CARTA AO LEITOR
SUMÁRIO
Lenda ou realidade? É a indagação que se impõe em torno de referências que são feitas ao baobá existente na rua São José, Bairro de Lagoa Seca, em Natal, Capital do vizinho Estado do Rio Grande do Norte. As referências estabelecem ligação entre aquela secular árvore e a figura exponencial de Antoine de Saint-Exupery, escritor e aviador francês, misteriosamente desaparecido ao tempo da segunda guerra mundial, em voo de reconhecimento, tendo por destino o sul da França, aonde, quando daquela missão, jamais chegou. A ligação é estabelecida, mais particularizadamente, entre a árvore e a genial obra do escritor francês, mundialmente conhecida – O Pequeno Príncipe. Confira o leitor tudo isso no artigo do atual Presidente da Academia Norte Riograndense de Letras, Diógenes da Cunha Lima, assim como confira outras matérias de grande relevância sobre o Sebastianismo; a necessidade de criação de um parque nacional na área ecológica de Teixeira; um erro detectado no Brasão d´Armas de Cajazeiras; um poeta universal nos sertões da Paraíba; uma comparação entre Augusto dos Anjos e o poeta português Alfredo Pimenta e outros assuntos de igual importância que se estendem pelas demais páginas da revista. Tudo o que se contém na presente edição é o demonstrativo do empenho de GENIUS em oferecer aos seus leitores páginas originais, fruto de pesquisas, estudos e evocações de seus colaboradores.
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DONA CHIQUINHA, WALT DISNEY E JESUS CRISTO DESCENDO NA AVENIDA DOM VITAL (*)
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DE LYRA E CÉSAR, UM POETA UNIVERSAL NOS SERTÕES DA PARAÍBA
abril/maio/junho/2014 - Ano II Nº 6 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 3244.5633 / 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
Cláudio José Lopes Rodrigues
Ana Maria César
UMA REEDIÇÃO PARA NOVA VISÃO DA REVOLUÇÃO DE TRINTA José Octávio de ARRUDA MELLO
PATOS E A VIZINHA ÁREA ECOLÓGICA DE TEIXEIRA Octacílio Nóbrega de Queiroz
JUSCELINO REDIVIVO Flávio Sátiro Fernandes
O PROFETA SERÁFICO DO BOI Conto de José Leite Guerra
MUSEUS & REDES SOCIAIS Carlos Alberto Azevedo
A REPRESENTAÇÃO DA MORTE NA POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS E DE CECÍLIA MEIRELES Neide Medeiros Santos
ERNANI SÁTYRO E O DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO Renato César Carneiro
PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO CINCO POEMAS DE LUIZ FERNANDES DA SILVA AUGUSTO DOS ANJOS E ALFREDO PIMENTA: UMA COMPARAÇÃO Chico Viana
ESPALHA-SE PELO BRASIL E PELO MUNDO ERRO CRASSO NA DIVISA LATINA DO BRASÃO D’ARMAS DE CAJAZEIRAS Evandro da Nóbrega
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SEBASTIANISMO: A REVISÃO DE UM MITO Eliane de Alcântara Teixeira
DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA - I Flávio Sátiro Fernandes
JOFFILY - UM MILITANTE DA POLÍTICA IDEOLÓGICA Gonzaga Rodrigues
ALTIMAR, UM GARIMPEIRO DE ESTÓRIAS POPULARES Oswaldo Meira Trigueiro
FREI DAMIÃO, O MISSIONÁRIO(*) Con. Joaquim de Assis Ferreira
O BAOBÁ DO POETA Diógenes da Cunha Lima
COLABORAM NESTE NÚMERO:
COLABORADORES
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ANNA MARIA LYRA E CÉSAR [De Lyra e César - Um poeta universal nos sertões da Paraíba] Advogada, escritora, poetisa, pertence à Academia Pernambucana de Letras, onde sucedeu ao Acadêmico José Rafael de Menezes, paraibano de Monteiro, radicado no Recife. CARLOS ALBERTO AZEVEDO [Museus & Redes Sociais] Antropólogo. Trabalhou durante algum tempo na Fundação Joaquim Nabuco, ao lado de Gilberto Freyre, Renato Carneiro Campos, Edson Nery da Fonseca e outras figuras da intelectualidade pernambucana. CHICO VIANA (Francisco José Gomes Correia) [Augusto Dos Anjos e Alfredo Pimenta: Uma Comparação] Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba e doutor em Letras pela UFRJ com a tese “O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos”. Leciona atualmente no Curso Chico Viana e mantém na internet o site www.chicoviana.com. CLÁUDIO JOSÉ LOPES RODRIGUES [Dona Chiquinha, Walt Disney e Jesus Cristo descendo na Avenida Dom Vital] Professor da Universidade Federal da Paraíba, autor de diversas obras de caráter historiográfico, bem como de outras de natureza pedagógica. DIÓGENES DA CUNHA LIMA [O baobá do poeta] Advogado, escritor, poeta, professor universitário, Presidente da Academia Norte riograndense de Letras e Ex-Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ELIANE DE ALCÂNTARA TEIXEIRA [Sebastianismo: a revisão de um mito] Doutora pela USP, professora de Literatura Portuguesa da UNIBr, São Sebastião (SP), autora de Almeida Faria e a Revisão do Mito Sebástico, A Literatura e as Artes Visuais: diálogos em Espelho (em col. com Álvaro Cardoso Gomes), Ironia e Desumanização em Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.
GONZAGA RODRIGUES [Joffily, um militante da política ideológica] Considerado o maior cronista de nossa imprensa na atualidade, Gonzaga Rodrigues milita há mais de cinquenta anos no jornalismo local. JOSÉ LEITE GUERRA [O Profeta Seráfico do Boi] Professor da UFPB, escritor, contista, obteve vários prêmios em concursos literários, na área de ficção. JOAQUIM DE ASSIS FERREIRA (Con.) – In Memoriam [Frei Damião, o Missionário] Sacerdote paraibano, professor, filósofo, considerado um dos maiores oradores sacros do Nordeste. (*Pombal, 1908 - †Patos, 1987) JOSÉ OCTÁVIO DE ARRUDA MELO [Uma reedição para nova visão da revolução de trinta] Historiador e jornalista profissional, assessor da SECULT/PB. Integrante dos IHGB, IHGP, APL e API, bem como professor de Direito do UNIPÊ. Autor de História da Paraíba – Lutas e Resistência (13ª ed., 2014) e coautor/ organizador de A Paraíba por Si Mesma (2012). LUIZ FERNANDES DA SILVA [Cinco poemas de Luís Fernandes Silva] Poeta e jornalista Paraibano. Autor de vários livros, é detentor de diversos prêmios em nível nacional e internacional. Editor do Correio de Poesia. NEIDE MEDEIROS SANTOS [A representação da morte na poesia de Augusto dos Anjos e de Cecília Meireles] Professora, ensaísta e autora de inúmeros estudos literários, com ênfase na literatura infanto-juvenil. OCTACÍLIO NÓBREGA DE QUEIROZ - In Memoriam [Patos e a vizinha área ecológica de Teixeira] Jornalista, advogado, ensaísta, Ex-Diretor do Jornal A UNIÃO, pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Lecionou na Universidade Federal da Paraíba. Autor do ensaio O Homem Gordo do Tauá. (* 31-081913 † 29-09-1998).
EVANDRO DANTAS DA NÓBREGA [Um erro crasso na divisa latina do Brasão d’Armas de Cajazeiras] Jornalista e editor, responsável por um número considerável de livros que foram impressos enriquecidos com sua arte de designer. Autor do livro A glândula pineal do urubu, trabalho que lhe valeu uma apresentação no programa Jô Soares.
OSWALDO MEIRA TRIGUEIRO [Altimar, um garimpeiro de estórias populares] Professor e folclorista. Membro da Comissão Paraibana de Folclore. Autor de vários livros em suas áreas de especialização e ensino. Pesquisador da Rede Brasileira de Folk comunicação/FOLKCOM.
FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES [Juscelino redivivo] Diretor e Editor da Revista GENIUS, membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Professor Aposentado da UFPB. Autor de vários livros, inclusive História Constitucional da Paraíba.
RENATO CÉSAR CARNEIRO [Ernani Sátyro e o direito eleitoral brasileiro] Professor de Direito Eleitoral da UFPB e do UNIPÊ. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, do Instituto Histórico e Geográfico de Patos e da Academia Paraibana de Letras Jurídicas.
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FICÇÃO
DONA CHIQUINHA, WALT DISNEY E JESUS CRISTO DESCENDO NA AVENIDA DOM VITAL (*) Cláudio José Lopes Rodrigues Alguém pode detestar os Estados Unidos, chegar ao ódio bíblico de um colega meu, nos já remotos tempos dos cursos secundário e superior, quando ele era um vibrante líder estudantil e vaticinava – qual um furibundo aiatolá ou um tragicômico, populista, surrealista, bolivariano, presidente da Venezuela, Hugo Chavez – a queda iminente do Capitalismo, sistema que, no rancor dos seus contestadores, configurava-se como uma besta-fera nutrida pelos norte-americanos, estes um bando de sacanas, pulhas, cafajestes, filhos da pátria e da puta... Compreendo e perdoo os incandescentes vaticínios dos profetas cujos prognósticos o Tempo não abonou (ou, ao menos, ainda não...). Mas, não remito quem, por ideologia ou qualquer outra razão, repudia a música norte-americana apenas por ser norte-americana. Detestar canções por conta da sua origem geográfica (ou ideológica) é uma generalização insana e injusta, uma autêntica porra-louquice. A demonstração de insensibilidade e inconsequência se avultava, naquela época, nomeadamente em relação a clássicos populares que nos chegaram na voz de Frank Sinatra, Bing Crosby, Pat Boone, Nat King Cole, Tony Bennett, Doris Day, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e outras e outras feras advindas pelas ondas das Rádio Tabajara (PRI-4) e Arapuan (a emissora do bom gosto...). Ou nos chegavam também pela incipiente televisão, pelos modernos LPs, pelas telas do Plaza e do Rex... Misturar ideologia com música é uma requintada (e requentada) tolice. A música vale por si mesma, independentemente das barbas de Fidel Castro, da careca de Nikita Kruschev, da barbicha de Vladimir Ilitch Lenin ou do bigode de Josef Vissarionovitch Stalin. Bem como da elegância
e sinuosidade de John F. Kennedy que, entre outras proezas (difíceis?), levou a exuberante Marylin Monroe para a cama (lembremo-nos da loiríssima – melosa, sensual, escorrendo progesterona pela voz – cantando, quase gemendo, em 19 de maio de 1962: Happy birthday to you/ Happy birthday to you/ Happy birthday Mr. President...). Essas ideias revolveram o meu (in) consciente no Magic Kingdom, um famoso parque de Orlando. Ao ouvir velhas composições internacionais, elas eclodiram no bestunto. Sob o intenso mormaço do verão da Flórida, a Main Street Philharmonic, afinadíssima banda do parque exibiu-se em admiráveis apresentações na Liberty Square. A performance da banda ensejaram-me aprazíveis lembranças infanto-juvenis. Emocionou-me, sobremaneira, uma conhecidíssima peça de jazz, de natureza gospel, que se refere aos anjos (e santos) entrando no céu (When the Saints go marchin’ in), uma peça que, em cadência lenta, acompanha funerais (nomeadamente de negros). A banda disneyana executou alguns hinos em ritmo marcial. Dois me tocaram de forma particular. Um de louvor patriótico, God bless America (Deus salve a América) – composto por Irving Berlin em 1918 – considerado o hino não-oficial dos Estados Unidos. O outro hino, este de louvor religioso, foi o Battle Hymn (número 112 do hinário Cantor Cristão). Composto por John William Steffe com letra de Julia Ward Howe, constitui-se um lídimo representante da tradição espiritual judaico-cristã. Na versão de Ricardo Pitrowsky, a mensagem do Novo Testamento – o amor ao próximo menor apenas do que o amor a Deus – transparece luminosa na primeira estrofe:
Já refulge a glória eterna de Jesus, o Rei dos reis; Breve os reinos deste mundo seguirão as suas leis! Os sinais da sua vinda mais se mostram cada vez. Vencendo vem Jesus! E no refrão: Glória, glória! Aleluia! Glória, glória! Aleluia! Gloria, glória! Aleluia! Vencendo vem Jesus! A partir da segunda estrofe, porém, a pancada do bombo muda, voltando-se para o furor do Antigo Testamento, os salmos imprecatórios de David e as rabugices do impiedoso profeta Samuel: O clarim que chama os crentes à batalha, já soou; Cristo, à frente do seu povo, multidões já conquistou. O inimigo, em retirada, Seu furor patenteou. Vencendo vem Jesus! O maniqueísmo entre o bem e o mal, os salvos e os condenados... A figura pacífica de Jesus – que veio ao mundo para salvar e perdoar a todos, para dar-lhes vida plena, em abundância – surge no Battle Hymn na impiedosa versão Deus dos Exércitos, do fogo eterno... Jesus, de infinito amor, absoluto poder e onisciência, perdendo criaturas Suas, excluídas do Seu povo, para o bando do catingoso rei das trevas... Não foram, porém, essas ideias transcendentais e exegéticas que me acorreram por conta da Main Street Philharmonic no calorento julho de 2011, no Magic Kingdom. abril/maio/junho/2014 |
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O Battle Hymn ali executado trouxe-me lembranças dos cultos batistas na casa da minha avó paterna, na Av. Dom Vital, no Roger. Ainda menino – em 1957, aos 14 anos ainda se era considerado menino – deixamos de ser vizinho de Vosinha e do meu avô Inácio (Painaço, como os netos o chamavam). E, por isso (ou por falta de fé), fiquei afastado dos eventuais cultos protestantes. Mas, algo ficou em mim por conta deles. Eu não me comovia tanto (ou, na verdade, quase nada) pela luta dos crentes contra as tentações do maligno. Não memorizei nenhuma imprecaução deles contra o tinhoso, atitude recorrente na fala de alguns pastores meio histéricos (ou histéricos e meio) que pulam, gritam, urram, suam, despenteiam-se furibundos e iracundos contra o pobre diabo do demônio (santa ingenuidade ou calculada matreirice dos pastores? – alguns acusados de hábeis espertalhões desviadores do dinheiro dos donativos). O outro lado da moeda: também não me ficaram citações literais da adoração a Jesus Cristo, sempre louvado com muita circunspecção. Não duvido que a austeridade seja respeitosa. Mas, o respeito estaria apenas na sisudez? Ela não traduziria, primordialmente, medo de vingança (castigo...) divina? Quem sabe esta pergunta já seria, em si mesma, mais uma insídia do fute... Por que os santos católicos e o próprio Senhor são sempre representados como figuras tristes, sérias ou, no máximo, contemplativas? Não haverá sorriso, riso, risada ou gargalhada no céu? Afinal, nem todo riso é deboche, mofa... (segundo Mark Twain, o céu não seria sítio para o riso, para o humor, pois (o riso, o humor) derivam, direta
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ou indiretamente, da dor, da angústia, do patético ser humano...). Convicta que a seriedade era pré-requisito ao louvor a Deus, dona Chiquinha cuidava para que a sisudez prevalecesse durante o culto na modesta sala de visitas do número 108, da Av. Dom Vital, no bairro pessoense do Roger. O culto reunia grande parte da sua família, incluindo-se alguns dos seus netos. Mais de cinquenta anos depois daqueles cultos, Marquinho (filho de Clodomiro, meu tio Miro), recordou uma prova desse cuidado da nossa avó. Ela munia-se de um pesado chinelo que escondia discretamente por trás da saia. Por uma ou outra razão – o estrabismo de um crente, o tique nervoso de uma irmã, a voz esganiçada de outra... sei lá o que – algum neto não resistia ao futucado do capeta e começava (ou ao menos insinuava através de um olhar irreverente) um desrespeitoso quiquiqui... Dona Chiquinha – morena, gordinha, baixinha, feições bugres herdadas do seu pai índio – em passos furtivos aproximava-se do atrevido... Glória, glória! Aleluia! Glória, glória! Aleluia! ...vapt! – discreta e pesadamente seu chinelo/porrete incidia sobre as canelas do insolente neto (Marquinho ou nosso primo Felix, irmão de Tonho...). Gloria, glória! Aleluia! Vencendo vem Jesus! Assim, com a ajuda do intolerante e prosélito chinelo de Francisca Lopes da Silva (ou Lopes de Sousa, pois ela dispu-
nha de dois sobrenomes), a fé cristã era abonada e vencendo chegava Jesus ao humilde bairro do Roger. A melodia do Battle Hymn preservou-se na minha memória. Lembrei-me daquelas cenas da Av. Dom Vital ao ouvir o hino, agora alegremente executado pela Main Street Philharmonic com muito mais afinação e recursos do que os irmãos e irmãs (liderados pelo pastor Firmino Silva) lá na casa de dona Chiquinha e seu marido, nosso avô, o ex-kardecista seu Inácio. Os acordes da Main Street Philharmonic neutralizaram os desconfortos do abrasador verão da Flórida. Comuns aos parques visitados, uma intensa insolação, temperatura de 40º centígrados (agravados pela sensação térmica), a sede permanente mitigada pelo constante consumo d’água. O calor do asfalto irradiava-se pela sola dos sapatos. O cansaço afetando muita gente, da volumosa senhora sentada no meio-fio e encostada numa lixeira próxima ao cinema – onde se exibia o Shrek 4-D da Universal Studios – aos grupos de adolescentes brasileiros deitados na calçada à sombra de árvores e no chão de restaurantes no Magic Kingdom. No forno a céu aberto, entretanto, lembrando o conto O flautista de Hamelin, dos Irmãos Grimm, a Main Street Philharmonic conseguiu afugentar os incômodos. Contribuiu para demonstrar o saldo positivo da incursão, apesar da aridez do clima e do cansaço advindo das longas caminhadas. (*) Excerto de um livro da série Diário não diário – a ser publicado pela editora Ideia, João Pessoa)
LITERATURA
DE LYRA E CÉSAR, UM POETA UNIVERSAL NOS SERTÕES DA PARAÍBA Ana Maria César
No dia 21 de abril de 1903, num pequeno sítio incrustado ao pé das Serras das Araras, município de Cajazeiras, nos confins do sertão paraibano, nascia o menino Amaro. Seus pais, Manoel Joaquim de Lira e Raimunda Maria de Lira, proprietários do Sítio Catolé, terras de pouco valor, cultivavam feijão, milho, algodão e, aproveitando as várzeas, também arroz. Possuíam algumas cabeças de gado, bovino e caprino. Na exígua casa de tijolo coberta de telhas, a mesa comprida ladeada por dois bancos, redes, jarra e quartinha de barro, candeeiro de gás, fogão de lenha. Aos sábados, Amaro assistia ao pai colocar nos caçuás do burro os produtos do roçado, os queijos de coalho e de manteiga, de fabricação caseira, e tocar pela estrada até a cidade de Cajazeiras, distante algumas léguas. Lá vendia tudo e de volta trazia fósforo, querosene, sal, e coisas mais que não davam para produzir no sítio. Enquanto isso, em casa, além dos afazeres domésticos, a mãe fabricava sabão de sebo de boi e curtia o couro de bode para fazer uma espécie de bornal, a que chamavam borracha. Nela, a água permanecia fria, mesmo no quentão do sol. Esse o ambiente em que nasceu o poeta De Lyra e César. Em 1915, a grande seca obrigou-os a tocar o que restara das cabeças de gato, estrada afora, até a Serra de Borborema. E só retornaram no ano seguinte, com as primeiras chuvas. Foi quando passou a frequentar a escola pública, com quase 13 anos. Sabia ler e escrever, pois o pai, embora homem de poucas letras, lhe ensinara em casa. Em 1920, terminado o estudo elementar, permaneceu dois anos em Cajazeiras, trabalhando como caixeiro da Farmácia Confiança, do Dr. Aprígio Sá, enquanto aguardava meios para se deslocar à capital, onde deveria cursar os estudos Preparatórios. Nesse meio tempo, coração pleno de sonhos e ilusões, tocado pelos ventos fortes do idealismo, a calcar a chama ardente da sensibilidade – fez-se poeta, seu
“pecado” da juventude, como costumava dizer. Os primeiros poemas publicados estão datados de Cajazeiras, escritos entre 1921 e 1922. Contava apenas 18 anos. Há de se perguntar, então, se a vida árdua de sertanejo pobre, se a infância marcada pelo flagelo da seca, teriam influenciado sua poética. Euclides da Cunha, no livro Os Sertões, depois de se referir a que Buckle assinala a anomalia de não se afeiçoar, nunca, o homem, às calamidades que o rodeiam, conclui: “Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa...”. Na verdade, a paisagem sertaneja, a luta para sobreviver em situação tão adversa, ficaram restritas aos seus discursos, não em forma de revolta, tristeza ou lamento, mas em termos altos, emulação. Ao tomar posse como presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco, em 9 de janeiro de 1967, referiu-se teluricamente a sua terra: “Duas serras cobrem os flancos da propriedade rural que foi de meu pai, onde nasci e alcancei a idade da razão. Quem será capaz de assegurar que aqueles acidentes geográficos não deixaram marcas em meu porvir? Aquelas serras foram o enlevo da minha meninice. Com que entusiasmo e alegria eu as escalava, dominando-lhes os aclives abruptos! Do alto, espraiando a vista, como me pareciam lindos e largos os horizontes”. A obra poética de De Lyra e César que me chega às mãos é composta apenas dos poemas publicados em jornais de Cajazeiras e da Paraíba do Norte, à época, capital do Estado do mesmo nome, nas revistas Pio X e Flor de Lis, e no jornal O Malho, do Rio de Janeiro. E pode ser dividida em dois períodos de espaço e tempo. Primeiro, o espaço era Cajazeiras, e o tempo se contava naqueles dois anos em que permaneceu na cidade, enquanto aguardava condições para continuar os estudos na capital paraibana – 1921 e 1922. O segundo espaço está circunscrito à capital do estado, Paraíba do Norte, onde realizou abril/maio/junho/2014 |
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os estudos preparatórios no Liceu Paraibano, e o tempo registrado nos poemas publicados restringe-se ao ano de 1923. O primeiro momento, no espaço de Cajazeiras, é o poeta romântico, tocado pelo universalismo estético onde o “eu” se constitui na paisagem única e a própria natureza é mera projeção do mundo interior. Dessa época, o poema Cintilações. Tristeza Sepulcral! Noite de isolamento. Somente o merencório, o lúgubre tanger Da orquestração da chuva, em meu quarto friorento Vem de negro pesar meu coração encher. Medito. Vento e chuva. É espesso o firmamento. Afoito abro a janela e em cisma fico a ver O etéreo fuzilar e o perpassar do vento Pela campina em fora e tudo a se estorcer. Há luzes no infinito. Há festa, com certeza, Pela amplidão sem fim porque se a natureza Não festejasse um dia assim, que é todo seu, Jamais se avistaria esta luz que se avista. A retalhar o espaço e a deslumbrar-me a vista, Em forte confusão de estrondos pelo céu... Observa-se nesse soneto que a paisagem descrita é catártica, pois em nada se assemelha à sertaneja. Há “ventos e chuva”, o quarto é “friorento”, e mesmo a chuva não possui o significado que lhe atribuem os habitantes do semi-árido - dádiva benfazeja, prenúncio de vida - pois “o lúgubre tanger da orquestração da chuva, / vem de negro pesar, meu coração encher”. A orquestração da chuva jamais seria lúgubre para um sertanejo que vivenciou secas, nem lhe encheria de pesar o coração. Quem, então, escreveu esses versos? Um poeta surpreendido num espaço universal, onde a paisagem interior se farta de imagens fantasmagóricas, pois irreais, que se sobrepõem àquelas nas quais está inserido. Contagiado pelo “mal do século”, a dúvida, a ironia e o tédio desaguando num desejo de evasão, De Lyra e César escreve o soneto Longe da Humanidade, dedicado ao poeta Cristiano Cartaxo, a quem nomeia “o excelso rouxinol de minha terra”. Tive sonhos de excelsa fantasia, Quando os amigos falsos me aclamavam, Dentro da Humanidade e não sabia Até que ponto os homens maus chegavam. Um dia eu quis cantar, quando cortavam Aves negras a abóbada sombria, Onde somente as sombras me escutavam, E onde somente Deus me compreendia. E vi dentro da noite, em meu retiro Que até o triste arfar do meu suspiro
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Era ouvido em silêncio pela treva. E desde então, longe do Mundo cruento, Pude invocar sozinho o firmamento Para onde em surtos o meu ser se eleva. Os amigos são “falsos”, as aves são “negras”, a abóbada é “sombria”, o arfar é “triste”, o mundo é “cruento”. O sentimento exacerbado de comiseração que ronda a estética romântica, segundo Massaud Moisés, “se manifesta inicialmente rumo da Natureza, encarada como confidente passiva”. Reconhece esse autor também que, “na contemplação dos lagos, rios, montes, o firmamento, prados, etc., os românticos descobrem ‘mistérios’, como se pervagassem o próprio mundo interior. Conhecem os frutos da meditação solitária e profunda, têm êxtases não raro místicos, que lhes descortinam o infinito, cultivam o recolhimento intimista, recuperam o sentimento de Deus, identificado com a Natureza”. Nesse soneto, encontramos a meditação solitária: “onde somente as sombras me escutavam”; a invocação do firmamento: “pude invocar sozinho o firmamento”; e o encontro com Deus: “onde somente Deus me compreendia”. Os versos finais do segundo quarteto, “onde somente as sombras me escutavam”, “e onde somente Deus me compreendia” indicam um estado d’alma compatível com os românticos da 2ª geração, que receberam forte influência de Byron e Musset, o que leva a uma evasão no tempo e no espaço: “onde em surtos o meu ser se eleva”. Tendo se iniciado na poesia com a mesma idade que Alfred de Musset, cognominado o “poeta do amor”, De Lyra e César também cantou esse sentimento lírico em poemas como Luar de Natal. Por que fugiste, deusa dos meus sonhos? Por que fugiste quando o luar surgia? Quando apenas vibrava a melodia Do amor, em nossos corações risonhos? A luz do luar trazia a luz dos sonhos! A luz do luar, extremamente fria, Vinha exaltar o nosso amor! E havia Nela reflexos, por demais, tristonhos! O próprio luar chorava a falta tua! E as lágrimas de prata do infinito, O turbilhão de lágrimas da lua, Vinha casar-se à minha estranha pena! Zombas, talvez, de um sonhador proscrito Buscando a ti pela amplidão serena!... O sentimento lírico-amoroso do poeta novamente se aproxima da estética romântica pela autocomiseração, quando se autodenomina um “sonhador proscrito”; lembra a projeção do “eu” na natureza, com imagens dos “reflexos tristonhos do luar”, “luar
que chorava”. Mas, na verdade, quem chorava era o poeta. No segundo momento, o espaço é a Paraíba, capital do estado do mesmo nome. Lá, vamos encontrar um poeta mais ligado à estética parnasiana, grande admirador do português Guerra Junqueiro, com seu “talento vulcânico”, a quem dedica vibrantes alexandrinos no poema O grande poeta extinto – à memória de Guerra Junqueiro. Soluça em contorções a pátria lusitana, Pela perda fatal do herói de quem se ufana Em ter sido o seu berço. – O herói dentre os heróis Que soube esplendecer de luz, de novos sóis O céu da Pátria-Mãe; o mesmo céu que outrora Camões fixou sorrindo ao despontar da aurora Da primavera em flor dos seus primeiros anos, E onde, mais tarde, leu nos fúlgidos arcanos Do espaço o seu porvir cheio de luz e glória! O poeta De Lyra e César trabalhou tanto o soneto quanto o poema de forma livre, neste último dando preferência às rimas paralelas ou emparelhadas, como no poema Brasil. Quanta beleza encerra este país inteiro, À luz plena do sol e ao esplendor do Cruzeiro!... Seguidor da estética parnasiana, entregou-se à Apologia da forma, compreendida pela utilização da maiúscula dentro da frase, como no soneto Flores; Desabrocha entre nós a flor do Riso E a flor do Pranto no jardim da Vida. Uma outra característica de sua poesia é o enjambement, quando “a pausa final do verso atenua-se, a voz sustém-se, e a última palavra de uma linha se conecta com a primeira da seguinte, estabelecendo a ruptura da cadência determinada pela simetria dos segmentos ou gerando a desuniformidade rítmica da estrofe”. Vejamos o soneto Longe da Humanidade:
que se seguem. No poema A uma palmeira: Quando, alta noite, dorme a terra, tu, no entanto, (locução adverbial) Contemplas, mudamente, o lamentoso pranto (substantivo) Em A última prece: Dá-me que arda do gênio a imorredoura chama (substantivo) Aplausos e ovações. E a turva infrene o aclama. (verbo) O nosso poeta faz uso inclusive da rima preciosa, aquela que requer um recurso artificial, como a ênclise nos pronomes átonos. Em O grande poeta extinto temos: Que erram pela amplidão. E assim, entre as estrelas (substantivo) Conquistou-as com amor, com a luz pôde entendê-las! (pronome átono) E no poema Saudação: Depois, o que há de mais precioso em mim não parte: (verbo) Deixo-te o coração! – Depois de assim falar-te, (pronome átono)
Mais um pingo de luz nas páginas da História Do velho Portugal. Mais uma estrela acesa No esplendoroso céu da Musa Portuguesa.
Quanto à métrica, De Lyra e César utilizou o decassílabo heróico, com cesura na sexta, e, sobretudo, o alexandrino. Temos, então, em síntese, um poeta ligado ao movimento romântico pela temática, e ao parnasianismo pela utilização da métrica. A universidade do poeta De Lyra e César está exatamente no fato de ter se engajado nos movimentos que vicejavam na Europa e no sudeste brasileiro, tendo nascido, crescido e estudado nos confins do sertão nordestino, sem acesso a bibliotecas, estudos especializados nem outros mecanismos que fornecem estrutura literária aos iniciantes. Perdido em suas lembranças havia um poema que ele recitava em prosa. Não sei quando foi escrito, mas me chamou a atenção por reproduzir a mesma inquietação que levara Heráclito, filósofo pré-socrático, a escrever: ”Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti”. Quase vinte e cinco séculos depois, um poeta sertanejo se queda diante da mesma constatação.
No tocante à natureza das rimas, De Lyra e César as utiliza soantes, com total combinação sônica a partir da vogal tônica. E quanto à qualidade, nos brinda com variadas rimas ricas, feitas entre palavras de classe gramatical diferente, como nos exemplos
“Água corrente, que nos córregos cristalinos da gleba onde nasci, espelhaste o meu rosto – nascente de cursos de água e de vida, para ti e para mim, em que ignotos mares te engolfaste? Certa é a semelhança dos nossos destinos. Tu, sa-
Um dia eu quis cantar, quando cortavam Aves negras a abóbada sombria, Mas é nos poemas de forma livre que o encadeamento toma sua feição mais rica, aí utilizando, também, o corte, efeito produzido por pontuação final no interior do verso, como no poema O Grande poeta extinto – à memória de Guerra Junqueiro.
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cudida, misturada pela violência das ondas, feita vapor errante ao calor de tantos verões, nunca mais hás de refletir um rosto de criança. Eu, após tantas décadas de lutas e sofrimentos, joguete de ondas de outros feitios, violentas e brutas, só uma face com rugas e uma fronte encanecida posso oferecer ao espelho de outras águas.” Nada mais foi publicado após 1923. Em 1926 prestou exames para a Faculdade de Direito do Recife. No primeiro ano, além de assistir às aulas na Casa de Tobias pela manhã, frequentava o Fórum no período da tarde e trabalhava no setor de revisão do Diario de Pernambuco e do Jornal do Commercio das dez da noite às quatro da madrugada. No ano seguinte viu-se obrigado a desistir de permanecer no Recife. Matriculava-se por procuração e permanecia no sítio para ajudar o pai na agricultura. Em 1929 foi contratado pela Prefeitura de Cajazeiras para o serviço de defesa dos réus pobres perante o júri. E assim, no mês de setembro, com as economias conseguidas, estabelecia-se numa “república” da Rua da Roda e se preparava para prestar os exames finais. Em 1930, deflagrado o movimento revolucionário em 3 de outubro, De Lyra e César alistou-se no Batalhão Extranumerário e, incorporado ao 28º Batalhão de Caçadores, seguiu o coronel Juracy Magalhães em direção ao Sul. E aos dezesseis dias do mês de dezembro, no salão nobre da Faculdade de Direito do Recife, recebeu o grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Seu último poema foi escrito em 17 de abril de 1942. Meu primeiro aniversário e minha mãe colocou-o num quarto de onde só sairia após fazer um poema para a filha. Ele então escreveu Saudação de Pai. Ana Maria, uma flor Deponho, hoje, em teu berço. Flor de inefável frescor, - Singela flor de meu verso.
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Nos umbrais de teu futuro Estaco – na humana trilha – Para dar-te o beijo mais puro Que um pai já deu numa filha. E um só conselho – o mais terno, Gravo aqui, com letras de ouro; Seguindo o exemplo materno, Terás no mundo um tesouro. Se a vida assim te for cara, Sofre, que a dor fará bem. Rebento de flor tão rara Serás flor rara também. Foi promotor, juiz corregedor, juiz de direito e desembargador. Em outubro de 1969 depôs sua arma: a toga. Aposentado, voltou a sua terra, ao pé da Serra das Araras, “parando em cada estação de via-sacra, rezando no altar de cada saudade”. De sua casa restavam destroços. Com os olhos marejados de lágrimas apanhou um pedaço de telha que guardou e me trouxe de lembrança. Saiu à procura de seus parentes. Encontrou-os como os havia deixado, a mesma vida simples e modesta, poucas letras, plantando e colhendo sem maiores ambições. E ficou a se indagar por que só ele saíra dali, rompendo as barreiras do horizonte, se fazendo ao largo como Ulisses, para viver sua odisseia, ou Teseu, para enfrentar o Minotauro no Labirinto de Creta. Hoje, eu responderia: foi o poeta trancafiado entre as duas Serras das Araras, o poeta que via e sentia muito mais que o simplesmente visto e sentido, o poeta que buscava respostas a suas indagações, o poeta que possuía um mundo interior do tamanho do universo, ou, quem sabe, não foi a visão das duas serras que cobrem os flancos da propriedade rural e que ele escalava para lá de cima espraiar a vista pelos lindos e largos horizontes? Como ele mesmo afirmou: “Quem será capaz de assegurar que aqueles acidentes geográficos não deixaram marcas em meu porvir?”.
