MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
JACKS
ND
PANDEIR
E
FUTEB L
Érico Dutra Sátiro Fernandes
“Esse jogo não é 7x1...”. Os versos gravados há mais de 60 anos por Jackson do Pandeiro em “1x1” (Edgar Ferreira) não foram bem assim, mas, se o paraibano de Alagoa Grande, falecido em 1982, presenciasse a catástrofe brasileira na Copa do Mundo de 2014 diante da Alemanha, certamente gravaria uma canção sobre o assunto. Apaixonado por futebol, Jackson cantou a seleção brasileira, o Flamengo e o futebol em geral.... Como abusava do humor em suas canções, o 7x1 sofrido pelo Brasil provavelmente não passaria batido. Música e futebol, duas grandes paixões do povo brasileiro, há muito que se entrelaçam, fortalecendo-se entre si. A cada ano surgem diferentes músicos com novas composições ou regravações sobre o esporte mais popular do Brasil. Por outro lado, no meio do futebol, diversos atletas se aventuraram na arte de cantar. Podemos citar, por exemplo, os ex-craques Pelé, que gravou com Elis Regina; Zico, que cantou ao lado de Fagner; Júnior, que tornou famosa a canção “Povo feliz”, popularmente conhecida como “Voa, Canarinho”, e até mesmo o ex-centroavante Nunes. Mais comum, como já dito, é o inverso, ou seja, o futebol ser tema de músicas interpretadas por cantores profissionais. Chico Buarque, Jorge Ben, Moraes Moreira, Wilson Simonal e Tim Maia são só alguns dos inúmeros artistas que cantaram o esporte em seus discos. Na música nordestina, Jackson do Pandeiro pode ser considerado o maior exemplo, apesar de só ter praticamente uma canção sobre futebol amplamente conhecida, a já citada “1x1”. José Gomes Filho, nascido em 31/08/1919, só foi gravar suas primeiras músicas em 1953, já conhecido como Jackson do Pandeiro. “Forró em Limoeiro” (Edgar Ferreira), e, principalmente, “Sebastiana” (Rosil Cavalcanti), estouraram nas rádios e alavancaram a carreira do paraibano, que seguiu lançando discos até 1981, ano anterior ao do seu falecimento, ocorrido em 10/07/1982. Gravou forrós, xotes, marchas, frevos, sambas, batuques etc. Como ele próprio dizia, “se o ritmo fosse brasileiro, estava dentro”. Por tal motivo, e pela forma de divisão vocal que efetuava nas suas
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Jackson do Pandeiro e o escudo do Flamengo em seu violão (foto de capa do LP “O melhor de Jackson do Pandeiro” – Polygram)
interpretações, ganhou a alcunha de “O Rei do Ritmo”. Gravou mais de 430 músicas em sua carreira, compondo cerca de 160 delas. A maioria das letras tinha como característica o bom humor, falando sobre causos, brigas e confusões, embora também tenha cantado diversas outras temáticas, como o futebol. Flamenguista, torcedor também do Treze de Campina Grande (cidade onde passou sua adolescência e juventude) e grande fã de Zico, sobre o esporte bretão Jackson gravou exatamente 10 músicas, citando-o ainda em outras gravações, como “Samba do Ziriguidum” (Jadir de Castro/Luiz Bittencourt), sem que fosse, entretanto, o assunto central. Apesar de haver na literatura brasileira alguns livros sobre o futebol na música nacional, a maioria cita Jackson do Pandeiro apenas por “1x1” ou “Frevo do bi” (Braz Marques/Diógenes Bezerra), omitindo as demais canções que o Rei do Ritmo
gravou sobre o tema, até porque grande parte de seus trabalhos foi gravado em discos de 78 rpm e se tornou raridade, sendo de conhecimento apenas de colecionadores e pesquisadores. Para preencher essa lacuna, seguem abaixo as 10 canções que Jackson do Pandeiro lançou sobre futebol: “1x1” (Edgar Ferreira, 1954) – “Esse jogo não é 1x1, se o meu clube perder é zumzumzum...”. A mais conhecida gravação de Jackson sobre o futebol “servia para todas as torcidas”, segundo ele. A idéia inicial era fazer para Pernambuco, usando as cores dos 3 principais clubes capibaribes: Santa Cruz, Náutico e Sport. Ao falar em “encarnado, preto e branco”, “encarnado e preto” e “encarnado e branco”, no entanto, a letra abrangeu milhares de times que se utilizam dessas cores em seus uniformes e (Continua na página 27
CARTA AO LEITOR
SUMÁRIO
O primeiro trimestre do corrente ano finaliza com uma nota de lamento para o mundo cultural da Paraíba, diante do fechamento de três órgãos de grande importância no cenário jornalístico de nosso Estado. Em menos de um mês desapareceram o jornal CONTRAPONTO, a revista A SEMANA e a revista NORDESTE. CONTRAPONTO, fundado e dirigido, durante todos os anos de sua existência pela têmpera inquebrantável de João Manuel de Carvalho, para usar uma expressão popular, “era a cara do dono”, livre, independente, intimorato, jamais se afastando da linha reta que se traçou, desde o seu primeiro ano. A SEMANA, criada e dirigida por Neno Rabelo, era outro órgão que, na sua linha editorial, na sua apresentação, no seu conteúdo, guardava inteira consonância com o caráter pertinaz, perseverante e persistente de seu dono, que nunca se deixou abater pelas intempéries da vida, sejam pessoais, sejam jornalísticas. NORDESTE, finalmente, revista criada e dirigida por Walter Santos, outro lutador da imprensa, cujo nome é sinônimo de dinamismo, finda suas atividades, depois de alçar vôo que o faria alcançar novos horizontes, mas que de repente viu-se abortar, para tristeza de todos. Não adianta perquirir das razões que ocasionaram essa ocorrência lamentável no jornalismo local, restando-nos, porém, esperar que cada um deles ressurja ou que seus dirigentes se lancem a outras iniciativas de igual valia, que nos façam rememorar sempre as suas brilhantes trajetórias. GENIUS associa-se aos que lastimam esse acontecimento, e proclama, parafraseando Vinícius, que cada um desses órgãos, enquanto durou, foi infinitamente autêntico... Após esse toque de tristeza, uma nota de alegria para nós que fazemos GENIUS, pela passagem do segundo ano de seu aparecimento, contabilizando oito edições normais e duas especiais, dedicadas estas, uma, ao centenário de nascimento de Pedro Moreno Gondim, um dos operosos governantes que a Paraíba já teve, e, outra, ao centenário de falecimento do maior poeta paraibano e um dos maiores vates brasileiros – Augusto dos Anjos. As matérias representativas de tais temas foram firmadas por nomes renomados em cada uma dessas áreas, não só paraibanos, mas de outros estados e regiões do país, de modo que possamwos dar ao público o que há de melhor sobre os assuntos tratados, independentemente da origem de seus autores. Por outro lado, em todas essas edições, procuramos trazer ao leitor matérias da maior significação em diferentes áreas, quais sejam, literatura, história, folclore, genealogia, artes plásticas, turismo, educação, ciência política, cinema, filosofia e outros temas de grande interesse para o público leitor. Como diz a jornalista Alessandra Torres, em artigo publicado no jornal Correio da Paraíba e que nesta edição reproduzimos, estamos “contribuindo para a cultura, para a história de maneira educativa e culta, preservando a memória de fatos e pessoas importantes não apenas para a Paraíba, como também para o mundo, sendo um exemplo para seguir e aplaudir”
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JACKSON DO PANDEIRO E O FUTEBOL Érico Dutra Sátiro Fernandes
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PARA COMER COM OS OLHOS Andrès Von Dessauer
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UM PARAIBANO NO CONGRESSO: ATIVAÇÃO POLÍTICA, CULTURA, CÓDIGO CIVIL E EFEITO VINCULANTE José Octávio de Arruda Mello
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DISCURSO DE AGRADECIMENTO Paulo Bonavides
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VIOLÊNCIA NA ESCOLA: GRANDE DESAFIO NA “PÓS-MODERNIDADE” Marinalva Freire da Silva
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POESIA Cinco sonetos de Américo Falcão
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A POLÍTICA PARAIBANA NA VISÃO DE UM CIENTISTA POLÍTICO FRANCÊS Renato César Carneiro
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A POETICA EM ALCIDES CARNEIRO Joaquim Osterne Carneiro
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40º ENCONTRO CULTURAL DE LARANJEIRAS E O PULSAR DA CULTURA Oswaldo Meira Trigueiro
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A CONSTITUIÇÃO DE 1930
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JOAQUIM NABUCO, EPICTETO E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA Aldo Lopes Dinucci
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DISCURSO DE POSSE A. J. Pereira da Silva
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ARTE E CULTURA NA OBRA DE MIGUEL GUILHERME Walter Galvão
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O PONTO DE EQUILÍBRIO Alessandra Torres
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APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA TERRITORIAL DA PARAÍBA Flávio Sátiro Fernandes
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LIVROS
janeiro/fevereiro/março/2015 - Ano II Nº 9 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
CASADA E VIÚVA Machado de Assis
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COLABORAM NESTE NÚMERO: 4
A. J. PEREIRA DA SILVA – In Memoriam [Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras – ABL] Jornalista e poeta, nasceu aos 9 de novembro de 1876, em Araruna e faleceu no Rio de Janeiro, em 11 de janeiro de 1944. Foi o primeiro paraibano a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, como quinto ocupante da Cadeira 18, sucedendo a Luís Carlos, sendo recepcionado pelo escritor Adelmar Tavares. A ele coube, por sua vez, recepcionar o Acadêmico Múcio Leão. Publicou: Voe solis (1903); Solitudes (1918), Beatitudes (1919); Holocausto (1921), O pó das sandálias (1923); Senhora da melancolia (1928); Alta noite (1940); Poemas amazônicos (1958). ALDO LOPES DINUCCI [Joaquim Nabuco, Epicteto e a abolição da escravatura] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. Coordernador do VIVA VOX, grupo de pesquisas em filosofia clássica e helenística.. Doutor em Filosofia pela PUC-RJ. Publicou tradução anotada e comentada do MANUAL DE EPICTETO: Aforismas da sabedoria estoica. (São Cristóvao, IFS, 2007) ALESSANDRA TORRES [O ponto de equilíbrio] Jornalista e publicitária, é apresentadora do Jornal da Correio, da TV Correio/Record, e do programa Balanço Geral, da 98 FM, de João Pessoa. É também colunista do Portal maisPB. AMÉRICO FALCÃO – In Memoriam [Cinco Sonetos de Américo Falcão] Poeta e jornalista, nascido em Lucena (1890) e falecido em João Pessoa (1942). Bacharelou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Pertenceu à Academia Paraibana de Letras, da qual é, agora, Patrono da Cadeira 38, atualmente ocupada pelo Acadêmico Luiz Nunes Alves. Fez parte também do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP). ANDRÈS VON DESSAUER [Para comer com os olhos] Mestre em Economia e Ciência Política pela Universidade de Munique, Alemanha. Comentarista cinematográfico no triângulo Rio de Janeiro-São Paulo-João Pessoa sobre filmes “cults”. Articulista em vários periódicos brasileiros. ÉRICO DUTRA SÁTIRO FERNANDES [Jackson do Pandeiro e o futebol] Bacharel em Direito, pesquisador musical, dedica-se a pesquisas em torno da música popular brasileira, especialmente forró. É criador e mantenedor do blog Ralabucho (http://programaralabucho.blogspot.com.br), que circula na Internet, dedicado ao forró, com informações críticonarrativas sobre as composições ali divulgadas. FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES [Destaques da bibliografia paraibana – Apontamentos para a história territorial da Paraíba] Membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos romances Festa de Setembro e A Cruz da Menina, além das obras Conheça a Constituição,
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História Constitucional da Paraíba e História Constitucional dos Estados Brasileiros, esta última em parceria com o Professor Paulo Bonavides. Poeta, é autor dos livros Geografia do Corpo e O passarinho e a flauta. JOAQUIM OSTERNE CARNEIRO [A poética em Alcides Carneiro] Engenheiro agrônomo, escritor, historiador, genealogista. Sócio efetivo e atual Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP). JOSÉ OCTÁVIO DE ARRUDA MELO [Um Paraibano no Congresso: Ativação Política, Cultura, Código Civil e Efeito Vinculante] Graduação em História com doutorado pela USP e integrante dos IHGB, IHGP, APL, e Centro Internacional Celso Furtado. Professor aposentado das UFPB e UEPB. Titular de História do Direito do UNIPÊ. Autor de História da Paraíba – Lutas e Resistência (13ª ed., 2013), A revolução estatizada e Perfis Parlamentares – Samuel Duarte (Câmara dos Deputados, 2014). MACHADO DE ASSIS - Im Memóriam [Casada e Viúva] Maior nome da Literatura Brasileira. Romancista, contista, jornalista, exercitou a profissão em vários periódicos do Rio de Janeiro. Foi fundador da Academia Brasileira de Letras. MARINALVA FREIRE DA SILVA [Violência na escola: Grande desafio na “pós-modernidade”] Graduação em Letras Clássicas e Vernáculas (1972) e em Pedagogia (1978), pela UFPB. Professora aposentada da UFPB. Atualmente, é Professora Titular da UEPB. OSWALDO MEIRA TRIGUEIRO [40º Encontro Cultural de Laranjeiras e o pulsar da cultura] Professor Aposentado da UFPB. Membro da Comissão Paraibana de Folclore. Pesquisador da Rede Brasileira de Folkcomunicação/FOLKCOM. Autor de várias obras em suas áreas de especialização. PAULO BONAVIDES [Discurso de agradecimento] Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Doutor Honoris Causa por Universidades de vários países, autor de uma ampla bibliografia em que se destaca o CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, em 30ª edição, pela Editora Malheiros. Recentemente lançou História Constitucional dos Estados Brasileiros, em parceria com o Professor Flávio Sátiro Fernandes, edição também de MALHEIROS EDITORES. RENATO CÉSAR CARNEIRO [A política paraibana na visão de um cientista político francês] Bacharel em Direito, Professor da UFPB. Professor especialista em Direito Eleitoral. Historiador e Pesquisador. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. WALTER GALVÃO [Arte e cultura na obra de Miguel Guilherme] Jornalista, poeta, atualmente Editor-Chefe do jornal A UNIÂO, o mais antigo jornal paraibano em circulação.
