas – presos às conveniências partidárias – é útil fiscal, é grande colaborador dos governos bem intencionados. A unanimidade não estimula os governantes e, ao contrário, às vezes os conduz desassombrados à ilegalidade. Estimo as oposições dignas do seu papel. O interesse geral, como vinha dizendo, está acima de tudo; o desvelo por esse interesse é a maior felicidade que um povo pode esperar do seu governante. Não é boa a política que embraça ou descura essa felicidade. Marcando nós ao seu encontro, não devemos distinguir correligionários oposicionistas ou indiferentes, devemos ver somente paraibanos. Trabalhemos todos pela grandeza da nossa terra. O palácio do governo é a casa do povo. Daqui ninguém voltará sem ser ouvido, desde que se apresente em horas oportunas e não venha perturbar o trabalho que se executa pelo bem público. Unamo-nos todos, tenhamos um só desejo – o bem da Paraíba. Colaborai comigo, meus conterrâneos. Se acertar, encorajai-me; se errar, criticai-me, mas não insulteis, para que a crítica não perca o seu valor corretivo. Criticai-me e ajudai-me para que eu não erre de novo. É assim que vos desejo, é assim que vos quero, povo da minha terra. g (*) Discurso proferido no dia 22 de outubro de 1928, perante os deputados à Assembleia Legislativa da Paraíba, ao assumir o cargo de Presidente estadual. outubro/novembro/dezembro 2013 |

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FICÇÃO

Paixão de Alan Hear t Conto de Mercedes Cavalcanti1

Quando Alan entrou no Curso de Graduação em Medicina, teve de se mudar de Sossego, interior da Paraíba, para viver na capital. Foi acolhido na residência dos tios, na praia do Cabo Branco. E foi aí – precisamente aí – que o rapaz entortou a bússola, a vela, o leme, perdeu o rumo e a paz de seu coração. O Motivo? Ah... Quem poderia ser, senão a prima Diana? Morena clara, os cabelos negros caíam-lhe quase até a cintura, em caracóis vaporosos de ondas do mar. O velho mini-short que usava em casa ficava menor e menor, à medida que ela abandonava a feição de criança e assumia as formas encorpadas de adolescente. Apertada, aquela peça de roupa mais mostrava que cobria! Ora revelava um côncavo engolindo o tecido jeans, ora descobria as convexidades glúteas e arredondadas de mangas-rosa... As coxas grossas e firmes desciam até os joelhos sedosos e as pernas torneadas que, por seu turno, iam desembocar nos pequenos pés delicados de Diana. Estavam sempre metidos em sandálias de tiras que circulavam entre seus dedinhos e se atavam aos tornozelos, que a natureza modelara como uma escultura. E os olhos? Ah, os olhos de Diana... duas uvas de vinho tinto... Grandes, tinham aquele misto de candura de menina e malícia de mulher. Entre curiosa e faceira, ela dava a volta no jardim para espiá-lo, sorrateiramente, pela janela do quarto dos fundos que os tios haviam adaptado para o sobrinho. Temendo afugentá-la, ele fingia não perceber as longas pestanas arrebitadas insinuando-se entre as venezianas como duas chamas chamantes. Alan vibrava de desejos de homem, preso a um fogo que a muito custo continha. Ora, a priminha era menor de idade, não passava de uma menina, aos olhos da lei. Mas, a seus olhos de homem... Ai, tudo isso o tirava da concentração dos pesados livros que tinha que vencer! Cada vez que a pressentia observando-o por trás das frestas, o pobre rapaz passava mal: seu peito pulsava, dava saltos e cabriolas, empinava como cavalo selvagem louco para sair do curral. Parecia que, a qualquer momento, o seu coração sairia pela sua boca.

Os dias transcorriam e, tão aflito já estava com os anseios libidinosos crescendo e se adensando, que passou a estudar na biblioteca da universidade. Era o único lugar que, agora, lhe trazia paz de espírito e possibilidade de se debruçar em tantos compêndios que devia ler para levar avante o seu curso de Medicina. Deixou de tomar o café e o almoço em casa. Contudo, chegava para jantar. Não resistia à coalhada, ou ao cuscuz com leite de coco, ou inhame com ovo, ou macaxeira e carne de sol, ou tapioca com queijo coalho, que a sua tia fazia como ninguém e que o transportava às ceias maternas, lá em sua casinha de Sossego. Degustando os mesmos sabores de sua terra, esquecia, por alguns minutos, o olhar de Diana deitado sobre o seu. Na maioria das vezes, ainda ia, depois do jantar, à biblioteca e só retornava direto para o leito. Ali, consumia-se em angustiosa insônia. E, quando adormecia, era um sono inquieto, mal dormido, agoniado. Diana surgia gigantesca, tomando conta de seu imaginário noturno, para em seguida se sumir, se sumir, sumiiindo e se esvaiiindo completamente no espaço. - Dianaaaa! Acordava assustado com o seu próprio grito. O rosto amarfanhado, olheiras profundas contornando-lhe os olhos vermelhos. Passou a ter um sonho estranho e recorrente: seu coração disparava, se alvoroçava aos pulos, como se quisesse sair pela boca. E, de repente, saía mesmo, assumia vida própria. Flutuando, atravessava o seu quarto, a porta. Vencia o corredor e adentrava o aposento onde repousava, calmamente, Diana – a responsável por seu desejo ensandecido. A seguir, com o cone inferior do coração, tocava os lábios carnudos da menina adormecida, que, provavelmente num reflexo inconsciente, os entreabria. Era o bastante para que o coração entrasse, escorregando pela língua dela, transpondo suas amídalas, e se perdendo no interior do corpo de Diana. Então, seguindo o som das batidas do coração dela, o de Alan deslizava até o encontrar e nele se recostava, somando às pulsações da menina-moça as suas pulsões de homem feito. Acordava lânguido, extenuado, descorado. Agora, contava as horas para que chegasse logo a noite e, com ela, o sonho.

Sonho secreto. Sonho de cobiça e volúpia inconfessável! Sonho repetido, sempre igual: O coração açoitando o tórax e saltando fora da boca e escapulindo para o quarto de Diana, adentrando os lábios da moça e se unindo ao coração dela, em batimentos simultâneos, lado a lado, ora loucos, ora cadenciados – sempre gozosos. Os tios notaram a palidez do sobrinho. Preocupados, supuseram que não estava se alimentando direito e lhe exigiram que fizesse as refeições diurnas, também, em casa. Ele obedeceu, mas foi pior: não conseguia engolir nada, tal a emoção que a presença de Diana lhe causava. Assim, gradativamente, via-se mais e mais enfraquecido, mais e mais descorado. Até que, um dia, adquiriu uma tonalidade azulada na pele. Naquela noite, os tios o avisaram: haviam-lhe marcado hora para o dia seguinte, com um clínico geral. Só que, pela manhã, estranhamente ele não se levantou. Nem compareceu à mesa, para o café. Tampouco se apresentou para ir, com os tios, ao tal consultório, conforme o combinado. Simplesmente, permanecia trancado no seu quarto. Decidiram investigar. Encontraram-no morto na cama. Desesperados, os tios mandaram os médicos do IML investigar a real causa mortis, para poderem, inclusive, dar explicações aos pais do rapaz, que, a essas alturas, já haviam sido avisados. Finalmente, toda a família se reuniu para escutar o laudo: Alan Heart morrera do coração. Enfarto!? Um menino tão novo? – indagou a mãe do rapaz, derramada em lágrimas inconsoladas. — Não. Não foi enfarto – esclareceu o médico legista – nem outro mal do coração. Ao contrário! Faleceu, justamente, por falta de um coração. Procuramos em todo o corpo e não o encontramos. A ciência não explica, mas ele estava vivendo sem o coração! Todos ficaram boquiabertos. Menos Diana. Corada e viçosa como jamais, fechava os seus lábios fortemente, pressionando-os com ambas as mãos. É que sentia o peito disparar e latejar e dar saltos, como se dois corações batessem ao mesmo tempo, e um deles quisesse sair pela boca... g

*Este conto faz parte do décimo livro de Mercedes Cavalcanti, intitulado NUA, lançado em 2013.1

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TURISMO

O POTENCIAL DA HISTÓRIA DA CAPITAL PARAIBANA NO DESENVOLVIMENTO DO SEU TURISMO CULTURAL Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins

Na percepção de uma pessoa comum, como eu, é natural que, diante de qualquer cogitação acerca do desenvolvimento das atividades turísticas politicamente corretas em uma cidade, os seus potenciais usuários tenham em mente certos requisitos ou expectativas inerentes àquelas finalidades. Esses potenciais visitantes que buscam atividades de lazer esperam encontrar na cidade por eles escolhida — além de uma infraestrutura operacional, necessária para se receber turistas — determinadas características básicas como, por exemplo, clima aprazível, povo de índole acolhedora, uma razoável variedade de recursos naturais, peculiaridades interessantes no conjunto arquitetônico e urbanístico daquele lugar, assim como uma atraente diversidade na cultura local, seja popular, seja erudita. Muito a propósito, tais características básicas servem como uma luva à capital paraibana ou, melhor dizendo, à toda Grande João Pessoa, composta de vários municípios, embora deva-se admitir que a Paraíba despertou um pouco tarde para a indescartável realidade do turismo no mundo moderno. De todo modo, antes tarde do que nunca. Afinal de contas, há bastante tempo o turismo, como meio de desenvolvimento econômico e social das cidades, vem sendo praticado em todo o mundo civilizado, desde que essas cidades disponham de produtos turísticos apetecíveis e que merecem ser ofertados ao mundo exterior. No meu modesto entender, em princípio, as diretrizes do planejamento turístico de uma cidade devem ser concebidas de uma forma, a mais autêntica possível e fiel às suas realidades locais, e precisam também se revestir, tanto quanto oportuno, de um formato educativo e até pedagógico, a fim de que possam ser vistas como representativas da identidade cultural daquele específico lugar. Noutras palavras,

No meu modesto entender, em princípio, as diretrizes do planejamento turístico de uma cidade devem ser concebidas de uma forma, a mais autêntica possível e fiel às suas realidades locais, e precisam também se revestir, tanto quanto oportuno, de um formato educativo e até pedagógico. aos turistas faz-se necessário oferecer as fantásticas realidades daquele específico lugar e não as alegóricas realidades alienígenas. Ainda na opinião de um leigo em turismo como eu, ou seja, no entendimento de alguém que não fabrica o pão, apenas o degusta e o consome, quero crer que o planejamento turístico de uma localidade deveria ficar sob o manto de uma política reguladora do poder público. É evidente que não se pode descartar aí a desejável colaboração da iniciativa privada, tanto nas ideias que são propostas, quanto na participação financeira da sua viabilização. No caso particular da Grande João Pessoa, por exemplo, parece razoável que um planejamento global de turismo dar-se-ia através de um trabalho conjunto, mediante convênios entre os poderes executivos

de cada um dos municípios aí envolvidos, tendo como objetivo comum a sistematização integrada das mais diversas ações de lazer a serem ofertadas aos visitantes daquém e dalém mar. Afunilando agora o propósito essencial destas minhas palavras, devo dizer que raros são os rincões deste País que — além de possuírem aqueles requisitos básicos, há pouco mencionados, sinalizadores de um turismo promissor — também dispõem de uma História rica, embasada em crônicas primordiais ou documentos contemporâneos do seu próprio alvorecer, fontes estas que contêm elementos históricos preciosos, os quais se prestam muito bem para propósitos turísticos do melhor nível. Sem dúvida, a Paraíba, mais particularmente a atual grande João Pessoa, se enquadra entre aqueles privilegiados rincões brasileiros que possuem uma História rica, como a que acabo de caracterizar. Suas fontes históricas primárias nos dão conta, à guisa de ilustração, de primitivos trajetos fluviais e de antigos monumentos arquitetônicos de valor inestimável, como é o caso das nossas primitivas fortificações, assunto ao qual venho dedicando minhas pesquisas históricas há já algumas décadas. É bem verdade que atualmente, excetuando o forte do Cabedelo (já numa versão arquitetônica do Século XVIII, portanto, bastante tardia), não mais existe a quase totalidade daqueles monumentos arquitetônicos a que me referi, entretanto, eles não estão absolutamente perdidos. Acerca de alguns deles, como o forte da fundação desta capital, possuo inclusive as suas características arquitetônicas, bastante fiéis, resultado de meus longos estudos pachorrentos. Dessa maneira, vários desses antigos fortes da grande João Pessoa poderiam ser reconstruídos, gradativamente, sem muito ônus, já que eles eram de pequeno porte e tioutubro/novembro/dezembro 2013 |

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nham a estrutura de madeira rebocada, além do fato de ser hoje quase irrisório o custo decorrente da desapropriação dos respectivos terrenos para o interesse público. Assim, esses fortes serviriam para fins culturais, compondo um grandioso cenário histórico, muito propício às atividades turísticas desta terra, à semelhança do que se pode observar em vários locais do mundo, todavia, com mais vantagens. Digo com mais vantagens porque o produto final desse empreendimento, em médio prazo, não seria apenas um único e já extinto monumento a ser recuperado do limbo em que se encontra, mas sim um grande sítio histórico-arqueológico formado por vários monumentos arquitetônicos do Século XVI. Os propósitos turísticos dessa grande iniciativa cultural nem precisariam esperar o término de todas as obras para essas finalidades. Já a partir da reconstrução do primeiro antigo forte tais objetivos poderiam ser prontamente operacionalizados e iriam se ampliando progressivamente. Vale até a pena lembrar aqui que durou somente cerca de um mês de trabalho efetivo para se completar a edificação original de um daqueles fortes do Século XVI, ou seja, o forte do Varadouro, que marcou a conquista da Paraíba e que, no meu entender, deveria ser a primeira daquelas reconstruções, servindo também de museu. Aliás, como já antecipei, a correta fisionomia arquitetônica e a verdadeira localização do primitivo e extinto forte do Varadouro são perfeitamente conhecidas, mercê das pesquisas que pude realizar neste sentido. Enfim, o novo forte do Varadouro teria, simbolicamente, alguns membros da sua guarnição vestidos em trajes da época, além de um guia devidamente treinado para contar aos turistas (e também aos alunos e demais habitantes desta terra) os fatos mais representativos daquele monumento histórico, além de alguns outros fatos da sua época. Como esse forte do Varadouro tinha as costas voltadas para o rio Sanhauá, situando-se à beira de um outrora excelente cais natural, posso agora, adicionalmente, dar asas à imaginação para enriquecer mais esse quadro. Fico, pois, a vislumbrar também a construção de uma caravela adequadamente construída — e não daquele tipo vexaminoso que quase naufragou por ocasão das comemorações dos 500 anos do Brasil — fundeada no rio Sanhauá a fim de levar seus passageiros, turistas ou moradores da terra, para um belo passeio cultural. Ela navegaria no rumo do Paraíba, rio abaixo, passando mais adiante pela praia (fluvial) do Jacaré e depois pela atualmente denominada ilha da

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É preciso lembrar que os bairros de uma cidade são como as pessoas: eles nascem, crescem, atingem a adultícia e a sua maior pujança para depois envelhecerem progressivamente e, se não receberem a tempo os necessários cuidados geriátricos, certamente morrerão bem mais cedo do que se pode esperar. Restinga (onde existiu uma pequena fortificação no Século XVI protegendo a morada do inditoso Manoel de Azevedo, o primeiro Provedor da Fazenda Real na Capitania da Paraíba, como pude demonstrar). Daí seguiria em frente até o forte do Cabedelo, hoje com feição bem diferente da original. Deste ponto a caravela retornaria pela margem esquerda do rio Paraíba, passando pelo local do pioneiro forte de São Filipe e São Tiago (primeira semente efetiva da conquista desta terra, entretanto, malograda, forte este que também poderá ser reedificado oportunamente). Depois disso a caravela passaria pelo sítio do antigo forte do Inobi (sob a invocação de Santa Margarida, como também pude verificar), situado igualmente à margem esquerda do rio Paraíba. Finalmente, ela atracaria junto ao antigo porto da canária, e não «porto da casaria”, como bem retificou o saudoso Otacílio Nóbrega de Queiroz e, mais tarde, tive também a oportunidade de ratificar a mesma contestação. Este porto da canária foi posteriormente chamado de varadouro das naus do rio Sanhauá e hoje constitui um local bastante assoreado, quase irreconhecível, da parte baixa do Bairro do Varadouro na capital paraibana. Incidentalmente, abro aqui um espaço para dizer que não consigo imaginar outra iniciativa mais eficaz do que a reconstrução do forte do Varadouro, que acabo de sugerir, como meio suscitador de uma verdadeira revitalização do Bairro do Varadouro, outrora tão importante e hoje tão decadente. Assim me posiciono porque entendo que uma revi-

talização desse tipo vai muito além da pintura dos seus prédios e da pontual restauração de algumas de suas edificações naquela área. Advirto, desde já, que não pretendo aqui minimizar o louvável trabalho até agora realizado nesse sentido, o que, por si só, já constitui um importante passo entre os vários que deveriam ser ainda palmilhados. O que quero dizer é que, no meu parecer, revitalizar uma área urbana decadente, em última análise, é vivificar essa área. É restaurar não apenas a sua aparência, mas também mobilizar efetivamente o interesse social por ela. Sem se promover o resgate desse interesse social, enfim, sem se promover, de algum modo eficaz, a recuperação do antigo valor que essa importante área urbana teve mas perdeu, tornando-se aos poucos decadente em decorrência do deslocamento topográfico do seu primitivo interesse, o resultado do que já foi feito até agora será, infelizmente, uma área urbana limpa e bem apresentável, entretanto, sem que isto interfira na sua decadência e no seu progressivo despovoamento. É preciso lembrar que os bairros de uma cidade são como as pessoas: eles nascem, crescem, atingem a adultícia e a sua maior pujança para depois envelhecerem progressivamente e, se não receberem a tempo os necessários cuidados geriátricos, certamente morrerão bem mais cedo do que se pode esperar. Voltando agora aos sucessivos passos daquele vasto sítio histórico--arqueológico, de inegável valor cultural e enorme potencial turístico, posso agora entendê-los, na parte ou no todo, como os atos de uma grandiosa peça teatral. Os elementos que a compõem podem ser comparados a «recriações» ou «remontagens» de um «cenário» histórico a ser visto e «revivenciado» por uma «plateia» de «expectadores-atores», ou seja, a própria população desta terra e os turistas curiosos quanto às origens deste País. Estes últimos serão, a princípio, atraídos por algum criativo apelo publicitário com objetivos turísticos, mas se transmutarão em naturais multiplicadores dos afluxos turísticos subsequentes, mediante a divulgação que, por certo, eles próprios farão após sua inesquecível experiência cultural, inédita neste País. Assim, a Grande João Pessoa, detentora de tanta riqueza histórica, poderá vir a representar, em médio prazo, um dos mais importantes polos turísticos nacionais em função do seu incomum filão cultural, ainda virgem como produto turístico, de relativo baixo custo, porém de elevado nível para a promoção do desenvolvimento social e econômico desta terra. g


MEMÓRIA

Oito

vezes

GILBERTO

Carlos Alberto Azevedo

1 Graças a Renato Carneiro Campos, pude privar da amizade de Gilberto Freyre. Convivi com o autor de Casagrande & senzala no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, onde trabalhava como antropólogo. Carneiro Campos não tinha papas na língua. Era irreverente, profundamente irreverente. Muitas vezes o vi criticando Freyre. Ia para o jardim do Instituto e gritava para quem quisesse ouvir sua catilinária contra o Mestre de Apipucos. Nessas ocasiões, este dizia: Renato acabou de tomar uns conhaques. Freyre era amigo de seus amigos, tanto é que, naquela época, em plena ditadura militar, nenhum generalzinho conseguiu expurgar os comunistas (socialistas) do Joaquim Nabuco. Lá estavam Sylvio Rabello, Amaro Quintas, Renato e muitos outros. Em 1964, o historiador Amaro Quintas fora preso, por suspeita de subversão. No mesmo dia de sua prisão, Gilberto foi soltá-lo: - General, Amaro Quintas é socialista, mas é meu amigo. Vim buscá-lo.

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Houve um tempo em que Gilberto Freyre não recebia nenhuma carta do exterior. Interceptavam a correspondência que lhe era endereçada. As cartas voltavam para os remetentes com um carimbo dos Correios e a observação: «o destinatário faleceu.”. Freyre desconfiou de que isso era coisa de comunista. E escreveu uma série de artigos, publicados no Diário de Pernambuco, denunciando a infiltração de comunistas nos Correios de sua cidade. Renato tentava acalmá-lo: - Ora, Gilberto, você bem sabe que Recife sempre foi uma cidade de comunistas.

