TURISMO
FESTA DOS TABULEIROS EM TOMAR (PORTUGAL): UMA CELEBRAÇÃO AO DIVINO ESPÍRITO SANTO Oswaldo Meira Trigueiro
A Festa dos Tabuleiros em Tomar (Portugal), que acontece de quatro em quatro anos, é uma das maiores manifestações religiosas ao Divino Espírito Santo, em toda a Península Ibérica. A última festa aconteceu de 2 a 11 de julho de 2011 e eu estava lá para acompanhar e registrar os grandes momentos. Realmente impressiona o envolvimento da comunidade e da cidade na organização e realização da festa sagrada e profana. Tomar é uma das mais antigas cidades de Portugal, nascida próximo ao rio Nabão, pertencente ao Distrito de Santarém. Sua fundação não tem uma data exata, porém há registro que os primeiros edifícios foram erguidos por volta de 1160. A cidade se desenvolveu no entorno do Castelo Templário e do Convento de Cristo. Destacam-se ainda, como monumentos importantes, as igrejas de São João Batista, de Santa Maria dos Olivais, a de Santa Iria e o aqueduto, entre outros. A cidade de Tomar, distante 117 quilômetros de Lisboa, 68 de Santarém e 21 de Fátima, com fácil acesso de automóvel, de ônibus ou de trem, está no roteiro turístico do patrimônio mundial, no caminho dos tesouros dos Templários, da demanda do Graal e da Fé. É nesses cenários entre ruas, praças e pontes antigas que acontece a Festa dos Tabuleiros. O homem comemora há centenas de anos os seus ritos de passagem e relembra as suas datas festivas sagradas, profanas e de agradecimento aos deuses pagãos. Essas evoluções e evocações chegam até os dias atuais já incorporadas aos nossos calendários de tradição religiosa e festiva do catolicismo popular, que se espalharam por toda a Península Ibérica e chegaram ao Brasil com os colonizadores portugueses. Ao longo do tempo essas práticas sempre fizeram parte dos processos das transformações culturais e religiosas da sociedade humana e das suas relações simbólicas, dando origem aos diversos protagonistas e suas performances nos festejos populares.
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Fotos: Oswaldo Meira Trigueiro
CARTA AO LEITOR O editor José Olympio foi, durante o século passado, a maior expressão na atividade livreira do nosso país, caracterizando-se por descobrir e estimular vocações, fazer amigos, encorajar estreantes, exercitar a tolerância, reunir contrários, enfim conduzir sua livraria não somente com preocupação gerencial ou comercial, mas também fazendo-a um local de reunião de amigos, tão a ela ligados que passaram a tratá-la, carinhosamente, de A Casa. Tudo isso conforme testemunhos espalhados por jornais e livros de memórias e confissões. Editorialmente, uma das maiores iniciativas de J. O. foi a criação de uma coleção reunindo obras que buscassem pensar e interpretar o Brasil sob diferentes ângulos. Tal coletânea, intitulada DOCUMENTOS BRASILEIROS, foi objeto, pela sua importância, de uma tese de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em História Social da USP, de autoria do Professor e Doutor Fábio Franzini, que, com seu estudo também obteve o Prêmio Casa de Rui Barbosa 2007. O trabalho que GENIUS publica nesta edição - Escrever Textos, Editar Livros, Fazer História: A Coleção Documentos Brasileiros e as Transformações da Historiografia Nacional (1936-1960) – é um resumo da tese do Professor Fabrini, obtido para proveito dos seus leitores, a quem esta revista procura sempre satisfazer, mediante o aporte das melhores colaborações que se possam angariar para prestígio de suas páginas. Outra colaboração do mesmo quilate, de autoria da advogada Giovanna Polarini, é a que se dedica a realçar a importância dos contos de fadas para a educação em direitos humanos, ressaltando, especificamente, nesse contexto, a contribuição de Oscar Wilde. Alinhadas a essas duas contribuições, outras tantas merecerão a atenção dos leitores, assinadas por Wills Leal, Lourdinha Luna, Andrès von Dessauer, Joaquim Osterne Carneiro, Renato César Carneiro, Oswaldo Meira Trigueiro, além daquelas em que se homenageiam o centenário de nascimento do médico Napoleão Laureano e o desaparecimento do designer gráfico Milton Nóbrega, não se podendo encerrar estas linhas sem uma referência ao trabalho do Professor Cláudio Pedrosa, discorrendo sobre o direito natural de Tomás de Aquino como categoria jurídico-metodológica contemporânea. É com grande alegria que GENIUS apresenta sua sétima edição.
julho/agosto/setembro/2014 - Ano II Nº 7 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 3244.5633 / 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
SUMÁRIO
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FESTA DOS TABULEIROS EM TOMAR (PORTUGAL): UMA CELEBRAÇÃO AO DIVINO ESPÍRITO SANTO Oswaldo Meira Trigueiro
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DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA II
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ROMERO NÓBREGA: UM JURISTA DE VÁRIAS FACES
Flávio Sátiro Fernandes
A BELA PRAIA DO CABO BRANCO Wills Leal
JOSÉ ELIAS BARBOSA BORGES Lourdinha Luna
BREVE RELATO A RESPEITO DA ORIGEM E DA FORMAÇÃO DA FAMÍLIA CARNEIRO DO SERTÃO DA PARAIBA Joaquim Osterne Carneiro
Renato César Carneiro
PARA ONDE VAI O ORIENTE MÉDIO? Andrés Von Dessauer
ESCREVER TEXTOS, EDITAR LIVROS, FAZER HISTÓRIA: A COLEÇÃO DOCUMENTOS BRASILEIROS E AS TRANSFORMAÇÕES DA HISTORIOGRAFIA NACIONAL (1936-1960) Fábio Franzini
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A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS PARA A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A CONTRIBUIÇÃO DE OSCAR WILDE Giovana Meire Polarini
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CINCO POEMAS DE ERNANI SÁTYRO
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CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE NAPOLEÃO LAUREANO
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LIVROS
HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DOS ESTADOS BRASILEIROS Equipe Gênius
DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA O DIREITO NATURAL DE TOMÁS DE AQUINO COMO CATEGORIA JURÍDICO-METODOLÓGICA CONTEMPORÂNEA Cláudio Pedrosa Nunes
Equipe Gênius
MORRE MILTON NÓBREGA, O MAGO DO DESIGN GRÁFICO Equipe Gênius
JOÃO PESSOA, CAPITAL DA PARAÍBA: EM MEIO A UMA DAS MAIORES ÁREAS DE MATA ATLÂNTICA URBANA DO BRASIL Boaz Vasconcelos Lopes
COLABORAM NESTE NÚMERO:
COLABORADORES BOAZ VASCONCELOS LOPES [João Pessoa, Capital da Paraíba: em meio a uma das maiores áreas de mata atlântica urbana do Brasil] Doutor em recursos naturais pela Universidade Federal de Campina Grande CLÁUDIO PEDROSA NUNES [O Direito Natural de Tomás de Aquino como categoria jurídico-metodológica contemporânea] Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 13ª Região, Doutor em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de Salamanca, Doutorando em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direito pela UFPE e Professor Adjunto I da UFPB. DURVAL FERREIRA [Napoleão Laureano, o político] Vereador à Câmara Municipal de João Pessoa e, atualmente, seu residente. ERNANI SÁTIRO - In memoriam (Cinco poemas de Ernani Sátiro). Escritor, romacista, poeta. Foi também deputado federal em oito legislaturas, ministro do STM e Governador da Paraíba. EILZO NOGUEIRA MATOS [Em memória de Milton Nóbrega] Advogado, escritor, Ex-Deputado Estadual, Ex-Secretário de Estado do Governo da Paraíba, membro da Academia Paraibana de Letras. FÁBIO FABRINI [Escrever textos, editar livros, fazer história: a Coleção Documentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-1960)] Doutor em História Social pela USP, Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. E-mail: fabio.ff.franzini@gmail.com. FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES [Destaques da bibliografia paraibana II e III] Membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
GIOVANA MEIRE POLARINI [A importância dos contos de fadas para a educação em direitos humanos: a contribuição de Oscar Wilde] Advogada, pós-graduada em Direito Civil pela UNI-FMU, Mestra em direito pela UNIFIEO na área de consentração: Proteção e concretização dos direitos humanos. JOAQUIM OSTERNE CARNEIRO [Breve relato a respeito da origem e da formação da família Carneiro do sertão da Paraíba] Engenheiro Agrônomo, escritor e historiador. Sócio Efetivo e atual Presidente do IHGP Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. JUCA PONTES [O Tempo iluminado de Mituca] Poeta, publicitário, ativista cultural. MARIA DE LOURDES (Lurdinha) LUNA [José Elias Barbosa Borges] Escritora. Ex-Secretária do Ministro José Américo de Almeida. OSWALDO MEIRA TRIGUEIRO [Festa dos tabuleiros em Tomar (Portugal): uma celebração ao Divino Espírito Santo] Escritor, Folclorista, Professor Aposentado da Universidade Federal da Paraíba. OTÁVIO SITÔNIO PINTO [Napoleão Laureano: o nome e o nume] Escritor, membro da Academia Paraibana de Letras. RENATO CÉSAR CARNEIRO [Romero Nóbrega, um jurista de várias faces] Advogado, Professor da Universidade Federal da Paraíba e do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP). WILLS LEAL [A bela praia do Cabo Branco] Escritor, cineasta, membro da Academia Paraibana de Letras.
NOSSA CAPA A Palmeira que ilustra a nossa capa foi o símbolo que marcou os volumes da Coleção Documentos Brasileiros, “Símbolo de significação profunda e simplicidade surpreendente,” no dizer de Otto Maria Carpeaux, para quem a palmeira, outrossim, é: “a árvore típica, cujas raízes se confundem com as próprias raízes do Brasil; a ávore que deu sombra à Casa-Grande do senhor e à senzala do escvravos; a ávore que, através das vicissitudes da história do Brasil, sombreou o cemitério das derrotas e se hasteou, às vezes, como bandeira da vitória; a palmeira bem brasileira, as raízes na terra e a coroa no alto, na região da poesia.” A palmeira foi concebida como símbolo da CDB, pelo gênio inigualável do paraibano Tomás Santa Rosa (1909-1956), pintor, desenhista, ilustrador, cenógrafo, designer que durante largo tempo emprestou suas habilidades de artista plástico na ilustração de textos e capas de livros da Livraria José Olímpio.
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BIBLIOGRAFIA
DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA II PELA VERDADE Flávio Sátiro Fernandes Quando na Presidência da República, Epitácio Pessoa notabilizou-se, entre outros feitos, pela prática constante de empreender pela imprensa do Rio de Janeiro a defesa de seu governo, sempre que se via acossado por injustas acusações e fosse qual fosse a natureza dos libelos que se lhe fizessem. Frequentava o notável paraibano os espaços abertos aos leitores, pelos diferentes órgãos de imprensa, ou seja, as colunas intituladas SOLICITADAS ou A PEDIDOS, através das quais prestava esclarecimentos, desfazia calúnias, afastava dúvidas, prestava contas, enfim, procurava manter transparentes todos os atos de sua administração. Dois pontos importantes podem ser ressaltados nesse aspecto particular da ação governamental de Epitácio Pessoa: em primeiro lugar, ao defender-se, o Presidente não se valia de sua condição privilegiada de primeiro mandatário da Nação, mas, ao invés, agia como um cidadão comum, apelando para os espaços gratuitos que os jornais ofereciam aos seus leitores. Com outras palavras, não se valia ele dos cofres públicos para ver publicizados os seus argumentos em favor de sua administração. Em segundo lugar, o Chefe da Nação antecipava-se, na década de 20 do século passado, àquilo que setenta anos depois passaria a ser a grande exigência feita a todos os gestores públicos de qualquer nível, vale dizer, a transparência relativa aos atos e gastos públicos. Após deixar a Presidência da República, Epitácio viu avolumarem-se, mais e mais, as acusações ao seu Governo, exigindo do estadista maior esforço na defesa de seu nome, de sua honradez, de seu prestígio de homem público de quem a Nação esperava ainda grandes serviços. Para tanto, Epitácio reuniu em um só livro todas as razões que deliberou expor e oferecer a seus patrícios, em torno das questões relevantes abordadas por seus adversários e sobre as quais estes antepuseram acusações, dúvidas, contradições. Tal livro, intitulado PELA VERDADE, surgiu em 1925 e merece, sem dúvida, um des-
taque entre tantos que integram a Bibliografia Paraibana. Sobre ele tecerei algumas breves considerações, haja vista a impossibilidade de fazer maiores colocações, pela exiguidade de espaço, esperando, contudo, que elas sirvam de lembrança, a quem queira conhecer e analisar mais aprofundadamente a obra, da qual a edição mais recente é de 1957, patrocinada pelo antigo Instituto Nacional do Livro, contendo prefácio do escritor e acadêmico Ernani Sátyro, organizada em dois volumes. Aliás, o aparecimento do livro de Epitácio Pessoa, em defesa de seu governo, deu lugar a comentários, favoráveis e contrários ao que ali foi exposto pelo Ex-Presidente. Aos que se manifestaram em desfavor da obra, Epitácio, que depois de exercer o mais alto cargo público do País, voltara ao Senado, representando seu estado natal, por várias vezes ocupou a tribuna daquela casa legislativa, visando a defender-se, assim como ao seu governo. Mereceram respostas do Senador Epitácio Pessoa, notadamente, os Srs. Manuel Borba, Antônio Azeredo e Rosa e Silva. Vale salientar que Epitácio não refutou pessoas ausentes que se não pudessem defender. Ao contrário, os personagens políticos objeto de suas contestações eram membros daquela Alta Casa do Congresso e com elas o autor do PELA VERDADE altercou da tribuna parlamentar: Manuel Borba, Senador por Pernambuco; Antônio Azeredo, representante do Mato Grosso; Senador Rosa e Silva, também de Pernambuco. Outras defesas empreendeu Epitácio através de entrevistas a diferentes órgãos de imprensa, ou seja, a tudo o Ex-Presidente da República esclareceu, nada ou a ninguém deixando sem resposta. Tudo isso o Senador paraibano reuniu em um novo livro, dando-lhe o mesmo título ofertado ao volume anterior. Daí o Instituto Nacional do Livro, órgão do Ministério da Educação e Cultura, ao proceder à reedição do PELA VERDADE, tê-lo feito em dois volumes, um contendo o texto original do livro do Ex-Presidente e outro compreendendo as peças que representaram sua defesa ante as acusações feitas ao seu li-
vro, como o fizera o Ex-Presidente. Segundo o seu prefaciador (PELA VERDADE, Instituto Nacional do Livro, 2 vols.. 1957): O Pela Verdade constitui, em certo sentido, antes que uma defesa, um brado de revolta. Revolta contra a perversidade de muitas das acusações assacadas contra o eminente paraibano. Não deixando jamais sem resposta qualquer crítica que lhe parecesse injusta. Epitácio vinha a campo, defendia-se, argumentava, demonstrava, provava, sempre com a maior energia. As defesas apresentadas por Epitácio, entre discursos artigos e notas, compreendem questões diversas, tais como, a sua atuação na Conferência de Paz de 1919, em Paris, como Chefe da Delegação brasileira, na qual duas questões principais interessavam ao Brasil: a do café do Estado de São Paulo e a dos navios que durante a guerra o Brasil apreendera aos alemães; acusações que lhe eram feitas de advocacia administrativa, acumulações remuneradas e antipatia às classes armadas, arguida esta pela sua decisão de designar elementos civis para chefiar os ministérios militares; a momentosa questão da intervenção na Bahia, em 1920, proclamada pelo próprio Ex-Presidente como um dos atos mais graves do seu governo; assuntos relativos à gestão financeira, o ponto mais atacado da administração epitaciana, envolvendo, entre outros atos, o empréstimo de 50 milhões de dólares; o empréstimo do café; o empréstimo de 25 milhões de dólares; aumento da dívida externa e interna; dívida flutuante; as obras contra as secas, o contrato da Itabira Iron, o veto do orçamento, a exportação do açúcar, as obras da Avenida Atlântica, a “ética jornalística” da oposição, a revolta de 5 de julho de 1922, a sucessão presidencial são outros assuntos tratados pelo Ex-Presidente, em sua ampla defesa. Por fim, em Capítulo intitulado “O meus haveres”, as considerações, feitas a respeito dos bens que possuía, preocupanjulho/agosto/setembro de 2014
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do-se em demonstrar que os adquirira por parcimônia e por falta de desregramentos em sua vida – “sem vícios, sem amantes, sem negócios, sem pândegas e sem ostentações” – tanto antes quanto durante o seu governo. E DESABAFA: Todos os homens de sentimento compreenderão o vexame com que escrevo estas linhas. O que mais me punge não é o enleio natural ante a dura contingência de expor ao público as intimidades da minha vida; o que mais
me dói, porque tortura o meu patriotismo e me dilacera o amor-próprio de brasileiro, é reconhecer que a rarefação do nosso ambiente moral e a nossa lamentável tendência para acreditar em tudo quanto possa tisnar a honestidade alheia, obrigam um homem de bem, com 40 anos de vida pública notoriamente ilibada, a defender-se de acusações formuladas por indivíduos que representam o que o nosso meio social possui de mais vil – difamadores de aluguel e outros desgraçados do mesmo jaez – e a vir para o meio da rua desvendar os recessos de sua existência, a fim de não correr
o risco de ser confundido com a escória que o insulta e calunia. Do trecho final acima, chama a atenção, em nossa paisagem humana atual, o agigantamento – é esse o termo exato – daquela “rarefação moral do nosso ambiente”, de que fala o inesquecível filho de Umbuzeiro. Pela sua inegável importância, tanto para a história do Brasil, de um modo geral, quanto para a história da Paraíba, no que tange, em particular, à problemática das secas e à figura do seu autor, o PELA VERDADE se insere entre os destaques da bibliografia paraibana. g
DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA III DICIONÁRIO COROGRÁFICO DO ESTADO DA PARAÍBA Outro trabalho que tem garantida sua presença em qualquer resenha bibliográfica de nosso Estado é, sem dúvida, o trabalho em epígrafe, de autoria do escritor, historiador, romancista, poeta, ensaísta, João Rodrigues Coriolano de Medeiros ou, simplesmente, Coriolano de Medeiros, que foi fundador da Academia Paraibana de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), autor dos romances Manaíra e O Barracão; dos livros de crônicas, Sampaio e O Tambiá de Minha Infância, além de várias plaquetas, produtos de conferências e palestras de conteúdo histórico, assim como artigos de igual temática, divulgados em revistas do IHGP e da Academia Paraibana de Letras e no Boletim do Gabinete de Estudinhos de Geografia e História da Paraíba, entidade de que fez parte, criada e mantida, durante certo tempo, como dissidência ao IHGP. A primeira edição do Dicionário surgiu em 1914 e na NOTA PREAMBULAR o autor, modestamente, proclama que ao livro não cabia o pomposo título de DICIONÁRIO e sim o de Apontamentos, por lhe faltar o cunho científico, embora seja, reconhece, o primeiro abecedário geográfico da Paraíba. Na NOTA que antecede o texto, Coriolano de Medeiros observa que, geografica-
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mente, o Estado da Paraíba permanece desconhecido. Desde 1858 – adianta o autor, «depois dos geógrafos prussianos Carlos Blesse e David Polemann, cujos trabalhos cartográficos e geodésicos mãos criminosas desviaram da Secretaria do Governo, somente agora a comissão federal de servi-
ço contra a seca principiou uma série de estudos que, ultimados e reunidos, darão ideia mais completa do Estado”. Evidentemente, com a implantação de cursos de geografia, não só da Universidade da Paraíba, posteriormente Universidade Federal da Paraíba, como de outras instituições privadas, os estudos sobre a matéria possibilitaram um melhor conhecimento sobre o nosso Estado e, consequentemente, a eliminação daquela ignorância de que se queixava o autor do DICIONÁRIO. Em 1950, veio a lume nova edição do trabalho de Coriolano, através do Instituto Nacional do Livro, saudada por Augusto Meyer, Diretor do INL, como “contribuição para a ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA”. Infelizmente, Coriolano nada acrescentou à segunda edição de sua obra: Nesta segunda edição do Dicionário Corográfico do Estado da Paraíba, nada acrescentarei. Seja-me permitido repetir: “perfeito ou imperfeito, aqui está o livro, para o qual não peço indulgência; reclamo, apenas, justiça, não só porque há um esforço a medir-se, como porque, em matéria de estudos, não se deve transigir com o erro”.
Uma terceira edição do DICIONÁRIO COROGRÁFICO DO ESTADO DA PARAÍBA não poderá ser trazida a público sem uma atualização completa do texto, não do ponto de vista dos conceitos e definições ali inseridos, mas, principalmente, no tocante à atual divisão administrativa do Estado, pois cem anos são passados desde o aparecimento do livro. Decorrente disso, a localização dos acidentes geográficos também há de ter nova referência, pois uma serra citada como pertencente a um determinado Município, pode ter, hoje, seu sítio em outra, por força da redivisão administrativa. Em face desta, igualmente, a toponímia também deverá merecer cuidados, porquanto nesse período muitos lugares tiveram modificada sua denominação. Alguns entendem dever ser mantido todo o texto primitivo, em respeito ao autor e à sua criação original. Não obstante, torna-se imprescindível, se se quiser reeditar o trabalho de Coriolano, uma atualização das informações nele contidas, sob a forma de notas de rodapé, adendos, anexos, apresentados fora do texto, sob pena de fazer-se do DICIONÁRIO uma obra inútil, imprópria para alicerçar as pesquisas dos que se interessam pelas coisas do nosso Estado e, pior, capaz de induzir em erro quem o consultar, tudo isso pela defasagem entre o que o livro informa e a realidade de agora, no que tange à configuração geopolítica da Paraíba. Em que pese tudo isso, o DICIONÁRIO é obra de destaque na bibliografia paraibana e folgo em fazer este registro no ano do centenário de seu aparecimento. g
TURISMO
A BELA PRAIA DO CABO BRANCO Wills Leal
A PRAIA do Cabo Branco continua sendo uma das mais decantadas e ricas de belezas naturais da orla marítima paraibana. Verdadeiro paraíso dentro de uma metrópole com mais de quatrocentos anos, foi preservada, como poucas do Nordeste, para ser o local onde ainda reinam “a sombra e água frescas”. Sua brisa, não importa a hora, é sempre refrescante, o trânsito não é estressante e seu mar é emoldurado por belo coqueiral. Relaxando-se em repousante cadeira na praia, amenizando o sol com colorida sombrinha, tem-se ao seu dispor uma série de opções de lazer. O ideal é entrar nas cálidas e seguras águas do mar e, feito um aventureiro, partir em busca dos bancos de corais, atuando como verdadeiro pesquisador; jogar o anzol no mar (e, claro, documentar a proeza) para poder depois contar aos amigos que o peixe que pescou pesava mais do que você; recordar da sua feliz infância, comprando uma pipa ao camelô local e deixá-la no céu, o mais alto possível, a fim de receber aplausos gerais; ter uma aula de salvamento com os bombeiros de plantão, obtendo deles Diploma para se tornar um verdadeiro cidadão, republicanamente falando; ir até o número 4.000 e de lá seguir em demanda do mar até encontrar (se for maré baixa), uma cruz medindo mais de um metro, encravada numa grande pedra, devendo fotografá-la e, se enviar para os jornais, certamente receberá os parabéns de muitos pela proeza. NA PRAIA do Cabo Branco, a natureza se fez generosa em todos os sentidos. Suas águas calmas combinam, de forma harmoniosa, como uma sinfonia, com alvas areias, criando uma exuberante paisagem, poeticamente recortada por coqueiros nativos e frondosas árvores sob o manto de primitivo frescor. Na sua extensão de quase cinco quilômetros há total balneabilidade, sem qualquer tipo de poluição, seja ambiental, sonora, odorífica ou visual. Pelo contrário, o ambiente é sempre ecologicamente correto, desde o nascer do sol até a chegada da lua, criando
um cenário emocionante, verdadeiramente cinematográfico. Em demanda de Tambaú ou do Seixas, existe uma cobertura vegetal incrivelmente verde, continuada em alguns pontos, com solenes coqueiros, dunas, cajueiros e castanholas. O mar é sempre calmo, sem apresentar qualquer perigo, nem mesmo nos dias de marés altas. É que uma barreira natural de arrecifes areníticos e coralinos contribui para amenizar os efeitos das marés, daí porque, em boa parte do dia, a praia se transforma, em alguns locais, em verdadeira piscina. Quando as águas da poética e dadivosa praia do Cabo Branco se tornam verde esmeralda a paisagem fica emoldurada por um cenário maravilhoso, constituindose num irrecusável convite ao banho. É comum encontrar pescadores trabalhando com rústicos, primitivos e seculares apetrechos, para subir garbosamente nos coqueiros e retirar o coco, cuja água é um verdadeiro néctar dos deuses. NA PRAIA do Cabo Branco somos sempre envolvidos por intensos enlevos fluidais provocados pelo magnífico nascer do sol. Essas fortes emoções prolongam-se
durante o dia e a noite. Embora seja um só fenômeno, o seu nascer e até o poente têm conotações bem próprias, ritmos diversos e interpretações até mesmo antagônicas.O bom mesmo é se ter tempo - e paciência – para se maravilhar com essa dádiva da natureza e tentar interpretar, à luz dos seus olhos, cada uma dessas fases e entender o sentido das coisas exibidas. O nascer do dia na orla marítima cabobranquense, pelo cenário que oferece, é sempre fantástico, tropicalmente ensolarado, expressando misteriosas configurações símbolos e enigmas fantasmagóricos. Tendo o dia inteiro sob o domínio de um sol que repousa num céu limpíssimo, também encanta-o uma tênue brisa enviada pela Deusa do Mar. Vem, certamente, para aplacar o barulho das marés, quebrando o seu silêncio e estimulando-o a curtir as boas coisas que a pródiga natureza lhe oferece. Os ventos trazem, podem crer, segredos e evocações e mesmo quando avançam em sua direção, parecendo uma força ameaçadora, não se preocupe, pois eles são encantados mensageiros das boas coisas, enviados pelos céus. Você então notará matizes dourados, com sinuosidades indolentes e com textura julho/agosto/setembro de 2014
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bem luminosa, encantadora. Estes raios, refletidos diretamente sobre a água, com o tempo vão-se escondendo no horizonte, apresentando nuances de pintura futurista, até chegar, no final do dia, a se esconder na linha do céu, dando vez à noite. Logo em breve, um novo cenário celestial, de róseo claro, verde e lilás, invade o crepúsculo, temos então o império da calma, do requinte, da melancolia. Por uma alquimia impenetrável, cada cor, a cada dia-noite, consegue se transformar em misturas que não têm limites. O céu passa por muitas transformações, por marcantes contrastes, até não mais poder lutar com o impacto superagudo da nova tonalidade que surge, com seus contornos dourados e púrpuras. A noite avança, substituindo o branco pelo cinzento, passando por clarões indefinidos, até a chegada da escuridão. O novo espetáculo, em algumas horas, será substituído por outro e, mais uma vez, tudo começará, dia após dia. Por sorte dos paraibanos, aqui na orla do Cabo Branco temos uma inesquecível visão sobre as águas do mar. Somos abençoados pela presença de uma imensa tela de nuvens, diante de uma quase religiosa paisagem, altamente pictórica, como se o astro já não mais pudesse exercitar suas incríveis e mirabolantes transformações e desse, assim, por encerrada sua missão a cada dia. Para nós, é chegada a hora de curtir um “lual” nas tropicalíssimas areias do Cabo Branco e vivenciar, em sua plenitude, a beleza e o calor humano da noite paraibana. A ORLA do Cabo Branco é o local ideal para práticas esportivas e atividades que visam à melhoria da saúde. A bucólica praia tem políticas públicas voltadas para sua plena sustentabilidade e oferece boa estrutura, equipamentos e serviços que permitem o uso das calçadas, da areia e até mesmo da própria pista de rolamento (dependendo do horário), para deleite dos seus usuários. Toda a orla, em realidade, está ao nosso inteiro dispor, de forma muito generosa, como se fossemos seu legítimo e único dono. Jamais deixará de oferecer amplos espaços, porquanto a área tem baixo adensamento habitacional, até mesmo nos fins de semana. Sua ocupação normal é muito aquém da cota ideal de uso, considerando-se o metro quadrado de areia x banhista. A positiva situação encontrada na bela praia, é decorrente de três realidades: 1. sua população fixa tem menos de 10 mil habitantes, quando, tecnicamente, a sua capacidade de espaço
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ofertado na areia poderia abrigar cerca de 40 mil pessoas. 2. fica em estrita faixa de terra ( em boa parte, margeando a barreira ) não tem grande concentração de edifícios altos e na orla, em face de determinação constitucional, não se permite ultrapassar 14 metros. 3. não há, nesta praia límpida urbana, local específico para estacionamento de ônibus, o que limita consideravelmente a presença de grupos de pessoas vindas de outras regiões para se banhar nas suas águas. Bem sinalizada, com largas calçadas, excelente iluminação (inclusive na própria areia), tem diversas quadras esportivas, atendimento médico de plantão, uma ciclovia onde milhares de pessoas se exercitam todos os dias, galerias de arte, oficinas artesanais e sedia uma das mais importantes instituições culturais da Paraíba, a casa-museu do imortal José Américo de Almeida. Abriga o projeto Acesso Cidadão que permite, com
Por sua importância, o Cabo Branco foi tombado pela Constituição Paraibana como Patrimônio Natural do Estado da Paraíba.
equipamentos, a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida, ter acesso ao mar, á prática de esporte e de atividades sociais e culturais. (Informações Fone – 8787.3470 e email: acessocidadao@gmail.com). A praia conta ainda com uma base de ambulâncias do SAMU e um posto Policial, além de uma unidade do Corpo de Bombeiros, onde estão lotados guardas salva-vidas. Dispõe também de “cocôletores”, para receber dejetos de animais. Românticas alamedas, com frondosas árvores, implantadas paralelamente à calçadinha, são um permanente convite para uma descontraída caminhada a dois. Em concorrido e democrático passeio, ao longo das calçadas, pela manhã e à noitinha, possibilita, de forma saudável, plena interação entre seus habitantes e turistas. Ao longo da praia, encontramse charmosos locais para se curtir a vida, sem quaisquer formalismos, como os “barzinhos”, onde se saboreiam iguarias
locais e se pode aplacar o calor, tomando uma água de côco nativo, doce como mel. Seu sabor, de fato, só é comparável ao de uma rodela de nosso abacaxi, sempre lembrado, pelos turistas, como o mais doce e gostoso do mundo. NO FINAL DA PRAIA do Cabo Branco temos a praia do Seixas, onde está o extremo oriental do continente. Este importante monumento natural apresentase como baixo planalto, em terrenos de altitudes variáveis entre 15 e 40 metros, relativamente planos ou tabuleiros. Na parte Sul, exibe estreita planície marinha formada por areia quartzosa, que constitui propriamente a praia do Seixas. Sua configuração geográfica caracteriza-se pela paisagem litorânea com encostas abruptas e matas naturais ao longo da orla. Teoricamene aproxima a Paraíba da África/Europa e é um permanente convite à meditação, embalada pelo sopro suave dos alísios. Sua monumental plástica é sempre esplêndida, apesar dos contínuos desgastes provocados pela erosão das ondas e do vento. Por sua importância, o Cabo Branco foi tombado pela Constituição Paraibana como Patrimônio Natural do Estado da Paraíba. Geologicamente, é definido como “falésia viva”, termo usado para classificar as elevações do litoral que sofrem diretamente o efeito da erosão do mar. Dessa parede argilosa brotam cores que tingem, harmoniosamente, este singular monumento da terra, uma pintura viva e dinâmica que se altera com as intervenções das marés desde o começo do universo. O local oferece um cenário deslumbrante, descortinando-se de sua enseada um imenso panorama do Oceano, com suas águas mudando de cor e visualizando-se claramente duas faixas verde e azul e o vasto lençol de areias brancas que formam as praias de Cabo Branco e Tambaú, ao norte, Seixas e Penha, ao sul. No riquíssimo ecossistema encontram-se cerca de 300 espécies de algas e belas piscinas naturais. Em 1972, um farol, em moderna concepção arquitetônica, foi instalado no local para facilitar a navegação na costa paraibana. Recentemente, quatro grandes intervenções mudaram radicalmente a rotina calma do Cabo Branco, sem afetar, contudo, a beleza da praia, a sinfonia das ondas e a balneabilidade das águas: a super verticalização das suas moradias; a construção da bela Estação Ciência e Artes (projeto de Oscar Niemeyer); o Projeto Turístico Costa do Sol (com a abertura de novos acessos turísticos) e o Centro de Convenções. g
MEMÓRIA
JOSÉ ELIAS BARBOSA BORGES Lourdinha Luna
INTRODUÇÃO - Ao afastar-se da vida pública pela aposentadoria, José Elias Barbosa Borges dedicou-se ao sonho que sempre acalentou: escrever sobre os índios que habitaram o território da Paraíba e outros Estados do Nordeste. Porém, partiu sem realizar, na integralidade, o seu intento. E MERÁ BUYÊ (nome primitivo de Campina Grande), em linguagem Cariri, ficou inconcluso. A história dos índios mansos “Cariris”, na Paraíba, começou com a perseguição de Garcia d’Ávila, residente na Bahia, que desejava se apossar das ilhas formadas pelo rio São Francisco e pertencentes aos indígenas. O aventureiro português era filho de Tomé de Souza, fundador da Casa da Torre, o maior latifúndio das Américas. Na narração antiga, figura como dos primeiros sertanistas a se embrenharem no Brasil, à cata de riquezas. Para livrar os aborígines do tratamento injusto e cruel do usurpador de suas terras, os franciscanos capuchinhos os recolheram para as ribanceiras da serra do Carnoió, nas proximidades da atual cidade de Boqueirão-PB. Campina Grande passou a ser o berço dos Cariris, assim como a capital virou terra dos Tabajaras. O editor de MERA BUYÊ, economista Heitor Cabral, estava com o mencionado livro quase pronto, a poucos dias do falecimento do agente dessa magistral criação artística e literária, razão de viver do professor José Elias, nos últimos tempos de sua viuvez. ` Para prestar a derradeira homenagem ao seu patrocinado, que afinal sequer viu a sua obra seminal em letra de forma, o responsável pela publicação, Heitor Cabral, pediu a pessoas que conviveram com José Elias, depoimentos sobre sua participação nas áreas em que mais atuou: como professor, membro do IHGP e Presidente da Fundação Casa de José Américo. . Coube-me, como auxiliar de José Elias, na Secretaria do Conselho Deliberativo da FCJA, Associação Cultural implantada na residência do autor de A Bagaceira, na Avenida Cabo Branco, João Pessoa-PB, oferecer meu testemunho sobre seu desempenho, nos dois anos em que exerceu a Secretaria, e
nos demais como Presidente da instituição. Comoveu-me a escolha de meu nome, pelo Presidente da Casa, para atuar no colegiado, como Secretária do Órgão Deliberativo, integrado por figuras representativas de nossas letras e da administração pública federal e estadual, conveniados com a cultura. Confesso que, anos depois, ao explorar o assunto, com mais profundidade, espantei-me com o volume de feitos de sua lavra, ao retomar o relato das referidas reuniões da FCJA, em sua profícua administração. Guardo como um troféu os registros que elaborei, em minha longa carreira como servidora pública, de modo especial a consideração do professor José Elias, na escolha de sua modesta auxiliar, para missão de tanto relevo. A VIDA PRIVADA - Nascido em Pernambuco, José Elias Borges dedicou-se à Paraíba, onde contraiu matrimônio com a professora universitária, nascida no Ceará, Neuma Fechine. Como mestra, fora atuante e dedicada à pesquisa do Cordel e ofereceu uma contribuição notável para o enriquecimento da literatura regional, que tinha no folheto a fonte e a divulgação de uma cultura genuinamente nordestina. Após a morte da companheira e para continuar vivendo, José Elias aconchegou-se, mais ainda, aos filhos, ao carinho do neto e sobretudo a escrever, como o único devaneio de sua desolada existência. Acompanhou o tratamento de saúde da esposa, em Salvador, e distribuía noticias quando eram esperançosas. Seu retorno ao lar foi uma festa de emoção e sentimento. Como o que é bom dura pouco, o estado geral de Neuma apressou sua partida definitiva. Amargurado, José Elias desfez-se do hábito de esperar turistas, que saíam do Hotel Tambaú, para conversar na língua nativa deles, um meio de se aperfeiçoar, cada vez mais, nos idiomas estrangeiros e de se distrair, também, como afirmava... Aproximou-se da Igreja Católica e não perdia missa na intenção de sua amada, que a seu pedido, era celebrada. Não se esquecia de avisar aos amigos o local, dia e hora do Santo Sacrifício, em sufrágio da alma de sua querida Neuma Fechine Borges.