CINEMA
PARA COMER COM OS OLHOS Andrès Von Dessauer
Uma cena doméstica, materializada no ato de amamentar, deu origem ao primeiro filme sobre gastronomia. Este flagra foi captado por um dos irmãos Lumiére, tendo como protagonista o pequeno Andrée Lumiére. A partir de então essa corrente, hoje, intitulada ‘food movies’, progrediu ao ponto de alcançar até a animação gráfica. Tanto é assim que, em ‘A DAMA E O VAGABUNDO’ um jantar romântico é celebrado entre caninos em volta de um prato de espaguete. De tão relevante, a alimentação está vinculada, intrinsecamente, à identidade do homem e a comida sempre foi um forte divisor de águas na estrutura social dos povos. Para ser mais preciso, basta apontar que a esmagadora parte da humanidade, come sem direito a opção, enquanto que uma pequena parcela pode escolher seus alimentos e, apenas um ínfimo grupo de pessoas se dá ao luxo de indagar-se sobre qual restaurante frequentar. Até o ano 2015 foram produzidas aproximadamente 150 importantes películas ligadas à gastronomia. Dentre essas vale destacar duas obras, que, parafraseando o título acima, pode-se dizer que são “PARA COMER COM OS OLHOS”. VATEL UM BANQUETE PARA O REI Quando o filme de Rolland Joffé, Vatel, abriu o Festival de Cannes no ano 2.000, as críticas amargas não pouparam nem mesmo o ator Depardieu, que no papel de Vatel, “chef de cuisine”, adoçou a corte do “Roi Soleil” por um creme por ele inventado: o Chantili. Apesar das críticas, no ano seguinte, a obra levou o César (Oscar francês) de “melhor filme de direção de arte”. A trama baseada em fatos reais se desenvolve no castelo que recebeu o mesmo nome do referido creme e que foi palco de inúmeras paixões e matrimônios entre aristocratas e “quase matrimônios” entre “não tão aristocratas” como o do Fenômeno Ronaldo (com quem mesmo?). Perseguindo o objetivo de cair na graça de Luís XIV e, assim, sair de um buraco financeiro, o Príncipe de Condé delegou
ao seu maître d’hotêl, Vatel, no ano 1671, a tarefa de orquestrar o que hoje podemos chamar de o primeiro “Cirque du Soleil” gastronômico da humanidade. O suntuoso banquete elaborado para uma comitiva de mais de 1.000 pessoas da corte francesa, se estendeu por três dias e três noites e, mais que saciar, tivera desde o início, a pretensão de extasiar aqueles convidados, combinando de forma surpreendente, sabor, beleza e criatividade, em um mesmo momento. Três séculos mais tarde essa incumbência delegada a esse ‘chef de cuisine’ resultou nesta película sobre gastronomia e paixão. No século XIX o filósofo alemão, Max Stirner, cunhou a frase ‘Der Mensch ist was er isst’ (‘O homem é o que ele come’). Subindo alguns degraus na escala social, afinal estamos falando da ensolarada corte francesa, faria sentido ajustar essa dicção para: “o homem não é apenas o que ele come, mas como come”. Sendo certo que a combinação entre comida, bebida e sensualidade instiga reações explosivas, o filme de Joffé vai além da exposição de pratos sofisticados e igua-
rias exóticas. De fato, comandar a elaboração, montagem e apresentação de um evento desse porte requer, além de muita sofisticação, uma logística apuradíssima e um conceito inovador de arte. Como a verdadeira nobreza não é monopólio de uma classe social, fica evidente que, a lealdade e a vontade de executar com perfeição sua missão fazem de Vatel uma pessoa mais nobre que qualquer aristocrata de berço. Não por menos, Mme de Sevigné, renomada escritora da época reconheceu e dissertou sobre as qualidades desse homem. Vatel se identificou tanto com sua missão que, ao vislumbrar a possibilidade do peixe fresco não chegar na Sexta-Feira-Santa, sentiu-se desonrado e seguiu a tradição dos royalistas japoneses, cometendo o haraquiri. Sendo, inclusive, esse ato final parte de um espetáculo que não pode parar. Até porque a corte, indiferente, em vez de apregoar: “Le Roi est mort! Vive Le Roi!” diria: “O Cozinheiro está morto! Viva o Chantili!”. DINNER RUSH Uma Receita para a Máfia De tão original o título ‘Dinner Rush’, utilizado no filme de Bob Giraldi (2.000), não conseguiu ser captado por nossos tradutores. A expressão “rush” já foi incorporada ao nosso vocabulário, quando nos referimos ao trânsito congestionado em determinadas horas do dia. Nesses termos, para a apreensão do sentido do título original, bastaria um pequeno esforço interpretativo do tradutor. Isso porque não é difícil perceber que a denominação inicial intenciona, por meio de uma reinvenção lingüística, descrever a extenuante tarefa de fazer com que, em uma única noite, mais de 250 pratos de alta sofisticação, venham a sair da cozinha em direção à mesa de uma exigente clientela. Não se sabe se o filme, no Brasil, foi rebatizado com o nome Uma Receita para a Máfia, por falta de capacidade de interpretação ou puro marketing. Mas, o importante é que essa rotulagem mal empregada não mitiga em nada a alta qualidade da obra. janeiro/fevereiro/março/2015 |
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O diretor Bob Giraldi, dono, de fato, do restaurante Gigino Tratoria, localizado no bairro Tribeca, área da “upper class” de New York, conseguiu a façanha cinematográfica de rodar em 21 dias este apimentado filme “gourmet”. Tanto a frenética cozinha (os bastidores), quanto o salão (o palco), são pontos de convergência de diversos temas abordados em uma única noite. Mantendo a “unidade do local” e a “unidade do tempo”, Giraldi segue a linha aristotélica do drama (A POÉTICA), e só deixa de fora a “unidade da ação”, devido à complexidade da nossa atual sociedade. Dessa perfeita combinação de tempo e espaço, surgem diversas figuras, como, por exemplo, um egocêntrico dono de uma galeria, uma antipática crítica gastronômica e um barman que se comporta como um Google, para ganhar um “extra”. Nesse centro gastronômico dedicado à “vanity fair”, ao qual “se vai” para “se ver e ser visto”, conseguir uma mesa é
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uma pretensão que pode levar meses ou segundos, a depender do status do interessado. O local, no entanto, funciona também como fachada para a prática de jogos de azar, atividade considerada ilícita nos Estados Unidos (com exceção do Estado de Nevada). O convincente protagonista Danny Aiello (Do the right thing, de Spike Lee) incorpora o dono desse restaurante e ao mesmo tempo, como “bookmaker”, organiza e administra a jogatina. Um dos temas abordados é a dualidade entre a tradição e a modernidade. Na disputa pelo prato a ser servido, a “nouvelle cuisine” do Giginos, influenciada pela demanda “vip”, vence. Mas, no confronto com o crime organizado, que tenta transformar o restaurante em uma “lavanderia”, a velha maneira de eliminar “à bala” uma ameaça, leva a melhor. Esse resgate do estilo faroeste, encenado em um restaurante novaiorquino, não afeta o fluxo dos pratos nem o show de gastronomia. g
MEMÓRIA
UM PARAIBANO NO CONGRESSO: ATIVAÇÃO POLÍTICA, CULTURA, CÓDIGO CIVIL E EFEITO VINCULANTE José Octávio de Arruda Mello
SUMÁRIO: A campanha de 94 e o Senado. Regozijo peemedebista e primeiros discursos. Uma temática diversificada. Sociedade, religião e cultura. Na Presidência da Comissão do Código Civil. No cotidiano de um Senador. AVC, espírito público e imunidades. Ronaldo e o efeito vinculante. Bibliografia e notas. A CAMPANHA DE 94 E O SENADO A três de outubro de 1994, a Paraíba efetuou eleições gerais para escolha dos Presidente da República, Governador do Estado, dois Senadores, doze Deputados Federais e quarenta Estaduais. Os resultados assinalaram o momento culminante da trajetória eleitoral do PMDB que elegeu o Governador, dupla senatorial, oito deputados federais e dezenove estaduais. Embora o partido estivesse sob o comando de Humberto Lucena, foi Ronaldo Cunha Lima quem se colocou no centro da mobilização política e eleitoral. Cem por cento partidário, coube-lhe encampar a candidatura governamental Antônio Mariz e influir na escolha do candidato a vice-Governador. A indicação deste representou problema para cuja solução uma vez mais contribuiu Ronaldo. Depois que o candidato governamental Antônio Mariz, por ela responsável, desistiu do empresário José Carlos da Silva Júnior, o deputado Carlos Dunga a ela habilitou-se, mas à revelia de Mariz que desaprovou a indicação, em aeroporto Castro Pinto coalhado de faixas de Dunga. Com isso, os principais chefes peemedebistas partiram para José Maranhão, líder histórico do partido e prontamente acatado por Ronaldo. Este registrou outros êxitos nessa eleição. Um deles o da vitória estadual (e nacional) do candidato presidencial Fernando Henrique Cardoso que, no Estado, somou 517.832 votos. O petista Lula ficou com 415.899, o peemedebista Orestes Quércia, cristianizado
pelo partido, com 56.407 sufrágios, Enéas Carneiro, do PRONA, com 44.088 e Leonel Brizola, do PDT, com apenas 15. 985 votos. Outro sucesso residiu na composição da Câmara Federal para a qual se elegeram Cássio Cunha Lima, o mais votado do pleito, com 157.609 votos, Gilvan Freire (57.566), Ivandro Cunha Lima, (57.547) e José Aldemir (32.657), todos ligados a Ronaldo. Na Assembleia, era esse o caso de Zenóbio Toscano, Carlos Dunga, Francisca Mota, Valdecir Amorim, Tião Gomes, Domiciano Cabral, Levi Olímpio, Antônio Ivo Medeiros, Tarcísio Telino e Gilbran Asfora. Ao se reconhecer o mais forte candidato ao Senado da República, Ronaldo realizou campanha rigorosamente partidária, dispensando o voto individual mediante o slogan – “no dia três vote nos três”. De acordo com a recomendação, o eleitorado deveria sufragar, além do candidato governamental, os dois postulantes senatoriais peemedebistas, eleitos dentro do seguinte quadro: Ronaldo Cunha Lima (PPR/PMDB/ PSC/PPS/PP/PSD/PRP/PSDB) – 517.832 votos Humberto Lucena (PPR/PMDB/PSC/ PPS/PP/PSD/PRP/PSDB) – 515.899 votos Raimundo Lira (PDT/PTB/PL/PFL/ PRN) – 381.186 votos Joaquim da Silva Neto (PT) – 135.834 votos Francisca Pereira Lopes Zenaide-Francis (PT/PSTU/PSB/PV/PCdoB) – 65.972 votos João Bosco Farias de Melo (PMN) – 47.471 votos João Nunes de Castro (PMN) – 45.898 votos(1). Entrementes, e sem se desmobilizarem, em face dos sucessos do primeiro turno, os Cunha Lima, uma vez mais liderados por Ronaldo, contribuíram para supremacia da
candidatura governamental peemedebista Antônio Mariz que suplantou a pedetista Lúcia Braga, por 781.349 a 538.947 votos, no segundo turno. REGOZIJO PEEMEDEBISTA E PRIMEIROS DISCURSOS Assumindo o Senado, em princípios de 1995, Ronaldo Cunha Lima regozijou-se com essa caudal peemedebista: Alegra-me vê-la assim porque na Paraíba o PMDB que venceu em 1990 é o PMDB vitorioso de 1994, é o PMDB vencedor de hoje, é o PMDB de próximas, novas e grandes vitórias. O PMDB que saiu de 6 para 24 Deputados Estaduais, de 17 para 103 Prefeituras. De 4 para 7 Deputados Federais. Que tem 3 Senadores e mantém o Governo do Estado, é o PMDB da unidade, da solidariedade, da austeridade e do desenvolvimento(2). Ao iniciar as atividades senatoriais, Ronaldo ainda recordava a dura batalha travada pela reabertura do Paraiban. Essa a razão de pronunciamento a respeito do fechamento de bancos oficiais determinado pelo Governo Federal, na Paraíba: “Em meu Estado, as cidades que possuem agências de bancos oficiais, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Nordeste são pólos que aglutinam interesses microrregionais e uma significante parcela da população. Essa população, em regra, é composta de pequenos agricultores que vivem à mercê dos parcos fomentos oficiais que são administrados por essas instituições financeiras. Não se deve aplicar a ortodoxia econômica, afeita a manuais, contra uma realidade social emergente, que implora por medidas práticas e definitivas para questões como geração de emprego e renda”(3).
Dados colhidos junto à seção de Informação da Secretaria do TRE, em João Pessoa. LIMA, Senador Ronaldo Cunha. “A Paraíba segue em frente” discurso proferido na sessão de 24 de abril de 1996, no Senado Federal. (3) Posição contrária ao fechamento de agências em bancos oficiais no Estado da Paraíba”, 9-2-95 in A Seu Serviço I. Brasília: Senado Federal, 1996, p. 13. (1) (2)
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A transposição das águas do São Francisco era um dos temas que RCL trazia consigo. Juntamente com os senadores Waldeck Ornellas e José Agripino, a preocupação ronaldeana consistiu em acelerar providências pelas quais de há muito se batia o senador pernambucano Marco Maciel: Queremos, então, apelar para o Poder Executivo, no sentido de imprimir ritmo mais acelerado na discussão e tramitação do importante Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Nenhuma ação concorrerá tanto para a concretização dos objetivos maiores do programa do Governo, de justiça social, de geração de emprego e de redução da miséria e das desigualdades quanto o Projeto Integrado de Transposição(4). Como a transposição não encerra(va) apenas pontuações técnicas e financeiras mas políticas, essa implicação não escapava a Ronaldo Cunha Lima: (...) ao mesmo tempo, queremos apelar às elites políticas do Nordeste para sua grande responsabilidade na condução desse projeto. O Nordeste tem pressa em superar suas deficiências básicas e em recuperar a distância e o atraso dos outros. É indispensável que cada Estado do Nordeste se convença de que, apenas unida, a região conseguirá progredir na velocidade do mundo de hoje, e de que o progresso de cada Estado nordestino repercutirá, positivamente, nos Estados vizinhos. UMA TEMÁTICA DIVERSIFICADA A circunstância de o senador Ronaldo se sentir à vontade em questões como enxugamento da máquina estatal e transposição do São Francisco evidencia sua versatilidade. Daí a diversificação da temática. Com efeito, sem quase faltar às sessões, repartiu a primeira secretaria da Câmara Alta com a frequência com que comparecia à tribuna. Tal o que lhe permitiu verter temas como maior e menor remuneração entre os servidores públicos, biodiversidade e desigualdades, ciência e tecnologia na Universidade Federal da Paraíba, Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), situação dos anistiados, exploração de petróleo no Brasil e Nordeste em face do Mercosul. E ainda, incentivos fiscais, prerrogativas do Senado Federal, indústria fonográfica, seguro desemprego e mercado de trabalho para deficientes físicos.
Alguns desses, tal a consistência, merecem consideração. O de 16 de março de 1995, abordando a disparidade de salários pagos aos servidores públicos do Brasil, onde a diferença chega a trezentas vezes, contra nove na França e três na Suiça, toca em um dos principais alimentadores de nossas desigualdades. Em face do problema, Ronaldo propôs limite de quarenta vezes a distância entre os maior e menor salários pagos no país(5). Para o Senador paraibano, as disparidades regionais também provinham do setor quaternário onde os dispêndios do orçamento da União e estatais concentram-se em mais de 50% no sudeste e menos de 10% no norte-nordeste. Corrigir tal desnível na área da pesquisa constituiu a principal recomendação do discurso de 10 de maio de 1995. Uma das preocupações de RCL residiu na intocabilidade da Petrobrás. Trabalhista convicto que, por essa razão, saudaria as obras do Presidente Vargas, na Tribuna do Senado, comunicou à Casa os entendimentos com a Presidência da República para que a Petrobrás não fosse privatizada, em nome da flexibilização do monopólio. A questão envolvia tal delicadeza que o representante paraibano a ela retornou, em 1996 e 1997(6). Pronunciamento dos mais oportunos foi o de junho de 1997, “sugerindo aos governadores do Norte/Nordeste e à SUDENE modificações urgentes na legislação que trata dos incentivos fiscais, para evitar que empresas instalem-se nessas regiões e após gozarem dos benefícios fiscais encerrem, em seguida, suas atividades”. Ele se referiu à Azaléia Calçados, de Campina Grande, que “(...) simplesmente resolveu encerrar as atividades, sem qualquer comunicação, como se isso não causasse transtornos sociais para a cidade, após o desemprego de quase 500 pessoas”(7).
tando, ainda, as taxas de analfabetismo e as modernas implicações do trabalho humano. Para o representante paraibano, sem embargo dos primeiros êxitos, o Plano Real não deveria constituir fim em si mas alavanca impulsionadora de programas de alcance social: A tese da procura incessante da estabilidade monetária como preferência excludente não nos parece apropriada para países com largos índices de pobreza e com uma economia tão diferenciada. É preciso que pari passu programem-se metas para uma visão mais ampla do desenvolvimento econômico. (...) O Brasil de hoje já não é o mesmo de 1990, e pode conviver, agora, com medidas concretas na área social, ao lado do proveitoso programa de estabilidade(8).
SOCIEDADE, RELIGIÃO E CULTURA Fiel às origens gremiais e trabalhistas, coube a Ronaldo Cunha Lima infletir, com firmeza, pela problemática social. Nesse particular, aplaudiu o Encontro Paraibano de Vigilâncias Sanitárias Municipais, realizado em Cajazeiras, analisou, em 1996, os dois anos do Plano Real, denunciou as ameaças que pairavam sobre a pecuária leiteira paraibana, e a situação dos servidores públicos comprimidos pela falta de aumento, comen-
Ao voltar-se para a Igreja da Teologia da Libertação, Ronaldo fazia a ponte com a cultura, inspiradora de discursos parlamentares sobre José de Anchieta, Carlos Castelo Branco, Castro Alves, Arnaldo Niskier, Cruz e Sousa e João Calmon. Se este último era ressaltado em prol da luta pela educação brasileira, e o catarinense Cruz e Sousa evidenciava-se, ao lado do mineiro Alphonsus Guimarães, como expoente do simbolismo, o jornalista piauiense fazia-se merecedor de emocionadas palavras(10).
Entrementes, a questão do trabalho, focalizada em publicações como a da jornalista Viviane Forrester e encíclicas papais, associava-se ao desemprego em face do qual o Estado não se deveria omitir. Ao assim tornar a posicionar-se, Ronaldo Cunha Lima não olvidava a posição da nova Igreja, datando daí pronunciamentos acerca dos arcebispos Dom Helder Câmara e Marcelo Pinto Carvalheira. Se o primeiro, ao completar noventa anos, era reverenciado como “Peregrino Evangelizador, Padre do Povo, revolucionário cristão, educador e também poeta” -, Pinto Carvalheira tornava-se encarado em perspectiva legitimamente Cristocêntrica, isto é, social: Na Diocese de Guarabira, Dom Marcelo soube enfrentar os problemas dos trabalhadores rurais e as questões, sempre presentes, dos problemas fundiários. A história da luta pela terra tem em Dom Marcelo uma expressão legítima na defesa dos oprimidos, com coragem e com equilíbrio, com firmeza e com prudência(9).