Alguém do Instituto Joaquim Nabuco, a pedido de Freyre, entregou a correspondência de Gilberto ao poeta Manuel Bandeira, para ser datilografada. A secretária era uma das melhores datilógrafas do Instituto. Tratava-se de uma senhora de seus cinquenta anos, solteira, católica, pudica e funcionária concursada do Ministério da Educação e Cultura. Não chegou nem a datilografar cinco cartas. Foi logo falar com o poeta Mauro Motta, o diretor do Instituto. - Doutor Mauro, me recuso a executar esta tarefa. Não tenho nenhuma obrigação de datilografar estas imoralidades que o doutor Gilberto escreveu. Sou funcionária concursada e se me aborrecerem muito saio daqui. Vou para outra repartição, onde haja mais decência. As cartas foram depois entregues a uma jovem datilógrafa que se deliciava com o conteúdo das missivas. - Esse doutor Gilberto...murmurava a moça.

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Seus cursos e conferências eram singulares. Atraíam um público seleto. Gilberto Freyre costumava ler suas conferências, mas não se detinha apenas ao texto, fazia-lhe muitos comentários. Ora olhava para Nilo Pereira, ora para Waldemar Valente, ora para Vamireh Chacon, procurando o aval de seus pares. Lá atrás, quase sempre estava a esposa de Gilberto, dona Madalena tricotando, tricotando. E policiando quem estivesse conversando na sala. Aqueles psius inibiam qualquer tentativa de conversa. Madalena Guedes Pereira Freyre, paraibana de nascimento, era uma presença constante nas conferências do Mestre.

Várias vezes fui com Gilberto para o Seminário de Tropicologia, na Universidade Federal de Pernambuco. O Mestre gostava de se sentar na frente, ao lado de Seu Edgard, o motorista dele. Punha a mão em cima da porta do carro e gesticulava nervosamente, como se estivesse mandando o chofer correr. No banco de trás, Sílvio Soares e eu sorríamos. Seu Edgard nos olhava pelo espelho retrovisor, esboçando um sorriso sonso, malandro, cúmplice, de quem conhecia todas as esquisitices do patrão. Numa das sessões do Seminário de Tropicologia, alguém indagou a outro: Quem é este velhinho bizarro que acabou de chegar? Freyre ouviu a pergunta. S a a a be, é o doutor Gilberto de Mello Freyre, gritou ele.

5 Depois da minha defesa de tese na Escola de Sociologia e Política, os jornais noticiaram que eu defendia a sobrevivência de um matriarcado africano nos candomblés da Bahia e nos xangôs do Recife. Não faltou quem fosse até Gilberto Freyre, para dizer que a minha tese ia de encontro às suas ideias. Logo mandou me chamar. Olhou para mim, como um pai olha para um filho teimoso, depois me dirigiu a palavra: - Azevedo, soube que você afirmou que houve um matriarcado africano no Brasil. Essa é, também, a tese de uma obscura antropóloga americana, Ruth Landes, amiguinha do Édison Carneiro, uma mulher que mal conhece o nosso país... Nunca houve matriarcado africano no Brasil, s a a a be? gostava muito de dizer ‘s a a a b e’ era um cacoete dele. Olhei para o Mestre, com carinho. E disse: - Houve, sim, doutor Gilberto... Constatamos a sobrevivência de um matriarcado nos grupos de cultos afrobrasileiros. Não esboçou nenhuma reação. Assim era o nosso Gilberto Freyre: imprevisível.

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7 Gilberto tinha as suas antipatias, suas predileções, suas afinidades eletivas era humano, demasiadamente humano. Nós todos, seus colegas e amigos, provocávamos o Mestre para, então, saber o que ele achava disso ou daquilo, ou, até mesmo, para saber como Freyre avaliava seus pares. Da Escola de São Paulo (sociólogos e cientistas políticos ligados à USP) poupava apenas Florestan Fernandes tecia muitos elogios à obra de Florestan. Em conversa informal, certa vez, no Instituto Joaquim Nabuco, lhe fiz a seguinte pergunta: Doutor Gilberto, o que o senhor acha de Octávio Ianni? Não hesitou em responder: É um mediocrão, s a a a be? Já, por outro lado, não escondia sua simpatia pelo escritor e antropólogo Darcy Ribeiro. Era fã de Darcy. E este o admirava muito. Escrevera, até, um longo estudo so-

bre Casa-grande & senzala. Para chateá-lo, Renato, o “terrível” Renato Campos, se referia sempre a Dom Helder Câmara Gilberto ficava calado, ou, às vezes, resmungava algumas frases ferinas contra o então arcebispo de Olinda e Recife. Gilberto, você leu no Jornal do Brasil uma notícia sobre Dom Hélder? Ele foi indicado ao prêmio Nobel da Paz disse Renato. Gilberto não lhe respondeu nada. Continuou a comentar o último romance de Gabriel García Márquez: Cem anos de solidão. Não gostava de García Márquez. Dizia que o escritor colombiano não tinha aquela aguda sensibilidade telúrica do nosso José Lins do Rego.

8 Visitei Gilberto Freyre muitas vezes, no solar de Apipucos (Recife), onde vivia e escrevia suas obras. Lá degustei o saborosíssimo licor de pitanga, uma especialidade de Gilberto. E lá ouvi suas briguinhas: costumava discutir com a secretária particular. Alguns dias estava de mal humor, com cara de poucos amigos. Limitava-se ao necessário nem mais, nem menos. Eu gostava de vê-lo na sua biblioteca, sentado na poltrona de couro, cercado por seus livros, livros por toda parte, muitos até no chão. Redigia seus textos ali, com uma perna em cima do braço da poltrona (como ficou registrado numa fotografia que revela Gilberto em toda sua intimidade). Seu maior xodó era o Nordeste do Brasil. Gilberto Freyre escrevia com paixão, com prazer. Sensualmente.


POESIA CINCO SONETOS DE RAUL MACHADO

Asas aflitas

Deus

Enchem-lhe o canto uns longes de amargura E uma tristeza, que se legitima, Ao pássaro que preso, porventura, A ânsia de voo e liberdade oprima.

Mau grado a ciência, incrédula e profana, Deus não é uma hipótese somente: Existe em tudo, porque está, latente, Dentro da própria inteligência humana.

Semelhante tristeza nos tortura, Idêntica ansiedade nos anima A inspiração, escrava da cesura, Prisioneira do cárcere da rima!

É um milagre de força soberana, De onde, como de límpida nascente, Inesgotável e perpetuamente, Toda a energia cósmica dimana!

Seus cantos são em lágrimas imersos; Tolhidos, os seus voos fugitivos, Tocados de inquietudes infinitas;

É a luz, que aclara báratros profundos, A dinâmica surda que governa A engrenagem mecânica dos mundos...

Há na clausura harmônica dos versos - Um gorjeio de pássaros cativos - E um fremente bater de asas aflitas...

É esse fluido de amor, que anda disperso; - Esse vislumbre de grandeza eterna, Que há nas coisas mais simples do Universo!

Lágrimas de cera

No Campo Santo

Quando Estela morreu, choravam tanto! Chovia tanto nessa madrugada! - Era o pranto dos seus, casado ao pranto Da Natureza – mãe desventurada!

A sepultura em que repousa Estela, - Lírio que mal se abrira, desmaiara! – Não tem jarros, estátuas, nem capela, Nem inscrições em lousa de Carrara.

Ninguém podia ver-lhe o rosto santo, A fronte ruiva, a pálpebra cerrada, Que não sentisse, logo, em cada canto Dos olhos uma lágrima engastada!

Mas é tão simples, tão florida e clara, Que basta ver-se-lhe a feição singela, A sua alvura, entre roseiras, para Saber-se que é a sepultura dela...

Ai! Não credes, bem sei, porque não vistes! Mas quando ela morreu, chorava tudo! Até dois círios, lânguidos e tristes, Acendidos à sua cabeceira, Iam chorando, no seu pranto mudo. Um rosário de lágrimas de cera!

Saudade Alta noite. Desperto e abro a janela. Longe, o mar, soluçando, tumultua... No céu azul, em fundo de aquarela, Fulge o crescente de marfim da lua...

É o mais pobre dos túmulos vizinhos... E o mais lindo, entretanto, que há na terra! Cantam, na sua cruz, os passarinhos... E, ressurgindo em formas caprichosas, A mocidade morta, que ela encerra, Sorri à vida, transformada em rosas...

Por amor de uma incógnita donzela, Plange um violão boêmio, ao fim da rua... Que lembrança de ti!... E a ausência tua Os meus olhos de lágrimas estrela! Ao misticismo do luar tristonho, Fico a sonhar... E, de repente, vejo Um clarão de beleza no meu sonho! És tu que vens, num gesto de piedade, Iluminar, com o encanto do teu beijo, Minha noite de angústia e de saudade! outubro/novembro/dezembro 2013 |

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LITERATURA

Seis histórias de bem contar a Vida, o Tempo, o Amor e a Morte Antônio Mariano

Archidy Picado Filho é um artista que transita com desenvoltura pelo campo da Música, das Artes Visuais – tendo começado com a produção de Histórias em Quadrinhos – e da Literatura. Nesta última, alguns registros merecem nota, a começar por suas publicações no suplemento Correio das Artes, do jornal A UNIÃO, que datam de mais de duas décadas. Entre as obras anteriores, Archidy publicou Lições de Voo 1 e 2 (1995), com três edições, podendo também ser encontrados seus livros A última história de Batman (1995?), assinado com o pseudônimo de “Andryus Tzappak”, Janelas da Alma (2001) e A Máquina da Felicidade e o Cromossomo Zen (2003). Seis breves histórias sobre a Vida, o Tempo, o Amor e a Morte, sua produção literária no âmbito do Conto, perfaz um conjunto de narrativas bem escritas e contadas com poder de sedução do leitor – o que deveria ser regra entre os predicados de um escritor, embora nem sempre coincidam nas inúmeras ocorrências da literatura universal. Mas, nas Seis breves histórias... o autor logra construir atmosferas envolventes da primeira às última linhas. Apesar de alguns nomes que nos representam bem lá fora, a literatura contemporânea local carece ainda de bons narradores, como é o desta obra publicada após concorrer ao Edital Novos Escritos, promovido pela Fundação Cultural de João Pessoa (FUNJOPE), em 2007. A exemplo do que aconteceu com os vencedores da versão anterior (2006), a obra saiu no formato 2 em 1, tendo, do lado oposto do livro de Archidy, outro escritor contemplado, o poeta Jairo Cezar, com sua coletânea de poemas Escritos no ônibus. Embora em seu livro Archidy se mostre pouco no prólogo dispensável (em que, inclusive, se declara um total desambicioso de construir uma obra que se destaque em termos de inovação e reconhecimento por algum primor artístico), da leitura destas peças o leitor de narrativa de ficção vai se convencer que está diante de um bom contador de

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histórias, que sabe conduzi-las e desfechá-las sem artificialismos dispensáveis. Em suas narrativas, Archidy Picado Filho encontrou o tônus necessário para prender a atenção do leitor. Seja em “Liberdade condicional” e “A máquina do tempo”, na esteira da ficção científica, seja em “O fantasma” e “Orgasmo”, seguindo a linha da literatura fantástica, ou em “A última história de amor” e “A conversão” onde, além do fantástico, também se mistura sua verve “mística”. Reportando-me especialmente a “Orgasmo”, conto de que não gostei quando da análise da obra no Edital da Funjope (para indicá-la ou não à publicação), a nova leitura que fiz me desarmou sobremaneira. Claro, há

ainda algo formatado das velhas histórias das revistas eróticas, mas há também a destreza do escritor, que não abre mão do lirismo, principalmente quando almeja o maravilhoso, como este trecho que cito aqui: “Ela se deitou. - Vem cá, vem cá – pediu Ele foi. Lentamente, o homem deitou-se sobre ela, como se deitasse sobre um jardim de flores silvestres, os olhos brilhando como duas estrelas na iminência de explodir no vazio” (p. 71). E depois do orgasmo, quando os amantes se transformam em luz e se dispersam na natureza: “Mas, naquela cidade distante de qualquer lugar, ninguém viu quando milhares de formas luminosas, como pedaços de um imenso arcoíris, semelhantes a pequenos fragmentos de cristais multicores, saíram voando através da janela do quarto de Helena em direção ao céu” (p. 74). Se aqui uso o recurso de extrair da peça de que menos gostei uma mostra da arte de bem escrever, em que Archidy Picado Filho obtém êxito considerável, é para que a tome o leitor como razão de incentivo para ler suas outras narrativas, bem melhor realizadas literariamente. Seis breves histórias sobre a Vida, o Tempo, o Amor e a Morte é a obra responsável por inserir Archidy Picado Filho no rol dos narradores paraibanos contemporâneos, dignos de leitura renovada, a exemplo de Maria José Limeira, Geraldo Maciel, Aldo Lopes de Araújo, Ronaldo Monte, Tarcísio Pereira, Maria Valéria Rezende, Mercedes Cavalcanti, Wellington Pereira, Marília Arnaud, Rinaldo de Fernandes e W.J. Solha, entre outros não menos merecedores de referência. É chegar junto e conferir a arte deste escritor que, com o título em apreço, nos chega também com o aval de Maria Valéria Rezende e Ronaldo Monte, já lembrados acima como autores dignos da generosa atenção e do justo apreço do leitor. g


PRÊMIO

ADVOGADO DA UNIÃO É PREMIADO PELA AGU Equipe GENIUS

O Advogado da União Dario Dutra Sátiro Fernandes, Membro da Advocacia Geral da União - AGU, foi contemplado, recentemente, no 1º Prêmio de Desempenho Funcional, instituído por aquele órgão da administração federal. A premiação, de caráter nacional, foi criada com o fim de reconhecer o esforço e a dedicação de membros da instituição, que tem como escopo a defesa e a representação, judicial e extrajudicial, da União. O prêmio contemplou apenas dez Membros e servidores da AGU, em todo o Brasil, constituindo-se em grande estímulo, não só aos que receberam a outorga, mas também a todos os integrantes da instituição que, nos termos da Constituição Federal, é considerada Função Essencial à Justiça. O procurador paraibano recebeu a láurea das mãos do Vice-Advogado Geral da União, Fernando Luiz de Farias Albuquerque, que esteve em João Pessoa para a entrega do prêmio, o que foi feito na abertura do XIV Encontro Nacional dos Advogados da União, realizado nesta Capital, de 24 a 27 de outubro do corrente ano. O desempenho do Advogado da União Dario Dutra Sátiro Fernandes que motivou o prêmio foi demonstrado¸ notadamente, através de sua iniciativa de criar um sistema de gerenciamento de créditos da União, destinado a agilizar e controlar melhor a cobrança dos débitos imputados a pessoas responsabilizadas pelo Tribunal de Contas da União ou por decisões judiciais, reunindo informações atinentes não só ao débito de cada um, mas também ao patrimônio dos devedores e situações envolvendo os seus bens, tais como, penhora, sequestro, indisponibilidade de bens, arrematação, tudo contribuindo para um maior controle e conhecimento do andamento processual das cobranças dos débitos. Diante dos resultados positivos capazes de serem obtidos por meio das inovações criadas pelo Advogado da União paraibano, a AGU já estuda criar mecanismo que possibilite a sua utilização pelas outras Procuradorias da União, assim como a sua interligação em nível nacional dos procedimentos favorecidos pelo sistema constituído na inovação do advogado premiado. Releva salientar que a criação partida do

O Advogado da União Dario Dutra Sátiro Fernandes, ao receber do Vice-Advogado Geral da União, Fernando Luiz de Farias Albuquerque, o prêmio de desempenho funcional.

Certificado de outorga do prêmio de desempenho funcional ao Advogado da União, Dario Dutra Sátiro Fernandes

procurador da União em referência possibilitou à Procuradoria da União na Paraíba ganhar neste ano de 2013, a 4ª Edição do Prêmio de Ideias Inovadoras promovido pela Procuradoria-Geral da União. Vale destacar que essa foi a segunda conquista da Procuradoria da União no Estado da Paraíba motivada por ideia desenvolvida pelo Advogado da União Dario Dutra Sátiro Fernandes, pois em sua 2ª Edição (2011) a PU/PB foi premiada pela instituição do Sistema Alertas, destinado a organizar e consolidar as orientações jurídicas e administrativas aos Membros e servidores da referida Procuradoria.

Dario Dutra Sátiro Fernandes diplomou-se em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, no ano de 1997, tendo prestado concurso para a AGU em 2000, ano em que foi nomeado para a Procuradoria Regional da União em Pernambuco, transferindo-se, um ano depois, para este Estado. De 2007 a 2012 exerceu a função de Chefe da Procuradoria da União na Paraíba. É membro, desde 2007, do Grupo Proativo de Patrimônio e Probidade da Procuradoria Geral da União, destinado a atuar em defesa da recuperação do patrimônio federal malversado e em favor da probidade na pública administração da União. g outubro/novembro/dezembro 2013 |

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HOMENAGEM

MORRE O GOVERNADOR DE SERGIPE, MARCELO DEDA, GRANDE AMIGO DA PARAÍBA Equipe GENIUS

Faleceu no dia 2 de dezembro de 2013 no Hospital Sírio-Libanês em São Paulo, onde se achava internado, para tratamento de um câncer gastrointestinal, o governador de Sergipe, Marcelo Deda, de 53 anos, A notícia de seu desaparecimento consternou toda a classe política, não só de Sergipe, mas de todo o Brasil, porquanto, além de possuidor de uma ficha mais do que limpa, comprovada em todos os cargos que exerceu, de Deputado Estadual, Deputado Federal, Prefeito de Aracaju e, por último, Governador de seu Estado, Marcelo Deda era um administrador operoso e um parlamentar atuante, além, de orador de grandes recursos, capaz de empolgar seus ouvintes, tanto na praça pública como na tribuna parlamentar, fosse estadual ou federal. Marcelo Deda Chagas nasceu no município de Simão Dias, Estado de Sergipe, aos onze de março de 1960, filho de Manoel Celestino Chagas e Zilda Déda Chagas. Cursou os estudos primários no Grupo Escolar Fausto Cardoso, de sua terra natal. Em 1973, mudando-se sua família para Aracaju, matriculou-se no Colégio Estadual Atheneu Sergipense, tradicional estabelecimento de ensino da Capital sergipana, por onde passaram várias figuras de relevo na vida política e social daquele Estado. Ingressou, por essa época, na política estudantil, militando no movimento secundarista. Em 1980 matriculou-se no curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe, continuando sua peleja político-estuddantil, através do Diretório Central dos Estudantes (DCE) engajando-se no grupo político estudantil de esquerda existente naquela Universidade. Concluído o curso jurídico, filiando-se ao Partido dos Trabalhadores, dá início à sua carreira política, alternando vitórias e derrotas, mas jamais abandonando o caminho de retidão e honradez que traçou como balizas de sua conduta na vida pública, elegendo-se Deputado Estadual, Deputado Federal, Prefeito de Aracaju e Governador de Sergipe.