O PRESIDENTE E SUA OBRA - Os contratos de cooperação firmados pela FCJA com a UFPB, CNPQ, Ministério da Cultura, Banco do Brasil, Secretaria da Presidência da República e outros organismos federais, impulsionaram a projeção da Casa, durante o período de vigência de José Elias, na sua Presidência. Com a inata simplicidade, o ponto de maior realce de sua personalidade, dizia que pouco teria feito, sem a colaboração dos pesquisadores e funcionários. Falar do professor e poliglota José Elias, desde sua iniciação no grupo Epitácio Pessoa (João Pessoa); no Alfredo Dantas e Pio XI, (Campina Grande); no bacharelado em letras Anglo-Germânicas e doutorado em Linguística (UFPB), não caberia nos limites de um breve comentário. No idioma da língua inglesa, fora agraciado com o Certificado de Proficiência, pela University of Michigan – Ann Arbor; nos Cursos de Extensão Universitária no Brasil e nos inúmeros Congressos e Seminários de que participou, como expositor, debatedor, títulos, que honram não só a ele, mas a Paraíba altaneira. Seu currículo, aliás, não se exaure no que foi dito. Foi, também, Professor de Língua Portuguesa, como exímio conhecedor de suas subdivisões, quanto à região geográfica onde se insere e a camada social a que pertencia. Ensinou Língua Indígena seja de que lugar se originasse o nativo. Ministrou Idiomas Estrangeiros, como perito em Literatura, Sociologia e Metodologia da Ciência. Somou aos seus notáveis dotes intelectuais, como Presidente da FCJA a condição de Consultor de Pesquisas para a Cartilha Literária (aplicação de textos do escritor José Américo, em Escolas de 1º e 2º graus) e o Projeto da Biblioteca Literária, além de outros estudos. Em março de 1992 ele chegou à Fundação Casa de José Américo, como seu Secretário Executivo, tendo em vista inclusive suas realizações, entre outras, como introdutor da Cultura Popular nas Escolas rurais da Paraíba, e, simultaneamente, a criação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros na UFPB. Dando-se a vacância do cargo de Presidente e em face do relevante currículo e testemunho do seu valor, o governador do Esjulho/agosto/setembro de 2014
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tado e seu amigo de longas travessias, insistia para que ele assumisse a Presidência da Casa. Por modéstia, resistia e alegava suas limitações para um cargo de tanta relevância. Como secretária do Conselho que José Elias presidia, fui convocada pelo governador Ronaldo Cunha Lima e contatei Reynaldo Almeida, filho do patrono da Casa, na tentativa de ele conseguir do refratário, aceder ao chamado oficial. Fomos vitoriosos, depois de tenaz resistência do convidado. Para uma visão de seu dinamismo e presciência, cito em seu primeiro ano de gestão (1992) algumas medidas que adotou para o desenvolvimento e a ascensão da Casa de Cultura que passou a comandar, com o propósito de vê-la crescer e ombrear-se a outros conceituados institutos culturais de nosso país. 1) José Elias abriu seu fecundo período presidencial com a conferência, no auditório da Fundação Casa de José Américo, do professor da Sorbonne, Jacques Donguy, sobre o tema: “Le Moviment Fluxes de l’Art Contemporaine”, tendo como intérprete o professor Milton Marques, da Universidade Federal da Paraíba. A promoção contou com o apoio da Aliança Francesa e da UFPB, que ofereceram para uma platéia atenta, momentos de enlevo intelectual e projeção além fronteiras, para nossa Casa e o Estado da Paraíba. 2) A FCJA participou de seminário sobre a formação de profissionais para a Educação de Base, promovido pela UFPB, em colaboração com a DEMEC-PB; SESC-PB; PFM-PB, PNAC, UDIME, CNEC e as Secretarias Municipais de Educação de João Pessoa e de Campina Grande. 3) Registra-se em sua gestão o III Encontro dos Arquivos Privados do Brasil, que reuniu, em João Pessoa, especialistas da área de Arquivologia, para estudos de maior profundidade em planejamento, estrutura, e preservação de documentos indispensáveis ao funcionamento de organizações públicas e privadas, que zelam pelo patrimônio da memória nacional. O evento teve a coordenação da professora Ana Isabel de Souza Leão, Diretora do Arquivo da FCJA e patrocínio do governo Estadual, Fundação Joaquim Nabuco, Secretaria de Cultura da Presidência da República, UFPB, FUNESC, CNPQ, Arquivo Nacional, Associação dos Arquivos do Brasil e das Fundações Getúlio Vargas e Ruy Barbosa. A abertura realizou-se no auditório da PB-TUR, que abrigou uma freqüência maior e contou com a presença do Secretário de Cultura da Presidência da República, o embaixador Pedro Penner. O curso teve conferencistas de nível superior, como a integrante da Consultora de São Paulo, Hâmida Rodrigues Helley; da FGV/CPDOC, Célia Maria Leite Costa; da ECO-UFRS, Milton Paulo Teixeira, entre
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outros. Quase todos os Estados da Federação Brasileira foram representados nesse certame, com o envio de 147 participantes para essa assembléia de eruditos. 4) O lançamento de FALO PORQUE POSSO, de autoria da professora Edelweiss Coelho Costa, que inseriu em livro sentenças de José Américo, algumas conhecidas, outras inéditas. O governador se fez representar nesse conclave, pelo Chefe da Casa Civil, bacharel Tarcisio Telino. 5) A Exposição DOZE ANOS DA FUNDAÇÃO, em que se fez uma retrospectiva da residência do “Solitário de Tambaú”, a começar de 1982, ano de sua instalação, até os dias iniciados na gestão do presidente José Elias Borges. 6) A entrega ao público do GUIA TURÍSTICO – CONHEÇA A GRANDE JOÃO PESSOA, um trabalho realizado pela equipe da Fundação, em convênio com a Prefeitura Municipal, que legou à instituição os direitos autorais sobre a publicação. 7) A Academia Paraibana de Letras outorgou à FCJA a comenda do Mérito do Serviço Cultural, através de proposta do seu presi-
Registra-se em sua gestão o III Encontro dos Arquivos Privados do Brasil, que reuniu, em João Pessoa, especialistas da área de Arquivologia
dente professor Manuel Batista de Medeiros. 8) A ratificação pelo presidente da Republica Fernando Collor de Mello, em maio de 1992, do decreto estadual nº 93.712 de 15 de dezembro de 1986, que reconhece a Fundação como entidade, juridicamente constituída, de utilidade pública. 9) No tocante à Hemeroteca, a Casa recebera quatro coleções de jornais da Paraíba a começar da década de 1940. As instalações de telefonia foram atualizadas com 60 ramais internos, como subsídio para melhorar os contatos externos da Fundação. O ato demonstra que o então Presidente José Elias se preocupava com os extremos: o máximo e o mínimo, ou seja, com a cultura e com o conforto físico do quadro funcional da repartição que dirigia. 10) José Elias contatou a Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, representado
pela UFPB, UEN, SEBRAE, Fundação Centro Tecnológico da Paraíba, Secretaria de Indústria e Comércio de Campina Grande para garantir a viabilização do intercâmbio sistemático de informações, para utilização em atividades científicas e tecnológicas e para mapear os recursos disponíveis em Ciência e Tecnologia a fim de atender às necessidades de setores dessa área. 11) Foi apresentado à Fundação Banco do Brasil o projeto da HISTÓRIA ECONÔMICA DA PARAÍBA. À Secretaria de Cultura da Presidência da República foi entregue o DICIONÁRIO LITERÁRIO PARAIBANO de responsabilidade da professora Idelette Muzart. 12) Na Academia Brasileira de Letras aportaram dois projetos: A GEOGRAFIA NA OBRA DE JOSÉ AMÉRICO e o outro que tinha por título JOSÉ AMÉRICO E O MODERNISMO. Este enviado num momento propício, quando se celebravam os 70 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. 13) A FCJA trabalhou, ainda, com projetos sobre AS POSSIBILIDADES TURÍSTICAS DO ESTADO. Em convênio com a Companhia de Industrialização do Estado da Paraíba (CINEP), a FCJA fez o levantamento geográfico e ecológico de toda a zona do Cabo Branco, tendo em vista a iniciativa do Projeto Costa do Sol e a implantação das ZPEs, no nosso Estado, como uma forma de atrair recursos que permitissem desenvolver outras atividades culturais. 14) Há também um acerto com a Fundação Joaquim Nabuco visando à aplicação do programa ISIS, para ser utilizado na recuperação de Arquivos. 15 Em convênio com a UFPE, a FCJA se dispôs a levantar o ACERVO ARQUEOLÓGICO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, pesquisa dirigida pela professora Gabriela Martins. 16) O Ministério da Educação foi o veículo para a edição do ATLAS ESCOLAR DA PARAÍBA, distribuído nas Escolas Públicas do Estado, a alunos de 1º e 2º graus. Igualmente foi enviado ao mesmo Ministério, o projeto sobre o tema: O MUSEU E O ARQUIVO VÃO À ESCOLA. 17) A BAGACEIRA, traduzida em francês pela professora da UFPB Francisca Prado, foi deixada em vias de publicação. Existe também, um estudo comparativo das duas edições de A BAGACEIRA, em inglês, a cargo de pesquisadores da UFPB. A primeira é de autoria de R.L.Scott-Buccleuch e a outra do professor Barlow e esposa. 18) O empenho do governador Ronaldo Cunha Lima, junto ao ministro do Superior Tribunal Militar, Reynaldo Almeida, a pedido do Presidente José Elias, levou-nos a uma extraordinária conquista por via de nor-
ma que considera a FCJ como pessoa jurídica de tilidade pública, cujo teor reza: “Fica mantida a declaração de utilidade pública, vigente nesta data, relativa à Fundação Casa de José Américo.” Esse reconhecimento favoreceu a Instituição, ao permitir a inserção, em seu favor, de emendas ao Orçamento da República e ao do Estado da Paraíba. A MEDALHA DE HONRA - Foi restaurada a publicação da REVISTA DE CULTURA, interrompida em 1968. O ano de 1992 terminou glorioso, com a aprovação da entrega ao Ministro da Cultura e membro da Academia Brasileira de Letras, acadêmico Antonio Houaiss, da medalha José Américo de Almeida, criada pelo decreto nº 11.996, de 30 de maio de 1987. A comenda lhe foi outorgada por serviços prestados à cultura brasileira, como dicionarista, filólogo e escritor e em reconhecimento ao seu proclamado valor. No documento de entrega do troféu está inserida a firma de todos os membros do Conselho Deliberativo. Relaciono, pela ordem das assinaturas firmadas: José Elias Borges, Presidente FCJA; Milton Paiva, representante da família de José Américo; Sebastião Vieira, Secretário de Educação; Berilo Borba, Delegado do MEC, na Paraíba; Flávio Colaço Chaves, Vice-Reitor da UFPB; Marcus Maciel Formiga, representante do CNPq. Prestigiaram a solenidade, o governador Ronaldo Cunha Lima, os ex-governadores Ivan Bichara e Tarcísio Burity, o reitor Neroaldo Pontes, o ex-Presidente da Fundação Francisco de Sales Gaudêncio, o Secretário Executivo da FCJA, Flávio Sátiro Fernandes Filho, autoridades civis e militares, intelectuais, deputados, professores e alunos. Após as palavras do Ministro Antonio Houaiss que expressou seu contentamento por estar na Casa de seu confrade José Américo e dos bons propósitos que o Ministério da Cultura votava à instituição, ouviram-se os agradecimentos no verbo sentencioso e sereno do Presidente da FCJA prof. José Elias. Referiu-se à capacidade intelectual do homenageado, aos títulos consagrados e afirmou que o Ministro Houaiss era a esperança da comunidade nacional que cria, preserva e aprimora, através da comunicação, com base na interação entre pessoas. Lembrou que a cultura no nosso país está, a cada dia, mais ameaçada na sua identidade. Em seu breve discurso, de modelagem conceitual, reportou-se à origem da medalha de que, sob os aspectos mais exigentes, ele era merecedor, quer como diplomata, professor, dicionarista, tradutor e membro
da Academia de Letras do Brasil. Antecipadamente agradeceu pela conferência - LITERATURA BRASILEIRA E O ROMANCE REGIONALISTA, que o agraciado faria em seguida. . O ARQUIVO DOS GOVERNADORES - Havia sido construído, pelo governador Tarcísio Burity, o prédio que abrigaria o Arquivo dos Governadores, anexo-II, o qual se abriu para receber o acervo de ex-Chefes de Estado e de escritores da província. A documentação do ex-governador Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Mello, doada por sua viúva Cinira de Albuquerque Mello, residente no Rio de Janeiro, encontra-se num espaço climatizado, na FCJA. A correspondência e livros do escritor Ascendino Leite, transferidos por ele, estão em ambiente moderno, com todos os requisitos exigidos para a conservação de um patrimônio que é também testemunha de uma fase republicana do Estado da Paraíba e do país. Na sequência, a doação de bens literários de outros governadores paraibanos, como o do poeta Ronaldo Cunha Lima
Com tantas características qualitativas e quantitativas, José Elias era simples como são as almas eleitas.
(transferido em vida), o do fundador de nossa casa de cultura, Tarcísio Burity e o do governador José Maranhão, os quais, testemunhos da atividade construtiva e da ação governamental de todos eles, repousam na FCJA, à disposição dos pesquisadores. Os arquivos de Tarcísio Burity e de Ronaldo Cunha Lima se acham modernamente organizados pela ação do Presidente Flávio Sátiro Fernandes Filho. Falta incorporar-se ao arquivo particular o oficial do patrono da Instituição, que dormita no Espaço Cultural e por problemas diversos, ainda, não foi reclamado para abrigar-se no ambiente onde está o mausoléu do seu patrono. Nos impressos documentais residem o traslado dos atos que deram origem ao bem imenso que fez o governante aos seus patrícios, com a criação da Univer-
sidade Estadual da Paraíba em 1955. As Escolas Superiores estavam em funcionamento desde 1951, como uma promessa de campanha. A federalização veio depois, por via do deputado federal Abelardo Jurema, líder do governo Juscelino Kubstichek, porém, com a colaboração de José Américo, segundo informação que me foi passada pela professora Clemilde Torres, esposa do acadêmico Afonso Pereira. Ela recorda quando o ex-governador já se encontrava despojado de função pública, mas não se omitia em atender ao pedido de interferência, junto ao Ministério da Educação, para a solução desejada. A ADMINISTRAÇÃO DA FCJA Milton Paiva já lhe havia dado as raízes, e os demais Presidentes lhe ofereceram o adubo para que crescesse e frutificasse. Sem demérito para outros dirigentes, sob o comando do professor, pesquisador e poliglota, José Elias Barbosa Borges, a Fundação Casa de José Américo ganhou o selo da perpetuidade, sobretudo pelo esforço de seu Presidente que será eternamente louvado. Para fazer justiça, concedo créditos ao governador Ronaldo Cunha Lima, que semanalmente visitava a Fundação para seus encontros administrativos com José Elias, que também, elaborava os projetos do Estado. O FIM DA JORNADA - Quando alguém com os atributos natos e relevantes do Professor José Elias Barbosa Borges se oculta no infinito, ocorre-nos o lugar comum: “a Pátria está de luto...” A Paraíba, pesarosa e desesperançada, por não mais contar com os serviços desse ilustre filho, embora seus feitos literários e morais engrandeçam sua história, queda-se entristecida. Dizia São Tomaz de Aquino que “a humildade é o primeiro degrau da sabedoria”. Pela sensata opinião, José Elias, merece a alcunha de sábio. Com tantas características qualitativas e quantitativas, José Elias era simples como são as almas eleitas. “Era uma figura finíssima, senhor de uma erudição incomum”, como atesta seu editor Heitor Cabral. Educado, de voz mansa, tranqüilo, sem queixas. Dava a impressão de que sua vida era um mar de rosas. Jamais o vimos alterado ou simplesmente irritado. Passava a idéia de que se policiava, para repelir os percalços. O professor José Elias Barbosa Borges legou à Fundação Casa de José Américo, um status de grandeza e respeito. Por tudo o que fez à cultura, à intelectualidade paraibana e à Fundação Casa de José Américo relembraremos sua memória, eternamente reconhecidos. g julho/agosto/setembro de 2014
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GENEALOGIA
BREVE RELATO A RESPEITO DA ORIGEM E DA FORMAÇÃO DA FAMILIA CARNEIRO DO SERTÃO DA PARAIBA Joaquim Osterne Carneiro
INTRODUÇÃO. Como sabemos, a genealogia, que se dedica a estudar as origens ou linhagens das famílias, sempre ocupou lugar de destaque no conjunto de outros ramos das ciências, principalmente no respeitante à historia, cuja abrangência é bem mais ampla. Nesse sentido, como não poderia deixar de acontecer, os estudos e pesquisas genealógicas oferecem inestimáveis subsídios aos que desejam conhecer os fatos históricos, ocorrendo um real entrelaçamento entre a genealogia e a história e, por via de consequência, entre a antropologia, a sociologia, a arqueologia, a geografia, a ecologia, dentre outras ciências por demais importantes. Assim sendo, devemos levar em consideração que a origem e a formação das famílias e logicamente dos seus integrantes, de algum modo, é matéria que interessa a determinados grupos de pessoas. A FAMÍLIA CARNEIRO - CARNEIRO (2004), às fls. 10, ao abordar a origem dessa família do sertão do Estado da Paraíba informou o seguinte: “Descendentes de portugueses que aportaram no nosso país, a formação da família Carneiro teve inicio no Sitio Caatinga dos Andrade, que faz parte de Riacho dos Cavalos, antigo Distrito de Catolé do Rocha, e no Sitio Micaela que integra o atual município de Lagoa, ex-Distrito de Pombal, no Estado da Paraíba Esses portugueses eram Manoel Vieira Carneiro, Daniel Vieira Carneiro e João Vieira Carneiro, sendo que os dois últimos se fixaram na Paraíba, dando origem á família Carneiro”. CARNEIRO VAZ (2008), às fls. 15 do seu livro que trata da história do município de Riacho dos Cavalos declarou: “Segundo o professor João Viera Carneiro que foi meu professor, a Data Riacho dos Cavalos foi comprada pela família Machado que depois vendeu aos portugueses Manoel Vieira Carneiro, João Vieira Carneiro e Daniel Vieira Carneiro que já haviam comprado a Data da Micaela, no Distrito de Lagoa,
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o qual pertencia ao município de Pombal PB. Quero esclarecer que uma data de terra equivalia a três léguas de comprimento por uma de largura”. Às fls. 18 do trabalho anteriormente citado, CARNEIRO VAZ ao falar da formação da família Carneiro em Riacho dos Cavalos assinalou: “Conforme o escritor e historiador Joaquim Osterne Carneiro, a formação da família Carneiro teve inicio no Sitio Caatinga dos Andrade. Quero confirmar a veracidade dessa afirmação do meu primo Joaquim Osterne, recordando uma conversa que presenciei, certo dia, entre minha mãe e o meu tio Antonio José Vieira, pai de José Antonio Vieira, conhecido por Zé Vieira. Nessa conversa, meu tio afirmou que o português Manoel Vieira Carneiro (Marinheiro) morou , primeiramente no Sitio Caatinga dos Andrade, depois veio morar no Sitio Riacho dos Cavalos”. Ao mesmo tempo, SOUSA (1971), às fls. 363 ao falar da formação da família Carneiro explicitou o seguinte: “Com referencia á família Carneiro, cuja formação na Paraíba teve como cenários principais Caatinga dos Andrade, em Catolé do Rocha e em Lagoa e Micaela, no município de Pombal, tem ainda como subsidiaria a família Costa da Fazenda Pilar, também em Catolé do Rocha. Conheço ainda os fatos seguintes : Um viajante da família Mendes Carneiro, de Sobral, do Estado do Ceará, disse-me que um senhor de engenho de Pernambuco, português, tinha três filhos: - uma mulher e dois homens. A moça casou em Pernambuco e dela procedem os Carneiro Leão. Os rapazes, à noticia da existência de oito moças, filhas do fazendeiro Francisco Mendes, de Sobral, se dirigiram para aquela localidade, mas ao passarem em Catolé do Rocha, um deles casou e deu origem à família Vieira Carneiro. O outro casou com uma filha de Francisco Mendes, de cujo consorcio resultaram os Mendes Carneiro de Sobral”.
De outra parte, ao pesquisar no livro de SOUSA (1971), principalmente às fls. 337 vimos que o casal José Pereira de Sousa e Margarida Cardoso de Jesus eram pais de sete filhas e um filho. O referido autor identificou os seguintes filhos do casal acima referido: Raimunda Maria da Conceição, Senhorinha Maria do Espírito Santo, Margarida de Jesus, Isabel Maria de Jesus, Margarida Maria da Conceição e Antonio Pereira de Sousa. Por outro lado, Raimunda Maria da Conceição casou com Trajano José da Costa; Senhorinha Maria do Espírito Santo casou em 2 (dois) de julho de 1820, com João Vieira Carneiro; Margarida de Jesus casou em 2 (dois) de julho de 1820, com Daniel Vieira Carneiro; Isabel Maria de Jesus casou com José Tavares de Sousa ( José Caetano); Margarida Maria da Conceição casou com Francisco da Costa Marrocos; e Antonio Pereira de Sousa casou com Maria Lourença da Conceição. Faz-se necessário ressaltar que Trajano José da Costa era irmão de Francisco da Costa Marrocos e nessas condições eram casados com duas irmãs. Daniel Vieira Carneiro e João Vieira Carneiro eram irmãos também casados com duas irmãs. Nesse sentido, os filhos de João Vieira Carneiro e de Senhorinha Maria do Espírito Santo eram primos carnais dos filhos de Daniel Vieira Carneiro e de Margarida de Jesus. Do mesmo modo, os filhos de Francisco da Costa Marrocos e de Margarida Maria da Conceição eram primos carnais dos filhos de Trajano José da Costa e de Raimunda Maria da Conceição. Por sua vez, José Tavares de Sousa (José Caetano) que se casara com Isabel Maria de Jesus, ficou viúvo, tendo casado em segundas núpcias com Alexandrina Maria da Conceição, filha de Francisco da Costa Marrocos e de Margarida Maria da Conceição, sendo conseqüentemente, sobrinha de sua primeira mulher. Fica, portanto comprovado, que ocorreu desde os primórdios a união entre primos legítimos e mesmo entre tios e sobrinhas na família Carneiro, conforme constatamos no
capítulo dedicado a genealogia, constante do nosso livro “OS CARNEIROS DO SERTÃO DA PARAIBA E DE OUTRAS TERRAS - ASPECTOS HISTÓRICOS, POLÍTICOS, GENEALÓGICOS, lançado em 2004 e já citado no presente trabalho. Dedicados inicialmente às atividades agropecuárias, os Carneiros a exemplo de muitos outros sertanejos tiveram muitos prejuízos, em face das secas periódicas que assolam a região semi-árida do Nordeste brasileiro, tendo-se espraiado por todo o nosso país, especialmente pelos Estados da Paraíba e do Ceará. Entretanto, a partir da década de vinte da centúria passada, muitos dos membros da família foram concluindo os estudos e partiram para exercer atividades as mais diversificadas possíveis, tendo alguns deles ingressado na política. Ronaldo Cunha Lima, ao fazer a Apresentação do nosso livro “ OS CARNEIROS DO SERTÃO DA PARAIBA E DE OUTRAS TERRAS - ASPECTOS HISTORICOS, POLITICOS, GENEALOGICOS”, afirmou: “Joaquim Osterne Carneiro revela-se diligente jardineiro da sua frondosa árvore genealógica, em cujos galhos e ramos se enreda com os escrúpulos de meticuloso e minudente genealogista, cônscio ademais de que a tradição onomástica representa
importante lastro para opções e atitudes, mormentes políticas. Tanto que coligiu preciosas relíquias do heráldico passado da família ilustre, ratificando como a mística do sobrenome segue intacta através de seus legados histórico, político, administrativo e intelectual, pois, do alto de biografias que servem de referências, os irmãos Ruy e Janduhy, a par do magnífico Alcides Vieira Carneiro, ampliaram o sotaque paraibano com a linguagem persuasiva e tolerante de quantos enxergam a plenitude democrática no livre debate de ideias divergentes”. E, mais adiante, acrescentou: “Os Carneiros tornaram-se vultos memoráveis, dentre outras virtudes, por fazerem parte daquilo que a política nordestina tinha e tem de melhor: vozes serenas e ricas de coragem; a coragem nunca autoproclamada daqueles que acreditam muito numas poucas coisas fundamentais e não veem mérito especial nisso, apenas fidelidade à própria consciência. Portanto, sem alterarem o tom das vozes, em nenhum momento deixaram de dizer integral e precisamente tudo aquilo que devia ser dito, defendendo suas proposições com denodo e consciência acerca de assuntos como saúde, educação, equidade sócio-economica, etc, sobretudo quando aludidos assuntos
estavam inseridos no intrincado contexto das disparidades regionais agravadas pelas estiagens. Afinal de contas, todos sabemos as áreas nas quais ficaram indelevelmente marcadas as profícuas atuações políticas do advogado e grande político Ruy, do médico Janduhy e do tribuno/jurista Alcides. Fui amigo, admirador e discípulo de suas exemplares figuras referenciais como sou fraterno companheiro da brilhante geração de Dr. Antonio, Desembargador Raphael Carneiro Arnaud e o atual Deputado Ruy Carneiro. As alentadas páginas de “ Os Carneiros do Sertão da Paraíba e de Outras Terras - Aspectos Históricos, Políticos, Genealógicos”, constituem uma fonte de subsídios de inestimável valor para historiadores e estudiosos em geral ligados às ciências sociais. Entrementes, livros como este de Joaquim Osterne contribuem para o nosso acervo memorialístico configurar um lago tranquilo onde navegam sólidas fragatas de reminiscências, equidistantes das águas tormentosas nas quais vagueiam oscilantes embarcações de memórias desordenadas. Nem haveria de ser diferente: o autor procedeu ao levantamento das raízes e dos feitos de uma família da estirpe dos Carneiros, cujas experiências têm o condão de germinar os espíritos dos pósteros com lições de integridade existencial”. g
BIBLIOGRAFIA CARNEIRO, Joaquim Osterne. OS CARNEIROS DO SERTÃO DA PARAIBA E DE OUTRAS TERRAS - ASPECTOS HISTORICOS, POLITICOS, GENEALOGICOS. Gráfica Mercado. João Pessoa - PB, 2004. CARNEIRO VAZ, Benedito. RIACHO DOS CAVALOS E SUA HISTORIA.. Imprima Gráfica e Editora. João Pessoa - PB, 2008. SOUSA, Antonio José. APANHADOS HISTORICOS GEOGRAFICOS E GENEALOGICOS DO GRANDE POMBAL. Pombal - PB, 1971.
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MEMÓRIA
ROMERO NÓBREGA: UM JURISTA DE VÁRIAS FACES Renato César Carneiro
FILIAÇÃO E PRIMEIROS ESTUDOS Romero Abdon Queiroz da Nóbrega nasceu na Rua Solon de Lucena, n. 39, em Patos/PB, no ano de 1939. Filho do agropecuarista e advogado, Napoleão Ábdon da Nóbrega e de Maria Angelita Queiroz da Nóbrega. As primeiras letras foram iniciadas no Colégio Cristo Rei e, depois, no Educandário Santo Antônio, ambos localizados em Patos/ PB. O curso primário foi concluído no Colégio Marista, situado na cidade do Recife/PE. Na capital paraibana, estudou no Colégio Marista e no Lyceu Paraibano. O JURISTA Romero Nóbrega concluiu o curso de Direito na tradicional Faculdade do Recife, em 1964, de onde saiu para atuar e brilhar nos Tribunais do Júri do interior da Paraíba. Da sua turma, que está comemorando, este ano, cinquenta anos da colação de grau, faziam parte os paraibanos Flávio Sátiro Fernandes, Eilzo Nogueira Matos, Jomar Morais Souto, Mário Silveira, Roberto Figueiredo, Carlos Hermano Mayer e outros mais. Detentor de uma oratória envolvente e reconhecido perfeccionista na elaboração das peças jurídicas que subscrevia, rapidamente angariou, no Sertão paraibano, a fama de grande criminalista e chegou a integrar o quadro de conselheiros da Ordem dos Advogados do Brasil, secção da Parahyba. Versátil nas letras jurídicas, Romero teve uma atuação decisiva no desfecho de um dos casos eleitorais célebres que tramitaram na Justiça Eleitoral. Na eleição municipal de 1982, defendendo os interesses do Diretório Municipal do Partido do Movimento Democrático Brasileiro/PMDB, subscreveu a impugnação ao pedido de registro da candidata do PDS, Eurídice Moreira da Silva, mais conhecida como “D. Dida”. Ela e o seu marido, o prefeito de Itabaiana, Aglair Silva, haviam simulado uma separação judicial para evitar a inelegibilidade da candidata. Inicialmente, o juiz eleitoral deferiu o re-
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gistro da candidata que, posteriormente, foi eleita. Porém, Romero Nóbrega impugnou o seu diploma. Desta vez, o magistrado Reginaldo Antônio de Oliveira acatou o pedido feito pelo advogado do PMDB, declarou a prefeita inelegível e decretou a nulidade do seu diploma. Outro caso eleitoral importante em que Romero atuou foi na conturbada ação judicial em que se discutiu a eleição indireta, pela Assembleia Legislativa, do governador Milton Bezerra Cabral. Nesse segundo processo, Nóbrega funcionou como juiz do Tribunal Regional Eleitoral, nomeado que fora pela presidência da República em 31 de dezembro de 1985, mas só havia sido empossado em 03 de fevereiro de 1986. A eleição indireta do governador Milton Bezerra Cabral, decorreu da renúncia coletiva do governador - Wilson Leite Braga - e do vice-governador – José Carlos Júnior – e também da recusa do presidente da Assembleia em assumir o cargo, o deputado Evaldo Gonçalves, porque era candidato a deputado federal. Houve a impetração de dois mandados de segurança pelos partidos oposicionistas. Um deles foi distribuído a Romero Nóbrega, que concedeu o pedido de liminar em que impedia a realização da eleição do “governador biônico”, pela Assembleia Legislativa. Na outra ação congênere, o juiz eleitoral Antônio de Paula Magalhães, também concedeu a liminar. Uma decisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral revogou as decisões tomadas pelos dois juízes do Tribunal Regional Eleitoral. A partir da decisão tomada por Romero na ação, deputados do governo miraram as suas baterias e deram início a uma espécie de linchamento público – na tribuna parlamentar e pelos jornais locais - dos dois juízes. Romero Nóbrega ficou no centro de um verdadeiro furacão, em que as duas facções políticas da Assembleia disputavam o poder político e se tornou o principal alvo de alguns parlamentares.
Passada a refrega política, Romero não chegou a completar o seu mandato de dois anos no TRE. Renunciou ao cargo de juiz eleitoral em 12 de março de 1987 para assumir a função de procurador-geral do Estado e passou a ser um dos principais secretários do governador eleito em novembro de 1986, o professor Tarcísio de Miranda Burity. A passagem de Romero Nóbrega pela Procuradoria do Estado, pode ser considerada a melhor fase de sua carreira jurídica, pois foi nesse órgão que ele teve a oportunidade de demonstrar todo o seu potencial de cultor da Ciência do Direito. Atuando junto ao Supremo Tribunal Federal, o ilustre filho de Patos chegou a ajuizar dezenas de ações, nas quais se pedia que a Suprema Corte declarasse inconstitucionais vários dispositivos da Constituição Estadual da Paraíba, promulgada em 1989. O Procurador-Geral obteve sucesso em todas as ações, justificando assim a conduta do governador Tarcísio de Miranda Burity, que não havia comparecido à solenidade de promulgação da referida Carta Estadual, considerando as várias aberrações jurídicas encontradas em seu texto original. Durante a sua atuação como defensor dos interesses do estado, uma tristeza o marcou: não ter conseguido evitar, no Poder Judiciário, a liquidação extrajudicial e o consequente fechamento, pelo Banco Central, do Banco do Estado da Paraíba – PARAIBAN – considerada a causa mais difícil de sua história nos tribunais. O POLÍTICO Romero Nóbrega tinha o sangue da política correndo em suas veias. Seu pai, havia sido deputado estadual na Assembleia Legislativa do Estado, na condição de representante do Vale do Sabugi, na década de 50. Em 1966, ensaiou a sua primeira campanha eleitoral. Querendo seguir os passos do velho Napoleão Nóbrega, candidatou-se ao cargo de deputado estadual, pelo Movimento Democrático Brasileiro/MDB. O Vale do Sabugi, não faltou ao clã Nóbrega. Em Santa Luzia, obteve a maior vo-
tação: 1.839 (um mil, oitocentos e trinta e nove) votos, ao contrário de sua terra natal, a “Morada do Sol”, onde obteve inexpressivos 259 (duzentos e cinquenta e nove) votos. O que lhe sobrava em oratória e conhecimentos jurídicos, lhe faltava nas urnas, posto que os dois mil, novecentos e trinta e quatro votos que recebeu foram insuficientes para se eleger. No seio do partido ao qual era filiado, era conhecido como um dos seus “bombeiros”. No início da década de 90, teve o seu nome lembrado para ser um dos candidatos a prefeito de Patos. O PROFESSOR Durante a década de 70, Romero Nóbrega lecionou a disciplina Instituições de Direito Público e Privado, no Curso de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas de Patos. Seus ex-alunos registram que, no magistério, ele tinha dois pontos fortes: a assiduidade e o bom humor. Essas duas qualidades
explicam o fato de suas aulas serem as mais concorridas pelo corpo discente. O DESPORTISTA Ainda criança, Romero havia sido mascote do time do Botafogo, de Inocêncio, em Patos. Já na adolescência, apaixonou-se pelo Nacional Atlético Clube e tornou-se frequentador assíduo do Estádio Municipal José Cavalcanti. A simplicidade era uma das marcas de sua personalidade. Mesmo integrando o Conselho do Nacional Atlético Clube, na condição de juiz eleitoral ou até mesmo no exercício do cargo de Procurador Geral do Estado, Romero Nóbrega se recusava a sentar no local destinado às autoridades. Popular, sem ser populista, preferia o contato direto com o povo.1 Faleceu aos 52 anos de idade, no dia 07 de abril de 1991, vítima de acidente automobilístico, na BR-230, próximo a Patos, quan-
do retornava de sua propriedade, localizada no Município de São Mamede. Na mesma ocasião faleceram sua esposa, Suely e sua filha Maria de Fátima além de uma empregada do casal e uma filha desta. Também no mesmo acidente, seu filho Romero teve uma perna fraturada. Romero Abdon Queiroz da Nóbrega é um dos patronos do Instituto Histórico e Geográfico de Patos – cadeira n. 7 – da qual é fundadora a historiadora Maria Zoetânia da Nóbrega. No ano de 2013, quando da reestruturação da Academia Paraibana de Letras Jurídicas, sugeri o seu nome para a cadeira de n. 19, da qual sou o fundador. O Forum da cidade de São Mamede, inaugurado em 19 de janeiro de 2001, tem o seu nome, uma homenagem prestada pelo Tribunal de Justiça do Estado. Devido à sua atuação na área criminal da região das Espinharas,2 o Governo do Estado deu o seu nome ao Presídio localizado na cidade de Patos. g
REFERÊNCIAS: Carneiro, Renato César. CASOS ELEITORAIS CÉLEBRES. João Pessoa: Ed. Sal da Terra, 2014, volume III. Lucena, Damião. Patos em Revista. Nóbrega, Maria Zoetânia da. ROMERO ÁBDON QUEIROZ DA NÓBREGA – ENSAIO DE UMA BIOGRAFIA. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE PATOS, n. 04. Patos: Gráfica Santo Antônio Ltda, 2003.