HISTORIOGRAFIA
UMA REEDIÇÃO PARA NOVA VISÃO DA REVOLUÇÃO DE TRINTA(1) José Octávio de ARRUDA MELLO
Sumário: INTRODUÇÃO. 1.1. Três Vertentes Historiográficas. 1.2. Da formação de um livro às antecipações de Vargas. 1.3. As linhas mestras de 30. 1.4. Um estudo para o Nordeste. Bibliografia pela ordem das referências, à exceção das do texto INTRODUÇÃO Verdadeiro tempo eixo da História do Brasil e da Paraíba, natural que a Revolução de 30 continue como privilegiado tema de nossos estudiosos. Tal explica como os últimos cinco meses registraram nada menos de três títulos, a ela referentes – A saga de 1930 e o doido da Paraíba (2013), de José Caitano de Oliveira, Eu e meu pai, o coronel José Pereira – 1930, o território livre de Princesa (2013), de Aloyzio Pereira, contendo depoimento do filho do fundador da República de Princesa, e ainda A Guerra de Princesa (2014), do irrequieto Tião Lucena. Fora daí, seminário empreendido pelo binômio IHGP/Jornal A União assinalou, em fevereiro de 2014, momentosa intervenção da historiadora Martha Falcão, subordinada ao tema “Revolução de 30 na Paraíba – uma discussão interminável”. 1.1. Três vertentes historiográficas – Adequada denominação esta da intervenção da autora de Nordeste, Açúcar e Poder (1990)! Isso porque o outubrismo gerou, na Paraíba, ao lado de outras colocações, três principais linhas interpretativas, agrupadas em visão personalista, econômico-social e institucional. A personalista, para a qual a Revolução paraibana de 30 explica-se através da ação do Presidente João Pessoa, represen-
ta-se, sobretudo, pelo posicionamento de Adhemar Vidal. Tendo, logo em seguida a 30, publicado três obras de visível exaltação pessoista – O Incrível João Pessoa (1931), Do Grande Presidente (1932) e 1930 – História da Revolução na Parayba (1933) – Vidal aproveitou o centenário de Pessoa para fundi-los em livro de maior significado – João Pessoa e a Revolução de 30 (1978) – editado pela Graal. Ao lado de O Ano do Négo (2ª ed., 1978), A Paraíba na Primeira República (1982) e 1930 – Seis Versões e uma Revolução (2006), de, respectivamente, José Américo de Almeida, Oswaldo Trigueiro de A. Melo e Eduardo Raposo, o estudo de Adhemar Vidal é o que mais tem fomentado as abordagens de trinta, na Paraíba. Reagindo contra a visão carlyleana do antigo Procurador da República, o ex-deputado José Joffily, tardiamente convertido à Historiografia, despontou com livro de fôlego – Revolta e Revolução – Cinquenta Anos Depois (1980). Seus principais capítulos localizam-se na parte II – “Aspectos econômico-sociais” e “Aspectos Politico-Culturais”, muito mais de levantamento do contexto que de valorização das personalidades. Pena que após essas renovadoras inflexões, o autor se haja voltado para questões secundárias como os amores de João Dantas pela professora Anayde Beiriz, o que equivaleu a um retrocesso. No caso, o de substituir o rico filão de 30 por inflexões de alcova e a de um panorama estrutural pelos limitados aspectos sentimentais de alcance lateral. Enfim, sob o impulso do centenário de João Pessoa, em 1978, e do cinquentenário do outubrismo, em 1980, surgiu a terceira versão – a institucional, de que
nos ocupamos aqui. Sua principal expressão reside em A Revolução Estatizada – Um Estudo sobre a Formação do Centralismo em 30 (1984,92), de José Octávio de Arruda Mello. 1.2. Da formação de um livro às antecipações de Vargas – Esse não constitui construção aleatória. Tendo formalizado com o Grupo José Honório Rodrigues, visível predileção pela Revolução de 30, Octávio estudou-a, em profundidade, com João Pessoa Perante a História (1978) para, ao lado do governador Tarcísio Burity, ampliá-la no Seminário João Pessoa, a Paraíba e a Revolução de 30 (1978/9). Neste, logo convertido em livro, sua intervenção contracenou com os historiadores Abguar Bastos, do Pará, Geraldo Joffily e Humberto Mello, da Paraíba, Bóris Fausto e Luiz Toledo Machado, de São Paulo, e Amaro Quintas, de Pernambuco. Firmadas essea colocações, o caminho estava aberto para A Estatizada, dissertação de mestrado cuja tônica recai sobre o sentido da experiência João Pessoa (1928/30). Nesta, focaliza-se o quadro da época, ou seja, o ímpeto publicizante do Pós-Guerra que, por intermédio do pessoísmo, preparará, no Brasil, o Estado Novo de Vargas com seu recorte positivista e castilhista. Torna-se fácil verificar que Octávio se encontrava sugestionado por essa dinâmica. Em outro livro – História do Direito e da Política (2008) – o autor enfatiza as magnas obras que sintonizavam com essa perspectiva – Las Filosofias Sociales de Nuestra Época de Crisis (1954) de Sorokin, Modernas Tendencias del Derecho Constitucional de Mirkine Guetzevitch (1934) e Reflexões
Exposição proferida em maio de 2014, em João Pessoa, por ocasião das celebrações aniversárias da ALANE
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sobre a Revolução do Nosso Tempo (1943), de Harold Laski. A partir daí e atenta para as transformações constitucionais da Alemanha de Weimar, Espanha de 1931 e Brasil de 34, a intenção de Octávio consistiu em situar a experiência João Pessoa como matriz do implante de 30, tal como formalizado por Vargas. De que forma? 1.3. As linhas mestras de 30 – No sul do país, a historiadora Aspásia Camargo despertou para a originalidade da experiência político-institucional pessoista que constituiria “(...) indicação antecipatória do paradoxo modernizante e pioneiro de uma administração oligárquica, que se adianta aos compromissos firmados com a Velha República de Epitácio Pessoa, seu inquestionável líder político”. Buscando flagrá-la, A Revolução Estatizada define-se no capítulo IV em que se transita da Teoria Geral do Estado para o Direito Constitucional e daí para a Política, a fim de verificar como João Pessoa, identificado com seu tempo, substituía a antiga autoridade particularista dos coronéis pelo centralismo publicizante da nova ordem estatal. Tratava-se, como o percebeu Inês
Caminha, na denominação de sugestivo estudo, de passar do poder privado para o instituído, sendo este último o do Estado. Encontrando-o, ao assumir o Governo, em fase de franca desintegração, Pessoa apoiou-se na classe média de intelectuais, comerciantes, funcionários públicos, jornalistas, mulheres e estudantes para montagem de modelo politicamente autoritário, economicamente modernizador e socialmente corporativo – justamente a estrutura político-institucional que predominaria no Brasil ao longo do tempo. Para tanto, a Presidência do Estado reorganizou a fazenda pública, liberando a arrecadação estadual da tutela das chefias políticas. Substituiu as milícias privadas destes pela predominância da polícia, com delegados de nomeação do Chefe do Governo. Transferiu as obras públicas dos coronéis para as novas repartições técnicas estaduais. Centralizou o crédito, com a criação/reorganização do Banco do Estado da Paraíba. Transferiu para os municípios as experiências algodoeiras até então realizadas nas terras dos grandes proprietários e, para completar, subordinou ao poder público as Prefeituras Municipais, a Justiça e o Ministério Público. O moderno Estado brasileiro, estamental e
patrimonialista, despontava, então, com toda força. 1.4. Um estudo para o Nordeste – A originalidade dessas colocações fez com que A Revolução Estatizada – um Estudo sobre a Formação do Centralismo em 30 (1984,92) fosse bem acolhida pela crítica regional e nacional. Representaram-no autores como Paulo Cavalcante, Gonzaga Rodrigues, Epitácio Soares, Vamireh Chacon, Nelson Saldanha, Manuel Correia de Andrade, Cleantho e César de Paiva Leite, José Calazans, José Honório Rodrigues, Hélio Jaguaribe, este na condição de prefaciador, Amaral Lapa, Odilon Nogueira de Matos, Voltaire Schiling e Décio Freitas, entre dezenas de outros. Tal o que explica sua próxima terceira edição a cargo da Editora da Universidade Estadual da Paraíba (EDUEPB) da dupla Rangel Júnior/Cidoval Moraes. Por inspiração da experimentada professora e bibliófila Nadja Bittencourt, da Universidade da Bahia e Associação Brasileira das Editoras Universitárias, A Estatizada passa a integrar a Coleção Nordestina da ABEU o que significa obrigatória presença nas universidades regionais destinadas a, desde o Maranhão até a Bahia, reorientar a História e a Revolução de 30.
BIBLIOGRAFIA, pela ordem das referências, à exceção das do texto MELLO, José Octávio de Arruda. História da Paraíba – Lutas e Resistência, 13ª ed. J. Pessoa: A União Editora, 2014. ALMEIDA, José Américo de. O Ano do Négo. 2ª ed. A União Editora, 1978. MELO, Oswaldo Trigueiro de Albuquerque. A Paraíba na Primeira República. J. Pessoa: DGC/SEC, 1982. RAPOSO, Eduardo. 1930 – Seis Versões e Uma Revolução – História Oral da Política Paraibana (1889/1930). Recife: Editora Massangana, 2006. JOFFILY, José. Revolta e Revolução – Cinquenta Anos Depois. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ________________ ANAYDE. Paixão e Morte na Revolução de 30. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1983. MELLO, José Octávio de Arruda. João Pessoa Perante a História – Textos Básicos e Estudos Críticos. João Pessoa: A União Cia. Editora, 1978. BASTOS, Abguar et allia. João Pessoa, a Paraíba e a Revolução de 30 – Exposições e Debates do II SPCB. J. Pessoa: DGC/SEC, 1979. LASKI, Harold. Refletions on the Revolution of Our Time. New York: Viking Press, 1943. GOMES, Angela Maria de Castro (coord.) et allia. Regionalização e Centralização Política – Partidos e Constituinte nos Anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. POLETTI, Ronaldo. 1934 – Vol III da série “Constituições Brasileiras”. Brasília: Senado Federal, 2001. FERNANDES, Flávio Sátyro. História Constitucional da Paraíba – 2ª ed., revista e atualizada. Belo Horizonte: Forum, 2009. CAMARGO, Aspásia. “O revelado e o (ainda) obscuro na história recente do Brasil”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1980. RODRIGUES, Inês Caminha Lopes. A Revolta de Princesa – Poder privado x poder instituído. S. Paulo: Brasiliense, 1981. RODRIGUES, José Honório. “A Revolução Estatizada – Revolução de 30. Processo Histórico e Crise Brasileira” in Presença Literária nº 3. J. Pessoa: Janeiro-fevereiro-março, 1984, p. 55,60. JAGUARIBE, Hélio. “Prefácio” in Revolução Estatizada – Um Estudo sobre a Formação do Centralismo em 30. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1984. Reproduzido pela Revista Notícia Bibliográfica e Histórica da PUC de Campinas, esse prefácio foi mantido na segunda edição, pela Editora da UFPB, em 1994.
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ECOLOGIA
PATOS E A VIZINHA ÁREA ECOLÓGICA DE TEIXEIRA Octacílio Nóbrega de Queiroz
A história ou o passado de nosso ardente solo e gente das Espinharas vincula-se intimamente à vizinha Teixeira, alcantilada no lombo da Borborema. Somos velhos irmãos de nascimento e dos séculos da conquista, ao lado de Pombal, de Santa Luzia, do Piancó, velho guerreiro, de Serra Negra, já no Rio Grande do Norte. No século XIX, Patos lhe foi incorporada, mas já em 1833, elevada a vila, voltava a ser sede da comarca, como já fomos judicialmente dependentes de Caicó. Mas, Teixeira foi, por muito tempo, área-refrigério para a gente de Patos, sem farinha de mandioca, sem rapaduras, sem frutas ao curso dos tempos escassos e sem chuvas, ou mesmo nos dias bons. Certa vez, de lá desceram as colunas aguerridas de Santa Cruz e Franklin Dantas, precisamente a 24 de maio de 1912, dia comemorativo da batalha de Tuiuti, no Paraguai, a maior da América do Sul até hoje, e que jamais se reproduza ad majorem Dei Gloriam. Os cangaceiros, claro está, não vieram de dentro de lá, da piedosa urbs de Sta. Maria Madalena, mas estavam por seus arredores, próximos a São José do Egito, nas fazendas dos chefes revoltosos, que eram muitos, dos Dantas. Mas é falso dizer-se que houve naqueles agitados momentos imensos horrores e violências. Apenas por vindita pessoal, alguns saques de poucas casas comerciais e, por último, foram-se o s homens de Santa Cruz e do Dr. Franklin, deixando até saudades. É que eles, nos dois dias e poucos mais que passaram em Patos, o mais que fizeram foi comer muito nas residências particulares, arrecadar armas e balas e bater o coco mineiro-pau, mineirô, no largo da igreja velha, à luz de lamparinas improvisadas em latas de querosene, com muita pinga. Patos, embora com medo, depois, da Polícia, ficou sem esquecer jamais a “festa dos cangaceiros”, pois eram também bons músicos, à frente, quase toda uma legião de Capibas, os ascendentes do maestro Capiba de Pernambuco. Para isso tiveram de surrupiar mais
de quarenta gaitas e sanfonas do comércio. Ainda conhecemos e está bem viva ilustre matrona de nossa cidade que, falando dos cangaceiros de 12, nos dizia: “- Ah, quantos rapazes bonitos vinham com o Dr. Santa Cruz e o Dr. Franklin! E quando eles foram embora, Patos ficou muito triste. Todas as moças se lamentavam por sua ida. Ah, por que não se demoraram mais... Fora uma alegria e uma grande novidade aquela para toda a população. Certo é que roubaram o chapéu de Chile do Dr. Pedro Firmino e, mais tarde, o jovem acadêmico João Dantas, com pouco mais de vinte anos, o exibia triunfante aos olhares das moças e de toda aquela gente ansiosa e pacata. Mas, tudo passou, sem sacrifício de vidas ou violentas e grandes humilhações. O que, hoje, no entanto, nos importa falar de Teixeira, com seus largos espaços e horizontes de cima da serra, é como área natural ou ecológica das mais saudáveis do Estado, de clima ameno, seco, das mais indicáveis à preservação do que ainda resta de típico da região sertaneja a que pertence, nos restos da flora, da fauna, característicos, já raros, do meio fisiográfico paraibano. Contudo, à vista da rapidez com que se vai destruindo aquilo que de mais valioso e autêntico caracteriza a natureza de nosso meio, seria de toda oportunidade que se desse alguma atenção ou estudos se fizessem à implantação ali, junto ao Jabre, um dos pontos mais altos da Serra da Borborema, de um parque natural, talvez o único que pudesse ter a Paraíba, a que se incorporaria, como melhor indicação, um centro turístico de amplitude original, expressivamente regional. Nesse sentido, até o superior interesse do governo federal poderia ser despertado, pois, sem dúvida, nenhuma zona seca do Nordeste oferece melhores condições para tanto, não de todo destruídas através de remanescentes paisagísticos, tipicamente representativos de parte do Nordeste semiárido, de certas encostas e espaços dali, eco-
logicamente um tanto virgens a influências intrusas ou sofisticadas pelo trabalho humano indiscriminado e arrasador. Microclima comparável, ao de Garanhuns, registra-se ali, por todo o ano, em média de 18º a 24º. Ar puro, leve, excepcionalmente acariciante, exemplo de “clima mediterrâneo” de poucas áreas nordestinas, a abóbada do céu azul e reluzentes noites de estrelas. O olhar, ao claro do dia, varando dilatados espaços da fronteira de Pernambuco ao Rio Grande do Norte. Todo o extenso e ardente vale do Espinharas como um amplo mapa geográfico, vivo, de “inselbergs” nus, - lá embaixo, ilhotas dágua dos açudes, rodovias como fitas distantes e brancas se destacando de uma paisagem violenta, de sol e pedra, com restos de baixios seguindo cursos dágua, as oiticicas, os juazeiros e ingazeiras. Sem dúvida, a devastação da lavra extensiva, a exemplo dos roçados de agave, muito concorreu para fazer daquilo – lombada desnuda do México, com seus cactos, seu YENEQUEU, sua TEQUILA, o frio de serra ou cordilheira. Por isso, dizia-me um professor universitário, antigo juiz de Teixeira: - “Ah! – é o México, clima frio, seco, agave, pinga, e... política, a fogo e a faca. Lembram-nos, de logo, do passado, dos Dantas, Liras e Nunes”. Engano, exagero, talvez, pois, se houve gente brava, dali saiu também um mestre de POLITESSE, mistura de parisiense feioso, outonal, moreno e desenvolto em letras clássicas e latinas – o professor de Direito Internacional Odilon Nestor de Barros Ribeiro, cujo centenário celebra-se esse ano, - ou, outro, de corpo e espírito aristocrata, perdidos nos sertões de Patos – o Bel. José Duarte de Vasconcelos Dantas. É terra de cantadores... o maior ninho de nossos trovadores. De Ugolino, Romano, Nicandro a Lourival, Dimas e Otacílio Batista. Dali, igualmente, o cônego Bernardo de Carvalho Andrade, figura de apóstolo de altas virtudes do alto sertão. Toda a Serra do Teixeira é ainda memóabril/maio/junho/2014 |
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ria de lendas: Allyrio Wanderley, certa vez, foi dormir no cimo do Jabre, reativando o sonho de outros, da deusa de cabelos da aurora – a “mãe dágua” lendária de suas novelas que, dizia de lá, daquelas alturas, descia tangendo carneiros de ouro. Do vale estreito do “Riacho das Moças”, vem a antiga história da conquista, quando um grupo de índios sucurus, sedentos de amor, furtou uma braçada de moças de fazenda dali, levando-as para dentro da Serra, a sombra dos antigos cedros, cumarus e aroeiras. A ladeira da Verônica é nome de heroína e mãe sertaneja, matadora de onça pintada, em luta de vida e morte, dentro da noite. Mas o Teixeira dos Guabirabas, dos Feitosas, das lutas de Liberato da Nóbrega, de Adolfo da Rosa Meia Noite, de José do Bonfim, de Joca Pinga-Fogo, de Silvino Aires e Antônio Silvino, este já pertence ao passado e à messe de FOLCLORE, de ESTÓRIAS, que enriquecem sua legenda de heroísmo e coragem. Haverá dúvidas, relutâncias, à ideia do parque nacional. Mas, apesar de tudo, devemos levantar a ideia, a bandeira, para que amanhã seja ele criado, na área do Jabre ou adjacências. Ali, como dissemos, está um retalho legítimo de sua natureza primitiva, uns restos de fauna do sertão, prestes a desaparecer. Situa-se no mais alcantilado da Borborema, ao meio das águas que descem para o Pajeú, o Espinharas, o Piancó, o Piranhas, o Taperoá e o Paraíba. Seus diversificados recursos ao estudo da ecologia do maio paraibano desafiam qualquer estudioso. Quase todas as nossas microrregiões naturais sertanejas vão ali findar-se, limitar-se ou iniciar-se. Embora devastada impiedosamente pelo fogo das brocas, em suas alturas e resultante das erosões naturais ou artificiais, - em épocas passadas ali existiam, com abundância,
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“cedros embalsamadores do ar”, segundo o testemunho insuspeito do escritor Pedro Baptista, as umburanas do mel de abelha, os cumarus, paus-d´arcos, angicos e jatobás. Disso, hoje, já muito pouco se fala ou conta. Mas, queremos lembrar aos dirigentes de nossos destinos administrativos ou políticos e ao esquecido povo teixeirense um caminho de uma reivindicação justa, notadamente, quando se anda por aí à cata de áreas de turismo ou se procura defender o nosso minguado patrimônio natural: a adaptação de toda aquela faixa – dos limites de Mãe Dágua, da Serra dos Macacos, do Rosário, de Floresta a Matureia, a um parque regional, á maneira do que existe amplamente em países civilizados e mesmo no Brasil. Entretanto, no caso, não há no país, talvez, parte assim tão diversificada e exótica, tais as características da Serra do Teixeira, seus contrafortes, do cálido vale do Espinharas ao cume ameno do peneplaino, as variações nas encostas dos mil xerófitos aos desdobramentos para os lados de Pernambuco. Em pequenas barragens, detenham-se as águas puras do alto da Serra, acuda-se ao resto da flora típica do ambiente, cultivem-se as esplêndidas frutas de sempre – as pinhas, os ananases, as graviolas, a banana, o caju. Protejam-se e se dê um pouco de asilo aos possíveis espécimenes de sua fauna, quase extintos – os gatos maracajás, os tamanduás, tejuaçus, pequeninos macacos do sertão de outros tempos, os porcos caititus. Tudo isso efetivamente já existiu por ali para não falar das soberbas emas do Espinharas e do Seridó, das onças pintadas e vermelhas, das cobras gigantes, dos veados, das araras, dos canindés reais com mantos rutilantes de majestades bíblicas. Por fim cumpra-se uma drástica lei, proibindo por ali ou em todo o território desta Paraíba, ecologicamente de-
vastada do litoral ao sertão, a ação bárbara dos famosos clubes de caçadores, passatempo de citadinos, como decisão de defesa e de salvação das espécies irracional e humana. Notadamente dos pássaros. Dos Cariris Velhos ao Alto Sertão e Brejo são eles os mais belos e canoros de todo o país, à exceção do gigantesco mundo natural da Amazônia. Não sabemos quem os protegerá um dia da maldade, da ignorância ou exploração comercial. Mas, em verdade, são eles uma das mais raras glórias de Deus dadas ao homem de nossos sertões – os pássaros galos de campina, concrizes, sabiás, xexéus, azulões, beija-flores, pintassilgos, graúnas, (na Colônia, o Reino de Portugal os mandava buscar para beleza e luxo da Corte) curiós, canários, asas-brancas, papagaios, periquitos, jaçanãs, patativas. Bem razão tinha Assis Chateaubriand ao querer uma fazenda de galos de Campina no vale do Piancó. Urgente, pois, na Paraíba um parque ecológico distante de cidades e da poluição, na área de Teixeira, junto ao sobranceiro molhe do Jabre, a dominar a orografia poligonal do Nordeste. Como medíocre sugestão ao utilitarismo burguês dos tempos atuais, ali também se dariam ou se poderiam dar comodidades próprias da civilização de consumo: hotel turístico, boas comunicações para todo o mundo, rodovias pavimentadas em conexão às que demandam o Recife, Campina Grande, João Pessoa, o sul ou norte do país. Alpinismo, repouso em clima de salubridade e amenidade incomparáveis, um intervalo de volta à natureza, nesta hora de poluição de incontáveis aspectos, de trepidação mecânica dos grandes centros, de nervos arrebentados, de neuroses, de câncer, de constrangedora angústia universal.
LANÇAMENTO DE LIVRO
JUSCELINO REDIVIVO(*) Flávio Sátiro Fernandes
Transcorridos cento e onze anos do seu nascimento, cinquenta e sete anos de sua ascensão à Presidência da República e trinta e sete anos de seu encantamento, como diria o autor de Sagarana, o tempo, a quem já chamei de “o mestre da perspectiva, que nos dá pelo distanciamento a oportunidade de novos prismas, para uma melhor visualização de homens, fatos e coisas”, o tempo vem ajudando a história a traçar o verdadeiro perfil e a estabelecer um julgamento quase definitivo do homem público Juscelino Kubitscheck de Oliveira. Digo quase definitivo porque o definitivo mesmo, somente o Criador fa-lo-á. Não obstante, não há um só brasileiro que negue a Juscelino Kubitscheck ou a seu governo um epíteto, um adjetivo, uma apreciação, enfim, uma palavra ou frase que o qualifique, segundo a sua tendência política, a sua simpatia ou até mesmo a sua antipatia perante aquele grande brasileiro. Eu mesmo já o estou classificando como grande e isso é, paradoxalmente, o mínimo que se pode afirmar, em relação a um cidadão de quem já se disse ter sido um visionário, otimista, inovador, dotado de responsabilidade, disciplina e determinação. Sonhador, alegre, boêmio, destemido, aventureiro, audacioso, são outros atributos que, amiudadamente, se reconhecem em sua personalidade. Também dele já se disse ser provido de “alma cigana”; residir nele a “esperança do faiscador”; nele se conter “a veia boêmia”; ser “um obcecado pelo Brasil”. De tudo isso deu provas no exercício apaixonado de telegrafista, de médico, de político, de administrador, na sua vida de exilado. Como Prefeito de Belo Horizonte, como Governador de Minas Gerais, como Presidente da República, haveria de manifestar todas aquelas qualidades. Não fora isso, jamais teria obtido fazer o que fez na Capital do seu Estado, realizando ações e obras de interesse público, dentre as quais ganhou projeção o complexo urbanístico da Pampulha, ali inserida a igrejinha de São Francisco, decorada por Portinari, com paineis de azulejo e mural interior. Sem aquelas qualidades nunca teria ensaiado no Governo
de Minas, através de um programa de obras jamais visto naquela unidade federativa, o seu ambicioso plano de metas que projetou no Governo Federal, representado no slogan “Cinquenta anos em cinco”. Não fosse ele um visionário, dotado de disciplina e determinação, não teria erguido em pleno planalto central do Brasil a cidade de seus sonhos, orgulho do Brasil, Capital da Esperança. De fato, a ele e somente a ele, entre os homens, deve o Brasil a construção de sua airosa Capital, construída com alma e com fé, mais do que com argamassa e concreto. Juscelino era também um poeta e assim foi chamado por alguns que enxergaram em suas obras e ações o canto do otimista, a balada de um sonhador, o soneto em que revelava a sua audácia e o seu destemor. Afonso Arinos de Melo Franco, outro grande mineiro, foi brilhante ao dizer de Juscelino: “É o poeta da ação”. E João Guimarães Rosa, seu outro conterrâneo, autor de uma das obras mais importantes da literatura brasileira – Grande Sertão: Veredas - romance inovador no Brasil, declarou bem ao seu estilo: “JK é o poeta da obra pública”. Sem querer me equivaler a eles, mas me inspirando na verdadeira idolatria de JK pelo Brasil, em favor de quem tudo fazia, com ardor e com destemor, eu diria, sem medo de errar, que JK era o poeta da brasilidade. Assim, aclamado como poeta, Juscelino Kubitscheck de Oliveira haveria de ser louvado por um poeta bem brasileiro e bem nosso, qual seja, Severino Sertanejo, que toda a Paraíba conhece e admira, autor de várias obras em que canta a terra e a gente paraibanas. A primeira obra de Severino Sertanejo, pseudônimo adotado pelo Acadêmico Luiz Nunes Alves, e que teve excelente receptividade foi, todos sabem, sobre João Pessoa e a revolução de 30, em que pintou com tintas bem vivas toda a paixão e a chama que por aquele tempo ardeu na Paraíba, notadamente com a morte do malogrado Presidente que, sem querer, reacendeu com sua morte o ardor do movimento revolucionário que já se achava de fogo morto.
Seguiu-se a essa narrativa outra de grande envergadura, qual seja, a História da Paraíba em versos, descrição pormenorizada desde os dias tumultuosos da fundação da terra dos Tabajaras e criação de sua não menos heroica cidade Felipeia de Nossa Senhora das Neves, depois chamada Frederica, em seguida Parahyba e, finalmente, João Pessoa, denominação que alguns insensatos querem retirar. Depois desse feito histórico-literário, lança-se Luiz Nunes a outro segmento da ciência histórica, ou seja, a biografia, dando-nos um relato completo e apaixonante do que eu chamaria a Saga da Pedra, vale dizer, a vida, paixão e morte de Delmiro Gouveia, o industrial pioneiro, mártir do nacionalismo, que sucumbiu aos golpes impiedosos do trust internacional. Na mesma linha, deu-nos Severino Sertanejo outro trabalho biográfico de fôlego, desta feita relatando a vida e os feitos do grande poeta popular que foi Inácio da Catingueira, a quem ele epitetou de “o gênio escravo”, chamando a atenção para a genialidade poética do escravo e analfabeto que Graciliano Ramos considerava “uma das figuras mais interessantes da literatura brasileira” e de quem também disse ser “extravagância viva num país de insensatos”. Brindou-nos Luiz Nunes com outra narrativa biográfica de uma figura da história universal que foi Napoleão Bonaparte, descrevendo-nos sua vida, seus feitos, seus amores, estendendo sua pena poética para as coisas de além-mar. Agora, dá-nos, como presente de fim de ano, este Juscelino Vida e Obra em Verso, relato minucioso e abrangente da vida e das realizações desse mineiro que o Brasil inteiro, inclusive seus adversários políticos, aprendeu a admirar. É um livro que surpreende, tanto pela construção poético-popular, como pela minudência do relato, abrangendo as origens familiares de Juscelino, os tempos que antecederam o seu nascimento, as lutas empreendidas por sua mãe, Dona Júlia, levada a sustentar, a duras penas, JK e abril/maio/junho/2014 |
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Naná, até que ambos pudessem se manter por si e seguir o caminho que cada um se traçou. As primeiras funções de Juscelino, o concurso para telegrafista a que se submeteu, o exercício dessa importante atividade, os estudos sacrificados para a carreira médica, seguindo-se a prática daquela profissão, quer como facultativo quer como servidor público. E, depois, o ingresso na política onde step by step iria galgando a grande escada que daria no topo, representado pela Presidência da República. Na apresentação que fez deste livro, inserida em suas páginas iniciais, o saudoso Ronaldo Cunha Lima, o Poeta, assim vê, em versos, a obra de Luiz Nunes:
HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DA PARAÍBA, do Conselheiro Flávio Sátiro
O livro é de sequência singular! Os versos vários revivendo a vida de Juscelino, ideia concebida pelo poeta, dessa história a par. Pois Luiz Nunes, sábio no contar fatos e feitos e cantiga franca, esquadrinha o passado e dele arranca desde os mais nobres aos pequenos causos. Prazeroso, dirijo os meus aplausos ao profícuo Poeta de Água Branca. Além de ter uma sequência singular, como ressaltou o poeta Ronaldo, o livro é assombroso pelo volume de informações nele contidas, as quais o fizeram somar um número extraordinário de estrofes e de versos. E aqui me vem à mente o caso de uma
Conheça a
Fernandes, segunda edição, em primorosa produção da Editora Fórum. História Constitucional da Paraíba veio a lume, em segunda edição, incorporando ao seu texto o relato das Constituintes e Constituições paraibanas de 1967 e 1989, não retratadas na sua versão primeira. À época, o Brasil se achava a debateranecessidade da convocação da Assembleia Nacional Constituinte que iria elaborar a Constituição Cidadã, assim intitulada pelo Deputado Ulisses Guimarães, no ato da promulgação. Após isso, iriam os estados se lançar à tarefa de sua constitucionalização à luz dos princípios e normas contidos na nova Carta da República. O importante desta obra é que, apesar de se voltar para o estudo e análise das Constituintes e Constituições de um estado membro da federação¸ela é da maior valia para quem se dedica ao estudo do constitucionalismo brasileiro, notadamente de sua história, haja vista o relato minudente dos principais fatos e circunstâncias que cercaram o funcionamento daquelas assembleias, as quais redundaram em diferentes constituições que, ao longo de mais de um século, disciplinaram a vida político-administrativa daquele estado, refletindo, em suma, a própria história constitucional do Brasil e, de resto, as dos demais estados brasileiros, as quais em muito se assemelham. História Constitucional da Paraíba, abarcando a construção institucional do Estado da Paraíba, de 1891 a 1989, é obra única no país, mencionada pelo constitucionalista Paulo Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional, como uma das mais recentes contribuições à história constitucional do Brasil.
mãe de tipo franzino que, passadas as dores do parto, olhando para o filho robusto e corpulento, ao seu lado, com 4,5Kg, exclama, espantada: - Eu não acredito que isso saiu de mim! Assombro igual deve ter tido o poeta Luiz Nunes, ao concluir o levantamento estatístico e constatar que seu livro contém 4.555 estrofes de diferentes tipos e nada menos de 31.899 versos de diversa metrificação, todos saídos de sua mente privilegiada. Parabéns, poeta. (*) Palavras de apresentação do livro JUSCELINO, VIDA E OBRA EM VERSO, do poeta Luiz Nunes Alves (Severino Sertanejo), na noite de 12 de dezembrode 2013, na Academia Paraibana de Letras.
LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO - Editora
Fórum. Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba, o Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes é autor de diversos livros e artigos divulgados em diferentes revistas especializadas do campo jurídico. Em linguagem simples, ele trata de temas de grande relevância e, às vezes, polêmicos, pela maneira como os aborda¸ não deixando de emitir suas opiniões e ideias que, em diversas ocasiões, se confrontam com o que pensam alguns doutrinadores. Tribunal de Contas, fiscalização municipal, responsabilidade dos Prefeitos, ação popular, controle social, improbidade administrativa, servidores públicos, prestação de contas, gastos com a manutenção e desenvolvimento do ensino, crimes licitatórios, concurso público, ouvidorias, controle externo, Câmara de Vereadores, responsabilidade fiscal, são questões que ele versa, ministrando a seus leitores proveitosas lições de Direito Administrativo, com incursões pelo Direito Constitucional e pelo Direito Financeiro. “Em direito – diz o Professor Flávio Sátiro Fernandes – vale muito a confrontação de ideias e o cotejo de opiniões que não devemos temer revelar, pois, ao expô-las nada mais estamos fazendo do que contribuir para o debate que enriquece a nossa ciência e contribui para o ideal maior de justiça”. E sobre as suas ideias, opiniões e sugestões, expostas neste livro, confessa: “Elas podem parecer ousadas, umas, e ingênuas, outras, mas, afinal de contas, de ousadias e ingenuidades faz-se o mundo...”