__________. “Ainda a questão das águas do São Francisco” in op. cit, p. 97. __________. “A relação entre a maior e a menor remuneração entre os servidores públicos”, 16-3-95 in A Seu Serviço I, cit., p. 16/19. (6) Pronunciamentos do senador Ronaldo Cunha Lima no Senado Federal, in 4 de agosto de 1995, 10 de julho de 1996 e 16 de julho de 1997. (7) “Incentivos Fiscais”, 3-6-97, in A Seu Serviço II – Atividade Parlamentar. Brasília: Senado Federal, p. 144. (8) “O Real e a necessidade de novas políticas de desenvolvimento”, 24-4-96, in A Seu Serviço II, cit., p. 68. (9) “Registro – A posse de Dom Marcelo Pinto Carvalheira como Arcebispo da Arquidiocese da Paraíba”, 23-2-96, in A Seu Serviço I, cit., p. 102. (10) “Homenagem ao jornalista Carlos Castelo Branco”, 22-6-95, in A Seu Serviço I, cit., p. 48 e “Parabenizando o Acadêmico Arnaldo Niskier por sua eleição para a presidência da ABL”, 12-12-97, in A Seu Serviço II, cit., p. 148. (4) (5)
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A mais importante intervenção cultural de Ronaldo, no Senado, verificou-se a 12 de novembro de 1998 e situou-se nessa linha. Tomou como base a desfiguração da língua portuguesa, afetada por estrangeirismos, de origem, sobretudo, inglesa. Partindo do princípio de que “A língua portuguesa, como forma oficial de expressão, constitui patrimônio cultural brasileiro e, por isso, incumbe ao poder público e à comunidade o dever de promovê-la e protegê-la”, o parlamentar acostou-se a colocações dos escritores Arnaldo Niskier e Rachel de Queiroz para denunciar o “bilinguismo emergente” desta última: A maioria dos povos faz questão de preservar seu idioma. Quando a possibilidade de deterioração se torna muito grande, os legisladores intervêm para tentar impedir que isso ocorra. É o caso da França, que editou a Lei nº 94.665, de 4 de agosto de 1994, buscando disciplinar e prestigiar o uso da língua francesa. No Brasil, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 2.895, de 1997, do eminente deputado Remi Trinta, dispondo sobre o emprego do idioma oficial brasileiro, cuja aprovação rápida seria valiosa colaboração ao restabelecimento de nosso prestígio linguístico(11). Demonstrando que, em substituição à antiga influência francesa, sobreveio a inglesa que inundou o idioma nacional de estrangeirismos nas áreas esportiva, jurídica, econômica, musical, informática e comercial, Ronaldo assim reconstituiu o cotidiano do brasileiro médio: Fui ao freezer, abrir uma coca diet; e sai cantarolando um jingle, enquanto ligava meu disc player para ouvir uma música new age. Precisava de um relax. Meu check up indicava stress. Dei um time e fui ler um best-seller no living de meu flat. Desci ao playground; depois fui fazer o meu Cooper. Na rua vi novos outdoors e revi os velhos amigos do footing. Um deles comunicou-me a aquisição de uma nova Maison, com quatro suítes e até me convidou para o open house. Marcamos, inclusive, um happy hour. Tomaríamos um drink, um scotch, de preferência on the rocks. O barman, muito chic, parecia um lord inglês. Perguntou-me se eu conhecia o novo point society da cidade: O Time Square, ali no Gilberto Salomão, que fica perto do Gaf, o La Basque e o Baby Beeef, com serviço a la carte e self service. Preferi ir ao Mc Donald’s para um lunch; um hambúrguer com milk Shake. Dali, fui ao shopping center, onde vi lojas bem brasileiras, a começar pelas Lojas (11) (12)
Americans, seguidas por Cat Shoe, Company, Le Postiche, Lady, Lord, Lê Mask, M. Officer, Trunc’s, Dimpus, Bob’s, Ellus, Levi’s, Masson, Mainline, ickman, Smuggler, Brummel, La Lente, Body for Sure, Mister Cat, Hugo Boss, Zoomp, Sport Center, Free Córner e Brooksfield. Sem muito money, comprei pouco: uma sweater, pra mim, e um berloque para a minha esposa. Voltei para casa, ou, aliás, para o flat, pensando no day after, o que fazer? Dei boa noite ao meu chofer que, com muito fair play, respondeu-me: Good nigth. Senhoras e senhores, muito obrigado, ou, se preferirem, thank you very much!”. Vasado em linguagem leve e irreverente, o pronunciamento encontrou imediata receptividade no amazonense Bernardo Cabral para o qual o paraibano convertia-se em “um esbanjador de talentos e um indisciplinado do espontâneo”. Mesmo circulando à vontade junto ao Palácio do Planalto, Ronaldo não abdicava de condição visceralmente peemedebista. Tal o que o levou a dissentir da reeleição de Fernando Henrique Cardoso, quando do levantamento da segunda candidatura deste. Ressabiado com o fracasso da candidatura Quércia, em 1992, o PMDB praticamente fechou com FHC. Menos Ronaldo que, adepto de postulação partidária, explicou-se, pessoalmente, ao Presidente. RCL somente acedeu na reeleição fernandohenriquista, mais à frente, quando de jantar, no Palácio do Planalto, dos senadores Humberto e Ronaldo com S. Excia. E o PMDB fernandista – Jader Barbalho, Gedel Vieira, Michel Temer e Moreira Franco. NA PRESIDÊNCIA DA COMISSÃO DO CÓDIGO CIVIL Foi com a presidência da Comissão Especial, incumbida de examinar o novo Código Civil, que Ronaldo Cunha Lima culminou sua passagem pelo Senado da República. A questão não era apenas transcendental, mas delicada. Preliminarmente montado em 1902, embora sua promulgação datasse de janeiro de 1917, o Código Civil brasileiro tivera seu rígido patriarcalismo, individualizante e quiritário, xecado pela urbanização e evolução das novas forças produtivas da sociedade. O descompasso viu-se observado por inúmeros juristas. Em 1974, o Presidente Ernesto Geisel dispôs-se a equacionar o problema. Comissão Revisora de especialistas, supervisionada pelo jurista Miguel Reale elaborou consistente “Exposição de Motivos do Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”.
Encaminhada ao Congresso, um dos fatores de retardamento da Exposição consistiu na Constituição de 1988 que atropelou vários de seus dispositivos. Ronaldo, todavia, agindo com vivacidade, invocou o Direito norteamericano para proclamar a supremacia da Constituição. Tal se verificou entre 1995 e 1997, quando RCL presidiu Comissão Especial destinada a examinar o projeto de Lei nº 118, de 1984, que instituiu o Código Civil. Seu vice-presidente era o senador José Ignácio Ferreira e relator geral o jurisconsulto baiano Josaphat Marinho, também senador. Os relatores parciais eram os senadores Bernardo Cabral (Parte Geral), Luiz Alberto Oliveira Andrade Vieira (Direito das Obrigações), José Fogaça (Direito da Empresa), Roberto Requião (Direito das Coisas), Luiz Ignácio Ferreira (Direito da Família) e Espiridião Amim (Direito das Sucessões). A solidez da proposta subscrita pelo professor Miguel Reale não inibiu Ronaldo e seus companheiros de Senado. Da parte do presidente avultou a preocupação de acelerá-la sobretudo no campo de sua especialidade que é(ra) o Direito de Família. Dessa maneira, RCL não exerceu, passivamente, o comando da Comissão Especial. Se a figura central desta era a do relator, constitucionalista baiano Josaphat Marinho, como um dos luminares do Direito Público brasileiro, Ronaldo não lhe ficou a dever. Essa a razão por que, quando do encaminhamento da matéria para discussão do Senado, a 23 de novembro de 1997, o senador Bernardo Cabral louvou a ação da presidência(12). Nessa oportunidade, o representante paraibano comparou a Constituição Federal com o Código Civil “porque um protege o cidadão em suas relações políticas de garantias fundamentais e o outro protege a vida, da concepção ao além túmulo”. E alinhou a seguir as inovações do documento. Este “substituiu o estilo anterior paternalista e masculino pela ficção de uma sociedade plúrima e integrada. Não se fala mais em direitos do homem mas do ser humano. Personalidade não sofre mais limitações. (...) Nas relações contratuais inova-se o pensamento anterior à medida que se substitui o absolutismo do contrato pelas condições de sua execução. É a parte do negocial ou negócio jurídico, ou a prevalência dos contratantes sobre o contrato”. Para efetivação de alguns desses princípios, o senador Ronaldo recorreu à habitual presença de espírito. Arrimado nos códigos alemão, suíço e francês, tanto se empenhou em prol da emancipação da mulher que,
“Em defesa da Língua Portuguesa”, como pronunciamento no Senado a 12-12-98 e plaqueta de Brasília: Senado Federal, 1998, p. 3. Cf. Aparte do senador Bernardo Cabral a LIMA , senador Ronaldo Cunha. In Projeto de Lei que instituiu o novo Código Civil Brasileiro”, sessão de 12 de novembro de 1997 do Senado Federal, in A Seu Serviço II, cit., p. 239.
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quando do levantamento da premissa de união estável assegurada pela mulher legítima, replicou não conhecer mulher falsificada... No plano institucional, esse mesmo pensamento induziu-o a repelir a deserdação, pelo pai, da filha que vive em casa, em razão da prática de desonestidade, com um pequeno soneto: O que é desonestidade Da filha que vive em casa? É perder a virgindade Antes da data que casa?(13) NO COTIDIANO DE UM SENADOR O esforço desenvolvido por RCL em prol do novo Código Civil – que tanto lhe ficou a dever – não se limitou ao interior do Senado. Atento à importância da sociedade civil, na formulação do diploma, coube-lhe percorrer, praticamente, todo país, para realização de conferências nas universidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza, Belém, Salvador e João Pessoa, entre dezenas de cidades. O ponto de partida teve lugar na Universidade Nacional de Brasília(UNB). Tratava-se de algo equivalente ao que, como poeta, fizera por Augusto dos Anjos junto às associações culturais de todo país. Uma dessas intervenções ocorreu na Academia Brasileira de Letras. Bem entrosado com todos os colegas de Senado, entre os quais José Agripino, Guilherme Palmeira, Jader Barbalho, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Antônio Carlos Valadares e José Sarney, para quem “a poesia de Ronaldo e diamante com açúcar” -, RCL revelou-se diligente primeiro secretário do Senado Federal, entre 1996 e 2000. Sua reeleição equivaleu a consagração, visto haver obtido 80 dos 81 votos. Só não logrou unanimidade por não haver votado em si próprio. No exercício dessas funções revelou-se particularmente ativo. Modificou a editora do Senado a que ampliou, mediante introdução do sistema de inter-leges. Modernizou a Biblioteca, dotada de sistema computadorizado e linguagem Braille, para publicações e documentos. Procedeu, ainda, a intensa divulgação do Código do Consumidor e Direito da Criança. A principal realização de Ronaldo como
primeiro secretário do Senado residiu em implementar, juntamente com o Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora, as três coleções que assinalaram os 500 Anos do Descobrimento do Brasil. Foi assim que se concretizaram as séries “Biblioteca Básica Brasileira”, “Brasil 500 Anos” e “O Brasil visto por estrangeiros”. O objetivo consistiu em repensar o país, através dos principais autores. Nesse particular, a Biblioteca Básica vinha com, entre outros, Joaquim Nabuco, Pandiá Calógeras, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna, Fernando Azevedo e Alberto Torres. “Brasil 500 Anos” revelava os padre Antônio Vieira, Djacir Menezes, Barão do Rio Branco, Juscelino Kubitscheck, Luiz Edmundo e Arthur César Ferreira Reis. Pela terceira coleção emergiram, na série Viajantes, Daniel Kidder, o casal Louis Agassiz, Richard Burton, Oscar Canstatt, Augusto de Saint Hilaire e o famoso cônsul inglês no Rio de Janeiro, Ernest Hambloch(14). AVC, ESPÍRITO PÚBLICO E IMUNIDADES Intensamente dedicado a esses empreendimentos, a rotina ronaldeana foi quebrada a 30 de abril de 1999, quando de acidente cardiovascular, no próprio apartamento. Com exames médicos atualizados, Ronaldo encontrava-se tranquilo, assistindo a televisão, quando principiou a experimentar vômitos, acompanhados de fortes dores de cabeça. A eventual companhia do irmão Renato evitou o pior, na medida em que este, em articulação telefônica com o sobrinho Cássio, em Campina Grande, providenciou os primeiros socorros a quem acusava reações na perna, afetada pelo AVC. A assistência pessoal do sobrinho Flávio Romero também se revelou oportuna. Levado às pressas para o hospital Santa Lúcia, de Brasília, Ronaldo, já então cercado de familiares, foi transferido para o Instituto do Coração em São Paulo onde lhe valeu o acompanhamento do médico Milberto Scaff e enfermeiro Jesus. Em face do nome deste, o poeta não perdeu a bonomia: “Jesus?! Então eu estou no céu porque já morri”...(15). A recuperação, conquanto penosa, foi rápida. Recebendo alta do INCOR, a 26 de março, Ronaldo Cunha Lima retornou a Brasília para exames de avaliação e última etapa do tratamento. Esta compunha-se de exercícios de fisioterapia, para recuperação
do lado esquerdo do corpo, atingido pelo acidente vascular cerebral. Em entrevista do início de 2006, indagamos se o AVC não proveio do conjunto de emoções adensadas pelas dificuldades do governo, affaire do Gulliver, eleições e episódios do Campestre. Sem pestanejar, o ex-Governador replicou, acostando-se ao pensamento do filho Cássio: “Ronaldo não resistiu à traição”(16). A 9 de novembro de 1999, após período de substituição pelo suplente José Carlos da Silva Júnior, Ronaldo retornou ao Senado onde colegas lhe apresentaram as boas vindas. As sequelas de quem se apresentava em cadeira de rodas, com o braço esquerdo na tipoia e perna parcialmente imobilizada, eram visíveis, mas o espírito continuava o mesmo. A cordialidade e o espírito público do já agora hemiplégico foram fundamentais para a recepção: os senadores estavam particularmente lembrados das jornadas de março de 1998, em que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado discutira a emenda constitucional sobre a extinção da imunidade parlamentar nos casos de crime comum. De acordo com a proposta ronaldeana, caberia ao Tribunal do Júri julgar todos os crimes dolorosos contra a vida, “independentemente de quaisquer privilégios ou prerrogativas de outro foro”. O Senador paraibano sensibilizou o plenário, quando invocou seu próprio exemplo, com apelo aos companheiros da Comissão de Constituição e Justiça para que lhe retirassem os privilégios do foro e prerrogativas da função, a fim de que fosse submetido à Justiça, como um cidadão comum. Patético, acrescentou: - Só assim tenho a certeza de que reencontro minha paz. Peço aos meus companheiros a paz. Porque eu mereço a paz. A proposta de Ronaldo Cunha Lima era do seguinte teor: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, sem prévia licença de sua Casa. Nos crimes comuns, o processo será instaurado independente de licença prévia até a conclusão da instrução criminal, quando os autos serão remetidos à Casa respectiva para autorizar o julgamento, podendo o acusado renunciar à imunidade”(17).