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Governador Marcelo Deda

Casado duas vezes, do primeiro matrimônio teve as filhas Marcella, Yasmim e Luísa. De suas segundas núpcias teve dois filhos: João Marcelo e Mateus. O corpo do governador foi levado de São Paulo para Aracaju em avião da Força Aérea Brasileira e o seu velório ocorreu no Museu Palácio Olimpo Campos, com a presença de Governadores, parlamentares federais e estaduais. A Presidente Dilma Roussef, acompanhada de vários Ministros

também compareceu ao velório do militante petista, cujo corpo foi levado a Salvador, onde foi cremado, em ato reservado aos seus familiares. Também esteve presente às homenagens o Ex-Presidente Lula. Marcelo Deda era um amigo e admirador da Paraíba e aqui esteve várias vezes, duas delas a convite do Tribunal de Contas do Estado. Na primeira vez, presidia aquela Corte o Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes, que convidou o então Prefeito de Aracaju para proferir palestra sobre o cenário político-legal dos Tribunais de Contas, como preparação para a elaboração do primeiro Plano Estratégico que ali se fez, (período 2001/2004), evento de que participaram também, como conferencistas, o economista Ronald Queiroz (cenário econômico-financeiro) e o educador Neroaldo Pontes de Azevedo (cenário sociocultural). Numa justa e merecida homenagem ao saudoso homem público sergipano e em reconhecimento às atenções que sempre teve à nossa terra, GENIUS publica nesta edição o pronunciamento por ele feito no já citado ciclo de palestras para a formulação do Planejamento Estratégico do Tribunal de Contas do Estado (2002/2004), texto que, apesar do tempo decorrido, encontra-se atualissímo. g

O Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes abre a reunião de preparação ao Planejamento Estratégico do Tribunal de Contas do Estado (2001), tendo ao lado o então Prefeito de Aracaju Marcelo Deda


CONTROLE EXTERNO

OS TRIBUNAIS DE CONTAS NO CENÁRIO POLÍTICO-LEGAL DA ATUALIDADE (*) Marcelo Deda

Senhor Conselheiro Presidente do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, Flávio Sátiro Fernandes, Conselheiros Luiz Nunes Alves e Marcos Ubiratan Guedes Pereira; Conselheiro José Marques Mariz, na pessoa de quem peço licença ao auditório para prestar uma homenagem a um dos mais dignos homens públicos brasileiros, pela sua valentia cívica, pelo seu compromisso com a democracia, pelo perfil ético que tanta falta faz hoje ao Brasil, que é o Ex-governador dos paraibanos, Antônio Mariz. Cumprimento também o Senhor Procurador Geral desta Corte, Dr. Carlos Martins Leite; senhores funcionários do Tribunal de Contas. Em primeiro lugar, permitam-me dirigir um agradecimento à generosidade do Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes, que me convidou para esta especial oportunidade de reflexão e diálogo com uma das Cortes de Contas mais respeitadas do Brasil, que é a da Paraíba. Só posso atribuir à generosidade do seu Presidente o convite para que eu pudesse estar até destoando diante de um painel tão ilustrado de palestrantes. Quero, também, registrar a minha alegria de estar aqui na Paraíba, um Estado cuja influência na vida pública brasileira, em especial a do Nordeste, é por todos nós reconhecida e cuja fibra do seu povo, cujo valor, que ao longo da história tem demonstrado, transformam-no em um dos Estados referenciais da nossa região e – por que não dizer? – do nosso país. É uma alegria muito grande estar aqui em João Pessoa, e é pena que sempre que venho aqui, passo apenas um período de vinte e quatro horas e fico como naquela canção do Djavan: “morrendo de sede à beira do mar, sem poder sequer lá entrar”. Mas é um prazer imenso, pelo menos por poucas horas, poder conviver com o bom e bravo povo da Paraíba. Senhor Presidente, meus senhores e minhas senhoras, vou me valer, nas reflexões que aqui farei, da experiência que tive ao longo de dez anos, como membro do Poder Legislativo – um mandato de Deputado Es-

Vou me valer da experiência de dez anos, como membro do Poder Legislativo – e, óbvio, a pouca experiência de oito meses à frente do Executivo da capital dos sergipanos – para buscar compreender o cenário político brasileiro nesse momento singular da nossa história. tadual e um mandato e meio de Deputado Federal e, óbvio, a pouca experiência de oito meses à frente do Executivo da capital dos sergipanos – para buscar compreender o cenário político brasileiro nesse momento singular da nossa história; que tendências podem ser percebidas, cujos reflexos possam, de alguma maneira, interferir no futuro do Sistema de Controle Externo formado pelos Tribunais de Contas dos Municípios, - lá, onde existem – pelos Tribunais de Contas dos vinte e seis Estados, pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal e pelo Tribunal de Contas da União. Gostaria de fazer um breve passeio pela história brasileira, porque um dos pontos que vão fundar a minha reflexão, que vão dar base e alicerce ao que quero, aqui, comungar com os senhores, é justamente o papel do Tribunal de Contas ou o papel do Controle Externo e do órgão que no Brasil foi erigido para executá-lo, para realizá-lo ao longo da história brasileira. Muito em voo de pássaro, vamos buscar fazer quase que um estudo de arqueologia

institucional. Vamos buscar localizar entre as camadas que se assentam ao longo dos quinhentos anos de vida brasileira e de quase duzentos de vida independente de Estado e Nação, onde se poderiam encontrar os embriões dessa busca de uma instituição capaz de acompanhar os gastos públicos, verificar a sua correção e aplicar medidas punitivas ou reparadoras àqueles agentes que, por alguma razão, se desviaram dos padrões em lei estabelecidos. Há alguns que vão localizá-la no final do século XVII, em 1680, no período de regência do Imperador D. Pedro II, em Portugal, que ocupava a cabeça da monarquia portuguesa em função do impedimento de Afonso IV. Há outros que encontram nas juntas das Capitanias, especialmente na Junta da Fazenda do Rio de Janeiro, os embriões de um órgão de controle interno, muito embora as juntas coloniais tivessem por objetivo básico, por foco principal, o controle da política monetária em função da descoberta das minas de ouro e da necessidade que a Metrópole tinha de controlar a cunhagem de moedas e a própria circulação desse metal, que passaria a dar uma importância nova à colônia brasileira diante dos olhos da Metrópole. Outros chegam, também, como passos ou degraus dessa evolução institucional dos Tribunais de Contas, à criação na época da vinda da Família Real para o Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, do Conselho de Fazenda – o Brasil já com o status de Reino Unido de Portugal – vendo na criação do Conselho de Fazenda, que tinha tarefas de acompanhamento da execução da despesa pública, também, já os sinais do que seria futuramente o Sistema de Controle Externo que a República iria consolidar. Muito embora o Visconde de Barbacena e outros tenham ainda em 1826 tentado constituir uma Corte de Contas durante o Primeiro Império, a ideia mesma de um Tribunal de Contas só vai surgir no Brasil a partir do talento de Ruy Barbosa e da sua compreensão da importância dessa instituição, derivada da admiração imensa que ele tinha pela Constioutubro/novembro/dezembro 2013 |

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tuição Americana, especialmente por um dos fundadores do Estado Americano, a Nação Americana, James Madson. A partir dessa concepção “madsoniana” – vamos dizer assim – e da admiração que Ruy Barbosa mantinha por ela é que a Constituição Republicana de 1891 vai ter no seu artigo 89 consagrada referência à Corte de Contas da União. Esse breve passeio é apenas para chamar a atenção de que a ideia de instâncias que acompanhem e verifiquem a qualidade e a correção dos gastos públicos é algo que se confunde com a história do Brasil. Porém¸ mais significativamente ainda, o Tribunal de Contas enquanto Corte, enquanto órgão auxiliar do Poder Legislativo, com as finalidades que tem, só aparece institucionalmente e solidificada no Brasil, no bojo da instituição republicana. Então, o Tribunal de Contas, pode-se dizer, é, no caso brasileiro, uma instituição republicana, uma instituição identificada, portanto, com o conceito de república quanto à forma de Governo marcada pela concepção de que a coisa pública é de todos e não um conceito patrimonialista que delimitava aquela fronteira necessária entre o público e o privado. Então, os Tribunais de Contas estão identificados com essas duas noções: a noção, naturalmente, de Estado Republicano e a concepção de um órgão com grau de autonomia extremamente significativo, mas dentro, do ponto de vista institucional, da estrutura do Poder Legislativo, não estrutura física, não estrutura organizativa, administrativa, mas da estrutura constitucional do Poder Legislativo. Com as tarefas de cumprir o controle externo dos gastos públicos. Ao longo da história brasileira nós vivemos uma série de situações e de momentos em que essa necessidade de expressar o Controle Externo, inclusive, trazendo-a aos municípios e aos Estados foi maior ou menor. Hoje, nós vivemos uma situação que é extremamente interessante. Do ponto de vista político, nós estamos numa fase de ocaso de uma era. Não apenas a era dos mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, mas uma era aonde as políticas ultraliberais conduziram a ação do estado brasileiro, a partir da aplicação, muitas vezes, da crítica de receituários elaborados em instituições internacionais, como o Banco Mundial, como o Fundo Monetário Internacional. Uma concepção que avançou celeremente no rumo da redução do papel do Estado, deificação do mercado, da exaltação das virtudes do livre empreendimento, da criação de constrangimentos à expansão das políticas públicas e, naturalmente, no bojo desse processo, dessa discussão e dessa im-

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O Tribunal de Contas, pode-se dizer é uma instituição republicana, identificada com o conceito de república, quanto à forma de Governo marcada pela concepção de que a coisa pública é de todos e não um conceito patrimonialista que delimitava aquela fronteira necessária entre o público e o privado. plementação de políticas, uma ideia de um Estado gerencial. Se, por um lado, era extremamente fascinante você oferecer à máquina pública a agilidade, a eficiência e a eficácia, algo similar às instituições da esfera privada, por outro lado, tendiam a considerar os controles institucionais como instrumentos que terminavam por comprometer a ação do gerente eficiente. A exigência de certos rituais aplicáveis, por exemplo, ao processo licitatório, a exigência de cumprimento e da realização dos princípios do artigo 37 - da impessoalidade, da publicidade e da moralidade – foram a cultura administrativa dos últimos Governos, especialmente do Governo Collor de Mello e aqui não me refiro ao Governo Collor no sentido político, no sentido ético como ele passou a ser visto, mas no sentido de que essas políticas se iniciaram no Governo Collor. Todos nós conhecemos as propostas de reforma administrativa inicialmente produzidas; as alterações de política econômica; as alterações do ponto de vista de liberalização dos mercados e a luta que o Presidente tentou, via emendas constitucionais, para refazer o Estado brasileiro. Não conseguiu, mas depois o Presidente Fernando Henrique Cardoso, e eu não comparo os dois perfis, porque são completamente diversos, mas do ponto de vista político, resgatou esse patrimônio ultraliberal

do Governo Collor e recolocou-o na conjuntura, sendo vitorioso e implementando vários desses projetos e dessas visões. Essa concepção que foi triunfante por longo tempo começa, agora, a sofrer questionamentos diversos pela sociedade organizada, pelos partidos políticos, pela academia, através de textos, de livros e do debate, quebrando uma hegemonia que, pelo menos ao longo do primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso foi quase absoluta. Nós tínhamos um país em que mesmo o seu setor mais crítico admitia que o valor do combate à inflação era tão absoluto que compensava uma política econômica extremamente deficiente no enfrentamento das questões estruturais, onde estão ancorados os problemas brasileiros, especialmente os sociais. Hoje, nós vivemos uma exaustão desse modelo. Esse modelo ofereceu aos brasileiros um patrimônio que se incorporou à vida do nosso povo, do qual nós não devemos abrir mão, que é a estabilidade econômica, que é o combate à inflação, que é o controle do nosso processo inflacionário. Se, por um lado, essa vitória se incorporou ao patrimônio do povo brasileiro, por outro lado, ele foi incapaz de fazer o enfrentamento das questões estruturais que põem o nosso país numa situação desesperadora, em face de outras nações, quando comparamos os nossos indicadores sociais, especialmente quando verificamos o grau de miséria que ainda assola grande parte da população brasileira. Esse modelo também mostrou-se ineficaz para proteger a própria economia brasileira. Um modelo de inserção subalterno, um modelo de inserção onde o país se limitava a aceitar o papel que os países hegemônicos no processo de globalização lhe destinavam, onde ele não desfrutava, a partir das suas vantagens comparativas e muito especialmente da sua posição estratégica na América do Sul, do seu papel preponderante nas economias mais desenvolvidas no continente sul-americano, especialmente no cone sul; onde ele não levava em consideração o papel de liderança que o Brasil, potencialmente, tem com relação às nações emergentes e com as nações do hemisfério norte do Planeta; onde simplesmente se aceitava o receituário de vender o estoque de ativos do patrimônio público, seguindo o caminho suicida que a Argentina levou até as últimas consequências e que, hoje, dificilmente vai encontrar forma de superá-las sem rupturas dramáticas. Nós temos, hoje, a Argentina quase como um não país, porque até a própria identificação monetária foi superada, mas o Brasil, nesses anos, seguiu essa tendência, obvia-


mente que numa velocidade menor, porque a resistência especialmente dos movimentos sociais foi mais intensa aqui em nosso país. Esse modelo está exaurido, porque vivemos um momento de fim de ciclo. Qual é o ciclo que vai vir? É muito cedo para avaliá-lo, mas creio que até mesmo dentre os candidatos que se apresentam na base governista o discurso hoje é outro. O discurso avança no sentido de incorporar a questão da autonomia e de uma inserção soberana e autônoma do Brasil, num processo de internacionalização da economia e, até mesmo, uma repetição de bordões e de propostas que frequentavam apenas o discurso da oposição. Então, por qualquer ângulo, seja o ângulo da possível vitória – por exemplo, do Partido dos Trabalhadores, que as pesquisas diagnosticam como numa fase extremamente positiva por seu candidato, com o crescimento das pesquisas de apoio e com a redução dos números de rejeição – seja na própria base do Governo, onde os candidatos que até agora se apresentam – por exemplo, o Ministro José Serra – são daqueles setores que internamente disputaram com a equipe econômica os rumos da Administração Pública, tendendo para uma ação mais consequente do Estado no combate à exclusão social e na construção de um projeto que levasse em conta os interesses da economia nacional e não apenas reproduzisse aquilo que vinha das agências internacionais, o cenário é de esgotamento. Está exaurido esse modelo e um novo modelo está sendo discutido, obviamente que vão se ter vários modelos alternativos sendo postos na disputa eleitoral, mas acho que é fundamental que nós guardemos essa informação ou essa tendência de que há um processo de ruptura dentro da democracia, obviamente, como modelo econômico que, hoje, é aplicado no Brasil. Ao lado disso, o saldo desse modelo do ponto de vista da crise institucional foi muito grande. Nós tivemos um período curto da história do Brasil, onde a incidência de escândalos provocou uma demanda extraordinária da sociedade com relação à ética na política, com relação à moralidade, com relação ao cumprimento das leis, com relação ao combate à impunidade, com relação a uma necessidade de se quebrarem práticas históricas vinculadas ao patrimonialismo, à utilização dos recursos públicos como coisa pessoal e uma crítica direta, pelo menos, à leniência como o Governo se comportou e como as instituições, também, se têm comportado face a essa situação que chegou ao limite da suportabilidade do ponto de vista da cidadania brasileira. Para os senhores terem uma ideia, a situação chegou a tal ponto e a tal grau de contaminação que as frequen-

tes CPIs que foram realizadas no Congresso Nacional, localizaram os tentáculos da corrupção ou mesmo do crime organizado em instituições como o próprio parlamento brasileiro ou instituições como o Poder Judiciário. Então, o momento é um momento onde nós poderíamos localizar aquele ideograma chinês que define crise, onde lá está contido tanto risco quanto a oportunidade. Do ponto de vista dos Tribunais de Contas, o que é que esse cenário indica? Por que um cenário, de certa maneira, alentador, para qualquer instituição que tenha por finalidade fazer o controle e a fiscalização da execução da despesa pública, qualquer órgão que tenha a finalidade de combater a corrupção, de exigir a otimização da aplicação dos recursos públicos, de fiscalizar e acompanhar a ação dos executivos e dos órgãos que se valem, de recursos públicos? Talvez não tenha havido um momento melhor na história para que a sociedade compreenda o papel

Há uma imagem que que produziu um prejuízo inominável aos Tribunais de Contas do Brasil inteiro, que é a imagem de um Conselheiro municipal fazendo uma matemática meio extravagante ao exame de contas de um administrador local. estratégico que estas instituições cumprem. Então, como é que se explica que, ao mesmo tempo em que a demanda por moralidade é tão grande, a exigência de uma ação concreta para combater os corruptos é tão presente, e é o mesmo momento em que mais iniciativas existem no Congresso Nacional, que atingem direta ou indiretamente o Sistema de Controle Externo, que atingem direta ou indiretamente os Tribunais de Contas, nos três níveis de Governo em que eles existem no Brasil? Esse é o ponto que queria deixar para uma reflexão dos senhores e em que vou, agora, avançar para tecer alguns comentários. Hoje, nós temos no Congresso desde propostas que pedem, pura e simplesmente,

a extinção das Cortes de Contas até propostas que buscam reformá-las, que buscam alterar a sua composição, os critérios de indicação de seus membros ou que buscam criar condições diferentes para essa escolha ou que criam obstáculos para possíveis contaminações entre o papel que realiza o Tribunal de Contas e aquele dos organismos que ele tem por dever fiscalizar. Por que será – essa é a questão – que num momento como esse nós temos essas duas tendências? Uma demanda por moralidade e, ao mesmo tempo, uma efervescência para modificar ou até mesmo para extinguir órgãos que dentro daquilo que nós chamamos atenção no início, da história da República Brasileira, estão identificadas a um conceito republicano e democrático do Estado? Permito-me tomar a ousadia de dizer que, na verdade, o que nós temos no Brasil, hoje, é uma grave crise de legitimidade. Essa crise de legitimidade atinge o Poder Judiciário, atinge de forma dramática o Poder Legislativo e os organismos tradicionais de operação política. A sociedade vê explodir as denúncias de corrupção; olha para o aparato constitucional brasileiro; vê lá o Poder Judiciário; vê lá o Poder Legislativo e suas funções fiscalizadoras; vê lá o Tribunal de Contas como organismo vital, fundamental, para que o legislativo cumpra com eficiência o seu papel e não vê essas instituições sendo anteparos à explosão de escândalos. Essas instituições cumprindo com mais eficácia e com mais presença as suas tarefas de modo a debelar, logo no início, o incêndio que depois termina contaminando o conjunto da sociedade. Hoje, há uma grave crise de legitimidade e dela se aproveitam inclusive aqueles que por razões menores desejam a extinção dos Tribunais de Contas. Não estou dizendo aqui que todos que querem a extinção dos Tribunais de Contas tenham razões menores, não. Conheço parlamentares da mais alta respeitabilidade, do mais elevado espírito público, do mais alto e devotado compromisso com a nação, mas que têm, expressando até posições de suas bases¸ posições da sociedade, têm posição de extinção do sistema. Mas o que nós queremos chamar atenção é que hoje há, também, aqueles que se aproveitam desse processo de deslegitimação para pedir a pura e simples extinção e para tentar editar um novo modelo de Controle Externo que, talvez, não tenha condições de registrar a eficiência que, pelo menos, os Tribunais de Contas poderiam revelar. Hoje, o descrédito da ação dos Parlamentos e dos próprios órgãos auxiliares é um fato que leva água ao moinho desse processo minimalista de Estado que pretende outubro/novembro/dezembro 2013 |

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tirar mais uma instituição e agregar as suas competências em outros lugares para executar – não acredito com a mesma eficiência – as tarefas que, hoje, a Constituição delega para eles. A título de exemplo, eu arrolei, anotei aqui algumas situações que ajudam a produzir os questionamentos com relação aos Tribunais. Por exemplo: nós tivemos o escândalo do Fórum Trabalhista de São Paulo, e ele foi um escândalo dentro do Poder Judiciário, mas a ação do Tribunal de Contas da União se deu a posteriori, depois do escândalo revelado, depois de a CPI ter aberto a caixa preta do Tribunal e ter localizado, inclusive, um dos Senadores da República envolvido naquela terrível ação contra o patrimônio público, quer dizer, o que a imprensa destacou é que o TCU não tinha executado, com eficiência, a tarefa de localizar os problemas decorrentes daquela obra que se eternizava nos orçamentos da República e só ter agido a posteriori. Isso passa à sociedade a ideia de um órgão, na melhor das hipóteses, ineficaz para dar combate à corrupção e para evitar que a sangria dos recursos públicos alcance o nível que alcançou no caso do TRT. Outro escândalo é esse da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. É no seio do Poder Legislativo, mas a sociedade pergunta: E o Tribunal de Contas? Por que não vê isso? Por que ao tomar as contas públicas não percebeu que havia deficiências, mesmo lá no órgão do Poder Legislativo? E a crise que, hoje, existe entre o Tribunal de Contas do Município de São Paulo e a Prefeitura Municipal? Há uma imagem que terminou se transformando em emblemática e acho que produziu um prejuízo inominável aos Tribunais de Contas do Brasil inteiro, que é a imagem de um Conselheiro municipal fazendo uma matemática meio extravagante ao exame de contas de um administrador local. Essa crise, agora, entre o Tribunal de Contas do Município e a Câmara Municipal é algo, também, que desgasta profundamente essa imagem pública das Cortes de Contas, até porque há uma proposta de se abrir uma CPI em São Paulo. O Legislativo ao apreciar as tomadas anuais de contas o faz de uma maneira tão burocrática ou tão politicamente vinculada aos interesses do Executivo que as pessoas não acreditam mais. E aí já não é o Tribunal de Contas enquanto órgão, mas o sistema de controle de contas. Quando uma Assembleia toma uma posição mais dura com relação a uma prestação de contas, as pessoas identificam as brigas políticas entre os partidos que estão ali na Assembleia e não o exercí-

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cio completo e pleno do papel que compete às casas legislativas. E aquele ritual termina perdendo essência, perdendo substância, virando uma disputa política entre os partidos que compõem a Casa. Quem é da oposição vota contra porque tem que votar contra, não perde tempo em examinar e até votar a favor de uma conta de um opositor, até registrando, exemplificando, criando essa coragem cívica de admitir que o adversário, por exemplo, pode ser um desastre em outras áreas, mas, pelo menos, não está praticando nenhum delito contra a moralidade e contra a ética pública. Ou a oposição vai derrubar a todo custo as contas, ou a situação vai aprová-las acriticamente e o ritual de aprovação das contas, que tinha muito a ver com a participação da sociedade, se transforma num ritual que não mobiliza, que não se legitima perante a sociedade que observa. É a própria situação do Congresso Nacio-