À VENDA NAS LIVRARIAS, EDITORA FÓRUM, BELO HORIZONTE OU PELO FONE (83) 3244-5633
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FICÇÃO
O PROFETA SERÁFICO DO BOI Conto de José Leite Guerra Poderia nem haver acontecido. Mas deu na cabeça de Seráfico em ser Capitão de Cangaço. Logo ele que escutara dos mais velhos as malvadezas de Lampião e seus asseclas, ansiava por reeditar, no hoje convivido, tempos outros, algumas aventuras que o colocassem na história, nem que fosse criação de um conto, de uma invenção, de um desmiolado texto. Ele, Seráfico do Boi, era meio doido, fora recolhido em albergues, fugira matagal adentro, comprara um alazão magérrimo, esperou que lhe ovacionassem, esperou, esperou. Tinha uma garrucha meio enferrujada no fundo do baú da avó. A avó vivia tricotando suas manias, seus murmúrios, suas reumáticas conversas, suas falações com ninguém. Dizia conversar com o anjo da guarda, um menininho nu, a pintinha de fora, asas vastas vistas por ela em sua caduquice. Jurava de mãos postas que o anjinho lhe aparecia, revelando coisas proibidas do além. E profetizava um futuro para o neto Seráfico: domaria o alazão, estiraria por espichadas terras sua aventura, levantaria fardos, faria milagres, mataria gente safada, ressuscitaria costumes, escreveria com sangue, andaria caminhos imprevistos, tocaria a lua brava das noites do sertão, conversaria com Deus suas orações, amansaria doenças incuráveis, enfim, pelo que ela, a avó Gumercinda previa, haveria um novo messianismo diferente de todos os outros, muito diferente de enganação ou arritmias fanáticas. Se eu disser que a conheci, ninguém acredita. Portanto, fiquemos no desconhecimento mesmo. Se eu disser que Seráfico conversou comigo apocalipses e prosas misteriosas, ninguém daria crédito. Assim, melhor continuar nessa prosa duvidosa, tida por quem está lendo este depoimento como fugitiva da verdade. Acreditem ou não, vamos escrevendo que escrever é um dote transcendental, quando se lança casos ou causos na virgindade de uma folha branca que, antes, estava em paz. Seráfico do Boi, pirralho de calças curtas de fundo rasgado, gostava de puxar as tetas da vaca do pai, um exercício meio cansativo, que o deixava por demais gratificado ver a espuma no balde escorrer até tocar o chão cagado de merda
mole e quente. Nunca fora à escola. A cabeça era um nó cego, não aprendia nada, deixava voar as mais rudimentares contas e o alfabeto lhe era um código indevassável. Não, não nascera para ler, nem escrever letras. Lia e escrevia doutra forma. Uma forma primitiva e rústica de cinzentas e contorcidas avenidas naturais em pedra e barro, atrás de alguma rês desobediente e dispersa. Seráfico do Boi crescia em tamanho, idade e graça. Fez-se homem completo, musculoso, a avozinha mantendo os murmúrios vagos e meio incoerentes. O anjo ia fugindo dela, a comunicação prejudicada, ela esquisita, até que estatelou. No quarto de lua cheia a pular sua claridade pela janela aberta. Após o enterro, Seráfico do Boi começou a meditar mais com clareza e compreensão sobre o que lhe confidenciara vó Gumercinda: enquanto assim procedia, um clarão estalou do alto do céu nu e lhe veio tal de pensar em ser cangaceiro do bem. Ora, que contradição! Visto e revisto pela História contada, medidas e pesadas as malvadezas do terror, a fazer e acontecer, levando rosários e amuletos dependurados. Paramentado naquela inspiração de imitação atualizada de lampiões acesos. Uma penumbra de ventilação, um arremesso de bala engatilhada, e lá vai Seráfico do Boi na solidão de seu sonho canhestro, certeiro e atravessado redimir todas as hesitações e crueldades cometidas pelas violentas histórias: as de crianças que eram retiradas das redes na caatinga e atravessadas pela ponta dos punhais, de velhos sovinas que eram forçados a defecar sem querer, de sacas de sal mastigadas por inocentes, por tudo, enfim que sofreram, em tempos atrás, algumas pessoas atanazadas pelos bandos que faziam suas justiças particulares. Um clarão de novo rasgou do alto de uma nuvem arroxeada pelo calor imenso e dela surgiu um pingo d’água que caiu sobre o solo, bem perto da alpercata do Cangaceiro Redentor Solitário. E, acreditem ou não, perfurou o solo duro e cavou um riacho que se foi escorrendo, um lagarto líquido e cristalino e, por onde passava, floriam verdes e coloridos jamais esperados pelo herói profetizado pela santa avó Gumercinda dos
Anjos Santos. Eram roseirais repentinos e, como se não bastasse, umas vozes afinadas, sons de violas acompanhando, de repente um sobressalto de figuras imaginárias ou reais que vinham de locas ou de matagais insuspeitados anteriormente, naquela terra de ninguém, tendo por rei o calor do sol inclemente, chuviscos que se dissipavam no ar sufocado. Seráfico do Boi olhava tudo parado como uma árvore ressecada, sem saber explicar tudo aquilo que aparecia, obra de Deus ou do fute, do bem para resgatar ou do mal para confundir. Estava transtornado o Cangaceiro Redentor, abilolado de ver tanta novidade surgindo numa reconciliação da natureza com a paz sonhada pelo povo, pelos deserdados naquele inferno dantesco bordado pela morte e sofrer dos famintos e sedentos. Falavam dos profetas e dos místicos, achavam que eram doidos varridos em quilométricas elucidações, senhores de umas mentes desapontadoras ou tocados por uma maligna doença capaz de confundir, modificar, transformar, arruinar, anunciar e denunciar extravagantes atos de soberanas perturbações vindas dos opressores reis do mundo. Profetas eram arautos divinos. Oráculos que detonavam ambições e ele, o neto da mulher-profetisa orante e penitente, envolvido por todas aquelas aparições, por aquela confluência e comunhão que ia modificando a paisagem. Ele estava confuso, a garrucha enferrujada, testemunha ocular e única do fim do mundo perverso, desativado, minúsculo por saber e se convencer de que nada dependia dele, mas do sonho que ia se realizando, misteriosamente. Era a redenção zunindo em acordes mansos, uma trombeta tocando longe ou perto, não poderia distinguir de tão absorto estava. Só não viu o Anjo da Redenção porque não tinha mais coragem de levantar a vista. Ficou ali não sabe por quantas horas, ajoelhado, mudo, entregue às suas hesitações em acreditar num milagre daqueles, o mais chocante para suas esperanças amortecidas. De repente, se fez o silêncio. Uns trovões soaram dos porões da sua imaginação e de sua vontade. Mas era verdade: continuava o riacho, o matagal, o capim viçoso, apenas a multiabril/maio/junho/2014 |
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dão sumira. Seráfico do Boi esqueceu sua missão. Na verdade, tudo dependia de uma surpresa dos arcanos da natureza, do divino, do incompreensível. Uma utopia de ouro que se realizara muito independente do que o Cangaceiro Solitário e Avesso, Redentor de caatingas e cantigas tristes, ousava cumprir, seguindo os ditames de uma mulher sonhadora, boa, porém desvirginada pelos seus pensamentos azeitados de muito fanatismo. Seráfico chorava de emoção e gargalhava a igual tempo, esperando se tornar realidade permanente a salvação do sertão lanhado pelas secas adversas. Mesmo que tudo fosse uma ilusão. Ilusão de desejo, de lampejo, de certo místico ou mítico aglutinar de luminosidades e vultos que interromperam a marcha que faria, mesmo em seu semblante solitário, em demanda a terras prometidas, a rios que nunca chegavam às paisagens desencantadas em extravios de abundante miséria. Não era redentor de
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nada. Nem se julgava um fracassado. Experimentara o sonho real sozinho. Se fosse contar, ninguém acreditaria. Tinha a fama de maluco, vivia confinado aos mimos de uma avó que sonhava atravessado, guardando em preces e jejuns, em terços recauchutados de orações labiais e coração distante, a fadiga de um desespero, uma anestesia de costumes estratificados em sua mentalidade emparedada em rituais domesticados, repetidos, insossos. Ele, Seráfico do Boi, erguia o estandarte de possuir nome de mensageiro de boas realizações provocativas a todos os descrentes de que horizontes não terminam. Poderia não haver acontecido. Mas aconteceu: o painel criativo de uma redenção. Ele o vira com seus olhos abertos, não fora pesadelo, não fora sonho dormido, a esperança viera e ele começou a acostumar-se com uma possibilidade do impossível. Não era um cangaceiro ao contrário, mas um homem simples, personagem de um conto, circuns-
tante de uma Prosopopéia encantadora, tão linda, pura e santa, que jamais seria colocada no nicho da realidade. Despiu-se inteiramente, sacudiu a garrucha enferrujada num barranco, caiu de joelhos, ergueu os olhos para a imensa constelação que já podia ser vista, pois anoitecera, rapidamente. E ficou naquele êxtase, estando em si e fora de si. Parece mentira: estava saboreando as estrelas. Elas caíam quais gotas de luz sobre o mundo, sobre o sertão e, à medida que se aproximavam, havia uma sensação inexplicável de poesia. As estrelas não alcançavam o solo. Seráfico do Boi parecia estar sendo levado pela brisa gostosa da noite. A ascensão simbólica de um despretensioso homem comum dos amargurados sertões. Mantinha-se imóvel, ao se encontrar consigo mesmo numa paisagem despejada pelos quatro cantos do mundo. Após a noite, a aurora despertaria e a metamorfose do sonho cobriria todas as dúvidas e indecisões.
MUSEOLOGIA
MUSEUS & REDES SOCIAIS Carlos Alberto Azevedo
“Tão desafiante quanto o universo museal é o pensar e o agir em rede. No contexto social contemporâneo – espaço e tempo de profundas transformações – organizações como as redes sociais são consideradas alternativas para a proposição de novas formas de relacionamento. Em rede, ideias são multiplicadas e vínculos estabelecidos. As pessoas e instituições ampliam seus contatos, trocam experiências e podem atingir objetivos diversos, possibilitando a implantação de ações variadas. Dessa forma, seus participantes são convidados a aprender algo novo, pois redes sociais convidam à transformação, mudanças” – eis o resumo do que se propõe a 4ª Edição da Primavera dos Museus, patrocinada pelo Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM. “O pensar e o agir em rede” já estava presente nos meados do século XX. Lembro-me das teorias de Marshall McLuhan, mostrando-nos que o mundo não passava de uma Aldeia Global: o local e o global estavam tão próximos e tão longe. Tudo se conectava através dos meios de comunicação e de outros recursos tecnológicos a serviço do homem. Meios “frios” e “quentes” eram como se fossem extensões do homem. Muitos anos depois a tecnologia da informação evoluiu bastante, tornando ainda menor aquela Aldeia Global. Malhas de mil fios envolveram o mundo – uma verdadeira teia, com vínculos fortes e fracos (Granovetter, 2003) dominou o sistema social. Tudo estava ligado a tudo. Ninguém mais podia fugir da malha de relacionamentos. A Global Village dominou o cenário, antes mesmo da globalização ser decretada oficialmente por economistas neoliberais (Beck, 1999). Não se deve esquecer de que o mundo digital invadiu a nossa vida e essa invasão trouxe em seu bojo a globalização. Aquelas crianças que brincavam com videogames estavam sendo treinadas para receber o Admirável Mundo Novo que, diga-se de passagem, não era aquele mundo proposto por Aldous Huxley. Mas sim a modernidade líquida de que fala o cientista social Zyg-
munt Bauman, onde predomina um certo mal-estar cósmico (insegurança ontológica? ). O medo líquido de Bauman traduz-se em poucas palavras: Unsicherheit e Risikogesellschaft – incerteza e precariedade social. Além da insegurança ontológica, que domina a modernidade líquida. Nesse mundo de profundo mal-estar (medo líquido) procura-se sempre estabelecer laços humanos no mundo fluido (Bauman, 2001). Esses laços, parcerias estão enraizados na estrutura social: são as redes sociais submersas e latentes. Sem elas o universo social seria um caos. Elas desenvolvem relações de solidariedade e de cooperação entre os atores sociais. Não se pode conceber uma sociedade sem redes sociais. É tanto que Castells (2003) e outros cientistas dedicaram vários estudos e pesquisas aos fenômenos sociais em rede. O fortalecimento da sociedade civil deve-se às redes sociais. Ninguém, de certa forma, está fora das malhas das redes sociais. Penso na comunidade virtual do século XXI, onde tudo está ligado a tudo. O Brasil é o quinto país que mais usa redes sociais, afirmou uma pesquisa recente da ComScore, divulgada pela Folha.com. Em todo o planeta, quase um bilhão de pessoas são usuários de redes sociais. Graças à popularização da informática, muitos têm acesso à internet, com isso, naturalmente, o conceito de rede social tornou-se mais amplo, porém, de modo nenhum vago (Duarte, 2008). REDES SOCIAIS Frédéric Lebaron, de maneira clara, definiu rede social como o conjunto de ligações sociais que caracterizam um grupo de indivíduos no seio dos quais se insere um indivíduo (LEBARON, 2010: 116). E acrescenta: A análise das redes sociais corresponde a um conjunto de técnicas que permitem caracterizar a posição particular de um indivíduo dentro de uma rede (LEBARON, 2010: 116).
O que interessa aqui e agora é rede como conceito social. Vários cientistas sociais (Castells, 2003: Granovetter, 2003; Trigueiro, 2008: Fischer, 2006) se referem a um conceito teórico, mostrando que rede é um padrão de organização comunitária a todos os sistemas vivos. Note-se que Fritjof Capra, em A teia da vida, é da mesma opinião: Onde quer que encontremos sistemas vivos – organismos, partes de organismos ou comunidades de organismos – podemos observar que seus componentes estão arranjados à maneira de rede. Sempre que olhamos para a vida, olhamos para redes (CAPRA, 2000: 77). Os pensadores sistêmicos não fazem uma separação entre redes – “estudam modelos de redes a todos os níveis sistêmicos” (CAPRA, 2000: 78). Citando o sociólogo alemão Niklas Luhmann (1990), Capra enfatiza que os sistemas sociais usam a comunicação como seu modo particular de reprodução autopoiética. Seus elementos são comunicação que são produzidas e reproduzidas por uma rede de comunicações e que não podem existir fora dessa rede (LUHMANN, 1990; CAPRA, 2000: 172). A teoria de Luhmann ainda permanece atual, saliente-se que “uma cultura é uma rede de conversação que define um modo de viver” (FISCHER, 2006: 68). São, como diz Capra em A teia da vida: Atos comunicativos da rede de conversas que incluem a autoprodução dos papéis por cujo intermédio os vários membros da família são definidos e da fronteira do sistema da família (...). Tanto os papéis familiares como as fronteiras são continuamente mantidos e renegociados pela rede autopoiética da conversa (CAPRA, 2000: 172). Nota-se isso atualmente na Global Village, onde a comunidade virtual utiliza todos os recursos da web, unindo a cultura do bate-papo virtual à cultura da divulgação. Seria impensável a internet sem redes de relacionamentos (facebook, orkut, twitter). Para concluir rede social como conceiabril/maio/junho/2014 |
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to social, diz Fischer (1987: 68) citando J.A. Barnes (1987) que atualmente a antropologia expandiu o emprego do conceito e tem empreendido rede como as relações desenvolvidas entre os indivíduos a partir de conexões preexistentes, como de vizinhança, parentesco, trabalho, amizade, etc.; cada qual podendo originar diversas redes sociais, com livre possibilidade de formação e dissolução a qualquer tempo. MUSEUS ENTRE TEIAS & REDES Nenhum museu é uma ilha. Todos os museus estão ligados à comunidade virtual. Conectados à rede mundial de computadores. Certa vez eu quis visitar o Museu de Pompéia, na Itália, então acessei o site do museu e fiz um belo passeio virtual. Assim, também, posso visitar tantos outros museus sem sair de casa, sem viajar. A rede de comunicação nos possibilita essas visitas. Outra vez, acessei o site do Museu Paranaense (Curitiba) para fazer uma consulta específica: sobre algumas peças das coleções arqueológicas do museu. Lá estavam
REFERÊNCIAS
elas. Tudo informatizado a partir do sistema de banco de dados Access. No início da globalização, muitos antropólogos temeram pela identidade local, então foram criados dezenas de museus locais no Nordeste do Brasil, quase todos, hoje, ligados em rede com pólos museológicos importantes. Os museus locais tornaram-se mais dinâmicos, com novas técnicas expositivas, “pensando globalmente e agindo localmente”, esse deve ser o lema dos museus locais. Todos visam a uma boa gestão e dinamização de suas atividades. Pouco importa se eles estejam no semi-árido brasileiro ou no extremo Norte de Portugal. O importante é que eles permaneçam na rede virtual de informação (Azevedo, 2009). Ainda nos anos 1960, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, referiu-se aos museus de antropologia como instituições que acompanharam o desenvolvimento dos meios de comunicação: Por outro lado, a expansão da civilização ocidental, o desenvolvimento dos meios de comunicação, a frequência dos deslocamentos
que caracterizam o mundo moderno, puseram a espécie humana em circulação. Não há mais hoje, praticamente, culturas isoladas; para estudar uma qualquer entre elas (fora algumas raras exceções), ou pelo menos algumas de suas produções, não é mais necessário percorrer a metade do globo e fazer o papel dos exploradores (LÉVI-STRAUSS, 1967: 420). É necessário frisar que a adoção de recursos digitais transpõe a distância física – e promove a visibilidade do museu na Global Village. Por exemplo, posso saber tudo sobre o museu aberto da aldeia de Colmeal; assim como os museólogos do museu Colmeal podem se informar sobre o Museu do Homem do Curimataú (Cuité-PB). Ou, ainda, o museu de Siegen na Vestfália (Alemanha) pode tomar conhecimento das atividades do Museu Olho do Tempo, no Vale do Gramame, na Paraíba. Para finalizar, entre os vários tipos de rede social, destaco a Rede de Educadores em Museu (REM), aquela que ensina olhar e ler corretamente um museu.
AZEVEDO, Carlos Alberto. Antropologia cultural. João Pessoa: Ideia, 2009. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BECK, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999. CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2000. CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2003. DUARTE, Fábio. O tempo das redes. São Paulo: Perspectiva, 2008. FISCHER, R.M. Redes sociais – novos arranjos para a sustentabilidade. In: CABRAL, Antonio (Org.). Mundo em transformação. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. GRANOVETTER, M. The strenght of weakties. American Journal of Sociology. v. 18, n. 6, maio/2003. LEBARON, Frédéric. Sociologia de A a Z. Lisboa: Escolas Editora, 2010. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Folkcomunicação e ativismo midiático. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
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LITERATURA
A REPRESENTAÇÃO DA MORTE NA POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS E DE CECÍLIA MEIRELES Neide Medeiros Santos
Eu, depois de morrer, depois de tanta Tristeza, quero, em vez do nome – Augusto, Possuir aí o nome de um arbusto Qualquer ou de qualquer obscura planta. (ANJOS, Augusto dos. Gemidos de Arte). Uma leitura mais acurada dos poemas que compõem o livro “EU e outras poesias” aponta a morte como tema recorrente na poética de Augusto dos Anjos e o tamarindo, “árvore sagrada” do quintal da casa grande do engenho Pau d´Arco, também aparece associado, muitas vezes, à morte. Os sonetos “Debaixo do tamarindo” e “Vozes da morte” comprovam o que afirmamos. Examinemos os dois quartetos do soneto “Debaixo do tamarindo”: No tempo de meu Pai, sob estes galhos, Como uma vela fúnebre de cera, Chorei bilhões de vezes com a canseira De inexorabilíssimos trabalhos! Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos, Guarda, como uma caixa derradeira, O passado da Flora Brasileira E a paleontologia dos Carvalhos! (ANJOS, Augusto. Debaixo do Tamarindo). O tamarindo representa o refúgio para aliviar a canseira dos trabalhos, é guardião do passado da flora brasileira e remete a um passado mais distante – ao estudo dos fósseis vegetais. Atente-se para a duplicidade do vocábulo “Carvalhos” – tanto pode se referir à árvore como ao sobrenome do poeta, sobrenome herdado da mãe – Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos. No soneto “Vozes da Morte”, o tamarindo assume papel de personagem com as características de um ser humano. O tempo será responsável pela morte do tamarindo e pela morte do poeta. Os versos do primeiro quarteto representam bem o desgaste proporcionado pelo tempo: Agora, sim! Vamos morrer, reunidos, Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura, Eu, com o envelhecimento dos tecidos! Nos dois tercetos deste soneto surge um halo de esperança – a morte não será o fim de tudo, as sementes do tamarindo não morrerão. É a sucessão natural das coisas, dos seres humanos, dos animais e dos vegetais: Não morrerão, porém, tuas sementes! E assim, para o Futuro, em diferentes Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, Na multiplicidade de teus ramos, Pelo muito que em vida nos amamos, Depois da morte, inda teremos filho. Uma alusão à morte do pai e ao tamarindo está configurada no poema “Debaixo do tamarindo” nesse verso: “No tempo de meu Pai, sob esses galhos,” e se concretiza, de modo mais incisivo, no soneto “A meu Pai morto”. Augusto dos Anjos perdeu o pai quando estudava Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Recife (1905), estava com 21 anos. O pai acompanhou o estudo dos filhos na infância e adolescência. Servindo-lhe de professor, incutiu-lhe o amor aos livros e aos estudos. A partida do pai, na fase de formação acadêmica do poeta, foi um fato que deixou profundas marcas no jovem estudante. O biógrafo Raimundo Magalhães Júnior (1977, p.100), no livro “Poesia e Vida de Augusto dos Anjos”, considera que o ano de 1905 começou mal para os moradores da casa grande do Engenho Pau-d´Arco. Além do declínio econômico do engenho, sobreveio a morte do patriarca que já vinha prisioneiro numa “jaula de carne”, expressão utilizada por Augusto dos Anjos para representar o sofrimento do pai que se encontrava paralítico e enfermo. No mesmo ano da morte de Dr. Alexandre, Augusto dos Anjos publicou no jornal “O Comércio” três sonetos dedicados a seu genitor. Os sonetos foram publicados no dia 19
de janeiro de 1905: “A Meu Pai Doente”, “A Meu Pai Morto”, “Ao sétimo Dia do Seu Falecimento”. O biógrafo cita, ainda, um quarto poema, que aparece no livro “EU”, sob o número III, mas na realidade é o IV. Para Raimundo Magalhães Jr., o soneto II – “A Meu Pai Morto”, de fundo espiritualista, é o melhor da série. Podemos dizer que este soneto é uma elegia, revela um sentimento de profunda dor diante da morte do pai. A elegia é uma composição poética consagrada ao luto ou à tristeza. É um poema lírico de tom melancólico. Na música, elegia é uma canção triste, lamentosa. “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, é um bom exemplo de canção elegíaca. A leitura do soneto “A meu Pai Morto” comprova o tom elegíaco do poema e revela uma perfeita simbiose entre o eu lírico e o próprio poeta. Madrugada de Treze de Janeiro, Rezo, sonhando, o ofício da agonia. Meu Pai nessa hora junto a mim morria Sem um gemido, assim como um cordeiro! E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro! Quando acordei, cuidei que ele dormia, E disse à minha Mãe que me dizia: “Acorda-o!” deixa-o, Mãe, dormir primeiro! E saí para ver a Natureza! Em tudo o mesmo abismo de beleza, Nem uma névoa no estrelado véu... Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas, Como Elias, num carro azul de glórias, Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu! O primeiro filho de Augusto dos Anjos nasceu prematuro e não sobreviveu, mais uma vez o fantasma da morte perpassou pela vida do poeta. Esse fato está registrado no soneto dedicado “Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos. 2 de fevereiro de 1911.” Segue-se o soneto: abril/maio/junho/2014 |
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Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial, Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante, Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?! Porção de minha plásmica substância, Em que lugar irás passar a infância, Tragicamente anônimo a feder?! Ah! Possas tu dormir, feto esquecido, Panteisticamente dissolvido Na noumenalidade do NÃO SER! Humberto Nóbrega (2012, p. 218 - 219), no livro Augusto dos Anjos e sua Época , considera este soneto um “lamento amargurado e aflito”. Para o estudioso de Augusto dos Anjos, não há na poesia brasileira noticia de um soneto dedicado a um feto e compara o desespero de Augusto dos Anjos às aflições de ANDRÔMACA ao saber que ASTINAX – o seu pequenino filho, por decisão do”Conselho dos Gregos”, ia ser, para segurança de Hélade, precipitado de cima das montanhas. É um soneto que causa certa estranheza, mas é revelador do estado de espírito de um pai pela morte do filho prematuro. Quando falamos em elegia, não podemos deixar de citar os oito poemas que Cecília Meireles dedicou à morte de sua avó – Jacinta Garcia Benevides. Ana Maria Domingues Oliveira, no ensaio “Cecília Meireles e a reinvenção da morte”, afirma que [...] os poemas da Elegia vão muito além do testemunho afetivo. São
REFERÊNCIAS
textos de densa elaboração poética, repletos de metáforas complexas, compondo uma visão da morte bastante peculiar, em que o sujeito poético estabelece um diálogo com um interlocutor morto. Os primeiros versos da Elegia I são reveladores de uma imagem visual muito forte. Ao se deter diante da avó agonizante, a lágrima da neta cai no olho da avó. Vejamos como Cecília traduz o sentimento da dor diante do encantamento da avó nos cinco primeiros versos desta elegia: Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar para não saberes que havia caído. No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua.. Retornando ao soneto de Augusto dos Anjos – A meu pai morto, encontramos similitudes com a Elegia I de Cecília Meireles. O diálogo que se estabelece entre o filho e a mãe, presente no poema de Augusto dos Anjos, aproxima-se da lágrima que cai do olho da neta no olho da avó. Nos dois poemas existe o clima de tristeza, o lamento por uma vida que se foi (a do pai) e por uma vida que se esvai (a da avó). No soneto de Augusto dos Anjos, dedicado ao pai, vislumbra-se o sentimento de saudade, esse mesmo sentimento está presente na elegia de Cecília Meireles diante do encantamento de sua avó. Os exemplos citados demonstram que, no
momento da dor, em face da inexorabilidade da morte, Augusto dos Anjos e Cecília Meireles são irmãos não só das “coisas fugidias”, mas na canção ritmada, na maneira da representação poética da morte de pessoas queridas. O tom confessional do soneto de Augusto dos Anjos e da elegia de Cecília Meireles não compromete o poder transfigurador do poético. Por fim, podemos dizer que a universalidade da poesia de Augusto dos Anjos não se revela apenas na temática da morte, ela está presente em inúmeros outros poemas que discorrem sobre temas universais, como a ingratidão, a melancolia, o ideal artístico. Tem razão Ferreira Gullar, quando afirmou no brilhante ensaio “Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina”: Augusto dos Anjos não é o poeta do Engenho Pau D´Arco, da Paraíba, do Recife, do Nordeste brasileiro do começo do século. Se assim fosse, seria uma referência meramente biográfica, externa à sua obra. A poesia de Augusto dos Anjos revela um compromisso total com a existência do homem. No ano do centenário de morte de Augusto dos Anjos (1914-2014) e cinquentenário de morte de Cecília Meireles (1964), nada mais justo do que aproximá-los. A morte foi companheira constante na vida de Cecília Meireles - perdeu o pai e a mãe na primeira infância, a avó na adolescência e o marido na idade adulta. Augusto dos Anjos viu o pai desaparecer na juventude e esse fato marcou para sempre sua vida. Casado, seu primeiro filho, natimorto, motivou-o a escrever um soneto de “singularíssima grandeza”. Os dois poetas cantaram, de modo distinto e peculiar, a dor da partida de seus entes queridos.
ANJOS, Augusto dos Anjos. EU e Outras Poesias. Fixação de texto, Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Ed. 1999. GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In: ANJOS, Augusto dos. Toda a Poesia. Estudo crítico de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. MAGALHÃES JR, Raimundo. Poesia e Vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília/INL, 1977. MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Vol. I. Organização Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua Época. 2ª ed. rev..ampl.atual. Organizadoras da 2ª edição: Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos e Ana Isabel de Souza Leão Andrade. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012. OLIVEIRA, Ana Maria Domingues. Cecília Meireles e a reinvenção da morte. Disponível em http://www.artigos/33 .pdf. Acesso em 26/04/2014.
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HISTÓRIA
ERNANI SÁTYRO E O DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO Renato César Carneiro
INTRODUÇÃO Em 2011, a Câmara dos Deputados publicou valioso ensaio biográfico de autoria do conterrâneo e confrade do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, o publicista Flávio Sátyro Fernandes, acerca do eminente patoense Ernani Sátyro. De forma pioneira, característica que já marca os seus escritos, Flávio Sátiro deu um primeiro passo, no sentido de corrigir um erro dos que estudam a evolução da nossa legislação eleitoral: a omissão da contribuição do jurista Ernani Sátyro, para o aperfeiçoamento do regime representativo brasileiro. 1 Não obstante as limitações do seu autor, o presente artigo tem a pretensão de contribuir para o aprofundamento de tão importante tema. Nascido em Patos/PB e herdeiro do chefe político2 da região das Espinharas, na Primeira República, Ernani Ayres Sátyro e Sousa bacharelou-se pela Faculdade do Direito do Recife, em 1933, quando tinha apenas vinte e dois anos de idade. Quando obteve o seu primeiro mandato parlamentar, em 1934, para ser um dos deputados à Assembleia Constituinte da Paraíba, o poder central já havia atraído para si a exclusividade de legislar sobre Direito Eleitoral, ação esta inaugurada com o Decreto-Lei n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que representou a nossa primeira codificação eleitoral. A União passou a ter competência exclusiva para legislar sobre eleições. Nessa primeira fase de sua vida pública, a atividade a que mais se dedicou foi a advocacia, principalmente nas cidades de Patos e Campina Grande. A contribuição de Ernani Sátiro ao Direito Eleitoral só deveria se iniciar, em tese, a partir de sua primeira eleição federal, em 1945, quando elegeu-se deputado federal constituinte. No entanto, a sua primeira legislatura na Câmara dos Deputados foi dedi-
cada à defesa dos ideais municipalistas e os problemas da exploração do subsolo. A partir do segundo mandato de Deputado Federal, conquistado nas urnas em 1950, é que o “Amigo Velho” passou a atuar de forma mais intensa no campo do Direito Eleitoral, demonstrando o seu perfil de jurista permanentemente preocupado com o aprimoramento do sistema representativo nacional, embora o quarto Código Eleitoral, a Lei n. 1.164, de 26 de julho de 1950, já estivesse em pleno vigor. No ano de 1953, o parlamentar paraibano, que presidiu a Comissão Especial da Reforma da legislação eleitoral, fez a defesa de dois importantes Projetos de Lei no campo do Direito Político. O primeiro, cujo relator foi o deputado Gustavo Capanema, dispunha sobre o uso de foto nos títulos eleitorais. Ernani Sátyro pretendia fazer um reexame de todo o sistema eleitoral brasileiro. A proximidade das eleições para a renovação do Congresso Nacional, contudo, não permitiu a realização desse trabalho. Coube a Ernani Sátyro, como líder de sua bancada partidária, a União Democrática Nacional, encaminhar a votação do aludido projeto, que modificava o Código Eleitoral então vigente, (Lei n. 1.164, de 24.07.1950). A alteração proposta, altamente moralizadora, pretendia corrigir uma falha no sistema de alistamento, o que diminuiria eventuais fraudes na seleção do corpo eleitoral. Para Ernani, os títulos eleitorais em vigência eram veículos de desmoralização da democracia e do nosso regime político, “uma espécie de títulos ao portador, cujos possuidores podem, em qualquer parte, de posse deles, usá-los como se fossem as próprias pessoas, os próprios eleitores.” Durante os debates do projeto, o representante patoense antecipava, em mais de um lustro, o que, hoje é uma realidade: a
identificação digital do eleitoral. Durante os debates da proposta, quando respondia a um dos seus interlocutores, assim afirmou: “Agradeço o aparte de V. Exa., que está consignado. Estou propondo, no entanto, que se faça a identificação e, devo dizer, até a V. Exa., que isto não basta, porque, pela premência de tempo, não podemos ir às consequências derradeiras – isso seria o ideal – exigir a impressão digital do eleitoral no respectivo título.” (grifei). O filho de Patos era um parlamentar além de seu tempo! Há mais de um lustro atrás, prenunciava o que hoje é uma realidade: a identificação digital do eleitoral. Num outro projeto de lei, também discutido no ano de 1953, o “Amigo Velho”, com a mesma energia com que lutou pela colocação da foto do eleitor no título eleitoral, defendeu a fixação do eleitor à seção eleitoral. A proposta, na prática, punha fim à prática do “voto em separado” que permitia o exercício do direito de sufrágio aos eleitores que, no dia da eleição, estivessem fora de seu domicílio eleitoral. Segundo Sátyro, as exceções legais para permitir o “voto em separado” deveriam ficar restritas ao membros das mesas receptoras, os fiscais de partidos, delegados partidários e determinados funcionários. Dois anos depois, precisamente em maio de 1955, o parlamentar paraibano passou a defender mais uma ação que visava a moralizar o processo eleitoral, a cédula oficial única. O projeto, de autoria do deputado Afonso Arinos, era mais uma novidade no ordenamento jurídico-eleitoral e teve uma grande repercussão na sociedade, pois se tratava de mais um instrumento para o combate à fraude nas eleições brasileiras. A proposta tinha o apoio do Tribunal Superior Eleitoral, através de seu presidente, o ministro Edgar Costa.