LIMA, senador Ronaldo Cunha. “O Projeto do Código”, com remissão ao Correio Brasiliense de 26 de junho de 1995, in A Seu Serviço, cit., p. 213/215. Alguns livros das séries cujos autores aparecem no texto são Minha Formação, A Política Exterior do Império, Os Sertões, Capítulos de História Colonial, Instituições Políticas Brasileiras, A Cultura Brasileira e A Organização Nacional na “Biblioteca Básica Brasileira”. De Profecia e Inquisição, O Brasil no Pensamento Brasileiro, Efemérides Brasileiras, Porque Construí Brasília, O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis e A Amazônia e a Integridade Nacional na série “Brasil 500 Anos”. Reminiscências de Viagem e Permanência no Brasil, Viagem ao Brasil, Viagem ao Rio de Janeiro e Morro Velho, Brasil: Terra e Gente, Segunda Viagem a São Paulo e ainda Quadro Histórico da Província de São Paulo e Sua Majestade o Presidente do Brasil, um estudo do Brasil constitucional 1889/1934, na coleção “O Brasil por estrangeiros”. (15) Entrevista com o senador Ronaldo Cunha Lima, 27 de novembro de 2005, praia de Camboinha, 5 de janeiro de 2006. (16) Entrevista com Cássio Cunha Lima: “A fogueira esta queimando” in A Semana nº 4. J. Pessoa: 4 a 11 de junho de 1999, p. 15. A versão sobre o AVC do próprio Ronaldo encontra-se em entrevista a Agnaldo Almeida – “Volto em clima de paz” in A Semana nº 21, J. Pessoa: 1 a 8 de outubro de 1999, p. 14. (17) “Ronaldo – julgamento autorizado pela Casa” in Jornal do Senado. (13) (14)
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Ronaldo pretendia ainda que a ausência de deliberação sobre o pedido de licença por prazo superior a 120 dias de recebimento, implicasse deferimento da solicitação. Em seu entendimento, trata-se de admitir mudança na concepção normativa vigente sem olvidar o princípio ao longo da história das instituições parlamentares. RONALDO E O EFEITO VINCULANTE O ponto culminante da passagem de Ronaldo Cunha Lima pelo Senado Federal sobreveio com as intervenções em torno do chamado efeito vinculante, condensado em livro de sua autoria, prefaciado pelo ministro Sepúlveda Pertence(18). A iniciativa de Ronaldo tomou no Senado, o número 54 de 1995, para oferecer ao parágrafo 2º do artigo 102 da Constituição Federal a seguinte redação: § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, após simuladas, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. Acolhendo sugestão do relator, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal optou por emenda substitutiva assim redigida: § 2º As decisões definitivas de mérito, sumuladas, do Supremo Tribunal Federal, se este assim o declarar, terão eficácia con-
tra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. De pronto, a matéria motivou debates junto a organismos como Conselho Federal da OAB, Presidência do Superior Tribunal Federal e Associação dos Magistrados do Brasil, Procuradoria Geral da República, Advogado Evandro Lins e Silva, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, e novo Presidente do Superior Tribunal Federal, ministro José Celso de Mello Filho. Discutiram-se, então, os termos da proposta que pretendia oferecer sentido uniforme de prestação jurisdicional ao país, consoante as decisões da mais alta Côrte de Justiça, evitar transtornos como o caso dos 147% do aumento dos aposentados, que recebeu decisões diferentes, mesmo após o pronunciamento do Superior Tribunal Federal, e tornar a decisão reiterada e sumulada uma norma com plenos efeitos, suscetíveis de mudança perante o Superior Tribunal Federal, ou por meio de lei. Na Paraíba, uma das apreciações sobre a matéria proveio do professor e advogado Harrison Targino para o qual, secundando a ideia do proponente, o instituto teria como finalidade desafogar o STF, harmonizar as decisões judiciárias do país e permitir a igualdade entre os recursos processuais e materiais(19). As colocações de Harrison ajustavam-se às de Ronaldo que, a essa altura, sustentava
ingente batalha contra os que, entrincheirados em formalismo jurídico e corporativo, consideravam que o Efeito Vinculante traria o engessamento das decisões judiciárias, pela supressão das liberdade destas, nas instâncias inferiores. Deslocando-se do Direito austro-alemão e francês de sua predileção para o norteamericano das inflexões da Suprema Corte, Ronaldo contestou um a um esses argumentos. Coube-lhe enfatizar que, nos termos da jurisprudência norteamericana, “a Constituição é o que o Supremo diz que ela é”. Graças, em grande parte, a seus esforços, o Efeito Vinculante tornou-se instituto vitorioso no Direito Constitucional brasileiro. Acolhendo versão mitigada, o Senado Federal assim o formulou, para incorporação à Constituição Federal: Art. 20... § 2º Terão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, as decisões proferidas, pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo e as definitivas de mérito, se o Supremo Tribunal Federal assim o declarar, por voto de dois terços de seus membros(20). g
LIMA, senador Ronaldo Cunha. Efeito Vinculante. Brasília: Senado Federal, 1999. No Prefácio, o ministro Pertence considera o instituto fundamental “para aliviar a Corte da asfixia a que a tem submetido a multiplicação sem conta de recursos ociosos, em torno de questões mortas” e ainda “com efeito político, eminentemente democrático, de impor o tratamento isonômico aos conflitos entre o cidadão e o Poder Público”. (19) TARGINO, Harrison. “Efeito vinculante” in “Jus”, como coluna de Painel. Campina Grande: 27 de julho de 1997. (20) LIMA, senador Ronaldo Cunha. Efeito Vinculante. cit., p. 23. (18)
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CIÊNCIA POLÍTICA
DISCURSO DE AGRADECIMENTO(*) Paulo Bonavides
Exmo. Sr. Marcus Vinícius Furtado Coelho, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil! Minhas Senhoras e Meus Senhores! Ao receber tão penhorante homenagem deste Congresso, pela qual me confesso sumamente grato, quero expressar a Vossa Excelência, Caro Presidente, minhas efusivas congratulações por haver realizado em sua gestão uma das mais importantes Conferências da advocacia brasileira desde que a Ordem as instituiu. A XXII Conferência Nacional da OAB chega ao seu termo num dos momentos de maior gravidade nos fastos do nosso presidencialismo desde a derrubada da monarquia. Com efeito, o sistema político da nação passa por uma deplorável crise de decadência que abala as instituições representativas. Há erosão de legitimidade dos Três Poderes em seus mecanismos de ação e governo, rodeando de angústias e incertezas a cidadania, que clama por reformas e encara com descrença e desconfiança a classe política, os partidos e os governantes, responsáveis da crise e do provável terremoto institucional. A coluna vertebral do corpo representativo nas Constituições da liberdade é formada de dois princípios cuja ausência determina o esfacelamento de toda a estrutura que garante e limita poderes na organização democrática do Estado constitucional. O primeiro princípio é o da liberdade de imprensa e dos meios de comunicação; o segundo, o princípio da moralidade pública dos governantes e governados, sintetizado no combate à corrupção e à injustiça. Acerca do primeiro invoco a autoridade ímpar de Rui Barbosa; mas antes de fazê-la explícita nesta oração cívica de agradecimento, faz-se mister assinalar que estamos debaixo da ameaça de cair na escuridade histórica duma nova escravidão, tão funesta quanto a do Império ao longo do século XIX.
A cruzada da Abolição elevou homens do espírito e grandeza de José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Castro Alves, Rui Barbosa e tantos outros à estatura de libertadores duma raça oprimida e martirizada por trezentos anos de cativeiro. Feria-se então a luta social da senzala contra a casa grande, do escravo contra o senhor de engenho, do índio contra o genocídio. O Nordeste da cana de açúcar era um dos palcos daquela tragédia que a herança maldita do colonialismo representara. Ontem a escravidão negra, a escravidão duma raça; hoje a escravidão branca, a escravidão do pensamento, que ameaça, vez por outra, instalar-se no país. Trata-se de escravidão, se vier a ocorrer, tão perniciosa, tão cruel, tão liberticida quanto a anterior por extinguir na sociedade a livre expressão das ideias e sujeitá-la à perda dos seus foros constitucionais. Desde 1988, a Carta Magna da restauração constitucional afiança ao povo voz e presença nas tribunas do pluralismo, onde a censura e o cárcere já não arredam os publicistas e o elemento popular dos órgãos e meios de comunicação. Por essa via é que a democracia republicana respira o oxigênio da liberdade, forma opinião, aprova ou condena políticas de governo, levanta o debate sobre temas nacionais, critica e julga as instituições. A palavra livre arejando as tribunas da imprensa é algo de que a nação não pode prescindir. Ao recebermos o novo galardão honorífico que a vossa generosidade nos outorgou é para o Patrono da advocacia brasileira que nos volvemos trasladando para este discurso as imperecíveis considerações morais e pedagógicas acerca da liberdade de imprensa. Veja-se pois a eloquência inexcedível com que Rui parecia definir o momento de sombra e aflição que ora, na desventura da estagnação, no tombo da economia, no declínio do desenvolvimento, amargura a alma
Rui Barbosa, Campanhas Jornalísticas, 3ª edição, outubro de 1968, Livraria Editora, São Paulo, pág. 35. Rui Barbosa, ob. cit., pág. 35 3 Rui Barbosa, ob. cit., pág. 33 1 2
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do povo e arrefece a fé nos valores da nação. Disse o egrégio baiano, taxativamente, ao propugnar a liberdade de imprensa: “Se instituirdes a inquisição da palavra escrita, o que tereis feito é banir do jornalismo os homens de alma, as penas independentes, os caracteres ilibados, os escritores mais capazes. Ficaria a ralé da venalidade, os pensionistas das verbas secretas, os encostados dos ministérios, os parasitas do Tesouro.”1 E a seguir com o mesmo talento e energia verbal de um Marco Túlio na tribuna do senado romano, proclamava o príncipe da oratória nacional: “Deixai a imprensa com as suas virtudes e os seus vícios. Os seus vícios encontrarão corretivo nas suas virtudes.”2 Prosseguindo: “(...) Sou pela liberdade total da imprensa, pela sua liberdade absoluta, pela sua liberdade sem outros limites que os do direito comum, os do Código Penal, os da Constituição em vigor. A Constituição imperial não a queria menos livre; e se o Império não se temeu dessa liberdade, vergonha será que a República a não tolere. Mas, extremado adepto como sou, da liberdade, sem outras restrições, para a imprensa, nunca me senti mais honrado que agora em estar ao seu lado; porque nunca a vi mais digna, mais valorosa, mais útil, nunca a encontrei mais cheia de inteligência, de espírito e de civismo, nunca lhe senti melhor a importância, os benefícios, a necessidade. A ela exclusivamente se deve o não ser hoje o Brasil, em toda a sua extensão, um vasto charco de Lama.”3 Também às vésperas da queda do Império, no auge da campanha da Abolição escreveu Rui que o Brasil estava bloqueado pelo mundo. Citava a frase de Laboulay proferida no Congresso Abolicionista de 1867.4 A mesma expressão do insigne publicista francês do século XIX se aplica com propriedade em nossos dias quando vemos
a nação novamente bloqueada pelo mundo. As determinantes morais e medulares desse segundo bloqueio procedem da corrupção, do crime, da violência, do quebrantamento dos direitos humanos fundamentais. Aí está o espectro da crise. O Brasil é país injusto. Nada deprime tanto uma nação quanto a injustiça porque quem diz injustiça diz também corrupção, desigualdade, opróbrio. A injustiça, associada à corrupção, é o flagelo de todos os regimes, o carcoma de todos os governos, a larva de todas as crises que perfuram as instituições e destroem as células e os tecidos mais nobres da cidadania. No Diálogo da Justiça, Imagem da Vida Cristã, tomo I, um dos melhores clássicos da língua, Frei Heitor Pinto, companheiro de Camões no infortúnio, escreveu palavras que não envelheceram, que servem de lição a todas as repúblicas onde os foros da democracia e da liberdade constitucional são atraiçoados. Disse o egrégio frade dos jerônimos: “A corrupção, que tem um corpo sem alma, tem o povo sem justiça; porque faltando ela alevanta-se a dissensão, e cai por si a concórdia; falta a liberalidade e cresce a cobiça; vive a traição e é sepultada a lealdade; ensenhoreia-se a força e é abatida a paz; é atrevida a mentira e anda acovardada a verdade; anda solto o apetite e jaz presa em ferros a razão; prevalecem os maos, e são oprimidos os bons; e finalmente entram de tropel os vícios e são destruídas as virtudes. Porque assim como a justiça é triaga contra a peçonha dos vícios, assim a injustiça é cutelo das virtudes.”5 Em suma, com a Constituição, a liberdade, a salvaguarda da democracia, a governabilidade e a paz social hão de prevalecer. Mas, sem a Constituição seremos unicamente a república do medo, a nação dos golpes de Estado, das ditaduras, da discórdia, da luta de classes, das gerações sacrificadas. Por conclusão, quero render homenagem a baluartes da democracia e da na-
cionalidade nos fastos da advocacia, da liberdade e da consolidação do regime constitucional, a saber: A Evandro Lins e Silva e Heleno Fragoso, Patronos desta Conferência. A Sobral Pinto, Raimundo Faoro e Raimundo Pascoal Barbosa, três advogados de bravura profissional nas sombrias quadras da ditadura. A Goffredo Teles Junior, autor da Carta aos Brasileiros. A Ulysses Guimarães, o formulador da Constituição-cidadã e a Bernardo Cabral, o heróico Relator da Constituinte. A Miguel Seabra Fagundes, memorável nos anais da ética forense6. A Luiz Pinto Ferreira, um dos fundadores, no continente, do Instituto Ibero-Americano de Direito Constitucional. E, por derradeiro, a Jorge Carpizo, mexicano, cujo trespasse enlutou as letras constitucionais da América Latina. Todos eles hão de perdurar para sempre na memória agradecida dos constitucionalistas do Brasil porque foram fiéis à Constituição, à Federação, à república, e à democracia das liberdades públicas. Minhas Senhoras e Meus Senhores! Mais uma vez minha gratidão pela homenagem que me fizestes em evento tão memorável qual o desta XXII Conferência Nacional dos Advogados do Brasil. Minhas Senhoras e meus Senhores, muito obrigado! (Discurso de agradecimento à homenagem que foi prestada ao orador na XXII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 23 de outubro de 2014.) Alguns excertos dessa oração de tão viva atualidade vão reproduzidos a seguir: “Cumpre, para elementar valoração da vida pública, enfrentar a prática da corrupção. A principiar pelas cúpulas governamentais e burocráticas, no sentido de extinguir, ou, pelo menos, reduzir a um mínimo a ocorrência dos delitos contra o patrimônio público, de tráfico de influência, e , em suma, de todas as diferentes tipificações penais relacionadas com a probidade no exer-
cício das funções de governo em qualquer dos seus ramos (executivo, legislativo e judicial) e, nestes, em quaisquer gradações de hierarquia.” Na exposição histórica acerca da corrupção que tem assolado o Brasil, Seabra Fagundes não poupou a época de D. João VI, quando fomos Reino Unido a Portugal e Algarves, mas cobriu de louvores os dois Reinados, escrevendo a esse respeito: “O Brasil, no entanto, erigido em estado por uma elite autóctone, de alto teor pelo idealismo, pelo valor e pela competência, superaria essas fases e viveria sob os dois Reinados, e, sobretudo, sob a Regência e sob D. Pedro II, num clima de governos decentes, voltados para a consolidação da unidade pátria e o progresso comum.” Em seguida, com a mesma inteireza e insuspeição, prossegue o conspícuo advogado e jurisconsulto: “Durante o Império, contribuíram para que a Administração fosse poupada a escândalos, não somente a grandeza moral dos estadistas que fizeram a Indepedência e consolidaram o Estado brasileiro, como a presença austera do segundo Imperador, a impor, mediante atos oficiais, comportamento probo na gestão da coisa pública, e a oferecer exemplo pessoal de comedimento nas próprias despesas da Coroa.” Segue-se a nota nº4 em que Seabra Fagundes conclui suas considerações acerca da corrupção no Império, escrevendo: “4. Nos Conselhos à Regente, destinados à Princesa Isabel quando da sua última viagem ao exterior, sugeria Pedro II, com sutileza, não se majorassem em sua ausência, as dotações da Família Imperial. Temeroso, ao que parece, de tendência reivindicatória do Príncipe Consorte.” (Miguel Seabra Fagundes, Instrumentos Institucionais de Combate à Corrupção, Tese 14, X Conferência Nacional da OAB, Recife, 1984, págs. 7, 3 e 11). g (*) Discurso com que agradeceu a homenagem que lhe foi postada em 23 de outubro de 2014, na sessão de encerramento da XXII Conferência Nacional da OAB, no Rio Centro.