Da minha infância e adolescência, uma das imagens que guardo na lembrança é a presença de Romero sentado na arquibancada do Estádio José Cavalcanti, vestido com a camisa do “Naça” (Nacional Atlético Clube). No meio de populares, como eu, evitava assistir os jogos da “tribuna de honra” do estádio, reservado às personalidades VIP. A sua personalidade simples e descontraída não lhe permitia fazer uso de tal prerrogativa e só por um motivo muito relevante ele perdia um jogo de futebol em Patos. 2 Só não deram o seu nome ao auditório do Tribunal de Juri do Forum de Patos porque já tinha o nome de seu pai, Napoleão Abdon da Nóbrega. 1
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FESTA DOS TABULEIROS EM TOMAR (PORTUGAL): UMA CELEBRAÇÃO AO DIVINO ESPÍRITO SANTO (Continuação da página 2)
As festas populares tradicionais são acontecimentos identificadores dos fatos locais, são celebrações simbólicas das diversas relações sociais vivenciadas por uma comunidade nos territórios sagrados e profanos. É nas observações e nas interpretações das festas populares que se descobrem os códigos, as regras e os estatutos construtores do ensinar e aprender as diversidades da cultura, consequentemente, o desenvolvimento da identidade de um povo. As festas populares rurais e urbanas passaram e continuam passando por importantes transformações culturais nos diferentes momentos da história da sociedade humana, num passado mais remoto, com a instituição da quaresma, depois com as navegações e os grandes descobrimentos de novas terras. Ou seja, o mundo está constantemente criando, reinventando novos significados culturais através das festas sagradas e profanas, agora inseridas cada vez mais no contexto da sociedade midiatizada. Sem dúvida, as festas populares não poderiam ficar fora desse novo contexto de produção e consumo de bens culturais locais e globais da sociedade contemporânea. As manifestações culturais tradicionais dos ciclos: natalino, carnavalesco, pascal e junino, entre tantas outras festas populares, são “afetadas” cada vez mais pelos interesses da indústria cultural. Mas, mesmo assim, continuam mantendo suas tradições e vivendo experiências novas, como sempre foi nos diferentes tempos históricos e culturais. São as imbricações dos ritos e rituais tradicionais e contemporâneos celebrados nos interiores das festas populares que temperam
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Foto: Oswaldo Meira Trigueiro
os vínculos sociais, as vinculações culturais e as conversações com os outros de fora, assim como o turismo e a mídia. São esses movimentos que vão constituindo as identidades e os estatutos de convivência e conveniência cultural do local com a cultura global. A Festa dos Tabuleiros, uma antiga celebração ao Divino Espírito Santo na sua forma mais tradicional acontece desde o século XII, tem suas origens nas tradições das festas pagãs aos deuses da natureza, possivelmente nas festas das colheitas para a deusa Ceres e depois cristianizada pela Rainha Santa D. Isabel de Portugal. O grande momento da festa acontecia no Domingo de Pentecostes, quando ricos e pobres celebravam o dia da igualdade de todos perante Deus, era uma comemoração de ação de graças e de oferendas. Ao longo do tempo a festa foi ganhando novos significados, outras características e, na atualidade, é um megaevento, um grande espetáculo midiático e turístico. Mas, mesmo assim, na sua estrutura, na sua organização existem traços fortes das tradições mais remotas, dos significados que cada cerimônia simboliza em homenagem ao Divino Espirito Santo.
O período mais intenso da festa é no mês de julho, mas o início das festividades acontece com o desfile das Coroas e Pendões do Espírito Santo no Domingo de Páscoa pelas ruas onde o Cortejo dos Tabuleiros passará na época da festa propriamente dita e já com as ruas tradicionalmente ornamentadas. O desfile ou procissão dos tabuleiros, conduzidos por rapazes e moças, é o momento alto da festa, aguardado com grande expectativa pela população da cidade e de inúmeros turistas. São cerca de 600 tabuleiros, representando as diversas freguesias, ornamentados com pães, fitas e flores que dão um colorido especial e no topo uma coroa com a pomba símbolo do Espírito Santo ou a Cruz da Ordem do Templo. Chama atenção é que o tabuleiro deve ter o tamanho da moça que o conduz na cabeça durante todo o desfile de aproximadamente 5 quilômetros, acompanhada por um rapaz “o ajudante” que a auxilia na condução do tabuleiro. O início do cortejo é anunciado pelo pipocar dos fogos e a música das filarmônicas e dos gaiteiros. Vale a pena conhecer a cidade histórica de Tomar em qualquer época, mas na Festa dos Tabuleiros a cidade ganha um colorido todo especial, as ruas enfeitadas, músicas tradicionais e contemporâneas enchem seus espaços de alegria, a sua rica gastronomia regada com bom vinho e azeite e o afeto dos seus habitantes encantam a todos que a visitam. Com este artigo estou apenas fazendo um rápido registro de uma das manifestações do catolicismo popular ao Divino Espírito Santo mais impressionantes que já observei até hoje. g
CINEMA
PARA ONDE VAI O ORIENTE MÉDIO? Andrés Von Dessauer
Há décadas o Oriente Médio se transformou em uma gigantesca trincheira étnica e religiosa, bem como alvo permanente da mídia tradicional e, ultimamente, das redes sociais. Tanta fonte de informação fez com que inúmeros cineastas seguissem o rastro dos barris de pólvora do mundo árabe. E entre os trabalhos daí originados, ‘LEMON TREE’ e “E AGORA, ONDE VAMOS?” merecem destaque especial, por expressar prognósticos contrários para um mesmo mal. Ou seja, enquanto o primeiro filme parece caminhar para a conclusão de que inexiste solução; o segundo, em um tom mais otimista, nos leva a pensar que existe sim, uma luz no fim do túnel. Os dois comentários abaixo têm como objetivo aproximar o leitor das referidas películas. LEMON TREE - A acidez de um conflito LEMON TREE (2008) nos faz refletir sobre o longo conflito Israel-Palestina. Aliás, não há dúvida de que as divergências entre esses povos se tornaram ainda mais bé-
licas, quando da criação do Estado de Israel em 1948, sem a simultânea instalação de um Estado da Palestina. Nesse longa, um pomar de limoeiros brota e arboresce no berço dessa política mal resolvida e se torna ponto de convergência e discórdia. O diretor israelense, Eran Riklis, sem intenção de ser comercial, presenteia o público com uma obra cinematográfica de rara beleza, que conta com a atuação da elegante e conhecida atriz palestinense Hiam Abbass. Tudo nesse filme é elogiável: roteiro, atores, câmera, seqüenciamento de cenas, profundidade, consistência, originalidade, mensagem, etc. As raízes do limoeiro penetram fundo em dois mundos totalmente diferentes, quais sejam, um estado moderno e forte e outro, um povo com governo, mas sem estado. A representação destas esferas cabe respectivamente a duas mulheres, uma judia rica, casada, burguesa, educada, socialmente importante e a outra, uma pobre árabe, camponesa, viúva, solitária, descriminada por sua própria etnia, mas aristocrata por natureza. Dada esta polarização, o firme roteiro se desdobra em situações angustiantes,
intercaladas por manifestações de solidariedade, próprias aos seres humanos quando desatrelados de mantras religiosos. E nesses momentos, a acidez do limão cede espaço a um refrescante suco. Outro elemento suavizante advém do fato de que, por ter residido no Brasil nos anos 70, Riklis adorna cenas importantes do filme com trechos da canção popular brasileira ‘meu limão, meu limoeiro’ (de José Carlos Burla, 1937). Um dos pontos altos do filme é um diálogo por meio de olhares, estabelecido entre as duas mulheres. Nessa cena percebe-se facilmente que o ‘ser mulher’ se sobrepõe por alguns instantes às circunstâncias de duas políticas agressivas e antagônicas, revelando o desejo de paz. Sem descambar em um tiroteio “à brasileira”, a querela é levada à Suprema Corte de Israel por um advogado árabe, idealista por coração e oportunista por razão. Nesse cenário, se faz presente o trabalho da imprensa livre que, ao encostar o Ministro israelense contra a parede, explicita a força do jornalismo internacional. A questão Israel-Palestina (aqui Cisjordânia) é um ‘hard case’ mas mesmo assim,
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Riklis consegue com maestria inserir uma pitada de ironia. Nesse sentido, observe-se que o confronto ‘Davi x Golias’, sofre uma inversão histórica, pois Davi é encenado pela viúva árabe e Golias representado pelo ministro de Defesa de Israel. O final é também contrário aos livros sagrados, haja vista que o gigante (Estado), com base em uma irrefutável argumentação jurídica, se torna o aparente vencedor da peleja. Ao fim, porém, não há vencedores, pois, o mesmo pomar que, outrora, por sua densidade de folhas, trazia insegurança ao Estado, depois de decapitado, passou a atemorizá-lo ainda mais. Não bastasse o veredicto da Suprema corte judaica, que decide se curvar às pretensões do Executivo, o caso, apreciado simultaneamente por nosso senso comum de ponderação, indica que dificilmente haverá um entendimento uníssono sobre esse conflito milenar, simbolizado aqui por um pomar. Contudo, ao sairmos do cinema podemos afirmar pelo menos que, enquanto nossa religião monoteísta faz uso de uma macieira para simbolizar a porta de saída do Paraíso, esse limoeiro, agraciado com 5 troféus de festivais internacionais, pode ser visto como um portal que nos permite adentrar ao Paraíso dos bons filmes. E AGORA, ONDE VAMOS? – A arte feminina de resolver conflitos. A arte se depara, por vezes, com a situação curiosa, na qual artistas com produção pouco expressiva alcançam a imortalidade por meio de um único trabalho. O compositor Bizet é um bom exemplo dessa façanha, pois, embora não tenha produzido muitas óperas, tem entre suas criações “Carmen”, a obra mais encenada e presente no imaginário popular. Encontrar, na cinematografia, uma preciosidade de brilho equivalente é questão de sorte e persistência, já que o número de películas produzidas excede a capacidade individual de qualquer cinéfilo. Assim, na caçada por uma obra prima, a suspeita de que algo grandioso está por vir, pode ser deflagrada por um trabalho anterior. Tal qual o caso da atraente libanesa Nadine Labaki que, quatro anos após ter dirigido e encenado uma calorosa discussão em um salão de beleza em Beirut (“Caramelo”, 2007) ressurge em 2011, com o filme ‘Et maintenant on va où?’, rodado em uma remota aldeia, habitada pacificamente por cristãos e muçulmanos. O título (“E Agora, onde Vamos?”), aliás, define com precisão o fenômeno da “primavera árabe” que, impulsionado pela internet, se espraia pelo Norte da África e Oriente Médio, abalando sociedades que,
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por simples convenção, privilegiam o sexo masculino, em detrimento do feminino. Esse universo essencialmente sexista passa a ser confrontado pelo despertar da força feminina, que vem ganhando espaço em filmes como: “Cairo 678” (2010, Mohamed Diab) e “A Fonte das Mulheres” (2011, Radu Mihaileanu). A escalada da violência é tema recorrente no cinema. No entanto, na obra da Labaki, a ameaça se infiltra via meios convencionais de informação (TV, jornais e rádio) sendo, portanto, desencadeada por razões exógenas, capazes de aniquilar toda a tolerância, dolorosamente, conquistada. A atmosfera cômica, presente, por exemplo, na eficiente censura feminina, é gradualmente corroída pelo drama. E, nesse sentido, o quase diálogo entre uma aldeã cristã e a imagem estática da Virgem Maria marca um dos momentos na qual a fé materializada em um objeto, cede espaço à contestação e à substituição da fé por uma postura pragmática. Na busca de um choque cultural capaz
de direcionar a testosterona para comportamentos menos beligerantes, a ala feminina decide contratar dançarinas ucranianas de um ‘show-bus’ e alojá-las no pequeno vilarejo. A chegada dessas profissionais provoca situações hilárias. Mas, o ingresso do Ocidente nesse mundo atavista resulta apenas em uma breve trégua. De fato, só mesmo uma brutal dissidência religiosa, promovida pelas matriarcas daquele lugarejo, seria capaz de refrear os ânimos. Apesar de ser uma inversão pouco crível, a solução parece sublinhar o fato de que tanto o cristianismo quanto o islamismo não são totalmente estranhos entre si, já que comungam do mesmo berço. Nesse trabalho tudo parece, meticulosamente, talhado para reflexão. E, o final não foge a esse intento, já que a indagação “para aonde vamos?” surgida no cortejo fúnebre de um jovem cristão, cuja família se convertera, repentinamente, ao islamismo, alcança não só o caráter religioso do seu sepultamento, como todas as incertezas de uma época de transição. g vondessauer@uol.com.br
HISTÓRIA
ESCREVER TEXTOS, EDITAR LIVROS, FAZER HISTÓRIA: A COLEÇÃO DOCUMENTOS BRASILEIROS E AS TRANSFORMAÇÕES DA HISTORIOGRAFIA NACIONAL (1936-1960)1 Fábio Franzini2
RESUMO Este artigo apresenta um panorama do período áureo da Coleção Documentos Brasileiros, mostrando como, entre as décadas de 1930 e 1950 - momento em que vários outros projetos semelhantes se desenvolveram no sentido de “pensar o País” -, ela abrigou autores e obras comprometidos com a produção de um novo conhecimento sobre o Brasil, em especial no que diz respeito à história. Justamente por isso, este empreendimento editorial configurou-se também como um veículo privilegiado para a difusão de novas formas de abordar o nosso passado, desempenhando, assim, um importante papel no cenário de transformações pelas quais passava então a historiografia nacional. Palavras-chave: Coleção Documentos Brasileiros. Historiografia brasileira. Escrita da História. Writing texts, editing books, making History: The ‘Coleção Documentos Brasileiros’ and the changing of national historiography (1936-1960) ABSTRACT This article presents an overview of the Coleção Documentos Brasileiros’ golden age (from the 1930s to the 1950s, contemporaneously to other similar projects) and intends to show how it housed authors and books committed to the production of a new knowledge about Brazil, particularly as regards to the History. Thus this editorial enterprise has set up also a privileged vehicle to the diffusion of new ways to approach the Brazilian past, playing an important role in the transforming scenario whereby the Brazilian historiography then was passing. Key words: Coleção Documentos Brasileiros. Brazilian historiography. Writing of History.
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Octavio Tarquínio de Sousa, Afonso Arinos de Melo Franco e Pedro Calmon; Luis Viana Filho, João Camilo de Oliveira Torres e Lúcia Miguel-Pereira; Francisco de Assis Barbosa, Luis da Câmara Cascudo e Affonso d’Escragnolle Taunay. Não se trata de um time de futebol, é evidente, mas nem por isso esses nomes deixam de formar uma seleção: uma seleção de autores que, longe de se limitar aos 11 citados, deu forma e vida a um dos mais marcantes projetos editoriais brasileiros e que, ao fazê-lo, muito contribuiu para mudar as formas de se escrever, ler e pensar a história entre nós – a Coleção Documentos Brasileiros, da Livraria José Olympio Editora. Inaugurada em 1936, a Documentos Brasileiros avançou pelo século XX até a década de 1980, abrigando, sob a sua palmeira-símbolo, mais de duzentos títulos. A sua época áurea, contudo, concentra-se entre os anos 30 e 50, quando se constituiu no principal veículo de difusão das mais importantes reflexões então produzidas a respeito do passado e do presente do País. E isto não era pouca coisa, em especial porque ela não estava sozinha no cenário editorial da época; ao contrário, as coleções dedicadas à análise dos problemas, das possibilidades e, sobretudo, da especificidade da nossa formação histórico-social foram um produto característico daquele momento, pensadas por diferentes editores justamente para abrigar o crescente e diversificado número de intérpretes e interpretações dedicados ao “conhecimento do Brasil”, como então se dizia (PONTES, 2001; CARONE, 2004). Não por acaso, é difícil entender o surgimento da Documentos Brasileiros sem levar em consideração outra série contemporânea, de nome altamente sugestivo: a Coleção Brasiliana. Lançada pela Companhia Editora Nacional em 1931 e dirigida pelo res-
peitado educador Fernando de Azevedo, a Brasiliana apresentava-se em seus anúncios publicitários como “a mais vasta e a mais completa coleção e sistematização que se tentou até hoje de estudos brasileiros”, reunindo “ensaios sobre a formação histórica e social do Brasil, estudos de figuras e de problemas nacionais (geográficos, etnológicos, políticos, econômicos, militares, etc.), reedições de obras raras de notório interesse e traduções de obras estrangeiras sobre assuntos brasileiros”. Em termos concretos, isto significava publicar autores conhecidos e novos, clássicos e contemporâneos, nacionais e estrangeiros, bem como trabalhos tanto originais quanto reeditados, numa atividade intensa a ponto de atingir a impactante marca de cem volumes lançados em pouco mais de cinco anos. Tal inegável sucesso decerto estimulou outros editores a seguirem a trilha aberta pela Nacional, como efetivamente aconteceu; entretanto, para entender melhor a sua influência e, em especial, a inspiração particular que provocou em José Olympio, há que se matizá-lo. Junto aos intelectuais, a Brasiliana adquiriu prestígio inconteste, como se pode perceber na página e meia de opiniões publicada no Anuário Brasileiro de Literatura de 1938, em comemoração aos cem números editados. Em meio a considerações mais elaboradas e a outras nem tanto, talvez a mais expressiva seja a de Nelson Werneck Sodré, então crítico do Correio Paulistano, para quem a série representava “um dos acontecimentos mais notáveis da vida mental do país. Esse esforço único, que constitui uma realização integral de programa bem delineado, marca uma época nos estudos das coisas nacionais” (ANUÁRIO, 1938, p. 304). Os leitores “comuns”, em contrapartida, pareciam ainda não ter desenvolvido a mesma sensibilidade. Em resposta à enque-
Este artigo foi originalmente publicado em Tempo e Argumento – revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc. Florianópolis, v. 5, n.9, jan./jun. 2013. pp. 2445. DOI: 10.5965/2175180305092013024 (http://dx.doi.org/10.5965/2175180305092013024). Agradeço a Flávio Sátiro Fernandes pela gentileza do convite a republicá-lo em GENIUS e aos editores de Tempo e Argumento pela autorização para tal. 2 Doutor em História Social pela USP, Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. E-mail: fabio.ff.franzini@gmail.com. 1
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te promovida pelo mesmo Anuário (1938, p. 407) para saber o que então se lia no Brasil, um porta-voz da editora avaliava que a “elite apreciadora dos trabalhos de cultura” acompanhava com interesse o desenvolvimento da coleção; apesar de seu “animador aumento nestes últimos tempos”, ela ainda era “uma minoria” frente à “massa”, cujas preferências recaíam sobre a “literatura de ficção, que distrai sem fazer pensar”.3 Mesmo assim, apesar de o descompasso entre públicos obviamente se refletir nas vendas, a empresa seguiu firme com seu projeto, comprometida antes com o lucro simbólico que com o lucro financeiro propiciado pela Brasiliana (PONTES, 2001, p. 450; HALLEWELL, 2005, p. 378-381). Por paradoxal que possa parecer, para José Olympio esse valor simbólico falou mais alto que a caixa registradora ao pensar a sua própria coleção de estudos brasileiros. Afinal, tal como Monteiro Lobato, que na década anterior sonhara inundar o País com uma chuva de livros, ele também atribuía uma dimensão “civilizadora” ao seu trabalho – tanto que faria famosa a frase lobatiana que adotara como lema de sua editora: “um país se faz com homens e livros”. De modo pretensioso, mas sem qualquer ingenuidade, ele acreditava nisso, assim como boa parte dos editores da época, como Octalles Marcondes Pereira, Augusto Frederico Schmidt, os irmãos Pongetti, Henrique Bertaso. O seu diferencial, porém, estava no empenho com que levou adiante esse ideal, do qual nasceria, inclusive, a imagem heróica e mítica de um personagem acima do bem e do mal, cujos atos se explicavam sempre em nome do Brasil. A concepção da Coleção Documentos Brasileiros, portanto, expressa muito do espírito da época e, em particular, dos interesses e ideais patrióticos de seu editor. Muito, entretanto, não é tudo, pois uma boa dose de tino para os negócios também a orientou desde sua idealização, a começar pela escolha de Gilberto Freyre para a sua direção. O jovem intelectual pernambucano, àquela altura já consagrado pelo sucesso avassalador de Casa-grande & senzala, publicado havia apenas três anos, garantiria respeitabilidade e prestígio imediatos ao projeto, além de representar a “novidade” e a “brasilidade” que José Olympio tanto prezava em seus autores. Ao mesmo tempo, sua sólida formação intelectual asseguraria a avaliação criteriosa
dos títulos a serem lançados e, por extensão, a solidez e a identidade da própria coleção. Do ponto de vista de Freyre, a oferta era irrecusável. Não bastasse a considerável remuneração, ela também representava a oportunidade de ocupar uma posição privilegiada dentro de uma das principais editoras do País e, consequentemente, dentro do limitado circuito nativo de produção e circulação de ideias. Embora a empresa preservasse o direito de não publicar o que julgasse “sem base comercial”, os termos do contrato lhe garantiam autonomia total na definição dos títulos, pois estabeleciam que nela só seriam editados os textos aprovados pelo diretor, sem impor qualquer outra condição ou restrição (VILLAÇA, 2001, p. 87-88). Na prática, isto não apenas abria um novo espaço para seus futuros livros, como, sobretudo, se configurava como uma possibilidade concreta de ampliar para além de sua própria obra os seus esforços, no sentido da renovação do conhecimento sobre o Brasil. Mais que um autor, ele agora assumia o papel de legitimador de outros autores, e não deixaria de aproveitá-lo para estabelecer um programa de ação centrado em seus próprios interesses intelectuais. A correspondência entre o Rio de Janeiro e Recife no decorrer de 1936 mostra bem como os interesses empresariais, acadêmicos e culturais se fundiam no projeto da coleção.4 Em 4 de julho, escrevendo a José Lins do Rego, recém-estabelecido na Capital, Gilberto discute o que parece ser uma sugestão do amigo, a inauguração da coleção com um livro do diplomata e historiador Alberto Rangel. “Acho ótimo”, dizia ele, “um livro do Rangel na coleção, mas o 1o acho que deve ser o de Sérgio – por ser um estudo inteiro, sério e profundo sobre um só assunto, e por já figurar como o primeiro na introdução que escrevi e remeto por seu intermédio” (apud LIMA e FIGUEIREDO JUNIOR, 2000, p. 247). Sérgio, no caso, era Sérgio Buarque de Holanda, crítico literário, professor-assistente da cadeira de História Moderna e Contemporânea na recém-criada Universidade do Distrito Federal e seu velho amigo. Pelos elogios tecidos ao trabalho, pode-se perceber com clareza que seu valor estava em seu caráter monográfico e analítico, bem de acordo com os novos saberes esperados pelo diretor. Tão bem que, mesmo se tratando da obra de estreia de um autor novo,
de pouco nome público, Gilberto Freyre lhe havia assegurado de imediato o privilégio de abrir a Documentos Brasileiros, como se deduz do argumento pragmático com que encerra o assunto junto a José Lins. Muito corajosa sob o aspecto editorial, a atitude parecia não deixar dúvidas sobre qual seria o espírito da série. Se ela causou temor em José Olympio, o editor soube disfarçá-lo muito bem, pois em nenhum momento da correspondência com Freyre deixa transparecer qualquer preocupação com um eventual fracasso comercial. Ao contrário, ele se envolve com entusiasmo na realização do projeto, com particular atenção aos autores e títulos que nele entrariam, incluindo o próprio responsável pela coleção, a quem escreve em 15 de julho apenas para perguntar como andava o livro em que então trabalhava, Nordeste. Sem rodeios, deixava claro que, “como você não pode deixar de imaginar, gostaria que fosse ele dos primeiros a sair dos ‘Documentos Brasileiros’”. Às vésperas do lançamento da coleção, José Olympio mal podia conter a expectativa. Em carta datada de 10 de outubro, ele não escondia a satisfação com o resultado de sua produção, e contava, com orgulho, ter mandado fazer “vinte exemplares fora de comércio, sendo dez para a Casa e dez para o autor, além dos que ele já tem [...] em papel comum”. A capa também lhe agradara bastante, e tinha a certeza de que com Freyre não seria diferente. Por fim, mostrava-se feliz ainda porque a continuidade imediata da série estava garantida, com os originais das Memórias, de Oliveira Lima, já na tipografia e com publicação prevista até janeiro, juntamente com No rolar do tempo, de Alberto Rangel; em seguida, “ainda no primeiro trimestre de 37”, sairia Memórias de um senhor de engenho, de Julio Bello, e, talvez, a biografia de Bernardo Pereira de Vasconcellos, escrita por Octavio Tarquínio de Sousa. Oliveira Vianna comunicara que não mais prepararia o livro esperado, mas ainda havia a “tradução magnífica” da Viagem a São Paulo, de Saint-Hilaire, feita por Rubens Borba de Morais e A. Couto de Barros. Quando esta carta chegou ao Recife, os 3.000 exemplares de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, já estavam nas livrarias, ao preço de dez mil-réis cada.5 Como observara o editor, o aspecto material da obra era mesmo digno de elogio, em especial sua capa, feita pelo artista plástico
3 Complementando a sua avaliação, o representante da editora ainda dizia ser “plenamente justificável a tendência que a massa quase geral do público sente por este gênero de literatura. Diz um dos nossos mais eminentes críticos que este interesse vem da ‘necessidade de sonho, a premência de distrair a mente na oscilação igual da vida cotidiana, a procura daquilo que eles não vivem, aquilo que está além dos limites das suas existências pacíficas e metodizadas” (ANUÁRIO, 1938, P. 407). 4 As cartas trocadas entre os principais responsáveis pela Coleção Documentos Brasileiros, que serão citadas ao longo deste artigo, a partir deste ponto fazem parte da correspondência passiva de José Olympio e da Livraria José Olympio Editora, pesquisada no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), e da correspondência passiva de Gilberto Freyre, pesquisada na Fundação Gilberto Freyre (Recife) – instituições às quais agradeço tanto pela preservação dessa rica e expressiva documentação quanto pelas condições de pesquisa que oferecem. 5 Apenas para efeito comparativo e, assim, referencial do valor do livro no momento de seu lançamento, cabe notar que no Rio de Janeiro, à época, a “Tabela de preços máximos para a venda à vista ou à prazo dos gêneros de primeira necessidade no comércio a varejo do Distrito Federal”, em vigor desde 21 de setembro de 1936, estabelecia preços como 900 réis para o quilo do feijão preto, dois mil-réis para o quilo da carne “de primeira qualidade” e mil-réis para o litro de leite fresco, entregue em domicílio (DIARIO OFFICIAL, 19/09/1936, p. 20673-20674).
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Tomás Santa Rosa, notável colaborador da “Casa”. Na cor clara do papel-cartão característico das encadernações da época e com as letras em um suave tom de marrom, ela trazia no topo o nome da coleção e, separada por um filete verde e em corpo um pouco menor, a inscrição “dirigida por Gilberto Freyre”, seguida do número do volume e do nome do autor; pouco abaixo, quase no meio da folha, o título do livro, este em grandes, porém proporcionais, letras verdes. No exato centro da página não havia nada, mas a sensação de vazio era evitada pelo desenho de uma discreta palmeira, o símbolo da coleção, que, no mesmo tom de marrom das letras, dominava praticamente toda a sua metade inferior, completada pelo sinete “Livraria José Olympio Editora”. Diferentemente da Brasiliana, cujas capas chamativas eram tomadas por um mapa do Brasil pontilhado de estrelas, em cores que variavam para cada título da série, a primeira impressão que se tinha do livro era a de equilíbrio e objetividade – o mesmo que o leitor, ao abri-lo, encontraria reivindicado para a coleção no prefácio de Gilberto Freyre. O texto de Freyre, intitulado justamente “Documentos Brasileiros”, principiava por vinculá-la ao momento vivido pela intelectualidade nacional. Buscando no contexto a sua legitimação, ele ressaltava ainda o papel e a importância de José Olympio no cenário das transformações que então ocorriam. Em suas palavras, a série surgia para: trazer ao movimento intelectual que agita o nosso país, à ânsia de introspecção social que é um dos traços mais vivos da nova inteligência brasileira, uma variedade de material, em grande parte ainda virgem. Desde o inventário à biografia; desde o documento em estado quase bruto à interpretação sociológica em forma de ensaio. O característico mais saliente dos trabalhos a ser [sic] publicados nesta coleção será a objetividade. Animando-a, o jovem editor José Olympio mais uma vez se revela bem de sua geração e do seu tempo. Ao interesse pela divulgação do novo romance brasileiro ele junta agora o interesse pela divulgação do documento virgem e do estudo documentado que fixe, interprete ou esclareça aspectos significativos da nossa formação ou da nossa atualidade. Não podia ser mais oportuna nem mais feliz a sua iniciativa (FREYRE in HOLANDA, 1936, p. V). Sobre o volume de estreia, ele dizia representar a “afirmação vitoriosa” das “qualidades” e do “gosto” de seu autor, “uma daquelas inteligências brasileiras em que melhor se exprimem não só o desejo como a capacidade de analisar, o gosto de interpre-
tar, a alegria intelectual de esclarecer”. Todavia, como o intuito daquela apresentação não era falar do livro, a voz autorizada do diretor rapidamente voltou ao plano geral da Documentos Brasileiros. Primeiro, destacava não se tratar “de uma aventura editorial, mas de uma coleção planejada e organizada com o maior escrúpulo e com todo o vagar, visando a corresponder não só às necessidades do estudioso como à curiosidade intelectual de todo brasileiro culto pelas coisas e pelo passado do seu país”. Na sequência, passava a discorrer sobre os trabalhos a serem nela publicados: memórias, biografias, livros de viagem e de expedições científicas ao Brasil, relatórios de época, “documentos e estudos sobre os vários traços de influência estrangeira [...] que se encontram em nossa formação social e étnica”, “estudos documentados sobre as nossas populações atuais”, traduções. Todo um material, enfim, “tão rico e de um valor tão evidente para a compreensão e a interpretação do nosso passado, dos nossos antecedentes, da nossa vida em seus aspectos atuais mais significativos” (IDEM, p. V-IX). À primeira vista, a semelhança com a Brasiliana era flagrante. Talvez por isso, como já notou Heloisa Pontes (2001, p. 464), Gilberto Freyre se esforçasse em destacar a sua singularidade, trocando qualquer alusão à agora concorrente pela ênfase no planejamento e na organização de José Olympio. No entanto, a diferença crucial entre elas não estava nesse aspecto, até porque, como Freyre e seus leitores bem sabiam, a série da Nacional também primava por uma estrutura bem-pensada e executada. A essência da nova coleção revelava-se em seu comprometimento com aquilo que trazia já no próprio nome e que era várias vezes repetido no texto de apresentação: o documento. Desencavado do passado ou produzido no presente, em “estado quase bruto” ou analisado de forma criteriosa, ele estaria na base dos trabalhos a serem publicados, como era dito praticamente a cada parágrafo. O propósito era, parece claro, a afirmação de um conhecimento verdadeiro sobre o Brasil, do conhecimento do Brasil real, fundamentado não em reconstruções ou especulações superficiais e estéreis, e sim em interpretações comprováveis a seu respeito. Numa palavra, tratava-se de afirmar o conhecimento científico sobre o Brasil, elaborado por especialistas que davam “vida” aos documentos para juntá-los “à história social do brasileiro”. Para os leitores da época, não era difícil perceber o quanto tal perspectiva emulava o trabalho do próprio Freyre. Ao contrário, podia-se ouvir com facilidade no prefácio a Raízes do Brasil os ecos de Casa-grande & senzala e de Sobrados e mucambos (este
também publicado em 1936), a começar da atenção dedicada ao caráter histórico das já mencionadas memórias, biografias, livros de viagem e toda “uma variedade de material em grande parte ainda virgem”. Também a “história íntima” do Brasil, reivindicada na abertura de sua primeira obra, reaparecia na referência àqueles “que procuram conhecer o passado brasileiro na sua maior intimidade”. Ou então, o acento no caráter diversificado da história e na necessidade de abordá-la com “humildade diante dos fatos”, porém, sem deixar de quebrar a sua rigidez para assim “humanizá-los”, ideias essas que perpassavam todos os textos em questão, ora de modo explícito, ora implícito (FREYRE, 1936, p. 22, passim; FREYRE, 1985, p. 51). Por conseguinte, nada mais lógico que os nomes elencados, no mesmo texto, como colaboradores da coleção tivessem também grande afinidade intelectual ou profissional com seu diretor. Tal qual Sérgio Buarque, muitos deles eram seus amigos pessoais, como Octavio Tarquínio de Sousa, Olívio Montenegro, Afonso Arinos de Melo Franco, Rüdiger Bilden, Manuel S. Cardoso, entre outros. Alguns, inclusive, já haviam merecido menção nos trabalhos anteriores de Freyre, tanto pela ajuda e amizade quanto pela importância de seus estudos em desenvolvimento, os mesmos que agora se anunciavam para breve na Documentos Brasileiros. Dos que não eram tão próximos, havia pesquisadores notórios pelo seu domínio de temas específicos, em geral mais velhos e institucionalmente estabelecidos, como Rodolfo Garcia e Afonso d’Escragnolle Taunay; professores-investigadores ligados às modernas ciências sociais e ao meio acadêmico, casos de Heloisa Alberto Torres e de Donald Pierson, e, o que talvez pudesse parecer surpreendente aos leitores da época, até um autor duramente criticado em Casa-grande & senzala: Oliveira Vianna. Finalmente, mesmo estrangeiros como Roy Nash, Theodor Koch-Grünberg, Konrad Guenther, J. F. Normano, Pierre Deffontaines e Percy Alvin Martin, cujas obras se pretendia traduzir, podiam ser encontrados quase todos pelas páginas dos dois livros de Gilberto Freyre, a ajudá-lo a fundamentar suas análises. A arquitetura da coleção mostrava-se, assim, uma bem-planejada extensão da casa-grande intelectual construída pelo historiador-sociólogo pernambucano. E, em sua própria avaliação, a pedra fundamental fora lançada com sucesso, pois,- em nova carta a José Olympio, datada de 10 de novembro, Freyre lembrava que: o nosso Lins [José Lins do Rego], que está aqui por uns dias, já lhe mandou dizer por julho/agosto/setembro de 2014
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telegrama que a minha impressão do 1o livro da nossa coleção foi a mesma que a dele: ótima. V. está de parabéns. Acho que o tipo do texto – para não falar no feitio da capa, tão feliz – deve ser mantido. É tão claro, sóbrio, elegante. Não tenho dúvidas: vai ser, já é, uma coleção vitoriosa. A atenção de Freyre ao projeto gráfico do volume inaugural não era gratuita, sequer irrelevante. Como autor, ele tinha plena consciência de que um livro, por melhor que fosse o seu conteúdo, não era apenas texto – e, no caso da coleção, se os textos estavam sob seu controle, o processo que os transformava em livros, não. Diante da alta qualidade material de Raízes do Brasil, sua satisfação estava completa. Além disso, a confiança no êxito da série agora lhe permitia aplicar seu zelo a outras atividades, também importantes para reforçar, ou consolidar, o seu sucesso. Uma delas despontava ao final da mesma carta, quando pedia ao editor que enviasse “os livros da coleção e os de Lins” para o historiador Percy Alvin Martin e para os antropólogos Rüdiger Bilden e Melville J. Herskovits, nos Estados Unidos. Amigos e interlocutores de Freyre, todos os três eram nomes muito respeitados no meio acadêmico daquele país e estudiosos da América Latina e de questões raciais, características que revestiam a cortesia da intenção de divulgar e, pretensamente, legitimar a Documentos Brasileiros entre a moderna ciência social norte-americana, berço intelectual do seu próprio diretor. Ao lado das relações públicas e da afirmação externa da coleção, havia ainda que dar continuidade à sua edificação, tarefa nada simples. O contato direto ou indireto com potenciais autores, apesar de constante, nem sempre se mostrava frutífero, e por razões às vezes bem prosaicas: em carta de dezembro de 1936 a Freyre, Rodrigo Melo Franco registrava em post-scriptum ainda não ter conseguido falar com Prudente de Morais Neto sobre a possibilidade de ele “escrever uma história da literatura brasileira para os Documentos Brasileiros”, mas adiantava achar “pouco provável que ele possa aceitar o convite, pois não tem agora tempo para nada desde que passou a trabalhar como secretário do pai na Light”. Ademais, a desistência de Oliveira Vianna (que, além de mencionado no prefácio de Raízes do Brasil, como visto, tinha o abortado Os tipos étnicos do Brasil também anunciado na contracapa do volume entre os próximos lançamentos da série) demonstrava que nem mesmo o comprometimento prévio de um autor podia garantir o aparecimento de seu 6
livro. Tudo isso sem considerar ainda que não se tratava somente de nomes, pois, tão importante quanto eles, era a sua adequação ao perfil da coleção ou às expectativas de seu diretor (o que, em geral, dava no mesmo), como mostram duas cartas trocadas entre José Olympio e Gilberto Freyre ainda em 1936. Na primeira, datada de 16 de dezembro, o editor perguntava se poderia “programar na nossa coleção o livro do Eloy Pontes sobre Euclides da Cunha e o do Agripino [Grieco] sobre romancistas. O primeiro do Eloy sobre [Raul] Pompéia foi elogiadíssimo pela crítica, o que v. não ignora. Se saírem fora da coleção não alcançarão o mesmo sucesso. Mas você é quem sabe e dirá com a maior franqueza. Nada de constrangimentos”.6 Três dias depois, Freyre escrevia sua resposta, na qual argumentava: Quanto aos livros do Eloy e de Agripino, tanto um como o outro têm nome e dariam assim brilho à coleção. Mas é preciso notar o seguinte: a coleção tem o seu caráter, os seus limites, os seus fins precisos e é preciso que o livro que saia como Documentos Brasileiros corresponda àquele caráter e àqueles fins. Se o Euclides do Eloy for como o Pompéia – com aquele luxo de documentação virgem –, corresponde. Seria necessário examinar este ponto para lhe poder dar uma resposta conscienciosa. Quanto ao livro de Agripino, temo que, pelo seu caráter de crítica impressionista, não corresponde. Isto nada reflete de desfavorável sobre o livro – é uma questão de ser ou não ser – do ponto de vista, vamos dizer técnico – do caráter da coleção. O próprio livro que Olívio Montenegro está escrevendo receio às vezes que não se preste à coleção – embora seja um livro interessantíssimo, segundo tudo indica (ainda não li). Mas estou falando sobre o caso um pouco aereamente, sem saber ao certo o que são os livros de Eloy e de Agripino. Sobretudo o de Agripino – do qual V. só me dá o título, que fiz supor livro impressionista, no gênero dos que ele escreve admiravelmente e como ninguém no Brasil. Sem se excluírem entre si, a diferença entre as falas estava no foco que cada uma lançava sobre a Documentos Brasileiros. Para José Olympio, ela era portadora de um valor que se sobrepunha ao dos livros que reunia e, por isso, catalisadora da sua recepção, mesmo em se tratando de autores bem-conhecidos, como era o caso. Para Freyre, esse valor, inegável, não emanava da coleção em si, mas de uma fonte muito mais precisa: a fundamentação criteriosa dos textos
O referido livro de Eloy Pontes era A vida inquieta de Raul Pompéia, publicado pelo próprio José Olympio em 1935.