Flávio Sátiro Fernandes. In ERNANI SÁTYRO – Ensaio biográfico e seleção de documentos e discursos. PERFIS PARLAMENTARES. Brasília: Câmara dos Deputados, 2011, p. 22. Refiro-me ao Major Miguel Sátyro. 3 Flávio Sátyro Fernandes. In ERNANI SÁTYRO – Ensaio biográfico e seleção de documentos e discursos. PERFIS PARLAMENTARES. Brasília: Câmara dos Deputados, 2011, p. 22. 1 2
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Até o ano de 1955, as cédulas de votação, ou chapas, eram distribuídas livremente pelos partidos políticos, antes da votação. Doravante, com a aprovação desse projeto, as cédulas passaram a ser distribuídas pelos presidentes das mesas receptoras de votos. A experiência inovadora, que teria início nas eleições majoritárias, encontrou muitas resistências, mas foi aprovada. Os pronunciamentos feitos pelo parlamentar paraibano em defesa desses projetos, encontram-se reproduzidos no ensaio biográfico de autoria de Flávio Sátiro Fernandes. A nossa colaboração à temática, segue a partir daqui. 1965: EM DEFESA DE SEVERINO BEZERRA CABRAL No ano eleitoral de 1965, três leis entraram em vigor: o atual Código Eleitoral, a Lei dos Partidos Políticos e a primeira Lei de Inelegibilidades. O candidato a vice-governador na chapa governista, Severino Bezerra Cabral, teve a sua candidatura impugnada pelo procurador regional eleitoral, João Guimarães Jurema, com base na nova Lei das Inelegibilidades. Durante o julgamento da candidatura de Cabral no TRE, enquanto proferia o seu voto, o relator do processo, desembargador Sinval Fernandes, quando discutia o instituto da preclusão, no Direito Eleitoral, fez um registro histórico importante, praticamente desconhecido pelos que militam na Justiça Eleitoral do estado. Disse ele: “Um parlamentar paraibano, o Deputado Federal Ernani Sátiro, autor da emenda de que resultou o citado artigo 152, §2º, assim escreveu: ‘ao transplantar para o Direito Público o instituto que se gerou no âmbito do Direito Privado, e neste tem dato tão benéficos resultados, devemos, antes de tudo, cercá-lo de todos os instrumentos indispensáveis para que ajude a legislação eleitoral a se libertar de todas as armadilhas preparadas pela paixão política ou pelo desespero partidário.”4 Os juízes do Tribunal Regional Eleitoral entenderam que a ação de impugnação ao registro, proposta pelo procurador era intempestiva, e não conheceu da representação. João Jurema e os adversários da chapa oficial, à qual pertencia Cabral, recorreram ao TSE e, naquela instância superior, coube a Ernani fazer a defesa de Cabral.
Citado no voto do relator e mesmo sendo um profundo conhecedor do Direito Eleitoral, era praticamente impossível para Ernani Sátyro vencer aquela causa. As razões escritas e a sustentação oral por ele feitas antes e durante o julgamento, pouco serviram para salvar o mandato do candidato a vice-governador. O momento político que o País vivia, não permitia que os ministros do TSE adotassem uma hermenêutica jurídica que não estivesse em perfeita sintonia com os “ideais revolucionários”, proclamados pelos militares que assaltaram o poder político a partir de março de 1964. Mesmo derrotado naquele processo, considerando que não existe, no mundo, nenhum advogado imbatível, o “Amigo Velho” não deixou de dar a sua contribuição ao debate de institutos da Ciência do Direito Eleitoral. AS ELEIÇÕES DIRETAS DE 1982 Na década de 80, durante a discussão de dois projetos fundamentais para a história política nacional, o deputado federal, Ernani Sátyro, voltou a participar de importantes debates acerca de institutos caros da legislação eleitoral. A partir da abertura democrática iniciada no Governo Geisel, o Poder Executivo enviou o Projeto de Lei n. 28, de 1981, que estabelecia normas para a realização das eleições em 1982, ao Congresso Nacional. Coube ao ilustre filho de Patos, na condição de membro da Comissão Mista das duas Casas Legislativas, emitir a sua opinião e convenceu seus pares a aprovar o texto que se logo se transformou em norma. A inspiração principal do aludido Projeto de Lei, conforme constava em sua exposição de motivos, era “resolver o problema institucional do quadro político-partidário brasileiro”. Em seu parecer, Ernani Sátyro fez uma recapitulação de todas as fases da vida partidária nacional, desde o Império até aquela data. A peça jurídica se constitui numa verdadeira aula de Direito Partidário, notadamente para os que se interessam em analisar o histórico e os efeitos práticos do voto vinculado, cuja defesa foi assumida pelo relator, nos seguintes termos: “7. Dentro dessa ordem de considerações, e ainda em defesa do pluripartidarismo, surge o problema da vinculação total
de votos, prevista nos arts. 5º, §1º e §8º do projeto em exame. Ao contrário do que se alega, essa exigência não atenta contra a liberdade do eleitor. Essa liberdade sempre foi limitada pela lei, respeitados os preceitos constitucionais. Assim é que o eleitor não pode votar em qualquer pessoa de sua livre preferência, mas, tão somente, nos candidatos registrados, de acordo com as leis vigentes. Vinculado já é o voto do deputado federal com o do deputado estadual e não consta que, até hoje, tenha sido esse preceito considerado inconstitucional.”5 1983 – ERNANI SÁTYRO E A “EMENDA DANTE DE OLIVEIRA” Uma das últimas contribuições de Ernani Sátiro, ao Direito Eleitoral, deu-se no ano de 1983, quando foi apresentada ao Congresso Nacional, a “Emenda Dante de Oliveira”. Coerente e defensor intransigente de suas convicções, Ernani declarou-se contrário à realização de eleições diretas para presidente da República, como proposta para a sucessão João Baptista de Figueiredo. Sátyro considerava o pleito direto, naquele instante da vida política brasileira, uma imprudência.6 Durante os debates em que se discutiu a Emenda, proposta pelo Deputado Dante de Oliveira, Ernani Sátyro demonstrou ser um profundo conhecedor da história de nossas instituições. Após recorrer ao Direito Comparado para fazer um breve histórico da eleição indireta em outros países, (França, EUA, Argentina etc), traçou a evolução eleitoral brasileira, para fazer a defesa de sua ideia: “...Por outro lado, Sr. Presidente, essa alegada tradição de eleição direta no Brasil merece algumas retificações. A República, se porventura isto é mácula, nasceu com o estigma da eleição indireta. O primeiro Presidente da República, ‘biônico’, foi Deodoro da Fonseca, eleito pelo Congresso Nacional. Floriano Peixoto... (Risos). Sim. V. Exas. não acham tanta graça nessa palavra ‘biônico’? Pois é: é o batismo popular. Eu não tenho medo das palavras, não. (Muito bem!) Mas vamos adiante. Floriano Peixoto foi eleito Vice-Presidente da República, pelas mesmas eleições indiretas. No curso de toda a República, fala-se muito na eleição direta; mas essa ‘eleição direta’, ao longo da ‘República Velha’, era feita a bico-de-pena. Não ha-
Renato César Carneiro, in CASOS ELEITORAIS CÉLEBRES, vol. II, p. 66. FERNANDES, Flávio Sátiro. ERNANI SÁTYRO – Ensaio biográfico e seleção de documentos e discursos. Brasília: Câmara dos Deputados, 2011. 6 Discurso proferido na sessão ordinária de 18.11.1983. 4 5
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via eleições verdadeiras. Uma ou duas vezes tentou-se fazer eleições verdadeiras: na ‘Campanha Civilista’ de Rui Barbosa e na ‘Reação Republicana’ de Nilo Peçanha. As campanhas foram brilhantes, mas o ‘bico de pena’ vadiou, as atas falsas, as simulações, as fraudes. Em verdade, nunca tivemos eleições diretas, mas fantasmas de eleições, e não eleições verdadeiras. Todas estas e outras considerações, referentes a eleições diretas e indiretas, estão desenvolvidas no meu parecer, que entrego à Mesa, no final desta oração, para que a ele seja incorporado, como uma contribuição ao estudo de tão relevante matéria.” 7 O representante da Região das Espinharas lembrou que os primeiros governadores ou presidentes dos Estados, depois da Constituição Republicana de 1891, haviam sido eleitos pelas Assembleias Legislativas. O mesmo se deu com a eleição de Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório logo após a Revolução de 30, que foi eleito pela Assembleia Nacional Constituinte de 1934. O fato se repetiu com as eleições indiretas de todos os senadores e governadores dos estados, pelas Assembleias Constituintes Estaduais. E prosseguiu, em seu discurso: “Então, qual o escândalo, qual a novidade, qual a excentricidade que existe porque, depois da Revolução de 1964, voltaram as eleições indiretas? Essa chamada ‘tradição brasileira’ de eleição direta não existe. Por conseguinte, meus colegas, não devemos fincar o pé; ninguém pode dizer, com toda a arrogância, que é da tradição brasileira a eleição direta para Presidente da República. E essa eleição direta, Sr. Presidente, foi responsável por quase todas as grandes crises que ocorreram no Brasil.” E continuou, em tom quase premonitório: “E nem sempre as eleições diretas trouxeram resultado feliz e bons Presiden-
tes da República. O povo é um só, o corpo eleitoral é o mesmo, através de eleição direta ou de eleição indireta. Os nossos homens públicos, com as variações naturais da vida, são os mesmos. Então, será uma eleição direta, agora, que vai fazer o ‘milagre’ de trazer um Presidente da República melhor do que os Presidentes que existiram? Ninguém pode esperar esse ‘milagre’, apenas pela mudança de uma eleição indireta em eleição direta...” O parlamentar patoense considerava a eleição direta um casuísmo eleitoral, o qual, por princípio, combatia com todas as forças, usando de um raciocínio lógico-jurídico que lhe era característico: “Temos sido, nós do PDS, acusados de casuísmo. Devolvemos a acusação. Casuísmo, nesta altura do processo da sucessão presidencial, é qualquer tentativa de subversão do que está estabelecido na Constituição e na lei. É a eleição direta; é o plebiscito; é a extinção da fidelidade partidária; é a sublegenda; é a eliminação do voto secreto nas convenções. Isto, sim, é que são casuísmos, partam de ondem partirem, da Oposição ou de membros do PDS. Os nossos adversários, ao acenarem com uma campanha de mobilização das massas, em prol da eleição direta, como se isso nos intimidasse, invocam o exemplo da anistia, do pleito direto para Governadores, da liberdade de imprensa, da revogação do AI-5 e outras decisões de abertura política. Procuram alardear que tudo isso foi conquista sua. Nada mais verdadeiro. No caso atual, o povo já votou sabendo que estava elegendo os seus representantes no Colégio Eleitoral. Não há surpresa para ninguém. O processo é legítimo e democrático. Para nós, do PDS, seria uma covardia renunciar a uma vitória que já está assegurada, apenas com medo dos arreganhos da Oposição...” Ernani concluiu a sua oração, expres-
sando as razões pelas quais se mostrava contrário à eleição direta, para a Presidência da República, naquele momento histórico: “Qualquer que seja o desfecho de tudo isso, Sr. Presidente, Deus nos livre de uma campanha para eleição direta para a Presidência da República neste período de crise econômica em que estamos vivendo. Será uma campanha eleitoral caríssima, que agravará este mal terrível que é a inflação, com o desrespeito da Oposição nos comícios e nas ruas, as afrontas, os revanchismos e a inflação galopando por todo o território nacional. Não teremos agora essa desgraça no Brasil.” Como Relator da Comissão Mista do Congresso Nacional, incumbida de examinar e emitir parecer sobre as Propostas de Emenda à Constituição de 1967, (Emendas ns. 5, 6 e 8, de 1983), que dispunha sobre a realização de eleição direta para presidente da República, (Emenda n. 5), e estabelecia o sistema proporcional para a eleição da totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e das Assembleias Legislativas, Ernani deu parecer contrário a ambas as proposições. No dia da votação da Emenda pelas eleições diretas, tendo lido na sessão anterior o seu PARECER sobre a matéria, Ernani Sátyro se ausentou, não participou da votação, tal como fez o Presidente da Casa, Deputado Flávio Marcílio, seguindo ambos a estratégia formulada pelo partido. Certamente tinham a convicção de que o País caminhava para o retorno à democracia. Como “homem da Revolução”, sem tergiversações e dubiedades, Ernani manteve-se coerente, diferente de outros líderes do seu estado natal, que apoiaram o Regime Militar mas, de forma oportunista, votaram pela aprovação da “Emenda Dante de Oliveira”. O filho de Patos, não! Escolheu um só lado. E a ele serviu, do começo ao fim.
REFERÊNCIAS: CARNEIRO, Renato César. CASOS ELEITORAIS CÉLEBRES. João Pessoa: Ed. Sal da Terra, 2014. COSTA, Edgar. A LEGISLAÇÃO ELEITORAL. FERNANDES, Flávio Sátiro. ERNANI SÁTYRO – Ensaio biográfico e seleção de documentos e discursos. Brasília: Câmara dos Deputados, 2011. SOUZA, Ernani Ayres Sátyro e. DE VOLTA AOS VELHOS CAMINHOS – Discursos e Pareceres. Brasília: Câmara dos Deputados, 1986.
In DE VOLTA AOS VELHOS CAMINHOS, p. 84.
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TEXTOS E DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA
PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO(*) CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO PARAHYBA DO NORTE, DE 5 DE AGOSTO DE 1891 Nós, os Representantes do Povo Parahybano, reunidos em Congresso Constituinte, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição do Estado do Parahyba do Norte. TITULO I DO ESTADO Art. 1 - O Estado do Parahyba do Norte, com os limites da antiga Província da Parahyba, faz parte da União Brazileira e é autonomo, nos termos da Constituição Federal. Art. 2 - O seu Governo é republicano representativo, emanado da soberania popular que se manifesta por tres poderes independentes e harmonicos – o Legislativo, o Executivo e o Judiciario. TITULO II DO PODER LEGISLATIVO CAPITULO I DO CONGRESSO Art. 3 - O Poder Legislativo é exercido por um Congresso, composto de trinta membros, com a sancção do Governador. § Unico - Cada legislatura durará quatro annos, renovando-se o Congresso, pela metade, de dous em dous annos. Art. 4 - O Congresso se reunirá todos os annos, no dia primeiro de Julho, na Capital do Estado, independentemente de convocação e funccionará dous mezes, contados da data de sua installação, podendo ser adiado, prorogado ou convocado extraordinariamente. § 1 - Só ao Congresso cabe resolver sobre a prorogação ou adiamento de suas sessões, não devendo a prorogação exceder a trinta dias. § 2 - Em caso algum o Congresso será dissolvido. Art. 5 - Não se reunindo o Congresso no dia marcado nesta Constituição, será, pelo presidente do mesmo Congresso, designado novo dia para sua reunião. Art. 6 - Por deliberação do Congresso e para garantir a independencia de seus trabalhos, ou por motivo urgente de salvação publica, poderá elle funccionar fóra do local determinado n’esta Constituição, precedendo annuncio e devendo a reunião effectuar-se em lugar publico e accessivel ao povo. Art. 7 - O Congresso funccionará em sessões publicas, podendo haver sessões secretas, si fôr por elle resolvido, por alto motivo de ordem social. Art. 8 - As deliberações do Congresso serão tomadas por maioria de votos, achando-se presente a maioria absoluta de seus membros. Art. 9 - O Congresso verificará e reconhecerá os poderes de seus membros; elegerá sua meza; nomeará os empregados de sua secretaria, marcando-lhes os vencimentos; regulará a sua policia interna, provendo a todas as necessidades de seus serviços, inclusive a publicação dos debates e leis, segundo o regimento que organizar. Art. 10 - O deputado, ao tomar assento, contrahirá compromisso formal de bem cumprir os seus deveres. Art. 11 - O deputado é inviolavel por suas opiniões, palavras e
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votos no exercício de seu mandato. Art. 12 - O deputado, desde que tiver recebido diploma até nova eleição, não poderá ser preso, nem processado criminalmente, sem previa licença do Congresso, salvo o caso de flagrancia em crime inafiançavel. N’este caso, preparado o processo até a pronuncia exclusiva, será remetido ao Congresso para resolver sobre a procedencia da accusação, si o accusado não preferir o julgamento immediato. § Unico - Si, porém, o Congresso resolver pela improcedencia da accusação, em tempo algum será ella renovada. Art. 13 - Os membros do Congresso perceberão um subsidio durante as sessões, e ajuda de custo, que serão fixados pelo Congresso no fim de cada legislatura para a seguinte. § 1 - A nenhum membro do Congresso é permitido perceber o subsidio cumulativamente com outro vencimento que tiver pelos cofres do Estado, podendo, entretanto, optar por qualquer d’elles. § 2 - Durante o tempo da sessão legislativa cessa o exercicio de qualquer emprego publico. Art. 14 - Nenhum deputado, desde que tenha sido eleito, poderá acceitar o cargo de Governador, vice-Governador ou Secretário de Estado, sob pena de perder o mandato. Art. 15 - É permitido ao deputado renunciar o mandato. Art. 16 - O deputado eleito em substituição a outro exercerá o mandato pelo tempo que faltar ao substituto. Art. 17 - São condições de elegibilidade ao Congresso: I - Ser cidadão brasileiro nato, ou naturalisado desde dous annos, pelo menos, antes da eleição. II - Ter effectiva residencia no Estado, desde dous annos, pelo menos, antes da eleição, salvo si for parahybano. III - Ser maior de vinte e um annos. IV - Estar no goso de seus direitos politicos. V - Ser eleitor ou alistavel. Art. 18 - São ineligiveis, além dos que exercerem funcções federaes de qualquer natureza: I - O Governador e os vice-Governadores do Estado. II - Os Secretarios do Estado. III - O commandante da força publica do Estado. IV - Os magistrados, salvo si estiverem avulsos ou disponiveis. V - Os pronunciados em qualquer crime, menos nos de responsabilidade. CAPITULO II DAS ATTRIBUIÇÕES DO CONGRESSO Art. 19 - Compete ao Congresso: § 1 - Fazer leis sobre todos os assumptos de interesse do Estado, interpretal-as, suspendel-as, derogal-as e revogal-as. § 2 - Orçar annualmente a receita e fixar a despeza do Estado, decretando os impostos necessarios, e tomar as contas da receita e despeza de cada exercicio financeiro. § 3 - Regular a arrecadação e distribuição das rendas do Estado. § 4 - Legislar sobre a divida publica e estabelecer os meios para seu pagamento.
§ 5 - Crear e supprimir empregos, marca-lhes os vencimentos e fixar-lhes as attribuições. § 6 - Autorisar o Governo a celebrar com os Estados ajustes e convenções, sem caracter politico, que serão depois submettidos à approvação do Congresso, na sua primeira reunião. § 7 - Determinar os casos e regular os processos de desapropriação por utilidade publica do Estado. § 8 - Autorisar o Governo a contrahir emprestimos e fazer quaesquer outras operações de credito que o bem do Estado exigir. § 9 - Estabelecer a divisão administrativa e judiciaria do Estado. § 10 - Tomar conhecimento dos actos do Governo, exigindo deste os esclarecimentos que julgar necessarios. § 11 - Regular as condições e o processo da eleição para os cargos publicos electivos do Estado. § 12 - Velar pela fiel observancia da Constituição e das leis. § 13 - Legislar sobre terra e minas de propriedade do Estado. § 14 - Mudar a Capital do Estado, quando a conveniencia publica o exigir. § 15 - Legislar sobre o serviço dos correios e telegraphos do Estado. § 16 - Fixar annualmente o effectivo da força publica. § 17 - Autorisar a acquisição e a venda dos bens do Estado. § 18 - Commutar e perdoar as penas impostas aos funccionarios publicos por crime de responsabilidade, aos Governadores e Secretarios do Estado por crimes communs. § 19 - Decretar no caso de rebelião ou invasão de inimigo, conforme o exigir a segurança do Estado, a suspensão de alguma ou algumas das formalidades que garantem a liberdade individual dos cidadãos. § 20 - Julgar os membros do Tribunal de Justiça nos crimes de responsabilidade. § 21 - Julgar o Governador do Estado nos crimes de responsabilidade e decretar a sua accusação nos crimes communs. A sentença condemnatoria, nos crimes de responsabilidade, só prevalecerá pelos votos de dous terços dos membros do Congresso, e não irá alem da perda do cargo e incapacidade de exercer qualquer outro, sem prejuizo da acção da justiça ordinaria. § 22 - Decretar as leis organicas para a execução completa da Constituição. § 23 - Prorogar e adiar as suas sessões quando o bem publico o exigir. § 24 - Legislar sobre o ensino em todos os seus gráos. § 25 - Annular as leis, actos e decisões dos conselhos municipaes que forem contrarios às Federaes e do Estado. § 26 - Decidir os conflictos de jurisdição entre esses conselhos e o poder executivo do Estado. § 27 - Conceder subvenção, isenção e garantias e quaesquer companhias ou emprezas que tenham por fim promover o desenvolvimento industrial do Estado. § 28 - Garantir, por tempo limitado, aos autores e inventores direito exclusivo sobre suas obras e invenções e bem assim a exploração de qualquer industria nova de que possa resultar vantagem para o Estado. § 29 - Conceder licença ao Governador. § 30 - Representar ao Congresso e Governo Federaes contra toda e qualquer invasão no territorio do Estado, e bem assim contra as leis da União e as dos outros Estados, que attentarem contra seus direitos. § 31 - Marcar os vencimentos do Governador no ultimo anno de cada periodo governativo. § 32 - Legislar sobre organisação judiciaria e processual. § 33 - Legislar sobre hygiene publica e particular. § 34 - Legislar sobre assistencia publica, casas de caridade e destribuicão de soccorros.
CAPITULO III DAS LEIS E RESOLUÇÕES Art. 20 - Os projectos de lei podem ser propostos por qualquer membro do Congresso. Art. 21 - Os projectos de lei soffrerão tres discussões em dias diversos. Art. 22 - O projecto de lei approvado pelo Congresso será remetido ao Governador que, acquiescendo, o sanccionará e promulgará. § 1 - Si o Governador o julgar contrario a esta Constituição, à Federal, ou aos interesses do Estado, recusar-lhe-á a sancção dentro de dez dias, a contar d’aquelle em que recebeo o projecto e o devolverá n’este mesmo praso ao Congresso com os motivos da recusa. § 2 - Si até o ultimo dia do referido prazo, não for devolvido o projeto nos termos e pelo modo prescriptos neste artigo, considerar-se-á sanccionada a lei e como tal será promulgada, e no caso de ser a sancção negada quando já estiver encerrado o Congresso, o Governador dará publicidade às suas razões. § 3 - O projecto devolvido será sujeito a uma só discussão considerando-se approvado, se obtiver dous terços dos votos presentes, e neste caso será, como lei, promulgado pelo presidente do Congresso. § 4 - A sancção e a promulgação effectuam-se por estas formulas: 1a. O Congresso do Estado decreta e eu sanciono a seguinte lei ou resolução. 2a. O Congresso do Estado decreta e eu promulgo a seguinte lei (ou resolução). § 5 - A formula da promulgação feita pelo presidente do Congresso é a seguinte: F ... presidente do Congresso faz saber que o Congresso do Estado decreta e eu promulgo a seguinte lei (ou resolução). Art. 23 - Os projectos de lei, rejeitados pelo Congresso, ou não sancionadas, salvo o do orçamento, não poderão ser submetidos a discussão nem votados na mesma sessão. Art. 24 - O projecto de lei não pode ser sanccionado somente em parte. Art. 25 - O projecto não sanccionado poderá ser modificado no sentido das razões allegadas pelo Governador e voltar à sancção. Art. 26 - Os projectos de lei que versarem sobre interesse particular, aulio a emprezas e concessão de privilegios, e os não sancionadas só serão votados, achando-se presentes, pelo menos, dous terços dos membros do Congresso. Art. 27 - Na lei do orçamento não poderão ser incluidas disposições que não se relacionem com a receita e despeza do Estado, o que tenham caracter individual. TITUTLO III DO PODER EXECUTIVO CAPITULO I DO GOVERNADOR E VICE-GOVERNADOR Art. 28 - O poder executivo é delegado a um Governador, como chefe do Estado, eleito por quatro annos. § 1 - São condições essenciaes para ser eleito Governador: I - Ser brazileiro. II - Estar na posse dos direitos de cidadão brazileiro. III - Ser maior de trinta annos e menor de setenta. IV - Ter residencia effectiva no Estado pelo menos de quatro annos, salvo si for Parahybano. § 2 - O Governador será successivamente substituido em seus impedimentos temporarios ou falta por um primeiro, um segundo e um terceiro vice-Governador, pelo mesmo espaço de tempo e com os mesmos requesitos. abril/maio/junho/2014 |
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§ 3 - No impedimento ou falta dos vice-Governadores será o Governador substituido successivamente pelo presidente do Congresso e pelo do Superior Tribunal de Justiça. § 4 - No caso de vaga do Governador, por fallecimento, renuncia ou perda do cargo, não havendo decorrido dous annos do periodo administrativo, proceder-se-á a nova eleição para seu preenchimento, devendo o eleito servir pelo tempo que faltar para completal-o. § 5 - O periodo governamental começará no dia seguinte ao ultimo do periodo anterior. Art. 29 - O Governador não poderá ser reeleito para o período governamental immediato, nem tambem o vice-Governador que tiver estado em exercicio dentro dos doze mezes ultimos do periodo administrativo. § 1 - O Governador deixará o exercicio de suas funcções no mesmo dia em que terminar o periodo de seu governo, succedendo-lhe inmediatamente o recem-eleito. § 2 - Si o recem eleito estiver impedido ou ausente, a substituição se fará nos termos dos § § 2 e 3 do artigo 28. Art. 30 - O Governador ou vice-Governador em exercicio não poderá sahir do Estado sem permissão do congresso, e não estando este funccionando, sem licença do Superior Tribunal de Justiça, sob pena de perder o cargo. Art. 31 - O exercicio do cargo de Governador é incompativel com o .de outro qualquer emprego. Art. 32 - São inelegiveis para os cargos de Governador e vice-Governadores os parentes consaguineos ou affins até o terceiro gráo civil do Governador ou vice-Governador, que se achar em exercicio no momento da eleição, ou que o tenha deixado até doze mezes antes. Art. 33 - O Governador eleito, por ocasião de entrar em exercicio, pronunciará perante o Congresso, si este estiver funccionando ou, no caso contrario, perante o Superior Tribunal de Justiça, a seguinte affirmação: Prometto cumprir com lealdade os deveres inherentes ao meo cargo. Art. 34 - O Governador só perceberá metade de seus vencimentos quando temporariamente estiver fóra do exercicio por motivo legal, e o vice-Governador que o substituir perceberá a outra metade, tendo direito aos vencimentos integraes no caso de substituição definitiva. Art. 35 - O Governador não poderá acceitar qualquer emprego publico durante o periodo governamental, nem o lugar de representante da União ou de qualquer Estado, sob pena de perder o cargo. CAPITULO II DAS ATRIBUIÇÕES DO GOVERNADOR Art. 36 - Compete ao Governador do Estado: § 1 - Sanccionar, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções do Congresso e expedir ordens, decretos, instrucções e regulamentos para a sua fiel execução. § 2 - Nomear e demitir livremente os Secretarios de Estado. § 3 - Fazer arrecadar e applicar as rendas do Estado de accordo com o orçamento. § 4 - Dispor da força publica, conforme o exigir o interesse do Estado. § 5 - Nomear, remover, suspender e demitir os funccionarios publicos, tendo em vista as restricções expressas na Constituição. § 6 - Contrahir emprestimos e fazer quaesquer outras operações de credito autorisados pelo Congresso. § 7 - Representar ao Governo Federal contra os funccionarios
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da União residentes no Estado e bem assim requisitar o auxilio de forças federaes, a permanencia, retirada ou substituição das que estiverem no Estado, conforme for exigido pelo bem publico. § 8 - Convocar extraordinariamente o Congresso, quando o bem publico o exige. § 9 - Indicar em sua mensagem ao Congresso as providencias e reformas que julgar convenientes. § 10 - Commutar e perdoar as penas nos crimes sujeitos à jurisdição do Estado, salvo a disposição do § 18 do artigo 19. § 11 - Promover o bem geral do Estado. § 12 - Mandar proceder a eleição, no caso de vaga de deputado, no praso maximo de dous mezes. § 13 - Decretar soccorros ou despezas extraordinarias em caso de calamidade ou perigo publico, sujeitando o acto à approvação do Congresso na sua primeira reunião. § 14 - Decidir os conflictos de jurisdição administrativa. § 15 - Mandar proceder a eleição de Governador no caso do § 4º do artigo 28, no prazo maximo de dous mezes. § 16 - Dispensar, no intervallo das sessões do poder legislativo, no caso de que trata o § 19 do artigo 19, as formalidades que garantem a liberdade individual dos cidadãos, convocando immediatamente o Congresso para que este resolva sobre seu acto. Art. 37 - Incumbe ao Governador: 1 - Prestar as informações e esclarecimentos que lhe forem exigidos pelo Congresso. 2 - Apresentar annualmente ao Congresso um relatorio minucioso do estado dos negocios publicos e bem assim as propostas de orçamento e fixação da força policial. CAPITULO III DA RESPONSABILIDADE DO GOVERNADOR Art. 38 - O Governador do Estado será submettido a processo e julgamento, pelos crimes de responsabilidade, perante o Congresso e, pelos crimes communs, ante o Superior Tribunal de Justiça, depois que o Congresso declarar procedente a accusação. § Unico - Quer n’um quer n’outro caso, uma vez decretada a procedencia da accusação, ficará o Governador suspenso de suas funcções. Art. 39 - São crimes de responsabilidade os actos do Governador que attentarem contra: 1 - A Constituição do Estado. 2 - O livre exercicio dos poderes politicos. 3 - O goso e exercicio legal dos direitos politicos e individuaes. 4 - A segurança interna do Estado. 5 - A probidade da administração. 6 - A guarda e emprego constitucional dos dinheiros publicos. 7 - As leis orçamentais votadas pelo Congresso. § Unico - Os crimes mencionados neste artigo são os definidos no Codigo Penal da Republica, e o Congresso na sua primeira sessão annual regulará a forma do processo. CAPITULO IV DOS SECRETARIOS DE ESTADO Art. 40 - O Governador do Estado é auxiliado por Secretarios de Estado de sua exclusiva e pessoal confiança, os quaes lhe referendão os actos. Art. 41 - Os Secretarios de Estado não poderão ser eleitos Governadores ou vice-Governador, até seis mezes depois de deixar o cargo.