Rui Barbosa, ob. cit., pág. 13 Frei Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã, vol. I, 7ª edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1952, pág. 147. 6 Com efeito, Miguel Seabra Fagundes, o primaz da ética na advocacia, precisamente há 30 anos ocupava no Recife a tribuna da X Conferência Nacional da OAB, para desenvolver, em breves considerações históricas, a análise do que há sido a corrupção no Brasil desde D. João VI até às vésperas da reconstitucionalização do País em 1988, quando a ditadura já não pôde sustentar o seu tenebroso regime de exceção. 4 5
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EDUCAÇÃO
VIOLÊNCIA NA ESCOLA: GRANDE DESAFIO NA “PÓS-MODERNIDADE” Marinalva Freire da Silva
O tema violência escolar tem sido muito destacado nos meios de comunicação, nos dias atuais. É um tipo de violência muito preocupante como os demais, que tem se transformado em um grande problema pedagógico. Certamente, a violência não é um fenômeno social recente. Entretanto, é possível afirmar que suas manifestações se multiplicam, bem como os atores nela envolvidos. A novidade consiste na multiplicidade de formas que assume na atualidade, algumas muito graves, e sua crescente incidência chega a configurar o que se pode chamar de uma “cultura da violência”, assim como o envolvimento de pessoas cada vez mais jovens no cenário. No Brasil, a violência tem alcançado as escolas de maneira preocupante para pais e educadores. Não existe uma violência, senão uma multiplicidade de atos violentos cujas significações devem ser analisadas a partir das normas, das condições e dos contextos sociais, variando de um período histórico a outro. Não podemos negar que se trata de um problema da teoria social e das práticas políticas, pois na história da Humanidade tem-se revelado em manifestações individuais e coletivas. A violência é considerada como parte da própria condição humana, surgindo de modo peculiar conforme os arranjos societários de onde se originam. A violência, portanto, pode ser definida como o fenômeno que se manifesta nas diferentes esferas sociais, seja no espaço público, seja no espaço privado, é apreendida de forma física, simbólica, de acordo com o pensamento marxista. Nesse sentido, Candau (2001: 104) argumenta: Para que haja violência é preciso que a intervenção física seja voluntária [...]. A intervenção física [...] tem por finalidade destruir, ofender e coagir. [...] A violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de maneira imediata o corpo de quem sofre. É indireta quando opera através de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra [...]. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: uma modificação prejudicial do estado físico do indivíduo ou do grupo que é alvo da ação violenta.
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A violência consiste em qualquer agressão física contra seres humanos, cometida com a intenção de lhes causar dano, dor, sofrimento. As agressões são consideradas, com frequência, atos de violência. É comum falar-se também de violência contra certa categoria de coisas, sobretudo, a propriedade privada. A intenção de ferir, ofender, atingir de forma deliberadamente negativa o outro, seria um constituinte de violência, porém não o suficiente para sua caracterização. A atenção dispensada à agressão física é muito questionada por muitos, considerando-se outras formas de relações agressivas quanto à mecanização e à industrialização da violência, como as que se dão em larga escala, as guerras modernas, por exemplo. Outro constituinte atualmente questionado e tradicionalmente referido pelo senso comum é a violência como um ato individualizado, pautado por psicopatias, dirigido contra outro, causando às vítimas sofrimento, dor e inclusive morte. Considerar que muitos agressores não se sentem culpados ou responsáveis por suas ações, que são treinados ou socializados, de forma intencional ou por modos de vida, para serem violentos, desloca a ação preventiva para o campo das relações sociais coletivizadas, focalizando não indivíduos apenas, mas grupos, comunidades e organizações. Se violência não envolve necessariamente uma agressão física no confronto direto de algumas pessoas com outras, então a distinção entre esta e outras formas coercitivas de infligir danos, dor e morte fica enevoada. Uma política que, deliberada ou conscientemente, conduza à morte de pessoas pela fome ou doença pode ser qualificada de violenta. A noção de violência está sempre relacionada a uma referência externa. Ela é comumente representada por atos exercidos pelos outros ou por fatos externos, do lado de fora de nossas casas, escolas, como nas ruas, na periferia das cidades e entre os cidadãos econômica e culturalmente marginalizados. Pretendemos que a violência esteja distante de nós. Todavia, essa ideia de violência é apenas a faceta
visível, pois ela está presente também do lado de cá, dentro de nossas casas, nossas escolas e de nós, pelo que não há como ignorar esta questão crucial posto que, cotidianamente, somos parte dela. Como podemos observar, não é fácil definir o que entendemos por violência. Diferentes abordagens foram realizadas ao longo dos últimos anos por filósofos, psicanalistas, cientistas sociais, teólogos, políticos entre outros estudiosos. De modo geral, os meios de comunicação e o senso comum associam a violência à agressão física e à criminalidade; somente se preocupam com o tema quando causa grande impacto social, conforme temos acompanhado em várias partes do Brasil e do mundo. Na concepção de Sposito (1998: 60), “violência é todo ato que implica a ruptura de um nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a possibilidade de relação social que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo conflito”. Lamentavelmente, a sociedade do mundo capitalista como o nosso, valoriza o homem pelo que ele tem, pode oferecer; o consumo, este monstro insaciável, somente valoriza o que é material, palpável, faz do ser humano objeto exposto à venda através da exploração da mão de obra; valemos o quanto pesamos; não temos tempo para o outro, a corrida pelo ouro é assustadora; o ser humano é descartável. Amor, o que é isto? Para que serve? Não há tempo para o amor, para o diálogo, ninguém ajuda ninguém. As pessoas se unem pelas conveniências. Há uma inversão total de valores. As crianças não têm mais infância saudável, não têm muito contato com os pais, faltam-lhes o carinho, a compreensão, o ombro amigo. Em casa assistem a constantes conflitos e agressões entre os pais. Crescem desamadas, vivendo as situações conflitivas da família, perdem a autoestima, o gosto pelo estudo, vão à escola com uma carga afetiva intensa e lá chegando, basta um olhar de um coleguinha para praticarem agressões. Agridem os colegas, os professores, os que trabalham na escola; em casa
também agridem irmãos quando os têm; e ao alcançarem a idade de 11 a 12 ou 13 anos, buscam refúgio nas drogas... Sabemos que o fenômeno da violência não é problema do século XXI, vem desde os tempos remotos, conforme dissemos. Basta lermos a história das antigas civilizações para constatarmos os indícios de atos violentos pela sobrevivência, pelos ritos de passagem, próprios da cultura da cada povo da época. Mas a violência não surge do nada, tem suas causas como as têm todos os fenômenos. “Violência gera violência”, diz o ditado popular. O combate à violência não deve ser feito simplesmente punindo ou em campanhas por entidades religiosas e políticas para atingir a consciência de toda sociedade. É mister que este processo seja amparado por uma boa organização social. Candau et al. (2001) apresenta oito tipos de violência tanto no âmbito físico, moral como psicológico: 1) violência simbólica: a partir da utilização de imagens que incitam preconceitos; 2) violência institucional: relacionada às ações de mutilação do corpo; 3) violência urbana: inclui os vários tipos de crime presentes nas cidades, como sequestro, assaltos, entre outros; 4) interferência de grupos externos: está relacionada ao mercado do narcotráfico; 5) depredação escolar: está relacionada à danificação do patrimônio escolar: 6) brigas entre alunos e suas agressões: ocorre quando há desavenças entre os alunos; 7) agressões entre adultos: ocorre quando há desavenças entre os professores e os alunos; 8) violência familiar: ocorre quando há conflitos entre pais e filhos no ambiente doméstico. Apresentamos algumas considerações sobre a violência doméstica por ser esta o carro-chefe do outros tipos aqui citados. Segundo Silva & Holanda ( 2009: 1722), a violência doméstica é um problema gravíssimo que atinge milhares de crianças, adolescentes e mulheres no mundo inteiro. Consiste em um problema que afeta muitas pessoas, independente de sexo, raça, crença nível social, cultural, religioso. É muito preocupante porque ocorre sob dois aspectos: sofrimento imenso que causa às suas vítimas, na maioria, silenciosas; comprovadamente, a violência doméstica (incluindo a negligência precoce e o abuso sexual) prejudica o bom desenvolvimento físico e mental da vítima. Atualmente, esta é a maior preocupação nas reuniões das escolas com pais e/ ou responsáveis pelas crianças e adolescen-
tes. É um fenômeno que ocorre extramuros, mas traz sérias consequências no processo ensino–aprendizagem, na socialização, bem como no cotidiano escolar, pois é constante as crianças chegarem à escola vítimas de violência familiar, com manchas roxas pelo corpo, queimaduras no rosto, nos braços, nas mãos, nas plantas dos pés (provavelmente causadas por cigarros, água fervente), vergões nos braços, pés e tórax (o que induz ter sido a criança amarrada); ferida na boca , nos lábios e nos olhos, e ainda o desenho característico de uma dentadura de adulto na pele. Infelizmente, ainda citamos, com as pesquisadoras acima referidas, ser “muito comum ocorrer outras formas de violência doméstica tanto nas escolas públicas como nas escolas privadas: tapas, puxões de orelhas, xingamentos, falta de carinho, de higiene, de alimentação adequada[...]”. Por conseguinte, “a criança que sofre emocionalmente pode ter problemas para brincar com os colegas, ter medos exagerados; sentir-se muito triste; afastar-se das pessoas; apresentar atitudes autodestrutivas e baixo rendimento escolar”. Segundo o documento da UNESCO (2003), “as agressões constituem a principal causa de morte de jovens entre 5 e 19 anos, a maior parte dessas agressões provém de ambiente doméstico. Estima-se que, diariamente, 18 mil crianças e adolescentes sejam espancados no Brasil. Os incidentes e as violências domésticas provocam 64,4 % de mortes de crianças e adolescentes no país, segundo dados de 1997.” Este é o cenário onde trabalham os professores do Ensino Fundamental. Rocha (2001:38-44) refere que a violência doméstica é um problema muito sério (a meu ver de difícil solução); para entendê-la, devemos conhecer pelo menos as diversas faces, por exemplo: - abandono: ausência do responsável pela criança ou adolescente; - negligência: privar a criança de algo de que necessita, quando isso é essencial ao seu desenvolvimento saudável, o que significa omissão de cuidados básicos (alimentação; remédio etc., quando os pais têm condições financeiras); - violência física: qualquer ação única ou repetida, intencional, cometida por agente agressor adulto...; - violência psicológica: ameaças, humilhações, gritos rejeição etc.; - abuso - vitimização sexual: todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança menor de dezoito anos...; - violência verbal: ocorre à violência psicológica. Enfim, a violência doméstica pode, também, perpetuar um modelo de reação agres-
siva e violenta nas crianças que estão com a personalidade em formação. Na concepção de Melo (2002 apud SILVA & HOLANDA, 2009: 22), a violência doméstica pode comprometer o desenvolvimento cognitivo das crianças e jovens, podendo interferir negativamente na capacidade de leitura e interpretação, concentração, na capacidade de se integrar e interagir com os colegas. Isto levará as crianças e os adolescentes a problemas disciplinares, pouco rendimento escolar, acarretando baixas notas, levando-os à reprovação e, consequentemente, a uma baixa autoestima e falta de motivação para as tarefas escolares e sua integração na escola. É inegável que a violência na escola é uma consequência da violência doméstica. Os especialistas em educação deduzem que o aumento acelerado da violência escolar deve-se geralmente a uma crise de autoridade familiar, os pais não impõem disciplina aos filhos, deixando-a a critério da escola, quando esta é a continuação do lar. As crianças por sua vez não têm em casa a figura de autoridade, elemento sine qua non para o seu desenvolvimento. Quando os professores tentam assumir o papel disciplinar, que lhes é passado como tarefa exclusiva, na maioria das vezes, os pais resolvem confrontá-los. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu art. 26 § 2º está escrito: A educação será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instituição promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais e religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. A escola, por refletir o meio onde está inserida, está exposta à penetração de agentes externos que tentam retardar o bom desenvolvimento integral do cidadão, criando, por conseguinte, insegurança nos que a compõem. Assim, a violência está presente constantemente no âmbito das escolas públicas, o que provoca medo, desrespeito, preconceito racial e sexual, assim como a diversidade nelas existente. Ensinar a criança e o adolescente a conviver com as diversidades (sexuais, culturais, religiosas, raciais, econômicas) é uma tarefa hercúlea, é um martírio, muitas vezes para o professor, pois este não pode nem deve permitir tais condutas, cabendo-lhes uma tomada de decisão para solucionar ou amenizar as dificuldades dos educandos. É preocupante sabermos que a escola não satisfaz os anseios da sociedade, pois as estatísticas registram altos percentuais de evasão escolar, repetências, reprovajaneiro/fevereiro/março/2015 |
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ções. A escola não acompanhou o andar da carruagem tecnológica, parou no tempo e no espaço, as grades curriculares, na sua maioria, obsoletas, professores despreparados, desestimulados pelos baixos salários que não atendem suas necessidades e, portanto, buscam fazer bicos com o ensino, faltando-lhes tempo para estudarem, planejarem suas aulas. Martins (2004) alerta-nos para o fato de que, atualmente, a escola funciona sob o controle e a exigência de um modelo de ordem das secretarias federal e municipal, por meio de regulamento como modelos de comportamento que a sociedade de consumo impõe, modelos de práticas pedagógicas e de currículos distantes da realidade dos alunos, fatores responsáveis pela desvalorização da escola e pelo número assustador de evasão. Essas mudanças respondem pela fragmentação na formação dos professores, pela redução impiedosa da sua remuneração, pelo profundo mal-estar causado pela insatisfação patente nos meios educacionais, pela desvalorização da educação e do magistério cujo saldo negativo é a grave crise de violência nas escolas. Isto sem contar com a falta de políticas educacionais voltadas para uma aprendizagem do indivíduo crítico, reflexivo, conhecedor dos seus direitos e deveres e de uma verdadeira democratização da escola. A escola, lamentavelmente, é vista por muitos professores como promotora da violência, por se manifestar sob a forma de comportamentos autoritários, de poder e de superioridade; muitos gestores colocam-se como “proprietários” das escolas, logo, detentores do poder e das tomadas de decisão, o que gera muitos conflitos entre e com os professores, repercutindo, obviamente, no processo ensino-aprendizagem do aluno. Além disso, o clima de insegurança tomou um rumo muito preocupante devido a ação do crime organizado e do narcotráfico em algumas cidades brasileiras (SPOSITO, 1998). Santos (1999) chama nossa atenção para o aumento da criminalidade e do sentimento de insegurança, principalmente nas periferias, levando a vida escolar a amargurar, de forma mais patente, os impactos desta nova situação. Vejamos algumas causas da violência escolar, apresentadas por Santos (1999: 15): - contexto familiar, no qual o indivíduo é criado e educado (abandono); - relações interpessoais e de grupos de parte (exclusão social); - relacionados à escolaridade (problemas de disciplina e falta de medidas preventivas ou paliativas); - contexto social comunitário (no meio