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nela publicados, a mesma tantas vezes afirmada no prefácio inaugural. Empenhada na divulgação de olhares objetivos e precisos sobre o Brasil, nela não deveria haver lugar para “impressionismos” como o de Agripino Grieco, representativo de uma tradição intelectual que se buscava superar. Pela mesma razão, o trabalho de Eloy Pontes só seria aceito ali se apresentasse a qualidade documental de seu estudo anterior, uma vez que, sem ela, não haveria sentido em acolhê-lo naquele conjunto. Sutilmente, o diretor parecia querer lembrar o editor de que o nome da coleção não era casual, e apresentava-se tão disposto a fazer valer seus princípios orientadores quanto a preservá-la de pretensões meramente comerciais, embora não desprezasse, de modo algum, essa dimensão do seu trabalho. Paralelamente às discussões acerca da identidade dos Documentos Brasileiros, prosseguia a preparação do seu segundo volume, as memórias do historiador pernambucano Manuel de Oliveira Lima (18671928), que fora mentor e amigo íntimo de Freyre. O livro, intitulado Memórias (Estas minhas reminiscências...), saiu em março de 1937, com direito a novo elogio do diretor da coleção, que escreve a José Olympio dizendo ter achado “ótima a apresentação das memórias do Oliveira Lima”. Frente ao primeiro volume, as únicas diferenças gráficas estavam na capa, onde o vermelho substituía o verde do filete e das letras do título, e na contracapa, onde uma reunião de “opiniões da crítica brasileira sobre Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda”, entrava no lugar dos próximos lançamentos da série. Também custava o dobro do preço do anterior, 20$000 (vinte mil-réis); porém, isso não chegava a ser um problema. Ainda de acordo com Freyre, referindo-se à capital pernambucana, as Memórias “têm tido aqui uma saída extraordinária. Não param nas livrarias. A procura é enorme” – situação que, segundo o Anuário Brasileiro de Literatura (1938, p. 401), se repetia no Rio de Janeiro e, é provável, em outros lugares do País. Mas o aspecto mais importante que o segundo volume parece marcar para a coleção é o início de um novo ritmo em sua produção, mais acelerado e regular a partir de então. Se entre o lançamento do livro de Sérgio Buarque e o de Oliveira Lima houvera um hiato de cinco longos meses, no decorrer de 1937 seriam publicados nada menos que cinco outros títulos: pela ordem, Bernardo Pereira de Vasconcellos e seu tempo, de Octavio Tarquínio de Sousa; Nordeste, de Freyre; O Outro Nordeste, de Djacir Meneses; No rolar do tempo, de Alberto Rangel e
O índio brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso Arinos de Melo Franco. Depois, até julho de 1938, sairiam o estudo do historiador baiano Luis Viana Filho sobre A Sabinada – A república baiana de 1837, a biografia Brasílio Machado, do historiador paulista Alcântara Machado, e, a despeito dos temores anteriormente manifestados pelo diretor, o livro de Olívio Montenegro, O romance brasileiro. De volume em volume, a Documentos Brasileiros tomava forma cada vez mais concreta, uma forma que, articulada por e em torno de Gilberto Freyre, fazia com que o conhecimento do Brasil passasse por Recife. A dinâmica da coleção parecia, assim, materializar com perfeição as expectativas sobre ela projetadas. Além do mais, a conquista da estabilidade também lhe conferia um brilho que, embora continuasse a se beneficiar da importância dos nomes de seu diretor e de seu editor, já podia ser considerado próprio, à semelhança da Brasiliana. Com tudo correndo tão bem, seria difícil imaginar que algo abalasse o seu funcionamento. No entanto, como costuma acontecer com as grandes surpresas, elas vêm de onde menos se espera; no caso, do próprio Freyre, que, em meados de 1938, tomou a decisão de deixar seu posto, motivado, como explicou ao amigo José Lins do Rego em carta datada de 12 de agosto, pelo seu distanciamento do Rio de Janeiro e mais “uma série de coisas inevitáveis”. Embora a tal “série de coisas inevitáveis” fosse um tanto obscura, o argumento da distância entre Recife e o Rio era de fato considerável, à medida que o impedia de ser mais ágil na condução da coleção e de acompanhar diretamente o seu processo de produção. Por esse raciocínio, não haveria dúvida de que seu posto seria mais bem ocupado por alguém que pudesse ser mais presente e, portanto, mais eficaz no trato com autores e com o editor. De todo modo, a saída não significava uma ruptura nem com José Olympio, nem com a Documentos Brasileiros, que, àquela altura, alcançava seu décimo título e tinha vários outros já aprovados, entre eles o outrora discutido trabalho de Eloy Pontes sobre Euclides da Cunha e duas reedições do próprio Euclides, Canudos (Diário de uma expedição) e Peru versus Bolívia. Além disso, seu nome continuaria a aparecer no frontispício dos oito volumes seguintes, adentrando o ano de 1939, enquanto José Olympio buscava alguém para sucedê-lo. Somente a partir do volume 19, Fronteiras do Brasil no regime colonial, de José Carlos de Macedo Soares, a Coleção Documentos Brasileiros passou a trazer a inscrição “dirigida por Octavio Tarquínio de Sousa”. Nascido
no Rio de Janeiro em 1889, formado em Direito em 1907 pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Distrito Federal, o novo diretor era então vice-presidente do Tribunal de Contas da União, posição que mantinha desde 1937, após ter passado pela presidência nos dois anos anteriores. Muito mais destacadas, porém, eram as suas atividades intelectuais na década de 1930. Além de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Sociedade Felipe de Oliveira, colaborava com vários jornais e revistas do eixo Rio–São Paulo; fora crítico literário do prestigioso O Jornal (RJ) entre 1935 e 1937 e em 1938 assumira a direção da Revista do Brasil em seu relançamento, agora vinculada aos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Como autor, publicara o romance Monólogo das coisas, em 1914, e uma elogiada tradução do poema Rubaiyat, de Omar Khayyam, em 1928, mas, desde o trabalho A mentalidade da Constituinte, de 1931, dedicou-se por completo à história do Brasil. Todas essas credenciais, somadas à amizade com Gilberto Freyre e José Olympio e ao fato de ter dois livros publicados na coleção, faziam de Octavio Tarquínio um nome ideal para assumir a Documentos Brasileiros. E se seu Bernardo Pereira de Vasconcellos e seu tempo tivera a honra de ser dos primeiros da série, História de dois golpes de Estado seria, por coincidência, o último volume editado sob a direção de Gilberto Freyre, em abril de 1939. Daí por diante, um novo cenário iria se desenhar à sombra das palmeiras de Santa Rosa. Totalmente à vontade em sua nova função, Octavio Tarquínio assumiu os poderes do cargo sem hesitar, a ponto de vetar, logo ao assumi-lo, a publicação de um livro sugerido pelo próprio Gilberto Freyre. Esta situação voltaria a se repetir dois meses depois, quando devolveu a José Olympio os originais de uma obra sobre Tobias Barreto, a ele confiados “pelo nosso Gilberto”, apresentando ao editor, em carta escrita em 2 de junho de 1939, um argumento sumário e fatídico: “penso que não convém à coleção ‘Documentos Brasileiros’”. À maneira do autor de Casa-grande & senzala, o ministro-historiador também tinha interesse em projetar sobre a coleção as suas concepções acerca do conhecimento do Brasil, em geral, e da história, em particular. Nos livros de sua autoria, era patente a predileção pelos acontecimentos e, principalmente, pelos personagens da política imperial em torno do período das Regências. Para ele, o estudo biográfico era um privilegiado meio de acesso a toda uma época, percebendo “nas narrativas de vida de seus biografados a possibilidade de construir análises históricas decifradoras e atu-
alizadoras dos problemas nacionais”, como já observou Márcia de Almeida Gonçalves (2003, p. 88). Mas, para que tal possibilidade se realizasse, era fundamental obedecer a alguns critérios, que garantissem o máximo de objetividade possível para situar o homem no meio histórico e, ao mesmo tempo, “fazer um pouco de introspecção social e de reconstituição psicológica”. Tal perspectiva, portanto, distanciava-se muito das tradicionais narrativas laudatórias dos “grandes feitos de grandes homens”, produzidas tanto por historiadores quanto por literatos. Na visão de Octavio Tarquínio, o valor historiográfico das biografias estava na contextualização rigorosa, sempre fundamentada em documentos, que elas tinham a obrigação de empreender a fim de entender o indivíduo, suas ações, suas contradições, sem sobrepô-lo a seu tempo ou consagrar-lhe características “heróicas”. Nesse sentido, ele se alinhava a autores que, em diferentes lugares, inclusive no Brasil, empenhavam-se pela renovação do próprio gênero, tendo à frente André Maurois, Emil Ludwig e Lytton Strachey. Com sua ascensão ao comando da Documentos Brasileiros, tentativas semelhantes passaram a contar com um aliado sempre disposto a lhes dar abrigo: não é casual, certamente, que 13 dos 29 volumes lançados entre 1940 e 1945 tenham sido de caráter biográfico ou memorialístico, incluindo dois livros de sua própria autoria – Diogo Antônio Feijó, de 1942, e José Bonifácio, de 1945. Junto à incorporação da biografia, o novo diretor soube também consolidar o prestígio da coleção, que, logo no início da década de 1940, já podia ser comparada à série da Companhia Editora Nacional, embora fosse muito mais recente e muito menos vultosa. É o que se depreende de uma pequena nota publicada na Revista do Brasil, em maio de 1942, a qual dizia ser “bastante significativo o gosto do público literário do país pelas obras de estudo relativas à vida brasileira nos seus vários aspectos”, percebido pelo “sucesso de algumas coleções especializadas organizadas pelas principais editoras nacionais”. Como o texto ressaltava, “não é possível tocar no assunto sem referir a Brasiliana”, cujos 220 volumes representariam “o mais variado repertório de estudos sobre temas brasileiros”, refletindo “o corpo e a alma do Brasil”. A relação da José Olympio, porém, “não lhe fica[va] atrás”, pois, mesmo contando com menos de 35 obras, todas haviam sido “escolhidas com o maior rigor, e quase todas [eram] de singular importância do ponto de vista histórico, sociológico ou literário” (REVISTA DO BRASIL, maio de 1942, p. 88). Rapidamente, Octavio Tarquínio de Soujulho/agosto/setembro de 2014
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sa afirmara-se como um ótimo administrador do edifício arquitetado e levantado por José Olympio e Gilberto Freyre. Estes, por sua vez, continuavam muito participativos em relação à Documentos Brasileiros. No caso de José Olympio, o dever do ofício e os cuidados que a ela dedicava o levavam a fazer muito mais que referendar ou não as ideias e decisões do diretor, procurando também atrair autores, sempre que possível. Já Freyre agia sem muita diferença dos tempos em que a tinha sob sua responsabilidade: fazia contato com potenciais autores e incentivava outros a escrever, indicava livros e remetia originais para o Rio de Janeiro, discutia ora com o diretor, ora com o editor a publicação dos seus próprios títulos. Tudo, em larga medida, estimulado e legitimado pelos próprios Octavio Tarquínio e José Olympio, que, ao menos aparentemente, não se sentiam ofendidos com tantas intervenções. Nem haveria razão para tanto, aliás, pois essa triangulação era favorável a todos, principalmente para a coleção. O melhor exemplo disso talvez seja dado pela trajetória editorial de Casa-grande & senzala. Após uma longa briga de Gilberto Freyre com seu primeiro editor, o poeta Augusto Frederico Schmidt, que se arrastou por anos e só se resolveu nos tribunais, a obra passou às mãos de José Olympio, e de pronto foi encabeçar a lista dos próximos lançamentos da Coleção Documentos Brasileiros. A publicação ainda demoraria mais dois anos, mas, nas mãos do melhor editor do País, o mais importante livro da época, escrito por um dos maiores autores nacionais, chegava assim àquele que parecia ser o seu devido lugar. A coleção, por seu lado, demonstrava-se plenamente consagrada ao acolher sua fonte de inspiração intelectual, ela que fora orientada, ao menos no início, pelas ideias e pelas propostas do livro de estreia de Gilberto Freyre. Subjacente a esse encontro, ocorre uma inversão de papéis sutil, quase imperceptível: a identidade própria conquistada pela coleção a dotara de autonomia suficiente para se impor às origens, transformando esse livro em “apenas” mais um de seus volumes. Essa identidade própria permitia também algumas iniciativas pouco comuns ao mercado editorial da época, como abrigar títulos dedicados a estudos de história “das ideias”, tema ainda hoje não muito familiar à nossa tradição intelectual. O primeiro deles foi O índio brasileiro e a Revolução Francesa, de Afonso Arinos de Melo Franco, publicado logo no início da série, em 1937. Vinte anos depois, a expressão “história das ideias” voltaria a aparecer, desta vez já no título do livro de João Cruz Costa, Contribuição à história das idéias no Bra-
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sil, cujo complemento, “O desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórica nacional”, delineava melhor o seu conteúdo. No ano seguinte, o volume A democracia coroada, de João Camilo de Oliveira Torres, aparecia com a pretensão de, segundo o próprio autor, “dentro dos métodos e intenções da disciplina que se intitula a ‘história das idéias’, analisar os diferentes sistemas ideológicos que exerceram influência no Brasil, seja em seu desenvolvimento político, como no caso presente, seja na formação espiritual, seja ainda na vida religiosa ou social” (OLIVEIRA TORRES, 1958, p. 15). Como se vê, um longo hiato temporal separava tais obras, que, além disso, apresentavam perspectivas analíticas discrepantes. Longe de ser mero detalhe, ambas as características sugerem que, antes de representar uma tendência bem delineada da nova historiografia brasileira, as “idéias” serviam muito mais como um rótulo para classificar trabalhos de temática que pouco se encaixavam nos compartimentos estabelecidos pelas formas habituais de se analisar o Brasil. Por isso mesmo, não deixa de ser curioso notar que, enquanto a coleção abria suas portas a essa abordagem tão imprecisa, outra novidade, esta mais abrangente e muito mais bem-definida, seria por ela ignorada: o marxismo. Deliberadamente ignorada, talvez seja possível dizer, já que, desde o início da década de 1930, nossos circuitos intelectuais mostravam-se atentos à emergência da interpretação materialista da história do Brasil, como demonstrava a intensa difusão de obras marxistas, clássicas e contemporâneas, em geral realizada por pequenas editoras e com sucesso comercial considerável, segundo o historiador Edgard Carone (2004, p. 63). Nada disso, contudo, tornaria a Documentos Brasileiros sensível a autores comprometidos com a interpretação materialista da história e da realidade, algo que decerto não deve ser creditado a um possível conservadorismo, muito menos a reacionarismo, do editor. De postura liberal, José Olympio era um dos principais fomentadores do novo e crítico romance social que surgia à época no País, e ainda daria guarida profissional a autores assumidamente de esquerda, perseguidos pela ditadura do Estado Novo, como Graciliano Ramos e Jorge Amado. Ademais, a crescente tensão política entre 1935 e 1937 e, depois, a institucionalização da censura fizeram-no sofrer bastante com a violência contra a livre manifestação da cultura e do pensamento, que, segundo Laurence Hallewell (2005, p. 455), retaliava tanto os romances tidos por “comunistas” que publicava quanto as suas edições de livros integralistas, que defendiam “o tipo errado de fascismo”.
Como hipótese, talvez seja possível atribuir tal ausência ao perfil de seus respectivos diretores. No caso de Gilberto Freyre, sua reticência em relação ao materialismo histórico-dialético se explicitara já nas páginas iniciais de Casa-grande & senzala, onde, apesar de não ser negado de todo, fora caracterizado como “tantas vezes exagerado nas suas generalizações – principalmente em trabalhos de sectários e fanáticos”. Já com relação a Octavio Tarquínio, sua predileção pelo biográfico necessariamente implicava algumas diferenças ante a interpretação materialista da história. Estas, no entanto, não o colocavam em franca oposição ao marxismo, até porque seu propósito era sempre, como já foi notado, o de entender o homem em si mesmo e em relação com seu meio e seu momento, como constatou Márcia de Almeida Gonçalves (2003, p. 290) ao analisar a introdução à História dos fundadores do Império do Brasil, em que o próprio Marx é discutido por Tarquínio, para quem “a luta de classes não implicava a negação da interferência de grandes personalidades, dotadas de qualidades morais e intelectuais, no desenvolvimento das sociedades”. Mesmo assim, a tolerância muito maior que a de Freyre não foi suficiente para abrir a coleção à esquerda; ao menos, justiça seja feita, a direita também nunca teve nela grande expressão, o que demonstra uma vez mais o compromisso do editor e, por extensão, de seus diretores, com a cultura, não com a política. Assim, enquanto corriam os anos 1930 e 1940 e o País vivia grandes transformações, tanto materiais quanto mentais, no sentido de sua modernização, a Documentos Brasileiros se constituiu como marco de uma intelectualidade também em mudança. Em fins da década de 1950, porém, já era possível sentir que sua fórmula dava sinais de esgotamento. Em texto de 1958, o historiador José Honório Rodrigues notava, de modo genérico, que as coleções dedicadas ao exame do Brasil “tinham o dever de provocar um pensamento mais pragmatista, em que o presente, com seus problemas e temas, fosse o foco em que se projetasse a luz do passado”. No entanto, continuava ele, a “história historizante, história puramente descritiva, história clássica como um relógio de repetição”, havia tomado de assalto tais “brasilianas”, que teriam passado “a debater os mesmos problemas e a discutir as mesmas teses, apenas porque o especialismo erudito descobrira mais uma miúda novidade ou uma palavra diferente da mesma personagem” (RODRIGUES, 1965, p. 18). Novos interesses já se divisavam então no horizonte do mundo intelectual nativo, e eles não eram mais os mesmos da década de 1930. Outros canais de manifestação, como
a universidade, passaram a ocupar o espaço da produção e circulação de ideias, e mesmo o mercado editorial, muito em função dessa dinâmica, passava por redefinições, deixando a generalização rumo à segmentação. A partir daí, com o campo das Ciências Humanas e Sociais cada vez mais consolidado e institucionalizado, novos modelos interpretativos e explicativos da realidade entrariam em cena, acompanhados de novos projetos editoriais correspondentes – como a Coleção Corpo e Alma do Brasil, ou, pouco mais tarde, a História Geral da Civilização Brasileira, ambas editadas pela DIFEL – e mesmo de uma renovada política editorial – como a de Ênio Silveira, na Editora Civilização Brasileira. Pouco a pouco, a Coleção Documentos Brasileiros e a própria Editora José Olympio vão perdendo sua hegemonia: no caso da primeira, junto à intelectualidade; no caso da segunda, junto ao mercado. Por mais que resistissem, e ambas resistiram muito a incontáveis dificuldades, parecia que o tempo de sua atuação civilizadora, tal como idealizado pelo editor, já havia passado. Seu papel fora cumprido. Mais importante, fora cumprido muito bem, como Otto Maria Carpeaux bem retratou em um belo texto sobre Tomás Santa Rosa, escrito ainda no início dos anos 1950. Parodiando uma sátira de Mark Twain, o crítico e escritor criava uma história na qual, “no ano 9000 da nossa era, os arqueólogos começaram a escavar as ruínas do Rio de Janeiro”, descobrindo “em certas cavernas provavelmente dedicadas ao culto de São José numerosas folhas de papel de péssima qualidade”, em cujas capas sempre aparecia “o mesmo hieróglifo misterioso: ‘SR’”. Curiosos e dedicados em
decifrar o significado dessas duas letras, esses arqueólogos do futuro lançaram-se em investigações e hipóteses, uma delas que dizia tratar-se “de um personagem semi-mitológico, de uma condensação folclórica dos traços característicos do homo brasiliensis”. E continuava: Nessa altura apareceu o professor Sicrano, apresentando ao mundo científico descoberta sensacional: uma coleção de obras, evidentemente escritas por autores diferentes, mas todas assinadas pelo misterioso “SR”. Chamava-se a coleção “Documentos Brasileiros”. O estado de conservação das capas não era muito satisfatório, devido à qualidade do papel, de modo que se repetiu o caso do “grande rei Smith” no conto de Mark Twain: os estudiosos, evocando o costume dos romanos de datar os documentos conforme os nomes dos cônsules do ano, atribuíram a coleção inteira à “época de José Olympio”, que teria sido in illo tempore o rei do Rio de Janeiro. Vários autores da coleção podiam ser identificados: Lucia Miguel-Pereira, biografando um poeta em cujos versos aparece um pássaro mitológico chamado “Sabiá”; Octavio Tarquínio de Sousa, que viveu, conforme os documentos, no século XX, embora alguns historiadores teimem em incluí-lo entre as grandes personalidades da época da Regência; Álvaro Lins, conhecido nos anais da literatura como crítico impiedoso, aí porém metido na história dos compromissos diplomáticos; Gilberto Freyre, dono indiscutido da casa-grande da sociologia brasileira; Afonso Arinos de Melo Franco, índio mineiro que participou da Revolução Francesa e pro-
vavelmente de mais outras revoluções; e Sérgio Buarque de Holanda, que chegou a desenterrar as próprias raízes do Brasil. Para todos esses autores e obras, por mais diferentes que tenham sido, criou “SR” o símbolo comum que distingue, invariável e inconfundivelmente, os volumes todos da Coleção Documentos Brasileiros, símbolo de significação profunda e simplicidade surpreendente: uma palmeira. A árvore típica, cujas raízes se confundem com as próprias raízes do Brasil; a árvore que deu sombra à casa-grande do senhor e à senzala dos escravos; a árvore que, através das vicissitudes da história do Brasil, sombreou o cemitério das derrotas e se hasteou, às vezes, como bandeira da vitória; a palmeira bem brasileira, as raízes na terra e a coroa no alto, na região da poesia (CARPEAUX, 1953, p. 198-199). Mirando as palavras de Carpeaux com o devido distanciamento propiciado pelo tempo, é possível dizer que, à sombra da palmeira plantada por José Olympio e zelosamente cultivada por Gilberto Freyre e Octavio Tarquínio de Sousa, uma nova historiografia brasileira encontrou solo fértil para florescer. Um solo bem diferente daquele encontrado nos Institutos Históricos e Geográficos – fosse o IHGB, fossem os regionais –, já cansados pela semeadura oitocentista, e, ao mesmo tempo, diferente também da terra nova representada pelas nascentes faculdades de Filosofia. E, como em tantas outras situações, mostram-se, mais uma vez ,válidas as palavras de Robert Darnton (1990, p. 131), para quem “os livros não se limitam a relatar a história: eles a fazem”. g
REFERÊNCIAS a) Documentais BRASIL. Diario Official dos Estados Unidos do Brasil, 19 set. 1936. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2258672/dou-secao-1-19-09-1936pg-1/pdfView>. Acesso em: 30 abr. 2013. Correspondência passiva de José Olympio e da Livraria José Olympio Editora. Acervo José Olympio. Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro/RJ. Correspondência passiva de Gilberto Freyre. Fundação Gilberto Freyre, Recife/PE. b) Bibliográficas ANUÁRIO Brasileiro de Literatura. A Coleção “Brasiliana” comemorando o seu 100º volume! Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 2, 1938. p. 304. ANUÁRIO Brasileiro de Literatura. O que se lê no Brasil. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 2, 1938. p. 401-407. CARONE, Edgard. Leituras marxistas e outros estudos. São Paulo: Xamã, 2004. CARPEAUX, Otto Maria. Retratos e leituras. Rio de Janeiro: Edição da Organização Simões, 1953. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 2. ed. Rio de Janeiro: Schmidt, 1936. ______. Documentos Brasileiros. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. p. V-IX. ______. Sobrados e mucambos. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. GONÇALVES, Márcia de Almeida. Em terreno movediço. Biografia e história na obra de Octavio Tarquínio de Sousa. 2003. Tese (Doutorado em História Social) - FFLCH - USP - São Paulo, (publicada em livro com o mesmo título “Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010). HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2005. LIMA, Sônia Maria van Dijck e FIGUEIREDO JUNIOR, Nestor. De Gilberto Freyre para José Lins do Rego. In: GALVÃO, Walnice Nogueira & GOTLIB, Nádia Battella (Org.). Prezado senhor, prezada senhora. Estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 241-250. OLIVEIRA TORRES, João Camilo de. A democracia coroada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958. PONTES, Heloisa. Retratos do Brasil: editores, editoras e “coleções Brasiliana” nas décadas de 30, 40 e 50. In: MICELI, Sergio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. v. 1. 2. ed. São Paulo: Editora Sumaré, 2001. p. 419-476. REVISTA do Brasil. Livros sobre o Brasil. Rio de Janeiro, a. V, n. 43, mai. 1942. p. 88. RODRIGUES, José Honório. História e historiadores do Brasil. Rio de Janeiro: Fulgor, 1965. VILLAÇA, Antônio Carlos. José Olympio: O descobridor de escritores. Rio de Janeiro: Thex, 2001. julho/agosto/setembro de 2014
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EDUCAÇÃO
A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS PARA A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A CONTRIBUIÇÃO DE OSCAR WILDE Giovana Meire Polarini
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONTOS DE FADAS. 2.1 Historicidade. 2.2 Conceituação. 2.3 Ambientação. 3 OS CONTOS DE FADAS E A FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA HUMANA. 4 EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E CONTOS DE FADAS. 5 A CONTRIBUIÇÃO DE OSCAR WILDE PARA UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. 5.1 Breves considerações biográficas. 5.2 “História de Fadas”: principais características. 5.3 “História de Fadas”: a contribuição de Oscar Wilde para uma educação em direitos humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. RESUMO O presente artigo tem como objetivo trazer a lume a importância dos contos de fadas, enquanto gênero literário, como instrumental para uma educação em direitos humanos. Dentre os autores que se dedicaram a esta modalidade de literatura, destaca-se o escritor irlandês Oscar Wilde, cujas obras são atemporais e encantam gerações de pessoas há séculos. Ao fazer uso da narrativa fantástica, rica em detalhes e seres mitológicos, o autor procura mostrar os valores éticos e morais que devem nortear a conduta do ser humano para com o seu próximo, o respeito à diversidade, à crítica às formas de discriminação e a sociedade de sua época, ou seja, de forma simbólica, o autor estabelece uma metodologia para educação em direitos humanos. Palavras-chaves: Contos de fadas. Educação. Direitos humanos. Oscar Wilde.