Alguns parlamentares defendem a contratação de Auditorias Externas. Eu acho que seria o suicídio da moralidade, porque não conheço um relatório de Sociedade Anônima que tenha tido uma Auditoria externa recomendando a sua rejeição pela Assembleia de Acionistas. nal, que teve, é verdade, no período em que eu fui Deputado, uma praga de CPIs. Havia algumas extremamente importantes que investigavam situações críticas do Estado brasileiro mas que foram enterradas, que foram ocultadas sem qualquer preocupação com a sociedade e isso, também, termina fragilizando o Legislativo que em última instância é quem exerce, com o auxílio do Tribunal de Contas, o Controle Externo. Essa situação, que põe sob xeque o nosso sistema de controle externo mobiliza a sociedade, faz com que ela perca a sua confiança nas instituições e faz com que ela questione. Há outra questão sobre a qual nós políticos e técnicos e membros dos Tribunais

de Contas precisamos refletir. A forma de escolha é um dos pontos que estão sendo questionados – não digo a forma de escolha, porque até defendo e mais adiante vou justificar – mas, por exemplo, em certos estados ou em certas situações a escolha se dá dentro de critérios muito mais político-partidários do que político-institucionais. Isso também termina, muitas vezes, fazendo com que a população entenda o Tribunal de Contas como um mero órgão político onde as pessoas que vão ali, não teriam uma função institucional. Eu acho que, por exemplo, a proposta, simplesmente, de transformar o Tribunal de Contas numa repartição do Congresso Nacional, ela não é a solução. A ideia de reproduzir algo como o General Accounting Office que há nos Estados Unidos, eu acho que não é adequada à instituição brasileira. Nós não temos condição de oferecer a uma repartição do Congresso Nacional a independência e a autonomia necessárias para realizar o papel de Controle Externo. Quer dizer, o risco é de uma má politização, de a emenda sair terrivelmente pior do que o soneto e nós não temos um organismo eficiente e capaz de desempenhar suas funções. Essa solução que tem hoje frequentado os debates do Congresso Nacional é completamente inaceitável sob o meu ponto de vista. Eu acho que ela não é adequada e – a menos que me provem o contrário – eu não vejo, hoje, em uma instituição congressual brasileira, qualquer condição de abrigar um departamento, uma repartição ou até mesmo uma comissão da Casa que pudesse, além das atribuições que já são pertinentes ao Congresso, desempenhar tal atribuição, porque o controle não se dá apenas na tomada de contas, ele é permanente, ele é cotidiano e atravessa o exercício inteiro. Ele passa por inspeções, ele passa por respostas a demandas das Casas Legislativas, de modo que a própria oposição – fosse ela de esquerda, de centro ou direita, não importa, vai depender do cenário, de quem ocupasse o poder naquele momento – tivesse que colaborar, que participar, que ser convocada a discutir quando da escolha por parte do Poder Legislativo de um ocupante de vaga de qualquer um dos Tribunais. Isso qualificaria melhor, isso obrigaria a oposição a ter participação e isso, também, tiraria de uma eventual maioria apenas o lado eminentemente político da questão. Sem perder o Congresso Nacional a capacidade de indicar os membros de um órgão que, não obstante sua independência e autonomia, está como órgão auxiliar. Que ele não perdesse essa autoridade de fazer a indicação da parte dos membros que lhe compete indicar, mas que essa escolha se


desse por um quórum qualificado de modo que fosse maior a participação do Congresso e forçasse uma escolha mais qualificada, buscando entre os candidatos à vaga, aqueles que atendessem ao perfil que a Constituição estabelece, de modo que o notório saber não fosse, apenas, um rótulo, mas fosse a expressão mesma de determinada obra, de determinada atuação pública, de determinado conceito que aquele cidadão ou aquela cidadã usufruísse perante a sociedade. Outro ponto que nós temos discutido – e eu sou autor de uma Emenda ainda quando deputado – é a questão da quarentena. A República tem que ser eminentemente impessoal. A lei, a institucionalidade democrática, as normas legais é que dão o aval às ações dos homens públicos num regime republicano e democrático. Então, é importantíssimo – isso não significa desconfiança sobre ninguém – que houvesse um período de quarentena. Um Secretário de Estado para assumir um cargo no Tribunal de Contas precisaria estar há, pelo menos, quatro anos afastado de qualquer função do Executivo, de modo a descontaminar, no sentido menos letal da palavra, de permitir que houvesse um vácuo de tempo capaz de ajudar a proceder ao desligamento entre as funções executivas antes exercidas e a posterior função de fiscal desse mesmo Poder Executivo que será plenamente exercitada quando titular na Corte de Contas. Nós temos uma Emenda de minha autoria, quando Deputado Federal, que dizia que Ministro de Estado, Secretário de Estado, titular de cargo do Poder Executivo só poderiam assumir funções de Conselheiro ou de Ministro dos Tribunais de Contas, quatro anos após o seu desligamento do cargo no executivo. É, também, uma tentativa de afastar ou de criar uma quarentena como se pede no Banco Central e em outras instituições de modo a ajudar perfeitamente a recuperação do prestígio institucional da Corte de Contas e do Sistema de Controle Externo. Eu diria, portanto, agora a título de conclusão, que nós temos histórias ao longo da vida brasileira que são exemplares da necessidade do Controle Externo. Há soluções, como alguns parlamentares dizem, de contratação de Auditorias Externas. Eu acho que seria o suicídio da moralidade, porque não conheço um relatório de Sociedade Anônima que tenha tido uma Auditoria externa recomendando a sua rejeição pela Assembleia de Acionistas. Não estou aqui questionando a capacidade dos contadores, dos técnicos, dos auditores que atuam no Mercado do Brasil. Há grandes talentos de auditoria no Brasil, mas não creio que se-

ria a melhor solução essa de terceirizar uma função eminentemente estatal. Nós já terceirizamos demais. Eu acho que seria a gota dágua terceirizar até uma função que eu não vejo como possa ficar fora do corpo institucional da República. Mas o que eu acredito é que nós precisamos enfrentar essa conjuntura com essa consciência. A consciência de que há um processo de mudança independente de quem ganha as eleições, mas um processo de mudança e de ruptura com as referências, especialmente, da política econômica do atual governo ou do período histórico que começa a acabar. Acho que a pressão por moralidade vai aumentar e a demanda por instituições eficientes no combate à corrupção vai ser cada vez mais presente. Então, é um fator

Acredito que aqueles que lutam pela extinção dos Tribunais de Contas terão grande possibilidade de sucesso se não houver esforços no sentido de modernizar a estrutura dos Tribunais de Contas; de buscar adequá-la às novas demandas que estão postas pela sociedade; e buscar resgatar o seu papel institucional. positivo. Agora, acredito que aqueles que lutam pela extinção dos Tribunais de Contas terão grande possibilidade de sucesso perante a opinião pública se não houver um movimento daqueles que acham que há função, que há papel para os Tribunais de Contas e que eles têm que continuar existindo; se não houver nesse campo, também, esforços no sentido de modernizar a estrutura dos Tribunais de Contas; de buscar adequá-la às novas demandas que estão postas pela sociedade; e buscar resgatar o seu papel institucional; de lembrar o papel histórico que a instituição exerceu, por exemplo, na época do Governo Floriano Peixoto, onde o Tribunal de Contas

teve uma posição extremamente valente no sentido de exigir a obediência pelo Marechal das regras pertinentes aos gastos públicos e teve uma ação de força de Floriano contra o Tribunal de Contas da União, que provocou a renúncia do Senhor Ministro da Fazenda. O próprio papel do Tribunal de Contas, logo no início do Regime Militar, onde também foi capaz através de alguns dos seus Ministros mais eminentes, de manifestar a sua valentia cívica não aceitando que o seu papel fosse reduzido ou legitimando concepções que achavam que sendo Governos dos Militares, ele estaria num grau tão perfeito de comprometimento com a coisa pública que dispensava qualquer controle externo. Esses momentos históricos do Tribunal de Contas, essa sua vinculação pelo talento e pela inteligência de Ruy Barbosa; o próprio nascimento da República – ela é uma instituição eminentemente republicana, no caso brasileiro – tudo isso são fatores positivos que é preciso aos Tribunais de Contas levantar, recuperar, colocar frente à sociedade para que ela compreenda esse papel e é preciso, também que se aperfeiçoe, que se busque verificar que tipo de intervenções institucionais podem ser realizadas por via da emenda constitucional ou de outras legislações que possam aprimorar o papel dos Tribunais de Contas, transformando-o num organismo cada vez mais eficiente, mais eficaz, colocando-o cada vez mais na frente dos acontecimentos, ao invés de o Tribunal correr atrás do prejuízo – é óbvio que há situações em que o julgamento dele é a posteriori, é um controle a posteriori, não há como evitar, mas fortalecendo as auditorias, as inspeções, mesmo tendo seu núcleo de decisão, de competências formado pelos seus Conselheiros e Ministros; fortalecer o corpo técnico, credibilizar cada vez mais os seus documentos, buscar dentro do possível e do racional nos seus julgados, nas suas decisões, nos seus opinamentos, expressar a tecnicalidade que orienta e onde radica a sua legitimidade. Cada vez mais ser uma instituição política, mas política com “P” maiúsculo – que a nação espera de todos nós, especialmente dos Tribunais de Contas – e avançar com relação a algumas posturas que eu acredito os Tribunais podem tomar. Por exemplo: aproximar-se da sociedade, construir pontes que tragam para o Tribunal de Contas a voz da sociedade organizada, audiências públicas, ou outra espécie de instrumento que permita à sociedade conhecer o funcionamento do Tribunal e permita que a sociedade entenda que o Tribunal, também, pode ser uma caixa de ressonância da luta pela sociedade por padrões de moralidade na vida pública brasileira. outubro/novembro/dezembro 2013 |

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Acho que as experiências que estão acontecendo de orçamento participativo e as experiências de controle social que a legislação brasileira vem incorporando, seja na saúde pública, seja na assistência social, seja em outros meandros da administração pública, são novidades que não vieram apenas porque era moda, elas vão ficar. Cada vez mais a demanda por participação é maior e acho que o Tribunal de Contas deve se aproximar da sociedade e esse é o momento. Na hora em que a sociedade cobra moralidade; no momento em que o próprio Senado da República – uma instituição quase bissecular, digo não só da República, por que havia, também, o Senado do Império, que, ao longo da sua história nunca havia cassado um membro, nós estamos testemunhando numa única legislatura, na mesma legislatura, a perda de mandato de quatro Senadores: um por cassação e, talvez, os três outros por renúncia. Quando alguém seria capaz de fazer uma reflexão em qualquer seminário de planejamento estratégico apontando uma tendência do movimento por moralização no Brasil, do crescimento da consciência social, que iria produzir a cassação de quatro Senadores da República numa mesma legislatura, num período de três anos? E dentre esses Senadores cassados ou passíveis de serem casados, estão dois Presidentes da instituição e um líder de Governo. Quem, por mais avançado, por mais profeta que fosse, ousaria produzir essa reflexão? Por exemplo, no início desta legislatura, logo após as eleições de 1998, que analista político diria que o cansaço com as práticas de corrupção seria tão grande que haveria uma mobilização, uma pressão social de imprensa e de opinião pública tão contundente que o próprio Senado da República seria obrigado a cortar na carne e não cortar apenas um, mas quatro de seus membros? Então, essa demanda por moralidade não pode ser vista, apenas, como um limão, ela tem que ser transformada numa limonada em benefício da própria República, em benefício do próprio conceito de moralidade administrativa Nós não podemos permitir que uma instituição que tem tudo para dialogar com esse momento político, simplesmente, sem agir, sem se movimentar, sem dar passos proativos, aceite a conjuntura e desmanche ou se permita diluir no caldo geral de crise institucional que nós vivemos e de descrédito com as instituições que hoje tem a sociedade. É preciso ao Sistema de Controle Externo adotar medidas ativas, medidas de não esperar sentado as deliberações que vão ser tomadas, mas avançar numa reflexão sobre o seu papel, sobre a sua

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história, sobre a atual conjuntura e sobre os instrumentos de que ele precisa fazer uso, para ter o seu perfil institucional adequado à modernidade e adequado às demandas que o Brasil prepara para a sua agenda de futuro. Por isso que eu me atrevi a fazer estes comentários, alguns dos quais, obviamente, são polêmicos, alguns dos quais não têm o condão de agregar unanimidade, mas, considerando a importância deste evento, que bom se todos os Tribunais criassem essa consciência de fazer uma reflexão estratégica sobre o momento nacional no aspecto do ponto de vista político, não apenas olhando para o próprio umbigo da instituição, mas, também, levantando o olhar e olhando a conjuntura nacional e internacional, veri-

Eu acho que essa aproximação dos Tribunais com a sociedade é fundamental, primeiro, para recuperar, como disse, aos olhos da comunidade o significado dos Tribunais. Segundo, para mostrar para ela que se há crise moral, nada melhor do que um órgão como o Tribunal de Contas preparado para ser uma arma eficaz da sociedade na repressão e na oralidade. ficando as tendências que essa conjuntura aponta e se preparando para enfrentar essa tendência. Os Tribunais, seus membros, seus técnicos e todos que os integram são instituições da vida republicana. Quem está na vida democrática não pode, no Brasil de hoje, abrir mão do diálogo, não pode apenas ser ouvido, tem que também ser fala, tem que também ser interação¸ tem que também buscar a sociedade. Eu acho que essa aproximação dos Tribunais com a sociedade é fundamental, primeiro, para recuperar, como disse, aos

olhos da comunidade o significado dos Tribunais. Segundo, para mostrar para ela que se há crise moral, nada melhor do que um órgão como o Tribunal de Contas preparado para ser uma arma eficaz da sociedade na repressão e na oralidade. É contraditório que quando a nação clama por moralidade haja uma discussão forte no Congresso Nacional que aponta pela extinção do Tribunal de Contas ou por novos modelos que na prática castram a sua eficiência ou o seu potencial de eficiência. Acho que essa conjuntura é uma conjuntura que tem que ser transformada numa conjuntura favorável a todo e qualquer organismo que possa auxiliar a nação a debelar esse câncer terrível que é a corrupção, que é o desvio dos recursos públicos que, na prática, é quase que um genocídio. Cada Real que se tira da sua devida aplicação e se põe no bolso de maus administradores é uma vacina a menos no posto de saúde, é uma escola a menos no bairro, é um hospital a menos para servir aos que têm necessidade, é menos comida na boca dos abandonados, é mais criança na rua. Corrupção no Brasil tem que ser sinônimo de genocídio. Tem que merecer um combate constante, intenso e radical. Tolerância zero com a corrupção. É isso que a sociedade pede, é isso que legitimou eleições no Brasil inteiro. Na renovação política que as capitais brasileiras experimentaram, se os Senhores forem examinar o debate que estava sendo travado naquele momento, vão verificar que o peso maior foi dado a uma cobrança da sociedade por um padrão ético daqueles a quem ela entregou a gestão das suas cidades. Se não é tão intensa essa mudança quanto o Brasil precisa, ela já é emblemática. Hoje os homens públicos precisam ter bastante consciência de que serão cobrados por cada um dos seus atos. Se é esse o momento, não há porque nós remarmos numa direção que por mais que colham descrédito é uma direção sem futuro. A nossa tarefa é adequar, é melhorar, é modernizar, é arejar, é fortalecer a interatividade, é buscar criar interfaces entre aquelas instituições que podem cumprir esse papel e a sociedade que quer encontrar quem o faça. Eram essas as ideias que eu submeteria à apreciação dos Senhores, obviamente, com a maior das vênias e pedindo que relevem esse ou aquele opinamento que, por acaso, não esteja à altura tão elevada dos Senhores. Muito obrigado. g (*) Palestra proferida em 28 de setembro de 2001, no Seminário realizado pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba para propiciar a elaboração do Plano Estratégico para o período 2002/2005.


REMINISCÊNCIAS

ORLANDO TEJO E ZÉ LIMEIRA NO SERTÃO DO PEIXE/PIRANHAS Eilzo Matos

Orlando era somente poeta. Profissional da poesia. Tinha namoradas, frequentava festas, amava a natureza, fumava e bebia muito, inevitavelmente, sempre como poeta e ativista! Ativista sim, vítima até de excesso policialesco do governo militar de 64. Depois deixou a bebida, ficou só na poesia engajada, filiada à chamada literatura de cordel, à prática, estudo e divulgação da obra dos repentistas nordestinos. Orlando Tejo guardava como seu tesouro único, um sentimento de justiça e do mundo. O sentido da arte. O mais da vida, para ele, perdia-se em veredas. Sem desdouro, ele marchava e conclamava todos para a estrada real. Aí está a sua obra para comprovar. Falam somente de “Zé Limeira”. Eu pergunto: e o “Meu País”, musicado, declamado e cantado por todo Brasil, e também o evocativo “Memória do Açude Velho”, exaltando a sua Campina, citando Ramires, que tantos desconhecem! E a sua prisão por razões políticas? Um exemplo, a sua atividade incansável na valorização da poesia como arte, no reconhecimento dos seus mais autênticos e expressivos representantes: os poetas populares, reconhecidos por Drummond como donos de um status originário, e conteudista, na afirmação de Aristóteles na “Poética” que considerava a poesia de Homero mais filosófica do que a história de Heródoto, portanto peculiar, o que os tornava maiores que outros, prosadores, literatos e críticos sociais!! A poesia de Orlando Tejo não é, portanto, uma poesia de efeitos, mas de conteúdo. Porventura, o emaranhado, a decomposição de formas não contém a realidade mais crua da vida? Como e porque chegamos a Picasso? E daí para o surrealismo − a pedra de toque de André Breton, dos comunistas franceses. Uma coisa posso dizer, lembrar com

alegria: convivemos eu e Tejo nas “primícias da juventude” na bela e imorredoura Campina Grande dos anos cinquenta, e descobrimos, então, a poesia, a vida. E como éramos amigos! E como poetamos antes dos vinte anos guiados por Álvares de Azevedo, Castro Alves, Gonçalves Dias, Inácio da Catingueira e todos os românticos e aficionados do mundo! Mandado para estudar em Campina, eu morava nos “Paus Grandes” – uma ladeira que desce da Maciel Pinheiro e demanda o Alto da Conceição –, depois numa transversal que ligava as ruas da Areia e a João Suassuna, na pensão de um sousense amigo do meu pai, chamado João Badu. Lá se hospedavam principalmente comercian-tes que se abasteciam de mercadorias nos atacadistas e grossistas do maior empório nor-destino da época, e caminhoneiros que transportavam as suas cargas para os estabe-lecimentos no interior. Lá eu sabia do meu sertão, da minha cidade, da minha família. Era um mundo agitado de chegadas e saídas, recados e encomendas, esquecimentos, exclamações e indagações, narrativas de aventuras curiosas e insólitas nas estradas. Em Campina cumpria a minha vida de estudante, e deixava a azáfama da pensão, refugiando-me frequentemente na residência de uma tia, irmã de minha mãe, que resi-dia no Alto da Conceição ao lado do Convento Franciscano. Nas imediações morava “Tejinho”, como Orlando era conhecido. Já amigo dos meus primos José e Joilton, também amigos nos tornamos. E duradoura foi a amizade. E que bela família a dele! Falo primeiramente de Dona Neves, criatura extraordinária, para mim, no realce das qualidades humanas que exaltam as mães de família. Casada em segundas núpcias teve o marido, um senhor de engenho, assassinado. Passou a cuidar so-

mente dos filhos, ainda relativamente jovem. O primeiro esposo, pai de Orlando, brilhante bacharel em direito, levara-o um ataque do coração. Cleidson, o primogênito, imbuído dos deveres que lhe impunham a condição de “chefe de família”, que assumira, trabalhava duramente na burocracia de empresas privadas, em posição destacada, assegurando com sua formação intelectual o bom salário que permitia a calma e sossego da vida familiar. Tinha outros irmãos Walter, Marcos, ótimas criaturas, e entre todos, Eliane virginal rebento de criança, que doença insidiosa levou do nosso mundo entre os três e cinco anos de idade. Ligado por amizade e estreita convivência à família, arrasado mentalmente, com o coração duramente ferido em face da tragédia, lancei apóstrofes num protesto in-contido dos poètes maudits, contra as maldades do mundo, num lirismo revoltado, iconoclasta, coisa da juventude impávida, campinense, um misto de dor e sentimento, no estilo recomendado por Deodato Borges, que também sofria a dor que feria o nosso amigo Orlando Tejo. Eis o soneto: “Por que ó Deus, a tua destra agora, \ Baixaste à terra pra colher tão cedo \ Débil botão, que a palidez da aurora \ Mal osculou à sombra do arvoredo! \ Era tão puro aquele broto, chora \ Todo jardim sua partida e quedo, \ A meditar na ação devastadora \ Da tua mão deploro e tenho medo!.” Do soneto acima esqueci os dois tercetos, magoados e inconformados como os dois quartetos. Mas acode-me a lembrança o essencial de nossas vidas: a minha e a de Orlando, a nossa descuidada formação escolar, centrados, todavia, no aproveitamento, de uma visão da trajetória humana no planeta – o oriente e o ocidente, este principalmente, com a sua civilização outubro/novembro/dezembro 2013 |