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há fatores que propiciam a violência: ausência de assistência social, presença de crimes e outras condutas anti-sociais); - a influência dos meios de comunicação. Melo (2002) posiciona-se no sentido de que, muitas vezes, o professor contribui para a violência quando decide manter a ordem, mas desempenha um papel violento e ambíguo, pois sabemos que quanto maior for a pressão, maior será a violência dos alunos em tentar garantir as forças que assegurem sua vitalidade enquanto grupo. Como é possível observarmos, a violência é um problema que se faz presente nas escolas e se manifesta de variadas maneiras entre os envolvidos no processo educativo, quando isto não deveria existir porque a escola é o lugar de formação da ética e da moral dos sujeitos envolvidos (alunos, professores, funcionários). A falta de uma democratização nas escolas, faz com que haja ações coercitivas, por parte do poder e do autoritarismo dos professores, coordenadores, diretores, em uma escala hierárquica, ficando os alunos no meio dos conflitos profissionais que terminam por refletir dentro da sala de aula. Além disso, a violência que domina as ruas, a violência doméstica, os latrocínios, os contrabandos, os crimes de colarinho branco têm levado muitos jovens a perder a credibilidade em relação a uma sociedade justa e igualitária, capaz de promover o desenvolvimento social em iguais condições para todos, tornando-os violentos, de acordo com esses modelos sociais. Nas escolas, a relação cotidiana deveria traduzir respeito ao semelhante, por meio de atitudes que conduzam à amizade, à paz e à integração das pessoas, com vistas a alcançar os objetivos traçados no projeto político-pedagógico da Escola. Mas, a falta de democratização nas escolas responde, em parte, pela violência no âmbito escolar. -Aprendemos com a insigne mestra paraibana Daura Santiago Rangel (In memoriam) que, o que é bom, o que traz resultados positivos para a educação, deve ser divulgado, apoiado. Por falar nessa grande Educadora, para constatarmos seu grau de sabedoria, eis um dos depoimentos desta sobre Luiz Gonzaga, ex-aluno do Lyceu, arquiteto, com residência fixa em Paris: Quando adolescente era pobre. Sua mãe vivia de lavar roupa para sustentá-lo. Não gostava de estudar e a mãe o colocou no Lyceu. Cursava o antigo ginásio. Usava todos os argumentos para ser expulso porque, somente assim, não mais poderia continuar os estudos por falta de condições financeiras. Era uma criança de grande talento para o desenho. Não era assíduo nem pontual às
aulas. Constantemente era levado à Diretoria por motivos de indisciplina, e sempre esperava receber sua transferência. Certa vez levou uma lata de tinta preta e um pincel para o Lyceu e pintou os ferros que servem de corrimão, dentro e fora do Colégio. E o resultado é que todos que por ali passavam e tocavam nestes ferros sujavam as mãos, a farda, o material escolar. Quando foi levado ao meu gabinete pediu-me que o expulsasse. Depois de ouvi-lo, disse-lhe: - Você sabe o que fez. E fez com o intuito de sair do Colégio para ficar solto na rua e, futuramente, transformar-se num delinquente por falta de estudos e condições de vida. Pois bem, o castigo que lhe dou é que você deve, a partir deste dia, frequentar o Lyceu dois expedientes, durante 30 dias, sem direito a faltar ou chegar atrasado. Você estuda pela manhã, volta para casa às 11 horas e, a partir das 13 horas, vai ficar comigo na Diretoria. Traga seus livros. Assim, ele ficou sob minha observação, e grande foi a minha alegria ao notar que o garoto era exímio desenhista. Quando eu necessitava de qualquer cartaz, letreiro etc., entregava-lhe a tarefa e, com prazer ele a desenvolvia. Tornou-se estudioso, obteve excelentes notas, passando a ser o melhor aluno da turma. Passou o tempo, veio o vestibular e eu o perdi de vista. Para minha alegria, em 1980, recebi uma carta vinda de Paris. Ao lê-la, chorei de emoção, pois o remetente lembrava-me que o menino da tinta preta, hoje, era um homem de bem, graças à paciência, ao amor e à confiança que eu lhe havia depositado. E ele, que poderia ter sido um marginal, era um alto funcionário de Paris. E quando estava sendo homenageado pelos relevantes serviços prestados fora do Brasil, lembrou-se com gratidão daquela que foi além de mãe para ele, “a Mamãe Daura”. Pretendia vir passear no Brasil, rever os familiares. Mas a primeira pessoa que ele visitaria seria eu, e traria consigo a esposa e dois lindos filhos. Em dezembro do mesmo ano, veio à Paraíba, visitou-me, e ambos abraçados, choramos de emoção. (In SILVA, 1993: 8687). Esse testemunho – narrado pela grande Mestra - confirma que “o saber perfeito leva irresistivelmente à realização segura, à construção, ao ato” (RUI BARBOSA). Por isso, dona Daura procurava educar antes de instruir. Entretanto, para educar faz-se mister que as crianças e os jovens sintam uma mão for-
te para guiá-los, porque, “por mais que eles mostrem traços de independência e rebeldia, a verdade é que desejam sentir-se protegidos”. Assim, os pais, embora sempre atuando como amigos compreensivos, não podem abdicar de sua posição de “pais”, isto é, de educadores, protetores, guias, disciplinadores. Os filhos, por sua própria insegurança, necessitam de regras. Mas as regras devem ser impostas quando os pais acreditam nelas e nelas veem um significado. Além disso, ao impô-las, os pais necessitam de uniformidade e firmeza em sua ação. (MARIA LUIZA SILVEIRA TELES) Daura Santiago Rangel soube, com muita dignidade, manter essa postura paterna, utilizando como arma o seu olhar hipnótico, brandura, justiça e amor. Sábia como era, tinha consciência de que é impossível educar sem frustrar, pois a própria vida está cheia de frustrações e aqueles que não se acostumam a elas no processo de evolução psíquica, desenvolvem um nível baixo de tolerância que pode, facilmente, levar o indivíduo à neurose. (SILVA, 1993). Mas as frustrações que estão obrigados a provocar nos educandos devem ter sempre um significado e contribuir para uma continuidade mais suave e coerente no processo evolutivo. Devem também estar restritas ao inevitável. Além disso, as crianças devem ser levadas a compreender as intenções do educador, pois se esforçarão por atendê-lo e amá-lo”. (MARIA LUIZA SILVEIRA TELES). Daí, para ensinar é preciso saber duas vezes, missão que exige uma dose imensa de paciência e amor. Não resta dúvida que o exercício é árduo e por isso mesmo sublime. Para que consigamos transmitir e orientar com vistas à aprendizagem é mister que haja ordem, atenção e participação por parte de quem aprende e de quem recebe a informação. Necessitamos, por conseguinte, sanar as situações de indisciplina para podermos ensinar melhor e produzir mais; algumas vezes, ela é um esforço de agressão; outras vezes, a causa não só está no método adotado por alguns professores; senão, é a aula expositiva que se torna monótona, cansativa; é a falta de segurança de quem apresenta o conteúdo, a instabilidade emocional, são as preferências na classe e fora dela; o tipo de trabalho realizado; a metodologia utilizada; enfim, é a ausência de motivação para as atividades de classe, o que nunca ocorreu com a professora Daura Santiago Rangel, que à semelhança de São João Batista de La Salle, sabia com muita habilidade ajustar as normas disciplinares aos caracteres e às diferenças individuais do aluno. Nesse sentido, Rubem Alves se expressa:
Os educadores são como árvores. Possuem uma face, um nome uma “estória” a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada aluno é uma “entidade “ sui generis, portador de um nome, também de uma “estória “ , sofrendo tristezas e alimentando esperanças. E a educação é algo para acontecer neste espaço invisível e denso que se estabelece a dois. Espaço artesanal .Daí, [...] questionar: - Educadores, onde estarão? Em que covas terão se escondido? Aparentava tranquilidade, sempre muito gentil e solícita. Não perdia a oportunidade de sorrir, mesmo com muita dificuldade, nos momentos mais cruciantes, quando lacrimava interiormente, porque “rir é o melhor remédio. É o melhor modo de começar e terminar o dia “ . Assim, Dona Daura transpunha todos os obstáculos que lhe surgiam, confiante em Deus com muito otimismo, porque “o homem otimista tem bondade no olhar, como no coração, silêncio nas palavras, sorriso nos lábios, felicidade no ser e confiança no senhor” (AUTOR DESCONHECIDO). Muito sábia, Daura Santiago Rangel fazia limonada dos limões mais azedos que recebia da vida, apesar das limitações humanas, visto que “por detrás de cada obstáculo se descobrem novos horizontes”. (D. CARVALHO). Dotada de uma sólida educação religiosa, era uma pessoa espiritualista. E “só o espiritualista entende a linguagem misteriosa do sofrimento e sabe perfeitamente o que ele quer dizer” (JOÃO MOHANA). À semelhança de Rui Barbosa, Daura Santiago Rangel era, por assim dizer, uma sábia em diversas áreas do conhecimento humano, uma autêntica admiradora dos jovens com os quais se preocupava em demasia. Como é possível notarmos, o aluno estimulado, é capaz de grandes realizações. Sei que é difícil amarmos a quem nos ofende, mas “somente o amor transforma o mundo porque modifica o coração do homem”, daí, o adágio “os brutos também amam”. Se quisermos seguir a Cristo, devemos amar o próximo como a nós mesmos. A diferença que Cristo faz é que Ele não veio para os bons, para os sãos, veio para transformar os corações, veio para os maus, para os enfermos, veio trazer o remédio da salvação através do amor, do perdão, da tolerância, da paz. Como é do conhecimento de todos nós, o mundo está em ebulição, a pós-modernidade, que preferimos chamá-la de período de transgressão ou de ruptura, responde pelo desacerto no Planeta. A Pós-modernidade trouxe grandes avanços, como a tecnologia, a cibernética,
a descoberta do genoma, na cura de doenças, antes consideradas como incuráveis pela medicina. Mas a era da industrialização levou a mulher à luta, ao trabalho fora do lar, o que é louvável, pois são muitas as conquistas que nós, mulheres alcançamos. Porém, o preço que a sociedade paga é imensurável, uma vez que os filhos passaram a receber pouca assistência materna, a educação passou a ser compartilhada com terceiros, na maioria das vezes com pouca e até sem instrução; as crianças, por seu turno passaram a ter uma formação mais lassa, a desobedecer em casa e a levar tal conduta para a escola que é a continuação do lar. Em outras palavras, a liberdade ultrapassou os limites da responsabilidade, e os adolescentes passaram a confundir liberdade com libertinagem. Somado a isso, a desestrutura de muitas famílias, a falta de respeito entre os pais e destes para com os filhos e vice-versa, constituindo-se na desordem que hoje campeia entre crianças, jovens e adultos, porque a criança de hoje é o adulto de amanhã. Daí Platão aconselhar: Eduquem-se as crianças e não será preciso castigar os homens . Nesse sentido, construam-se mais escolas ao invés de presídios, pois Rousseau argumenta que o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe. Como sabemos, se o aluno não respeita os pais porque estes não souberam impor limites, não vai respeitar os professores. A chamada educação moderna tomou outro rumo, o da desordem, da lassidão, nota-se uma inversão total de valores morais, o que se constitui em retrocesso. A juventude não orientada, vive em busca do ficar, fazer amor, quando amor não se faz, se sente e se dá à prova com as boas ações, os gestos etc. O amor foi banalizado pelos jovens. “Ficar“ é temporário, é tempo suficiente para, irresponsavelmente, ser gerada uma criatura, oriunda de família pobre, carente, desassistida pelos órgãos governamentais, excluída, que busca, por conseguinte, uma saída rápida, enveredando pelo caminho das drogas, pelo submundo do crime. Hoje se veem jovens entre 14 a 18 anos que, levados pelo crack, praticam crimes com requinte de crueldade inimaginável a um ser humano. É muito preocupante a invasão das drogas no âmbito escolar; as constantes agressões entre os alunos, destes com os professores, inclusive com assassinatos dentro das escolas. Repressão de nada adianta, aumenta ainda mais a violência. É preciso que haja diálogo, que a sociedade se abra para apoiar a juventude que clama por justiça, escola, a saúde pública, condição de vida com dignidade. A discriminação social, racial, religiosa, sexual responde por grande parte da violência entre os jovens. janeiro/fevereiro/março/2015 |
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A representante da Pastoral da Juventude no Conselho Nacional de Juventude, assim se expressa em seu artigo JUVENTUDE, EDUCAÇÃO E TRABALHO: Embora sejam múltiplas as condições dos jovens, a experiência deles no Brasil é ainda marcada pelo percurso tradicional que passa pela educação e pelo trabalho – elementos centrais vividos segundo as desigualdades de idade, gênero e classe. Desde que seja garantido o acesso à educação, é na escola e na universidade que os jovens passam boa parte de seu tempo. Tempo fragmentado entre as múltiplas relações do ensino-aprendizagem, socialização com colegas e professores, busca do caminho para a concretização dos próprios
sonhos, olhando sempre para o futuro profissional. Toda essa vivência exige da educação muita proximidade da vida real, além da capacidade de assegurar aos estudantes a reflexão sobre o lugar de cada um no mundo como sujeito histórico. A qualidade do ensino, bem como a formação que constrói novas relações humanas baseadas na igualdade e na justiça, também é essencial para o universo escolar. A escolaridade, somada ao acesso a outros direitos básicos, pode determinar a trajetória profissional do jovem. Seu ingresso no mercado de trabalho, no Brasil, em geral acontece em postos simples e de pouca qualificação. No entanto, quando se trata espe-
cificamente de mulheres e negros, a inserção se torna ainda mais difícil, além do risco de desemprego ser maior, como apontam diversas pesquisas. No caso dos negros, sejam ou não estudantes, a situação é preocupante, já que compõem a grande maioria dos jovens desempregados. Sua presença na escola e na universidade tem crescido recentemente, em boa parte por causa do sistema de cotas, mas ainda há muito por fazer a fim de interromper os “ciclos de continuidade” na agregação. Conclui-se sugerindo que uma educação cidadã e humana, somada ao trabalho decente e justo para todos, é o horizonte que desejamos alcançar. g
REFERÊNCIAS BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 3 ed., Rio de Janeiro: Edições de Organizações Simões, 1949, 80 p. BIBLÍA Sagrada. Tradução dos textos originais, com notas, dirigido pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. 111 ed., São Paulo: Paulinas, 1969 CANDAU, Vera; LUCINDA, Maria da C; NASCIMENTO, Maria das Graças. Escola e violência. Rio de Janeiro: DO & Iglu.1989. CARDIA, Nancy. Violência urbana e a escola In Revista Contemporaneidade e educação. Rio de Janeiro: IEC, Ano II, n. 2, 1997 GIBRAN. Kahlil. Lágrimas e risos. 4 ª ed.Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, s/d (edição original, 1949) GRASSI, Paula Cervelin. Juventude, Educação e trabalho. Coluna: A A juventude no Brasil. In O DOMINGO. SEMANÁRIO LITÚRGICO-CATEQUÉTICO. ANO LXXXI- remessa VII-5-5-2013 Nº 23. Coluna JUVENTUDE NO BRASIL MARTINS, Ana Cristina et.al. A escola na comunidade local. Espaço S - Revista de Educação Social, n. 4, junho 2004. Odivelas: Instituto Superior de Ciências Educativas MELO, Maria Matilde Gomes de.“Agressividade como problema escolar”[Monografia de Pós-graduação em Letras] Campina Grande:UFCG, 2002 MENEZES, José Rafael de. História do Lyceu Paraibano. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1983 RANGEL, Daura Santiago. Finalidades, Formas e Aspectos Sociais da Educação. Tese apresentada no II Congresso de Educação para adultos do Rio de Janeiro, jul./1985, 1 documento publicado através da Divisão de Documentos e Cultura da Secretaria de Educação de Paraíba. João Pessoa, 13 de novembro de 1958 SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Tradução de D. Marcos Barbosa.19 ed., Rio de Janeiro: Agir, 1977 SANTOS, José Vivene R. “O fenômeno da violência em duas escolas: um estudo de caso”. [Dissertação de Mestrado]. Porto Alegre: UFRG, 1999 SILVA, Maria Verônica Ferreira da & HOLANDA, Luciana de. “ A violência na escola como um problema pedagógico”. [Monografia de Pós-graduação em Psicopedagogia]. UNAVIDA/IESP. João Pessoa, 2009 SILVA, Marinalva Freire da. Daura Santiago Rangel: Uma Educadora . João Pessoa: CCHLA/ Idéia/CINEP, 1993 SPOSITO, Marília Pontes. A instituição escolar e a violência in Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. São Paulo: Cortez, julho de 1998, n.104 UNESCO. Desafios e alternativas: violência nas escolas. Edição publicada pela Representação da UNESCO no Brasil. 2003.
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POESIA CINCO SONETOS DE AMÉRICO FALCÃO (*)
Vês?
Amar!...
Já foi bonita essa mulher que passa, Essa mulher que vês, assim velhinha, Já foi outr´ora o símbolo da graça Quando no rosto mocidade tinha!
Eu quero amar, desejo amar furiosamente, Amar... sentindo sempre esse louco desejo! Mas não com o triste amor que fenece n´um beijo, Mas não com o turvo amor que entenebrece a mente!
Era nobre mulher de fina raça, Quando entre galas orgulhosa vinha, Magnetizava a multidão da praça, Reverberando risos de Rainha...
Eu quero amar, desejo amar um peito ardente, Que não trema ao sentir da desgraça o bafejo, Que fale-me de amor em delicioso arquejo, Que sinta dentro d´alma o que minh´alma sente!
Vejo-te agora nas manhãs da vida, Dizem também que és símbolo da graça, Que és uma estrela dos Azuis caída...
Eu quero sempre amar em fortes paroxismos, Dois negros olhos que tenham turvos luares, E os mistérios letais de insondáveis abismos...
Mas... quando velha, andares pela praça, Há de dizer a multidão sentida: Já foi bonita essa mulher que passa!
Não posso sufocar os íntimos motejos: Na impaciência atroz d´essa sede de olhares, Na loucura feral dessa fome de beijos!
Ao luar
O Praieiro
Noite. Há um sorriso em cada estrela e o vento Beija o rosal do meu jardim. Palpita A lua, a noiva pálida e bonita, Pontilhando de luz teu pensamento!
Céu azul. Vento brando... e a jangadinha avança Audaz e valorosa... E o pescador no remo Leva no brônzeo peito a dúlcida esperança De transpor o oceano... ir lá no ponto extremo...
E cravo o olhar no vasto firmamento... E na curva do Céu – plaga infinita – A eterna lua o teu olhar imita, Sempre cheia de um doce sentimento.
E marcha e diz: Oh! Mar, o teu rugir não temo, E ao doce murmurar das auras da bonança Trauteia uma canção como prazer supremo, E larga o tauassu e a jangada descansa. A linha deita ao Mar e crava o olhar nas águas, Voa seu pensamento aos areais da praia, Lembra os filhos, a esposa e alegre esquece as mágoas. E antes da noite vir, volta o praieiro honrado, E ri, por ver de longe à vaga que desmaia, Seu casebre de palha a beira-mar postado!