ABSTRACT This article aims to bring to light the importance of the fairy tales, as a literary genre and as an instrument for human rights education. Among the authors who have dedicated themselves to this kind of literature, there is the Irish writer Oscar Wilde, whose works are timeless and enchanted generations of people for centuries. By making use of fantastic narrative, rich in details and mythological beings, the author tries to show the moral and ethical values that should guide human conduct toward his neighbor, respect for diversity, critical forms of discrimination and society of his time, that is, symbolically, the author establishes a methodology for human rights education Keywords Fairy tales. Education. Human rights. Oscar Wilde. INTRODUÇÃO O presente artigo tem por finalidade discutir de que forma os contos de fadas, leituras simples, lúcidas, repletas de engenho criativo e que permeou o mundo de fantasias de todas as crianças, podem contribuir para a formação de sua personalidade e para a educação em direitos humanos. Assim, pretende-se trazer uma visão panorâmica acerca dos contos de fadas: como surgiram, o que são, seus principais autores e em que medida contribuem para a formação personalidade da pessoa humana e como esta influência refletirá na vida adulta. Desta forma, percebe-se que existe uma profunda e indissociável interrelação entre educação, direitos humanos e contos de fadas: estes são importantes instrumentos para
uma educação em direitos humanos. Dentre os diversos autores que se dignaram a escrever contos de fadas, destaca-se o irlandês Oscar Wilde, cuja fonte de inspiração para suas histórias foram seus próprios filhos. O autor escreveu seus contos de fadas como forma de educá-los, demonstrando a eles, de forma lúdica, as mazelas da sociedade de sua época e os valores morais e éticos universais e essenciais à pessoa humana. Assim, a partir da revisão bibliográfica, investigar-se-ão estas questões de forma a possibilitar a educação em direitos humanos. 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONTOS DE FADAS 2.1 HISTORICIDADE Não se sabe ao certo há quanto tempo os contos de fadas existem. Sabe-se apenas que existem há séculos, fruto da tradição oral dos povos antigos e integram as mais diversas culturas populares, tanto ocidentais quanto orientais. A título de ilustração, pode-se citar a história da “Cinderela”, que, segundo consta, há registros de uma narrativa muito semelhante na China do século IX d.C.1 Glória Radino2 entende que os contos de fadas têm origem celta3, com heróis e heroínas, aventuras ligadas ao sobrenatural, ao mistério do além-vida e visavam à realização interior do ser humano. Daí a presença da fada, cujo nome vem do latim fatum.4 Contudo, a historiografia considera que os contos de fadas tenham surgido na Idade Média, de tal sorte que por intermédio das fantasias neles contida os camponeses con-
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1995, p. 120. RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 171. 3 Os celtas surgiram na Europa Central (entre o Atlântico e o Mar Negro) na era do bronze (2000 a.C.), provavelmente vindos da Ásia Menor. Falavam uma língua com influência do indo-europeu. Eram povos pastores em busca de grandes pastos para carneiros, gado e cavalos. A princípio habitavam a região do Alto Danúbio (Boêmia e Baviera) e, no correr dos séculos, por meio de conquistas territoriais – e tinham também relações comerciais – espalharam-se por toda a Gália, a Espanha, as ilhas Britânicas, a Itália, a Bretanha e a Provença. A maior concentração celta teria se dado na Irlanda. As pesquisas arqueológicas iniciadas no século XIX chegaram à conclusão de que os celtas deixaram vestígios de sua cultura anterior à cultura romana. O que mais parece ter influenciado nos contos de fadas foram os princípios espirituais do povo celta. Vide: COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003, p. 69. 4 Fatum: palavra de origem latina que significa destino. 1 2
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seguiam superar as humilhações a que eram submetidos, livrar-se da opressão dos ricos e dos poderosos e satisfazer, assim, a fome de vingança, ao criticarem o sistema feudal e a impossibilidade de ascensão social em razão da estratificação rígida.5 Os contos de fadas devem a sua existência até os dias modernos, em um primeiro momento, a partir da tradição oral. Quando os historiadores utilizavam como fontes de pesquisa os relatos das testemunhas sobre algum acontecimento que elas haviam vivenciado, eles estavam utilizando a tradição oral, pois, além de narrarem os fatos acontecidos, esses mesmos fatos também eram contados através da óptica de suas culturas. Desde o surgimento da escrita, a tradição oral marcou presença nas comunidades de acordo com suas necessidades e o valor devotado às suas tradições, além do desejo de perpetuá-las. Portanto, pode-se dizer que a tradição oral nada mais é do que uma forma de preservação de histórias, lendas, usos e costumes através da fala, transmitindo-a às futuras gerações. É na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. M. V. Reyzabal6 elucida: Desde o nascimento, a criança faz parte dessa transmissão cultural de valores, costumes, normas e interditos. Por intermédio das cantigas de ninar, das brincadeiras de roda, dos contos de fadas, a criança vai, aos poucos, tornando-se um ser simbólico, social e cultural [...]. Portanto, a transmissão oral é muito mais do que comunicação, é formadora do indivíduo. Contudo, a tradição oral, ainda que perpetue hábitos, usos e costumes, pode ser modificada ao longo das gerações, a ponto de que o que chega ao conhecimento das gerações futuras não é exatamente o mesmo que seus antepassados tentaram transmitir. “[...] algumas histórias misturavam-se com outras. Todas foram modificadas pelo que o contador pensava ser de maior interesse para os ouvintes, pelo que eram suas preocupa-
ções do momento ou os problemas especiais de sua época”7. Este fenômeno também refletiu nos contos de fadas e a mensagem que se propunha a transmitir. Os contos de fadas mais antigos de que se tem notícia não foram feitos para crianças, até mesmo porque o conceito de infância não existia.8 Assim, o primeiro escritor deste gênero foi Giambattista Basile9, na Itália, entre 1634 e 1636. Os escritos eram obscenos e tinham um tom cômico. Os narradores eram mulheres velhas, enrugadas e fofoqueiras, assemelhado a “O conto da velha” de Platão. O autor trata de temas delicados como, por exemplo: o aborto, a sexualidade, o erotismo, a sedução, o incesto e a transgressão.10 Apesar do sucesso destes contos, eles foram condenados pelos educadores, pelos temas obscenos e linguagem vulgar. Tendo sido esquecidos ao longo dos séculos, não se pode desconsiderar a sua importância, sendo o precursor dos demais contistas que surgiram posteriormente, que sofreu a sua influência.11 2.2 CONCEITUAÇÃO Diante desta narrativa histórica, importante saber o que são, afinal, os contos de fadas. Glória Radino12 define contos de fadas como sendo narrativas com ou sem a presença de fadas, que se desenvolvem dentro de uma magia feérica. O eixo central dessa narrativa consubstancia-se, geralmente, na problemática existencial, em que o herói busca uma realização, relacionada à união homem-mulher. Os contos de fadas são considerados documentos históricos que retratam a situação sócio-econômica de miserabilidade da população e as relações entre os homens, conforme a visão de mundo da época. Os contos de fadas apresentam uma literatura de forma simples porque resultam de “criação espontânea”, não elaborada. Pela autenticidade de vivências que singularizam essas narrativas, quase todas elas acabaram assimiladas pela literatura infantil, via tradi-
ção popular.13 Os contos de fadas possuem natureza espiritual (influência da mitologia e da religião celta), ética, e existencial. Todos os acontecimentos eram explicados a partir das vontades dos deuses, entre eles a oferta de vidas humanas para sacrifícios, por acreditarem na imortalidade corporal e na existência de outra vida além da terrestre, como pode-se perceber no conto “A Gata Borralheira” ou “Cinderela”, em uma de suas versões mais antigas.14 2.3 AMBIENTAÇÃO Na Itália medieval, Giovanni Bocaccio e Geoffrey Chaucer escreveram histórias cujos narradores eram mulheres, que posteriormente apareceram em contos de fadas. Em 1550, Giovani Francesco Straparola escreveu uma série de histórias também narradas por mulheres, em uma coleção de contos marcados pelas fantasias divertidas e escabrosas.15 Os contos de fadas franceses caracterizam-se por retratarem a realidade bestial em que viviam os camponeses entre os séculos XV e XVI, com a questão do abandono e o desejo de comida. Tais situações podem ser encontradas nos contos “O Pequeno Polegar”, “Chapeuzinho Vermelho” e “João e o Pé de Feijão”.16 Charles Perrault (1628-1703)17 é considerado o primeiro autor a coletar e organizar sistematicamente os contos de fadas na forma de livro. Segundo consta, o autor ouvia as histórias contadas por populares e as adaptava ao universo cultural de sua época, acrescentando ou eliminando alguns aspectos que não eram interessantes para a sociedade de meados do século XVII.18 O autor referenciado consignava, ao final da narrativa, algumas considerações de cunho moral e ético, sob fundamentação cristã, que deveriam servir para educar as crianças. O público alvo de Charles Perrault era a nobreza que frequentava os saraus na corte de Versalhes. Apesar disso, o autor expressava em seus escritos uma nova forma de pensar na infância. Quanto mais seus contos se aproximavam da intenção de serem dedi-
MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p.53. REYZÁBAL, M.V. A comunicação oral e sua didática. In: RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.36. 7 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 34. 8 MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 55, 9 O autor escreveu cerca de 50 contos, entre eles algumas versões mais antigas e conhecidas como: Branca de Neve, Cinderela, A Bela Adormecida, entre outras. Vide: COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003, p. 68. 10 MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 55-54. 11 MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 56. 12 RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 171. Revista Acadêmica Direitos Fundamentais Osasco | SP Ano 6 n.6 2012 13 COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003, p. 165. 14 MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 54. 15 A coleção do autor Le piacevoli de li cunti continha narrativas orientais e do folclore medieval. Vide: COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003, p. 166. 16 MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 56. 17 Atribui-se a Charles Perrault a autoria dos contos: Histórias da Mamãe Ganso, A Marquesa de Salusses ou A Paciência de Grisélidis, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, O Gato das Botas, O Pequeno Polegar e Cinderela, para citar os mais conhecidos. Disponível em: <http://vandafurtadomarques.blogspot.com/2008/10/ origem-dos-contos-de-fadas.html/>. Acesso em: 05.11.2010 18 Disponível em: <http://tapetedesonhos.wordpress.com/2007/08/page/5/,http://www.scribd.com/doc/39141994/A-Import-an-CIA-Do-Conto-de-Fadas/>. Acesso em: 05.11.2010. 5 6
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cados às crianças, menos obscenos e mais moralizantes se tornavam, criando novos valores sociais.19 Nesse momento da história ocidental, os contos de fada começaram a fazer parte da educação das crianças, tendo sido positivado no ordenamento jurídico francês através do Decreto de 13.12.1668, com a obrigatoriedade do ensino primário.20 No século XIX, na Alemanha, destaca-se a obra de Jacob e Wilhel Grimm, que passariam para a história como “Irmãos Grimm”. Com formação em filologia21, a coleta de contos populares tinha como objetivo estudar a língua alemã e registrar seu folclore. De modo a recuperar a identidade histórica do país por meio de sua tradição oral (acreditava-se que a verdadeira cultura nascia na tradição do povo22), os autores registravam os contos da forma originariamente relatada pelos populares, pois queriam buscar uma cultura genuína e nacionalista.23 Posteriormente, as obras dos “Irmãos Grimm”24 passaram a ser publicadas para serem lidas às crianças na hora de dormir, já que em seus contos sempre surgem os finais felizes: “E foram felizes para sempre...”25, o que faz com que as crianças, depois de entrarem neste mundo de sonho e fantasia, possam ter um sono tranquilo e sonhar com coisas belas e felizes. Com a intenção de transformar os contos para atender ao público infantil, fizeram alterações pedagógicas e os moralizaram, atribuindo-lhes os dogmas católicos e os valores sociais da época. Ainda no século XIX, destacam-se o autor dinamarquês Hans Christian Andersen e o irlandês Oscar Wilde. Hans Christian Andersen (1805-1875) fez bom uso de suas origens simples ao retratar, em seus contos, as raízes das pessoas de sua época, de forma melancólica e, ao mesmo tempo, bastante poética, por meio de uma linguagem rica em metáforas e intensidade dramática.26
Os contos dos Irmãos Grimm tratam da eterna luta pela existência, seja externa, a partir das privações como a fome e o abandono, ou interna, como as injustiças. As obras do autor trazem personagens frágeis e desamparadas, como se verifica em “O Patinho Feio”, “O Soldadinho de Chumbo”, “A Pequena Sereia” e “A Vendedora de Fósforos”, retratando o triunfo dos oprimidos frente aos opressores. Oscar Wilde (1854-1900), como se verá mais adiante, escrevia contos de fadas para seus filhos com o intuito de transmitir-lhes valores morais e éticos, ao mesmo tempo em que criticava a sociedade de sua época, apegada a bens materiais, enquanto fechava os olhos à essência da pessoa humana. Diana Liechtenstein Corso e Mário Cor27 so explicitam: Quando essas histórias faziam parte da tradição oral, o mundo não era tão dissociado do resto da sociedade, trabalhava-se num lugar que era a extensão da casa. Não havia distinção entre casa e trabalho, nem entre o mundo da infância e dos adultos, tampouco havia uma preocupação com a formação das crianças, pois nem havia uma clara ideia da infância, tal qual a concebemos, existisse. Na partilha ocorrida posteriormente, fazendo com que casa e trabalho, adultos e crianças se separassem, os contos de fadas ficaram em casa com os pequenos. Em terras brasileiras, tem-se a figura de Monteiro Lobato. Identificado com os Irmãos Grimm e Andersen, Monteiro Lobato também tinha um espírito nacionalista e para transmitir suas ideias às crianças e aos jovens, produziu uma obra sem precedentes. Para Mary de A. Arapicara28, No mundo de Lobato nada faltou. Ele removeu o tempo e o espaço. Reconstruiu o mundo para seus guris. Levou-os a todas as partes; conduziu-os aos céus, ao mar e às mais longínquas paragens. Transportou-os às civilizações mais remotas numa viagem
até nossos dias [...]. Passeou com eles pela História [...], guiou-os através das religiões desde o paganismo; através das políticas mais diversas, através da filosofia de todas as épocas; das Literaturas dos países diferentes; das artes, das ciências, em todas as suas manifestações [...]. Lobato não se esqueceu também do mundo clássico, cheio de surpresas e peripécias. Não ficou só nas fábulas e não se limitou ao nosso delicioso “Sitio do Pica-Pau” e ao nosso folclore. Lobato deu às crianças o seu clima épico, heroico, ora conduzindo-as ao mundo fantástico da Mitologia grega [...] a obra de Lobato recria e forma o educando. Ela é síntese, é uma enciclopédia de todas as grandes obras universais. Esse caráter enciclopédico não é apenas no campo da recreação, mas no sentido do conhecimento e da cultura. Ao revisitar-se do passado, pode-se claramente notar a riqueza simbólica, a temporalidade e a utilidade dos contos de fadas para as passadas, presentes e futuras gerações, consubstanciando-se, certamente, em patrimônio cultural da humanidade. 3 OS CONTOS DE FADAS E A FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA HUMANA A leitura de contos de fadas para as crianças não é apenas um hábito saudável para estimular, desde as mais tenras idades, o gosto pelos livros e pelos estudos. Muito além disso, trata-se de um instrumento indispensável para pais e educadores na formação da personalidade da pessoa humana, atuando diretamente nas emoções, sentimentos e visão de mundo. De forma lúcida representam o desenvolvimento humano, que se inicia com a resistência contra os pais e o medo de crescer, e termina quando encontra a si mesmo, materializado na independência psicológica e maturidade moral, e não mais encara o outro como ameaçador, sendo capaz de relacionar-se positivamente com os outros.29
MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 59. MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 59. Em grego philos quer dizer “amigo” e logos, “conhecimento”, “palavra”, “discurso”. A filologia é a área do conhecimento especializada no trato com os textos, sendo que o texto de literatura ocupa um lugar privilegiado na história dessa disciplina. A filologia trabalha com várias áreas do saber, tais como a Retórica, a Poética, a Gramática, a Linguística, a Lexicografia, a Prosódia, a Métrica, a Estilística e a Teoria e História da Literatura. A história da filologia remonta à Antiguidade e às primeiras análises interpretativas da obra de Homero no século VI a.C. Ao longo do século XVIII iniciou-se um processo de separação das filologias clássicas (voltadas para os textos da tradição greco-romana) e das filologias modernas (voltadas para o estudo das literaturas em línguas nacionais). No século XIX ocorreu uma nova cisão: a Linguística, a Teoria Literária e a Literatura Comparada começaram a se estabelecer como disciplinas autônomas. A filologia continuou sendo uma área do conhecimento fundamental para aquele que trabalha com a literatura: hoje em dia ela é sinônimo de rigor no trato com os textos e de pensamento pautado pela questão histórica. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/convivencia/oficina/livrovivo/filologia.htm/ Acesso em: 11.12.2010 22 CANTON, K. “E o príncipe dançou. O conto de fadas, da tradição oral à dança contemporânea”. São Paulo: Ática, 1994, p. 238. In: RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.83. 23 MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 61. 24 A principal fonte inspiradora dos Irmãos Grimm foi Dorothea Vehman, uma mercadora de frutas e também contadora de histórias. Segundo críticos, os Irmãos Grimm copiavam os escritores franceses como Racine e Molière. Vide: MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p. 61. 25 Tal como aparece nos contos: Branca de Neve, Rapunzel, Os Músicos de Bremen, A Guardadora de gansos, O Príncipe Rã, Joãozinho e Maria e uma versão diferenciada de O chapeuzinho vermelho. Disponível em: <http:// vandafurtadomarques.blogspot.com/2008/10/origem dos-contos-de-fadas.html/>. Acesso em: 11.12.2010. 26 Disponível em: <http://tapetedesonhos.wordpress. com/2007/08/page/5/, http://www.scribd.com/doc/39141994/A-Import-an-CIA-Do-Conto-de-Fadas/>. Acesso em: 11.12.2010. 27 ORSO, Diana Liechtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 26. 28 ARAPIRACA, Mary de A. Prólogo de uma paidéia lobatiana fundada no fazer lúdico e especulativo: a chave do tamanho. Tese de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996, p. 22. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/teses.html>. Acesso em: 6.11.2010. No mesmo sentido: MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008, p.73. 29 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 20. 19 20 21
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Segundo Mariuza Pregnolato30, os contos de fadas exercem uma influência muito benéfica porque ensinam a superar obstáculos, “especialmente quando o herói vence no final”, vez que se identificam com as personagens e vivenciam a trama das histórias; retratam, ainda que de forma lúdica, a própria vida humana, como a morte, o envelhecimento, a luta entre o bem e o mal, a inveja, mas sempre com desfechos otimistas, positivos, ainda que simbólicos, o que se transforma em um meio de aprendizado para o ouvinte. A autora referenciada acredita que o efeito integrador que os contos de fadas têm sobre a personalidade seja o fator responsável pelo fato de terem resistido à passagem do tempo e terem se universalizado. Neste mesmo sentido, Bruno Bettelheim31 acredita que os contos de fadas confrontam as crianças com os predicamentos humanos básicos. Por exemplo, muitos contos de fadas começam com a morte da mãe ou do pai, a morte dos genitores cria os problemas mais angustiantes, como o medo disto ocorrer na vida real. É a característica de um conto de fadas colocar um dilema existencial de forma breve e categórica. Isto permite à criança apreender o problema em sua forma mais essencial, onde uma trama mais complexa confundiria o assunto para ela. O conto de fadas simplifica todas as situações. [...] o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem. É esta dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo. A criança, ao deparar-se com a essência dos contos de fadas, internaliza as lições que os autores pretendem passar e as transpõe para a sua realidade. A repetição das histórias reflete sobre seus próprios sentimentos e permite, com esse processo, solucionar os conflitos internos. Sem ter consciência disso, procura resposta para algo dentro de si que não está de acordo consigo mesma.
Ah, como é importante para formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem para ser um leitor. E ser leitor é ter o caminho absolutamente infinito de descoberta e compreensão do mundo [...]32 Assim, os contos de fada proporcionam uma forma de encontrar o significado da vida, à medida que, consoante Glória Radino33, [...] atingem o inconsciente da criança e [...] podem ser um importante instrumento para auxiliá-la a elaborar e projetar conflitos. Seu universo é diferente do nosso e sua forma de compreender o mundo é animista tendo a fantasia um papel fundamental para mediar a relação entre seus mundos interno e externo. Além disso, demonstra de forma lúcida que a vida apresenta dificuldades graves, é inevitável transmitir, sendo parte intrínseca da existência humana. Contudo, se a pessoa não se intimidar frente às lutas do destino, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim desta batalha existencial, sagrar-se-á vitoriosa, descobrindo sua verdadeira identidade existencial.34 Assim, subtrai-se que os contos de fadas procuram transmitir mensagens positivas e encorajadoras, no sentido de que, ainda que a vida seja cheia de dificuldades e obstáculos, ela é boa e compensadora. 4 EDUCAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E CONTOS DE FADAS A leitura dos contos de fadas em qualquer fase da vida humana, mas, especialmente durante a infância, além de ajudar na formação e no desenvolvimento da personalidade da pessoa, é um importante instrumento metodológico-educacional, tanto em nível de educação infantil quanto em nível de ensino fundamental, médio e, porque não dizer, para o ensino superior também. O direito à educação, segundo o legislador constituinte de 1988, é direito fundamental da pessoa humana e encontra regramento no art. 20535, de onde se subtraem os elementos fundamentais, a partir de uma visão ampla, a saber: é dever do Estado e da
família, com a colaboração de toda a sociedade, visando ao desenvolvimento da pessoa humana, à qualificação para o trabalho e ao exercício da cidadania. Quando os dispositivos constitucionais usam o termo “educação” estão se referindo a ela em sentido lato, ou seja, alberga não somente aquela que irá fornecer à pessoa humana habilidades para o trabalho e o desenvolvimento intelectivo, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que ela, no futuro tenha uma vida digna. Atinge também aquela que forma a consciência e o caráter do indivíduo, que transmite valores éticos e orienta a um comportamento moral, ampliando sua visão de mundo para além dos horizontes de sua vivência privada para alcançar a vida do outro na convivência social, no âmbito do exercício da cidadania. Para Márcia Cristina de Souza Alvim36, A educação, na visão constitucional, deve ser entendida dentro de uma visão ampliada. Por isso vai além da proteção a seus aspectos mais formais, quais sejam, a aquisição das ferramentas mínimas do desenvolvimento intelectual e da qualificação para o trabalho. Seu objetivo maior, que acaba contemplando todos os outros, é aquele que atende ao pleno desenvolvimento da pessoa, concretizando assim aquilo que é invocado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o nosso chamado supra princípio — que está no artigo 1º., inciso III, da Constituição Federal, e constitui a base do preparo para o exercício da cidadania. Os estudos de Emir Sader37 o levaram a concluir que Educar é um ato de formação da consciência – com conhecimentos, com valores, com capacidade de compreensão. Nesse sentido, o processo educacional é muito mais amplo do que a chamada educação formal, que se dá no âmbito dos espaços escolares. Educar é assumir a compreensão do mundo, de si mesmo, da inter-relação entre os dois. Pode ser uma compreensão real, que capte os mecanismos que, efetivamente, são produzidos e reproduzidos pelos homens no seu processo concreto de vida, ou, ao con-
PREGNOLATO, Mariuza. A importância dos contos de fadas na formação da personalidade. Disponível em: <http://www.mariuzapregnolato.com.br/pdf/artigos/ a_importancia_dos_contos_de_fadas_na_formacao_ da_personalidade.pdf>. Acesso em: 06.11.2010. 31 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 14-15. 32 ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione. 1989, p.16. 33 RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.25. 34 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 14. 35 Texto original: “Art. 205 A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” 36 ALVIM, Márcia Cristina de Souza. “Ensino do direito: o conceito de educação com fundamento no artigo 205 da Constituição Federal”. In Revista Mestrado em Direito. 37 SADER, Emir. Contexto histórico e educação em direitos humanos no Brasil: da ditadura à atualidade. In: Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/ dados/livros/edh/br/fundamentos/06_cap_1_artigo_03.pdf>. Acesso em: 11.12.2010. 30
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trário, pode ser uma visão alienada que, ao invés de permitir essa compreensão, ocupa esse lugar na consciência das pessoas com mitos, com ilusões, com concepções que consolidem a incapacidade das pessoas de se compreenderem no mundo e compreenderem o mundo que, mesmo sem consciência, estão produzindo e reproduzindo, cotidianamente, nas suas vidas. Diante disso, parece que é, primordialmente, a partir da educação que despertará a consciência das pessoas para os direitos humanos. Neste sentido, a educação deve necessariamente levar as pessoas a uma ação que vise a transformar a realidade, despertando-as para os direitos que possuem e que na medida em que estes lhes forem negados, saberem que podem utilizar-se de mecanismos judiciais e extrajudiciais para garantir e fazer valer estes direitos. Na verdade, isto nada mais é que educação para os direitos humanos. Segundo Ana Maria Freire38, “a educação para os Direitos Humanos, na perspectiva da justiça, é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da ‘briga’, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder” Certamente que a educação não é o remédio para a cura de todos os males da humanidade; seu papel nada mais é do que contribuir para a formação humana. Destarte, a educação em DH, que defendemos, é esta, de uma sociedade menos injusta para, aos poucos, ficar mais justa. Uma sociedade reinventando-se sempre com uma nova compreensão do poder, passando por uma nova compreensão da produção. Uma sociedade em que a gente tenha gosto de viver, de sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Esta tem que ser uma educação corajosa, curiosa, despertadora de curiosidade.39 Os princípios primordiais que regem, de modo geral, a educação em direitos humanos podem ser assim elencados, sem desprezar outros, não menos importantes: construir a cidadania, a paz e a justiça; instrumento para a transformação social e a realização integral das pessoas e dos povos; meio de
afirmar a dignidade de toda pessoa humana, grupo social e cultural e respeito à pluralidade e à diversidade.40 Assim, a educação para os direitos humanos deve compreender a educação para a liberdade, a igualdade, a solidariedade e “o direito de ter direito”, de modo a suscitar nas pessoas uma reflexão crítica acerca das políticas sociais, a aquisição do saber, o acolhimento do próximo, a capacidade de encarar os problemas da vida com altivez e dignidade. Como recomenda Ana Maria Freire41, a educação em direitos humanos deve ser dialógica, adotando o educador posturas que levem à colaboração, união, organização, síntese cultural e reconstrução do conhecimento. Devem-se superar os comportamentos comuns na educação tradicional, tais como: a manipulação, a concorrência, a invasão cultural e a imposição de valores e de conhecimentos, de forma a estimular e fortalecer os vínculos com a comunidade, tendo como referência a realidade na qual se vive hoje, resgatando, ao mesmo tempo a história recente do respeito e do desrespeito aos direitos humanos no mundo. Frei Betto42 assevera que, A educação em direitos humanos é uma educação para a justiça e a paz. Uma pessoa só pode dimensionar bem seus próprios direitos na medida em que reconhecer os direitos alheios, sobretudo aqueles que são fundamentais à sobrevivência. Assim, no centro do processo pedagógico devem estar, como eixo, aqueles que mais têm os direitos essenciais negados: os pobres e as vítimas da injustiça estrutural. Nessa linha, assumir os direitos dos pobres é, com frequência, estar em cheque com os interesses daqueles que consideram os lucros do capital privado acima dos direitos coletivos ou as razões de Estado acima do direito individual. Essa dimensão conflitiva do processo educativo deve ser encarada como parte mesma de uma pedagogia que não quer apenas conscientizar, mas formar agentes transformadores, cidadãos empenhados na erradicação das injustiças e na construção de um mundo verdadeiramente humano. Diante disso, parece que os contos de fadas são importantes instrumentos para a concretização e efetivação da educação em
direitos humanos à medida que por meio dos exemplos contidos nas histórias, as crianças adquirem maior vivência e contato com impulsos emocionais, com as reações e os instintos comuns aos seres humanos, e o reconhecimento dos fatos e efeitos causados por estes impulsos são exemplos de vida43, de conduta moral e ética, fazendo-nos despertar para a solidariedade e o amor ao próximo, sem qualquer distinção por conta de etnia, sexo ou condição sócio-financeira, mostrando-lhes que o respeito a si próprio e ao autor é o que torna significativa a existência humana. Consoante ensinamentos de Bruno Bettelheim,44 [...] se as crianças fossem criadas de um modo que a vida fosse significativa para elas, não necessitariam ajuda especial. Fui confrontado com o problema de deduzir quais as experiências na vida infantil mais adequadas para promover sua capacidade de encontrar sentido na vida; dotar a vida, em geral, de mais significados. Com respeito a esta tarefa, nada é mais importante que o impacto dos pais e outros que cuidam da criança; em segundo lugar vem nossa herança cultural, quando transmitida à criança da maneira correta. Quando as crianças são novas é a literatura que canaliza melhor este tipo de informação. Os contos de fadas, por sua vez, têm tanta influência para a formação da personalidade da pessoa humana, conforme já comentado alhures, que contribuem para uma educação moral e ética de modo sutil e implícito, demonstrando as vantagens de se conduzir de tal forma. O poeta alemão Schiller, certa feita, afirmou: “há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.”45 E o romancista inglês Charles Dickens, no mesmo sentido, disse: “Chapeuzinho Vermelho foi meu primeiro amor. Senti que se eu pudesse ter casado com Chapeuzinho Vermelho teria conhecido a perfeita bem-aventurança”.46 Tudo isso para ilustrar o importante papel que os contos de fadas exercem para uma educação em direitos humanos. Na verdade, por meio dos contos de fadas, aprende-se mais sobre a essência do ser
BETTO, Frei. CIDADANIA: Educação em Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/betto.htm>. Acesso em: 10.12.2010. BETTO, Frei. CIDADANIA: Educação em Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/betto.htm>. Acesso em: 10.12.2010. CANDAU, Vera Maria (org.). Educar em DH: construir democracia. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p.77. 41 Betto, Frei. CIDADANIA: Educação em Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/betto.htm>. Acesso em: 10.12.2010. 42 BETTO, Frei. CIDADANIA: Educação em Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/betto.htm>. Acesso em: 10.12.2010. 43 DOHME, Vânia D’Angelo. Técnicas de contar histórias. São Paulo: Informal Editora, 2000, p.19. 44 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 12. 45 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 14. 46 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 31. 38 39 40
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humano, seus predicativos intrínsecos e a forma como cada qual se relaciona na sociedade. A partir daí, este aprendizado será exteriorizado na conduta e no tratamento com o outro. Assim, se os contos de fadas são histórias moralizantes, com certeza esta moral se refletirá na conduta da pessoa humana, favorecendo a igualdade, a solidariedade e o respeito às diversidades e o amor ao próximo. Contudo, nem todos os contos de fadas trazem em seu bojo uma narrativa moralizante. Os contos de fadas amorais não mostram polarização ou justaposição de pessoas boas e más; por isto estas estórias amorais servem a um propósito inteiramente outro. Constroem o personagem não pela promoção de escolhas entre bem e o mal, mas dando a criança a esperança de que mesmo o mais medíocre pode ter sucesso na vida. A moralidade não é a saída para estes contos, mas a certeza de que uma pessoa pode ter sucesso. Enfrentar a vida com a crença na possibilidade de dominar as dificuldades ou com a expectativa de derrota constitui também um problema existencial muito importante.47 Portanto, diante de todo o exposto, percebe-se a interrelação existente entre educação, direitos humanos e os contos de fadas, à medida que, conjuntamente, contribuam para a formação da pessoa humana como sujeito de direito, que articulem as questões éticas, morais, sociais às práticas cotidianas, favoreçam a liberação das categorias que, historicamente, foram consideradas inferiores e tenham menos poder perante a sociedade, é uma poderosa arma a favor do resgate históricocultural para a construção de uma sociedade mais humana. 5 A CONTRIBUIÇÃO DE OSCAR WILDE PARA UMA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS 5.1 BREVES BIOGRÁFICAS48
CONSIDERAÇÕES
Oscar Wilde é uma das figuras mais emblemáticas da sociedade inglesa do século XIX. Devido à sua ironia, humor e inteligência, traços característicos de seus escritos, por muito tempo teve seu nome associado a escândalos e intrigas. Oscar Wilde nasceu em 16 de outubro
de 1854, em Dublin, Irlanda. Herdou de sua mãe, Jane Speranza Francesca Wilde, o gosto pela escrita, já que ela escrevia versos irlandeses patrióticos sob o pseudônimo de Speranza. Em 1879, parte para Londres em busca de melhores condições de vida. Em 1881 é publicada, pela primeira vez, uma coletânea de seus poemas. Em 1882, desprovido de condições financeiras, aceita participar de um ano de viagens entre Estados Unidos e Canadá, viagem essa que lhe rendeu fama e fortuna. Com a publicação de “Retrato de Dorian Gray” sua carreira literária deslancha e Oscar Wilde passa a ser conhecido como escritor. Em 1884 casa-se com Constance Lloyd com quem teve dois filhos: Cyril e Vyvyan, que se tornaram fonte de inspiração para o autor escrever seus mais famosos contos de fadas. Ocorre que um escândalo marcaria sua vida pessoal e profissional. Com Robert Ross, um jovem canadense que conhecera em sua viagem, Oscar Wilde desperta seus sentimentos homossexuais, os quais, segundo relatam seus biógrafos, perseguiam-no desde a mais tenra idade. Anos depois foi preso sob acusação de conduta homossexual e sentenciado a dois anos de prisão com trabalhos forçados. As condições calamitosas da prisão causaram-lhe uma série de doenças. Morreu como um homem arruinado em 30 de novembro de 1900. Oscar Wilde escreveu várias obras ao longo de sua vida. Contudo, para fins de desenvolvimento da temática discutida no presente trabalho, ater-se-á a uma delas em específico: História de Fadas, escrita pelo autor em meados de 1888.49 5.2 “História de Fadas”: principais características As personagens que povoam o universo dos contos de fadas de Oscar Wilde têm uma grande interação entre si, ainda que pertençam a mundos diferentes: os humanos e os animais irracionais. Assim, sejam humanos, inanimados ou animais irracionais, em todos os contos, apresentam um algoz e sua vítima, não identificados por substantivos próprios, ou
seja, não possuem nome, atributo inerente à personalidade humana. Ao contrário, a identificação se dá pelos atributos ou características de cada qual grafados com letras maiúsculas: Príncipe, Gigante, Ogro, Foguete, Rouxinol, Rosa, Jovem Rei, Bispo, Infanta, Anão, Filho-da-estrela, Pescador, Padre, Moleiro, Anão, Alma, entre outros. Ao utilizar tal técnica, Oscar Wilde reafirma a humanidade dos seres humanos e humaniza os seres inanimados e os animais irracionais, de tal sorte que ganham pensamentos e sentimentos, tais como: egoísmo, amor, generosidade, traições, inveja, soberba, hipocrisia, raiva e avareza. Vivenciam as pequenas e as grandes misérias inerentes aos humanos, permitindo que o ouvinte entre em contato com a sua própria humanidade.50 Nos diálogos entre as personagens, narrados na terceira pessoa do singular e carregados de emotividade e intensa tristeza, nota-se claramente a reflexão crítica e irônica acerca do comportamento e dos valores éticos da sociedade de sua época. A ambientação das personagens e o desenrolar da trama principal acontecem em pequenos reinos longínquos, imaginários e encantados, cercados pela natureza; casebres pobres, onde vivem pessoas miseráveis financeiramente e ricas nos aspectos morais e éticos, assim como em castelos luxuosos, cercados de nobres e criados, protegidos do mundo exterior por muros altos, impedindo-os de ver a realidade. Os contos de fadas de Oscar Wilde são carregados de elementos da tradição católica cristã ao falar da morte, Deus, padres, alma, ou seja, prepondera o divino, o sobrenatural ou transcendental, que faz com que a história de cada uma das personagens tenha um determinado destino. Ao longo de todas as narrativas, percebe-se nitidamente a contraposição entre belo e o feio, o rico e o pobre, a inocência e a perversidade, o egoísmo, a vaidade, a avareza, a soberba, o desprezo pelo próximo, o interesse e a ganância, a inveja, a raiva, a angústia, isto é, os sentimentos que constituem a essência do ser humano, sempre com um toque de espiritualidade. Na verdade, Oscar Wilde procura refletir acerca dos valores primordiais à humanidade, que, em linhas gerais, se consubstanciam em uma postura moral e ética, apesar das mazelas econômicas e sociais e da miserabilidade da vida. As personagens centrais, independente-
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 18. Disponível em: <http://www.pensador.info/autor/Oscar_Wilde/biografia/>. Acesso em: 05.11.2010; Disponível em: <http://www.cmgww.com/historic/wilde/bio1.htm>. Acesso em: 05.11.2010. 49 WILDE, Oscar. Histórias de Fadas. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 50 A narrativa utilizada pelo autor é, modernamente, denominada de narrativa fantástica: usando elementos da natureza misturados com mitologia (ogros, estrelas cadentes, príncipes e princesas, sereias, castelos encantados, bruxas, encantamentos), interagindo com os seres humanos. 47 48
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mente de sua origem (nobre ou humilde), são apresentadas, no início de cada conto, como pessoas ou seres inanimados humanizados, movidas pelo egoísmo, pela soberba, que os leva a condutas antiéticas. Mas, no desenrolar da trama acabam por encontrar um justo motivo para a remissão, seja pela dor, seja pelo amor, pelo bem ao próximo, pelo desapego aos bens materiais, pela realização pessoal através da abnegação, da caridade, pela tentativa de vencer a indiferença de uma sociedade individualista; mostra que sempre é tempo para a conversão, para a reparação dos males causados. Assim, os fatos e personagens dos contos são os símbolos de uma fé que tem por base o amor a Deus, meio para se chegar à plenitude existencial, nesta dimensão e na dimensão espiritual. 5.3 “HISTÓRIAS DE FADAS”: a contribuição de Oscar Wilde para uma educação em direitos humanos. Segundo os estudiosos da vida e da obra de Oscar Wilde, em um primeiro momento, o autor cria seus contos de fadas para seus filhos, para lhes mostrar, de forma crítica, a conduta política, moral e ética da sociedade de sua época e, ao mesmo tempo, ensinando-lhes valores fundamentais à vida humana, sempre com alicerce na doutrina católica cristã. Assim, Oscar Wilde faz de seus contos de fadas um importante instrumento metodológico para educar sobre os sentimentos humanos, a essência da vida, valores morais e éticos, assim como para criticar, reflexivamente, os costumes e o “modus operandi” da sociedade da época. Em última análise, educando para os direitos humanos. As personagens dos contos de fadas de Oscar Wilde pertencem a mundos distintos e, ao interagirem entre si, exteriorizam os mais diversos sentimentos, de acordo com a situação em que se encontram.
Desta forma, a preocupação com as aparências e a falsa nobreza, injusta e cruel, com as criaturas boas e sensíveis, banaliza o amor ao próximo, cultua o que é supérfluo e se esquece da essência dos seres humanos; uma sociedade marcada por grandes desigualdades sociais, onde os pobres são miseráveis e os ricos, geralmente portando títulos de nobreza, vivem fechados em seus castelos luxuosos e ignoram a existência desta grande população, fruto da Revolução Industrial, que passa fome e é marginalizada; pretende mostrar que os valores morais independem de classe ou condição sócio-financeira e que a perda da condição econômica faz com que os membros da classe abastada não percam a empáfia, a altivez; uma sociedade que não tolera a diversidade, onde pessoas puras de coração são exploradas pelas inescrupulosas. A partir desta triste realidade, na visão de Oscar Wilde, ele finaliza seus contos de fadas sempre com uma lição moralizante, em perfeita consonância com a educação em direitos humanos, querendo significar que isto não pode mais acontecer, esta conduta não é ética, afronta aos mais elementares valores humanos, como a dignidade humana, a igualdade, a solidariedade, o amor ao próximo e a fidelidade à verdade. Demonstra que tais valores são universais e edificantes e que devem regular a conduta humana, em razão de sua essencialidade, para que o ser humano viva em constante evolução, alicerçado na cooperação mútua entre as pessoas, no desejo do bem para si e para as outras pessoas, no compartilhar das ideias, das emoções, no reconhecer o direito das pessoas de usufruir igualmente seus pertences e oportunidades, na capacidade de atuar com outras pessoas de forma consistente e produtiva; na perseverança, constância e firmeza pe-
rante situações novas ou desafiantes; no apropriar-se exclusivamente do que lhe pertence; no conhecer os limites em relação a outras pessoas, no ter atitudes coerentes com seu pensamento e suas convicções; na capacidade de fazer julgamentos desassociados de seus próprios interesses; no reconhecimento e compaixão pelas necessidades alheias; na tolerância para suportar os reveses da vida; na tranquilidade para esperar; no aceitar as características e limitações dos demais; no compreender que todos são diferentes e saber conviver com as diferenças; no respeito e na atenção às outras pessoas; no estar consciente de suas obrigações; no comprometimento com suas crenças e convicções e no respeito e consideração pelas atitudes e opiniões das pessoas. Tudo isso perfaz a educação em direitos humanos e podem ser extraídos dos contos de Oscar Wilde, sendo este o seu maior legado para as futuras gerações. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de todo o artigo demonstrou-se o quanto os contos de fadas, histórias simples e lúcidas que pertencem ao ideário infantil, podem contribuir para a formação da personalidade do ser humana, com reflexos positivos na vida adulta, educando-a para os direitos humanos. Assim, os contos de fadas, com suas narrativas fantásticas, repletas de seres inanimados e fictícios, com sentimentos e comportamentos humanos, interagindo com os seres humanos, todos convivendo no mesmo espaço geográfico, trazem sempre uma lição moralizante e ética, lição esta que pode se modificar de pessoa a pessoa, considerando o tempo histórico e a experiência de vida de cada um, sempre com o intuito maior de valorizar o ser humano, em sua dignidade, de modo que leve vida digna. g
FONTES DIGITAIS Disponível em: <http://www.cmgww.com/historic/wilde/bio1.htm>. Acesso em: 05.11.2010. Disponível em: <http://www.mariuzapregnolato.com.br/pdf/artigos/a_importancia_dos_ contos_de_fadas_na_formacao_da_personalidade.pdf>. Acesso em: 06.11.2010. Disponível em: <http://www.pensador.info/autor/Oscar_Wilde/biografia/>. Acesso em: 05.11.2010. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/convivencia/oficina/livrovivo/filologia.htm/>.Acesso em: 11.12.2010. Disponível em: <http://tapetedesonhos.wordpress.com/2007/08/page/5/, http://www.scribd.com/doc/39141994/A-Import-an-CIA-Do-Contode-Fadas/>. Acesso em: 11.12.2010. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/teses.html>. Acesso em: 6.11.2010. Disponível em: <http://vandafurtadomarques.blogspot.com/2008/10/origem-dos-contos-defadas.html/>. Acesso em: 11.12.2010.