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que nos legou a sua cultura, os seus mitos de Homero a Inácio da Catingueira. Incursionamos, igualmente, eu e Orlando, na área da composição musical. Na passagem de Silvio Caldas para apresentação no auditório da Rádio Borborema, solicitamos e fomos por ele recebidos como compositores, no seu apartamento no Grande Hotel, o mais belo edifício da Paraíba, porque as demais cidades, inclusive a capital tinham construções assobradadas. Prédio mesmo só Campina. Cortesmente Silvio nos escutou. Orlando dedilhou o violão e em dueto cantamos a valsa: “Jamais pensei que assim o nosso amor, / tivesse um fim que nos causasse dor...” Gentilmente o “Seresteiro do Brasil” elogiou a nossa composição. Sem recursos para gravar a melodia e a letra, sem condições para elaborar em tempo a partitura musical, recebemos e guardamos o seu endereço para futura remessa da partitura e letra da valsa. A poesia de Orlando Tejo é a expressão de sua pessoa, de sua formação nascida e bebida, na inconfundível e curiosa Campina Grande, da Paraíba, no seu destino de ri-queza e grandeza material e intelectual, vividas, comprovadas. Assim eu penso. Porque nada foi maior comercialmente do que Campina em todo o Nordeste brasileiro. Atentem para Orlando Tejo, Seu Cabral, Argemiro de Figueiredo, Ronaldo Cunha Lima, Álvaro Gaudêncio, Plínio Lemos, Raimundo Asfora, Peba, Noujaim Habib, Elizabete Marinheiro, Vital do Rego, o garçom comunista Celestino, o nobre Orlando Almeida! E os cantadores? De fora e de casa, ganharam nome em Campina, eruditos e populares. Essencialmente os populares. Outros tiveram os seus, mas os nossos se destacam de longe. Aqui nascidos, criados, reverenciados sempre em Campina. O colégio de Padre Emidio ordenou minimamente o meu aprendizado. Na rua ganhei noções da vida aprendidas com os poetas campinenses. A experiência e a leitura eram práticas ao longo de minha existência. Guardei ao lado de sentimentos e con-vicções inabaláveis, nomes, títulos, datas, o significado do mito que não está na realização que se esgota, mas na prática que se renova dialeticamente. Mas aqui me socorre o espírito, a grandeza moral de Orlando Tejo, viva no irmão Cleidson, hoje meu companheiro eventual de papo no Bar dos Pau Mole na vi-

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zinhança do Hotel Tambaú, em Manaíra, quando venho à capital. As noções eruditas pouco ajudam. Somente complementam, apaniguam, fa-vorecem. Esta a minha opinião. Vale a origem, o lugar. Como disse o negro Inácio refutando as referências bíblicas e da mitologia grega, de letrado contendor, na mais bela página de conceitos e doutrinas estético-históricas. Daí a argumentação de Gra-ciliano Ramos que calou profundamente nas minhas reflexões, na avaliação crítica da poesia popular, da sua expressão artística, revividos na transcrição de um desafio entre o negro filho de escravos Inácio da Catingueira, e o branco

Convivemos eu e Tejo nas “primícias da juventude” na bela e imorredoura Campina Grande dos anos cinquenta, e descobrimos, então, a poesia, a vida. E como éramos amigos! E como poetamos antes dos vinte anos guiados por Álvares de Azevedo, Castro Alves, Gonçalves Dias, Inácio da Catingueira e todos os românticos e aficionados do mundo! senhor Romano, com os fumos dos seus conhecimentos de humanidades, da cultura clássica. Leiam: “Romano impava de orgulho... Netuno, Júpiter, Minerva, Plutão, Mercúrio, Vênus etc, numa versalhada sem pé e sem cabeça... (algo como o “samba do crioulo doido” de que falou Ponte Preta, o parêntese é meu) juntou numa quadra vários nomes de figuras eternas – Apo-

lo Cupido, Juno – e completou a sextilha com um desafio arrasador: ‘Inácio desata agora / O nó que Romano deu.’ “Inácio foi admirável... num gesto de bom senso que o auditório recebeu como sinal de fraqueza: ‘Seu Romano desse jeito / Eu não posso acompanhá-lo / Se desse um nó em martelo / Eu iria desatá-lo / Mas como foi em ciência, / Cante sozinho: eu me calo.’ “A ironia resvalou na casca espessa do branco, sem deixar mossa ... Nas cantigas de violeiros, como em outras cantigas, na Paraíba e em toda a parte, saem-se bem as pessoas que dizem a última palavra. Natural. Quem não fala muito, aos berros, é incapaz”.(RAMOS, Graciliano, “Viventes das Alagoas” págs. 79/82). Romano foi tido como vitorioso. Há uma medida para tudo. Tal qual Orlando, que guarda a sua ciência; e terça as armas da poesia nas pelejas da vida. Ausente embora, das tertúlias das academias, dos salões Vips, é preciso re-conhecer que sobre Zé Limeira e os poetas populares, a sua terra e o seu povo, ao lado de Luiz Nunes, Deodato Borges, Bráulio Tavares, Mario de Andrade e Câmara Cascudo, ele diz a última palavra. O seu “Zé Limeira, Poeta do Absurdo” tornou-se livro antológico ao oferecer ao povo e ao público intelectualizado, acadêmico, a rima e o metro perfeitos, amarrando assuntos e ações que revelam a vida e os costumes, a história do país. Como não? Em Pedro Álvares Cabral e Seu Cabral de Campina, Orlando fixou o começo de tudo: do Brasil a partir do descobrimento; e a popularidade e a liderança permitindo ao cidadão a construção da democracia popular possível. Orlando Tejo é e será o maior e o mais lembrado de todos os poetas, inventores e construtores da tradição, do inigualável de Zé Limeira, algo como a épica na poesia universal, que conta a história das pessoas, dos heróis, do mundo. Mais tenho a falar sobre ele, como figurante citado em prosa e verso no seu “Zé Limeira, Poeta do Absurdo”. E o farei, oportunamente. Até da presença da minha poesia no seu “Zé Limeira Poeta do Absurdo”, quando fala de uma viagem para a região da catinga, e descreve a paisagem com o meu soneto SECA, que começa assim: “Tudo é silêncio e calma, sopra quente...” Podem conferir. g


VIDA ACADÊMICA

ACADEMIA RECEBE SEVERINO RAMALHO LEITE Equipe GENIUS

Com a presença do Governador Ricardo Vieira Coutinho, Vice-Governador Rômulo Gouveia, representantes do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, além de acadêmicos, professores, escritores e pessoas da sociedade, tomou posse na Academia Paraibana de Letras o escritor e jornalista Severino Ramalho Leite, escolhido para ocupar a Cadeira nº 7, na vaga decorrente do falecimento do escritor e advogado Dorgival Terceiro Neto. A referida cadeira tem como patrono o jornalista Artur Achiles dos Santos e teve como primeiro ocupante o historiador, cronista e escritor Coriolano de Medeiros, considerado o fundador da própria Academia, nos anos 40. O segundo ocupante foi o médico e escritor Maurílio Augusto de Almeida e o terceiro, Dorgival Terceiro Neto, escritor, historiador, Vice-Governador e Governador da Paraíba, a quem Ramalho Leite sucedeu. Já tendo ocupado relevantes cargos na administração pública e na política estadual, inclusive o de Deputado à Assembleia Legislativa da Paraíba, durante vários mandatos, o novel Acadêmico construiu ao longo de sua vida um largo circulo de amizades,

Acadêmico Marcos Cavalcanti, Governador Ricardo Coutinho, o empossando Ramalho Leite e a Acadêmica Maria das Graças Santiago

atraindo, por isso, à sua posse grande número de amigos e admiradores. Após ter proferido, em primeiro lugar, como manda a tradição acadêmica, seu discurso de posse, Ramalho Leite foi saudado pelo Acadêmico Juarez Farias, que ressaltou as qualidades literárias do empossando, enal-

tecendo as diferentes obras de sua lavra. Na ocasião, Ramalho Leite recebeu, como é de praxe, o diploma acadêmico e a comenda AD IMMORTALITATEM. GENIUS publica, abaixo, trecho do discurso de posse de Ramalho Leite em que faz o elogio de seu antecessor.

O DORGIVAL QUE EU CONHECI (*) Minhas senhoras, Meus senhores: Chego, finalmente, ao meu antecessor, DORGIVAL TERCEIRO NETO. De início, deixo com ele a explicação para a razão desse nome de conotações nobiliárquicas: “Quando nasci, meu pai anunciou que eu teria o prenome do meu avô, Dorgival Vilar de Carvalho. Já havia o segundo, Dorgival de Carvalho Filho, meu tio e padrinho de batismo. Como fui o terceiro da geração, ele resolveu variar, sapecando-me o Terceiro Neto”. Por essa razão, ficou sem o nome da genealogia familiar. Seu pai, Melquíades Vilar, faleceu em 1983. Dona Elisa, sua mãe, sempre morou na casa grande da Fazenda

Santa Maria, onde todos os filhos nasceram. Os Vilar vieram de Portugal. São de origem espanhola, mas migraram para Portugal e na fronteira dos dois países ibéricos fundaram a cidade de Vilar Formoso. Na Paraíba, dois Vilar chegaram à chefia do Estado: primeiro, o Padre Galdino da Costa Vilar, nomeado em 1832. Antes, presidira a Junta Governativa por ocasião da Independência. Quando exercia o mandato de deputado federal, foi nomeado Presidente da Paraíba. O segundo, Dorgival Terceiro Neto, sucedeu ao imortal Ivan Bichara Sobreira, de quem era vice-governador. Primo de Dorgival, o imortal Ariano Suassuna nasceu no Palácio da Redenção onde sua mãe, uma

Vilar, era casada com o Presidente João Suassuna. Dorgival descobriu que o padre Galdino, como delegado do Império, inaugurou a primeira iluminação pública de que se tem noticia nesta capital: vinte lampiões a óleo de mamona. A exemplo de Arthur Achilles e de Coriolano de Medeiros, Dorgival Terceiro Neto realizou-se no jornalismo. Burocrata do DER e depois procurador jurídico daquela autarquia, fazia do trabalho noturno de A União, a sua tarefa mais gratificante. Confessa: “minha grande universidade foi A União”. Ao tomar posse na Cadeira Sete desta APL, assim se reporta, no traçado inicial outubro/novembro/dezembro 2013 |

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do seu perfil: “Ninguém procura o destino; percorrem-se caminhos que levam até ele. Menino do mato, nascido nas terras sáfaras de Taperoá, que foi meu berço e será meu túmulo, criei-me contemplando, a pouca distância das fraldas da Borborema, a Pedra do Pico, segundo ponto mais alto da Paraíba, com o feitio de um polegar gigante apontando para o infinito. Mas minha admiração silenciosa para o alto, nunca me infundiu inveja e nem ambição para alcançar mais do que a vida me reservasse.” E conclui: “Não me empenhei para ser o que fui”. Verdade insofismável. Sempre foi convidado ou procurado para ocupar posições. De marcante personalidade, Dorgival Terceiro Neto firmou seu nome a começar da Casa do Estudante da Paraíba. Ali aportou, egresso dos rígidos ensinamentos do Padre Manoel Vieira e disposto a ir adiante, ingressando no Liceu Paraibano e na Faculdade de Direito. Recebeu o diploma de bacharel em 1957, como orador da turma. Subiria bem alto, sem perder de vista a Pedra do Pico e a recomendação paterna: “quem sobe, deve medir a altura, para ter medo da queda”. Foi retirado de uma diretoria do Banco do Estado da Paraíba para ser o prefeito desta cidade, nomeado pelo então governador Ernani Sátyro. Surpreendido com o convite, nunca descobriu quem sugerira o seu nome. Cumpriu a missão com devotamento e deixou a marca de sua passagem pela gestão municipal. À época, João Pessoa tinha pouco mais de 200 mil habitantes, mas já começava a se sentir asfixiada pela sua vocação de crescimento. Precisava de novos caminhos, e tudo isso foi planejado a partir de um Plano Diretor, tornado possível, após a implantação de uma estrutura interna na edilidade, antes um conjunto amorfo, sem forma e sem direção, a que chamou de “invertebrado gasoso”. Surgiram então os novos corredores, em áreas antes praticamente desertas e hoje de difícil mobilidade. A ligação da BR com a Praia, o chamado Retão de Manaíra, com acesso ao Aeroclube. O corredor da Pedro II até o Campus Universitário. A Beira-rio, pensada para desafogar o trânsito da Epitácio e facilitar a subida ao Cabo Branco. A Epitácio foi ligada ao Cabo Branco, por uma via paralela que diminuiu os quintais das casas de veraneio que chegavam até ao sopé do morro. O ministro José Américo sacrificou de bom gosto seus pés de jabuticaba e, replantados, prometeu vê-los frutificar... O contorno do farol do Cabo Branco, as ligações da Cidade Alta com a Cidade Baixa e os viadutos sobre a BR resultaram de sua ação, eminentemente municipal ou por pressão junto a órgãos federais aqui sediados. Pagar imposto por estas bandas ainda era

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O novo Acadêmico, Severino Ramalho Leite, ao pronunciar seu discurso de posse

uma tarefa improvisada. O valor do imposto predial era fixado ao bel prazer de um cadastrador amigo. Com o auxilio de estudantes da Escola Técnica, foi implantado um cadastro imobiliário que visava à justiça tributária. A Prefeitura ganhou um Centro de Processamento de Dados e fez o seu primeiro orçamento digitalizado. Para melhorar a educação construiu mais cem novas salas de aulas, eliminando os pardieiros que eram chamados de escolas. As secretarias municipais foram estruturadas e instaladas em sedes próprias. A cidade ganhou um novo Pronto Socorro, quatro novos mercados e vários postos de saúde. E tudo isso sem repasse de verbas federais ou estaduais, apenas com a aplicação parcimoniosa das parcas receitas municipais. Esse acervo considerável de obras públicas mudou a face da cidade e chamou a atenção das autoridades da época, detentoras do poder de mando e da escolha dos dirigentes estaduais e municipais. Mais um degrau na vida publica lhe estava reservado. Tomou posse como vice-governador ao lado de Ivan Bichara Sobreira e, depois, com a renúncia deste, foi governador da Paraíba completando-lhe o mandato. Resumiu sua tarefa no governo ao transmitir o cargo ao sucessor Tarcísio Burity: “Neste quadriênio que hoje se finda, muitos investimentos foram acrescidos no nosso estado, com abertura e pavimentação de estradas, construção de pontes, implantação de mais colégios e postos médicos ou agências bancárias. Os agentes arrecadadores foram, sem dúvida, insuficientes, mas a receita teve um comportamento de crescimento razoável”. Manteve o governo fora da disputa eleitoral. O Governador Tarcísio Burity, já elei-

to pela Assembleia, e o candidato ao Senado, Ivan Bichara, estavam em campanha no interior quando recebem um exemplar de jornal desta capital. A manchete daquele dia em nada ajudava a campanha e ainda constrangia os candidatos governistas: “Dorgival: se eu não segurar as chaves do cofre, levam tudo”. Era o irreverente recado do governador, que confessou ao assumir a imortalidade acadêmica: “Assumi compromissos e tomei responsabilidades, mas tão logo me desincumbia dos afanosos ofícios, saía às pressas, sem olhar para trás, por que não carregava pesadelos”. Deixando os cargos públicos abriu escritório de advocacia. Entre audiências e petições, sobrou tempo para se dedicar à pesquisa de fatos históricos, publicando-as sob a forma de reportagens nos jornais O Norte e A União. Quando estive à frente do jornal A União, lhe abri espaço para artigos semanais, e os assuntos abordados eram acontecimentos pouco esclarecidos da nossa história, que ele fora em busca de detalhes, ocultos até então. Aposentou-se pela UFPB onde ministrara Direito Civil e Direito Agrário. Publicou Noções Preliminares de Direito Agrário, livro adotado nas nossas escolas de ensino superior; Gente de Ontem, Historias de Sempre; Paraíba de Ontem Evocações de Hoje e ainda Taperoá, Crônica para sua Historia. Como pesquisador da nossa história, Dorgival produziu reportagens que enalteceram nossos heróis. E desfez versões, revelando a verdade de fatos que foi catar nas mais diversas fontes, inclusive, entrevistando atores cuja idade ainda não os fizera mergulhar no esquecimento. A guerra do Paraguai foi tema de vários trabalhos. Os paraibanos sacrificados foram mais de dois mil, mas foi a prisão de um ex-governador da Paraíba, em 1864, que teria provocado a deflagração do conflito. O coronel Frederico Carneiro Campos governara a nossa Província entre dezembro de 1844 a março de 1848. Designado para presidir o Mato Grosso, foi detido pelo ditador Solano Lopes e morreu de inanição, recolhido a um chiqueiro, na expressão de Dorgival. A apreensão do navio Marquês de Olinda, que o conduzia, e de toda a valiosa carga, resultou no rompimento de relações entre Brasil e Paraguai e no início das atividades beligerantes. Suas pesquisas o levariam ainda aos paraibanos que perderam suas vidas nos campos de batalha nos dois conflitos mundiais e revelaram o sentimento patriótico dos moradores da pequena comunidade de Serra da Raiz, que, incorporados, vieram ao Presidente Castro Pinto, oferecer as suas forças de terra, mar e ar, para servir ao conflito que


era travado na Europa. Folclore à parte, o fato ressalta o sangue guerreiro dos habitantes daquele burgo, herdado, por certo, dos potiguaras, que ali, na Serra da Copaíba, formaram numerosa aldeia. Dorgival foi buscar a origem da iluminação publica de nossa capital, que teria começado à base de óleo de mamona e chegaria ao querosene pelos idos de 1885, um chamado moderno serviço implantado pelo então governador Antônio Herculano de Souza. Dois estágios ainda seriam vividos pelos paraibanos nas noites sem lua cheia. A iluminação a álcool e, no começo do século passado, a utilização do carbureto de cálcio. A energia elétrica, segundo Dorgival, teria sido obra de João Lopes Machado, por volta de 1910. Aqui, desejaria registrar o pioneirismo de José Amâncio Ramalho, bacharel em direito e pai do general Edson Ramalho. Nesse mesmo ano, antes de Delmiro Gouveia descobrir Paulo Afonso, dotou a cidade de Borborema de uma usina hidroelétrica e estendeu sua rede de distribuição às cidades de Serraria, Pilões, Bananeiras e Solânea até serem atendidas pela rede da CHESF, nos anos 1960, na gestão do então governador Pedro Gondim, cujo centenário de nascimento ocorrerá no próximo ano. Voltando às trilhas do passado desvendado por Dorgival Terceiro Neto, encontraremos o futuro Marechal de Ferro, Floriano Peixoto, jogando gamão nas calçadas da Rua Nova, à luz de candeeiros, na companhia de Gama e Melo, seu vizinho, a quem convidaria mais tarde para Ministro da Justiça, honraria não aceita pelo paraibano. Em Princesa, um avião teco-teco teria sido adquirido para bombardear as tropas rebeldes do coronel Zé Pereira. Não conseguiu levantar voo de Piancó. Terminou sem serventia, por falta de combustível. Outra aeronave, pilotada por um italiano, conseguiria sobrevoar Princesa recebendo mais balas do que soltando bombas. Serviria mais como transporte de alimentos para as tropas famintas, como contaria mais tarde João Lélis, membro desta Academia e pai do imortal Alexandre de Luna Freire. Dá gosto se acompanhar a primeira viagem de um governador da Paraíba ao interior, na narrativa de Dorgival. Uma viagem a cavalo que duraria 30 dias, “incômoda e arriscada” passando por Campina Grande, indo até Catolé do Rocha e voltando pelo brejo, passando em Areia e Bananeiras. Os detalhes foram extraídos de livro do historiador Wilson Seixas, com os acréscimos do meu antecessor. “Na manhã de 13 de outubro o Dr. Silva Nunes (O governador) se encaminhou para Bananeiras, às 4.45 da

Acadêmico Damião Ramos Cavalcanti,Governador Ricardo Coutinho e o empossando Ramalho Leite.