Amargura
E aqui nós dois na habitação modesta, Onde a suave orquestração da brisa Suave e doce alegria nos empresta,
Quando eu parti eras solteira e eu tinha Uma doida paixão por teus olhares, Eu te dizia sempre: “hás de ser minha” Tu me dizias: sim, quando voltares.
Vemos a luz que a lua diviniza... É que o amor que tens no peito, em festa, De estrelas d´oiro meu viver matiza.
Quando longe me vi, d´alma sozinha Só me fugiu a treva dos pesares, Quando disseste na última cartinha: - Grande prazer terei quando voltares! – Volto agora, me dizem no entretanto: - Casou-se aquela que adoravas tanto, E a quem chamavas fúlgido tesouro! – Imagina em que febre eu não me abraso, Quando te vejo, às vezes, por acaso, Amamentando um pequenino louro!...
(*) Américo Falcão (1880-1942) poeta e jornalista. Publicou Auras Paraibanas (1898), Praias (1909), Náufragos (1914), Visões de outrora (1924), A Rosa de Alençon (1928) e Soluços de Realejo (1934). Os sonetos aqui reproduzidos constam do livro Praias.
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CIÊNCIA POLÍTICA
A POLÍTICA PARAIBANA NA VISÃO DE UM CIENTISTA POLÍTICO FRANCÊS Renato César Carneiro
A IMPORTÂNCIA DAS ELEIÇÕES PARA A HISTÓRIA DE UM POVO A geografia eleitoral, como área da ciência que investiga uma sociedade localizada em determinada zona territorial, só foi iniciada, no Brasil, na década de 1950 e, o mais importante, na Paraíba, a partir da análise de dados empíricos da dinâmica e contraditória realidade política paraibana. Partidos políticos, lideranças políticas, disputas eleitorais, legislação eleitoral e outros fatores que compõem o intrincado jogo político das eleições da Paraíba, foram objeto de pesquisa, no ano de 1952, de um jovem bolsista do Instituto de Ciências Políticas de Paris, Jean Blondel. Blondel é o que podemos chamar de um brasilianista.1Ele analisou o nosso sistema eleitoral brasileiro, tendo sido a real politik da Paraíba o campo propício para a observação e formulação de suas ideias sem de dar conta de que, anos mais tarde, o seu trabalho seria incluído no rol das obras clássicas da Ciência Politica nacional. Antes da publicação de As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba, produção científica de referência na avaliação comparada das instituições políticas franco-brasileiras, o Brasil havia registrado apenas cinco obras, também consideradas clássicas e que buscaram explicar o regime representativo brasileiro, a saber: 1. O Sistema Eleitoral do Império (1848), de Francisco Belizário Soares de Souza; 2. Dois Escritos Democráticos e Sistema Representativo (1868) e Reforma Eleitoral (1874), de José de Alencar; 3. Democracia Representativa – Do Voto e do Modo de Votar (1893), de Joaquim Francisco de Assis Brasil; 4. Eleição
e Representação (1931), de Gilberto Amado e, por último, 5. Coronelismo, Enxada e Voto – o município e o regime representativo no Brasil (1949), de Victor Nunes Leal. Essas publicações ocorreram em três momentos distintos da História Política nacional: as obras de Francisco Belisário Soares de Souza e de José de Alencar se deram durante a fase Imperial; os escritos de Joaquim Francisco de Assis Brasil e Gilberto Amado foram publicados, respectivamente, no início e no fim da primeira fase republicana e, finalmente, os escritos de Victor Nunes Leal foram editados em 1949, portanto, três anos antes da chegada de Jean Blondel em terras brasileiras. A pesquisa realizada em solo tabajara garantiu a Blondel a graduação no Institut d’Etuds Politiques de Paris, em 1953. A partir dela, tem-se início uma das mais ricas produções científicas do século XX a respeito do regime representativo, colocando o seu autor no rol dos grandes nomes da Ciência Política do século passado, no mesmo patamar de Giovanni Sartori e Maurice Duverger. Mais que isso, Blondel se tornou um dos precursores da Sociologia do voto, no Brasil. A PASSAGEM PELA PARAÍBA E O SEU LEGADO: O BLONDEL QUE CONHECEMOS Utilizando o método comparativo, (o mesmo que o consagrou no campo da Ciência Política), Blondel foi pioneiro nos estudos dos nossos costumes políticos. 2 O objetivo de seu trabalho, conforme ele próprio registrou, era dar um exemplo de uma vida política tradicional, em contraste com
os estados da região do Sul do Brasil. A análise científica, publicada inicialmente em 1957, no clássico As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba, tornou-se obra inaugural da Sociologia eleitoral urbana brasileira, segundo o historiador José Octávio de Arruda Mello e antecipou os mesmos resultados aos quais chegou, alguns anos depois, o professor Orlando M. Carvalho, embora por outros caminhos da estatística, ressaltando na análise blondeliana as contradições e a fase de transição da política brasileira, experimentada no início da segunda metade do século XX, em que os chefes rurais e tradicionais começaram a ser substituídos pelos chefes urbanos.3 Nesse estudo sobre a política da Paraíba, Blondel elogiou a originalidade da nossa legislação eleitoral (na sua ótica, um misto de escrutínio uninominal4 e de representação proporcional) e do nosso sistema proporcional, comparando ao sistema francês que, até àquela época, adotava o sistema de listas, antecipadamente preparadas pelos Comitês Diretores dos partidos políticos. O cientista francês acusou a liberdade do eleitor paraibano, principalmente o da zona rural, e chegou a apontar alguns erros existentes nos nossos métodos de alistamento e de votação, abertos às fraudes de toda ordem. Registrou, ainda, a ausência de ideologias dos nossos partidos políticos, cujos programas significavam apenas estratégias para alcançar o poder. Dentre os quinze partidos existentes na década de 1950, no Brasil, destacou o caráter aristocrático do PSD e da UDN e a feição monárquica do PTB e do PSP. O eleitorado rural daquele período, tam-
A referida expressão é um neologismo que já foi incorporado ao DICIONÁRIO DO AURÉLIO e serve para designar o estrangeiro que se especializa ou estuda assuntos brasileiros. Em 1967, o historiador José Honório Rodrigues chegou a resenhar em uma de suas obras – Estudos Americanos de História do Brasil – textos e publicações norte-americanas acerca da América Latina e, particularmente, sobre o Brasil. Jean Blondel, a exemplo de Thomas Skdmore, este último autor de duas obras de referência da politica nacional (De Getúlio a Castelo e De Castelo a Tancredo), são exemplos de brasilianistas. Skidmore, historiador norte-americano, chegou a criar nos EUA, junto com outros autores norte-americanos e especialistas em assuntos brasileiros, uma fundação que reuniu professores e intelectuais, surgindo daí o neologismo brazilianist. 2 Na introdução de As Condições da Vida Política da Paraíba, Blondel afirma: “No decorrer da rápida viagem que fiz ao Brasil, no verão de 192, para estudar a vida politica, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais de perto um destes Estados, - Paraíba, aliás, Paraíba do Norte. Pude estudar, então, de modo bastante continuado, o comportamento político dos homens.” (in Op. Cit., p. 12). 3 Orlando M. Carvalho, prefácio à segunda edição, p. 08. 4 Segundo Blondel, o sistema é uninominal porque cada eleitor vota num só candidato, e nunca por lista; ao mesmo tempo, o sistema é proporcional porque vários partidos apresentam vários candidatos, tantos quantos são as vagas e a divisão delas se faz pelo número de votos obtidos por todos os candidatos de um mesmo partido (in As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba, p. 25-26). 1
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bém, foi objeto de análise de Blondel que, na sua opinião, ocupava um papel fundamental, haja vista que a população rural (1.250.000) era superior à urbana (460.000). Segundo os dados do pesquisador francês, havia na Paraíba, na década de 1950, cerca de 346.000 eleitores inscritos. Jean Blondel concluiu que o isolamento do homem do campo, naqueles tempos, era um dos fatores de seu desinteresse pela política e que ele não era capaz de avaliar a razão do seu voto. Além disso, atribuiu à ignorância do camponês às dificuldades técnicas para o exercício do voto e para se chegar aos locais de votação, o que exigia a proteção do chefe político, que facilitava ao cidadão o alistamento eleitoral (principalmente o transporte para deslocamento do eleitor para os locais de votação) e a própria votação (ensinando-lhes a escrever o nome). O chefe político, na sua visão, tinha a função de intermediar o eleitor e o mundo externo, nascendo, aí, o interesse do segundo pela política e pela eleição. Ao investigar a nossa realidade política daquele período, o estudante do Instituto de Ciências Políticas francês já constatava, naquela época, o que ainda se repete nos dias atuais em relação à fragilidade dos partidos políticos nacionais. Na sua interpretação, o brasileiro votava nas pessoas, sendo as qualidades pessoais do candidato um elemento decisivo para orientar a escolha do eleitor. A sua conclusão sobre os partidos políticos brasileiros, naquela metade do século XX, a partir dos partidos políticos locais, ainda é bastante atual, considerando a realidade nacional.5 A evolução do eleitorado paraibano também mereceu a atenção do pesquisador. Registrou Blondel que apenas 20% da população paraibana (1.730.784 habitantes) estava habilitada para o exercício do voto, o que correspondia a 346.141 eleitores. Em 1945, esse número era somente 195.635 eleitores para uma população de 1.561.349 habitantes, o que correspondia a apenas 11,5% da população votante.
Na visão do francês, não havia coronéis na Paraíba, mas sim chefes políticos de forma generalizada, representados pelas mais variadas categorias: tradicionais; do tipo monárquico; colegial ou familiar; os indiretos e os pequenos chefes políticos e, graças à sua atuação, o eleitorado rural se interessava pelo processo político e pelas eleições. Com a participação de médicos e advogados no processo eleitoral, estes passaram a representar as novas formas de chefes políticos, considerando a importância de suas funções junto a um eleitorado carente de serviços estatais. Ainda segundo a sua concepção, repita-se, o chefe político desempenhava uma função importante no alistamento e no voto, principalmente em relação ao eleitor rural, isso porque, o eleitor rural não se inscreveria se o chefe político não o levasse a fazê-lo.6 Abrindo escolas para alfabetizar o eleitorado; providenciando o transporte do eleitor até o juiz eleitoral para alistar-se, em resumo, facilitando o cumprimento do dever de votar; o chefe político cumpriu uma função social relevante num momento histórico cujas circunstâncias em nada atraiam o eleitor a comparecer às urnas. Daí porque as abstenções, na Paraíba, durante esse período, não eram raras. Pelo contrário, os resultados das eleições no nosso esquema apresentaram números consideráveis que demonstraram a apatia dos eleitores.7 A capacidade de analisar profundamente a política local, embora tenha ficado pouco tempo na Paraíba,8 apenas o suficiente para terminar o seu trabalho, Blondel conseguiu identificar o acirramento político entre os campinenses, fato este constatado pelas futuras gerações. Por isso, denominou Campina Grande de a cidade cogumelo, em referência a uma comunidade movida por espírito de feroz competição comercial, derivando daí o renhido caráter de suas campanhas políticas. OS DISCÍPULOS DE BLONDEL Ainda carecemos de uma análise científica mais aprofundada da influência das
ideias de Jean Blondel sobre as de cientistas políticos nacionais, a exemplo de Orlando M. Carvalho, Walter Costa Porto e Jairo Nicolau. Por aqui, pode-se afirmar que, na prática, Jean Blondel criou uma escola na Paraíba – à qual podemos denominar de escola blondeliana – se considerarmos o conjunto de discípulos que, de forma disciplinada e permanente, têm cultivado o hábito de investigar a política do nosso estado. Dentre estes, destacam-se o historiador José Octávio de Arruda Mello,9 integrante do grupo José Honório Rodrigues e que conta com mais de quatro dezenas de livros publicados nas áreas de História, Direito, Diplomacia e Política. A meu juízo, trata-se do maior representante das ideias de Blondel na Paraíba, chegando a criar a expressão que passei a adotar em um dos meus escritos, o modelo blondeliano, em referência à forma de analisar a história político-eleitoral local.10 Em Josué Sylvestre, nos três volumes de sua contribuição à historiografia das eleições, evidencia-se com mais vigor dois fenômenos que Blondel já acusava em As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba, em relação à Campina Grande. Primeiro, a insatisfação em não ser a metrópole política do estado, não obstante a sua pujança econômica. Nesse aspecto, ressalta novamente a interpretação de Blondel ainda bastante atual, qual seja a concorrência política e econômica entre a cidade ‘Rainha da Borborema’ e a capital do estado.11 Segundo, o fanatismo político do eleitorado de Campina Grande12 foi outra característica registrada pelo francês. Na sua versão, esse fenômeno devia-se graças ao fato de Campina Grande haver sido, naquela quadra da história, o berço de grandes líderes populistas, Blondel chega a comparar o populismo campinense ao paulista, experimentado naquela época pelo ademarismo.13 Por sua vez, em Cabresto, Curral e Peia (2009) e em A Bagaceira Eleitoral (2011), pretendi levar à frente a Sociologia
5 Afirma Blondel:”A primeira observação que faz sempre um brasileiro, quando fala dos partidos políticos de sua prática, é dizer que não possuem nenhum conteúdo ideológico e que todos querem exatamente a mesma coisa. Mas os próprios representantes dos partidos dizem que não se deve atribuir importância verdadeira ao programa. (...).” (in As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba, Ed. Fundação Getúlio Vargas, p. 30). 6 Op. Cit., p. 75. 7 “Desde 1945, atingia 14,% dos inscritos; em 1950, passou a 23,4%; 25.000 eleitores da Paraíba não votaram a primeira vez; 87.000, cinco anos depois.” Jean Blondel, Ob. Cit., p. 83. 8 É o próprio Blondel quem afirma na introdução da pesquisa que a sua viagem ao Brasil foi rápida. (In Op. Cit., p. 12). 9 Em suas conhecidas pesquisas, que se caracterizam tanto pela conhecida prolixidade, mais ainda pela Profundidade, o professor José Octávio tem procurado atualizar As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba. Assim tem feito em DISSIDÊNCIA, PROTESTO E FAMILISMO NAS ELEIÇÕES DA PARAÍBA, em 1978; SOCIEDADE E PODER POLÍTICO NO NORDESTE – O CASO DA PARAÍBA (1945-1964); HISTORIOGRAFIA E HISTÓRIA DAS ELEIÇÕES NA PARAÍBA – ESTADO E SOCIEDADE EM 1982, pesquisa esta que lhe garantiu o doutoramento em Ciências Sociais pela USP, e o seu último trabalho, CONFLITOS E CONVERGÊNCIAS NAS ELEIÇÕES PARAIBANAS DE 1982, 2002 e 2006, João Pessoa: Ed. do Sebo Cultural, 2010. 10 Introdução de A BAGACEIRA ELEITORAL – verba, verbo e populismo – A História do Voto na Parahyba (1930-1965). João Pessoa: Ed. UFPB, 2011). 11 Op. Cit., p. 46. 12 Blondel não presenciou a maior chacina da história político-eleitoral da Paraíba, ocorrida na Praça da Bandeira, em 09 de julho de 1950. Por esse motivo, presume-se que, em sua obra, há uma referência de forma indireta a esse episódio marcante, querendo registrar o grau de fanatismo político de Campina Grande: “João Pessoa é a cidade onde se elegeu quem era amigo de meio mundo. Mais interessante é o caso de Campina Grande, onde o fanatismo é mais acentuado. No correr das eleições, era como se os partidos estivessem vivamente opostos uns aos outros; morava-se em ruas diferentes; os negociantes procurados eram diferentes. Este fanatismo subsistiu em boa medida e ele faz sentir que não é possível imaginar as eleições de 1950 em Campina Grande – é necessário tê-las presenciado.” In Ob. Cit., p. 116. 13 Compara Blondel: “(...) Em Campina Grande coexistem três ou quatro grandes líderes políticos; são os condutores de multidões, as vozes que orientam a massa. Numa escala reduzida, parece movimento análogo ao que provocou a ida do Sr. Adhemar de Barros para o governo de São Paulo. É por isso que Campina Grande é a única cidade da Paraíba que se mostra brasileira no sentido mais atual do termo.” In Ob. Cit., p. 117.