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REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1995. ALVIM, Márcia Cristina de Souza. Ensino do Direito: o conceito de educção com fundamento no artigo 205 da Constituição Federal. In Revista Mestrado em Direito. Osasco: EDIFIEO, Ano 5, n.5, 2005, p. 61-69. ARAPIRACA, Mary de A. Prólogo de uma paidéia lobatiana fundada no fazer lúdico e especulativo: a chave do tamanho. Tese de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ teses.html>. Acesso em: 6.11.2010. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BETTO, Frei. CIDADANIA: Educação em Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/betto.htm>. Acesso em: 10.12.2010. CANDAU, Vera Maria (org.). Educar em DH: construir democracia. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p.77. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL, 2003. CORSO, Diana Liechtenstein; CORSO, Mário. Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006. DOHME, Vânia D’Angelo. Técnicas de contar histórias. São Paulo: Informal Editora, 2000. MASSA, Andreia. Os contos de fadas na sala de aula: contribuições para o letramento. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade São Marcos. Orientadora Prof.ª Liana Maria Sálvia Trindade. São Paulo, 2008. PREGNOLATO, Mariuza. A importância dos contos de fadas na formação da personalidade. Disponível em: <http://www.mariuzapregnolato.com.br/pdf/ artigos/ a_importancia_dos_contos_de_fadas_na_formacao_da_personalidade.pdf>. Acesso em: 06.11.2010. RADINO, Glória. Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. SADER, Emir. Contexto histórico e educação em direitos humanos no Brasil: da ditadura à atualidade. In: Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/ fundamentos/06_cap_1_artigo_03.pdf>. Acesso em: 11.12.2010. WILDE, Oscar. Histórias de Fadas. Trad. Bárbara Heliodora.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
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POESIA CINCO POEMAS DE ERNANI SÁTYRO(*)
Insônia Ao esperar o sono eu aceito a morte. Mais do que isso, eu me entrego à morte. O sono tarda, eu convoco a morte. Mas a morte pensa que apenas me empresto E não que me dou. Pois eu meu dou à mote sem reservas, Contanto que possa dormir.
Louvação de Maria Maria, simplesmente Maria. Nem do Carmo, nem das Dores, Nem da Luz e nem da Guia. Só Maria! Nem do Céu e nem de Lourdes, Nem sequer da Conceição Simplesmente só Maria: - O resto é no coração. Simplesmente Maria! Nem Maria Anunciada Nem Maria Aparecida. Só Maria, sem mais nada, Só Maria, toda a vida. Só Maria, Mas Maria, noite e dia.
O canto do retardatário Pouco importa que o canto seja tardio. Se não tinha amadurecido, inda não era canto. A idade do poeta se mede pelo amadurecimento do canto. Cantar não é desejar a glória, É simplesmente cantar. A gente nasce para viver, O canto rompe para vibrar. O resto é com quem ouve. O poeta não tem nada com isso. Já ouve um santo que falou às aves, Mas eu sou ave, canto para as árvores. - Árvores, ouvi-me!
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As Dunas As dunas não são dunas. Só mesmo imaginando elas são dunas. Que são vistas do avião, ao sol, Apenas são espelhos. É preciso que à terra nós baixemos Para que sejam dunas. Baixemos pois, mas não por muito tempo. Deixemos que elas sejam o que do alto são.
Esperando Recife, poema e chaga do Brasil. O poema dos rios E a chaga dos mocambos. As praias dos coqueiros E os marginais da Rua Nova. O saber da Faculdade de Direito E a miséria dos sem lei. Recife, capital de todas as grandezas e todas as desgraças do Nordeste. Os conventos vazios e as multidões sem abrigo. Leoa triste de um leão cansado, Cidade eleita e condenada, Eu te amo na esperança da tua ressurreição, Quando novamente te ergueres sobre os Guararapes, Não para expulsar os estrangeiros da terra, Mas para distribuíres melhor as estrelas do teu céu...
(*) Os poemas aqui transcritos constam da Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, de Manuel Bandeira, editado em 1966.
LANÇAMENTO
HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DOS ESTADOS BRASILEIROS Equipe GENIUS
A Editora MALHEIROS acaba de editar o livro História Constituional dos Estados Brasileiros, trabalho de autoria dos constitucionalistas paraibanos Flávio Sátiro Fernandes e Paulo Bonavides, este último considerado, atualmente, o maior constitucionalista brasileiro vivo, com destacadas homenagens em universidades nacionais e estrangeiras. Segundo a Malheiros, a obra “apresenta a evolução pormenorizada dos estatutos constitucionais de cada Estado brasileiro, desde o alvorecer da República até hoje, em um trabalho exaustivo, que os Autores, constitucionalistas de escol, elaboraram e organizaram. Proporcionam, assim, - acrescenta Editora - a pesquisa da matéria para todos aqueles que devam se aprofundar no exame dos textos e da evolução do constitucionalismo brasileiro, facilitada pela ordenação da matéria e pela sua amplitude. Obra que, certamente, - finaliza aquela casa editorial em seu release - enriquece a nossa bibliografia constitucional pela sua importância e pelo prestígio de seus Organizadores. Segundo um de seus elaboradores, o Professor Flávio Sátiro Fernandes, a obra demandou tempo e esforço, assim como muita perseverança e paciência, haja vista que foi necessário solicitar dados e informações a todas as Assembleias Legislativas, através de seus dirigentes, dos quais nem todos se mostraram receptivos aos pedidos, demorando e prestá-las ou mesmo se calando em relação às rogativas dos autores. Foi preciso, inclusive, apelar para outros órgãos ou fontes, através dos quais obteve-se suprir a omissão dos faltosos. Daí, uma página de agradecimentos escrita pelos autores, na qual aponta, expressamente, as autoridades legislativas que atenderam aos seus apelos, assim como membros de Tribunais de Contas, de Institutos Históricos e de Seccionais da OAB.
Valeu, sem dúvida, o esforço. Do trabalho denodado dos Professores Flávio Sátiro Fernandes e Paulo Bonavides resultou o livro ora lançado pela Editora paulista, compreendendo 552 páginas, pelas quais se distribuem os capítulos dedicados a todos os vinte e seis estados federados, com a descrição dos procedimentos constituintes atinentes a cada uma de suas Cartas Políticas. É obra singular e, embora dedicada, particularmente, a cada uma das unidades federativas brasileiras, importantíssima para o conhecimento da evolução do constitucionalismo pátrio. O livro será lançado, brevemente, em João Pessoa. Os que desejarem adquirir a obra, de imediato, poderão fazê-lo junto à Editora Malheiros ou às principais livrarias do país, cujos sites já o divulgam. História Constitucional dos Estados Brasileiros, Malheiros Editores, São Paulo, 2014, 552 págs., R$125,00.
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DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA
LEGISLAÇÃO PRÉ-REVOLUCIONÁRIA Os diplomas legais abaixo reproduzidos tiveram ampla aprovação da sociedade paraibana e refletem o estado de espírito do nosso povo, vivendo dias de comoção pelo falecimento do Presidente João Pessoa, no Recife, em 26 de julho de 1930. Determinam as Leis aqui transcritas homenagens ao Presidente morto, concessão de benefícios aos seus filhos menores, a abertura de feriado estadual, relativamente à data de seu desaparecimento, a instituição ou alteração de símbolos estaduais e, notadamente, a mudança do nome da capital para João Pessoa e a instituição de uma bandeira É a época pré-revolucionária, antecedendo de poucos dias a deflagração da derrubada dos poderes constituídos e instauração de nova ordem.
Art. 3º- Deverá o governo do Estado, para os fins dos artigos anteceentes, abir o crédito necessário, até a quantia de cem contos de réis (100:000$000), e nomear comissão idônea com poderes para contratar e fiscalizar, em nome da Paraíba, a construção do aludido monumento. Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário. Palácio do Governo do Estado da Paraíba, em 29 de agosto de 1930, 41º da Proclamação da República. Álvaro de Carvalho Adhemar Victor de Menezes Vidal Flodoardo Lima da Silveira
LEI N. 699, DE 29 DE AGOSTO DE 1930 Autoriza o governo a mandar construir no Cemitério de S. João Batista, do Rio de Janeiro, um monumento condigno da memória do presidente João Pessoa e dá outras providências. O presidente do Estado da Paraíba: A Assembleia Legislativa do Estado decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º - Ficam aprovadas todas as despesas efetuadas pelo governo do Estado, com os funerais do inolvidável presidente João Pessoa. Art. 2º - Igualmente, fica, desde já, o governo do Estado [autorizado] a mandar construir, no Cemitério de S. João Batista, do Rio de Janeiro, um monumento condigno da memória do grande paraibano, adquirindo, para isso, a título perpétuo, o necessário terreno naquela necrópole, e o mais que for preciso. § Único – No monumento a ser construído, e a que se refere este artigo, somente poderão ser sepultados além do homenageado sua mulher e filhos.
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LEI N. 700, DE 4 DE SETEMBRO DE 1930 Autoriza ao governo dar a denominação JOÃO PESSOA à Capital deste Estado.
O Presidente do Estado da Paraíba
A Assembleia do Estado da Paraíba decreta e eu sanciono a seguinte lei: Art. 1º - A Capital do Estado da Paraíba passará a denominar-se JOÃO PESSOA.
Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.
Palácio do Governo do Estado da Paraíba, 4 de setembro de 1930, 41º da Proclamação da República.
Álvaro Pereira de Carvalho Adhemar Victor de Menezes Vidal José Américo de Almeia Flodoardo Lima da Silveira
LEI N. 701, DE 9 DE SETEMBRO DE 1930
Institui uma pensão mensal a cada um dos quatro filhos menores do malogrado Presidente João Pessoa. O Presidente do Estado da Paraíba: A Assembleia Legislativa do Estado decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º - É instituída, a partir da data da promulgação desta Lei, uma pensão mensal de duzentos e cinquenta mil réis (250$000) a cada um dos quatro filhos menores do malogrado dr. João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque – o grande Presidente, o grande patriota. § 1º - A pensão cessará para os homens com a maioridade e para as mulheres com o seu casamento. § 2º - Caso os homens ao completarem a maioridade sejam incapazes, permanecerão com direito à pensão enquanto a incapacidade permanecer. Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário. Palácio do Governo do Estado da Paraíba, em João Pessoa, 9 de setembro de 1930, 41º da Proclamação da República. Álvaro de Carvalho Adhemar Victor de Menezes Vidal Flodoardo Lima da Silveira
LEI N. 702, DE 9 DE SETEMBRO DE 1930 Considera feriado o dia 26 de julho, em homenagem ao Presidente João Pessoa. O Presidente do Estado da Paraíba: A Assembleia Legislativa do Estado decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º - É considerado feriado estadual o dia 26 de julho, em homenagem ao inolvidável Presidente João Pessoa.
Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário. Palácio do Governo do Estado da Paraíba, em João Pessoa, 9 de setembro de 1930, 41º da Proclamação da República. Álvaro Pereira de Carvalho Adhemar Victor de Menezes Vidal José Américo de Almeida Flodoardo Lima da Silveira
LEI N. 704, 25 DE SETEMBRO DE 1930
Antônio Galdino Guedes, Presidente da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba – Faço saber que a mesma Assembleia decretou e eu, de acordo com o art. 22, § 3º da Constituição, promulgo a seguinte lei: Art. 1º - Terá o Estado sua bandeira própria cujo uso será regulado por decreto do Poder Legislativo. Art. 2º - A bandeira terá dois terços em cor rubra e um em cor negra, ficando esta do lado do mastro. § Único – Na parte rubra figurará a palavra “NÉGO”, inscrita em caracteres brancos, na proporção de um vigésimo para o todo.
Art. 3º - Revogam-se as disposições em contrário.
Mando, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento da presente lei pertencer que a cumpram e façam cumprir tão inteiramente como nela se contém. O 1º secretário da Assembleia a faça imprimir publicar e correr. Paço da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, em João Pessoa, 25 de setembro de 1930, 41º da Proclamação da República. (a) Antônio Galdino Guedes, presidente. Foi publicado nesta Secretaria da Assembleia, em 25 de setembro de 1930. Secretaria da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. (a) Severino de Lucena, 1º secretário julho/agosto/setembro de 2014
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LEI N. 705, DE 30 SETEMBRO DE 1930 Autoriza o Poder Executivo a despender até a quantia de vinte contos de reis (20:000$000) com a reorganização do município de Princesa. O presidente do Estado da Paraíba: A Assembleia Legislativa do Estado decreta e eu sanciono a presente lei: Art. 1º - Para o restabelecimento da normalidade funcional e administrativa, estadual e municipal, no município de Princesa, o Poder Executivo poderá despender até a importância de vinte contos de reis. (20:000$000) Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário. Palácio do Governo do Estado da Paraíba, em João Pessoa, 30 de setembro de 1930, 41º da Proclamação da República. Álvaro Pereira de Carvalho Adhemar Victor de Menezes Vidal Flodoardo Lima da Silveira
A Assembleia Legislativa do Estado decreta e eu sanciono a presente lei: Art. 1º - Erigir-se-á nesta capital, em ponto que a Prefeitura designar, uma estátua de tamanho natural, ao extinto presidente João Pessoa. Art. 2º - Para a realização do aludido monumento, decretará o governo o necessário concurso, na conformidade legal, na conformidade legal, e designará uma comissão de quatro (4) técnicos para dizer sobre as propostas dos concorrente e fiscalizar os serviços de construção. § único – Dessa comissão será membro nato, extranumerário e presidente, com voto de qualidade, o diretor das Obras Públicas. Art. 3º - Para a ereção da estátua, cuja inauguração o governo procurará levar a efeito dentro de doze (12) meses, e se for possível no primeiro aniversário da morte do homenageado, abrir-se-á o crédito indispensável, até a quantia de quinhentos contos de reis (500:000$000). Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário. Palácio do Governo do Estado da Paraíba, em João Pessoa, 1º de outubro de 1930, 41º da Proclamação da República.
LEI N. 708, DE 30 DE SETEMBRO DE 1930 Manda erigir nesta capital uma estátua do malogrado presidente João Pessoa. O presidente do Estado da Paraíba:
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FILOSOFIA
O DIREITO NATURAL DE TOMÁS DE AQUINO COMO CATEGORIA JURÍDICO-METODOLÓGICA CONTEMPORÂNEA1 Cláudio Pedrosa Nunes
RESUMO. O presente estudo aborda a teoria do Direito Natural como categoria jusfilosófica de significativa autoridade e utilidade para a ciência jurídica do nosso tempo, especialmente sob os auspícios da doutrina de Tomás de Aquino. O Direito Natural é fundamental para concepção do Direito-justo, no que concentra especial eficácia ético-normativa mormente quando considerado sob a forma de princípios jurídicos. De consequência, o Direito Natural tomista constitui-se em fonte jurídico-metodológica para adequada interpretação e integração do Direito, com reflexos proveitosos na solução de contendas judiciárias. PALAVRAS-CHAVE: Direito Natural. Categoria jurídico-metodológica. Interpretação. Contendas judiciárias. ABSTRACT. This study covers the theory of natural law as a philosophical category of significant authority and usefulness to the legal science of our time, especially under the auspices of the doctrine of Thomas Aquinas. The natural law is fundamental to the design of law-fair, which focuses on ethical and regulatory system more effective especially when considered in the form of legal principles. In consequence, the Thomistic natural law is itself a source legal and appropriate methodology for interpretation and integration of the law, reflecting helpful in solving disputes judiciary. KEYWORDS: Natural law. Category legal and methodological. Interpretation. Judicial contention. SUMÁRIO. Intróito. 1. Direito Natural e seus contornos intrajurídicos. 2. Autoridade ético-jurídica do Direito Natural. 3. A
contribuição da filosofia medieval-tomista. 4. Por uma metodologia originária do Direito Natural tomista. 5. O Direito Natural de Santo Tomás e sua utilidade jurídico-metodológica na contemporaneidade. Referências bibliográficas. INTRÓITO - Tema dos mais instigantes é o que respeita à possível eficácia jurídico-normativa do Direito Natural, com admissão de sua supremacia sobre os corpos normativos positivados. Com efeito, não são recentes os confrontos que se renovam nos bancos das faculdades de direito e mesmo no âmbito dos julgamentos judiciais no tocante à autoridade dos princípios jurídicos como desdobramento do Direito Natural em face dos textos legais. Nesse panorama, entendemos conveniente abordar de novo o assunto, agora neste breve estudo, de modo a fomentar o debate e sugerir um novo olhar sobre o Direito enquanto objeto da Justiça, especialmente por conduto da jusfilosofia de Tomás de Aquino, a quem devotamos a melhor expressão dogmática e axiológica do Direito Natural para fins de auxiliar na solução de múltiplas questões judiciais recorrentes na contemporaneidade. A ideia central é conceber o Direito Natural de Santo Tomás não só como uma fonte principiológica de autoridade para o Direito do nosso tempo, mas também entendê-lo como um método jurídico contemporâneo assaz proveitoso, resultando na concepção da melhor e mais adequada interpretação e integração do Direito. Assim é que lançaremos nossas considerações a respeito não só da existência e vigência do Direito Natural como categoria jurídico-normativa, mas também pretendemos demonstrar que o Direito Natural to-
mista é excelente fonte e método de auxílio ao trabalho de juízes e autoridades públicas em geral. 1. DIREITO NATURAL E SEUS CONTORNOS INTRAJURÍDICOS - Os juristas romanos elaboraram importantes teorias a respeito da inserção do Direito Natural nos debates e construções jurídicos, especialmente em meio à edição de leis. O Corpus Iuris Civilis talvez se tenha constituído na mais expressiva “codificação” do Direito Natural, alçando-o a categoria jurídico-filosófica de excelência2. A partir dos juristas romanos, o Direito Natural ostentou a classificação de um Direito baseado na natureza própria das coisas, isto é, na natureza das coisas segundo uma disposição ordenada e organizada por elementos naturais, a exemplo da terra, água, fogo e ar. A natureza era, pois, para os romanos, a primeira ordem de estabelecimento de direitos e deveres entre os que habitam a terra. O racionalismo da onipotência da natureza é, para os estudiosos romanos, uma fonte de conceituação do Direito Natural, pois ela é fundada num conjunto organizado e racional. A natureza é, assim, identificada com um sistema de leis cuja existência e atuação torna possível e necessária uma ciência racional reinante no universo dos homens. A crença dos romanos pré-medievais é de que o universo e sua natureza formam uma ordem natural que gravita em toda a essência dos seres que a integram, designadamente os homens3. A concepção do Direito Natural como ordem e ordenação reflete a ideia de que o próprio Deus Criador estabeleceu um sentido aos homens de respeito à ordem natural das coisas do mundo e que essa ordem é o
Texto de comunicação apresentado ao XIII Congresso Internacional de Filosofia Medieval. Mário Reis Marques leciona que o Corpus Iuris Civilis possibilitou para os juristas medievais uma leitura normativa de conceitos, princípios e valores, pois “o direito romano afirma-se como direito natural sistematizado, como um sistema de significações cristalizado, um vocabulário prestigiante” (Cf. Codificação e paradigmas da modernidade, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 50). 3 Jacques Le Goff, citado por BERNARDO DE CHARTRES, sugere que o espírito de ordenação das coisas por meio das leis naturais é extraído do próprio livro do Gênesis (Cf. Os intelectuais na idade média, 2ª ed., tradução de Margarida Sérvulo Correia, Lisboa: GRADIVA, 1984, pp. 54-55). 1 2
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princípio de realização dos homens em si e em sociedade. Nessa configuração, já é possível aproximar o Direito Natural do mundo jurídico, ou seja, da edição de normas de regulação da convivência social. A doutrina romana do Direito Natural não se diluiu de todo no Medievo, tendo alcançado tanto em Santo Agostinho como em Tomás de Aquino contornos jusfilosóficos próprios não necessariamente colidentes com a natureza em geral das coisas. Exemplos como a conceituação de lex naturalis em Agostinho e de lex humana em Aquino bem revelam a autoridade das teorias dos estudiosos romanos nesse contexto. A conjugação das teorias dos juristas romanos com a filosofia dos preclaros medievais certamente é indicativo dos notáveis contornos jurídicos da doutrina do Direito Natural. Não se trata de um Direito fundado apenas na ordem natural das coisas subjacente à natureza criada, mas de uma categoria voltada também à elaboração de normas de ordenação, orientação e conduta sob o ponto de vista normativo propriamente dito. É dizer que o Direito Natural, tanto entre os juristas romanos quanto entre os jusfilósofos medievais, tem nascedouro sim na natureza criada, na ordem natural das coisas, mas também está relacionado com a utilidade do dia-a-dia dos homens num contexto de ordem jurídico-normativa. O Direito Natural é, assim, uma categoria qualificada por extrair da ordem natural das coisas encontráveis na natureza o correto ordenamento jurídico das comunidades humanas. No alvorecer do Século XIII, a afirmação normativa do Direito Natural eleva-se com a eclosão das universidades e corporações. O ensino e a organização de ofícios baseiam-se em hierarquias e estruturas estanques segundo o que os intelectuais medievais entendem como ordem natural4. A formalização dos estatutos das universidades e das corporações de ofício registra, no Medievo tomista, um contato entre essa ordem natural e a ordem positiva.
Tomás de Aquino destacou-se na confirmação dessa verdade jusfilosófica a partir da conceituação do Direito como objeto da Justiça, isto é, o Direito-lei voltado à consecução do justo racional, de que são exemplos medulares a Justiça geral, a Justiça distributiva e a Justiça comutativa5. Com isso, Tomás conferiu excelente perfil jurídico ao Direito Natural, inserindo-o formalmente nas discussões jurídicas e tribunalícias. Certo que o Corpus Iuris Civilis do Direito Romano já sugeria, como dito, uma “codificação” do Direito Natural, munindo-o de certa fisionomia jurídica. Porém, coube a Aquino aprofundar a qualificação jurídica do Direito Natural, dando-lhe uma sistematicidade capaz de, para além da codificação, ombrear-lhe ao justo racional conducente a uma ordem jurídico-social de sensível apelo ético-moral. Noutras palavras, o Direito Natural é Direito não só porque está envolto numa adequada codificação (que é importante), mas sobretudo porque cabe a ele a persecução do correto, do ordeiro e do bem comum próprios da concepção de Justiça. Dai porque o Direito Natural é, mais que a lei natural das coisas, o próprio objeto da Justiça. 2. EXISTÊNCIA E AUTORIDADE ÉTICO-JURÍDICA DO DIREITO NATURAL - O Direito Natural é concomitante à natureza racional do homem6. Seu conteúdo independe, em princípio, da só vontade humana. Isto porque a vontade e o agir humanos, isoladamente, não estão incorporados à ordem natural das coisas por concepção divina. Vontade e ação humanas são legítimas na medida em que, naturalmente, inclinam-se pela ordem justa. Nas palavras de Dom Odilão Moura, o Direito Natural não se confunde com as normas de uma justiça afirmada deliberadamente por duas ou mais pessoas, ou estabelecidas definidamente pela autoridade pública7. A nota de racional que informa o Direito Natural está em que o homem é naturalmente
capaz de conhecer determinada coisa como verdade, isto é, aquilo que o homem conhece e assimila como correto independentemente de qualquer esforço de aprendizado formal. Disso deflui que o justo também é consequência dessa ilação, porque a noção do reto e do justo é aptidão natural do homem. Assim, é sensível que toda construção cultural do homem deve encerrar valores e virtudes do justo, designadamente a lei. Sem isso, ter-se-á mero corpo sem alma, mero objeto sem potência8. Em consequência, o Direito encerrado na lei e a virtude da Justiça não são categorias isoladas, isto é, dotadas de uma estrutura científica específica e incomunicável. Ambos são indissociáveis para que se alcance ordem e pacificação social. Tais premissas são a base da teoria ético-jurídica de Santo Tomás de Aquino. Deve-se pugnar pela pronta obediência da lei, eis que é ela consequência do justo natural-racional. O contrário, ou seja, a lei sem o sentido do justo, não é lei propriamente dita, mas corrupção da lei9. Disso deflui que não se cogita de lei (ou de sua interpretação) que não atenda às exigências do justo racional. Está, então, sepultada a pretensa “verdade científica” da teoria pura do direito de Kelsen?10 Evidente que sim. Quando Santo Tomás proclama a obediência às leis escritas (que ele próprio chama direito positivo), já concebe a existência de leis justas, isto é, as leis consonantes com o Direito Natural. Assim, na doutrina tomista, a lei não é consequência da vontade artificial do homem, mas deve ostentar valores transcendentes. E, disso, deve-se ocupar tanto os juristas como os intérpretes. As concepções tomistas a respeito do Direito Natural e sua superioridade sobre as demais normas criadas pelo homem, designadamente a lei positiva, estão umbilicalmente relacionadas com a pregação do justo e do bem, realizando e exercitando a reta razão preconizada na filosofia medieval tomista.
Cf. LE GOFF, Os intelectuais na idade média, op. cit., p. 69. A divisão da Justiça em geral e especial é prevista nas Questões 58 e 61 da secunda secundae da Suma Teológica. A Justiça especial subdivide-se em distributiva e comutativa. Na Questão 91, Artigo 2, da secunda secundae, Tomás afirma: “E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural”. 7 Para o autor, as deliberações emergentes de ajustes e negócios entre pessoas e as determinações das autoridades públicas concentram, em geral, a idéia de direito positivo, não de Direito Natural. E acrescenta: “Haverá um direito proveniente da própria natureza da coisa, direito natural, que não se confunde com as normas da justiça firmadas entre duas pessoas (…). Enquanto o primeiro direito (direito natural) independe da vontade humana, o segundo (direito positivo) nasce dela por uma convenção estabelecida. O primeiro direito é instituído e promulgado por Deus, que possibilita ao homem, pela sua própria natureza racional, facilmente conhecê-lo, e só Deus poderá alterá-lo, mas não o faz, porque a sabedoria divina não é contraditória. O segundo direito é firmado por convenção humana, cabendo ao homem promulgá-lo, anulá-lo ou modificá-lo, se necessário for. É de sua estrutura ser mutável. O direito natural é imutável, como a própria natureza do homem, visto ser elaborado pela sabedoria divina. Evidentemente, o direito positivo deve subordinar-se ao direito natural. Toda lei que contradiga as normas do direito natural é iníqua e desumana” (Cf. A doutrina do direito natural em Tomás de Aquino. Idade média: ética e política, org. Luiz Alberto de Boni, Porto Alegre: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-EDIPUCRS, 1996, p.223). 8 Nesse sentido, escreve OTÁVIO DE BERTOLIS: “La fisica senza la metafisica è movimento senza direzione, la metafísica senza la fisica è forma senza contenuto; l’intelligenza senza ragione è vuota, la ragione senza intelligenza è muta; la giustizia non si dà senza la legge, la legge senza la giustizia è corpo senza anima: nel loro fondersi reciproco, nel loro continuo reciproco implicarse ed esaltarsi sta l’autonomia della scienza (giuridica) ed il valore imprescindibili della filosofia (giuridica)” (Cf. Il diritto in san Tommaso d’Aquino. Un’indagine filosofica, Torino: G. Giappichelli Editore, 2000 p. 35). 9 Nesse sentido é o Artigo 5 da Questão 60 da Suma de Teologia: “Por lo cual, si la ley escrita contiene algo contra el derecho natural, es injusta y no tiene fuerza para obligar, pues el derecho positivo sólo es aplicable cuando es indiferente ante el derecho natural el que una cosa sea hecha de uno u otro modo, según lo ya demostrado (q. 57, a. 2, ad. 2). De ahí que tales escrituras no se llaman leyes, sino más bien corrupción de la ley, como se ha dicho antes (1-2, q. 95, a. 2), y, por consiguiente, no debe juzgarse según ellas” (Cf. Suma de teología, tradução dos regentes de estudos das provincias dominicanas da Espanha. Colaboradores: Ángel Martínez, Donato González, Emilio G. Estébanez, Luis Lopes de las Heras, Jesús M. Rodríguez Arias, Rafael Larrañeta, Victorino Rodríguez, Antonio Sanchís, Esteban Pérez, Antonio Osuna, Niceto Blázquez, Ramón Hernández, vol. 9, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1989 e 2001, p. 489). 10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 7ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1. Acompanhem-se algumas de suas concepções: “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa rigorosamente determinar como Direito. Isto quer dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. Isto parece-nos algo de per si evidente”. 4 5
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Bobbio, nesse contexto, adverte que uma das principais reivindicações dos jusnaturalistas tomistas está em que a superioridade e prevalência do Direito Natural sobre o direito positivo decorre do fato de aquele estar informado por valores inalienáveis de Justiça, enquanto este – segundo a concepção positivista clássica e neoclássica – pode existir independentemente do concurso do justo e do bem.11 Sustenta o mesmo Bobbio que as concepções tomistas do Direito Natural destinam-se não somente aos particulares, isto é, à comunidade, mas especialmente ao legislador. É que o Direito Natural encerra princípios fundamentais de ordenação superior, cabendo ao legislador humano a edição de normas que os complementem. 12 Tais ilações nos permitem perceber e concluir não só pela existência efetiva do Direito Natural enquanto categoria jurídico-normativa, mas sua inegável relação com uma ética jurídica perfeitamente possível no mundo do Direito. Tomás de Aquino certamente operou afortunadamente nessa perspectiva ao conceber o Direito como objeto da Justiça, conforme Questão 57, secunda secundae, da Suma Teológica. 13 3. A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA MEDIEVAL-TOMISTA - Os jusfilósofos medievais foram precursores de uma concepção do Direito para além de um ordenamento consubstanciado num querer legislativo isolado. O sistema de jusfilosofia dos medievais concentra na conceituação do Direito não só temáticas de relações compreendendo direito privado e direito público (Direito e Estado) mas especialmente envolve a ética e a moral do justo, isto é, o dar a cada um o que é seu. Daí que a concepção do Direito Natural é fundamentada em premissas subjetivas que perfazem a própria condição do homem feito para realizar o bem por conduto da vontade de Deus Criador. Assim, é sensível
para os jusfilósofos medievais a existência e aplicação de uma ordem normativa que encerre o que a consciência regular do homem indica como o que é correto e adequado no tocante às suas ações. Noutras palavras, o agir correto e justo do homem perfaz a própria ordem normativa do Direito Natural. Tomás de Aquino é induvidosamente um desses precursores medievais do alcance ético-normativo do Direito Natural. Assim é que Tomás conjugou a norma jurídica propriamente dita (lex humana) com as qualidades ético-morais que necessariamente devem estar encerradas, por conduto da vontade de Deus, nas ações regulares do homem14 . E, a partir dessa conjugação, tem-se a formação do Direito Natural medieval-tomista15, com grande utilidade e proveito nos dias de hoje. A contribuição da jusfilosofia medieval tomista foi, portanto, de fundamental importância para a concepção normativa do Direito Natural, na medida em que este passara a conjugar o que é natural no homem (conduzir-se com apego à ordem natural e justa das coisas) ao racional (fazer o bem e evitar o mal como norma adequada de convivência social). Nisso se inclui tanto a inclinação que o homem tem em comum com outros seres da natureza criada como a inclinação específica do homem (a razão), isto é, conduzir-se por fazer o que é correto, justo e bom. A normatividade do Direito Natural em Tomás de Aquino também vem representada por princípios jusfilosóficos, tais como o princípio da supremacia da lei natural sobre a lei humana16, princípio da limitação do poder do Estado17, princípio do julgamento justo (extinção dos ordálios)18, princípio in dubio pro reo19, entre outros. Tomás de Aquino ofereceu, assim, uma relação entre o Direito Natural e os princípios jurídicos. Ao classificar a lei natural por seus primeiros preceitos e segundos preceitos certamente construiu as bases dessa relação. Com efeito, é sensível na doutrina
jusfilosófica de Aquino a semelhança entre os segundos preceitos da lei natural e os princípios-normas jurídicos editados pelo homem para sua economia quotidiana. Veja-se que, na Suma Teológica, o aquinatense explica o porquê desses segundos preceitos, situando-os numa espécie de “Constituição” em conexão com o processo de elaboração da lei positiva (Questão 94, Artigo 5, prima secundae, da Suma)20. Os segundos preceitos do Direito Natural constituem, pois, um alicerce normativo para nortear eficientemente e em direta conexão a consciência e a conduta do legislador. Nisso está a ideia tomista da normatividade do Direito Natural, com projeção nos dias de hoje a partir da consolidação de princípios jurídicos como axiomas que orientam e auxiliam legisladores e juristas no trabalho de elaboração e aplicação das leis positivas21. 4. POR UMA METODOLOGIA ORIGINÁRIA DO DIREITO NATURAL TOMISTA - Como visto, o Direito em geral encerra tradicionalmente tudo aquilo que é legítimo, sendo avesso ao tosco, incorreto, ilegítimo e imoral. Tal perfil do Direito é, sem dúvida, compatível com o jusnatural, seja porque a lei jurídica objetiva a regulação da conduta humana em sociedade numa perspectiva de ordem, seja porque a ciência do Direito é uma ciência de legitimação daquilo que se considera adequado. Noutras palavras, o Direito é uma categoria que persegue conformidade com algo infenso a desvios, rodeios, vacilações, como sugere Ferrater Mora22. Tal concepção do Direito em geral reflete quase sempre o que é moralmente correto, isto é, uma condição moral que sugere o natural das coisas no sentido do que é encaminhado para o bem e a felicidade. Que é isso senão unir o natural (ou a natureza) ao jurídico numa perspectiva metodológica? Assim, é sensível que qualquer que seja a metodologia que se idealize para o Direito enquanto
BOBBIO, Norberto. Locke e il diritto naturale, p. 40. BOBBIO, Norberto. Giusnaturalismo e positivismo giurídico, Milano: Edizione di Comunità, 1997, pp. 129-130. Para o conhecido jusfilósofo peninsular, há três modos de aferir-se a superioridade do Direito Natural sobre o direito positivo, um dos quais “è un insieme di primi princìpe etici, generalissimi, da cui il legislatori umano deve trarre ispirazione per la formulazione delle regole del diritti positivo...”. 13 Citando ISIDORO, afirma TOMÁS: “’O direito (jus) é assim chamado porque é justo’. Ora, o justo é o objeto da justiça. É o que afirma o Filósofo. ‘Todos concordam em dar o nome de justiça ao hábitus que nos leva a praticar as coisas justas’. Portanto, o direito é o objeto da justiça”. 14 NICOLA ABBAGNANO, a propósito do Direito Natural medieval-tomista, expõe que “Em geral pertence á lei natural tudo aquilo a que o homem se inclina naturalmente; S, Tomás distingue três inclinações fundamentais por natureza: 1ª para o bem natural, compartilhada com qualquer substância que, como tal, deseja a própria conservação; 2ª para determinados atos que foram ensinados pela natureza a todos os animais, como a união do macho e da fêmea, a educação dos filhos e outros semelhantes; 3ª para o bem, segundo a natureza racional própria do homem , como a inclinação para conhecer a verdade, viver em sociedade, etc. (S. Th., II, 1, q 94, a. 2)” (Cf. Dicionário de filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 281). 15 Na Questão 91, Artigo 3, da prima secundae, Aquino escreve: “...a origem do direito veio da natureza...” (...). “...os princípios inatos são certas regras gerais e medidas de todas aquelas coisas que devem ser feitas pelo homem, das quais a razão natural é regra e medida...” (Cf. Suma Teológica, I-II, vol. IV, São Paulo: Edições Loyola, 2005, pp. 533-534). 16 Cf. Questão 90, Artigos 2 e seguintes, prima secundae, da Suma Teológica. 17 Cf. Questão 96, Artigos 1 a 6, prima secundae, da Suma Teológica. 18 Cf. Questão 60, Artigo 2, secunda secundae, da Suma Teológica. 19 Cf. Questão 60, Artigo 4, secunda secundae, da Suma Teológica. 20 A ideia do aquinatense é relacionar os segundos preceitos da lei natural com a operação humana de assimilação de uma principiologia que norteie o processo de edição e interpretação da lei positiva. Afirma, assim, que “quanto aos primeiros princípios da lei da natureza, a lei da natureza é totalmente imutável. Quanto, porém, aos preceitos segundos, que dizemos ser como que conclusões próprias próximas dos primeiros princípios, assim a lei natural não muda sem que na maioria das vezes seja sempre reto o que a lei natural contém”. 21 MARIA HELENA DINIZ leciona que os princípios jurídicos são enunciados lógicos, implícitos ou explícitos, que ocupam posição de proeminência nos vastos quadrantes do Direito. Por isso mesmo, um princípio jurídico “vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com eles se conectam” (Cf. Dicionário jurídico, vol. 3, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 737). 22 FERRATER MORA, José. Dicionário de filosofia, Tomo I, tradução de Maria Stela Gonçalves e outros, São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 749. Segundo o autor, “entende-se por algo que está dentro do Direito aquilo que está em conformidade com algo, ou, melhor dizendo, o que está de acordo com uma regra, aquilo que a acata ou cumpre sem desvios, rodeios ou vacilações”. 11
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categoria científica, essa metodologia deve acalentar o ajuste dos seres e das coisas numa perspectiva do natural, da natureza. A metodologia da ciência do Direito não pode ignorar o natural que, em substância, é a própria razão de ser da vida humana na terra. Se é certo que o Direito pode ser entendido em diversos sentidos, não é menos certo que nenhum desses sentidos pode divorciar o Direito do ajuste natural das coisas (rectitudo), pena de não se tratar da própria categoria jurídica. Fazer oposição entre lei jurídica e natureza é, pois, renegar a própria condição racional do homem, conquanto haja conexão entre o Direito-lei e o ajuste (justo) conatural à razão humana. Por essa razão, o Direito Natural é o Direito resultante da razão humana voltada “naturalmente” para o acerto, o legítimo, o bem. E isso é também substrato da lei jurídica (lex humana) de Tomás de Aquino23. Diante disso, vislumbramos no Direito Natural de Santo Tomás uma verdadeira metodologia para o Direito, a qual resgata o conceito e as qualidades primitivas e essenciais dessa ciência humana que é desenganadamente baseada na preservação da ordem natural das coisas, seja no contexto das hierarquias, do respeito ao que a natureza oferece no mundo, da observância do que é ético-moral; enfim, a metodologia jusfilosófica tomista representa o exercício do fazer o bem e evitar o mal. Sem dúvida, uma metodologia do Direito Natural de Tomás de Aquino repõe o Direito no lugar correto que deve ocupar. É que a ciência jurídica tem sido conduzida nos últimos tempos por métodos e critérios de investigação que lhe desnaturam o sentido essencial consistente em sua própria razão de ser. A lei jurídica, por exemplo, não pode ser objeto de descaminhos que reneguem sua vocação de promoção do bem comum, da paz social e do justo natural-racional, como prescreve a Questão 90, Artigo 2, prima secundae, da Suma de Tomás24. De igual forma, o Direito deve ser sempre considerado um instrumento de realização do dar corretamente a cada um o que é seu, na melhor forma da Questão 58, Artigo 1, da secunda secundae da Suma de Tomás.