tarde, chegando as 6,45 ao Engenho Poções do major José Joaquim Pereira Cunha, após três léguas de marcha... No dia seguinte, um domingo, 14 de outubro, o governador estava entrando na Vila de Bananeiras, às oito da manhã, já acompanhado de muitos cavaleiros, um deles o juiz de direito interino, Dr. Antônio Jose de Assunção Neves, que o hospedou. Entre Areia e Bananeiras foram contadas trinta e cinco ladeiras. A própria Vila está subindo em uma ladeira. A escola local tinha 45 alunos e bom professor.” Era o ano de 1860. Minhas senhoras, Meus senhores: Conheci Dorgival Terceiro Neto como professor adjunto de Mario Moacyr Porto na Faculdade de Direito. Fui aluno de ambos. Ao assumir a Prefeitura da Capital, Dorgival me incluiu no seu corpo de auxiliares. Foram mais de três anos de esforço concentrado, sem hora para terminar o dia ou a noite. Notívago, desde os tempos da redação de A União, costumava encerrar as reuniões noturnas no Cassino da Lagoa. Naquele tempo os jornais fechavam suas edições à noite e para o mesmo local se dirigia o pessoal do Correio da Paraíba e de O Norte. A mesa estava formada e o “papo”, às vezes, assistia os primeiros raios do sol dourando o espelho d´água da Lagoa. Nesse período, não sei como meu casamento resistiu. Era difícil explicar em casa que eu estava com o prefeito até o dia amanhecer... Certa feita, uma tempestade caiu sobre a cidade. Do Cassino, testemunhamos o transbordamento da Lagoa, em face do bloqueio das galerias pela folhagem solta das árvores do parque. Encerramos a con-

ta e saímos. Eu dirigindo e ele ao lado. Na Maximiliano de Figueiredo, parei a seu pedido. Um mar enchia a rua. Encontrou o que procurava: meteu a mão na água acumulada e retirou o entulho. Vamos arrodear..., deu a ordem. Cumpri. Na Rua Borja Peregrino, outra lagoa se formara. Mergulhou na água suja e desentupiu o ralo. Tudo isso, com as imprecações mais variadas dirigidas aos garis da prefeitura, encarregados de ficar de plantão para esse encargo não cumprido. Outra tempestade o acordou na madrugada. Na ocasião, estava em obras o contorno do farol do Cabo Branco. Levantou, vestiu o capote do vigia de sua casa e dirigindo um opala, foi ver o estrago que a chuva causara à obra. Na primeira curva, o carro atolou. O veículo ficou lá, e ele arrastou a pé até o Miramar, onde morava. Pelas cinco da matina, operários já se dirigindo ao trabalho, ônibus lotados na Epitácio Pessoa, o prefeito, de bermudas e sandálias, coberto por um capote, chegava às cercanias do Clube Cabo Branco. Foi esse o Dorgival que conheci. Cara dura, coração mole. A carranca era mais um instrumento de defesa para evitar pedidos que não poderia atender. Se os ouvisse, porém, sendo um socorro humanitário ou uma reivindicação justa, debulhava-se em atenções e se revelava por inteiro. Devo-lhe muito. Na minha primeira eleição de deputado, foi meu grande eleitor. Até o apartamento onde moro, ganhei-o na Justiça com a sua ajuda. Acionei o banco financiador que ofereceu papeis à penhora. Estive no seu escritório e ele me disse: - Mercadoria de banco é dinheiro. Não aceite papel. Sentou-se na maquina de escrever e redigiu um pedido de substituição de penhora. O banco me quitou o apartamento e ainda me devolveu o que recebera a maior. Acho que foi a primeira vez que um banco perdeu para o cliente... Se lhe devia em vida, após sua partida, devo-lhe a obrigação, de sendo seu sucessor nesta Casa, perpetuar-lhe o nome e contribuir para a imortalidade de sua obra. Uma palavra à sua família – viúva, filhos e netos, carreguem esse nome com orgulho. Dorgival, terceiro neto de Dorgival Vilar de Carvalho, honrou a Paraíba e aos paraibanos que dele obtiveram a dádiva da convivência e da amizade. g

(*) Excerto do discurso de posse do jornalista e escritor Severino Ramalho Leite, na Cadeira nº XX da Academia Paraibana de Letras, sucedendo ao jornalista, escritor e advogado Dorgival Terceiro Neto, na noite de 6 de dezembro de 2013. outubro/novembro/dezembro 2013 |

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HOMENAGEM

As tessituras de Elizabeth Marinheiro Milton Marques Júnior

A professora Elizabeth Marinheiro recebeu, no último dia 25 de outubro, da União Brasileira de Escritores, na Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Zila Mamede, pelo Conjunto da sua Obra. Nada mais merecido. Fui, com muita honra, seu aluno na graduação e na pós-graduação, depois colega de departamento na UFPB, e sei de sua capacidade intelectual e do bom combate que travou em prol da literatura, ao longo dos anos. É por isto mesmo que eu peço a devida vênia para a publicação de uma carta que enviei à minha querida professora e amiga, em 2 de outubro do corrente ano, depois da leitura de mais um dos seus livros: “Querida Betinha, ontem, à noite, depois que cheguei da Universidade, peguei o seu livro Tessituras do Eu x Fortuna crítica II, para ler. Não o larguei mais. Desconheço a hora em que fui dormir, mas, garanto-lhe, que só me entreguei a Hypnos depois que terminei a leitura. Uma delícia! É óbvio que a primeira parte ganha da segunda, mas você foi de uma felicidade muito grande ao saber separar as coisas: inicialmente, você fala de si mesma, como se estivesse em uma conversa franca, como a que tivemos sempre e, recentemente, na última segunda-feira, dia 30, continuada no dia seguinte; na segunda parte, você põe os outros para darem notícias suas. Destaco nesse segundo momento, os substanciais ensaios de Hildeberto Barbosa Filho e de José Mário da Silva, em sua precisão, pertinência e seriedade epistemológica. Quanto à primeira parte do Livro - Tessituras do Eu -, achei-a magnífica. Você tem a alma da exposição objetiva. Seu estilo, às vezes elíptico, às vezes irônico, muitas vezes somando as duas coisas, seu estilo é a Elizabeth Marinheiro que eu conheço e de cuja amizade eu privo há tantos anos. Não lhe faz nenhum favor José Louzeiro chamá-la de “uma artista da palavra”

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Não lhe faz nenhum favor José Louzeiro chamá-la de “uma artista da palavra” (p. 19). É puro merecimento, tendo em vista que, como ele mesmo afirmou, mais adiante, você “firmou seu nome numa época em que, para uma mulher, desejar ser crítica literária era verdadeiro atrevimento, pois essa elevada função cabia unicamente aos homens [...] (p. 19). É puro merecimento, tendo em vista que, como ele mesmo afirmou, mais adiante, você “firmou seu nome numa época em que, para uma mulher, desejar ser crítica literária era verdadeiro atrevimento, pois essa elevada função cabia unicamente aos homens, em geral ocupando as colunas dos importantes suplementos literários, nos grande jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo (p. 19)”. Este reconhecimento só se tornou possível pelo fato de que você nunca se acomodou, sempre adotou uma postura combativa, sempre buscou fazer, quando tantos outros procuravam e ainda procuram a comodidade dos cargos, em lugar da nobre tarefa dos encargos. É com justiça,

que José Louzeiro reivindica para você a sua entrada na Academia Brasileira de Letras, pois, continua Louzeiro, “Elizabeth não veio ao mundo só para ‘presenciar’ como era comum acontecer com a mulher, até fins do século passado - mas, também, para atuar, de igual para igual, com os mais competentes críticos da ficção nacional e estrangeira” (p. 20). Vivendo no mundo dos livros, que a etimologia popular associa a livre liber, livro, e liber livre, escrevem-se do mesmo jeito, em latim; livre, porém, tem uma origem que o aproxima etimologicamente do grego; livro, por enquanto, não tem etimologia definida), nada mais natural que você reivindicasse para si a liberdade que esse veículo representa - “Quero a liberdade no ato de escrever.” (p. 23), recusando, terminante e convictamente, o modelo “Amélia” (p. 43). Como uma mulher que determinou a si mesma o enfrentamento do mundo, você, que conquistou o reconhecimento nacional e internacional, poderia sentar-se nesse trono e, olimpicamente, pretender falsear a sua origem, mas nunca esqueceu a Paraíba e, mais especificamente, a sua querida Campina Grande, jorgelimianamente seu mundo do menino impossível. Campina Grande é para você o doce mais agradável ao paladar e, como você mesma diz, “Encontramos a doçura quando a procuramos” (p. 29). Esse enfrentamento do mundo a fez transgressora - confesso que revivi meus doces anos de ginásio na antiga Escola Industrial, depois Escola Técnica Federal da Paraíba, onde aprendi buscar o saber. Das transgressões das traquinagens de menina e adolescente, às transgressões do mundo literário, numa ousadia sem precedentes na nossa pequenina Paraíba. As transgressões criadoras, que a moveram à substituição sem volta do “biografismo vigente pela exegese textual, ancorada nos princípios da Teoria e Crítica Literárias” (p. 48).


Das transgressões intelectuais a aluna de Roland Barthes foi um pulo. A junção das duas ações, ditadas pela consciência do quão é conflituoso e transgressor o discurso artístico, como de resto a vida, que tentamos aprisionar em mil camisas de forças, levou você, imperiosamente, à criação dos inimitáveis e saudosos Congressos Literários de Campina Grande Sei, Betinha, como testemunha ocular, anos depois, como isto incomodou e ainda incomoda muita gente. A má emulação Eris Kakóchartos -, invejosa e danosa e que se rejubila com o mal dos outros, a que o poeta Hesíodo se referia no magistral poema Trabalhos dias, (verso 28) está mais presente do que nunca. Das transgressões intelectuais a aluna de Roland Barthes foi um pulo. A junção das duas ações, ditadas pela consciência do quão é conflituoso e transgressor o discurso artístico, como de resto a vida, que tentamos aprisionar em mil camisas de forças, levou você, imperiosamente, à criação dos inimitáveis e saudosos Congressos Literários de Campina Grande, únicos no gênero, no dizer de Ildásio Tavares, “o mais monumental congresso do Brasil” (p. 96), e de que participei ativamente, com orgulho. Congressos saudados e compreendidos por todos os participantes, nacionais e internacionais, como Tribuna Livre do Pensamento (p. 57). Longe, porém, da acomodação, você, Betinha, foi mais à frente, por saber que aberta uma senda, o caminhar por ela

aponta sempre para novas trilhas e diversas veredas, que devem igualmente ser percorridas, desbravadas, por aqueles que não vêm ao mundo apenas para contemplar as suas belezas, mas, sobretudo, para modificá-lo em muitas coisas, com o objetivo de contribuir para que elas sejam ainda mais belas e motivadoras. O exemplo de Mestra você sempre deu, na sua pontualidade, responsabilidade e competência. Mas o verdadeiro Mestre vai sempre além, procura sempre estabelecer novos limites e parâmetros. Vencendo “o repertório ofídico da burocracia universitária” (p. 66) - frase não menos magnífica, quanto verdadeira! Estou me torcendo de inveja por não tê-la criado, mas agora, com sua permissão, ela é minha... -você implementou o Mestrado em Produção de Textos e Literaturas Marginais, sendo uma multiculturalista avant la lettre, por saber acolher as diferenças (p. 66), numa época em que esse modismo, que para você nunca foi, ainda não havia se instalado. Mas a Mestra fala mais alto ainda, suprindo com seus próprios livros a endêmica miséria de nossas bibliotecas universitárias e públicas, excetuadas raríssimas e honrosas exceções. E com móveis de sua casa, para o funcionamento do curso, pois a indigência se estende também ao mobiliário e à infraestrutura de nossas instituições... Os títulos e honrarias, que viriam a seguir, não são senão o reconhecimento dessa batalha incansável travada contra tudo e contra todos, anos a fio: primeira mulher na Academia Paraibana de Letras, integrante do Conselho Federal de Cultura, Cidadã Pessoense, reconhecimento do NELL da UFPB - Núcleo de Estudos Linguísticos e Literário -, anterior aos departamentos acadêmicos, de que foi fundadora e primeira coordenadora; jurada das Bienais Nacionais de Literatura da Nestlé, uma das Dez Mulheres do Brasil, por indicação do Conselho Nacional da Mulher; a eleição para o PEN CLUB do Brasil, saudada pelo embaixador e membro da ABL, Alberto da Costa e Silva, como “grande dama da literatura brasileira” (p. 18); avaliadora da CAPES/MEC, para o credenciamento do curso de Teoria Literária da USP, recebendo elogios do seu Diretor Geral, Claudio de Moura Castro (p. 95). Sua competência, Betinha, está à vista de todos que a conhecem e sabem do seu incansável trabalho. Homero chamava Palas Atena, a deusa da Sabedoria, de Atritone, a infatigável, a invencível, epíteto que bem se pode aplicar a você. Edson Néry da Fonse-

Enfim, “motor que transmite entusiasmo, que organiza, que impulsiona”, no dizer de Jorge Amado (p. 159), você, Elizabeth Marinheiro, minha querida professora, minha querida amiga Betinha, é o exemplo da combatividade que engrandece e dignifica. ca reconhece nos Congressos de Campina “mais uma contribuição do seu idealismo e de sua competência aos estudos literários em nível internacional” (p. 103); Marcos Almir Madeira e Barbosa Lima Sobrinho, seus confrades do PEN CLUBE do Brasil, reconhecem que “na sua produção em livro e nas tribunas do País e do exterior, um brilho genuíno marca a filosofia e a técnica de certa crítica literária plasmada numa modernidade sem modernice” (p. 106); Francisco Weffort, Ministro da Cultura, na época (2000), referindo-se ao seu período no Conselho Nacional de Política Cultural, ressalta a “sua participação competente, empenhada e comprometida com os mais valores de interesse público”, deixando “um legado precioso em termos de conhecimento e de busca de soluções para as questões relacionadas com a cultura brasileira” (p. 115). Enfim, “motor que transmite entusiasmo, que organiza, que impulsiona”, no dizer de Jorge Amado (p. 159), você, Elizabeth Marinheiro, minha querida professora, minha querida amiga Betinha, é o exemplo da combatividade que engrandece e dignifica. Parabéns pelo seu livro. Com a admiração e o carinho de sempre”. g outubro/novembro/dezembro 2013 |

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SOCIOLOGIA

O Vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no ser tão Tanya Maria Pires Brandão O espaço geográfico do interior do nordeste brasileiro, conhecido por sertão, se apresenta como uma construção social cujo marco inicial data da segunda metade do século XVII. Até meados dos anos setecentos, quando foram definidas as fronteiras das capitanias instaladas nesta região, o interior do atual Nordeste era dividido pelos contemporâneos em duas grandes áreas denominadas Sertão de Dentro e Sertão de Fora. As delimitações destes espaços eram então muito vagas. O Sertão de Dentro, também chamado de Sertão de Rodelas, por exemplo, compreendia as terras situadas a oeste do rio São Francisco. Segundo Caio Prado Junior, este sertão era composto por: “todo o território do Nordeste, excluída a estreita faixa que borda o litoral, e que se estende entre o rio Parnaíba e o norte de Minas Gerais [...] para oeste, o limite desta zona do sertão se fixa(va) na margem esquerda do São Francisco”. 1 Uma das características identificadas na construção deste espaço geográfico-social era a autonomia desfrutada pelos agentes históricos ali atuantes. No lado oriental da bacia do Parnaíba, por exemplo, no final do século XVII, já havia uma população de colonos residente, nas fazendas e sítios por eles instalados. Estes colonos articulavam-se com as demais regiões através do fornecimento do gado que abastecia o mercado colonial brasileiro. Somente no início da década de 1760, quando nesta região já havia 12.744 pessoas e 235 fazendas de gado instaladas nas sesmarias que há um século vinham sendo distribuídas, é que foi instalado o aparelho político-administrativo da Colônia.2 Caio Prado Junior, 1975. P. 188., Governo do Piauí. J. Pereira Caldas, Resumo de todas as pessoas livres e cativas. Fogos e Fazendas, cidades, vilas e sertões da capitania de São José do Piauí. Registro n. 0273, p. 102-103. Arquivo Público do Estado do Piauí: Sala do Poder Executivo,

Embora desde o início do século XX, figuras como Capistrano de Abreu ressaltem a importância em se conhecer a sociedade que se desenvolveu no interior do Nordeste, essa história continua carecendo de estudos revisionistas. Em geral este sertão é identificado como um lugar inculto, longe do litoral e dos centros civilizados, marcado pelo rigor climático da região, bem como pela pobreza e violência de seus habitantes. A ideia de que o sertão é o avesso do litoral vem sendo difundida desde os tempos da colônia. Uma vez impressa nos estudos sobre a região, apresenta-se como definidora do mundo sertanejo. Como afirma Durval Albuquerque em seu trabalho A Invenção do Nordeste, “determinadas práticas diferenciadoras dos diversos espaços são trazidos à luz, para dar materialidade a cada região.”3 Admite o referido estudioso que a seleção de determinados elementos não é aleatória. Para ele, “essas figuras, signos, temas que são destacados para preencher a imagem da região, impõem-se como verdades, pela repetição.”4 É fato inconteste que nas últimas décadas os historiadores vêm voltando suas investigações para a sociedade do sertão. Porém, a concepção de mundo e de vida do sertanejo, bem como as formas de articulação entre os grupos sociais locais são temáticas ainda pouco exploradas. Embora esta sociedade tenha se constituído a partir de diferentes grupos étnico-culturais e de pessoas originárias de diversos contextos sociais, as formas de linguagem e de comportamento próprios do sertão pouco têm despertado o interesse dos estudiosos. Porém uma coisa é certa: a investigação histórica sobre o pensar, agir e ser social-

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Durval Muniz de Albuquerque Junior, 1999. P. 49, Ibdem.

mente do habitante interiorano do Nordeste resultará em conhecimento inédito sobre o cotidiano e o imaginário desta parcela de brasileiros. Com base nos estudos já realizados, pode-se dizer que o perfil dessa sociedade foi definido por um conjunto de fatores. Dentre eles sobressai-se o isolamento vivido pelos habitantes. Este foi uma decorrência da distância firmada entre as unidades de produção e da ausência de vias de acesso aos distantes centros de decisões políticas da Colônia. Somavam-se a este quadro as características próprias da pecuária que interferiam nas relações sociais locais. Portanto, foram esses fatores que conferiram ao povo do sertão um modus vivendi específico que resultou da adequação de valores morais, de normas sociais e de instituições jurídico-administrativas transplantadas para local tão longínquo. Desde há muito é sabido que são vários os sertões do Brasil. Consequentemente, são muitos os tipos de sertanejos passíveis de identificação. Tendo em vista os diferentes aspectos do processo de formação histórica do interior do Nordeste, a produção do conhecimento sobre os vários espaços sociais aí construídos não deve ter por referência apenas os aspectos gerais, sem levar em consideração o que há de particular de cada localidade do sertão. A não linearidade cronológica e do ritmo da ocupação colonial no interior nordestino pode ser apontada como uma característica que determinou os aspectos peculiares de cada sertão. Por exemplo: no final do século XVII, os colonizadores do sertão do atual estado de Pernambuco ainda estavam na fase de conquista da terra dos índios para efetivação do povoamento colonial nesta área. Em compensação, nesta mesma época,


o Padre Miguel de Carvalho fez o levantamento censitário dos habitantes das fazendas e sítios edificados no território do atual estado do Piauí. Esta missão oficial do Padre Miguel teve por objetivo a instalação da primeira freguesia em terras da bacia do Parnaíba e a identificação dos ali residentes, bem como conhecer como se distribuíam e viviam5. Estes registros informam a existência de uma sociedade pecuarista onde o grupo de indígenas era minoritário e na qual predominavam crianças e mulheres. Também deixam evidente a preferência pelo trabalho escravo negro nas fazendas e sítios identificados, além do fato da escravidão vigente apresentar aspectos bem peculiares. Por exemplo, nestas unidades de produção existiam escravos que exerciam a função de vaqueiro, sem a presença do senhor ou de um feitor. De acordo com os dados demográficos coletados pelo padre Miguel, no final do século XVII, na área de povoamento colonial no Piauí, o grupo étnico quantitativamente mais significativo era o composto pelos negros, na sua maioria de origem africana. Esta composição da sociedade local onde os brancos eram minoria, provavelmente, contribuiu para o peculiar relacionamento racial identificado pelo primeiro governador da Capitania, um século depois da visita do Padre Miguel. Quando da instalação do governo, Pereira Caldas deu seu depoimento sobre os costumes locais, considerando-os exóticos. O governador estranhara, sobretudo, o prestígio dos negros entre os habitantes livres inclusive entre os de pele branca. Para o governador, a causa desse comportamento podia ser a superioridade numérica dos negros no conjunto da população.6 Talvez devido ao fato das pesquisas relativas ao sertanejo terem por base a documentação oficial, o conhecimento sobre este brasileiro ressalte, sobretudo, seu caráter arredio e suas atitudes violentas. Na verdade, em geral as autoridades constituídas que atuaram nessa região sempre denunciaram a prepotência e a autonomia das forças políticas do sertão. Nos registros dos agentes do Estado, são constantes os reclamos sobre o comportamento hostil dos sertanejos frente às imposições da ordem de direito. Para Raimundo Faoro estas características do colono do sertão têm sua explicação. Resultaram do espírito aventureiro e conquistador dos primeiros povoadores da região. Também decorreram da capa-

cidade que os mesmos tinham de se organizarem e de manterem seus exércitos para enfrentar os nativos e a natureza hostil. Esta lhes conferia ânimos ardentes e insubordinados. Segundo ainda Faoro, o conhecido ímpeto sertanista acabou por se formar graças à existência de um mercado de gado livre da fiscalização das autoridades governamentais.7 Uma releitura das fontes oficiais somada à ampliação do corpo documental de pesquisa provavelmente permitirá ao pesquisador identificar outros aspectos dos sertões e dos sertanejos do Nordeste. Servem de exemplo os registros dos viajantes que visitaram o in-