Art. 42 - Os Secretarios de Estado são responsaveis unicamente pelos actos que expedirem em seu nome. § Unico - Nos crimes communs e de responsabilidade serão processados e julgados pelo Superior Tribunal de Justiça e nos connexos com os do Governador pela autoridade competente para o julgamento d’este. TITULO IV DAS ELEIÇÕES Art. 43 - Os deputados ao Congresso serão eleitos por voto directo em todo o Estado. Art. 44 - O modo, processo d’essa eleição e o alistamento dos eleitores serão regulados em uma lei especial. Art. 45 - A eleição de Governador e vice-Governador será feita por suffragio popular directo e terá lugar no dia primeiro de Maio do ultimo anno do periodo governamental. § 1 - Cada eleitor votará em um cidadão para Governador e trez para primeiro, segundo e terceiro vice-Governadores, em duas urnas e por duas cédulas distinctas. Do trabalho eleitoral lavrar-se-á a uma acta circunstanciada, da qual serão extrahidas duas copias e remetidas, uma ao Conselho Municipal e outra ao respectivo Prefeito. § 2 - O Conselho Municipal fará apuração dos votos recebidos no municipio e, da acta geral que então lavrar, extrahirá duas copias authenticas, cujo teor será logo publicado pela imprensa e, na falta, por edital; e fechadas e lacradas serão remettidas, uma ao Governador do Estado e a outra ao Presidente do Congresso. § 3 - Reunido este em sessão ordinaria, ou extraordinaria, si for preciso, a meza abrirá as authenticas, fará a somma dos votos e o Presidente proclamará Governador do Estado do Parahyba o cidadão que, na respectiva votação, reunir maioria absoluta de suffragios, e primeiro, segundo e terceiro vice-Governadores os trez cidadãos que, na outra votação, reunirem aquella maioria. § 4 - Si nenhum tiver obtido essa maioria, ou si somente um ou dous a tiverem attingido, o Congresso elegerá o Governador ou cada um dos vice-Governadores, por maioria dos votos presentes, dentre os cidadãos que occuparem os dous primeiros logares na respectiva votação. § 5 - Em caso de empate decidirá a sorte. § 6 - O processo de que trata este artigo nos §§ 4º e 5º começará e findará na mesma sessão do Congresso. TITULO V DO PODER JUDICIARIO Art. 46 - O poder judiciario terá por orgãos: 1 - Um Superior Tribunal de Justiça. 2 - O Jury criminal e Tribunaes correccionaes. 3 - Juizes de Direito. 4 - Juizes Districtaes. Art. 47 - Uma lei ordinaria determinará as funcções e competencia de cada um d’esses orgãos, bem como a organisação dos Tribunaes, de modo que, de todas as causas civeis decididas em ultima instancia pelos juizes singulares, caiba recurso de revista para o Superior Tribunal. Art. 48 - Em cada circumscripção judiciaria em que funcionar o Juiz de Direito haverá um Procurador de Justiça, que terá as mesmas atribuições dos actuaes Promotores publicos e exercerá cumulativamente as funcções de Curador de orphãos, ausentes e interdictos. Art. 49 - O Superior Tribunal de Justiça será composto de cinco
membros, com a denominação de Dezembargadores e terá sua séde na capital do Estado. Art. 50 - Os membros do Tribunal de Justiça, os Juizes de Direito e os Procuradores da Justiça são nomeados pelo Governador, observadas as seguintes condições: I - Os membros do Tribunal de Justiça, por accesso entre os Juizes de Direito, na ordem da antiguidade. Sendo esta igual, prevalecerá a dor serviço na Magistratura e em ultimo caso a antiguidade em funcções publicas. II - Os Juizes de Direito, dentre os bachareis em sciencias juridicas por qualquer das faculdades officiaes da União, ou a ellas equiparadas por lei, que tiverem, pelo menos, quatro annos de exercicio do cargo de Procurador da Justiça, ou de qualquer outro cargo judiciario, Federal ou dos Estados. III - Os procuradores da Justiça dentre os cidadãos de reconhecida aptidão e moralidade, devendo ser preferidos os diplomados em direito. Art. 51 - É garantida à Magistratura a sua completa independencia. Os Magistrados só por sentença condemnatoria passada em julgado, perderão os seus cargos e poderão ser removidos, salvo a seu pedido, ou quando a sua permanencia na localidade seja inconveniente à ordem publica, sob decisão, neste caso, do Tribunal de Justiça. § Unico - Consideram-se Magistrados os Dezembargadores e os Juizes de Direito. Art. 52 - O Superior Tribunal de Justiça elegerá annualmente de seu seio o seu presidente. § Unico - Os empregados da respectiva secretaria serão nomeados pelo Superior Tribunal, a quem competirá também o provimento dos officios de justiça por meio de concurso. Art. 53 - Os membros do Superior Tribunal de Justiça serão julgados nos crimes communs pelo mesmo Tribunal. Art. 54 - O Governador designará annualmente um dos membros do Superior Tribunal de Justiça para servir o cargo de Procurador Geral da Justiça do Estado. Art. 55 - Os Juizes de Direito, nos crimes communs e de responsabilidade, serão processados e julgados pelo Superior Tribunal de Justiça. Art. 56 - Os Juizes de Direito serão substituidos por supplentes nomeados pelo Governador. Art. 57 - O Juiz de Direito, cuja cricumscripção judiciária for supprimida, perceberá o ordenado que lhe competir por lei. § Unico - Restaurada a circumscripção, para ella voltará o Juiz de Direito, salvo declaração sua em contrario, no caso de lhe ter sido já designada outra. Art. 58 - Em cada districto em que se dividir o município haverá um Juiz Districtal e dous substitutos eleitos triennalmente por suffragio directo. Art. 59 - Os Procuradores da Justiça serão nomeados por quatro annos, podendo ser recondusidos, e só por sentença condemnatoria, passada em julgado, perderão os seus cargos e não poderá ser removidos, salvo a seu pedido, ou quando a sua permanencia na localidade seja inconveniente à ordem publica, ouvido o Procurador Geral da Justiça. Art. 60 - Sempre que as partes preferirem, dar-se-á o julgamento por arbitros nas questões em que não forem interessados menores, orphãos, interdictos ou a fazenda publica. Art. 61 - O Congresso fixará e não mais poderá reduzir os vencimentos dos magistrados. Art. 62 - O Jury civil poderá ser organisado quando julgar opportuno o Congresso ordinario. abril/maio/junho/2014 |
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TITULO VI DO MUNICIPIO Art. 63 - O Estado será dividido administrativamente em municipios, cuja séde, numero e limites serão determinados em lei ordinaria. Art. 64 - Na direcção de seus negocios peculiares será autonomo, uma vez que não infrinja as leis federaes e do Estado. Art. 65 - O Governo do Estado póde intervir nos negocios do municipio: I - Quando as deliberações dos funccionarios municipaes forem contrarias à Constituição e às leis federaes e do Estado. II - Quando estas deliberações offenderem direitos de outro municipio que reclame. Art. 66 - Cada municipio terá um Conselho Municipal, eleito por tres annos pelo systema eleitoral que for adoptado por lei ordinaria, e será composto de nove membros, na capital e de sete em todos os outros. § Unico - É gratuito o cargo de membro desses conselhos. Art. 67 - O Conselho Municipal elegerá annualmente de seu seio o seu presidente, organisará o regimen de seus trabalhos, nomeará, suspenderá e demitirá os funccionarios de sua secretaria e determinará as attribuições e vencimentos destes, devendo somente haver uma sessão ordinaria annualmente. Art. 68 - Ao Conselho Municipal compete deliberar sobre: I - Receita e despeza municipal, lançando os impostos indispensaveis, sem contravenção às leis do Estado. II - Emprestemos que o municipio precise contrahir, sob sua responsabilidade, para ocorrer as despezas com os serviços municipaes. III - Arrendamento, foro, troca e alienação dos bens moveis e immoveis do municipio. IV - Applicação, arrematação e fiscalisação das rendas municipaes, organisando o a competente escriputração. V - Obras publicas municipaes, illuminação, abastecimento e distribuição das aguas. VI - Policia municipal salubridade, vaccinação e revaccinação, limpeza e aformoseamento das cidades, villas e povoações. VII - Construcção e conservação dos cemiterios, viação publica e meios de transporte. VIII - Casa de beneficência publica, escolas de qualquer gráo, sendo o ensino primario gratuito e leigo, e ficando garantido aos particulares o direito de ensinar independente de licença. IX - Theatros, logradouros, mercados, feiras, cadeias e serviço de extincção de incendios. X - Desapropriação por utilidade municipal mediante previa indemnisacão por ajuste ou arbitramento, de conformidade com as leis do Estado. XI - Organisação dos differentes serviços municipaes, creando os empregos necessarios e regulando por acto especial as condições de nomeação, vencimento, exercicio, suspensão e demissão dos empregados dos municipios. XII - Reclamações ao Governador do Estado contra os abusos prejudiciaes aos direitos do municipio praticados por qualquer autoridade de hierarchia não municipal e proceder contra ella, sendo caso d›isso, para ser punida e indemnisado o municipio. XIII - Organisação da estatística, fazendo arrolar de cinco em cinco annos, a população do municipio com indicações relativas à extensão territorial, recursos industraes e agriculas, instrucção e movimento dos diversos serviços da municipalidade. XIV - Favores tendentes aos melhoramentos de caracter municipal.
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XV - Divisão do territorio do municipio em districtos. XVI - Comminar multas até sessenta mil réis. XVII - Finalmente sobre tudo que disser respeito à vida econômica e administrativa do municipio e não contrariar às leis Federaes e do Estado e aos direitos dos municipes. Art. 69 - Alem do Conselho, cada municipio terá um Prefeito, que representará o poder executivo municipal e será eleito na mesma occasião pelo mesmo tempo e forma por que o fôr o Conselho Municipal e substituido, em seus impedimentos por um sub-Prefeito, eleito na mesma ocasião. Art. 70 - Alem das attribuições que possam ser conferidas ao Prefeito pela lei organica municipal, compete-lhe: I - Executar e fazer executar as deliberações do Conselho devidamente promulgadas. II - Superintender todos os serviços do municipio. III - Fazer arrecadar a receita municipal por intermedio de agentes de sua confiança. IV - Nomear, suspender e demitir os empregados não electivos do municipio, excepto os da secretaria do Conselho. V - Ler em sessão do Conselho uma exposição das necessidades do municipio e das occurrencias mais notaveis que se tiverem dado nos intervallos das sessões. VI - Ordenar as despezas com os serviços determinados pelo Conselho e autorisar o seu pagamento pelo cofre da municipalidade. VII - Formular a proposta do orçamento municipal, o balanço e contas do exercicio anterior para serem presentes ao Conselho. VIII - Convocar extraordinariamente o Conselho quando o interesse publico o exigir. Art. 71 - Julgando o Prefeito que alguma deliberação do Conselho é prejudicial ao bem do municipio, poderá suspender a sua execução, apresentando ao dito Conselho os motivos por que assim procedeu. Art. 72 - O Conselho, tomando conhecimento das rasões de não execução, resolverá por votação de dous terços de seus membros, si deve ou não ser mantida a sua deliberação. Art. 73 - As funcções do Prefeito poderão ser remuneradas, mediante porcentagem de arrecadação ou ordenado fixo, arbitrado pelo Conselho Municipal no triennio anterior ao em que houver de servir o Prefeito. Art. 74 - O Prefeito não poderá ser eleito para o triennio seguinte. Art. 75 - Os Conselhos de dous ou mais municipio limitrophes poderão se reunir em Conselho regionaes para resolverem sobre serviços de interesse commum. Art. 76 - Um municipio só poderá ser annexado a outro se o requerer por intermedio de seu Conselho. Neste caso é o Congresso o competente para decretar a annexação. Art. 77 - Uma lei do Congresso ordinario, em sua primeira reunião, fará a discriminação das rendas do Estado e do municipio. Art. 78 - Os bens e rendas municipaes não são sujeitos a execução e quando os Conselhos forem condemnados a pagar alguma divida, ou tenham que cumprir alguma obrigação, incluirão nos orçamentos a quantia necessaria para satisfazer o debito. § Unico - Si esta formalidade for preterida, ou si o pagamento não se effectuar, os membros que derem causa a omissão ou o Prefeito que não effectuar o pagamento, ficarão pessoal e civilmente responsaveis. Art. 79 - Os membros dos Conselhos municipaes e os Prefeitos responderão perante o Juiz de Direito pelos crimes praticados no exercicio de suas funcções, com recurso necessario para o Superior Tribunal de Justiça do Estado.
Art. 80 - A fazenda municipal terá acção executiva nos mesmos casos que a do Estado. TITULO VII DOS CIDADÃOS E DAS GARANTIAS DE SEUS DIREITOS Art. 81 - São cidadãos parahybanos todos os que houverem nascido no terrritorio do Estado do Parahyba do Norte. Art. 82 - A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residente no Estado, a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 1 - Ninguém póde ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, sinão em virtude de lei. § 2 - Todos são iguaes perante a lei. § 3 - Nenhuma lei será decretada sinão por utilidade publica e em caso algum terá effeito retroactivo. § 4 - É garantida a mais ampla liberdade na manifestação das opiniões sobre qualquer assumpto, pela imprensa, pela tribuna e por qualquer outro meio, com a responsabilidade criminal, que a lei estabelecer, de quem abusar d’essa liberdade. § 5 - A casa do cidadão é um asylo inviolavel, no qual ninguem pode penetrar de noite, sem o seu consentimento, sinão em caso de desastre ou crime, a cuja victimas seja preciso acudir, nem de dia, sinão nos casos e pela forma determinada na lei. § 6 - A excepção do flagrante delicto, ninguem pode ser preso sinão por ordem escripta da autoridade competente, nem conservado na prisão sem culpa formada, sinão nos casos determinados na lei. § 7 - Ninguém será conduzido à prisão, ou n’ella detido, si prestar fiança idonea, nos casos em que esta tem logar. § 8 - Ninguém será sentenciado sinão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ella prescripta. § 9 - É garantido, em sua plenitude, o direito de habeas corpus e a respectiva ordem em caso algum deixará de ser immediatamente cumprida. § 10 - É garantido a todos o direito de associarem-se e reunirem-se livremente, não podendo a policia intervir, sinão no caso de perturbação de ordem publica. § 11 - É garantido a todos o direito de petição e representação a qualquer autoridade do Estado ou da União. § 12 - Todos os cultos religiosos podem ser professados e exercidos livremente, uma vez que não offendam à moral publica e aos bons costumes; nenhum delles será adoptado nem subvencionado pelo Estado. § 13 - É garantida a liberdade de todas as industrias e profissões que não forem incompativeis com a moral publica e os bons costumes. § 14 - Em tempo de paz, todos podem entrar e sahir do territorio do Estado com sua fortuna e bens, quando e como lhes convenha e sem dependencia de passaporte. § 15 - É garantido o direito de propriedade em sua plenitude, com a unica restricção da desapropriação por utilidade publica, mediante indemnisação previa, pela forma que a lei estatuir. § 16 - Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. § 17 - A lei proporcionará aos accusados a mais plena defeza, estabelecendo formulas que a facilitem e garantam. § 18 - É inviolavel o segredo das cartas e tellegrammas. § 19 - É garantida aos inventores a propriedade de suas invenções.
§ 20 - Todo o cidadão pode ser admittido aos cargos publicos, sem outra preferencia que não seja a de suas habilitações e virtudes. § 21 - É garantida a propriedade literaria. § 22 - Nenhum imposto poderá ser cobrado sinão em virtude de uma lei que o autorise. Art. 83 - A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclue outras não enumeradas, mas resultantes da forma do Governo que ella estabelece e dos principios que consigna. TITULO VIII DA REFORMA DA CONSTITUIÇÃO Art. 84 - Esta Constituição só poderá ser reformada por iniciativa do Congresso ou dos Conselhos Municipaes. § 1 - Considerar-se-á proposta a reforma quando o pedir uma terça parte, pelo menos, dos membros do Congresso ou quando for solicitado por dous terços dos municipios, representado cada municipio pela maioria de votos de seu Conselho. § 2 - Em qualquer dos casos acima, a proposta será no anuo seguinte submettida a tres discussões, considerando-se approvada, si obtiver em cada uma dellas dous terços dos votos dos membros do Congresso. § 3 - A proposta approvada será publicada com as assignaturas do Presidente e Secretarios do Congresso, sendo de accordo com ella modificada a parte reformada. TITULO IX DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 83 - Nenhum dos tres poderes do Estado será exercido cumulativamente com qualquer dos outros. Art. 86 - Todos os funccionarios publicos são responsaveis judicialmente pelos abusos e omissões que commetterem no exercicio de suas funções assim como pela indulgencia ou negligencia em não responsabilisarem effectivamente os seus subalternos. Art. 87 - Continuam em vigor as actuaes disposições legaes de direito privado, a legislação processual, administrativa, financeira e policial e bem assim as leis, regulamentos e contractos da antiga Provincia e do Governo do Estado no que implicita ou explicitamente não forem contrarios a esta Constituição, até que sejam revogados, alterados ou rescindidos pelos poderes competentes. Art. 88 - O serviço de segurança do Estado é um ramo da administração superior, ao qual incumbe a manutenção da ordem, da paz e da tranquilidade publica. § Unico - Para esse serviço terá o Estado uma policia com a organisação que uma lei ordinaria estabelecer. Art. 89 - Não se poderá, sob prestexto algum, fazer deducção nos vencimentos dos funccionarios. Art. 90 - Terão fé publica no Estado os documentos officiaes, devidamente authenticados, do Governo Federal ou dos outros Estados. Art. 91 - Quando não tiver sido votada a lei do orçamento vigorará a do exercicio anterior. Art. 92 - Todas as vezes que o Congresso funccionar como Tribunal de Justiça, será presidido pelo Presidente deste Tribunal. Art. 93 - Quando em algum municipio se perpetrarem crimes, que, por sua gravidade, numero de culpados ou patrocino de pessoas poderosas, tolham a acção regular das autoridades locaes, o Governador determinará que algum magistrado para ali se transporte temporariamente a fim de proceder a inquerito e formação da culpa, inclusive a pronuncia de abril/maio/junho/2014 |
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criminosos com recurso necessario para o Superior Tribunal de Justiça. Art. 94 - É concedida a extradição de criminosos reclamado pelas Justiças dos outros Estados ou do Districto Federal, de accordo com as leis. Art. 95 - As condições para o cidadão ser eleitor são as mesmas prescriptas na Constituição Federal. Art. 96 - O Representante do Congresso do Estado, que for eleito para o Congresso Federal optará por um dos dous mandatos. Art. 97 - Qualquer funccionario publico contrahirá compromisso formal de bem cumprir os deveres inherentes ao cargo, antes de entrar em exercício. Art. 98 - Uma vez constituidos os municipios, nos termos do art. 63, só se poderão constituir outros com territorio que contenha quinze mil habitantes, pelo menos, comtanto que aquelles não fiquem com menor população. Art. 99 - Não haverá contencioso administrativo. Art. 100 - É garantida a divida do Estado. Art. 101 - Nenhum empregado poderá accumular vencimentos, sejam elles pagos pelos cofres da União, do Estado ou municipio. Os aposentados ou reformados que exercerem qualquer cargo remunerado, optarão pelo vencimento da reforma ou aposentadoria, ou pela remuneração do que exercer. Art. 102 - A aposentadoria só poderá ser concedida aos funccionarios publicos em caso de invalidez absoluta no serviço do Estado ou dos municipios, sendo esta provada por junta medica, nomeada pelo Governador do Estado ou pelo Prefeito dos respectivos municipios. Art. 103 - É permitido o exercicio de advogacia a qualquer cidadão que, por exame prestado no Tribunal de Justiça, for habilitado para essa profissão.
DISPOSIÇÕES TRANSITORIAS
Art. 1 - O Congresso ordinario, logo em suas primeiras sessões preparatorias, descriminará, pela ordem de votação, a turma de seus membros, cujo mandato ha de cessar no primeiro biennio. Art. 2 - Emquanto por lei ordinaria não forem definitivamente arbitrados os vencimentos do Governador, este perceberá doze contos annualmente. Art. 3 - O periodo Governamental do actual Governador e vice-Governadores terminará em 31 de dezembro de 1895. Art. 4 - A primeira organisação da magistratura do Estado será feita pelo Governador, sem dependencia das condições contidas nesta Constituição, contemplando quanto lhe permitir a conveniencia do serviço publico os actuaes Juizes de Direito. Art. 5 - Fica o Governador autorisado, desde já, a reformar as repartições do Estado, organisando as suas secretarias, de modo mais conveniente ao publico serviço e bem assim a fazer a organisação judiciaria. Art. 6 - As incompatibilidades estabelecidas no art. 14 desta Constituição não prevalecerão na actual legislatura. Art. 7 - À proporção que os municipios se forem organisando, o Governo do Estado entregar-lhes-á a administração dos serviços que por lei lhes competirem.
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Art. 8 - Para marcar o ordenado ou porcentagem de que trata o art. 73, é competente no 1º triennio o Conselho Municipal, em sua primeira sessão ordinaria. Art. 9 - As funcções dos actuaes Intendentes Municipaes passarão a ser gratuitas de 1º de janeiro de 1892 em diante. Art. 10 - Até a definitiva organisação dos municipios, o Governador do Estado continuará a ter nos negocios municipaes a mesma intervenção que actualmente tem. Art. 11 - Vigorará o actual orçamento do Estado, enquanto outro não fôr votado pelo Congresso. Art. 12 - O municipio que, dentro de um anuo, não se organisar, será annexado a outro por acto do Congresso. Art. 13 - Emquanto não houver lei do Estado regulando o processo eleitoral, vigorarão, no que não fôr contrario a esta Constituição, os actuaes e vigentes decretos e regulamentos para as eleições de todos os funccionarios electivos do Estado e do municipio. Art. 14 - Promulgada a Constituição, o Congresso dará por terminada a sua missão constituinte e encetará seus trabalhos legislativos ordinarios no dia 1º de outubro do corrente anno. Art. 15 - A primeira sessão do Congresso ordinario durará tres mezes. Art. 16 - A promulgação desta Constituição será feita pela mesa do Congresso sendo o original assignado pelos membros presentes. Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução desta Constituição pertencer, que a executem e façam executar e observar fiel e inteiramente como nella se contem. Publique-se e cumpra-se em todo o Estado. Sala das sessões do Congresso Constituinte do Estado do Parahyba do Norte, aos cinco de Agosto de mil oitocentos e noventa e um, terceiro da Republica dos Estados Unidos do Brazil. Manoel da Fonseca Xavier de Andrade, Presidente - Amaro Gomes Carneiro Gomes Beltrão, vice-Presidente - José Cavalcante de Arruda Câmara, 1º Secretario - Antônio Gervasio Alves Saraiva, 2º dito - Maximiano José de Inojosa Varejão - Dr. Antônio Marques da Silva Mariz - Pedro da Cunha Pedrosa - José Lopes Pessoa da Costa - Dr. Francisco Alves de Lima Filho - Francisco Alves da Nóbrega - Dr. Flavio Ferreira da Silva Maroja - Abdias da Costa Ramos - João Pereira de Castro Pinto - Antônio Hortencio Cabral de Vasconcelos - Anezio Augusto de Carvalho Serrano - Ernesto Augusto da Silva Freire - Joaquim Gonsalves Rolim - João Gualberto Gomes de Sá - Manoel Ildefonso de Oliveira Azevedo Filho - Vicente Saraiba de Carvalho Neiva - Augusto Emilio da Fonseca Galvão - Antônio Massa - José Herculano Bezerra Luna - Augusto Carlos de Amorim Garcia - Francisco Xavier Junior - Antônio Gomes de Arruda Barreto - Francisco Olavo de Medeiros - Francisco José do Rosário - Chistiano Lauritzen.
(*) Todo o processo de elaboração da primeira constituição do Estado da Paraíba se acha relatado no capítulo I do livro História Constitucional da Paraíba, de autoria do acadêmico e historiador Flávio Sátiro Fernandes, (Belo Horizonte, 2009, Editora Fórum)
POESIA CINCO POEMAS DE LUIZ FERNANDES DA SILVA
Enigmas dos Dias Descobri no enigma dos dias os teoremas acorrentados nas palavras embaralhadas no eixo do tempo. Gravitei em silêncio nas marchas da inauguração e neste pesadelo inventei na dimensão do horizonte o diálogo, os pensamentos e na magia do diálogo busquei todos os fragmentos da visão.
Exílio do Silêncio No entardecer escrevo os sentimentos nas asas das palavras traço símbolos na paisagem solitária. Os gestos ferem as mãos e meus dedos fazem palavras. meus olhos buscam imagens no ruído da tarde e no declínio do tempo busco os caminhos do exílio do silêncio.
Peregrino do Tempo Sou peregrino do tempo semente do pássaro, esperança do futuro e pensamento maior. Asas do vento em busca da essência da vida. Sou Facho humano, Leveza do corpo, Vida num sopro só, Um homem recolhido No silêncio da própria palavra Sou Alquimia do cotidiano Soletrando a própria palavra Sou Alquimia do cotidiano Soletrando o símbolo eterno Dos movimento humanos.
Os traços
Navegando No barco sem rumo navego solidão abraço o nada navego o impossível o imaginário fica paralisado pelas gaivotas. a brisa fica na sinopse do oceano palavra e os gestos ficam a sombra dos coqueiros de unhas imaginárias, A solidão fica No pensamento das obras, O tempo navega no Mar das imprevisões
Traço nos minutos do tempo a paisagem da tarde, o caminho já trilhado, gesto eternizado nas ondas da meditação, busco em cada frase os fragmentos da visão, Exponho meus gestos nas pálpebras do instante descubro as ideias na cilada do momento. Escrevo o exercício do ofício, soletro o diálogo e na leveza da visão encontro os desenhos nos fios da memória
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LITERATURA
AUGUSTO DOS ANJOS E ALFREDO PIMENTA: UMA COMPARAÇÃO Chico Viana
Entre os autores quem teriam influenciado Augusto dos Anjos, há quem aponte o escritor português Alfredo Pimenta, que em 1904 lançou um livro com título igual ao do poeta paraibano — Eu. A propósito da possível relação entre eles, e comentando a originalidade de Augusto, Antônio Houaiss escreve: “Há os que o remontam, pelo título, ao outro Eu que teria sido publicado no início do século por Alfredo Pimenta em Portugal, ‘enciclopédia viva’, segundo M. Rodrigues Lapa — livro considerado raridade bibliográfica, que adoraria ter a oportunidade de ler — se o há entre nós.” 1 Graças à generosidade do poeta e crítico Gilberto Mendonça Teles, tivemos acesso ao livro do erudito português, o qual foi por nós xerografado. E agora nos propomos, neste breve artigo, a confrontá-lo com a obra do paraibano, a fim de rastrear diferenças e pontos em comum. Interessa-nos responder, basicamente, às seguintes questões: teria o Eu do poeta português influenciado a obra homônima de Augusto dos Anjos, a qual veio a público em 1912, ou seja, oito anos depois que Pimenta publicou o seu livro? Se tal aconteceu, até que ponto podemos considerar essa obra como precursora do livro do paraibano? Haverá algo mais do que uma coincidência de títulos? A identidade dos títulos, obviamente, não bastaria para que se confirmasse a influência de um sobre o outro — embora ela nos chame muito a atenção. Não apenas pelo conteúdo, representado pelo solitário pronome pessoal, como também pelo aspecto gráfico. Tal como no livro de Augusto, a palavra “Eu” aparece, no de Alfredo Pimenta, destacada em vermelho contra um fundo amarelo. Mas seria isto suficiente para confirmar a propalada filiação? Mais do que tal semelhança gráfica, certamente, outro fator terá concorrido para sugerir essas afinidades. Referimo-
-nos à época em que viveram, ao clima ideológico a que estiveram expostos e, sobretudo, à resposta que deram -- ou buscaram dar — aos apelos intelectuais do seu tempo. Tais apelos se resumiam, sumariamente falando, na crise provocada pela influência da filosofia positiva, matriz de um realismo ou de um objetivismo a que, não raro, correspondia um impulso alternativo, antitético, de inspiração subjetivista e espiritual. Vivendo no final do século XIX, ambos assimilaram a seu modo o positivismo. Augusto dos Anjos foi um positivista tortuoso, que diluiu os conceitos de Spencer, Leibniz e Haeckel em imagens de desesperada melancolia. Pode-se dizer que, sendo sobretudo poeta, ele traiu o “credo” cientificista; usou a ciência como instrumento, acervo fonético, lexical e semântico com que, em outra dimensão da linguagem, viria a perpetrar as suas imagens. Alfredo Pimenta, sensível ao ideário positivista, vivenciou-o sobretudo no plano intelectual. Sentimentalmente, conforme veremos, foi um romântico. O positivismo, para ele, era a base de um realismo que, em verdade, não praticou — ou praticou mal. A base de um realismo que o fazia admirar Guerra Junqueiro, a quem oferece o Eu, e se torna perceptível, entre outros traços, na acerba crítica ao clero, ao governo e aos poetas “creadores de bibelots”. Como também no desejo de conceder à sua arte uma função pedagógica e revolucionária; “... o verdadeiro papel da Arte é ir à frente das Revoluções, preparando o terreno, educando os espíritos” (160),2 afirma ele em texto explicativo inserido no final de sua obra. A poes ia de Alfredo Pimenta reflete, em níveis desiguais, o conjunto de ideias que influenciaram o pensar e o sentir na virada do século. Sintomaticamente, o escritor divide o seu livro em três partes: “Amor”, “Phantasias” e “Revolução”. Nas
HOUAISS (1973) p. 47 Os números entre parênteses, após as transcrições, referem-se aos títulos de Alfredo Pimenta e Augusto dos Anjos indicados na Bibliografia.
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duas primeiras, dedica-se basicamente a, dentro de um figurino romântico, cantar a figura da mulher. Na última, conforme o subtítulo sugere, direciona o seu estro à exaltação do ideal revolucionário, com vistas à redenção social dos oprimidos. A propósito dessa divisão, ele afirma: “Foi aos versos que formam a terceira parte que eu dediquei toda a minha força, toda a minha Alma.” (162). Quanto ao resultado poético, no entanto, essa terceira parte é a mais fraca do seu livro. Repetitiva e um tanto ingênua, ela se ressente, o mais das vezes, de um idealismo maniqueísta. E apresenta imagens como esta: “Ó Liberdade! ó luz hystérica que abrasas/ A Luz do nosso olhar e o lar das nossas casas!”, típica de uma recepção caótica do conjunto de tendências que vigoravam na época em que ele viveu. O Eu de Alfredo Pimenta, conjugando ao romantismo elementos realistas e decadentistas, parece a nós um produto esteticamente híbrido e indeciso. O poeta não consegue unificar as tendências que perfilha, ou seja, não logra revelar-se a nós como uma definida e bem caracterizada individualidade poética. Confrontando o livro do português com o de Augusto dos Anjos, damo-nos conta de algumas curiosas coincidências. Tanto um como o outro tematizam, por exemplo, a dor e a mágoa. Mas, enquanto Augusto dos Anjos identifica na mágoa um travo maiúsculo e definitivo, de ressonâncias metafísicas, o qual se constitui em marca da falta (mácula) humana — Alfredo Pimenta enaltece, preponderantemente, a mágoa na mulher. A mulher que chora — a mulher magoada — aparece, em sua lírica, como uma imagem de obsessivo apelo emocional. Assim é que, no primeiro dos sonetos nomeados de “Santificação da mágoa”, ele refere a certa altura: “Tudo em ti me revela uma tristeza/ Filha da grande dor da natureza,/ Bendita e santa irmã da humana dor!” (p. 14). E,
no segundo deles, remata o terceto final com estes versos: “Que a tua dor, Mulher, seja infinita!/ Pois quanto mais sofreres, maior serás!” Em Augusto dos Anjos, a dor merece um hino. Ela é tratada, segundo a perspectiva cristã, como um ganho do espírito e, sobretudo, como um instrumento de ascese, conforme se pode constatar nos versos com que ele inicia o seu “Hino à dor”: “Dor, saúde dos seres que se fanam,/ Riqueza da alma, psíquico tesouro,/ Alegria das glândulas do choro/ De onde todas as lágrimas emanam....”. Observe-se como o soneto termina: “E, assim, sem convulsão que me alvoroce,/ Minha maior ventura é estar de posse/ De tuas claridades absolutas!”. É perceptível como, no português, a dor é concebida sentimentalmente e particularizada, enquanto expressão, no semblante da mulher. No paraibano, a dor aparece antes de tudo como grandeza do espírito e veículo de elevação humana. Ambos os autores cantam, ou lamentam, a figura da meretriz. Em Alfredo Pimenta, o drama das prostitutas decorre basicamente da insensibilidade social. Descritas também em cores românticas, ideais, elas aparecem como “...aquelas cujo amor sagrado/ Alguém estrangulou!”(112). São vítimas dos filhos da burguesia, que as desfrutam em alcovas noturnas mas, em outras circunstâncias, hipocritamente as detratam e desprezam. Confronte-se, a propósito, esta passagem do poema “Fala das prostitutas”: “À luz crua do sol, a populaça/ Insulta-nos com vaias.../ Mas, quando é noite, mísera e devassa, / Vem comprar-nos o corpo e a desgraça,/ Vem beijar-nos as saias!// Filhos-família, quando acompanhados,/ Não nos conhecem, não!/ E à hora dos fantasmas evocados,/ Vêm pedir-nos o leito embriagados,/ E pedem-nos perdão!. (Ibidem). Bem diversa é a pintura que Augusto dos Anjos faz da meretriz. Comparando-se os dois retratos, tem-se uma idéia aproximada do quanto separa o paraibano do português. No segundo, como vimos, o protesto social se ampara em referências ideais e num discreto apelo emotivo. Em Augusto não há complacência ou meias tintas. Descrita em traços concretos, e com enorme vigor expressivo, a prostituta aparece antes como a “funcionária dos instintos”, cujo apetite carnal, transgressivo e vicioso, aparenta-a antes ao animal do que ao ser humano. Vítima da desigualdade social (mas, sobretudo, do “vício” característico da espécie humana), ela como que “se vinga” promovendo uma irônica
identificação entre os que a procuram — conforme se pode observar no fragmento a seguir: “É a meretriz que, de cabelos ruivos,/ Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos/ Na mesma esteria pública, recebe,/ Entre farraparias e esplendores,/ O eretismo das classes superiores/ E o orgasmo bastardíssimo da plebe!// É ela que (...)/ Sente, alta noite, em contorções sombrias,/ Na vacuidade das entrahas frias/ O esgotamento intrínseco da besta!” Outras semelhanças, com as suas correspondentes diferenças, nos chamam a atenção. Num longo poema de inspiração social, e sem título, Alfredo Pimenta tematiza a “legião dos desgraçados” que têm de batalhar o pão de cada dia. No realismo com que descreve homens e ambiente, chega a lembrar Cesário Verde, com o qual mais de um crítico já aproximou Augusto dos Anjos. Em determinado quarteto Pimenta escreve, a propósito de seus “magros e famélicos”: “Uma tosse satanica os abala;/ Cospem escarros tysicos vermelhos...” (134). Essa passagem nos lembra outra de “As Cismas do Destino”, de Augusto, que também se refere a cuspo, tosse e sangue: “E o cuspo que essa hereditária tosse/ Golfava, à guisa de ácido resíduo,/ Não era um cuspo só de um indivíduo/ Minado pela tísica precoce.” (213). Só que a doença, em Alfredo Pimenta, é antes uma referência de ordem física, e diz respeito essencialmente à tuberculose. Em Augusto dos Anjos, a doença é sobretudo o símbolo de uma deterioração de ordem psicológica ou, mais propriamente, espiritual. Enquanto metáfora orgânica do “vício”, a tísica aparece como um dos efeitos da violação que o homem perpetrou na ordem natural, conforme testemunham os versos seguintes: “Não! Não era o meu cuspo com certeza./ Era a expectoração pútrida e crassa/ Dos brônquios pulmonares de uma raça/ Que violou as leis da Natureza!” (Ibidem). São comuns ainda, aos dois poetas, o panteísmo e a representação da Natureza. O poema “Duas vidas”, de Alfredo Pimenta, é uma autêntica afirmação do credo panteísta: “A Vida no Universo está espalhada:/ Ou seja na Montanha grandiosa,/ Ou na bendita lágrima chorada!”(34). Novamente a “lágrima”, motivo recorrente no autor. Se está na lágrima, a vida também está na pedra, elemento mineral e bronco, e por isso tentativamente adequado a albergar, por antítese, as manifestações vitais. Tanto Alfredo Pimenta quanto Augusto dos Anjos fizeram versos panteístas à pedra, à montanha, conferin-
do ao recorte desses elementos, inóspito e bruto, sugestões dramáticas. Podemos de novo confrontar, quanto a esse aspecto, os versos de cada um. No poema há pouco citado, por exemplo, Alfredo Pimenta se refere à “... maldição que ouvimos/ Sair da boca duma pedra/ Quando com outra às vezes a ferimos!” (35). Se comparamos o dramatismo dessa imagem com a representação que Augusto dos Anjos faz no primeiro dos sonetos “As montanhas”, de novo percebemos a significativa diferença que separa um do outro — quer pelo uso da linguagem, quer pela integração, diríamos, dialética, entre o elemento plástico, exterior, e o componente anímico e subjetivo. Para compreender melhor isto, observe-se o fragmento seguinte, de Augusto dos Anjos: “Quem não vê nas graníticas entranhas/ A subjevidade ascensional/ Paralisada e estrangulada, mal/ Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?!// Ah! Nesse anelo trágico de altura/ Não serão as montanhas, porventura,/ Estacionadas, íngremes, assim,// Por um abortamento de mecânica/ A representação ainda inorgânica/ De tudo aquilo que parou em mim?!” (352). No trecho do poeta português, conforme foi visto, o que se tem é a sumária indicação de um conflito, própria somente para figurar o sentimento, ou melhor, o ressentimento que acomete a substância bruta quando agredida. Tal substância, embora animizada, parece ter uma vida autônoma, exterior às inquietações do ser humano — quando, na verdade, o que ela reflete ou alegoriza são os sofrimentos do homem. Nos versos de Augusto, pelo contrário, ocorre uma magnífica ilustração desse vínculo; o exterior — agonia das montanhas — é sentido, rigorosamente, como projeção do conflito anímico. Projeção e, também, alegoria dessa luta. Ao ver nas montanhas uma imagem da “subjetividade ascencional paralisada”, Augusto alude, coerentemente, a um combate que se constitui em leit motiv da sua obra, representado pelas contradições entre instinto e alma, matéria e espírito. Sendo um “abortamento de mecânica”, um resíduo inorgânico, a montanha alegoriza a própria morte enquanto pulsão, que se contrapõe aos anseios eróticos, vitais, e se constitui em sombrio e repetido aceno para o homem. O que essa imagem nos evoca, de maneira intensa e radical, é a memória do elemento inorgânico de onde proviemos,3 a qual persiste, segundo a psicanálise, como ameaçadora e, às vezes,
3 Num dos seus textos mais importantes, Freud conjectura que a pulsão seja “...um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas...”. Como essa imagem de retorno corresponde à extinção das tensões biopsíquicas, é comum relacioná-la com a quietude e a insensibilidade da matéria bruta, inerte. Cf., a propósito, FREUD (1980) vol. xviii,p. 53-4.