Afinal, como visto, o Direito é o objeto da Justiça. É essa a metodologia do Direito Natural de Tomás de Aquino que reivindicamos para o Direito do nosso tempo. Claro que há outros processos de investigação do Direito que lhe atribuem outras metodologias25. Porém, nenhuma metodologia pode corromper a natureza própria da ciência jurídica, suprimindo-lhe pressupostos medulares representativos de sua adequada formulação científica e metacientífica. E dentre esses pressupostos está exatamente o Direito Natural de Santo Tomás de Aquino. 5. O DIREITO NATURAL DE SANTO TOMÁS E SUA UTILIDADE JURÍDICO-METODOLÓGICA NA CONTEMPORANEIDADE - Na contemporaneidade, o Direito é cultivado como uma ciência especialmente autônoma, quase sempre confundida com instrumentos e procedimentos constitutivos do conteúdo do direito positivo26 Nesse contexto, falar em Direito é referir-se sobretudo a métodos construídos por grupos de homens para superação de problemas subjacentes à busca do poder e/ ou do domínio. O sentido axiológico do Direito é, não raro, identificado fundamentalmente com normas-valores que um dado consenso entende como predominantes ou que devam prevalecer sobre tudo27. Esse consenso muitas vezes é formado com objetivo direto ou indireto de subjugar. Visto assim, evidente que o Direito se confunde com uma espécie de mecanismo de perseguição e manutenção do poder pelo poder, ou seja, o Direito passa a ser um fim em si mesmo conjugado ao alcance do poder28. Definitivamente, esse modelo de Direito-poder ou Direito-domínio tem causado complexidades e desacertos que põem em evidência a própria neutralidade que toda ciência deve cultivar, não sendo a ciência jurídica uma exceção. Se se pretende que o Direito seja rigorosamente uma ciência, não se pode dele subtrair a necessária neutralidade científica . Pôr o Direito à mercê de fatores e interesses político-partidários, econômicos ou de falsas ideologias e valores é conspirar contra sua pretensa cientificidade29. Não é a “pureza” do Direito que o tor-
na uma categoria científica de excelência. Como visto, a teoria pura de Kelsen não é senão tornar o Direito uma categoria sem sentido e sem conteúdo adequados para a construção de uma vida social “humana” e, portanto, justa, isto é, uma vida que tenha por essência o homem e sua natural inclinação para o bem. O Direito tanto mais se elevará quanto mais estiver voltado ao sentido do justo bem cultivado no Medievo tomista. Não se trata, é claro, ao contrário do que pensarão alguns, de verter o Direito numa pura categoria teológico-filosófica. Trata-se de atribuir ao Direito as qualidades que lhe são ínsitas, isto é, as qualidades de uma ciência (ou não) que esteja voltada para o bem-justo da humanidade. Ser ou não o Direito uma ciência não deve ser a preocupação essencial de juristas e juízes. Essencial é que o Direito seja considerado e cultivado como objeto da Justiça, conferindo-se-lhe a respectiva “alma” natural. E isso foi o objeto nuclear da doutrina medieval-tomista a respeito do Direito. A metodologia medieval-tomista idealizada para o Direito sem dúvida resgata as qualidades que nunca deveriam ou devem ser olvidadas pelos cultores do Direito, porque ela é alicerçada na natureza própria do homem feito criatura de Deus e, por isso, voltado naturalmente para o bem e para a ordem natural das coisas. Noutro dizer, o Direito-justo que informa a doutrina tomista do Direito Natural é, em essência, a melhor qualificação que se pode atribuir ao Direito enquanto pretensa ciência humana. Já no Medievo, Tomás de Aquino enfrentou problemas jurídicos tão complexos quanto os que os juristas da atualidade enfrentam e com uma escassez de recursos e auxílios muito maior que nos dias de hoje. Basta mencionar a questão do furto famélico (Questão 66, Artigo 7, secunda secundae, da Suma), do aborto (Questão 118, Artigo 2, prima secundae, da Suma), da atuação dos juízes (Questão 60, Artigos 1 a 5, secunda secundae, da Suma), da legitimidade dos titulares do poder (Questão 96, Artigo 5, prima secundae, da Suma), dentre muitas outras. Nem por isso, o Direito foi corrompido em relação àquilo que lhe é mais caro: o justo racional subjacente à natureza e à ordem
Cf. FERRATER MORA, Dicionário de filosofia, op. cit., p. 750. Na Questão 90, Artigo 2, prima secundae, da Suma, TOMÁS DE AQUINO expõe que “é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”. 25 JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES sugere haver vários métodos de investigação do Direito, a exemplo de um método indutivo, um método dedutivo, um método lógico-silogístico, um método dialético etc. (Cf. A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz: o ‘testemunho’ crítico de um ‘diferendo’? Revista lusófona de humanidades e tecnologias, Porto: Universidade Lusófona do Porto, 2008). KARL LARENZ, por sua vez, investiga o Direito sob uma metodologia positivista, jusnaturalista, de valores éticos próprios, etc (Cf. Metodologia da ciência do direito, 5ª ed., tradução de José Lamego, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009). 26 Nesse sentido, vide ROBERT ALEXY em seu Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg-München: Alber, 1992. 27 Nesse sentido, vide JÜRGEN HABERMAS em seu Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992. 28 Ao discorrer sobre o papel do jurista do nosso tempo, CASTANHEIRA NEVES manifesta sua refutação a qualquer norma que renegue o que chama “idéia do direito”, pressupondo exatamente um Direito ilegítimo por injusto. Nesse aspecto, afirma que “a única atitude legítima em face de uma ‘lei injusta’ é a de recusar a sua aplicação: a ‘lei injusta’ faz surgir no pensamento jurídico em geral o poder e o dever de lhe recusar validade e aplicação, de decidir contra legem” (Cf. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, 1º volume, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 45). 29 A neutralidade da ciência é bem definida por HUGH LACEY, para quem ela deve ser “livre de valores”, significando que a ciência é universal, isto é, não se vincula a uma cultura estanque de raiz ideológica, política ou religiosa. (Cf. Is science value free? Value and scientific understanding, London/New York: Rou Tledge, 1999). 23 24
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natural que o Criador revelou ao homem por meio do Direito Natural. Diante disso, a grande utilidade jurídico-metodológica do Direito Natural de Tomás de Aquino para a contemporaneidade está principalmente no resgate da natureza própria do Direito (especialmente do direito positivo), natureza esta que reclama estudo e aplicação do Direito como instrumento de realização da Justiça. Com isso, estar-se-á pondo o Direito no lugar natural que possui e para que foi criado, constituindo sua própria razão de ser. Com efeito, o Direito Natural de Tomás de Aquino encerra uma categoria metodológica que vem oportunamente dissipar incongruências e heresias que hoje conspiram acentuadamente contra o Direito e sua essência. Exemplos se sucedem no dia-a-dia judiciário que definitivamente causam grande alvoroço no tocante ao que efetivamente devemos apreender em termos de “Direito” (contrário do torto e do errado). Normas jurídicas que pervertem as posições de credor e devedor, de vítima e criminoso, de honesto e ímprobo são reflexos dessa perversão do Direito30. Situações de perversão do Direito-justo (dar a cada um o que é seu na medida de seus méritos e deméritos) culminam com a utilização do Direito para fins nocivos à convivência social, transformando-o em base científica, dita legítima, de dominação,
opressão e injustiças. Não é à toa que vemos atualmente nas faculdades de direito não acadêmicos promissores e promotores do justo, mas impacientes executivos de negócios, com emprego do Direito sob a forma de moeda ou outras investidas nebulosas31. Isso é consequência exatamente da perversão que, infelizmente, grassa hoje no mundo do Direito, tudo causado por um quase absoluto abandono do sentido ético-moral que o Direito ostentou especialmente nos áureos tempos da jusfilosofia medieval-tomista. O quadro desolador que desafia o Direito do nosso tempo pode e deve ser alterado a partir da superação do preconceito desmensurado proposto a tudo que diga respeito à Idade Média. A cultura jurídica medieval-tomista não deve ser confundida com os processos ordálios nem com uma teologia transcendental supostamente cultivada sob interesses deselegantes da Igreja Romana. Ao menos no que toca à jusfilosofia de Tomás de Aquino, o Direito alcançou prestígio dogmático e axiológico muitas vezes conflitante com a doutrina da Igreja. Basta relembrar a refutação de Aquino aos padres da Inquisição, como se observa da Questão 64, Artigo 4, secunda secundae, da Suma Teológica32. A história da filosofia medieval-tomista nos revela, efetivamente, um modelo metodológico que representa um ponto de partida fundamental para qualquer Direito que se
pretenda compatível com as ciências humanas e legitimado pela natureza racional do homem. A invocação de Deus como requisito medular do Direito tomista não é senão um qualificativo que, no Século XIII, ostentava a mesma importância que os consensos democráticos talvez ostentem nos dias de hoje na civilização ocidental. Fato é que seja qual for o tempo e lugar há um Direito comum a tudo e a todos, cujo mérito está na especial homenagem que devota à ordem natural das coisas sobre as quais o homem deve militar. Enfim, é Direito legítimo aquele que compele o devedor a pagar suas dívidas, que pune comutativamente os autores de delitos, que afasta sumariamente o príncipe que se divorcia da promoção do bem comum. Direito é, portanto, o objeto da Justiça, na melhor estrutura jurídico-metodológica de Santo Tomás de Aquino. Bom, entretanto, que a discussão não se encerre neste breve ensaio. Todo estudo envolvendo Filosofia e Direito é caro à magistratura, aos juristas e aos estudiosos em geral. Os magistrados não raro nos ressentimos de atualidades filosóficas e jusfilosóficas que só enobrecem o ministério do julgar. Ressuscitar as ideias e lições de jusfilósofos de escol, especialmente de Tomás de Aquino, conjugando-as ao nosso dia-a-dia judicante, é exercitar a consciência de aplicar o Direito como objeto da Justiça. g
Em matéria processual civil, por exemplo, o artigo 649 do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) e a Lei nº 8.009/94 tornam impenhoráveis praticamente todos os bens dos devedores, conspirando contra a ordem natural segundo a qual o patrimônio do devedor deve ser destinado ao pagamento das dívidas que voluntariamente contraiu. Em matéria processual penal, o instituto do habeas corpus, previsto nos artigos 647 e 648 do Código de Processo Penal, é quase sempre permissivo automático concedido a autores de crimes graves para permanecer indefinidamente em liberdade, conspirando contra a justiça comutativa. Em matéria eleitoral, por conduto do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65), titulares do governo e parlamentares já condenados em regular processo judicial de improbidade continuam no exercício do cargo executivo ou legislativo até o epílogo de longos e intermináveis recursos (artigo 216), sob a ilógica e falsa premissa de que todos, ainda que condenados, são presuntivamente inocentes. Vide, a respeito, nosso ensaio Ética e Ensino Jurídico, publicado na Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região, volume 12, 2003. 32 Sobre os julgamentos conduzidos por clérigos, conforme a citada Questão 64, Artigo 4, secunda secundae, da Suma, TOMÁS afirma: “Aos clérigos não é lícito matar, por dupla razão. 1º São escolhidos para o serviço do altar, no qual se representa a paixão de Cristo imolado, ‘que, ao ser espancado, não espancava’. Portanto, não compete aos clérigos espancar e matar (...). 2º Outra razão é que aos clérigos se confia o ministério da Lei Nova, que não comporta pena de morte ou mutilação corporal”. 30
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MEMÓRIA
CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE NAPOLEÃO LAUREANO Equipe GENIUS
No início dos anos cinquenta do século passado, a Paraíba foi sacudida por um drama que repercutiu não só entre nós, mas, também, por todo o Brasil. Isso ocorreu quando se teve notícia de que o médico Napoleão Laureano, natural de Natuba, no interior do nosso Estado, tinha sido acometido de câncer e de que pouco tempo de vida lhe restava. Àquele tempo, a doença não conhecia lenitivos nem cura, como hoje se obtém, graças aos avanços tecnológicos e científicos no campo da medicina. Dono de um largo círculo de amizade e de um extenso rol de clientes, a quem atendia diuturnamente em seu consultório, possuía também Napoleão Laureano um relacionamento social de alargada esfera, tanto que detinha um mandato de vereador à Câmara Municipal de João Pessoa, obtido através
da legendária União Democrática Nacional (UDN), o partido do Brigadeiro. Com isso justifica-se o pesar que se abateu sobre os paraibanos, ao saberem do mal de que se tornara portador o médico, o amigo, o protetor, o representante dos pessoenses na Câmara de Vereadores da Capital. Com tal pesar, porém, não se deixou ele contaminar e, movido pelo desejo de servir à sua gente, empreendeu uma das maiores campanhas populares que já se fez no país e da qual resultou a instituição de um organismo nacional de coordenação na luta contra o câncer – a Fundação Nacional do Câncer e um hospital a ser construído em João Pessoa, dedicado inteiramente à cura do insidioso mal, o qual levaria o nome do saudoso médico e humanista. O centenário de nascimento de Napo-
leão Laureano foi comemorado em João Pessoa com uma sessão solene, marcada por uma palestra do jornalista Alexandre Garcia, entrega de medalhas e certificados de reconhecimento ao trabalho desenvolvido por vários colaboradores da Fundação Napoleão Laureano e do Hospital que leva seu nome, ao longo de mais de cinquenta anos da existência de ambas as instituições. À frente das comemorações estiveram o Presidente da FNP, Antônio Carneiro Arnaud e o do HNL, Péricles Serafim Filho. Incorporando-se ao tributo que se presta à memória do grande paraibano que foi Napoleão Laureano, GENIUS publica dois trabalhos sobre a pessoa e o político, de autoria, respectivamente, de Otávio Sitônio Pinto e do Vereador Durval Ferreira.
NAPOLEÃO LAUREANO – O NOME E O NUME Otávio Sitônio Pinto Antigamente, Natuba era pertença de Umbuzeiro. Quer dizer, em 1890, quando o município de Umbuzeiro foi fundado e desmembrado do município de Ingá do Bacamarte. Além da Vila de Umbuzeiro, compunham o município as localidades de Barra de Natuba, Mata Virgem, Santa Cecília, Pedro Velho, Matinadas, Aroeiras, Pirauá, Oratório e outros arraiais. Umbuzeiro surgiu como um pouso de tropeiros que demandavam o porto do Recife, transportando algodão, pois o município fi ca na divisa da Paraíba com Pernambuco, a padastro do Riacho Orondongo, de onde vem sua água potável. A extrema que define os dois Estados beira a rua principal, a cumeeira das casas servindo como divisa. A fachada está na Paraíba, do meio para o fim em Pernambuco. A casa onde Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo nasceu fi ca assim situada, a frente na Paraíba, lá dentro em
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Pernambuco. O quarto onde Chatô veio à luz fi ca na Paraíba, a poucos passos de Pernambuco. A casa ainda está lá. Mas o fundador dos “Diários Associados” fazia questão de anunciar-se como paraibano. O lugar demora no gume de uma serra úmida e fria, e deve seu nome a um pé de umbu que dava frutos e sombra naquelas paragens. Deve ter sido o primeiro amparo para os tangerinos que iam para o porto do Recife. Barra de Natuba ficava mais em baixo, na beira do Rio Paraíba, onde o rio que dá nome ao Estado recebe o Riacho de Natuba, piscoso de pitus. Mas em 1875 uma grande cheia destruiu o aglomerado de casas que se abeiravam do rio Paraíba, e Natuba foi reconstruída mais acima, subindo a ladeira, longe das águas. Em 1890, Natuba, salva das águas, passou a compor o município de Umbuzeiro. Mas, dois anos depois de fundado, em 1892, o município teve sua sede mudada
para Barra de Natuba. Daí seu nome como o conheciam os antigos: Umbuzeiro de Natuba. Mais dois anos depois, em 1894, a sede municipal volta para Umbuzeiro. E Natuba ficou pertença de Umbuzeiro até 1961, quando ganhou status de município. Umbuzeiro teve descendência ilustre nos vultos de Assis Chateaubriand, Epitácio Pessoa – único brasileiro a presidir os três poderes do País – e do médico Napoleão Rodrigues Laureano. Quando Napoleão Laureano nasceu, Natuba ainda pertencia a Umbuzeiro. O médico veio ao mundo em 22 de agosto de 1914, no início da Primeira Guerra Mundial. Na rua principal da cidade, um chalé elevado, de imponentes linhas arquitetônicas, destaca-se como o prédio onde nasceu o ilustre filho de Natuba. O doutor Laureano notabilizou-se como médico dos pobres e dos desenganados, oncologista que teve a iniciativa de institucionalizar a luta da sociedade paraibana contra
o câncer. Napoleão Laureano formou-se no Recife, em 1943 – em plena Segunda Guerra Mundial – e especializou-se no Rio de Janeiro, no Serviço Nacional do Câncer. Concluído seu estágio no Rio de Janeiro, regressou à Paraíba com o intuito de ser útil aos doentes de sua terra, naquele tempo desprovidos de assistência quando afligidos pela grave moléstia. Napoleão Laureano abriu consultório na Rua Barão do Triunfo, 474, 1º andar, onde tratava também de doenças das senhoras, partos, defeitos congênitos e adquiridos, cirurgia geral e cirurgia estética de cicatrizes. Nos feriados, ou fora do horário do expediente, o doutor Napoleão Laureano, sempre solícito, podia ser encontrado em casa, na rua Monsenhor Walfredo, 663, no romântico bairro de Tambiá, próximo à Praça da Independência. Por seu engajamento na luta contra a ditadura que garroteava o país, e seu desempenho em favor dos doentes, Na-
poleão Laureano foi o segundo vereador mais votado na capital de Paraíba, na primeira eleição realizada após a queda do Estado Novo. O médico dos pobres obteve 959 sufrágios, uma votação notável para a época. Napoleão Laureano foi alçado à presidência da Câmara Municipal, cuja casa tem o seu nome. O doutor dos pobres e dos desenganados também foi vítima do câncer. Em 1951, ano de sua morte, os recursos da ciência contra essa doença eram mínimos. Os amigos intentaram fazer uma campanha para arrecadar fundos com a finalidade de custear o tratamento de Napoleão Laureano nos Estados Unidos. Mas o grande médico apelou para que esse esforço fosse direcionado no sentido de se criar uma instituição, na Paraíba, que prestasse assistência aos doentes locais da terrível moléstia. Naquele tempo, o diagnóstico de câncer era uma sentença de morte. Não havia os re-
cursos que hoje proporcionam alto grau de cura para seus portadores. Com a iniciativa do doutor Laureano, de direcionar para a coletividade o esforço que se esboçava em seu favor, teve início, na Paraíba, a Fundação Napoleão Laureano e o hospital por ela mantido. Assim como a casa da Câmara Municipal, o hospital do câncer também recebeu o nome de Napoleão Laureano. Logo o hospital se notabilizou como centro de referência, o que preserva até hoje. A doença de Napoleão Laureano serviu de bandeira para uma campanha que sensibilizou todo o país, resultando na criação da Fundação Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro, e do Hospital do Câncer da Paraíba. A imprensa nacional deu cobertura à luta de Napoleão Laureano, inclusive a revista “O Cruzeiro”, maior veículo noticioso da época. Agora, passados cem anos de seu nascimento, a figura de Napoleão Laureano avulta diante do Brasil, como se vivo fosse.
NAPOLEÃO LAUREANO: O POLÍTICO Durval Ferreira
O médico e político Napoleão Rodrigues Laureano é, sem dúvidas, um dos paraibanos mais ilustres do século XX, e sua veia política se desdobrou naturalmente devido a determinados aspectos que estiveram inerentes à sua vida: a sensibilidade em trabalhar pelos mais necessitados; a luta para instalar no Brasil políticas públicas para o tratamento de pessoas com câncer; e a capacidade de reunir brasileiros de todas as classes sociais em prol da colaboração. Não é à toa que ele também é um símbolo da redemocratização, pois, a essa época (1947), foi um dos vereadores eleitos para a Câmara Municipal de João Pessoa (CMJP), instituição que, por mérito e honrosamente, é representada no âmbito do Legislativo Municipal de João Pessoa como a Casa de Napoleão Laureano. O trabalho pelos pobres, a luta pelas pessoas com câncer e o poder em reunir a população em prol da colaboração são pontos fortes do homem político que Napoleão Laureano se tornou, algo que vejo como características indispensáveis a qualquer político ou legislador. Esses três pontos ressaltam a dedicação em relação à população através de trabalhos sociais: ele chegava
a atender 80% de seus pacientes gratuitamente; fez da saúde pública uma bandeira de atuação, através do sonho que teve de implantar o Hospital do Câncer da Paraíba, em João Pessoa, e a Fundação Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro. Um trabalho abnegado, que ele desenvolveu com pertinácia, comprometido com as vítimas de câncer, o que o tornou conhecido como o “patrono dos cancerosos”. Destaque-se ainda o fato de ter sido um grande influenciador e articulador, que conseguiu fazer lideranças políticas e civis do país inteiro abraçarem sua causa em um movimento nacional de combate ao câncer. Foi líder do que podemos chamar de uma verdadeira cruzada a favor dos que sofrem com o câncer, liderando uma campanha nacional na qual visitou diversas cidades e Estados conscientizando as lideranças e a população sobre a necessidade que o Brasil tinha de implementar na saúde o prognóstico e o tratamento para vítimas desse mal. A vocação política do médico mártir paraibano iniciou-se com sua militância nos tempos de aluno da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), quando Napoleão Laureano se engajou no movimento dos
estudantes pernambucanos contra o Estado Novo, nos momentos finais da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945). Foi principalmente pela sua dedicação ao atendimento dos pobres que viu motivo para ingressar na política, em 1945, por ocasião da redemocratização, filiando-se à União Democrática Nacional (UDN), partido pelo qual foi eleito vereador para a CMJP. Na ocasião, após anos sem o Legislativo Municipal de João Pessoa funcionar, aquelas foram as primeiras eleições para a Câmara marcadas pela redemocratização, e as 12 vagas da Casa foram bastante disputadas. A UDN conseguiu eleger a maioria dos vereadores, e Napoleão Laureano obteve uma votação consagradora, ficando em 2º lugar, com 959 votos, suplantado apenas pelo vereador Cabral Batista, que obteve 974 votos. Na época do governo de José Américo, na Paraíba, houve a primeira eleição da Mesa Diretora da CMJP, para a qual Laureano foi eleito vice-presidente para o exercício de 1947-1948. O presidente eleito, vereador Miguel Bastos, teve que assumir a Prefeitura de João Pessoa, uma vez que seus titulares, prefeito e viceprefeito, julho/agosto/setembro de 2014
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entraram de licença para tratamento de saúde. Em virtude disso, Laureano assumiu a presidência do Legislativo Municipal, continuando no posto por mais quatro anos, até 1951, liderando-o de forma incontestável. A doença acometeu na face o natubense (natural de Natuba - PB), nascido em 22 de agosto de 1914, e que faleceu aos 36 anos, em 31 de maio de 1951, no Rio de Janeiro. O câncer que atingiu Napoleão Laureano estava localizado no maxilar e, em menos de um ano do aparecimento dos primeiros sintomas, dominou inteiramente seu organismo, dificultando sua carreira política e social. Talvez seja possível dizer que ele perdeu a oportunidade da cura pela falta dos meios necessários para o diagnóstico. O Governo da Paraíba decretou luto por três dias e João Pessoa parou. O cortejo funerário parou diante da CMJP. Na ocasião, falou de improviso o vereador Ranulpho de Oliveira Lima, ressaltando as qualidades morais de Napoleão Laureano e a sua atuação na Casa. No sepultamento, um dos que falaram foi o vereador Damásio Franca. A CMJP também se encarregou de homenagear Napoleão Laureano por ocasião do trigésimo dia do seu falecimento, programando uma missa na Catedral Metropolitana, às 7h, e uma homenagem especial às 20h, na própria Câmara, com aposição do retrato do seu ilustre ex-presidente. Foi na CMJP, com Napoleão Laureano ainda em vida, que foi aprovado o projeto do vereador Mário Antônio da Gama e Melo abrindo um crédito de cem mil cruzeiros para a aquisição de um terreno onde seria construído o Hospital do Câncer da Paraíba, precursor do atual Hospital Napoleão Laureano. Napoleão Laureano aproveitou com nobreza a sua influência política para traçar um vasto plano de ação em benefício dos cancerosos brasileiros, o que se tornou o objetivo maior ao qual se dedicou em sua existência. Ele sempre se queixou de que a demora em seu diagnóstico foi por conta da falta de aparelhagem na Paraíba. A princípio, se dirigiu ao governador da Pa-
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raíba, José Américo de Almeida, pedindo uma verba de 150 mil cruzeiros a fim de adquirir um equipamento de radium destinado ao serviço de verificação de óbitos e de anatomia patológica para João Pessoa. Após saber que tinha câncer, procurou também o Presidente Getúlio Vargas e pediu que construísse um hospital de câncer na Paraíba. A ideia lançada obteve apoio imediato, com a contribuição voluntária de diversas pessoas, tendo inicialmente o prefeito de João Pessoa, Oswaldo Pessoa, contribuído com a metade dos seus vencimentos, durante dois meses. A iniciativa foi assunto à época até no Senado, através de Ruy Carneiro, que louvou o apoio do governo paraibano e da população em prol da campanha pela fundação de um hospital do câncer na Paraíba. A ideia, além de marcar um grande passo na História da Paraíba, viria contribuir para a diminuição de óbitos produzidos pelo mal. Napoleão Laureano mobilizou vários segmentos sociais para a campanha de construção do hospital: políticos, banqueiros, professores, médicos, estudantes, grupos escolares, diretores de escolas, secretarias de Estado e diversos outros representantes da sociedade civil e organizada. A Paraíba, que enfrentava problemas com a seca, mas não descurava da campanha que Napoleão empreendeu e que sentimentalizou toda a comunidade. As ações de Laureano mobilizaram gente não só na Paraíba, tomaram maiores proporções, criando um movimento nacional na luta pela implantação da Fundação Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro, que recebeu doações e contribuições do Brasil inteiro, de particulares e empresas. No Rio de Janeiro, apesar de sua fraqueza, já acometido pelo câncer, Napoleão Laureano continuava sua campanha em favor dos cancerosos do país, querendo aproveitar suas pequenas melhoras para visitar São Paulo e Minas, onde deflagraria a campanha meritória em prol da criação de órgãos
de combate ao câncer e assistência aos cancerosos. Os jornais informaram que Laureano teve dias dolorosos em que, mesmo sentindo no físico os sintomas castigantes do câncer, não se absteve de continuar sua marcha pelo Brasil divulgando a necessidade da criação de institutos especializados no tratamento do câncer. Relatos indicam momentos de muito sofrimento em que Laureano até perdeu a lucidez, porém, mesmo assim, nunca deixou sua cruzada pela redenção das vítimas do câncer, o que revelou ser ele um homem estoico, de atitudes heroicas e que sempre verbalizou sua gratidão a todos que contribuíam com o movimento que conseguiu encabeçar no Brasil. Eram tocantes os apelos de Napoleão para angariar donativos em favor da causa. Por isso, foi eleito membro de honra do Instituto Brasileiro de História da Medicina, em homenagem ao movimento por ele iniciado. Onze anos depois do falecimento do grande mártir, em 24 de fevereiro de 1962, foi inaugurado o Hospital do Câncer Napoleão Laureano, em João Pessoa. Conquista que foi fruto da vocação política que teve e de uma carreira que perpassou pelas facetas que assumiu em vida: a de um idealista, herói, mártir, um símbolo na luta contra o câncer, de um grande prestador de serviços públicos, capaz de sensibilizar um país e conseguir a colaboração da população brasileira, de um médico de larga experiência que exerceu um verdadeiro apostolado da medicina, sem ambições, e de um cidadão munido de uma centelha divina dentro de si, dedicado ao desejo de ajudar ao próximo. É assim que vejo a figura do também patrono da CMJP, Napoleão Laureano, um homem no qual todos os homens públicos deveriam se espelhar. Um autêntico paraibano, que honrou suas responsabilidades e que guerreou com todas as suas forças para transformar as dificuldades que encontrou em ações capazes de gerar um mundo melhor. g
HOMENAGEM
MORRE MILTON NÓBREGA, O MAGO DO DESIGN GRÁFICO Equipe GENIUS
O falecimento, na manhã de 16 de agosto do corrente ano, de Milton Nóbrega, 70, nascido na cidade de Espírito Santo (PB), abriu um vazio nas artes gráficas da Paraíba, setor em que atuou desde que deixou sua cidade natal e fixou-se na Capital paraibana, passando a espalhar seu traço e suas criações pelos diferentes órgãos de comunicação do nosso Estado, sobretudo A UNIÃO, do qual foi Diretor. Milton Nóbrega celebrizou-se pela contribuição que emprestou ao movimento editorial da Paraíba, notadamente, por seu esplendor criativo, na concepção de capas de livros e de revistas, além de marcas e logotipos, solicitados por empresas das mais diversas naturezas. Como ele tinha, no dizer do jornalista Abelardo Jurema Filho, em crônica divulgada na imprensa local, “o dom de penetrar no pensamento alheio”, quando recebia uma encomenda, para elaboração de uma arte, conseguia captar tão bem o desejo do cliente, para formulação de um layout, uma logomarca, uma capa, fosse de livro ou de re-
vista, que disso resultava um produto jamais recusado, pois fiel ao pensamento de quem o encomendara. Para o jornalista Gonzaga Rodrigues, autor da bela crônica que transcrevemos nesta página, divulgada no Jornal da Paraíba, edição de 19 de agosto, Milton Nóbrega “desenhou uma página singular na história das artes gráficas no Nordeste”. Para Gonzaga: “Não houve uma só editora, um só empreendimento nesse campo que não tenha experimentado influência direta ou indireta do talento de Milton.” Nós que fazemos GENIUS não poderíamos ficar indiferentes diante da dor que atingiu a família, a imprensa e o setor artístico paraibano, com o desaparecimento do extraordinário designer, pois, afinal, foi ele o autor da primeira capa desta revista, que nesta página reproduzimos, e da marca que ela carrega e que esperamos sempre manter, nas quais se destacam a feição particularíssima e a simplicidade, que, somadas, refletem a genialidade de quem as concebeu.