Miguel de Carvalho In Ernesto Ennes, 1938. PP. 370-80., Governo do Piauí. J. Pereira Caldas. Ofício datado de 1762. Livro 18. p. 25. Arquivo Público do Estado do Piauí: Sala do Poder Executivo.,

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É fato inconteste que nas últimas décadas os historiadores vêm voltando suas investigações para a sociedade do sertão. Porém, a concepção de mundo e de vida do sertanejo, bem como as formas de articulação entre os grupos sociais locais são temáticas ainda pouco exploradas. terior do Brasil. É o caso de Henry Koster. Como viajante independente, seu olhar sobre a região e seus habitantes deixa transparecer nuances diferentes. Na contramão da maioria daqueles que se detêm em descrever o sertão nordestino, ele admite que o clima desta área fosse melhor e mais sadio que o da região litorânea. Atento a tudo e a todos que via, ele registra em sua narrativa desde a alimentação até o modo de viver do sertanejo. Descreve, inclusive, a moradia e vestuário da população do sertão. Seus regisRaimundo Faoro, 1976, v.1, P. 156.,

tros são recheados de admiração para com a compleição física dos homens e mulheres, apontando como explicação o complexo resultado da mistura racial processada.8 A literatura é outro campo de pesquisa pouco visitado de forma crítica pelos historiadores dos sertanejos. Através dos textos literários podem-se identificar as diferentes formas de percepção e de representar o mundo do interior do Nordeste. É o caso de Euclides da Cunha que se sentindo “o descobridor” dos sertões e de seus habitantes conclui categoricamente que “o sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.”9 A admiração, quase deslumbramento, de Euclides da Cunha para com o sertanejo é reveladora da concepção difundida em sua época sobre o conjunto sertão-sertanejo. Também é marcada pela ideia, já antiga, que opõe litoral e sertão, mas que agora se achava impregnada por um nacionalismo que se impõe aos brasileiros no início da República. Como bem observa Durval de Albuquerque, a obra Os Sertões evidencia a participação de Euclides nesta discussão. “discussão nacionalista em torno da questão da cultura e sua relação com a civilização, sendo o litoral o espaço que representa o processo colonizador e desnacionalizado, local de vidas e culturas voltadas para a Europa. O sertão aparece como o lugar onde a nacionalidade se esconde, livre das influências estrangeiras. O sertão é aí muito mais um espaço substancial, emocional, do que um recorte territorial preciso; é uma imagem-força que procura conjugar elementos geográficos, linguísticos, culturais, modo de vida, bem como fatos históricos de interiorização como as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o messianismo.”10 É também de forma dicotômica que o autor de Os Sertões descreve o sertanejo e alerta para o risco de se procurar compreender o sertanejo pelas aparências. Para ele a figura do homem do sertão tem dupla face: “Reflete a preguiça invencível, atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude”. Henry Koster, 1978., Euclides da Cunha, Os Sertões. Erechim: EDELBRA, (s.d) p. 115., 10 Durval Muniz de Albuquerque Junior. Op. Cit. P. 54. 8 9

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Entretanto, toda essa aparência de cansaço ilude: [...] Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e na figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento de força e agilidade extraordinárias.11 Na descrição de Euclides da Cunha o contraste é o traço identificador do comportamento do sertanejo e “revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja.”12 Além da integração do homem com o meio ambiente do sertão, talvez seja este contraste o ponto de partida para o exame de questões que possibilitem o conhecimento mais aprofundado desta parcela da sociedade brasileira, pois como diz Euclides da Cunha, “este contraste impõe-se ao mais leve exame.” 13 A figura do vaqueiro, por se encontrar presente tanto na literatura como nas fontes oficiais, apresenta-se como consistente objeto de investigação histórica sobre o sertão nordestino. Graças à importância desta figura no conjunto da sociedade que se formou com base no criatório bovino, o vaqueiro é um tradicional símbolo desta parte do Brasil. É desta forma apresentado na literatura, no anedotário, nas lendas, no folclore, na pintura e até na historiografia. O interessante é que no vaqueiro também se pode identificar o contraste apontado por Euclides da Cunha. De um lado é a representação da presumida liberdade existente no sertão como é visto comumente na literatura e nas demais formas de linguagem popular. Contudo, uma releitura das fontes deixa margem para que outra versão desta figura possa ser vislumbrada. Neste caso a identificação do vaqueiro aponta no sentido de o mesmo ser expressão concreta da dominação vigente nas relações sociais do interior do Nordeste. O termo vaqueiro é em geral atribuído ao profissional especializado no manejo do gado vacum. No Brasil, o espaço para o surgimento do vaqueiro ocorreu com a instalação das fazendas de gado no interior do Nordeste, no séEuclides da Cunha. Op. Cit. P. 116., Ibdem., 13 Ibdem., 11

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culo XVII. Entretanto, foi no longínquo sertão que essa figura adquiriu importância social. Esta se efetivou graças à concentração da propriedade fundiária e do absenteísmo próprios da economia local desde o período colonial. No Piauí, por exemplo, por muito tempo, a contar do início da colonização, as fazendas compreendiam ao mesmo tempo unidade de produção e local de residência dos habitantes. Em geral eram administradas por vaqueiros. Estes eram pessoas livres, portanto fora do binômio senhor-escravo, que trabalhavam sob o regime de parceria, mas como delegado do dono da terra, do gado e dos escravos. Graças à condição de representante do senhor, a importância social do vaqueiro não sofreu abalo, mesmo quando a estrutura social local tornou-se mais complexa, face o crescimento da po-

A literatura é outro campo de pesquisa pouco visitado de forma crítica pelos historiadores dos sertanejos. Através dos textos literários podem-se identificar as diferentes formas de percepção e de representar o mundo do interior do Nordeste. pulação intermediária senhores e escravos. Ao contrário, nesta fase a posição social de destaque consolidou-se. Também era quem definia o local de residência dos mesmos. Como administrador do patrimônio de um senhor, o vaqueiro era o responsável direto pela manutenção da ordem local. Segundo a documentação da época colonial, o posto de vaqueiro era ambicionado por todas as pessoas que se destinavam às terras do Piauí. Por um lado este desejo talvez se impusesse face às dificuldades na aquisição de uma data de terra. Por outro, a explicação pode estar no fato de que esta função garantia estabilida-

de de emprego, além da consideração e apoio propiciados pelos fazendeiros. Mas também é provável que o interesse em ser vaqueiro também estivesse na possibilidade de vir a possuir escravos e de algum dia ser dono de curral ou arrendar um sítio, pois já lhe era garantido por contrato 25% da produção do gado administrado.14 Esta possibilidade de mobilidade social pertinente à categoria do vaqueiro, bem como o tipo de vida que o mesmo levava montado a cavalo, dono de seu tempo e livre para se dirigir a lugares diferentes despertava, em todos, o desejo de ser vaqueiro, sobretudo porque somava-se ainda o fato de administrar um patrimônio sem a fiscalização do senhor. Também foi o tipo de vida do vaqueiro o indicador da propalada liberdade no nordeste pastoril. O interessante de ser ressaltado é que este mundo pecuarista se caracteriza pela concentração da propriedade da terra e pela hegemonia dos senhores rurais na estrutura de poder local. Porém, como é facilmente constatado, é o vaqueiro a figura simbólica desta sociedade e não o fazendeiro. É certo que por muito tempo o vaqueiro foi o personagem mais ligado à atividade pastoril. Entretanto, é possível que a tomada do vaqueiro como figura representativa do sertão, da pecuária e do sertanejo nordestinos talvez esteja relacionada à percepção que se tem ou que se pretende difundir da vida no sertão. A ideia construída do vaqueiro é difusora da liberdade de locomoção em áreas longe dos centros vigiados pelas autoridades e das possibilidades de acessão social. O vaqueiro é, neste caso, a personificação da liberdade que se admite grassar no sertão. Nesta perspectiva a imagem veiculada do vaqueiro transcende a de um homem da lida, da labuta diária com a gadaria, embora a hostilidade do sertão e as dificuldades próprias da economia local não sejam ignoradas. Talvez esteja aí a explicação para o vaqueiro ser sempre apresentado como um jovem herói, um homem resistente, ágil e conquistador. Na construção deste perfil são ressaltadas as características viris, o tom bronzeado da pele e a compleição física modelada. Acrescenta-se ainda o olhar perspicaz que evidencia o nível de inteligência e o modo altivo de se dirigir às pessoas. Apresentado como padrão de beleza masculina é o símbolo sexual do sertão geralmente descrito em bela montaria e com indumentária própria. 14

Tanya Maria Pires Brandão, 1999. P. 106.,


Um bom exemplo é a descrição do protagonista da novela Ataliba, o Vaqueiro. Nessa obra Francisco Gil Castelo Branco traz á luz o imaginário do vaqueiro em terras do Piauí. “Ataliba era moço, tinha figura atlética e a fisionomia cheia de franqueza. O seu trajar caprichoso indicava desde logo que ele era vaqueiro e enamorado. Com efeito, as suas perneiras, o seu guarda-peito, o seu gibão e o seu chapéu. Com trancelim e bordas de fios de cor, eram de finas peles de bezerro, lavradas com esmero por hábeis mãos de mestre. Um maço de cordas de couro adunco, dobrado em vários círculos, passava-lhe do pescoço por sob o braço esquerdo: era a sua faixa de honra, era o famoso laço com que prendia a rês rebelde do curral ou necessitada de algum cuidado.” 15 Ao descrever as características de seu herói, o autor proclama ainda traços de sua personalidade. “São naturezas especiais as dos homens desses ermos longínquos: implacáveis no ódio, extremados no amor, fiéis à gratidão, onde se prendem, [...] Não se dobram aos maneios dos interesses, mas estalam fendidos pelas paixões, que não se curvam ao sopro das ventanias e caem por terra em estilhaços, partidos pelo raio. Não recuam perante o perigo; tremem, entretanto, ouvindo histórias de duendes!”16 A harmonia entre os traços físicos e psicológicos identificada na figura do vaqueiro evidencia-se nos momentos de pura emoção. No caso de Ataliba, um destes momentos aconteceu quando o mesmo viu sua amada. “Os seus olhos de carbúnculo chamejavam, um ar de ventura animava o seu rosto acaboclado e o seu porte esbelto, em harmonia com o seu vestuário, dava-lhe o aspecto de magnífica estátua fundida de bronze.” 17 Entretanto, no contexto sócio-político do Piauí a figura do vaqueiro encarna outros papéis. Tais papéis são atuados nas relações sociais do sertão pecuarista. Ao longo do processo histórico desta sociedade o vaqueiro se apresentava como representante do poder local, base da própria estrutura de poder da região. Funcionava como primeira instância dessa estrutura onde os proprietários rurais tinham hegemonia consolidada em face da participação efetiva do vaqueiro. Francisco Gil Castelo Branco, 1994., IDEM. P. 44., 17 Idem, 15 16

O vaqueiro, além de administrador da fazenda, principal unidade de produção da região, era o homem da confiança do proprietário que geralmente vivia em outra localidade. Estas duas funções foram fontes principais do poder de mando do vaqueiro cuja legitimação foi uma decorrente do delineamento da estrutura social da região. No Piauí, por exemplo, desde o século XVIII, seu quadro social apresentava um grande contingente de marginalizados ou de subempregados na atividade do criatório. Ao longo do tempo essas pessoas formavam um exército de homens disponíveis que gravitavam em torno dos senhores de terra. Em geral eram pessoas que não dispunham de recursos para se estabelecerem de forma autônoma como criadores. A segunda opção

O termo vaqueiro é em geral atribuído ao profissional especializado no manejo do gado vacum. No Brasil, o espaço para o surgimento do vaqueiro ocorreu com a instalação das fazendas de gado no interior do Nordeste, no século XVII. de engajamento social destes homens livres era o posto de vaqueiro que, além da estabilidade econômico-financeira, conferia ao indivíduo uma posição social de prestígio e respeitabilidade. Entretanto, em decorrência do caráter extensivo e quase extrativista da pecuária desenvolvida e da concentração de propriedade fundiária, o grupo constituído por vaqueiros foi sempre reduzido. Como acontecia com os fazendeiros o número de vaqueiros era limitado. A ampliação desse quadro funcional achava-se atrelado ao crescimento do rebanho e da decisão voluntária ou necessária do senhor de expan-

dir seus currais. Contudo, ainda existia um outro elemento complicador no acesso ao posto de vaqueiro. Desde o início da instalação das fazendas no Piauí, o posto de vaqueiro era ocupado por pessoa conhecida e de confiança do fazendeiro Ao longo do tempo consolidou-se o costume local de serem os filhos dos vaqueiros os substitutos daqueles que deixavam a fazenda, como também os ocupantes do posto nas novas unidades pastoris instaladas. Portanto, a maioria dos habitantes engajava-se socialmente como agregados de um senhor de fazenda sob as ordens do vaqueiro. Este funcionava como ponto de ligação entre proprietário e agregados, atuando como elemento mantenedor da ordem estabelecida. Seu poder era, portanto, uma delegação do fazendeiro, porém sua autoridade era legitimada pelos segmentos sociais. É, entretanto, através de seu comportamento no cotidiano da vida social, econômica e política da região que a figura do vaqueiro se sobressai como elemento que consolida e conserva uma sociedade hierárquica, quase estamental como a do sertão pecuarista do Nordeste. Indiscutivelmente, o vaqueiro como sócio, administrador e homem de confiança do fazendeiro, tem o seu lugar de destaque na escala social do sertão. Contudo, embora tratando-se de um homem de prestígio e poder, ele não se iguala socialmente ao senhor, nem tão pouco comunga sempre com os pensamentos e interesses do senhor. Essa questão é constatada através da documentação oficial existente nos arquivos do Piauí. O mandonismo do senhor chegava a interferir na vida pessoal e familiar dos vaqueiros, resultando daí tensões e conflitos. Também na literatura o antagonismo entre vaqueiro e fazendeiro é abordado como tema. Um exemplo é o romance O Sertanejo de José de Alencar. Em trabalho sob o título A “Cor local” nos Romances O Gaúcho e O Sertanejo, Maria do Socorro Magalhães identifica o drama do vaqueiro do sertão neste romance. “Os problemas do herói não derivam da natureza hostil do sertão, mas sim de sua organização social. Arnaldo (o vaqueiro) por ser livre como a natureza, tem dificuldades de convivência naquela pequena sociedade onde tinha poderes de um senhor feudal [...]” 18

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Maria do Socorro Rios Magalhães, 1995. P. 100.,

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O interessante é que no romance citado, a relação entre vaqueiro e senhor é marcada pela disputa pessoal, mas esta perde importância quando entra em cena um elemento estranho e que representa “uma ameaça à ordem instituída na sociedade sertaneja”19 Como bem observa Socorro Magalhães, José de Alencar não confere caráter ideológico a este conflito, pois a relação entre o vaqueiro e o patrão é marcada pelo respeito e admiração mútua. As discordâncias entre estas principais figuras do sertão pecuarista são expressas em espaços físicos diferentes. Esta questão também foi observada por Magalhães em O Sertanejo. “O espaço que Arnaldo [o vaqueiro] ocupa é o Sertão em estado de liberdade, fora dos limites da fazenda, que é espaço submetido à lei do Capitão-mor Gonçalo Campelo [o fazendeiro]. Rebelde e insubmisso, Arnaldo é o único que consegue se manter à margem do poder exercido pelo dono das terras”20 Como constata a articulista, O Sertanejo

é uma narrativa “de duas faces do homem sertanejo que o romancista deseja representar.”21 No entanto, é da interdependência entre vaqueiro e fazendeiro que resulta a consolidação da estrutura social do sertão. O fazendeiro assegura a existência de uma sociedade no interior do Nordeste. Nela, compete ao vaqueiro o ordenamento da vida local efetivado através da administração das relações entre as pessoas menos qualificadas na estrutura social. O fazendeiro, como senhor, garante a expressão social e política do vaqueiro. No mundo do sertão pecuarista o vaqueiro tem espaço social definido que não se confunde com o do fazendeiro. Um dos mecanismos de produção e divisor de águas é a não permissão a casamentos entre vaqueiro e filha de fazendeiro ou vice-versa. No Piauí, por exemplo, o casamento de membros da família do fazendeiro tem por base o princípio da igualdade. Como não há igualdade de classe entre vaqueiro e fazendeiro, logo não há casamento entre familiares destas duas categorias sociais. A relação entre vaqueiro e fazendeiro baseava-se na solidariedade e fidelidade 21

Ibdem., 20 Idem. P. 101, 19

Idem. O. 100.,

mútuas sem, contudo, eliminar barreiras sociais existentes entre os dois. O relacionamento construído no dia a dia, geralmente por muitos anos, era confirmado através do compadrio. Porém, diga-se de passagem, este vínculo se estabelecia através do apadrinhamento de filhos de vaqueiros por um senhor, nunca o contrário. Estes aspectos identificados no comportamento do sertanejo tornam o mundo do sertão um interessante objeto de investigação histórica. Diante da carência destes estudos o sertão continuará como quer Ariano Suassuna: “Um espaço ainda não desencantado, não dessacralizado, um reino dos mistérios, onde o maravilhoso se mistura à mais cruel realidade e lhe dá sentido.”22 A figura do vaqueiro pode ser um ponto de partida, pois é bastante representativa da complexidade do quadro social do sertão tradicional. Suas atitudes, sejam com o gado, sejam com os moradores da fazenda, mantêm a ordem desejada. Ele é, ao mesmo tempo, símbolo da liberdade e da dominação ali existentes. Como no aboio, sua voz também submete gente. Conforme ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit. P. 85.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de, A Invenção do Nordeste e outras Artes. Recife: Ed. Massangana; São Paulo: Cortez 1999. BRANDÃO, Tanya, Maria Pires. O Escravo na formação Social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. Teresina: Ed. Universidade Federal do Piauí, 1999. CARVALHO, Miguel de, Pe. Descripção do Certão do Piauhy remetida ao Imo Rivimo Sor. Frei Francisco de Lima, Bispo de Pernambuco. In: ENNES, Ernesto. As Guerras nos Palmares: subsídios para sua história. [s.l] Brasiliana, 1938. CASTELLO BRANCO, Francisco Gil. Ataliba, o Vaqueiro. Teresina: Ed. Universidade Federal do Piauí, 1994. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Erechim: EDELBRA, (s.d) FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1976, vol. I. KOSTER, HENRY, VIAGENS AO NORDESTE DO BRASIL. Recife: Secretaria da Educação e Cultura de Pernambuco, 1978. MAGALHÃES, MARIA DO SOCORRO RIOS, A “Cor Local” nos romances O Gaúcho e O Sertanejo. In: CADERNOS DE TERESINA. Dez-1995. PIAUÍ, Governo. CALDAS, J. Pereira. Resumo de todas as pessoas livres e cativas. Fogos e Fazendas, cidades, vilas e sertões da capitania de São José do Piauí. Registro n. 0273, Arquivo Público do Estado do Piauí: Sala do Poder Executivo. PIAUÍ, Governo. CALDAS, J. Pereira. Ofício datado de 1762. Livro 18. Arquivo Público do Estado do Piauí: Sala do Poder Executivo. PRADO JUNIOR, CAIO. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1975.

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LIVROS APROPRIAÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA – Contribuições para uma agenda. Maria Cristina P. I. Hayashi, Cidoval Morais de Sousa e Danilo Rotberg (Orgs.) Campina Grande: EDUEPB, 2011. A ciência e a tecnologia na contemporaneidade condicionam a organização social e as formas existentes e emergentes de desigualdade e de exclusão tanto em cada sociedade como entre sociedades e regiões do mundo Os contextos de acesso e apropriação do conhecimento científico e tecnológico são diversificados, como diferenciados são os públicos que se constituem em relação com esses contextos e modos de acesso e de apropriação. Os textos desta coletânea problematizam sob diferentes aspectos as questões críticas para a compreensão e aplicação do conceito de apropriação social do conhecimento científico e tecnológico. AMÉRICA ANDINA - integração regional, segurança e outros olhares. Renato Peixoto de Oliveira, Sílvia Garcia Nogueira, Filipe Reis Melo (Orgs.) Campina Grande: EDUEPB, 2012. O interesse sobre a região andina tem crescido diante de sua complexa realidade sociocultural, da grande instabilidade político-econômica, da controversa dinâmica de suas relações internacionais e das tensões e alianças formadas entre os países vizinhos. É justamente por tratar-se de uma região que passou por profundas transformações, ao longo da última década, que os estudos sobre a região andina ganham relevância e merecem destaque. O livro aqui apresentado se dedica à análise dessa região, a partir de um enfoque multidisciplinar, abordando temas como integração regional, segurança, democracia e relações internacionais. Simboliza, ainda, o esforço conjunto de pesquisadores de seis instituições diferentes pertencentes a três países – Brasil, Colômbia e México – que contribui com distintos olhares para a compreensão dessa sub-região americana. IDENTIDADES E SENSIBILIDADES –

O cinema como espaço de leituras. Iranilson Buriti (Org.) Campina Grande: EDUEPB, 2012. Os olhares produzidos por cada autor desta obra acerca de diferentes filmes são construções que implicam em escolhas e sensibilidades, revelando o Cinema como espaços de leituras diversas e de diálogos construídos de forma apaixonante. O que interessa para o estudioso é que, independentemente do tratamento dado ao tema, os filmes sempre revelam dimensões das identidades culturais que são produtos sociais das experiências de vida em uma determinada sociedade.