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tentadora perspectiva de retorno. A imagem da Natureza como repetição, signo do eterno retorno, aparece, pois, em ambos os poetas. Confirmando a sua índole romântica, Pimenta não deixa de exaltá-la como a “mãe de tudo quanto existe” (15), nela reconhecendo, ao mesmo tempo, “A mesma eterna e trágica alegria,/ Na eternidade d’uma eterna vida!” (Ibidem). Vendo a Natureza com o sentimento do pecado original, a que se liga a percepção, que tem o homem, da própria “diferença” -- do próprio exílio --, Augusto não a considera “mãe”, e sim “madrasta”. A natureza é o lugar da repetição, mas esse caráter monótono vem de ela se constituir num enigma para si própria, conforme sugere o entrecho do soneto “Natureza íntima”. Ao sondar-se a si mesma, tudo com que ela se depara é “...a mesma imortal monotonia/ Da sua face externa indiferente!”. (317). Por licença poética, Augusto transfere à natureza, animizada, a mesma perplexidade com que o homem a perscruta: “Será possível que eu, causa do Mundo,/ Quanto
mais em mim mesma me aprofundo/ Menos interiormente me conheça?!”(Ibidem). Com esse procedimento, de ricas sugestões cognitivas, reforça a idéia de que ela, a Natureza, é sobretudo uma invenção do homem, uma projeção do insolúvel enigma com que ele, perpetuamente, se defronta. A “Natureza” seria o nome, dado por ele, a um ordenamento que o exclui e, paradoxalmente, o inclui — e que o homem não pode compreender. Há outros pontos comuns entre os livros de Augusto dos Anjos e Alfredo Pimenta, os quais, levando-se em conta os limites deste artigo, é impossível enumerar. A despeito de tais semelhanças, com as diferenças nelas incluídas — de estilo, de ideais, de concepções acerca do homem e do seu futuro -, julgamos que não se pode falar em influência. A nosso ver, é sobretudo pelas marcas do Decadentismo que a poesia do português se assemelha à do paraibano. Há em ambos o mesmo fundo mórbido, a mesma perplexidade ante a voragem contraditória de sentimentos e
conceitos que marcaram o final do século XIX. Conforme observa Massaud Moisés, “... A conjuntura decadente resultava da impressão de que tudo, religiões, costumes, justiça estava em deliquescência.”4 E discrimina, logo depois: “Anarquia, perversões, satanismo, neuroses, patologias, entravam em moda, dando a impressão dum caos apocalíptico.”5 Tanto Alfredo Pimenta quanto Augusto dos Anjos vivenciaram dramaticamente esse clima. Sensação de deterioração, de fim iminente, de decadência para o emergir de uma nova ordem — são comuns aos dois poetas. Mas cada qual espera ou propõe o novo à sua maneira. Se um sonha com a revolução social, concebida romanticamente, o outro deseja a redenção espiritual do homem. Se um, a despeito dos ideais progressistas, permanece formalmente preso ao passado o outro inova em termos formais, utilizando-se de recursos (o coloquialismo, por exemplo) que o incluem, já então, na modernidade literária.
BIBLIOGRAFIA ANJOS, Augusto dos. Obra completa; volume único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: Obras completas. Vol. xviii. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 13-85. HOUAISS, Antônio. Cinqüentenário da morte de Augusto dos Anjos. In: BRAYNER, Sônia & COUTINHO, Afrânio. orgs. Augusto dos Anjos; textos críticos. Brasília: INL, 1973. p. 47-9. (Coleção de Literatura Brasileia, 10) MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo:1974. PIMENTA, Alfredo. Eu. /s. l./: /s.e./, 190 MOISÉS (1974) p. 474 Idem, p. 475
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HERÁLDICA
ESPALHA-SE PELO BRASIL E PELO MUNDO ERRO CRASSO NA DIVISA LATINA DO RASÃO D’
RMAS DE
AJAZEIRAS
Evandro da Nóbrega
“Una lancia, una spada, uno scudo; ecco i tesori miei. Con la lancia, la spada e lo scudo, ho dei campi, del grano, del vino. Ho veduto ai miei piedi prostrate molte persone, che mi chiamavano suo sovrano e padrone; e nessuno li loro aveva nè lancia, nè spada, nè scudo”. — Palavras do cita A nacársis , um dos Sete Sábios da Grécia, à página 17, tomo XIII, capítulo 81, de Viaggio d’Anacarsi, tradução para o italiano de Giuseppe Belloni, Milão, 1834, a partir do francês do abade Jean-Jacques Barthélemy (17161795). “In senso figurato la locuzione [ab imis] è utilizzata con il significato di ‘totalmente’, ‘in tutte le parti’, come nelle frasi: ‘riformare un istituto ab imis’, ‘rinnovare un’amministrazione ab imis’.” — CYCLOPAEDIA (Italiana), a partir do URL http://it.cyclopaedia.net. A página da Wikipédia portuguesa sobre a cidade paraibana de Cajazeiras apresenta o brasão de armas cajazeirense com um dístico ou lema que está... completamente errado. Explicando melhor: está correto o desenho do brasão d’armas — escudo cuja reprodução Você pode ver aqui mesmo, nesta página do periódico GENIUS. O erro está, como se disse, na divisa, no dístico, no lema, no motto, na inscrição que fica no listel do referido brasão. Hen? Como, madame? Não sabe o que é listel? Bem, lê-se no “Miniglossário da Arte Heráldica”, ao final do livro Brasão d’armas do Judiciário paraibano: listel, do italiano listello, pelo francês listel, é um termo da Arquitetura usado também em Parassematografia para designar a moldura que acompanha outra maior, separando as caneluras de uma coluna;
filete; mocheta; em Heráldica, mais propriamente, é a fita em que se inscreve a divisa do brasão. O Que Está Escrito Lá A BIMIS FUNDAMENTOS — eis o que reza o motto do brasão d’armas cajazeirense, que, há muitos meses, infeliz e erroneamente, vem aparecendo nos desenhos on line desse escudo. Bastou olhar para tal barbaridade “latina” para ver que nela havia algo totalmente fora dos eixos. Embora exista em latim a preposição A (também escrita Ab, Abs, Au etc, dependendo da consoante que se segue), e apesar de BIMIS ser uma forma da mesma forma existente na vetusta língua dos romanos, o problema maior está com a última palavra do dístico: FUNDAMENTOS. É claro que se pode encontrar em latim a desinência OS. Mas essa terminação, normalmente, vem em palavras masculinas ou femininas pertencentes ao plural da segunda declinação. E, como veremos em detalhes, a palavra latina que existe, a verdadeira, FUNDAMENTUM, é substantivo neutro da segunda declinação. Então, jamais poderia apresentar a forma FUNDAMENTOS — nem mesmo no plural. Senão vejamos. Repetindo: o termo básico existente em latim é FUNDAMENTUM, neutro da segunda declinação. A forma do caso genitivo é FUNDAMENTI. FUNDAMENTUM significa “firmeza”, “fortalecimento”, “fundação”, “alicerce”, “inícios”, “base”, “fundamento” e coisas que tais. (Há um sinônimo latino, menos usado: nominativo FUNDAMENS, genitivo FUNDAMENIS, substantivo neutro também da terceira declinação, forma preferida de Vergílio, nas Geórgicas). Mas vamos declinar a palavra FUNDAMEN-
TUM nos seis casos, em busca desse presumível termo “FUNDAMENTOS”: DECLINAÇÃO NO SINGULAR Nominativo = fundamentum [alicerce] Genitivo = fundamenti [do alicerce] Dativo = fundamento [ao alicerce, objeto indireto] Acusativo = fundamentum [o alicerce, objeto direto] Ablativo = fundamento [pelo alicerce, com o alicerce] Vocativo = fundamentum [ó, alicerce]. (Viu? No singular, há dois casos, o dativo e o ablativo, que admitem na língua latina a ocorrência vocabular FUNDAMENTO — mas não FUNDAMENTOS, com S final). DECLINAÇÃO NO PLURAL Nominativo = fundamenta [os alicerces] Genitivo = fundamentorum [dos alicerces] Dativo = fundamentis [aos alicerces, objeto indireto] Acusativo = fundamenta [os alicerces, objeto direto] Ablativo = fundamentis [pelos fundamentos, com os fundamentos, desde os fundamentos] Vocativo = fundamenta [ó, alicerces]. (No plural, não há nenhuma ocorrência da forma FUNDAMENTO e, muito menos, da forma FUNDAMENTOS). Erro Espalha-se Pelo Mundo Então, está mais que provado & comprovado que, em latim — nem no latim clássico, nem no latim medieval, nem no latim eclesiástico, nem em qualquer outro tipo de latim — NÃO existe aquela preabril/maio/junho/2014 |
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tendida forma “FUNDAMENTOS» que se lê no presumido “dístico” cajazeirense. A inexistência da forma FUNDAMENTOS em latim pode ser também comprovada no site do Wiktionary, em inglês, a partir do URL http://en.wiktionary.org. Você pode tirar a prova dos noves indo ao Projeto Perseus, da Tufts University, na Internet, e procurando por FUNDAMENTOS, no imenso dicionário latino aí existente. Nada encontrará. Agora, procure por FUNDAMENTIS — e achará muitas ocorrências, inclusive passagens de Tito Lívio (como em Ab urbe condita: “in Capitolio aream aedi Iovis exstruendae Tarquinius Priscus occupat fundamentis”). Mais uma vez: FUNDAMENTOS não é congruente com o espírito da língua latina. Inexiste em latim. Portanto, o que está fazendo esta palavra naquilo que se tem como divisa do brasão cajazeirense? O pior é que o uso deste arquivo errado se dissemina — e o brasão com o lema ou dístico QUE NÃO ESTÁ CORRETO (e que nem mesmo existe!) passa a ser replicado por novas páginas da Wikipedia em vários sites, em diversos países, nas mais diferentes línguas: *na página da Prefeitura de Cajazeiras; *nas páginas individuais de usuários cajazeirenses da Internet que se identificam com o brasão/dístico; *na página de Cajazeiras da eo.wikipedia.org [em esperanto]; *na página de Cajazeiras da it.wikipedia.org [em italiano]; *na página de Cajazeiras da kk.wikipedia.org [em língua casaque, do Casaquistão]; *na página de Cajazeiras da nl.wikipedia.org [em neerlandês]; *na página de Cajazeiras da no.wikipedia.org [em norueguês]; *na página de Cajazeiras da ru.wikipedia.org [em russo]; *na página de Cajazeiras no site em língua indo-ariana manipúri [que usa o alfabeto bengali]; *em duas páginas ancoradas pelo URL tt.wikipedia.org [ambos em língua tártara, usando caracteres cirílicos]. Começando a Fazer Sentido Outros sites parecem ter adivinhado o equívoco na frase “latina” e contentaram-se em simplesmente falar sobre Cajazeiras, sem lhe incluir o brasão e sem fazer referência ao lema ou dístico deste mesmo brasão. A culpa pelo erro não cabe nem à Câmara Municipal, nem à Prefeitura, nem a ninguém em particular, na “cidade que ensinou a Paraíba a ler”. Cabe tão somente a quem copiou apressadamente os dizeres agora inscritos no listel e, depois, ao reproduzir o que havia anotado, misturou as bolas e escreveu: A BIMIS FUNDAMENTOS. Não precisei matutar mais que alguns
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segundos para descobrir onde estava o equívoco. Basta substituir A BIMIS por AB IMIS — e, como a preposição AB sempre exige o ablativo, trocar a “palavra” (inexistente em latim) FUNDAMENTOS por FUNDAMENTIS (esta, sim, existente). E o que tinha sentido algo meio por sobre o confuso ganha plena fluência na tradução, literal ou não: “Desde os mais profundos alicerces”, “Desde os mais firmes primórdios”, “Desde os mais sólidos alicerces”, “Dos mais firmes fundamentos”... Alguns Empregos de Ab Se tivéssemos mesmo que lidar com a forma errônea A BIMIS FUNDAMENTOS, não poderíamos encontrar tradução razoável. Expliquemos em detalhes. A preposição latina A (a) — nesta e em suas demais formas — sempre rege o ablativo. Vale dizer, o que se lhe segue vai para este caso declinativo que marca os adjuntos adverbiais e dos agentes da passiva. As formas que A assume são as seguintes: A = a forma mais comum, diante de consoante; Ab = diante de uma vogal; Abs = antes de C, Q e T; As = antes de P; Au = antes de F. Estamos colocando o A sempre maiúsculo só por convenção, porque, obviamente, estas formas podem ser escritas com inicial minúscula (a, ab, abs, as e au), dependendo de onde se posiciona a preposição na frase: bem no início (maiúscula) ou em qualquer outra parte (minúscula). Exemplos do emprego de ab: * Ab immemorabile = desde tempos imemoriais; desde tempo mui remotos; * Ab aeterno = desde sempre; desde a eternidade; * Ab imo = do fundo; do mais profundo; * Ab imo pectore = do fundo do peito; do fundo do coração; * Ab initio = desde os primórdios; desde o início; do começo mesmo; desde o começo; a partir do começo; * Ab integro = na íntegra, por completo, inteiramente, totalmente, completamente; * Ab imis unguibus ad verticem summum = dos pés à cabeça (frase de Cícero); * Ab immemorabili tempore = de tempos imemoriais; de época indeterminada; * Ab imo ad summum = Do ponto mais baixo ao mais elevado (frase de Quintiliano, em seu livro Institutio Oratoria); * Ab imo corde = Do fundo do coração; com toda a franqueza; * Ab intestato = sem deixar testamento; * Ab illo tempore usque in hodienum diem = desde aquele tempo até o dia de hoje; * Ab irato = movido pelo arrebamento; incitado pela fúria; movido pelo ódio, raiva, ira, cólera; etc etc etc. As Funções do Ablativo
Em Gramática, o caso chamado ablativo constitui flexão nominal, uma espécie de inflexão final ou desinência, em línguas como latim, grego, sânscrito, sérvio, bósnio, croata, albanês, armênio, finlandês, húngaro, turco, azéri (idioma oficial do Azerbaidjão) e outras. Denota o ablativo elementos de lugar, modo, tempo e origem, dando uma ideia “adverbial” de afastamento, de procedência. As línguas germânicas não têm o caso ablativo, o mesmo ocorrendo com o português, francês, espanhol, italiano, que expressam tais sentidos com preposições do tipo “de”, “com”, “por” etc: “feito de vidro”; “cavado com a pá”... Quanto mais se avança em direção ao passado remoto das línguas indo-européias, mais se intui que aqueles falares predecessores dos atuais troncos latinos, gregos, germânicos, eslavos etc dispunham, além do ablativo e outros, de mais dois casos, o instrumental e o locativo. Com o passar do tempo, tais casos se reduziram ao ablativo. Assim. em latim, o ablativo tem funções diversas e pode ser traduzido por circunlóquios do gênero “de”, “para”, “por”, “por intermédio de”, “desde” etc. Uma simples conjunção como a (ab, abs, as, au), que tipicamente rege o ablativo latino, pode assumir os significados seguintes: * separação: de, de casa de, da casa de; * proveniência, origem: de (o from inglês); * distância, ponto de partida: de, desde, a partir de, depois de; * causa, motivo, agente da passiva: por; * posição, situação: a partir de, por; * sentido partitivo: de, de entre, dentre; * em favor, a favor, em favor de: por, em defesa, em favor de; * relação: enquanto a, com relação a, em relação a; * sucessão, ordem: de, desde, a partir de; * forma prefixal, com o sentido de negação, separação, privação: amens [“sem mente”, “desmiolado”, “sem juízo”]. Existe Bimis, Sim, Mas... Nas Odes de Horácio e no Calígula de Suetônio, entre outros autores clássicos, pode-se ver o uso do termo BIMIS, ablativo de BIMUS [“de dois anos”, “que tem dois anos de vida”], termo afim de BIMULUS, com o mesmo sentido. Etimologicamente, BIMUS remonta a uma forma latina mais arcaica, BIS HIEMS [“que passou por dois invernos”]. Impossível é Você conciliar isto, no brasão d’armas de que estamos tratando, com a História de Cajazeiras! Os “fundamentos” de Cajazeiras “resistiram por dois invernos”?! Ninguém em são juízo iria pensar em colocar uma “ideia luminosa”
destas em qualquer dístico de brasão! Mesmo que pretendêssemos forçar traduções no estilo «Desde os alicerces que já suportaram dois invernos», o resultado não faria sentido. Ademais, não teríamos resolvido o problema do inexistente vocábulo latino FUNDAMENTOS, forma que ninguém, por mais que pesquise, poderá encontrar em documentos, manuscritos ou inscrições, de qualquer época. Para me assegurar disto, bem consultei todos os meus manuais, até os de latim medieval, alguns deles citados na Bibliografia — e, óbvio, não achei necas de pitibiriba neste sentido. Com Ab Imis É Diferente! Mas, quando se separa A BIMIS como AB IMIS e se coloca FUNDAMENTOS em sua forma correta, no ablativo exigido pela preposição ab [FUNDAMENTIS], tudo ganha sentido e luminosidade: “A partir dos mais profundos alicerces”; “Desde a base”; “Desde o princípio”; “Desde os fundamentos mesmos”... Vamos dar um exemplo dos possíveis empregos da locução latina Ab imis fundamentis. Na obra O nove de outubro, ou breves considerações sobre a última guerra civil, de um liberal português anônimo, diz ele, à página 14: “Pelo que respeita ao seu regimen interno, tudo quanto fizeram os liberaes ficou selado com a marca da inexperiência e absoluta incapacidade. Destruíram tudo ab imis fundamentis [N. do Ed.: ‘Desde os mais profundos alicerces’]; do antigo e cadavérico edifício social não ficou pedra sobre pedra; nenhuma das mais respeitáveis instituições da velha monarchia escapou ao imprudente cutello das reformas!” Vem da Obra de Francis Bacon A Wikipedia italiana diz (traduzo de maneira livre): “No sentido figurado, a citação é utilizada com o significado de ‘totalmente’, ‘em toda parte’, como nas frases seguintes: ‘reformar um instituto ab imis’ e ‘renovar uma administração ab imis’. A locução Ab imis fundamentis, com o sentido de ‘dos primeiros princípios’, ‘dos mais baixos fundamentos’, é usada como divisa [motto] por numerosas famílias italianas e estrangeiras, para indicar que algo se deve refazer de cabo a rabo, de cima a baixo. Deriva da obra Instauratio magna [Great Instauration, Grande Instauração], de Francis Bacon (1561-1627). E onde é que Bacon escreveu aquela frase que se tornou quase um provérbio — e que se tornou, certamente, um motto para escudos familiares e brasões municipais? É o que veremos agora.
Outra obra italiana, Motti latini e citazioni, depois de nos reiterar que Ab imis fundamentis significa “Dos fundamentos mais profundos”, lembra que a expressão provém desse filósofo inglês. Mas os italianos só o chamam Francesco Bacone di Verulamio, ao passo que os gozadores brasileiros o tratam simplesmente por Chico Toicim. Bacone, digo, Francis Bacon escreveu em latim, no livro já referido: “instauratio facienda ab imis fundamentis”, isto é, a renovação (filosófica) por ele proposta estava sendo feita desde os fundamentos mais profundos. A partir de então, usa-se tal frase para indicar a necessidade de renovação radical de um instituto, de um rumo de vida etc. Usa-se também a forma abreviada ab imis. Está no Aforismo 31 Logo no primeiro livro da obra mais famosa de Bacon, seu Novum organum, de 1620, ele inclui “aphorismi de interpretatione naturae et regno hominis” [“aforismos sobre a interpretação da natureza e o governo dos homens”]: “XXXI. Frustra magnum expectatur augmentum in scientiis ex superinductione et insitione novorum super vetera; sed instauratio facienda est ab imis fundamentis, nisi libeat perpetuo circumvolvi in orbem, cum exili et quasi contemnendo progressu.” Traduzindo: “AFORISMO 31. É inútil esperar grande avanço nas ciências, se se confiar só na superindução e no enxerto de coisas novas sobre aquelas antigas. Temos que começar de novo, a partir das próprias bases [ab imis fundamentis], a não ser que queiramos continuar girando para sempre num círculo vicioso de desprezível progresso.” Até na popularíssima coleção isolada dos Aphorismi de Bacon, está lá, também, sob esse mesmo número 31 (e a mesma coisa no portal on line da Infopédia portuguesa): Ab imis fundamentis = desde os mais profundos alicerces; desde a origem — como da mesma forma está no famoso Dicionário de expressões e frases latinas, compilado por Henerik Kocher [ver Bibliografia & Fontes, ao final deste texto]. Há Quem Cite Corretamente Mas há exceções — isto é, sites e portais on line que continuam utilizando a frase correta, em latim [Ab imis fundamentis], quando se referem ao dístico ou motto cajazeirense. É o caso, para dar apenas dois exemplos, do blog Cajazeiras de Amor [http://cajazeirasdeamor. blogspot.com.br] e do blog de Chico do Rádio [URL http://chicodoradioosecreta-
riodopovo.blogspot.com.br]. Pelo menos com estes dois, aquele negócio de “A bimis fundamentos” não prosperou. Tanto o escudo quanto a bandeira e o estandarte de Cajazeiras foram oficialmente criados pela Lei Municipal n° 552, de 30 de dezembro de 1972. Com relação ao escudo, dispõe o texto legal: vermelho com cinco espadas de prata, guarnecidas de ouro, com as pontas voltadas para baixo; sobre as espadas, uma murada de tijolos de prata lavrados de preto, em quatro lances, com base recurvada em forma de um livro aberto; na parte superior, uma coroa mural com quatro torres, de prata; e, na parte inferior, um laço com a inscrição AB IMIS FUNDAMENTIS, em letras de prata sobre o listel de vermelho — como se pode ler no blog do “Secretário do Povo”, o já citado Chico do Rádio. São José de Princesa?! Vivo dizendo a eventuais leitores e às minhas orientandas do dia-a-dia: as 285 Wikipédias, nas mais diversas línguas, são riquíssima conquista da Humanidade, levando conhecimento gratuito e em profundidade a zilhões de pessoas em toda parte. Isto não impede que, vez por outra, surjam nelas erros homéricos. Tais senões vêem-se corrigidos, mais dia, menos dias. Eu mesmo já sanei alguns, inclusive sobre o local de sepultamento de Epitácio Pessoa. Há pouco, apareceu lá um artigo sobre a Revolução de 1930 asseverando que o nome da cidade rebelada no interior da Paraíba era... São José de Princesa! Esta urbe apenas seria criada em 1994 e a revolta se deu na cidade de Princeza, depois Princesa Isabel... Também na Wikipédia portuguesa ficou célebre o caso da “foto” de um paraibano falecido em... 1810 — embora se saiba que não havia jeito-maneira de bater fotografias àquele tempo: até mesmo o primeiro daguerretótipo do mundo somente iria surgir em 1837, sendo necessários cerca de 30 minutos de exposição à luz para fixar a imagem... E põe anacronismo nisto: a primeira câmara fotográfica só iria ser comercialmente produzida a partir de 1839! Mas, enfim, o erro impingido ao brasão d’armas de meus irmãos e irmãs cajazeirenses me fez citar tanta frase em latim que eu devia era assinar este artigo, na super-revista do acadêmico e historiador Flávio Sátiro Fernandes, como Evandrus Anovergensis... Em tempo: os desenhos que ilustram este desataviado texto são de autoria da Professora Doutora Verônica Lúcia do Rego Luna & do presque-docteur Mitslav de Luna Nóbrega. abril/maio/junho/2014 |
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BIBLIOGRAFIA & FONTES ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática latina. 30ª edição. Editora Saraiva. São Paulo, 2011. ANÔNIMO. O nove de Outubro, ou Breves considerações sobre a ultima guerra civil, por um Liberal. Editora Ty p o graphia da Revista, Porto, 1849. BARTHÉLEMY, Abade Jean-Jacques (1716-1795). Voyage du jeune Anacharsis en Grèce dans le milieu du quatrième siècle avant l’ère vulgaire. Dois volumes. Didier. Paris, 1843. Disponível on line no URL http://remacle.org/bloodwolf/livres/ anacharsis/table.htm. O trecho no frontispício deste artigo é da tradução italiana de Giuseppe Belloni, Milão, 1824, sob o título de Viaggio di Anacarsi, em 14 pequenos volumes. Há pelo menos uma tradução italiana bem anterior, sem indicação de autor ou tradutor: Viaggio - Anacarsi, il Giovine, nella Grecia verso la metà del quarto secolo avanti l’Era Volgare, tradotto dal francese. Tomo primo - Impresso por Antonio Zatta i Figli. Veneza, 1791; e outra edição, também em Veneza, mas de 1826, citando-se o autor Berthélemy e com título quase idêntico]. BEATSON, B. W. [Reverendo]. Thesaurus linguæ latinæ compendiarius. Ainsworth’s Latin dictionary. Revised and Corrected by William Ellis. Editora de Henry G. Bohn, York Street, Covent Garden. Londres, 1843. BENNETT, Charles E. New Latin Grammar. Reimpressão da edição de 1908. Editora Bolchazy-Carducci, 1995. BETTS, Gavin. Latin, a Complete Course. Editora Hodder & Stoughton, Londres, 1998 (Primeira edição em 1986, com seguidas reimpressões a partir de 1994). BLOG do “Secretário do Povo” Chico do Rádio, a partir do URL http://chicodoradioosecretariodopovo.blogspot.com.br. BRETZKE, James T. Consecrated Phrases: A Latin Theological Dictionary - Latin Expressions Commonly Found in Theological Writings. Liturgical Press, s/l, 2013. CAPPELLI, Adriano. Lexicon abbreviaturarum - Wörterbuch lateinischer und italienischer Abkürzungen wie sie in Urkunden und Handschriften besonders des Mittelalters gebräuchlich sind, dargestellt in über 14.000 Holzschnittzeichen. Editor: J. J. Weber. Leipzing, 1928. CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. Sexta edição. Editora Ática. São Paulo, 2006. CLACKSON, James [Ed.]. A Companion to the Latin Language - Coleção Blackwell Companions to the Ancient World, Volume 82. Edição ilustrada. Editora John Wiley & Sons, 2011. COLLAR, William C. & DANIELL, M. Grant. Beginner’s Latin Book. Editora Ginn & Company. Boston & Londres, 1898. COLLINS, John F. A Primer of Ecclesiastical Latin. The Catholic University of America Press. Washington, DC, s/d. COMBA, P. Júlio. Programa de latim. Volume I. Oitava edição. Editora Salesiana Dom Bosco. São Paulo, 1986. COMBA, P. Júlio. Programa de latim. Volume II. Quarta edição. Editora Salesiana Dom Bosco. São Paulo, 1985. DOSSIER.NET. Motti latini e citazioni. Disponível a partir do URL http://motti-latini.dossier.net/ FIRMINO, Nicolau. Dicionário latino-português. Quarta edição, revista e ampliada. Edições Melhoramentos. São Paulo, s/d. FORVO. All the words of the world – pronounced. A partir do URL http://pt.forvo.com FRESNE, Charles du (Sieur du Cange). Glossarium mediae et infimae latinitatis conditum a Carolo du Fresne, Domino du Cange auctum a Monachis Ordinis S. Benedicti cum supplementis integris D. P. Carpenterii Adelungii, aliorum, suisque diges-
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sit G. A. L. Henschel, sequuntur glossarium gallicum, tabulae, indices auctorum et rerum, dissertationes - Editio nova aucta pluribus verbis aliorum scriptorum a Léopold Favre, membre de la Société de l’Histoire de France et correspondant de la Société des Antiquaires de France - 10 volumes - L. Favre, Imprimeur-Editeur. Niort, 1883–1887. [Originalmente saído em Paris, 1678]. Full text disponível no URL http://ducange.enc.sorbonne. fr/. GARCIA, Janete Melasso. Língua latina. Editora da UnB. Brasília, 1997. GELLI, Jacopo. Divise, motti e imprese di famiglie e personaggi italiani. Edição Hoepli, 1928. GHOSH, Shami. A Brief Reference Guide to Medieval Latin. Universidade de Toronto, 2010. GOLDMAN, Norma W. English Grammar for Students of Latin: The Study Guide for Those Learning Latin. Terceira edição. The Olivia and Hill Press. Ann Harbor, 2007. HARKNESS, Albert. A Latin Grammar for Schools and Colleges. Revised Edition. D. Appleton an Company. London & New York, 1877. HARRINGTON, K. P.; PUCCI, Joseph; ELLIOT, Alison Goddard. Medieval Latin. Segunda edição. University of Chicago Press, 1997. INFOPEDIA.PT. Infopédia em linha. Porto Editora. Porto, 2003-1014. Disponível a partir do URL www.infopedia.pt/linguaportuguesa/. KENNEDY, B. H. The Revised Latin Primer. Obra original de 1962, editada e revisada por J. Mountford. Reimpressão de 1976. LEWIS, Charlton T. & SHORT, Charles. Harpers’ Latin Dictionary: A New Latin Dictionary, Founded on the Translation of Freund’s Latin-German Lexicon, edited by E. A. Andrews, LL.D., revised, enlarged, and in great part rewritten [...]. Oxford, at the Claredon Press. Harpers & Brothers, Publishers. Nova York, 1891. MANTELLO, F. A. C. & RIGG, A. G. [Eds.] Medieval Latin: An Introduction and Bibliographical Guide. Reimpressão. The Catholic University of America Press, 1999. MEYER, Wilhelm. Studies on Medieval Latin. Two volumes, in German Language. Aus den Nachrichten der K. Gesellschaft der Wissenschaften zu Göttingen. Philologisch-historische Klasse.Göttingen, 1912. MISKGIAN, D. Ioannes. Manuale Lexicon Armeno-Latinum ad usum scholarum scripsit D. Ioannes Miskgian, professor linguae armenae in Pontificio Collegio Urbano ac in Pontificio Seminario Romano. Ex Typographia Polyglotta. S. C. de Propaganda Fide [Sagrada Congregação para a Propaganda da Fé]. Romae, 1887. NÓBREGA, Evandro da. Brasão d’armas do Judiciário paraibano – Sua descrição heráldica e simbologia histórica. Edições do TJPB. João Pessoa, 2007. NORBERG, Dag. Manuel pratique du latin médieval. Paris, 1980. NORBERG, Dag. Manuel pratique du latin médiéval. Editora A. & J. Picard. Paris, 1968. NORBERG, Dag. Manuale di latino medievale. Editora La Nuova Italia. Florença, 1974. NORBERG, Dag. Manuale di latino medievale. A cura di Massimo Oldoni. Edição da Schola Salernitana. Coleção “Studi e testi”. Avagliano Editore, Cava de’ Tirreni, 1999. NORBERG, Dag. Manual prático de latim medieval. I - Bre-
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LIVROS HISTORIOGRAFIA DA ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS – Marcos Cavalcanti de Albuquerque. João Pessoa, 2013, Editora da UFPB. Obra de consulta obrigatória para os que se interessam pela cultura paraibana, o novo livro do Desembargador Marcos Cavalcanti, em realidade, faz justiça aos elementos simbólicos presentes no dístico da APL, isto é, que é um lugar voltado para os estudos da estética e do trabalho (Decus et Opus). Embora não aborde questões programáticas ou de especulações filosóficas, pois esse não era seu objetivo, sente-se, ao longo da leitura do trabalho de Marcos Cavalcanti, que elas não passaram despercebidas, já que afloram, com muita propriedade, em alguns capítulos, inclusive na própria análise da vida e obras dos acadêmicos. (Wills Leal) REFLEXÕES PARA UMA VIDA MELHOR II – Pensamentos e Expressões. Francisco José Gregório de Andrade, João Pessoa, 2014, Editora Imprell. Este livro inspira-se no pensamento do grande poeta e escritor Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Com seus ensinamentos, busca ajudar o leitor a resolver problemas, a ser mais saudável, otimista, persistente, corajoso, humilde, esperançoso, criativo. Deseja também levá-lo a entender que sua autoestima depende de suas atitudes positivas. Deixa, além disso, claro que só com a ajuda de Deus poderemos superar os mais diversos males da alma, O livro está escrito em uma linguagem de fácil leitura e compreensão, buscando melhorar a autoestima das pessoas, ajudando-as a se libertarem das amarguras, dos ressentimentos, das mágoas, da falta de fé. Acima de tudo, procura mostrar o caminho que as levará à realização de seus sonhos, ao sucesso e à felicidade. Para termos uma vida saudável e feliz, jamais poderemos deixar de sonhar, de ter fé, de perseverar e de louvar a Deus. O livro estimula o leitor a descobrir um mundo de ensinamentos, na perspectiva de ajudá-lo a construir uma vida mais benéfica e feliz. (Editorial)
UM CERTO MODO DE LER – Ângela Bezerra de Castro, João Pessoa, 2012, Ideia. Ângela Bezerra de Castro reúne, neste livro, diferentes exemplos do exercício de sua excepcional vocação, de seu imenso talento e de sua inexcedível capacidade para a crítica literária. Estas informações não bastam, porém, para definir o livro ou sequer desenhar-lhe perfil adequado, pois a obra desafia a capacidade de síntese de quem procura resumi-la em poucas palavras. (...) É livro para ser distribuído entre estudantes, professores, críticos, intelectuais e todos que procuram analisar e entender melhor o verdadeiro dizer de escritores e poetas, envolvidos na produção intelectual, sob o impulso, o estímulo, a inspiração ou a vocação para lidar com o indefinível fenômeno da criação em prosa e poesia. (Juarez Farias)
GAVETAS DA ALMA – Maria das Graças Santiago, João Pessoa, 2014, A União Editora. O livro de Maria das Graças abre
avenidas, descerra janelas para o sonho, o drama, a vida que as telinhas só fazem emporcalhar. Às vezes ela não se contém, como quando nos lembra a colega Socorro Fragoso, que escapou da inquisição de 64 para rebatizar de Jô Morais, a mulher brasileira na Câmara Federal. Maria vibra com a sua La Passionária, e como isto é nosso, próprio da mulher paraibana, cujo exemplo puxo para Alagoa Nova com a sua antecessora e guerreira Analice Caldas, articuladora de ideias e de iniciativas envolvendo lideranças como Álvaro de Carvalho, Coriolano, Celso Mariz, João Suassuna, Diógenes, Castro Pinto, Silvino Olavo e até mesmo o jovem Mário Pedrosa, que por aqui vivia muitos anos antes de se tornar o maior crítico de arte do Brasil. (Gonzaga Rodrigues).