EM MEMÓRIA DE MILTON NÓBREGA Elizo Nogueira Matos
Começo explicando-me, para situar-me, isto é, dizendo como tenho vivido nos últimos cinquenta anos - uma chateação tal repetição. Cheguei a João Pessoa depois de doze anos no Recife, saído de Campina, Patos e Mossoró onde estudei até o terceiro ano ginasial, hoje dito primeiro grau. Depois o Recife, onde fui empregado no serviço público, e saí bacharel em direito para a modesta prática judiciária nas comarcas sertanejas. Assim, não conheci Milton Nóbrega porque vivíamos em mundos distanciados pela formalidade que congrega profissionais. Eu, um politico bebericador de cerveja, ele, intelectual, jornalista, um artista na sua roda de companheiros. Convivi algum tempo com o seu irmão Mailson, funcionário do
Banco do Brasil e colaborador, como eu, da revista Letras do Sertão, editada em Sousa. Mas lhe devo as capas de dois romances meus, cujo design encaminha o raciocínio do leitor para as teses, os temas do escritor. O gênio de Milton resta comprovado. Nada acrescentamos em reconhecê-lo. Choro a sua morte súbita. Gosto de falar no Recife. A capital pernambucana, naquele tempo, era a Meca que esbanjava notável conhecimento sobre o mundo como fora e chegara até aquela data nos anos cinquenta do século passado: artes e ciências sustentavam a extraordinária riqueza cultural, financeira, material, antes da exploração do petróleo na Baía. Pernambuco estava lá em cima. O cosmopolitismo
estava ali. Todos lá chegavam para negociar, estudar, morar na Anatólia nordestina. Digo Anatólia como aprendi com o negro José Reis, emérito professor sousense, filho de escravos, que conquistara a admiração da cidade inteira. Negros, brancos e cafuzos, mamelucos, curibocas e bota gente nisso, todos o conheciam, estimavam, respeitavam e admiravam. Na década quarenta do século XX ele reproduzia o que aprendera em textos do XIX, ainda lembrados pela maioria dos escolarizados. Decente, ar paternal, professoral mesmo, cumprimentava as pessoas que avistava. Não conheci, e certamente não existiria, vivente algum que o insultasse, dele desfizesse. Um homem rico da cidade, doutor, dono de uma farmácia, também julho/agosto/setembro de 2014
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professor, que se formara no Recife o acolhia para conversas sobre os fatos da cidade, do Estado, do país, do mundo. Gostava de vê-lo, já idoso, porém musculoso, numa postura apolínea, que exalçava, tais as curvilíneas e encantadoras formas femininas de suas compatrícias calipígias. Todos pediam, por mera curiosidade, para traçar o roteiro de uma viagem partindo de Sousa para qualquer outra cidade no mundo. Vestindo a roupa pobre, mas asseada, limpa e cheirosa do sabão artesanal, a sua calça de brim ordinário, com um cordão amarrado na cintura no lugar do cinturão, a camisa de pano de saco (dos bons, de farinha de trigo) a carapinha embranquecida, na sua pobreza esbanjava educação, gentileza, humildade. Foi numa dessas viagens imaginárias que cheguei a Anatólia, a Ásia Menor, desaparecida politicamente do mapa do planeta. Hoje é Turquia Asiática, Armênia e outros Estados recém-criados. A voz do emérito mestre era clara e agradável, sem autoritarismo e detalhava o roteiro da viagem: “Pego o trem na Estação de Sousa, desço no Recife, lá embarco no vapor do mar para Amsterdam, de lá sigo de trem que cruza o sul da Europa até o meu destino, Paris, Berlim, Praga, por exemplo, chegarei até a Ásia Menor.
Maílson e Milton Nóbrega
Américas, Oceania, todos os continentes ele os referia e descrevia falando de acidentes geográficos, do clima, alimentação, indumentária e tudo mais. Os que o escutavam, analfabetos funcionais como se diz hoje, ficavam embasbacados, reprovavam um negro daqueles falando assunto de branco. Eu me encantava rebordando fronteiras da Illiria, da Capadócia e mais palavras de lugares que ele referia e esqueci. Toda esta fala vem a propósito de um
romance imaginado, puro projeto, em que ele e outros, negros e brancos também, são expulsos da terra onde construíam suas vidas, submetidos à violência e brutalidade da exploração da força do trabalhador, desprezadas até habilidades especiais de alguns. Algo lido em “As Vinhas da Ira”, e no diálogo discussão frente a frente, entre o teólogo católico José Tolentino e o ateu romancista José Saramago. A fé e a liberdade, a igualdade de direitos, a democracia a que não pode fugir a teologia. Em meio à escapada, incriminações, incidentes acontecem, os indiciam como autores de crimes. Tal violência também alcançou e feriu Fabiano de “Vidas Secas” quando o soldado amarelo tacou-lhe a mão nos peitos, lhe deu voz de prisão. Nenhuma filosofia explica e justifica tal procedimento. Chegara a hora final, desfeito o grupo, lamentavam: “Éramos muitos, trabalhávamos, vivíamos, éramos uma família... agora o que parecemos, o que nos resta, o que somos?” Está nos livros de Steinbeck e de Graciliano. A tragédia social romanesca renderia a reflexão para criação de mais uma capa para o meu romance que eu passaria a lhe dever, a terceira, porque não lhe paguei as duas primeiras. A editora talvez o tenha feito.
O TEMPO ILUMINADO DE MITUCA Juca Pontes
A velha A União sempre foi a nossa verdadeira escola. Milton foi meu intenso e imenso mestre. Do aprendiz das letras e das artes, em mim floresceu o parceiro de todos os instantes. Capas e marcas do tempo ofereceram um marco ao nosso aprendizado gráfico-editorial-publicitário. Bem se foram os dias que somam tantos e quantos dias de cumplicidade e amizade sem fim. Porque o tempo e o amor, esses nunca irão findar ou perecer. Mituca, com seu jeito meigo de ser, sua sensível e especial atenção, meu sincero carinho de irmão, ofereceu luz e vida aos bem-aventurados ou imprescindíveis caminhos do meu rio. Extraordinário universo interior que acabaria por influenciar e espelhar o exercício diário de todos nós: Luiz Augusto Crispim, Gonzaga Rodrigues, Martinho Moreira Franco, Marcos Tavares, Alberto Arcela, Sérgio de Castro Pinto, Agnaldo Almeida, Martinho Sampaio, Domício Córdula, Flávio Tavares, eu e tantos ou-
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Juca Pontes e Milton Nóbrega
tros amigos em comum da nossa paisagem mais contemporânea. Consanguíneos na palavra e no traço, no olhar e no pensamento. Irmãos das mãos que movem as afetuosas águas do coração. Todos iluminados pela varinha de condão da nossa fada madrinha Ângela Bezerra de Castro. Termos e eternos fios de convivência
me permitiriam contemplar, por um veio mais próximo, o jardim que ele também e tão bem soube esboçar e cultivar com as mágicas cores do seu horizonte repleto de azuis. Nos braços de Gil, a companheira da vida inteira, o seu forte e permanente abraço continua a apontar e a revelar os formidáveis passos vislumbrados por Patrícia e Chiquinho, Thaisa e Bruno, Bruna e Victor. Também vivenciados por Malu, Isabella, Bruninho e Gabriella, e bem acompanhados pelo cativado olhar de dona Antonieta. Porque o céu o escolheu e o acolheu para prosseguir sua obra de arte em companhia do infinito brilho das estrelas, bem ao lado do seu velho Wilson. Daqui do meu canto, me junto ao sonoro canto dos seus irmãos Milson, Marizete, Maurício, Mailson, Marilene, Mariza, Marcos, Madalena e Mailza, e da matriarca Maria José, em forma de oração: vai amigo-irmão, segura na mão de Deeus e segue o caminho da eternidade.
MILTON NÓBREGA Gonzaga Rodrigues
Surgiu com um desenho para ilustrar cartilha infantil destinada às escolas rurais. Faz, 50 anos, foi na antiga ANCAR. Cheguei sutil e fiquei olhando, sem que ele notasse, a animação de hortaliças e crianças que brotava do seu lápis com bem mais facilidade do que viria a sair da terra. Primeiro, o desenho, a vivacidade de brinquedo como tudo, casualmente, se apresentou, depois, o menino já um tanto grande, recém-saído do Exército, que o seu comandante de trabalho, Domício Córdula, chamou de Mituca. Daí por diante, até a ilustração por via eletrônica da última quinta-feira, a relação de Milton Nóbrega com o trabalho e a vida nunca me pareceu de outra natureza. Lúdica. Mas como trabalhava! Vivia trabalho. Com raras exceções, como a dele, a humanidade sempre tem a hora do trabalho e do lazer. Milton enrolava tudo a um só tempo. Quando não o víamos trabalhando. Dirigindo a composição de uma capa ou de um apelo comercial, estava com a cabeça neles. Só interrompia para o cigarro, narrar um caso faceto ou, como é de lei, para os momentos íntimos. Com aquela cara de Van Reflin em
“Os brutos também amam”, que é a da tensão e a das horas solitárias, era um ser humano do bem-querer, amado não só pela família, pelos irmãos de sangue, como, talvez com mais afinidade, pelos irmãos da amizade. Em seu trabalho de abelha, despretensiosamente, desenhou uma página singular na história das artes gráficas no Nordeste. O livro, sobretudo o livro, ganhou um tratamento de editora de mercado nas mãos de Milton Nóbrega. Antes dele contava-se com as artes benfazejas de Dulcídio Moreira, Ar-
naldo Tavares e Elcir Dias, coroando o trabalho dos tipógrafos. Os efetivos artesãos do livro, da revista, do jornal, herdeiros da tipografia centenária, surgiam da oficina. A União, na Paraíba, foi precursora e mestra na formação dessa mão de bora de dedos entintados. Ingressando nela em 1951, ainda herdei noções suficientes para esse gênero de convivência. A presença de Milton ainda jovem na A União, atraindo para as suas mãos de dedicação exclusiva o setor de artes do jornal e da gráfica, marca uma fase nova na indústria gráfica do Nordeste. Não houve uma só editora, um só empreendimento nesse campo que não tenha experimentado influência direta ou indireta do talento de Milton. Ele está para o desenho gráfico na Paraíba, como expoentes do nível de Hermano José, Flávio Tavares e Raul Córdula estão para as artes plásticas. Morreu de repente, domingo, pensando em ir à oficina de arte em que ficara de terminar um trabalho. Fizera 70 anos já com uma certa angústia no rosto, mas sem perder o gosto de desenhar para crianças grandes e pequenas. g
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TURISMO
JOÃO PESSOA, CAPITAL DA PARAÍBA: EM MEIO A UMA DAS MAIORES ÁREAS DE MATA ATLÂNTICA URBANA DO BRASIL Boaz Vasconcelos Lopes
RESUMO O artigo faz uma análise crítica da visão turística recorrente, mediante uma exposição da evolução histórica da Cidade de João Pessoa no contexto de conservação da Mata do Buraquinho. Esta cidade, quase sempre, deixa aos visitantes de passagem a impressão mais emblemática da mobilidade ambiental, principalmente, por ser bastante arborizada e de curtas distancias. Mediante uma abordagem com viés de desbravamento histórico, são enumeradas as possíveis razões concretas e imaginárias que fazem da Cidade de João Pessoa um espaço verde. Palavras-chave: Qualidade de vida urbana; João Pessoa Cidade Verde; Mata do Buraquinho; Mata Atlântica. Abstract The article presents a critical analysis of the vision tourist applicant, by an exhibition of the historical evolution of the city of João Pessoa in the context of conservation of Mata Buraquinho. This city almost always leaves visitors passing through the most emblematic prints of environmental mobility, mainly because it is very wooded and short distances. Through an approach bias clearing history, listing the possible reasons that make real and imaginary city of João Pessoa a green space. Keywords: Quality of urban life; João Pessoa City Green, Mata do Buraquinho; Atlantic forest. INTRODUÇÃO Tem-se uma imagem a ser vendida a respeito da cidade de João Pessoa: ela é uma das cidades mais verdes do Brasil e, também, a “Porta do Sol”, uma vez que nela está localizada a Ponta do Seixas: o ponto mais oriental das Américas, o que faz a cidade ser conhecida como o lugar “onde o sol nasce primeiro nas Américas”. Para quem conhece bem o que é viver em uma cidade grande, a imagem que se tem a respeito da qualidade de vida é que não se assemelha à vida no interior. No entanto, mesmo aqueles que passam pouco tempo em João Pessoa logo descobrem que, em geral, ela foge aos padrões de urbanidade de cidades como São Pau-
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lo, Rio de Janeiro ou mesmo Recife, de que está a poucas horas de distância. Mas, será que ao se estar na Cidade de João Pessoa, permanece-se, também, no interior de um grande centro? Uma das linhas possíveis para se responder a isso ou compreender o fenômeno da vida da cidade de João Pessoa é se debruçar sobre três fundamentos que bem caracterizam as condições de sustentabilidade de um grande centro urbano: • O econômico: a evolução econômica de João Pessoa, por exemplo, não foi equivalente à do Recife; • O ambiental: por alguma razão histórica, João Pessoa conseguiu conservar parte de sua Mata Atlântica; • O social: os arranjos socioeconômicos de João Pessoa não alcançaram a pujança e complexidade de capitais mais próximas, como Recife, Salvador ou mesmo Natal, aliviando as possíveis pressões sociais ao seu legado patrimonial. O legado Histórico da vida da cidade de João Pessoa afirma que muito de suas características foi fruto das opções administrativas que seus governantes foram fazendo ao longo de seu processo de urbanização. O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DE JOÃO PESSOA - Em 1856 a área da Mata Atlântica (conhecida popularmente como a Mata do Buraquinho), onde está inserido o Jardim Botânico de João Pessoa, era conhecida como Sítio Jaguaricumbe. Este aparece, a primeira vez, no registro de terras possuídas, com os limites que iam do litoral até o atual centro da cidade, chegando aos arredores da antiga Lagoa, onde fica hoje o Parque Solon de Lucena (SEMARH, 2001). O Sítio Jaguaricumbe, confina de norte a sul pelas duas estradas dos macacos e Jaguaribe, pelo nascente com o Rio Jaguaribe, e pelo poente com a “rua do collegio Principiano” na antiga arrobação, onde houve um marco perto do lugar da forca, d’ahi para o norte até com outro marco defronte da torre do collegio e dahi a lagoa [...] (MADRUGA, 2002, p. 6). O fragmento anterior diz respeito a um dos documentos, relativos às origens da Mata do Buraquinho, mais abrangentes, que nos foram
disponibilizados. Esse, contido de uma vertente historicista, faz um resgate dos primórdios dessa reserva ambiental, começando desde o período colonial até hoje; além de citar trechos originais dos documentos da época. Sua linha de construção se centra na tese de que existe um equivoco histórico sobre o assunto: Há um conceito hoje errôneo, porém genérico, de que a Mata do Buraquinho nos limites entre a margem esquerda do Rio Jaguaribe e a rua D. Pedro II, é resultado do Sítio Jaguaribe de Baixo, o que na realidade não representa a exatidão dessa interpretação, pois, para dirimir essas dúvidas, necessário se torna que recorramos ao renomado compilador de Sesmarias dos tempos coloniais[...](MADRUGA, 2002, p. 1). Pelas nossas leituras documentais foi possível visualizar uma linha evolutiva da Mata de Buraquinho em que ficaram evidentes quatro acontecimentos marcantes ou marcos históricos que deram vida à reserva atual: a fase colonial, o início do serviço de abastecimento de água da cidade, o início da devastação da mata e a formação político-estrutural do jardim botânico. Para Madruga (2002), da primeira fase (a colonial) destacam-se os seguintes marcos históricos que compuseram o ambiente da Mata do Buraquinho da época: Rio Jaguaribe: este rio começava ao SO da capital, no lugar Alagoa Grande, tomava a direção NE e despejava, após 12 km, no mar da Praia do Bessa, formando a enseada do mesmo nome. Foi nessa região que desembarcou o exército holandês em 4 de dezembro de 1634, depois de ter derrotado um pequeno contingente local, para sitiar o forte de Santa Catarina; perto havia a estrada do Jaguaribe, hoje conhecida como Rua Marechal Almeida Barreto. Estrada dos Macacos: localizava-se a 3 km da capital e era regada pelo Rio Jaguaribe. De seus mananciais foram edificados os primeiros poços de captação e as primeiras usinas para o abastecimento de água da capital. Dessa estrada surgiu a então Rua da Palmeira, a que conhecemos hoje como Avenida D. Pedro II.
Capela de São Gonçalo: também era conhecida como Igreja da Conceição, assim como o colégio, e a residência dos jesuítas; era formada por um conjunto arquitetônico seiscentista, pois teve sua construção feita pelos jesuítas que vieram com Martim Leitão e foi iniciada ao mesmo tempo em que começou a fundação da cidade de João Pessoa. A Igreja da Conceição foi demolida mais recentemente, no Governo de João Pessoa, sendo edificada no local uma capela com idêntico orago, na Rua São Miguel. Necessário se torna esclarecer, já que o Cônego Florentino, faz referência ao liceu, que o mesmo foi fundado e ali instalado no dia 24 de março de 1838, pela Assembleia Provincial da Paraíba, de acordo com a lei nº 11. O Liceu Paraibano funcionou inicialmente com as cadeiras de Latim, Francês, Retórica, Filosofia e Matemática (MADRUGA, 2002, p. 7). Rua do Collégio: atual rua Duque de Caxias, era dividida em três secções: primeiro a Rua Direita – trecho entre o Campo Cel. Luiz Inácio (atual Largo de São Francisco) até o Beco do Hospital (hoje Avenida Miguel Couto); segundo, Rua da Baixa – da Igreja da Misericórdia à esquina do Caminho das Cacimbas (atual Avenida Guedes Pereira) e, terceiro, a Rua São Gonçalo ou do Collégio. Casa da Pólvora: a cidade possuiu três casas de pólvoras e de armamentos; delas, apenas uma subsiste – a da ladeira de São Francisco, construída no alvorecer da era setecentista e que, ultimamente, foi reestruturada; a mais antiga ficava na Rua Nova (avenida General Osório); a outra ficava em um sítio que se chamava Passeio Geral, hoje Rodrigues Chaves (essa arruinada por completo). Alagoa: a antiga lagoa, hoje Parque Solon de Lucena, a que os visitantes chamavam de “Lagoa dos Irerês” em virtude do grande número de macacos que nadavam em suas águas, formava um aprazível logradouro, conhecido como Alagoa: Para ser mais fiel transcreveremos trechos de Sampaio onde melhor se faça interpretar o ambiente e os fatos que o Prefeito Guedes Pereira transformou em decoração principal do Parque Sólon de Lucena, deu nome à Chácara que o comerciante português Vitorino Pereira Maia construiu ao lado oriental da velha cidade de Paraíba (MADRUGA, 2002, p. 11-12). Esses pontos principais são apenas alguns dos destaques que identificavam os arredores que formavam o que se apresenta hoje como a Mata do Buraquinho. Na época em que foi concedida a possessão das sesmarias, existia na área apenas o Sítio Jaguaricumbe, como confirmado a seguir: O que nos encoraja a afirmar que o SITIO JAGUARICUMBE ou MATA DO BURAQUI-
NHO, tinha os seus limites pelo poente, vis à vis ao atual Palácio da Redenção. E parte de seus domínios atingia, também, boa parte dos arredores do Parque Sólon de Lucena, mais precisamente, onde atualmente se localiza o Cassino da Lagoa até confluir-se com a atual Avenida Dom Pedro II (MADRUGA, 2002, p. 15-16). A cidade da Parahyba (antigo nome da capital paraibana) já apresentava alguns progressos, contava com ruas abertas e alargadas para dar passagem aos veículos e pessoal, luz instalada e o sistema de transporte público sob tração animal, já fora substituído pelos meios elétricos, no entanto, não existia ainda o sistema de água encanada e de saneamento básico. [...] na cidade ainda se mantinha os hábitos de tomar banho de rio e retirar das cacimbas a água para beber e preparar os alimentos. Adicionado a isso, era comum a água usada correr a céu aberto, denunciando a igual necessidade de esgoto e saneamento (CHAGAS, 2004, p. 12). Em relação ao começo do serviço de abastecimento de água da cidade, o então governador Valfredo Leal, nos anos de 1900, em face da terrível seca que assolou o Estado na época, mandou iniciar os estudos para canalização de água utilizando os mananciais adquiridos pela empresa inglesa aqui sediada, chamada Paraíba Water Company, que vinha, havia algum tempo, desenvolvendo projeto nesse sentido. Esse empreendimento envolveu a compra, por cinco contos de reis a Antonio Furtado da Mota, do Sítio Jaguaricumbe (SEMARH, 2001). O empreendimento anterior atesta que de fato o Sítio Jaguaricumbe foi a atual Mata do Buraquinho, uma vez que o Sítio Jaguaribe de Baixo ficava anexo àquela propriedade, descrita da seguinte forma: O Sítio Jaguaricumbe, cujas águas do seu riacho são captadas para o atual abastecimento da capital, foi dado, em sesmaria, a Manuel Caetano Veloso e sua esposa Sofia da Franca Veloso, tendo pertencido depois de 1856, a vários outros até que em 1907 o seu dono, nesse tempo Antonio Furtado da Mota, vendeu-o à Fazenda pública, por cinco contos de reis (MADRUGA, 2002, p. 15-16). O início da execução desse projeto data de 17 de junho de 1909, com recurso próprio do Estado, que passou a ser conhecido como os serviços de saneamento da Bacia do Jaguaricumbe, uma vez que, até então, a cidade era desprovida, desde sua fundação, de serviço público de limpeza e escoamento das águas que se acumulavam nos arredores em quase estado de estagnação, o que representou a construção do primeiro poço de água da capital. No dia 21 de abril de 1912, sob responsa-
bilidade dos engenheiros Victor Komenacker e Willian Game, entravam em funcionamento as duas caldeiras a vapor, que vinham da área conhecida como Mangabeira, que acionam as duas bombas Worthingon (LEMOS, 2005, p. 5). A MATA QUE SE TORNOU URBANA - Na altura dos anos 90, o que existia de Mata Atlântica já tinha sido reduzido a 50% de sua extensão. Essa sistemática redução da área de mata fez gerar, já na época, a percepção da necessidade de se pensar em conservá-la, uma vez que já se viam algumas preocupações com os limites para onde a cidade poderia se expandir, como visto a seguir: No oficio de 30 de dezembro de 1923 ao Exmo Sr. Dr. Solon de Lucena, refiro-me a necessidade de prontas e decisivas providências para que não prosseguisse a extensão da cidade para a vertente do Jaguaribe, invadindo-se a zona de proteção das águas subterrâneas. (MADRUGA, 2002, p. 20).297297 297 Com o processo de expansão da cidade, no entanto, a Mata do Buraquinho foi sendo ocupada por invasões e projetos de urbanização, ampliando-se a fase de devastação da reserva. Bem conhecida, a Avenida João Machado de hoje, era chamada Travessa do Jaguaribe, posteriormente do Bom Jesus, ia das Trincheiras até se confluir com a já citada estrada do Jaguaribe, passava por onde é hoje a Rua Alberto de Brito, até a margem esquerda do Rio Jaguaribe, região que em 1912, o então Governador Dr. João Lopes Machado, que cedeu seu nome à rua em questão, abriu o manancial do Buraquinho, justamente para receber a tubulação do novo sistema que conduzia água até onde se situa o prédio das voluntárias e a despejava numa caixa d´água confeccionada em chapas de aço. Com o advento da Avenida João Machado e a implantação do abastecimento de água da cidade, essa artéria passou a ter seus terrenos cobiçados por interesses diversos, entre os quais a implantação de várias edificações públicas e privadas, corresponsáveis pela ocupação desordenada da antiga Mata do Buraquinho e a diminuição de seu tamanho para as atuais medidas. Ao longo da João Machado foram sendo construídas históricas edificações que deram forma aos primeiros contornos urbanos da cidade, entre as quais: Colônia Juliano Moreira: foi o primeiro prédio a ser instalado na área. Especialistas escolhidos pelo então Governador Solon de Lucena, em 1924, foram ao Rio de Janeiro e a São Paulo estudar o problema da assistência a alienados para, na Paraíba, orientar técnicos na construção do atual hospital-Colônia. Este ficou localizado no espaço que ia da D. Pedro II até a Rua 12 de Outubro. Escola de aprendiz de marinheiro: onde julho/agosto/setembro de 2014
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se localiza o prédio do Bom Pastor; funcionou durante muitos anos esta escola. O então governo doou um vasto terreno situado na Avenida João Machado onde passou a funcionar a escola que, depois de vários anos de funcionamento, teve suas atividades encerradas: A Parahyba, que fora o berço nascedouro, da revolução de 1930, recebeu um golpe tremendo, com o encerramento das atividades da Escola de Aprendiz de Marinheiro. Funcionando, há anos, na Avenida João Machado, foi transformada, muitos anos depois, no Presídio Feminino Bom Pastor. Tinha também seus domínios da Avenida João Machado a Rua 12 de Outubro (MADRUGA, 2002, p. 23). Maternidade Cândida Vargas: também incluída neste rol de construções de grande porte, foi ela concebida na Gestão do interventor Ruy Carneiro, no ano de 1943. Hospital e Casa de Saúde São Vicente de Paula: em 1912, sob a orientação do Dr. Walfredo Guedes Pereira, recebeu uma faixa de mata do Estado para, após devastá-la, construir esse, hoje, conhecido hospital. Com essa mesma linha de ocupação da Mata do Buraquinho levantou-se a construção da Companhia de Desenvolvimento da Paraíba (CINEP); na área, eram inúmeras as fruteiras de grande porte, que foram derrubadas para dar lugar ao prédio da administração daquele órgão. O mesmo ocorreu com a área externa da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (CAGEPA Central). A devastação da mata para a construção de vários órgãos públicos sempre foi avante, com a justificativa da chegada do progresso. Este foi o segundo grande golpe sofrido pela exuberante Mata Atlântica. O primeiro foi quando da declaração das sesmarias, até a venda definitiva para os domínios do Estado, quando já estava resumida em uns 50% mais ou menos. (MADRUGA, 2002, p. 24) (grifo nosso). Em 13 de outubro de 1955 foi passada a Escritura Pública de doação de terra extensiva ao Buraquinho, feita pelo Estado da Paraíba à Companhia Hidroelétrica do São Francisco
(CHESF), como identifica o termo seguinte: Que a Lei Estadual n º 1267, de 15 de setembro de 1955, autorizou o outorgante doar, como de fato doado tem, por bem desta escritura à outorgada, uma área de terreno medindo dez mil (10.000) metros quadrados, a ser desmembrada da propriedade descrita na cláusula anterior, área esta, cujo perímetro se inicia por um marco de cimento, situado ao lado direito da Avenida D. Pedro II […] (MADRUGA, 2002, p. 29). Uma das primeiras tentativas de formulação de um jardim remete ao ano de 1951, no Governo de José Américo de Almeida, em que foi executado o Acordo Florestal da Paraíba entre o Serviço Florestal e o Governo da Paraíba, em que estava prevista a criação do Jardim Botânico, cuja finalidade era a produção de mudas e essências florestais. A inauguração ocorreu apenas em 1953. Em 1957, o Estado doou, à União, 166 hectares da área da Mata do Buraquinho para a implantação de um horto florestal. (SEMARH, 2001). A partir da década de 1940, o sistema de abastecimento de água através de poços foi sendo gradativamente extinto. Assim, foram elaboradas novas propostas de “aproveitamento” e exploração da Mata do Buraquinho, como a tentativa de criação de um Jardim Botânico e hortos florestais. Tais projetos nunca foram implementados completamente (OLIVEIRA e MELO, 2009, p. 119). Outro marco importante desse processo evolutivo de formação do jardim diz respeito à construção do Campus I da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Na década de 70 a mata tinha sido reduzida a 565 hectares, além do mais ainda foi desmembrada para a construção desse conhecido órgão federal. Um dos primeiros processos de agregação formal da área aconteceu com o Decreto Federal nº 98.181, em 1989, em que 471 hectares desse espaço foram declarados Área de Preservação Permanente (APP), ficando sob a responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Assim como, também, ficaram sob a jurisdição da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (CAGEPA) outros 305 hectares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Aliada a todo esse processo de redução física da Mata Atlântica, desde os anos 90, a reserva, também, tem passado pelos processos de entropia urbana, fato comum às grandes cidades que ainda possuem alguma reserva ambiental. Já hoje, a região passa por forte influência de agentes econômicos especulativos que visam à construção de vastos empreendimentos ao redor da mata, além das antigas invasões e ocupações de terras feitas por comunidade de diversas origens, em busca de moradia improvisada ao seu redor. Ao mesmo tempo em que aconteciam os desmatamentos citados, houve vários movimentos ambientais e iniciativas organizacionais para que fosse criado, formalmente, um jardim botânico dentro da Mata do Buraquinho, principalmente, para que esse meio ambiente passasse a exercer sua função social, fato este que gerou diversos momentos de tensões e de esperança por parte daqueles que, sistematicamente, defenderam a preservação e a criação de uma política de gestão sustentável para esse espaço ambiental privilegiado, podendo-se citar, por exemplo, a APAN (Associação Paraibana dos Amigos da Natureza), com especial destaque à pessoa do conhecido e renomado botânico da Paraíba, que teve seu nome sempre ligado à defesa dessa reserva ambiental, Lauro Pires Xavier. Numa ida até ao Jardim Botânico de João Pessoa, um dos atrativos turístico da cidade, é possível constatar que o pouco do que restou da exuberante Mata Atlântica original vive hoje mal cercada nesse espaço de conservação. A real ou aparente qualidade de vida oferecida pela Cidade de João Pessoa e normalmente percebida pelos visitantes tem, necessariamente, uma relação intrínseca com o quanto de espaço verde que ainda se conserva em meio à dinâmica urbana da capital do Estado da Paraíba. No caso de Joao Pessoa, muito do discurso sobre o estado de conservação de seu meio ambiente, nem sempre, é reflito no cotidiano mais duradouro da administração de suas reservas ambientais, com destaque para a Mata do Buraquinho onde se encontra o Jardim Botânico de João Pessoa, referência turística da cidade. g
REFERÊNCIAS CHAGAS, Waldeci Ferreira. As singularidades da modernização da Cidade da Parahyba, nas décadas de 1910 a 1930. 2004. 218f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife. LOPES, B.V. OKARA: Geografia em debate, v.7, n.2, p. 292-300, 2013 300 LEMOS, Niedja de Almeida Brito. Bacia Hidrográfica urbana e degradação ambiental: o alto vale do Rio Jaguaribe. 2005. 76f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente) - Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa. MADRUGA, João B. César. Sítio Jaguaricumbe – Mata do Buraquinho: berço do abastecimento d’água de João Pessoa. João Pessoa: JBBM, 2002. MELO, Gutemberg de Pádua. Projeto de educação ambiental para as comunidades que vivem em torno de unidade de conservação. João Pessoa: IBAMA, 1995. MENDOSA, Carlos O. Lopes. O Jardim Botânico de João Pessoa: uma pequena descrição. João Pessoa, IPÊ, UNIPÊ, MATHB, 1997. MORAES, Antonio Carlos Robert Meio ambiente e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 20008. MORAES, A. Carlos de; BARONE, Radamés. O desenvolvimento sustentável e as novas articulações econômica, ambiental e social. PESQUISA & DEBATE, SP, v. 12, n. 2, p.119-140, 2001. Disponível em: < http://www.pucsp.br/pos/ecopol/downloads/edicoes /(20)antonio_moraes.pdf> Acesso em: 10 fev. 2012. OLIVEIRA, Suênia C. C.; MELO, Rodrigo. S. As trilhas do Jardim Botânico Benjamim Maranhão (João Pessoa - PB) como recurso para interpretação ambiental. Caderno virtual de turismo, v. 9, n.2, p. 113-125, 2009. SEMAM - Secretaria Municipal de Meio Ambiente Diagnóstico geoambenal rápido da área de baixo curso do rio Jaguaribe: trecho localizado no limite territorial dos municípios de João Pessoa e Cabedelo PB. João Pessoa, 2009.
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LIVROS HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DOS ESTADOS BRASILEIROS – Flávio Sátiro Fernandes e Paulo Bonavides, Malheiros Editores, São Paulo, 2014. Esta História Constitucional dos Estados Brasileiros apresenta a evolução pormenorizada dos estatutos constitucionais de cada Estado, desde a República até hoje, em um trabalho exaustivo, que os Autores, constitucionalistas de escol, elaboraram e organizaram. Proporcionam, assim, a pesquisa da matéria para todos aqueles que devam se aprofundar no exame dos textos e da evolução do constitucionalismo brasileiro, facilitada pela ordenação da matéria e pela sua amplitude. Obra que, certamente, enriquece a nossa bibliografia constitucional pela sua importância e pelo prestígio de seus Organizadores.
À SOMBRA DAS PALMEIRAS: A COLEÇÃO DOCUMENTOS BRASILEIROS E AS TRANSFORMAÇÕES DA HISTORIOGRAFIA NACIONAL (1936-1959) – Fábio Franzini, edições Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2010. Vencedor do Prêmio Casa de Rui Barbosa, em 2007, a monografia de Fábio Franzini não é mais um estudo a respeito de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado Júnior, muito embora eles se façam aqui presentes, como se verá. Sua proposta é, antes, fugir a certos lugares-comuns da historiografia brasileira para reconstituir os caminhos que viabilizaram e difundiram as novas interpretações historiográficas sobre o Brasil surgidas a partir da crucial década de 1930, até meados dos anos 1950, entre elas as dos três autores citados. Como se pretende demonstrar, esse processo, longe de se limitar à tríade consagrada, mobilizou pensadores os mais diversos, com visões da história também diversas, bem como editores, críticos e, dentro dos limites da sociedade da época, o chamado “público-leitor”, configurando assim um cenário pulsante, no qual a busca pela compreensão de nossa trajetória ou, mais precisamente, de nossa formação, não é a exceção e sim a regra. Justamente por isso, exerceu importante papel para a divulgação do conhecimento histórico para além do restrito círculo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHG) e mesmo das nascentes faculdades de Filosofia, bem como para a melhor definição da especificidade do trabalho do historiador numa época em que ainda não eram bem definidas as fronteiras disciplinares.
DAS AULAS AVULSAS AO LYCEU PROVINCIAL – As primeiras configurações da instrução secundária na província da Parahyba do Norte (1836-1884), Cristiano de Jesus Ferronato, Aracaju, 2014. O livro que chega às mãos dos leitores é fruto da tese de doutoramento de Cristiano Ferronato, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, em 2012. O texto procurou apreender a configuração da instrução secundária na Província da Parahyba do Norte entre os aos de 1863 a 1884. A tarefa foi de grande envergadura, porque muitas foram as tensões de toda ordem que permearam o desenho das aulas avulsas e a fundação, em 1836, do Lyceu Provincial. O autor utilizou um conjunto documental bastante significativo, que inclui as falas e relatórios dos presidentes da Província, dirigidas à Assembleia Legislativa provincial; as leis, regulamentos, portarias e decretos sobre a instrução secundária; mapas; dados estatísticos, orçamentos, listas de alunos, professores e diretores; informações acerca do acervo da Biblioteca do Lyceu, dentre outros documentos. A participação do pesquisador junto ao Grupo de Pesquisa em História da Educação no Nordeste Oitocentista (GHENO), do qual ele faz parte desde a sua criação, permitiu trocas acadêmicas importantes. A história da educação paraibana ainda não tinha sido brindada com um trabalho consistente acerca de uma de suas principais instituições escolares – o Lyceu Provincial, mais tarde chamado de Lyceu Parahybano. As formas escolares que se constituíram para a instrução secundária na Província, voltada para a formação cultural e política das elites locais em conexão com os interesses das do Rio de Janeiro, com o intuito de garantir a formação de um Estado Nacional, deram à Casa Lyceal, como se refere o autor, contornos específicos. O leitor pode percorrer as páginas do livro e encontrar questões interessantes acerca da cultura educacional que se pretendeu engendrar pelas mãos de seus professores, seus alunos, seus diretores, homens letrados e todos aqueles que participaram direta ou indiretamente dos caminhos da instrução secundária na Parahyba e no Brasil Oitocentistas. (Prof.ª Dr.ª Cláudia Engler Cury)
HISTORIOGRAFIA DA ACADEMIA PARAIBANA DE LETRAS, Marcos Cavalcanti de Albuquerque, João Pessoa, Editora UFPB, 2014. Tem caráter eminentemente informativo a Historiografia da Academia Paraibana de Letras, o novo livro do professor, desembargador e acadêmico Marcos Cavalcanti de Albuquerque, um escritor que vem se destacando nas letras paraibanas, principalmente com seus textos jurídicos e os relacionados com a história das ordens religiosas. Agora, provavelmente influenciado por ser um dos integrantes do IHGP e da APL, o escritor se volta para o mundo dos seus colegas imortais, lançando uma oportuna historiografia de uma das mais importantes instituições culturais do Estado. É a terceira obra que trata desta destacada casa de Cultura. Aparece mais de duas décadas após a primeira e 12 anos da segunda. A primitiva intitula-se Memorial da Academia Paraibana de Letras, e foi escrita em 1991, por Maria Helena Cruz, então funcionária da APL; a outra, de autoria do historiador e acadêmico Luiz Hugo Guimarães, é de 2001, e se denomina História da Academia Paraibana de Letras. Esta terceira obra é, em todos os sentidos, a mais completa de todas, com informações detalhadas, texto leve, direto, expressando uma preocupação didática. julho/agosto/setembro de 2014
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