O MARACUJAZEIRO AMARELO E A SALINIDADE DA ÁGUA - . Lourival Ferreira Cavalcante. João Pessoa: Sal da Terra, 2012. O livro está dividido em oito capítulos, tratando de vários aspectos de cultivo, e cada capítulo é elaborado em média por seis autores de instituições diferentes. O primeiro capítulo trata de água para agricultura e irrigação com água de boa qualidade e água salina;o capítulo dois refere-se à formação de mudas; o crescimento das plantas de maracujazeiro amarelo após o plantio é tratado no capítulo três. Os demais capítulos discorrem, entre outros temas, sobre componenetes de produção, qualidade de frutos, composição mineral, consumo de água pelas plantas.

FRONTEIRAS ENTRE O PALCO E A TELA – TEATRO NA PARAÍBA 1900-1916 - Romualdo Rodrigues Palhano. João Pessoa: Sal da Terra, 2010. Fronteiras entre o palco e a tela é o novo livro de Romualdo Palhano. É o terceiro livro que o autor faz publicar cobrindo uma vasta cronologia sobre o teatro paraibano, e neste caso, mais do que ao teatro, o autor estende a sua pesquisa, mesmo que de forma indireta, também ao cinema, quando nos seus apontamentos vai mostrando a fortíssima simbiose que havia no princípio do cinema enquanto diversão, que por falta de espaço apropriado divida o palco do Santa Roza com os espetáculos das muitas companhias que por aqui vinham se apresentar. O que o torna importante é a construção mesma da história do teatro na Paraíba.

DIREITO, AUDITORIA E INSTRUMENTOS DE GESTÃO AMBIENTAL - Boibaudran Imperiano. João Pessoa: Sal da Terra, 2012. Essa obra introduz o leitor na questão ambiental vivenciada na atualidade, debatendo o modelo econômico e a problemática do meio ambiente, a pegada ecológica da humanidade, a degradação da biosfera, os desequilíbrios e poluição ambientais, trazendo à luz do texto conceitos como os de desenvolvimento sustentável, economia verde, consumo sustentável, política do reduzir, reutilizar e reciclar. Outrossim, a obra adentra na estrutura do direito ambiental, abordando a organização do sistema nacional de meio ambiente, o licenciamento ambiental obrigatório para os empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos naturais, os danos a esses causados, a responsabilidade civil e criminal de seus autores, enfim, as principais normas ambientais do ordenamento jurídico. NA VARANDA DO CABO BRANCO –

Maria de Lourdes L. de Luna. João Pessoa: s/e, 2013. No texto ela [a autora] retrata perfis de lideranças políticas situacionistas, as conversas de bastidores, as paixões e os interesses do sempre difícil processo sucessório, do qual os eleitos estiveram afastados por cerca de 15 anos. Sem ferir o ego de nenhum dos personagens citados, mas sempre cuidando de pô-los cada um em seu lugar, em respeito à posição que deverão merecer na história. Nisso a autora não transige: se, por decoro, deixa de revelar pormenores de muitos fatos desabonadores, de seu conhecimento, a sua apreciação pessoal sobre os homens que fizeram aqueles momentos é, sempre, bastante clara e objetiva. (Heitor Cabral)

A GUERRA DE PRINCESA - Tião Lucena. Recife: Edições Bagaço, 2013. Aqui se restaura uma história que está muito além dos estreitos limites da história regional. A guerra de Princesa foi um dos pontos fundamentais na deflagração da Revolução de 30, que resultou numa ditadura sangrenta, que estabeleceu as políticas trabalhistas nacionais, que inaugurou o populismo, que fermentou o Estado Nacional, que, enfim, abriu as portas de um novo país. E até hoje sentimos roçar na pele muitos dos ecos daqueles tempos de tantas revoltas. Escrito numa linguagem aberta, num tom de quem conversa sentado numa ampla calçada sertaneja, A Guerra de Princesa nos faz escutar uma voz a nos afirmar que o amor de Xanduzinha pelo caboclo Marcolino foi real e se deu nos limites desta Princesa lúdica, lírica e guerreira. Em outras palavras, Princesa é parte de nossa alma, de nossa coragem, de nossa cultura. (Maurício Melo Júnior) IDAS E VINDAS DE SÃO SERAPIÃO –

IDemétrio Diniz. Natal: Ed. do Autor, 2013. Nada do que dizem papiros e palimpsestos, o eixo central destas narrativas está fincado nos sedimentos de uma sabedoria captada do cotidiano de criaturas solitárias e infelizes. Os personagens de Demétrio estão sempre tentando romper grilhões e couraças, de modo a viabilizar a felicidade. Eis a matéria prima com que “esse mineiro doido das origens”, no dizer de Augusto dos Anjos, funde e refunde suas peças textuais. [...] Precisão da narrativa, elegante elaboração frasal e rigor da linguagem desse contista, são frutos de refinada usinagem em suas retíficas de criação. São estas qualidades que o credenciam a se tornar um escritor universal, pois os contos de Idas e vindas de São Serapião nos deixam sem saber se Mombaça – sua Comala de estimação - fica no México, em Macondo, na ilha de Sumatra ou no Brasil setentrional. (Aldo Lopes)

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FOLCLORE

NOS BAÚS DA MEMÓRIA(*) (Ao Professor Virgílio Pinto) Firmino Leite

Como todas as cidades, Patos possuía os seus tipos, austeros ou pitorescos, extremando categorias humanas. Evoco-os para Letras do Sertão, que é a nossa voz, ressoando em tonalidades às vezes bárbaras, mas sempre fieis à origem matuta de que emanam. Tentando surpreendê-los, hoje, não será possível a identidade porque novas condições de vida e meio criaram outros sentimentos e formas de expressão. São exemplares extintos, vultos de tempos idos, que a nossa curiosidade infantil contemplava nas bodegas e padarias, onde dilapidávamos tostões, florindo em remoques e galanteios ou se atascando na brutalidade e no despudor, em seu destino de alma das ruas. Severino Perigo era trigueiro e atarracado, rosto sulcado pela varíola, ventre bojudo de pregas adiposas, ostentando-se entre as abas de sempre velho paletó aberto. Inseparável de um patuá, pendente a tiracolo, em que acomodava um cachimbo, votava-se mais às seduções do álcool que às delícias do fumo. Olhos castanhos e vivos, cabelo em gaforinha sobre a testa larga, dentes escassos, seus repentes eram subitâneos e malsãos. Certa manhã expandia-se ao balcão do coronel Pedro Caetano, a glosar os motes que lhe apresentavam. Passou depois às louvações. Manoelzinho Veado, dicaz e filaucioso, atenazava-o para que se lembrasse dele. Perigo conhecia os fracos de toda gente, as profissões e tendências da classe média citadina. Instado, volta-se para o amigo pressuroso, desfechando-lhe a estrofe: Tocá bombo só Oreste Cantá moda só Paizim Matá boi só seu Rimijo Consertá fato Agustim Matá bode Chico Pi Lambanceiro Manezim.

...

Em 1915, varridos pela seca, levas de flagelados foram ter a Patos. Alguns se de-

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tiveram ali. Um rapaz estrábico e apalermado, portador de tiques, perambulava pelas calçadas. Em suas crises epiléticas, escabujando no chão, lábios túmidos a escorrer flóculos de espuma, infundia terror e piedade. Seu apelido era Pata Choca. Quando assim lhe chamavam, vinha a réplica: Pata Choca é você. Vá se lavá na maré Outo mió do que tu Eu dou ca ponta do pé!... Esmolava de modo curioso. Escolhia a pessoa que lhe agradasse e a exortava num ritmo de toada: Lá em casa tem um pau Qui ninguém pode cortá, No tronco tem u´a onça, No mei um maracajá, Im cada gaia um maribone, Im cada foia um mangangá, No oco uma cascavé, Da rudia pruculá, Mi disimbrace esse pau, Para se pudê cortá!... Pata Choca se propunha a remover aqueles óbices por um tostão, ou mesmo um vintém, nas horas de quebradeira. Superava-se assim: Eu dô um tiro na onça, Outo no maracajá, Eu difumo os maribone E derrubo os mangangá, Cum cacete mato a cobra, Da rudia pruculá, Tá o pau disimbraçado, Agora pode cortá.

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Quinca do Vapor. Seresteiro rude, notívago impenitente, cambaleando sempre, a exclamar em gargalhadas roufenhas: “Tou cum má da gata”. Valeu-lhe a alcunha:

“Quinca mal da gata”. Com Chico Belo, Aniceto, Chagas Barros e Ananias, quebravam a pacatez das noites provincianas, desferindo imprecações contra tudo. Dispersos durante a feira, quando a cidade se recolhia, juntavam-se para celebrar o encontro de libadores saturados. Chagas Barros perfurou certa feita um olho de Aniceto. Reconciliaram-se com a indenização de uma cabra, escolhida no chiqueiro, entre as maiores e mais leiteiras, prescindindo da intervenção da justiça. Quinca, residente na sede do Município, tornara-se mais visado pela polícia que os seus parceiros moradores do mato. Em discussão fútil, fere um menino que o importunava e é conduzido ao xadrez. Tenente Moreira pergunta-lhe se fora em verdade o agressor. Quinca retruca poeticamente: A verdade num tem peia, Linha reta num tem vorta, A pulícia prende um homem, Outo home vem e sorta. O oficial se enfurece, marcha contra o detido e indaga de punhos cerrados, ameaçando desferi-los: “Qual é o home que o solta, aqui em Patos?” Calmo, imperturbável, o ébrio esclarece jocosamente a insinuação: “É Seu Zé de Ponte, o carcereiro, quando Seu Tenente mandá”. Foi logo posto em liberdade, sob os risos de toda a soldadesca.

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Alto, esguio, olhos glaucos e lépidos, contrastando com a quietude da máscara rígida, vincada pelos anos, armando-lhe o queixo longo cavanhaque hirsuto, tinha uma verticalidade imponente e agressiva no talho. Propelia as palavras em ímpetos de arrogância e majestade, sem nunca abrir os lábios em riso franco, porque apenas se contorciam em esgares mordazes, complacência de alegrias esporádicas.


Carreiro de ofício, ele mesmo construía os seus veículos toscos. A uma junta de bois com que lidava, deu os nomes de Miséria e Desgraça. Falo-vos do velho Galdino do Borges, natural do Cariri, morador aqui chegado, do coronel Roldão Meira, nobre e destacado propulsor do progresso de Patos. Galdino assombrava nossa credulidade pelas suas atitudes desabusadas e blasfemas. Numa noite de inverno, o vento em refegas fustigava o telhado de sua habitação, fazendo a água precipitar-se por todos os cômodos. Em pouco, rugia a tempestade. A violência dos relâmpagos e trovões aturdia os mais corajosos, a despeito das preces e palhas bentas consumidas em murmúrios e cinzas. Dona Raquel, esposa de Galdino, ciciando padrenossos e avemarias, passava nos dedos ágeis as contas do rosário. De súbito, sucedendo à fulgurância dum relâmpago, espouca o trovão, ecoando na serra. Galdino volta-se para a mulher contrita e brada irreverente: “Reze mais alto, Dona Raquel, que a zoada é grande e o homem é mouco.” Foi seco o ano de 1908. Galdino conduzia para o Cariri uma retirada de seu amo, levando no carro de bois a arreação. A meio caminho cansou um bezerro: “Geme, bezerrinho, aquele coração de bronze não está vendo uma cousa dessa, quando acabar se diga que um homem daquele é bom pai!”

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Remígio tinha a profissão de marchante, mas seu gênero de atividades não lhe realçava a pessoa. Tornou-se familiar à gurizada graças a uma ema que possuía. A ema de Seu Remígio impunha-se em toda parte. Onívora, engolia qualquer objeto a que sua goela desse trânsito. O octogenário Belo Gomes, participando de uma roda de íntimos, contava casos de sua época de mocidade. A ema, sem ser por ele pressentida, aproxima-se sorrateira e arranca-lhe um botão negligente da calça, sob a galhofa dos circunstantes. O episódio serviu de advertências. Quando alguém era visto com aquela peça desajustada, sugeria o aviso moleque: “Olhe a ema, Belo Gomes...” e o advertido se compunha, num assomo de pudicícia.

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Joaquim de Lira, homem pobre mas espirituoso, pedira em casamento a filha de um fazendeiro da vizinhança. A moça lhe foi negada porque ele se dava ao alcoolis-

mo. Raptou-a. Depois do matrimônio, a esposa encaminha-se à casa paterna, para pedir a bênção, enquanto Joaquim, que era órfão, vai com igual disposição à morada do padrinho. Rumorosa cavalhada estaca à porta do velho Serafim. O afilhado apeia-se, beija-lhe a mão e aguarda palavras que sente anunciadas no olhar firme do ancião: “Você casou furtando moça, visto ser o seu vício de beber o único motivo de oposição ao casamento. Proceda, trate bem a filha alheia e mostre a seu sogro que o homem só é ruim até quando quer. Joaquim ouve a exortação e retruca: “Meu padrinho, vou assumir um compromisso perante o senhor e a Santíssima Virgem: no dia em que vir o caboclo Joaquim de Lira botar um copo na boca, pode jurar que é cachaça.” II O Major Chiquinho Machado nunca perdeu a fé no bicho, o que não lhe diminuía a crença em Deus, como sacristão que foi. O bispo andava em pastorais e comunicava com antecedência a chegada às paróquias. Patos aprestava-se, convergindo sua sociedade à residência do vigário, para homenagens ao titular diocesano. Como o visitante excedesse a hora aprazada, começou o povo a distanciar-se do ponto de recepção. Cel. Sátiro, que se afastara também, entesta-se a caminho com o major Chiquinho, perguntando-lhe interessado: “Tem notícia do bispo?” - “Há um consta de águia...”

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Jogavam bilhar Silvino Oliveira e Adelino Rafael. Silvino ao perder a negra, exclama como satisfação a si mesmo: “Eu só jogo com seu Adelino porque tenho gênero, mas sei que ele é um águina...” Joaquim, fumando, corrige: “Águina, não; águida”.

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Mariá vive ainda, com os seus oitenta e tantos anos, róseo, rotundo e farto. Quando solteiro, já sexagenário, comparecia a todas as festas da Padroeira. Sua loquacidade, entrecortada de termos ocasionais, tornava-o atraente e divertido. Denominou o seu dicionário encadernado a couro de “capão sola”. Outra companhia era o lunário. Letrado e profeta. Se alguém afirmasse que o Mariá

falava inglês, ele logo se ostentava numa algaravia truanesca, salpicada de “doromeias e torobaditas”, inocências de seu narcisismo. Num desses assomos poliglóticos, à mesa de uma barraca, acerca-se de nós o Dr. José Genoíno. Convidado a sentar-se, escusa-se, dizendo com malícia que Mariá poderia estar ofendendo-o em língua estrangeira... “Qual! Não posso desgabar seu merecimento para interver uma composição insignificante.” Os redatores de um jornal de festa solicitaram-lhe opinião sobre o inverno: “Os colaterais se reuniram no noroeste, formando tempestade de ralhos, coriscos e trovões, e o lufa-lefa se tornou irrinitente, de formas que o inverno é húmido sujeito a bicheiras”.

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Dr. Pedro Firmino tinha um pajem, Manoel Campina, com quem sempre ia às fazendas. Depois da meia noite, numa festa de casamento, chama o seu serviçal e ordena-lhe que leve a São José sua montada e as de outros companheiros, porque pela manhã iriam até lá, de onde tornariam à cidade. Chegados à casa do vaqueiro, que era perto, tomaram banho, serviram-se de leite mungido e pediram os animais. Dr. Pedro ao ver sua sela em um cavalo, vai advertindo: “Eu quero é minha burra...” O velho Serafim explica que Manoel Campina ao atalhar os animais jogara uma pedrinha que deixara a burra manquejando. “Chame seu Manoel Campina”. Dr. Pedro ao contemplá-lo, lívido e desconfiado, exorta-o com veemência: “Marche, para adiante, está com medo?...” “Não senhor, seu doutor, eu não tenho medo de homem educado...” O patrão ficou sem armas, entre o riso de seus amigos presentes. – “Tomou-me os becos”, foi o desabafo.

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O velho Zé da Costa ministrava homeopatia. Tinturas e glóbulos passavam pelos gargalos de numerosos vidros de sua inócua botica, contados, vigiados, porque número e eficácia se interavam na iniciação rigorosa. O enterro de Zé da Costa foi concorrido. O Tenente Costinha pede a palavra à beira da sepultura, para fazer o panegírico do morto, apontando o cadáver. Severino César, endiabrado e perverso, postara-se ao lado. “O dia de hoje é de saudade e de luto. Quem é este?” – declama o orador. Severino, sisudo, perfilado, perfilado, interrompe. “É o velho Costa que dava remédio...” outubro/novembro/dezembro 2013 |

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... Quando o cônego Machado atingira a idade provecta, padre Anselmo veio ser coadjutor. Com a presença de um vigário substituto, Cônego Neves, Anselmo se ausenta, despedindo-se com estas expressões: «Você é o cabo que eu esperava para esse machado, agora volto para minha terra.” Anselmo fora fazer um casamento. Numa tangente da estrada emparelharam os cavalos a esquipar. Felizardo Dantas, cavalgando um ginete de seu irmão Pedro, destro na celeridade da marcha, adianta-se do padre. - «Mas onde você encontrou esse cavalo tão veloz?” - “É filho mesmo dos Porcos.” Porcos é o nome de uma fazenda, mas Anselmo, que tomara a resposta por pilhéria, redagui, chocarreiro: “Quando a mãe tiver um poldro eu compro caro! Perambulando por lugarejos e cidades, não se espaçavam suas visitas a Patos.

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A preta Inácia, cega, esgrouviada, dentes imaculados contrastando com a decadência física, cantava vibrando um pandeiro, numa tonalidade viril. “Plantei um pé de argudão, Lá dento do meu roçado, Cum capucho que tirei, Comprei fazenda de gado, Os vizim pru li pru perto, Deixei tudo arrumado...

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Cum o segundo capucho. Fiz trinta carga de lã, Um comboio desceu hoje, O outo dece amenhã, Os pé novo tão deitado, Cum o peso das maçã...” Nessa abundância, continuava miserável... Se os níqueis dos passantes lhe escasseavam na bacia, increpava-lhes a costumeira recusa: “A pidi ismola im vão, O dia intero aqui fico, Si perdoi fosse tostão, Todo esse povo era rico...”

...

Pinheiro Machado pontificava em seu Quirinal político do Morro da Graça, mas a alma dos bardos pressentiu o fim do seu domínio, ao associar o destino do homem poderoso ao tosco instrumento que o havia de abater. Possidônio divertia-se no coco: “Marechá Herme, Quando dece de Petrope, Vem danado no galope, Cum Pinheiro consurtá... Tenho uma faca Que é danada pru costela, Basta o caba oiá pra ela, Prá tê medo de brigar...” Seria a antevisão da tragédia? Em pouco, na metrópole suntuosa, a fúria magnicida de Manso de Paiva assentava com um punhal os marcos sangrentos de uma era.

... Francisco José “defendia o riacho” em Patos. Filho do Município, não “consentia” que outro cantador transpusesse as barreiras nativas. Voz escandida, cuspindo por entre os dentes cerrados, afeiava-lhe o rosto uma fístula maxilar, ressaltada em cicatriz viciosa. Tinha hiperestesia moral daquele defeito. O negro Azulão, precedido de fama e audácia, estava na terra. Chico José desafia-o e o encontro prenuncia-se de agressividade pelos comentários e mexericos da plebe expectante. Na bodega de Chico Elias, numa segunda-feira à noite, os cantadores se defrontam, engrifando-se para a peleja. Eu, Francisco José, Imperador da Ungria, Porém tenho outro reinado, No país da cantoria, O negro que nele entrar, Só sai com carta de guia.” AZULÃO: “Acabou-se o cativeiro, Como entrei quero sair, Nunca vi rei com bicheira, Com o mosqueiro a cobrir, Devendo em toda bodega, Dengoso até pra cuspir.”

(*) Publicado, originariamente, no n. 6 da revista Letras do Sertão, que se editou na cidade de Sousa,




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