NA JANELA DA CIDADE – Abelardo
Jurema, João Pessoa, 2014, s/e. O jornalista Abelardo Jurema é o próprio “salário moral” que ele propaga em sua coluna porque é um cara que aprende e ensina. Está nele o sentido da moralidade e a ética, mas ele não é careta nem tropeça. Ele tem a credibilidade. O aplauso público da sociedade e segmentos que o seguem bem antes de redes sociais. Cidadão pacato, educado e cheio de disciplina, ele conquista mais e mais amigos continuamente. O mecanismo está no seu abraço e aperto de mão. (...) O Abelardo escritor tem o interesse em fazer o leitor agir e reagir, entrar na crônica para sentir o conteúdo. Ele e testemunho da cena e com isso participa dos desdobramentos do texto. Sua liberdade e alcance surgem totais, oriundo da capacidade do escritor e também da oportunidade do leitor, que ele também exercita. (Kubitschek Pinheiro)
O INCRÍVEL TESTAMENTO DE DOM AGÁPTO – Hélder Moura. São Paulo, 2014, Miró Editorial. O personagem principal, já falecido na primeira página da ficção, está, todavia, sempre presente ao longo do livro e, muito embora o autor chame a atenção para o inverossímil da trama, o leitor é desde logo convidado a prosseguir na leitura porque as palavras escritas acontecem simples, escorreitas e no lugar onde deve estar. Escrever, escrever bem, não é para todos. Saber contar uma história de tal modo que esta tenha vida, é também, e só, para alguns. Hélder Moura tem ambas as qualidades: escreve bem e sabe contar histórias. E este seu romance não é apenas uma história, são muitas. (Luis Pinto, da Universidade Sênior de Nazaré (Portugal) e do Museu de Nazaré).
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HISTÓRIA
SEBASTIANISMO: A REVISÃO DE UM MITO Eliane de Alcântara Teixeira Resumo: este artigo procura analisar as origens do Sebastianismo em Portugal, relacionando-o com as correntes messiânicas anteriores ao surgimento do rei D. Sebastião. Ao mesmo tempo, procura também mostrar como o mito permanece até nossos dias, graças a seu aspecto essencialmente messiânico. Palavras-chave: Sebastianismo. D. Sebastião, mito sebástico, messianismo. O fenômeno messiânico que deu ensejo ao surgimento do sebastianismo teve início antes mesmo do reinado de D. Sebastião. Além de historiadores, muitos pensadores o têm estudado e, na literatura, a sua revisitação é frequente, desde Vieira, passando por Eça de Queirós, António Nobre e chegando até a modernidade, com Natália Correia, António Lobo Antunes e Almeida Faria. Antes, porém, de se tornar um topus literário muito caro à Literatura Portuguesa, D. Sebastião foi uma figura histórica, dentro de um período histórico muito específico. Por isso mesmo, alguns historiadores afirmam que a história portuguesa atinge o seu auge nesse momento histórico, ou seja, no fim do século XVI, quando D. Sebastião desaparece em Marrocos. António Cândido Franco acredita ser o período mais importante da formação e do apogeu português, delimitado entre a época de Inês de Castro e D. Sebastião. (FRANCO, 1991, p. 45). D. Sebastião nasceu em Lisboa em 1554 e faleceu em Alcácer-Quibir em 1578, filho de D. João e de D. Joana de Áustria. Não chegou a conhecer o pai, homem de saúde muito frágil, que morre poucos dias antes de seu nascimento. Sucedeu D. João III, seu avô, aos três anos de idade. Por ser muito jovem, sua avó D. Catarina é nomeada regente do reino. No entanto, D. Catarina, por questões políticas, deixa a regência que vai ser ocupada pelo cardeal D. Henrique. Somente em 1568 será coroado rei. Seu reinado durará até 1578, quando desaparecerá na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, vítima do sultão Mulei Almelique, de sucessivos erros próprios e do desgoverno geral. Seus 1800 homens morreram ou foram feitos prisioneiros pelos árabes, um desastre total, deixando Portugal praticamente sem grande parte da elite governamental e sem ho-
mens de armas. Foi sucedido por D. Henrique e posteriormente por Felipe II, da Espanha, o que ocasionou a perda de independência de Portugal que passa às mãos dos espanhóis. Esta seria uma dentre as várias histórias de reinados perdidos e de reis mortos em batalhas não fossem certas circunstâncias que viriam, mais tarde, a fazer desse rei um mito e desse mito um modo tipicamente português de encarar a realidade. D. Sebastião ficou praticamente órfão ao nascer. João, seu pai, morre aos 16 anos de idade, vinte dias antes de seu nascimento, em primeiro de janeiro de 1554. Após três meses do nascimento do filho, Joana, sua mãe, volta à Espanha, para substituí-lo e nunca mais verá o filho novamente. Como se poderá constatar, João e Joana são quase irmãos, tal a proximidade de parentesco. Talvez por esse motivo tenha Sebastião nascido com certas deformações genéticas, tais como marcas no corpo e com um dedo a mais no pé direito. Alguns historiadores afirmam que a criança tinha saúde muito fraca. Segundo Oliveira Marques: “D. João III deixou, pois, como sucessor, uma criança débil de três anos de idade, cujas esperanças de vida não eram grandes. D. Sebastião revelou-se um doente, tanto física como mentalmente” (MARQUES, 2001, p. 280). Quanto aos defeitos físicos da criança, provavelmente provocados pela franca consangüinidade dos pais, muitas são as histórias a respeito deles, verídicas ou não. Há também histórias surpreendentes, que se tornaram lendárias, sobre o seu nascimento. Segundo um manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa (BESSELAAR, 1987, p. 76), uma cobra ter-se-ia enrolado ao pé do berço de Sebastião, justamente após seu nascimento à meia-noite. O mais estranho, no entanto, é o fato de que depois de morta e arremessada pela janela do palácio, no terreiro do Paço, a serpente jamais foi encontrada, mesmo após terem revistado minuciosamente o local ao amanhecer. Sebastião passa para os braços da ama de leite e para os cuidados da avó Catarina, nomeada regente do reino até o menino atingir a maioridade. A criação de D. Catarina além
de austera, com respeito à educação do menino, é distante. O menino passa horas solitário, apenas acompanhado por eventuais professores e quase sempre dentro dos aposentos reais. É uma infância de solidão, estudos e passeios pelos jardins do castelo ou na casa de campo real em Sintra. Sua avó estaria mais preocupada com questões ligadas à Inquisição, com sua própria aparência e com reuniões sociais, quando recebia as damas da corte; talvez por isso, sua regência, iniciada em 1557, terminou, a seu pedido, cinco anos depois. Tio-avô de Sebastião e cunhado de D. Catarina, o cardeal-arcebispo de Lisboa e inquisidor-mor Henrique, a substituirá até que o rei tenha condições de governos, isto é, aos 14 anos, em 1568. Enquanto permaneceu sob a tutoria de sua avó e depois sob a tutoria do cardeal Henrique, o jovem rei obtém uma formação extremamente religiosa. Seus tutores escolhem para ele, aos cinco anos de idade, os mestres jesuítas Luís Gonçalves da Câmara, que regressa de Roma, e seu irmão. Luís Câmara será mestre de História, Filosofia e Gramática. Nessa mesma ocasião, são escolhidos também Amador Rebelo, professor de caligrafia e escrita, e Gaspar Maurício, que se ocupará dos filhos dos fidalgos. Aos oito anos de idade, o rapaz já é bastante desenvolto no falar e no pensar, os cronistas da época afirmam que ele parecia mesmo um prodígio. No entanto, mais uma vez, o pequeno rei parece um menino órfão. Sua avó, depois de deixar a regência, interna-se num convento, junto às monjas da Madre de Deus de Xabregas. O neto visita algumas vezes a avó que, no entanto, ainda se mantém distante dele. Na pré-adolescência, por volta dos nove ou dez anos de idade, conseqüência dos exercícios que pratica, Sebastião desenvolve muito o físico. António Cândido Franco afirma que o jovem aparentava ter dezessete ou dezoito anos, pois praticava o remo, as touradas, nadava em mar aberto por várias horas, treinava cães para a caça, fazia muitos exercícios e longas caminhadas. O rapaz continua solitário como o fora na infância. Seus passeios agora são no Ribatejo, em Almeirim e Salvaterra de Magos. É por esses tempos que começam a abril/maio/junho/2014 |
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correr em Lisboa e arredores histórias sobre as esquisitices do jovem rei. Também é por esses tempos que algumas histórias e lendas populares, que habitavam o imaginário português, começaram a ressurgir. Lendas, travestidas em histórias sobre a força do jovem, como cita António C. Franco: Começam a correr em Lisboa as histórias mais inquietantes sobre a sua força física. Um dia dizem que uma lança que estava em Santarém desde o tempo da conquista da cidade aos Mouros e que ninguém conseguira mover sequer um centímetro foi levantada por ele com a mão direita e meneada com toda a facilidade. (FRANCO, op. cit., p. 67) É clara a referência à célebre história de rei Artur que, quando jovem, consegue retirar a espada fincada em uma pedra, coisa que nenhum outro cavaleiro por mais forte e poderoso que fosse conseguira fazer até então. Desse episódio da lenda arturiana, é que mais tarde se soube que aquele jovem é predestinado a tomar as terras inglesas das mãos de intrusos indesejáveis e de conseguir a unificação dos feudos. Do mesmo modo como fez Artur, o rei mítico das novelas de cavalaria, assim também faria D. Sebastião, conquistando as terras africanas das mãos dos infiéis e as devolvendo aos cristãos. Em conseqüência da massificante educação jesuítica, o jovem rei acreditava-se predestinado, como Cristo o foi, a grandes conquistas para defender o império cristão. Segundo um historiador: Na adolescência, enquanto os outros meninos apareceram dispostos a render-se cada vez mais às conveniências e aos hábitos sociais, ele mostra-se cada vez mais interessado pelos princípios que os mestres lhe ensinaram em criança: conquistar a África conforme a exaltação das Cortes de 1562, imitar Jesus Cristo, ser justo e pai dos pobres. (MARQUES, op. cit., p. 70) Como fora decidido em 1562, em 1568, quando o rei completou 14 anos, o governo lhe foi passado em cerimônia realizada no palácio de Estaus, no Rossio. Durante os dez anos que antecederam Alcácer-Quibir, o rei fez muitas viagens pelo país, sempre acompanhado de nobres seus contemporâneos. Sua preferência era pelo Alentejo, e a cidade mais visitada fora Évora, cuja universidade freqüentou em várias ocasiões. O sul do país também o fascinava, a região de Algarve, cheia de sol e de mestiços vendendo todo tipo de objetos, era-lhe sumamente interessante. A semelhança que existe entre as terras do sul de Portugal e o norte de África, acrescidas de exotismo da paisagem e estranheza de costumes, acentua esse desejo de possuir as terras dominadas pelos árabes a qualquer custo. Ao mesmo tempo em que
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faz essas longas viagens pelo país, Sebastião exercita-se e pratica touradas com muita freqüência. O desejo pela conquista de África começa a ser demonstrado pelas viagens que faz a Ceuta e Tânger no Marrocos. Em 24 de agosto de 1574, chega Sebastião a Ceuta, onde fica por um mês aproximadamente. Em setembro, a esquadra do rei parte para Tânger onde o rei permanece por algum tempo. Quando retorna a Portugal, já começa a arquitetar um plano para tomar Marrocos com ou sem a concordância do tio e da avó. Assim como ocorrera com outros reis pretéritos portugueses, Sebastião possui uma vontade incontrolável, um desejo de pedra. É com vista a essa empresa que Sebastião envia Pedro de Alcáçova Carneiro a Madri com duas missões. A primeira, propor uma intervenção conjunta em Marrocos e a segunda, tratar o casamento de Sebastião com Isabel Clara Eugênia, filha de Filipe II da Espanha. A expedição foi também financiada pelos cristãos-novos, fato que justifica, enfim, a simpatia que Sebastião tinha por eles, algo que seu tio e sua avó nunca entenderam. Segundo António Cândido Franco, o financiamento da expedição levou o inquisidor-mor de Castela a escrever uma carta ao embaixador de Espanha em Portugal, João da Silva, recriminando severamente D. Sebastião. (BESSELAAR, op. cit., p. 148). A expedição de Sebastião parte para a África, depois de longo recrutamento de soldados pelo país. Não houve nenhum treinamento com esses jovens que pouco sabiam sobre armas e guerras. Cerca de 15 mil soldados, na sua maioria portugueses, uniram-se a Sebastião nessa audaciosa empreitada. Alguns aventureiros provenientes de outras nações também se uniram ao rei, principalmente vindos da Andaluzia e de Castela; outros, em menor número, da Itália, da Alemanha, da Holanda e até mesmo de Marrocos, chefiados por Mulei Mohamed, aliado de Sebastião. Além do exército propriamente dito, acompanham a expedição mulheres, crianças, serviçais, abridores de valas, raspadores, frades, pajens, músicos, meirinhos, carregadores, alcaides e o poeta Diogo Bernardes. A maior parte dos jovens nobres de Portugal partiu com essa expedição para o Norte de África, confiantes na vitória e devotos ao rei. A partida deu-se em 24 de junho de 1578. Essa confiança no rei Sebastião, porém, vai sofrer dois abalos já em solo africano. O primeiro, por parte de Fernando de Noronha, que sugeriu a prisão do rei antes da derrota inevitável. O segundo, por parte de Rodrigo Lobo, barão de Alvito, que, ao tomar conhecimento do tamanho do exército inimigo, pediu a prisão do rei para que uma tragédia fosse evitada. Ambos foram ignorados. Pelo que se sabe, o corpo sem vida de D. Sebastião foi entregue ao rei Filipe de Espa-
nha, que o mandou enterrar nos Jerônimos, onde permanece até hoje. Ninguém o viu antes de ser enterrado, ninguém reconheceu o cadáver. A atmosfera de mistério, propositada ou não, acabou criando um mito, ou melhor, a partir da idéia messiânica, muito comum em culturas secularizadas, revestiu-se D. Sebastião e sua história de uma aura mítica. Com o reforço daqueles que, desde o episódio das trovas de Bandarra, queriam ardorosamente um herói nacional, o mito perpetuou-se e deixou rastros em toda a cultura portuguesa, principalmente, na literatura. Após um breve interregno, no qual o cardeal D. Henrique, tio de Sebastião, tenta governar um país sem rumo, a coroa portuguesa passa para as mãos de Filipe II, da Espanha. O rei espanhol nomeia Cristóvão de Moura para representá-lo em Portugal. Cristóvão de Moura é um nobre português que, como parte da nobreza do país, prefere ficar do lado castelhano. Uma figura deve ser lembrada, a de D. João de Castro. Ferrenho sebastianista até a morte, com 73 anos, ele foi grande defensor da idéia de que D. Sebastião não morrera na batalha de Alcácer-Quibir. No período subseqüente à morte do rei, pseudo Sebastiães surgiram em Portugal, passando a reivindicar a coroa: o primeiro, conhecido como Rei de Penamacor, surgiu em Alcobaça em 1584; o segundo, Mateus Álvares, o Rei da Ericeira; o terceiro foi Gabriel de Espinosa, um pasteleiro de Castela e o quarto, Marco Túllio Catizone aparece em Veneza em 1598, então, bastante defendido por D. João de Castro. Uns foram condenados à morte e outros, trancafiados ou enviados para as galés. Vale à pena lembrar também a figura de D. Antônio, o prior do Crato que, sem se apresentar como D. Sebastião, assim mesmo reivindicava a coroa, dizendo-se descendente da família real. O sebastianismo, circunstanciado pela morte do rei, foi fomentado, muito antes, pelas profecias de um sapateiro chamado Gonçalo Annes, porém conhecido como Bandarra. Suas trovas, que datam de 1510 a 1540, cantam a vinda de um rei-salvador que resgatará seu povo do sofrimento e do desespero. Esse rei-salvador fundará o Quinto Império que dominará o mundo. Conhecemos muito pouco da história de Bandarra, que, aliás, consta dos autos de um processo da Inquisição, ainda no governo de D. João III. Hoje se sabe que ele não era um homem humilde e semi-analfabeto, como naquela época se pensou. Ao contrário, sabia ler e escrever; conhecia, igualmente, o Velho e o Novo Testamentos quase de cor. E era um homem de posses, segundo revelaram pesquisas mais recentes. Suas trovas proféticas, sem nenhum valor literário, são carregadas de influência bíblica proveniente de seus conhecimentos e de um colaborador e amigo: Álvaro Cardoso. O sebastianismo pode ser considerado um
tipo de messianismo que costuma se desenvolver em sociedades sacrais, religiosas. Do ponto de vista de Eduardo Lourenço, “o sebastianismo, aquilo que nele se encarna, tem uma estrutura mais ampla e reiterada em tempos e lugares diversos que a do nosso sebastianismo histórico” (LOURENÇO, 2001, p. 134). Geralmente, manifesta-se como a crença de um povo em um Deus ou enviado de Deus que o livrará de uma situação de opressão. Comum a nós ocidentais, o messianismo cristão tem origem na Bíblia, uma vez que a palavra Messias é oriunda do Velho Testamento e significa “ungido”. A partir do século I a.C., passou a designar o salvador, aquele esperado e prometido a um povo eleito. Durante a Idade Média, o messianismo foi associado ao termo joaquimismo, de Joaquim de Fiore (1135-1202). O abade calabrês dividia a história em três fases ou estados: o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. A divisão da história nos três estados e, destes, em sete idades cada um, marca a doutrina joaquimina. Para Joaquim de Fiore a história escatologicamente teria dois fins – um situado no além e outro, dentro do tempo histórico; portanto, para ele, a História adquire importância ainda na Idade Média. Despida de caráter científico, a História admitia previsões e os profetas tinham papel de peso no seu contexto. E, no final de Idade Média, vaticínios e profecias existiam em profusão: “vários destes vaticínios, não raro, entraram bastante deformados nas profecias sebásticas” (BESSELAAR, op. cit., p. 24). As profecias medievais encontram solo fértil em Portugal que, após a morte de um rei sem descendentes, e por força de um movimento inconsciente das massas populares – de certo modo, desorientadas – as adota incondicionalmente. Já no reinado de D. Sebastião, tais profecias tinham muito vigor, a ponto de influenciar fortemente o jovem rei. São dois os principais fatores, na evolução da sociedade portuguesa no crepúsculo da Idade Média, que talvez expliquem a influência do messianismo sobre D. Sebastião: em primeiro lugar, a sua rigorosa educação jesuítica que o fez crer-se um ser predestinado, um enviado de Deus, o que podemos comprovar por meio de seus atos, ou seja, a total submissão aos ditames da Igreja e sua propalada humildade diante dos pobres, principalmente demonstrada em dias santos, por exemplo, ou mesmo, a vontade férrea de libertar os “infiéis” do pecado e convertê-los à fé
cristã. Em segundo, os ideais medievais que lhe foram inculcados desde criança. D. Sebastião tem como modelo a figura do cavaleiro andante medieval trajando a armadura e lutando, como um Quixote, contra o demônio árabe. Para Oliveira Martins, o sebastianismo seria fruto da miscigenação de três raças que resultariam no povo português: o celta, o galego e o turdetano (MARTINS, 1978, p. 63). Da raça celta se originaria o ideal messiânico e daí o sebastianismo. Por outro lado, essa idéia é ferozmente combatida por António Sérgio em seu texto “Interpretação não romântica do sebastianismo”. Para ele, o ideal sebástico teria sido herdado do convívio com cristãos-novos e da confluência de fatos, de uma coincidência histórica e, de certo modo, de uma identificação fortuita entre as condições psíquicas do povo judeu e do povo português: “O ambiente psíquico do Português tornou-se idêntico ao dos Judeus, e dessa semelhança social-mental sai a reprodução, entre nós, do messianismo israelita” (IBIDEM, p. 93). Também para António Sérgio, o sebastianismo serviria como desculpa, ou muleta, a um povo sem iniciativa e carente de “self-government”, uma vez que essas idéias retornam ao contexto a cada crise, em momentos de decadência (SÉRGIO, 1978, p. 68). Na verdade, envolvidos com essas idéias messiânicas, falta ao rei e a seus conselheiros a visão extra da realidade de seu tempo, ao não perceberem transformações econômicas que ocorrem na Europa e não acompanharem os rumos das importações e exportações, enfim, em outras palavras, as necessidades do mercado. Portanto, Portugal, nos anos de governo sebastianista, vira as costas ao mundo, como se fosse uma nação soberana e absoluta, não admitindo rivais ou concorrentes, o que na área econômica significa um suicídio. O surgimento do sebastianismo seria explicado, portanto, por três fatores, segundo Besselaar: o primeiro, o fato de Portugal ser uma sociedade sacral, impregnada de religiosidade em todos os setores da vida; em segundo, seria o chamado por Oliveira Martins de substrato celta, que parece associar rei Arthur a D. Sebastião, e o terceiro, proporcionado pela história portuguesa frustrada, na qual as esperanças de um futuro de pujança são alimentadas por um passado de glória, ficando o presente representado por um momento ex-
pectante e inerte, próprio de culturas messiânicas. O evangelho sebastianista compõe-se de cartapácios, ou seja, de coleções de profecias algumas bíblicas, outras não canônicas, que eram agrupadas em grossos volumes, como no Jardim Ameno e no Catálogo das Profecias e outros volumes menores, na maioria apócrifos. Naturalmente, a interpretação dada pelos sebastianistas tenderá à mudança do caráter originário do texto. Alterações interpretativas ou do conteúdo dos textos, tanto das profecias como das trovas de Bandarra, foram comuns durante a evolução do sebastianismo. Aliás, a começar de D. João de Castro e passando por todos os sebastianistas conhecidos até o século XIX, todos eles utilizaram-se do evangelho sebástico para fins políticos e ideológicos, moldando-os de acordo com as necessidades vigentes. Como aconteceu na época da Restauração. No final de 1640, o que se lia nas estrofes 87 e 88 das trovas de Bandarra era que um jovem infante tomaria o poder, vencida a luta contra a “Grifa parideira, lagomeira, que tais prados têm gostado”, ou seja, a Espanha, vista como um monstro desmedido que não se satisfazia em pastos próprios, ficando sempre a desejar o pasto alheio – Portugal. O jovem infante, não mais Sebastião, teria como nome D. João, resultante da troca da palavra Foão, do texto editado por D. João de Castro, para João, na nova versão. Realmente é D. João, filho do Duque de Bragança, que garantirá a independência de Portugal. A História vai mostrar os altos e baixos da onda messiânica, de acordo com os altos e baixos da sociedade portuguesa, de maneira que, nos momentos de depressão e desencanto, D. Sebastião ressuscita miraculosamente, seja no imaginário do povo português, seja, ficticiamente, em obras literárias. Sebastiasnimo: review of a myth Abstract: this article analyses the origins of the “Sebastiasnimo” in Portugal, and shows the relationship between the myth and messianic currents prior to the emergence of King D. Sebastião. At the same time, it analyses how the myth remains until our days, thanks to its messianic aspect. Keywords: Sebastianismo, D. Sebastião, “sebástico” myth, messianism.
BIBLIOGRAFIA FRANCO, António Cândido. Vida de Sebastião, Rei de Portugal. Mira-Sintra: Europa-América /1991/ MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve história de Portugal, 4ª ed., Lisboa: Terra Livre, 1978. BESSELAAR, José Van den. Sebastianismo: história sumária, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987. LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, 3ª ed., Lisboa: Gradiva, 2001. MARTINS, Oliveira. O sebastianismo, Lisboa: Terra Livre, 1978. SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1978. abril/maio/junho/2014 |
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BIBLIOGRAFIA
DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA - I Flávio Sátiro Fernandes
IÁLOGOS DAS Trata-se de uma das mais importantes obras surgidas na fase do Brasil-Colônia, cuja autoria, antes controversa, é, contudo, hoje, pacificamente, atribuída ao português Ambrósio Fernandes Brandão, que se fixou nas Capitanias de Paraíba e Pernambuco, entre 1583 e 1618 . Escrita na época do BARROCO, o livro de Ambrósio Fernandes Brandão, na lição de Massaud Moisés, se insere na chamada literatura de informação da terra, que se caracteriza, segundo o mesmo autor, “por um acentuado sentimento de ufania, resultante da impressão de paraíso e de eldorado que o Brasil-Colônia oferecia”. Deve-se ao historiador Francisco Adolfo de Varnhagen a descoberta do manuscrito que estava ignorado em meio ao acervo da Biblioteca de Leiden, na Holanda. A cópia desse documento serviu para a edição brasileira de 1930, de iniciativa da Academia Brasileira de Letras, que continha ainda uma introdução de Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia, até hoje reproduzidas nas sucessivas edições. Tomemos de empréstimo a Capistrano de Abreu, em sua introdução ao livro de Brandão, algumas infor-
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GRANDEZAS DO
mações por ele fornecidas sobre o seu autor. Segundo o notável historiador, Ambrósio Fernandes Brandão era português, mais precisamente, do Sul de Portugal, dotado de larga instrução: “conhecia o latim, a língua literária e científica da época e lera os livros representativos da ciência coeva: Aristóteles, Dioscorides, Vatablo, Juntino; sabia a história, a geografia, a produção de Portugal e de suas colônias, e dispunha de inteligência extremamente clara, cuja força se manifesta na precisão com que trata dos objetos, como por exemplo a pólvora, o açúcar, a farinha de mandioca, o papel; no modo por que subordina os fatos mais diversos a categorias simples, como quando reduz os moradores do Brasil a cinco condições de gente, dos modos de adquirir fortuna a seis; distribui a vida animal pelos elementos, desfia a inutilidade do comércio da Índia e dispõe as árvores silvestres em hortas e jardins.” Não era um espírito simplesmente contemplativo, ocupava-o o lado prático, a aplicação possível, diz-nos Capistrano. E acrescenta: “Era, finalmente, um escritor colorido, enérgico, veemente, capaz de atingir a eloquência; a frase sai às vezes retorcida para
BRASIL
acompanhar o vibrante da sensação; a força vegetativa do novo mundo sobretudo agitava-o vivamente.” Concluiu os Diálogos em 1613, considerado pelo historiador José Honório Rodrigues “a crônica mais positiva, a descrição mais viva, o flagrante mais exato da vida, da sociedade, da economia, dos moradores do Brasil.” Em uma relação dos elementos que compõem a bibliografia paraibana, não se pode conceber a ausência dos Diálogos, visto ter sido ele, conforme dedução de Capistrano de Abreu, elaborado em nosso território, ao tempo em que o autor aqui residia, depois de ter participado das guerras que propiciaram a conquista e fundação da cidade, em 1584 e de ter-se tornado senhor de engenhos na várzea do Paraíba. Em abono de seu entendimento e de suas conclusões, esclarece Capistrano: Há probabilidades a favor da Paraíba ser o lugar em que os Diálogos foram compostos. Entre estas podem enumerar-se primeiramente as numerosas referências a ela feitas, o modo desen-
volvido por que é tratada: pouco mais de três páginas tratam de Pernambuco; menos de quatro tratam da Bahia, ao passo que quase cinco cabem à Paraíba. À Paraíba atribui-se o terceiro lugar entre suas irmãs e aproveita-se qualquer pretexto para salientá-la: o administrador eclesiástico, prelado quase igual aos bispos nos poderes, é da Paraíba, esta, por conseguinte, a cabeça espiritual das capitanias do Norte, a começar de Pernambuco; na organização judiciária proposta para substituir a Relação da Bahia, um corregedor com amplos poderes deve residir na Paraíba, por ser cidade real, e a ele serem subordinadas todas as justiças desde Pernambuco até Maranhão e Pará. Essa preferência pela Paraíba não indica que à Paraíba o autor estava preso por laços muito particulares? Uma frase escrita incidentemente legitima a resposta pela afirmativa. “Vos hei de contar, diz um dos interlocutores, uma graça ou história que sucedeu há poucos dias neste Estado sobre o achar o âmbar. Certo homem ia a pescar para a parte da Capitania do Rio Grande em uma enseada que aí faz a costa...” A menos que não se provasse que o autor escrevia no Ceará, o que
está fora da questão, para a parte da Capitania do Rio Grande, só se podia escrever na outra Capitania contígua, isto é, na Paraíba. Com isso se justifica a inserção do Diálogo entre os títulos que integram a nossa bibliografia. Conforme é salientado por todos que a conhecem, a estrutura do livro é alicerçada em, como o próprio nome deixa entrever, diálogos, em número de seis, estabelecidos entre dois personagens, um apelidado BRANDÔNIO, o outro, ALVIANO. O primeiro seria o próprio autor, Ambrósio Fernandes Brandão e o segundo, Nunes Álvares, seu amigo e companheiro na denunciação que deles fez o Padre Francisco Pinto Doutel, vigário de São Lourenço, perante a mesa do Santo Ofício, na Bahia, a 8 de Outubro de 1591. O primeiro diálogo tem por objeto uma descrição sumária das diversas capitanias, desde o rio Amazonas até São Vicente. O segundo começa por uma discussão sobre a zona tórrida e sua inabitabilidade afirmada pelos antigos filósofos; explica por que apesar de negros e americanos morarem nas
mesmas latitudes aqueles têm a pele negra e o cabelo carapinhado, ao contrário destes, cuja epiderme é baça e cuja cabeleira é lisa; aborda a origem dos americanos, ressalta as excelências do clima, aponta as poucas moléstias ocorrentes no Brasil. O terceiro estuda as quatro fontes de riquezas do Brasil: lavoura de açúcar, mercancia em geral, o cultivo do pau-brasil, os algodões e madeiras. O quarto expõe a riqueza que se pode angariar com o comércio de mantimentos, fala do mel, do vinho, do azeite, da tinta contida nas árvores indígenas e descreve ligeiros quadros da vida vegetal. O quinto enumera os animais, subordinados aos três elementos em que vivem: ar, água e terra. O sexto e último diálogo refere-se, de início, aos Portugueses, em seguida, aos índios. Louvando-se na certeza da autoria dos Diálogos e na inafastável convicção demonstrada por Capistrano de Abreu de ter sido a obra entre nós redigida, capaz, por isso, de integrar a bibliografia paraibana, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP) atribuiu a Ambrósio Fernandes Brandão a honorária condição de patrono de uma de suas cadeiras (Cadeira nº 32).
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MEMÓRIA
JOFFILY - UM MILITANTE DA POLÍTICA IDEOLÓGICA(*) Gonzaga Rodrigues
José Joffily foi um raro exemplar de militância da política ideológica com representação influente desde sua participação na Constituinte de 1946. Já entrou defendendo a propriedade estatal do subsolo e das quedas d`água, proposta que se converteu no artigo 152 da nova Constituição. Não era uma tese do seu partido, o PSD, do qual foi um dos fundadores. Esta e outras iniciativas e intervenções eram a consequência imposta pelas tendências de sua formação, do seu esclarecimento da nossa outra História com raízes profundas no nacionalismo histórico rebentado com a Guerra dos Mascates, com a Revolução de 1817, e mais próximo da formação de Joffily, na guerra surda de dominação brutal de que foi exemplo vivo entre nós, a sorte de Delmiro Gouveia, que criou a primeira fábrica de linhas de coser, e cujo assassinato impôs o monopólio e acabou destroçando à marreta todas as máquinas do empreendimento pioneiro de Delmiro. Tudo isso repercutia fortemente nas folgas da escola, em contraste com o conteúdo das aulas e com o discurso dos grêmios literários. Imperialismo hoje é um vocábulo em estado de dicionário. Mas há de se reconhecer, a partir da compreensão até mesmo de autores americanos, a exemplo de um Bradford citado por Barbosa Lima Sobrinho, que “o nacionalismo brasileiro teve dois objetivos fundamentais: alcançar a independência econômica , através da industrialização e do controle do capital estrangeiro, e conquistar status como potência mundial.” Muitos outros autores das matrizes capitalistas não o consideravam “um fenômeno patológico”, como entendia Roberto Campos, mas “uma decorrência de fatos inelutáveis como a preocupação de se modernizar, a busca da justiça social, a defesa da independência, o esforço para o aproveitamento dos recursos naturais do terri-
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tório nacional.” O de Joffily não foi um nacionalismo que se identificasse com a xenofobia. Além da consciência gerada e desenvolvida na leitura especulativa da nossa História, além do mergulho fundo no mundo de extremos contrastes da nossa região, atroados aos seus ouvidos no épico de Euclides e de Augusto dos Anjos, acrescente-se a ele a potencialidade do marxismo. Potencialidade mencionada numa tese de Stalin e que tanto impressionou o espírito de exatidão difundido pelo cientificismo de conotação marxista: “O marxismo é potente porque é exato”. Para quem sente a hiperestesia da leitura, para quem ler afundado na mina de cada palavra, o clarão de certas ideias-força, aquela ideia-força a que se referia Michelet no vulcão tempestuoso da Revolução Francesa, para quem ler assim, dificilmente sairá imune e isento diante de livros como Os Sertões, A Família, a Propriedade Privada e o Estado ou esse fenômeno de leitura jamais concluída, que é o EU. Drummond, o céptico Drummond, mineiro do essencial, tomou um soco no estômago com a leitura de Augusto. José Joffily, a propósito, dá com um pano de fundo, uma mina nada explorada. Confessa em seu discurso à Academia: “Os canais de penetração de ideias rebeldes foram, para a minha juventude, o EU e OS SERTÕES - dois livros de protesto. Um me abriu caminho para o materialismo histórico, e o outro para a crítica da classe dominante através da história dos vencidos”. Nos mais ricos estudos sobre Augusto não aparece claramente essa mancha de tísica social que serve de pano de fundo para todos os outros cosmos. No entanto, o senhor de engenho, o doutor Alexandre, é tão triste e moído como a cana, o negro ou o servo. Zé Lins do Rego, do mesmo pântano, é o que mais chega perto dessa “rebelião”, mais perto do pântano ou da
“angústia dessa raça ardente / Condenada a esperar perpetuamente / No universo esmagado da água morta”. Sim, Joffily tornou-se um raro exemplar de político pela autonomia de sua formação, feita ao choque de leituras proibidas e de uma sensibilidade sem complacência com as injustiças e os castigos sociais. Alguns da mesma idade e do mesmo meio talvez tenham passado pelas mesmas leituras, vivido a mesma realidade, experimentado a mesma revolta, mas limitados aos papeis rotineiros de seus ofícios. Exceção, entre nós, a João Santa Cruz de Oliveira, cassado pelo regime democrático que se instaurara em 1946 e que, um ano depois, consegue do Supremo e do Congresso o consentimento legal para suprimir o registro do Partido Comunista do Brasil e cassar os mandatos de Prestes no Senado, de quatorze deputados federais e de centenas de deputados estaduais e vereadores. Joffily, de formação intelectual, ingressou na política com um ideário a cumprir. Fez seu curso de Direito, desfrutou certamente de uma história familiar propícia a uma carreira de elite, conheceu o serviço público e, através dele, o compromisso do Estado com a base social, daí lançando-se à atividade política. E começa a marcar a diferença. O mandato conquistado não se reduziria apenas à fidelidade ao PSD ou aos seus dirigentes, menos ainda às conveniências burguesas nascidas com o mandatário; o mandato encerrava os ditames imprescritíveis de uma missão política, ou melhor, de uma esclarecida consciência social. O aprendizado filosófico não era uma mera esnobação de intelectual, era um desiderato, uma condição de ser. E não podia ser diferente para quem tinha a sua experiência de leitura. Para quem se declarara de uma geração “marcada pelo testemunho de dois Brasis. Um Brasil contemporâneo da pedra polida e de progra-
mas nucleares. (São palavras dele em seu discurso de posse nesta Casa). Um Brasil cuja capital cultural consagra nas urnas candidatos socialistas e em outras áreas apresenta resíduos de uma sociedade dividida entre senhores e escravos.” Os resíduos do regime de senhores e escravos, em pleno século XX, viviam-se aqui, a partir da margem esquerda do rio Sanhauá e subindo os desvãos periféricos da acrópole do poder, sob o manto de Nossa Senhora das Neves. As larvas e moneras do vulcão de Augusto eriçou a sensibilidade de mais um Joffily para as causas do povo, sempre o mais vulnerável às cruezas da condição humana. Mais um Joffily, sim, porque o patriarca de todos eles, o Irineu Ceciliano, pioneiro da historiografia paraibana, advogado do povo, deixou-nos uma lição de magnanimidade social e política que a República ainda está por cumprir. Foi republicano antes da República de Deodoro e perseguido e exilado pelos adesistas de última hora ao novo regime. É uma história pungente de amor e humanidade que Hortêncio Ribeiro, num momento de extrema felicidade, resumiu numa crônica que termina assim: “Mamãe, que enterro é aquele sem gente nenhuma?” A pergunta é do menino Hortêncio, na porta de casa, em Campina Grande, e o enterro era do grande Irineu, no vazio da tarde, conduzido por quatro cabeceiros, uns poucos familiares, e algum povo a que ele servira, ricos e pobres, com receio da morféia. Pior do que o refugo ao mal terrível foi o exílio que os adesistas ao poder novo, até então conservadores, lhe impu-
seram, até com ameaça à sua vida. Exila-se no Rio e por estímulos de Capistrano de Abreu, pôde escrever no Rio as “Notas sobre a Paraíba”, fonte e matriz do que se pôde escrever depois. De forma que os talentos de José Joffily não prosperaram apenas com as leituras de sua formação, suficientes para determinar um ideário, mas, sem dúvida, no exemplo ancestral do tio avô. Daí a sua entrega à retomada das lutas pela soberania nacional, hoje vistas pelo neo-liberalismo como uma emoção retardada, uma página virada da história, na expressão do sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Não julgo necessário me deter aqui na enumeração dos feitos políticos e parlamentares que compõem o largo currículo de Joffily. O jornalista e escritor Waldir Porfírio prestou esse belo serviço aos leitores do presente e aos indagadores do futuro, biografando Joffily para a galeria dos nomes do século, um empreendimento editorial de A União, na gestão Nelson Coelho. Expoente do nacionalismo consequente, do vanguardismo pela reforma agrária, colocando esse ideário acima das conveniências políticas pessoais, ou seja, acima das contingências eleitorais que o levaram à derrota de 1962. Tudo isso permanece nas subcamadas da memória popular. Ainda que não permanecesse, estariam aí os livros de sua salvação, fruto de uma formação intelectual e literária forjada sem trégua, tenha vindo de Marx e de Engel, de Lucaks ou Gramschi ou da melhor literatura brasileira. Fora da política, do seu instrumento de luta por um mundo menos desigual, reco-
lheu-se aos subterrâneos da História, da própria História em que vestiu a farda da militância, agora na intenção de fazer justiça aos vencidos. Há trinta anos, quando tomou posse nesta Casa, ele fazia menção a um projeto nacional que se resumisse em “desenvolvimento com ampliação da faixa social de consumo e sem redução do coeficiente de liberdade”. No mirante destes 100 anos, demorando o olhar nas condições reais de um povo cuja metade, para subsistir, ainda depende de programas como o Bolsa Família; cuja educação é um “faz de conta” reconhecido por ninguém menos que os que governaram; cujas grandes lideranças só por milagre escapam da cadeia; cujo povo, fugindo do desamparo do campo, alastra-se pelos desvãos urbanos da miséria, hipnotizado pelos mesmos espelhinhos do colonizador hoje transmudados em telinhas e mais telinhas; num mirante destes como poderemos situar um visionário que desde os 16 anos vestia a camisa da revolução social? Está entre os vencidos, personagens principais do seu esforço historiográfico ou entre os vencedores? Provavelmente ele poderá dizer como Darcy Ribeiro, que perdeu a maioria das batalhas mas não desejaria estar no lugar dos vencedores. (*) Palestra proferida na noite de 27 de junho de 2014, na sessão comemorativa do centenário de nascimento de José Joffily Bezerra, realizada pela Academia Paraibana de Letras, da qual o homenageado era membro, ocupando a Cadeira nº 24, cujo patrono é Pedro Américo.
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FOLCLORE
ALTIMAR, UM GARIMPEIRO DE ESTÓRIAS POPULARES(*) Oswaldo Meira Trigueiro
ERA UMA VEZ - A Paraíba sempre teve uma tradição de grandes estudiosos e pesquisadores do nosso folclore e da nossa cultura popular. Poderíamos listar vários desses importantes pesquisadores paraibanos que continuam sendo citados em trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Entre tantos especialistas, destacamos aqui o trabalho de Altimar Pimentel, paraibano por adoção e de coração, como ele gostava de ser denominado. CAMINHOS DOS GARIMPOS: NOVAS DESCOBERTAS - Altimar de Alencar Pimentel nasceu em Maceió, no Estado de Alagoas, em 30 de outubro de 1936 e faleceu em João Pessoa a 21 de fevereiro de 2008. Fixou-se na Paraíba, em 1952, foi professor, jornalista, dramaturgo e pesquisador da cultura popular. Exerceu vários cargos na administração pública e aqui destaco a sua atuação na UFPB como professor e pesquisador no Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular/NUPPO e no Curso de Comunicação Social.
Entre as muitas contribuições de Altimar Pimentel à cultura paraibana destaca-se a pesquisa e o estudo dos contos populares que se encontra no acervo do NUPPO/ UFPB. No seu trabalho de pesquisa nas áreas do folclore e da cultura popular, mais especificamente o projeto Jornada de Contadores de Estórias da Paraíba, que coordenou por quase três décadas, Altimar coletou um acervo significativo em quantidade e qualidade de contos populares. Participou ativamente da criação do Museu do Folclore que posteriormente passou a ser o NUPPO, assim como da implantação do Curso de Comunicação Social da UFPB, hoje o Departamento de Comunicação e Turismo – DECOMTUR. Foi também responsável pela reativação da Comissão Paraibana de Folclore e pela coordenação do II Encontro de Folclore da Paraíba, realizado aqui em Cabedelo em 1977, que
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teve como tema central o estudo e a pesquisa dos contos populares. Colaborou na organização da IV Festa do Folclore Brasileiro, realizada em João Pessoa em agosto de 1978 e na do I Encontro de Folclore da Paraíba, realizado em outubro de 1976, em Pombal, no período da tradicional Festa do Rosário. A DESCOBERTA DO TESOURO: LUZIA TERESA E TIA BETA - Na atualidade, aqui no Brasil, qualquer estudo ou mesmo notícia sobre contos populares tem que fazer referência ao trabalho desenvolvido pela equipe coordenada por Altimar Pimentel na UFPB através do NUPPO e, principalmente, às narrativas deixadas por Luzia Teresa. A grande descoberta da Jornada de Contadores de Estória da Paraíba, sem dúvida, foi a narradora Luzia Teresa que chegou a contar 242 estórias diferentes e passou a ser considerada, por especialistas brasileiros, uma das maiores narradoras de contos populares do Brasil e, possivelmente, do mundo. Altimar reuniu 242 contos narrados por Luzia Teresa em cinco volumes publicados pela Editora Thesaurus e pela UFPB. No II Volume de Estórias de Luzia Teresa, o argentino Felix Coluccio, escritor e estudioso da cultura popular latino-americana, falando da importância dos estudos de Altimar Pimentel sobre Luzia Teresa diz: Por fim, gravado tudo o que ela acumulava em sua privilegiada memória, estudados todos os contos que há muitos anos estavam em sua lembrança, Pimentel os foi ordenando e, ainda mais, numa tarefa verdadeiramente ciclópica, fez o estudo de cada uma das estórias, revelou sua dispersão universal, e além disso, traçou seu itinerário e enquadrou cada uma delas nos tipos correspondentes à classificação de Aarne e Thompson, confirmando simplesmente que versões similares foram documentadas na Europa, Ásia e América, como Pimentel já
nos fizera conhecer antecipadamente. Ainda no II Volume, Bráulio do Nascimento, como presidente do Instituto Nacional de Folclore e Presidente da Comissão Nacional de Folclore, ressaltando o valor de Luzia Teresa para a posteridade, sua importância como artista popular e pelo domínio que tinha em narrar as estórias de reis, rainhas, príncipes e princesas, das lutas entre o mal e o bem, ora fazendo os constituintes da recepção de suas narrativas rirem ou chorarem. Assim diz o professor Bráulio do Nascimento: Luzia Teresa, contando suas estórias ilustradas por uma gestualidade peculiar, de que não se perde a imagem, teria surpreendido e tranquilizado Herder com uma recolha tão significativa, dois séculos depois de seu alerta. Era uma mulher frágil, que se transfigurava na companhia dos reis, rainhas, príncipes e princesas, num convívio natural, descrevendo palácios e carruagens, como se houvera circulado pelos salões ou passeado nas carruagens. Luzia Teresa se foi, mas graças ao trabalho de Pimentel, com o apoio da UFPB através do NUPPO, a sua memória, o registro da sua voz e de suas gestualidades, em fotografias, estão disponíveis para gerações e gerações de estudiosos e pesquisadores do folclore e da cultura popular. O mesmo aconteceu com Tia Beta, e Altimar revela para o mundo uma das maiores romanceiras populares da nossa história. Tia Beta deixou em filme e CD as suas estórias de Trancoso, de reis rainhas, de bichos que falam como gente, do bem e do mal. ENCONTROS DE POMBAL(1976) E CABEDELO (1977) - Aqui estiveram nesses encontros pesquisadores como Theo Brandão (AL), Bráulio Nascimento (RJ), Ruth Terra (SP), Vicente Sales (PA), Deifilo Gurgel (RN), Veríssimo de Melo (RN), Saul Martins (MG), Domingos Vieira (MA),
Luiz Beltrão (DF), Roberto Benjamim (PE), Ricardo Noblat (PE), Mario Souto Maior (PE), Fernando Freyre (PE), Neuma Fechine (UFPB), Socorro Aragão (UFPB), Wills Leal (PBTur), José Nilton (UFPB), Paulo Melo (PB) e tantos outros importantes nomes dos estudos e das pesquisas do folclore brasileiro. Também nesses encontros foram lançados o LP Nau Catarineta de Cabedelo, um importante documento discográfico desse folguedo que teve como idealizador e coordenador Altimar Pimentel e dois documentários, a saber, o LP produzido pela Marcos Pereira/FUNARTE e o compacto da série documentos sonoros produzidos pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, também sobre a Nau Catarineta de Cabedelo. ATUAÇÃO DE ALTIMAR - Altimar atuou, com competência, em várias frentes, mas foi como um verdadeiro garimpeiro que ele se destacou, em busca de um tesouro quase desconhecido pelas universidades brasileiras, qual seja, as estórias contadas pelo povo paraibano, do litoral ao sertão, em cuja pesquisa e documentação foi um pioneiro. As estórias do mundo fantástico que até encantam os nossos sonhos. No projeto Jornada de Contadores de Estórias da Paraíba, criado em 1977 com o apoio do professor Iveraldo Lucena, então Pró-Reitor para Assuntos Comunitários/ PRAC/UFPB e de Carmem Isabel e Silva, coordenadora da COEX/UFPB, Altimar iniciava a sua caminhada em busca de contadores de estórias nas diferentes regiões do estado. Era um fato inédito na época, relativamente à pesquisa acadêmica, e aí não podemos deixar de citar a importância de todos esses processos de aproximação da UFPB com o folclore e a cultura popular no reitorado do professor Lynaldo Cavalcanti. O professor Neroaldo Pontes, num período mais recente, também deu a sua contribuição quando Reitor da UFPB. A Jornada de Contadores de Estórias da Paraíba, que também teve o apoio da Fundação Nacional de Artes/FUNARTE, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro coordenada pelo professor Bráulio Nascimento, órgãos do então Ministério da Educação e Cultura, posteriormente veio a se tornar um dos mais importantes projetos de coleta de contos populares do Brasil e até hoje continua sendo uma referência para estudiosos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
O acervo de contos populares do NUPPO é constituído por cerca de 300 narradores de estórias de 27 cidades paraibanas, que resultou em aproximadamente 1.600 contos gravados, transcritos e, quase na sua totalidade, publicados – Jornada de Contadores de Estórias. A preocupação de Altimar não era só a coleta dos contos mas, também, realizar estudos e fazer a divulgação para chegar ao maior número de pessoas interessadas no gênero narrativo e isso foi realizado. Com o sucesso da publicação das estórias em caixas veio em seguida a publicação pelo programa Biblioteca da Vida Rural Brasileira em 1981 – um dos projetos do Programa Nacional de Ações Socioeducativas e Culturais para o Meio Rural/PRONASEC-RURAL, do Ministério da Educação e Cultura/MEC. O projeto tinha como objetivo a seleção e a adaptação de textos que serviam como complemento – transversal – de incentivo ao aluno, a fim de criar e consolidar hábitos e habilidades de leitura, atentando-se para a realidade sócio-econômica-cultural da área de sua abrangência. Altimar continuou a sua jornada, iniciada com as publicações pela Editora Thesaurus, com o livro Estórias de Cabedelo contendo 27 contos narrados por 13 contadores, todos da cidade de Cabedelo. Publicou o I Catálogo Prévio do Conto Popular da Paraíba, também dedicado aos contos coletados aqui em Cabedelo. Na sua análise sobre os contos populares, Altimar lembra que os grandes autores de obras literárias universais tiveram como fontes os contos, os mitos e as lendas, matéria-prima que já vem da tragédia grega, do teatro da Idade Média e do Renascimento. Altimar chama atenção para a importância que tiveram os contos, os mitos e as lendas em autores como Shakespeare, Goethe, Bertolt Brecht e para diversos autores brasileiros, entre eles os paraibanos José do Lins Rego e Ariano Suassuna. Como professor, pesquisador do nosso folclore e da nossa cultura popular e, sobretudo, como coordenador do NUPPO, eu tive o privilégio não só de participar das pesquisas de Altimar, mas também de apoiá-lo no que foi possível para o melhor desenvolvimento do projeto da Jornada de Contadores de Estórias da Paraíba. Essa contribuição ganhou visibilidade com a publicação do livro Contos Populares Brasileiros – Paraíba (Recife, Fundação Joaquim Nabuco – Editora Massangana, 1996). Na coletânea que coordenamos foram publicados 87 contos,
relatados por 56 narradores de 15 localidades diferentes do Estado da Paraíba. O projeto do Conto Popular e Tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa, coordenado por mim e Altimar Pimentel, resultou de um Convênio celebrado entre o Brasil e Portugal, por ocasião da visita do então Presidente da República Portuguesa Mário Soares à Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, Pernambuco, em 1987 e na primeira etapa o projeto seria desenvolvido no Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. O projeto brasileiro foi dividido em subprojetos compreendendo, inicialmente, nove Estados e a Paraíba foi incluída nessa primeira etapa graças ao trabalho anteriormente desenvolvido por Altimar no NUPPO. São várias as opiniões de importantes estudiosos e pesquisadores dos contos populares sobre o trabalho executado por Altimar Pimentel, notadamente, a coleta, a divulgação e o estudo do conto popular na Paraíba inseridos no contexto da cultura local e como linha de pesquisa da Universidade Federal da Paraíba, através do seu Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular/NUPPO. Mas, não foi fácil incluir não só o conto popular neste contexto da pesquisa acadêmica, mas o folclore e a cultura popular numa perspectiva mais abrangente, por serem vistos como objeto lúdico, exótico e sem maiores interesses para o mundo acadêmico. Nas décadas de 70 e 80 do século passado vivemos períodos de patrulhamentos ideológicos, por determinados segmentos da universidade, quando éramos mencionados como professores e pesquisadores de segunda “categoria” pela ocupação do nosso tempo com estudos das manifestações folclóricas e das culturas populares. Atualmente vejo com satisfação o resultado de todo esse trabalho exercido por arrojados estudiosos e pesquisadores que passaram pelo NUPPO, contribuindo para a construção de um acervo de diferentes manifestações culturais tradicionais. Assim foi Altimar Pimentel, um garimpeiro de estórias, professor, jornalista, dramaturgo, pesquisador do nosso folclore, da nossa cultura popular, alagoano de nascimento, paraibano por adoção e de coração. Esse é um pequeno testemunho de quem foi Altimar e, entrei pela perna de pinto e saio pela perna de pato, seu rei mandou dizer que eles contassem quatro. (*) Texto básico da palestra proferida, em 27 de maio de 2014, no Teatro Santa Catarina, quando da abertura do Ano Cultural Altimar Pimentel, patrocinado pela Prefeitura Municipal de Cabedelo.
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MEMÓRIA
FREI DAMIÃO, O MISSIONÁRIO(*) Con. Joaquim de Assis Ferreira
Missionário pelos sertões nordestinos e, em nosso caso, na Paraíba, sempre os tivemos e extraordinários, embora raros. Missionários, exímios pregadores do Evangelho, homens cheios de renúncia e vida santa, fundadores de comunidades religiosas, construtores de igrejas, sempre os mereceu o nosso povo, ainda que de tempos em tempos. Só a presença desses homens incomuns representou uma graça eleita do Senhor à nossa gente, sofrida, mas cristã. A sua pregação valia por um estímulo à fé, um ânimo nos sofrimentos, um grito de reprovação aos desmandos dos costumes, um alento para as reformas da vida, uma elucidação das verdades da Igreja, um aprimoramento da vida santa. A mensagem que transmitiam era autêntica, embora variasse nos métodos. Ainda que com o timbre pessoal de cada missionário, a sua mensagem, por ser genuinamente evangélica, impressionou, vivamente, em todas as épocas, o espírito do nosso povo. Nenhum pregador de verdades tem tido maior receptividade no Sertão do que o missionário. Todos lhe dão cobertura total com um crédito absoluto de confiança. O povo vê no missionário um homem de Deus, uma alma pura, luminosa, reta, uma vida santa. Por isso, aceita e guarda a sua palavra. A vivência da palavra, que prega, dá em favor do missionário um testemunho indiscutível. Quando, por isso ou aquilo, os fieis descobrem desacordo ou incoerência entre a vida e a palavra do pregador, entram em pânico e perdem o ardor religioso. Têm razão - porque negar? - pois, em matéria de fé, só a palavra quente de vida convence. Grande sorte há sido nossa a santidade dos nossos missionários. Varões de Deus é que eles têm sido. Assim, através dos tempos, Ibiapina, Herculano, Martinho e, agora, neste quase meio século, o maior de todos, ao meu ver: Frei Damião.(**) Conhecei Frei Damião, em 1936, ao tem-
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po da sua primeira missão na cidade de Cajazeiras, quando Cajazeiras e Patos eram a mesma diocese. Vinha ele do seu jornadear apostólico no Ceará. Nas cidades do vizinho Estado, onde havia feito grandes movimentações de massas, grandes concentrações de fieis, a fama começava a espalhar-se; mas, para as nossas bandas de cá, do Sertão da Paraíba, era muito pouco conhecido. Lembro-me muito bem da chegada dele, em Cajazeiras. Tudo estava certo e previsto pelo então vigário Pe. Fernando Gomes, atual Arcebispo de Goiânia: hora, local da recepção, restante do cerimonial.
Duas horas passadas e nada do missionário. A partida de Lavras de Mangabeira, no Ceará, tinha sido difícil pelo motivo de grande ajuntamento de pessoas que acorreram às despedidas de Frei Damião. Em palácio, na companhia de Dom Mata, procurávamos adivinhar as razões da demora, quando se ouviram cânticos religiosos pelas ruas, e, dentro em pouco, passava às nossas vistas, acompanhado de um pequeno cortejo de meninos e vários adultos, um religioso baixinho, passo apressado, em direção à catedral, em cuja praça fronteiriça iriam dar-se as missões. Era Frei Damião, que havia descido do automóvel, à entrada de Cajazeiras, e vinha arrebanhando o pessoal.
Estranhamos o método mas ficou nisso. À noite, começaram as missões. O missionário impressionava fortemente. Dia a dia, aumentava a afluência do povo, sequioso de ouvir a palavra do pregador e os seus conselhos prudentes. Éramos vários sacerdotes, trabalhando todos dia e noite, às vezes, a noite inteira, e não dávamos atendimento aos fieis. As missões agradaram e repercutiram de tal modo que a procissão de encerramento ultrapassou todas as expectativas e cálculos. Foi um deslumbramento não só pela incontável massa humana como pelo entusiasmo e fervor religioso do povo. Todos, brandindo ramos, davam a impressão de uma floresta em movimento. Dom Mata, vibrante como era, não se continha e exultava. Cousa tanta nunca vista em Cajazeiras. Daí por diante, à medida que se multiplicavam as missões pelas diversas paróquias da Diocese, cresciam o nome e a fama do missionário. Na paróquia de Catolé do Rocha, ao tempo em que fui vigário, Frei Damião pregou missões por duas vezes. Com Dom Mata, ajudei nas missões de várias paróquias. Sempre me interessou pedir notícias de Frei Damião, em suas intermináveis andanças e correrias apostólicas. Nunca muda. Sempre o mesmo homem extraordinário em todas as idades, em todas as épocas, em toda parte, em todas as situações. Hoje, quase aos 71 anos, aos 46 de sacerdócio, é o mesmo Frei Damião dos primeiros dias de Cajazeiras. A mesma cousa. Madrugador, lépido e apressado no andar, quando sai de manhã; tranquilo e concentrado nas outras horas; incrivelmente incansável, pois nem sei se dorme; paciente e tratável com o povo; delicado e caridoso com os penitentes; prestimoso e jovial com os colegas; humilde e obediente aos superiores; sério e pontual com os compromissos; extremamente zeloso com os enfermos e com os pobres; solícito no púlpito ou no confessionário; solícito no catecismo ou administração dos sacramentos; solícito, quando prega, admoesta ou verbera; solícito, quando ensina ou instrui; solícito, quando repreende; solícito em tudo. Vezes, sentido, nunca zangado; vezes, impetuoso, mas nunca violento; vezes, sonolento, mas nunca cansado; vezes, teimoso no trabalho mas só pelo desprendimento de si mesmo, por amor às almas, pela glória de Deus. Se vergasta, não é descaridoso; se lhe sai a apóstrofe em chamas, é só para o convencimento da verdade; se chicoteia o pe-
cado e o vício, recebe sorridente o pecador; se adverte, não é com ares de profeta; se ameaça, não é com iras de apóstolo. Quando fala, convence; se não fala, impõe respeito. Inteligente, culto, sua palavra é luminosa e inflamada; sua doutrina, segura e substanciosa; sua argumentação, contundente e arrasadora; sua exposição, clara e acessível. A mensagem que transmite é autêntica, não é outra, é a mesma de Cristo. Se um homem desse não é santo, ai de nós! Que cousa somos? Se o povo reconhece naquele que lhe fala de Deus, que ele vive de Deus, se confirma a sua virtude invulgar – que mal faz que este povo ame ardorosamente o seu missionário, que o admire, respeite e estime, que queira bem ao velhinho. Se há cordões policiais de isolamento, em derredor de astros e estrelas, de líderes e herois, para protegê-los do entusiasmo vibrante dos seus fans, devotos e admiradores, com que razões se condenariam o fervor e a exultação dos fieis na presença do seu missionário? Sobretudo, quando esse fervor ajuda eficazmente na aceitação e convencimento das verdades proferidas pelo pregador! Somos realmente levados a receber com facilidade a palavra daquele a quem amamos. E as sentenças do missionário são palavras de Deus. Quem procura inflamar de amor o mundo, merece o amor dos homens. Por que também pretender criticar, como antiquado, o método de apresentação da doutrina seguido por Frei Damião? O método é o meio de transmissão da verdade ou mensagem. Não é a própria verdade, não se identifica com a mensagem. Se o mestre ou pregador consegue transmitir a doutrina, contidas nas suas preleções ou prédicas, excelente é o seu método. Quem melhor do que Frei Damião atinge a mente dos seus ouvintes? O próprio exagero, segundo Jackson de Figueiredo, na base do espírito é um perigo, mas já como elemento de convencimento, é insuperável. Por que azedar-se ainda com a pregação do missionário, fundamentada nas duras verdades eternas? Quer cousa diferente, destrua o Evangelho. O novo, só por ser novo, não é carismático, seja palavra ou sistema. A humanidade adquire, em cada época, o colorido do tempo, mas não muda em sua essencialidade, para que continue humanidade. O novo só e o velho só são visões unilaterais e deturpadas do conjunto. Misturem-
-se os dois e haverá harmonia e beleza. Diga-se só a título de ilustração. Que coisa mais bela do que o ecumenismo! Bela e cristã! No entanto, o ecumenismo não e carismático. Veja-se aí, em pleno século vinte, na super politizada Europa, em pleno coração da Irlanda, essa guerra santa e sangrenta entre irmãos separados – católicos e protestantes. A grande virtude de Frei Damião, como autêntico missionário e pregador da palavra de Deus – é a coragem de dizer ao seu auditório não as verdades que ele quer ouvir mas as verdades que ele deve ouvir. Paremos por aqui, que já vai longe esta crônica, sem nos esquecermos de que é a graça extraordinária de Deus uma missão e, por ser singular e rara, ninguém dela abusa inutilmente. Muitíssimas cousas a mais tinha a dizer com agrado e simpatia sobre: Frei Damião, o Missionário. (*) N. R. Texto lido, ao microfone da Rádio Espinharas de Patos, dentro da série Crônica das Doze, apresentadas diariamente por aquela emissora, na voz do próprio autor, Cônego Joaquim de Assis Ferreira, paraibano de Pombal. Recebeu as ordens sacras no dia 26 de novembro de 1933, passando a exercer as funções de vigário da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, em Catolé do Rocha (PB). Transferido para Patos, assumiu as funções de Inspetor Federal do Ensino, junto aos Ginásios Diocesano e Cristo Rei. Foi também Capelão do Hospital Regional de Patos (atualmente Hospital Janduhy Carneiro) e, posteriormente, do Ginásio Cristo Rei.. Orador de grandes recursos, tornou-se bastante conhecido, notadamente como orador sacro, chamado a pregar em várias cidades do Nordeste, com destaque para o Recife, onde o fez na Basílica do Carmo, em uma das comemorações em louvor da Padroeira do Recife. Foi Diretor da Rádio Espinharas de Patos, pertencente à Diocese local. Durante anos manteve um programa de crônicas, como acima assinalado. Faleceu aos 17 de agosto de 1987. Na crônica aqui transcrita, Pe. Assis, como era bastante conhecido, discorre sobre a figura e a ação missionária de Frei Damião. (**) N. R. Frei Damião de Bozzano, nasceu na cidade italiana de Bozzano, situada ao norte daquele país. Ordenou-se sacerdote em 1923 e em 1931, veio para o Brasil, fixando-se no Recife. A partir daí dedicou-se à sua missão de pregador, pelo interior dos sertões de vários Estados nordestinos. Faleceu aos 31 de maio de 1997. abril/maio/junho/2014 |
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MEMÓRIA
O BAOBÁ DO POETA Diógenes da Cunha Lima
O Baobá de Natal, da Rua São José, no bairro de Lagoa Seca, é o Baobá desenhado em O Pequeno Príncipe por Saint-Exupéry, metade do povo e eu acreditamos. Adquiri o terreno para a preservação da árvore, em 1991. O fato motivou registros em revistas e jornais. O La Stampa, de Turim, abriu manchete: “Salvato il baobab del Piccolo Principe.” O Baobá de Natal encanta os visitantes, com suas raízes, talvez, milenares, fascínio das flores e dimensão do seu tronco, que chega a dezenove metros de circunferência. A monumentalidade do Baobá torna pouco visível a sua flor. A floração maravilhosa ocorre entre os meses de dezembro e fevereiro. Um botão verde nasce, do tamanho de uma laranja, abre-se flor em branco, torna-se creme, marrom, e termina aveludada com leve tom violeta. Será mesmo, o nosso, o Baobá do Pequeno Príncipe? O que se diz é lenda? É história? De fato, há grande semelhança entre o nosso Baobá em relação à sua espécie, folhagem e tronco. É sabida a existência de pelo menos dez tipos de baobás. A maioria deles desprovida de folhas, são como raízes pairando no ar. O aviador Antoine de Saint-Exupéry esteve em Natal e hospedou-se na casa de Dona Amelinha, a Viúva Machado, proprietária, à época, do terreno onde o Baobá eleva o seu império. Há depoimentos confirmando ter Saint-Exupéry referido-se ao pôr do sol do Potengi como um dos mais belos espetáculos do mundo. O elefante, um dos desenhos do clássico livro, é símbolo do Rio Grande do Norte, pela semelhança da sua forma com o mapa do Estado. E a estrela, cometa, o brasão
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Foto: Canindé Soares
François D´Agay e Diógenes da Cunha Lima no Baobá do Poeta
da Cidade do Natal. Em livro póstumo, Cartas à sua mãe, há um trecho onde Exupéry, descrevendo sua viagem, diz que “Dacar é bem feia, mas o resto da linha, uma maravilha”. O resto da linha, aérea, começava em Natal. Árvore simbólica, o Baobá tem recebido a visita de colegiais para aulas interativas e representação teatral. Falo aos meninos sobre a importância da ecologia, dos valores cultuados pelo Principezinho, como: amizade, amor, fé, confiança, respeito à natureza, esperança. Sob a orientação dos professores, eles pesquisam, escrevem, desenham, teatralizam a história do piloto-escritor. Na lírica e pitoresca história circense não deve ter havido representação mais expressiva. O dono de um circo que passava por Natal visitou o
Baobá do Poeta. Entusiasmou-se. Levou notícia do que tinha visto e ouvido à sua trupe. Decidiram homenagear a árvore. No dia seguinte, dançarinas circundavam o Baobá, elefantes, camelos, mágicos, palhaços, exibiram os seus talentos e celebraram A Árvore. Em 6 de maio de 2009, Natal e o seu Baobá receberam a visita especializada do sobrinho-neto de Saint-Exupéry, o engenheiro François D’Agray, que responde pelo acervo do escritor e que, ao contemplar a imensidão da árvore, afirmou: “Lenda é história.” Setenta anos completados do desaparecimento de Saint-Exupery e ele e o seu baobá continuam mais vivos do que nunca.