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blodeliana, octaviana e sylvestriana. Na primeira moda, à moda precursora de Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal,14 procurei analisar os principais fatos políticos que marcaram as eleições na Paraíba, explorando aspectos sociológicos do processo eleitoral local, com destaque para os fenômenos das oligarquias e do coronelismo. No segundo livro, busquei demonstrar a relação entre a “indústria da seca” e as eleições; o fenômeno do populismo e o início da participação feminina no processo político. O BLONDEL QUE A PARAÍBA AINDA NÃO CONHECE Seu nome completo é Jean Fernand Pierre Blondel. Nascido em Toulon, na França, em 26 de outubro de 1929, formou-se pelo Instituto de Ciências Políticas de Paris e ingressou no St. Antony’s College, de Oxforr (Inglaterra). Tornou-se docente da Universidade de Keele e depois passou a lecionar na Universidade de Essex, cidade inglesa de King Cole, onde lecionou até 1981 a cátedra de Política e de Governo Comparado, áreas em que se destacou. Ensinou ainda na Universidade de Manchester e atualmente é docente honorário do Instituto Universitário Europeu, localizado em Florença e também é professor-visitante da Universidade de Siena. No estudo dos partidos políticos, Blon-
del ganhou notoriedade devido à tipologia por ele criada e desenvolvida na obra Los Sistemas del Partidos Políticos. Na sua classificação, adotou dois critérios: 1. O número de partidos políticos que disputaram as eleições ou os existentes no Parlamento; 2. O desempenho eleitoral das associações partidárias. Também em seus escritos, Blondel demonstrou os requisitos necessários para um partido político conquistar o poder, independentemente do seu enquadramento em tipos ou modelos partidários (de quadros, de massas, de eleitores ou partido ‘atomizado). Em outra de suas várias obras, ele fez a nítida distinção entre ‘partidos de representação’ – assim considerados os que refletem as questões políticas -, dos ‘partidos de mobilização’, que seriam os responsáveis pela sua organização. A produção acadêmica de Jean Fernand Pierre Blondel, solitária ou com outros autores, confirma o seu compromisso assumido com a Ciência Política e expressa a sua trajetória de vida desde 1952, quando iniciou a sua primeira pesquisa científica na pequenina Paraíba para, a partir de então, ganhar fama na Europa, com a publicação de obras em vários idiomas: Voters, parties and leaders : the social fabric of British politics. Harmondsworth : Penguin Books, 1963; An Introduction to Compara-
tive Government. London: Weidenfeld & Nicolson, 1969; Comparative legislatures. Englewood Cliffs, N.J : Prentice-Hall, 1973; Political parties. A genuine case for discontent?. London : Wildwood House, 1978; The Discipline Of Politics. London & Boston : Butterworths, 1981; Political leadership : towards a general analysis. London & Beverly Hills : SAGE, 1987; Blondel, Jean and Ferdinand Müller-Rommel (eds.) Cabinets in Western Europe . Basingstoke : Macmillan, 1988; Blondel, Jean and Ferdinand Müller-Rommel (eds.) Governing together : the extent and limits of joint decision-making in Western European cabinets. New York : St. Martin’s Press, 1993; Blondel, Jean and Maurizio Cotta (eds.) Party and government : an inquiry into the relationship between governments and supporting parties in liberal democracies. New York : St. Martin’s Press, 1996; Blondel, Jean, Richard Sinnott, and Palle Svensson People and Parliament in the European Union : participation, democracy, and legitimacy[1]. Oxford, England : Clarendon Press, 1998; Blondel, Jean and Maurizio Cotta (eds.) The nature of party government : a comparative European perspective. New York : St. Martin’s Press, 2000 e Blondel, Jean and Ferdinand MüllerRommel (eds.) Cabinets in Eastern Europe . Basingstoke : Macmillan, 2001. g
CONSIDERAÇÕES FINAIS O volume dos escritos científicos de Jean Blondel e a profundidade do seu clássico As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba, só confirmam a sua colaboração para as diversas áreas do conhecimento, notadamente a Ciência Política, a Sociologia Eleitoral, a História do Direito Eleitoral brasileiro. O trabalho científico de Blondel deitou raízes fortes na Paraíba. Não representou apenas um meio do seu autor conquistar um título acadêmico em Paris. Outros pesquisadores de origem local e até regional continuam o seu estudo. Existe na Paraíba, de fato, uma escola blondeliana. A Paraíba é devedora de Jean Blondel, pois na terra de Epitácio Pessoa, Paulo Bonavides e de tantos outros grandes cientistas políticos e homens de letras jurídicas, o francês deixou adeptos, que têm procurado dar seguimento à sua pesquisa que, embora iniciada, há mais de meio século, nunca deixou de ser atual. REFERÊNCIAS BLONDEL, Jean. AS CONDIÇÕES DA VIDA POLÍTICA NO ESTADO DA PARAÍBA. João Pessoa: Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba e Instituto de Estudos Políticos e Sociais Ulysses Guimarães, 1994. BRASIL, Joaquim Francisco de Assis. A Democracia representativa na República (Antologia). Brasília: Ed. Senado, Fac Similar, 1998. CARNEIRO, Renato César. CABRESTO, CURRAL E PEIA – A História do Voto na Parahyba até 1930. João Pessoa: Ed. UFPB, 2009. - A BAGACEIRA ELEITORAL – verba, verbo e populismo. A História do Voto na Parahyba (De 1930 a 1965). João Pessoa: Ed. UFPB, 2011. CARVALHO, Orlando M. de. Prefácio à obra AS CONDIÇÕES DA VIDA POLÍTICA NO ESTADO DA PARAÍBA. João Pessoa: Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba e Instituto de Estudos Políticos e Sociais Ulysses Guimarães, 1994. LEAL, Victor Nunes. CORONELISMO, ENXADA E VOTO - o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 3ª edição, 1997. MELLO, José Octávio de Arruda. CONFLITOS E CONVERGÊNCIAS NAS ELEIÇÕES PARAIBANAS DE 1982, 2002 e 2006. João Pessoa: Edições do Sebo Cultural, 2010. NOGUEIRA, Octaciano. VOCABULÁRIO DE POLÍTICA. Edições Unilegis de Ciência Política. Brasília: Senado, 2010. PORTO, Walter Costa. DICIONÁRIO DO VOTO. Brasília: Ed. UnB, 2000. SYLVESTRE, Josué. LUTAS DE VIDA E DE MORTE – FATOS E PERSONAGENS NA HISTÓRIA DE CAMPINA GRANDE (1945-1964). Brasília: Senado, 1982. 14
Como bem registrou o magistrado federal e membro da Academia Paraibana de Letras Jurídicas, Alexandre Costa de Luna Freire, num dos prefácios.
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POESIA
A POETICA EM ALCIDES CARNEIRO Joaquim Osterne Carneiro*
CONSIDERAÇÕES INICIAIS No livro que escrevemos sobre Alcides Vieira Carneiro quando do centenário de seu nascimento - Carneiro (2006) -, no Capitulo IV, intitulado “Alcides na Visão de Muitos”, às fls. 61, informamos que “A personalidade de Alcides Vieira Carneiro e principalmente os seus excepcionais e inesgotáveis dons oratórios foram consagrados aqui e alhures, por políticos, magistrados, jornalistas, poetas, escritores, historiadores, professores, críticos literários e diplomatas, que exaltaram a sua inigualável palavra, conforme poderá ser comprovado a seguir. Nessas condições, o jornalista e historiador Evandro Nóbrega, editor do livro de Alcides “Ao Longo da vida”, Segunda Edição, Revista e Ampliada, afirmou o seguinte: “DUPLA CONSAGRAÇÃO A ALCIDES CARNEIRO - A Academia Catarinense de Letras incumbiu seu Presidente, o escritor Nereu Correa, de escrever um livro sobre os dez mais notáveis oradores brasileiros. Da relação, consta o nome do nosso conterrâneo Ministro Alcides Carneiro. O jornal O Globo, comentando o acontecimento acentua que se trata de ato de justiça e coerência, pois que, revela o matutino carioca, “ O Ministro Alcides Carneiro, com seu extraordinário talento oratório, já figura com grande destaque no livro Historia Universal da Eloqüência ( em 3º volume), citado como um dos 50 maiores oradores mundiais de todos os tempos” . Colocado ao lado de Epitácio Pessoa, Alcides Carneiro é o segundo paraibano a figurar na coletânea consagradora, organizada pelo jurista e historiógrafo Helio Sodré. Apresenta-se a Paraíba - viveiro de Tribunos - com dois representantes, na galeria dos mais famosos oradores da humanidade”. . DADOS BIOGRÁFICOS Alcides Vieira Carneiro nasceu em Princesa Isabel - PB, em 11 de junho de 1906, sendo o segundo filho do casal Vicente Vieira Carneiro e Maria de Azevedo Vieira Carneiro - Maroquinha. Alcides teve como irmãos: Manoel Wandick Vieira Carneiro, Alzira Viera Carneiro, Maria Edith Vieira Carneiro, Eudesia Vieira Carneiro, Francisco Vieira Carneiro, Yvone Vieira Carneiro, Dirce Vieira Carneiro, Mirian Vieira Carneiro, Denise Vieira Carneiro e Vicente Vieira Carneiro Filho. É conveniente destacar que, os oito pri-
meiros - Manoel Wandick, Alcides, Alzira, Maria Edith, Eudesia, Francisco, Ivone e Dirce nasceram em Princesa Isabel - PB e os três últimos - Mirian, Denise e Vicente, nasceram em Fortaleza- CE. Seus primeiro estudos foram feitos na Escola do Professor Adriano Feitosa, em sua sempre amada terra natal, onde demonstrou os dotes oratórios que o tornariam conhecido e respeitado como um dos maiores tribunos do Brasil de todos os tempos. Aliás, numa entrevista concedida ao Jornal “O Norte”, edição de 26/10/1976, denominada “Alcides Crê Em Diretas Mas Não Será Candidato”, perguntado se acreditava na sobrevivência da oratória no mundo moderno afirmou: “Claro. A oratória vence o mundo. O declínio que anunciam da oratória é obra daqueles que não são oradores. Isso começou, por exemplo, em Pernambuco, onde houve uma campanha contra Joaquim Nabuco. Quem fazia a campanha? Eram grandes escritores, grandes juristas, grandes filósofos, mas não eram capazes de falar”. Perguntado como percebeu que possuía o dom da oratória respondeu: “Eu não percebi. Foram os outros. Foi na escola publica de minha terra. No final do ano letivo o professor fazia uma festa. E cada aluno levava isso e aquilo. E depois os discursos. O Professor Adriano Feitosa, então escolhia os alunos que ele achava mais capazes. Foi nessa hora que eles acharam que eu havia nascido para isso, aos dez anos”. A respeito do seu melhor discurso declarou: “Esse discurso amanhã (hoje) completa 49 anos. Eu era estudante de Direito no Recife. E Siebra tinha estado no exílio todo o governo de Bernardes. Na volta ( ele era Professor da Faculdade), então os estudantes resolveram prestar-lhe uma grande homenagem. Fui o orador escolhido, em nome dos estudantes. Eu era bacharelando”. Após concluir o primário, em 1817, aos 11 (onze) anos de idade foi estudar em Fortaleza-CE, sob os cuidados dos seus tios Daniel Vieira Carneiro e Enéas Vieira Carneiro, que ali residiam, já que seus pais Vicente Vieira Carneiro e Maria de Azevedo Vieira Carneiro - Maroquinha, somente passaram a residir na capital alencarina em 1920.
É conveniente recordar que Daniel Vieira Carneiro exerceu salutar influência no encaminhamento dos parentes mais novos, especialmente, de grande parte dos sobrinhos - Antonio de Andrade Carneiro, Francisco de Andrade Carneiro e Daniel Carneiro Sobrinho, filhos de Joaquim Vieira Carneiro (Moço Quincas); Manoel Wandick Vieira Carneiro e Alcides Vieira Carneiro, filhos de Vicente Vieira Carneiro; Aurélio Vieira Carneiro, Eunápio Vieira Carneiro e Juvêncio Carneiro Sobrinho, filhos de Delmiro Vieira Carneiro; Ruy Carneiro e José Janduhy Carneiro, filhos de João Vieira Carneiro (Joca) e muitos outros, se constituindo num exemplo para toda a família. NOBREGA (1964), ao se referir aos bacharéis paraibanos formados em Olinda e Recife assim se referiu a Daniel Vieira Carneiro: “Dr. Daniel Vieira Carneiro. O Deputado Daniel Vieira Carneiro nasceu em Catolé do Rocha a 16 de março de 1879, oriundo das núpcias de José Vieira Carneiro e Alexandrina Carneiro. Tabelião Público na terra natal, Advogado no foro do Rio Grande do Norte, Promotor Público no antigo Território do Acre, Juiz de Direito do Alto Purus, Procurador da Fazenda do Amazonas, Secretário da Prefeitura do Alto Purus, Juiz de Direito no Acre, Procurador da Fazenda Nacional no Ceará, Deputado Federal pelo Ceará e depois pela Paraíba, terminou os dias aposentado no cargo de Tabelião Publico no Distrito Federal, após haver recusado a nomeação para Procurador da Republica na Paraíba. Era um espírito culto e inteligente, tendo divulgado o livro “Ação e Reação”, discursos na Câmara dos Deputados. Faleceu a 2 de novembro de 1955”. Na terra de Iracema, inicialmente, Alcides Vieira Carneiro freqüentou o Colégio São Luiz, tradicional educandário dirigido pelo Dr. Francisco Meneses Pimentel, Professor da Faculdade de Direito e que a partir da década de trinta da centúria passada, seria um dos mais destacados políticos do Estado do Ceará, tendo exercido os cargos de Governador, Interventor Federal, Deputado Federal, Senador da Republica, Presidente do PSD- Partido Social Democrático e Ministro da Justiça. Em seguida, estudou no Liceu do Ceará, onde concluiu o curso secundário. Em 1922, aos dezesseis anos de idade ingressou na Faculdade de Direito do Ceará, onde cursou os dois primeiros anos, transferindo-se para a trajaneiro/fevereiro/março/2015 |
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dicional Faculdade de Direito do Recife. Em 1926, com 20 anos de idade concluiu o Curso de Direito. No Recife, como aluno da Casa de Tobias, se fez conhecido, admirado e respeitado como tribuno dos mais aplaudidos. Concluído o Curso de Direito, se engajou na campanha da Aliança Liberal, tendo incendiado o Brasil de ponta a ponta, com seus primorosos pronunciamentos. Posteriormente, ocupou os cargos de Inspetor de Ensino Secundário do Distrito Federal, Procurador da Republica no Estado do Espírito Santo, Advogado da Policia Militar do Distrito Federal, Curador de Massas Falidas do Ministério Publico do Distrito Federal, Curador de Menores e Curador de Família, Presidente do IPASE - Instituto de Previdência e Assistência aos Servidores do Estado; Deputado Federal pelo Estado da Paraíba; 13º Procurador da Justiça do Estado da Guanabara; Presidente da CNEC - Campanha Nacional de Escolas da Comunidade e Ministro do STM - Superior Tribunal Militar, tendo exercido o cargo de Vice Presidente dessa corte, no biênio 1969/1970. Integrou também a OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, representou o Estado da Paraíba no Congresso do Ministério Publico realizado em São Paulo; representou o Brasil como Deputado Federal, na Conferencia Interparlamentar realizada em Istambul, na Turquia, em 1951; representou o Estado da Guanabara, no IV Congresso Interamericano do Ministério Público ocorrido na cidade do México, em 1963; e foi Delegado Suplente do Brasil, junto à XIX Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1964. No campo meramente pessoal, foi casado com Selda Mello de Almeida, filha de José Américo de Almeida e de Anna Alice Mello Almeida e desta união nasceram as filhas Sonia de Almeida Carneiro e Solange Carneiro Rodrigues.Depois de uma separação amigável, a segunda companheira de Alcides Vieira Carneiro foi Ivone Madeira Dantas. OBRA LITERÁRIA De conformidade com (2006) ás fls. 83 e 84,
CARNEIRO
“Muito do que Alcides Vieira Carneiro produziu, principalmente seus discursos feitos de improviso, não ficaram registrados para a posteridade. Assim, a sua obra consta dos seguintes trabalhos: I) Discursos Escolhidos, publicação da Imprensa Universitária/UFPB, cuja primeira edição foi lançada em 1971 e a segunda naquele mesmo ano. II) Discurso de Posse. na Academia Carioca de Letras. Separata (IV) do Boletim da UFRJ, números 112 e 114 - Agosto e Outubro de 1975. Além do discurso de Alcides Vieira Carneiro, apresenta também o Discurso de Saudação do Desembargador Oscar Tenório, então Presidente da supracitada Academia e
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Reitor da UFRJ. Rio de Janeiro, Academia Carioca de Letras, 1975. III) Conceito Sintético do Direito. João Pessoa, A União Companhia Editora, 1975. IV) Discursos em 14 Tempos. Brasília, CNEC/Gráfica Itamarati, 1976. VI) Ao Longo da Vida. Editora Universitária/UFPB, 1976. VII) Discursos em 14 Tempos. 2ª Edição. Fortaleza, CNEC/Tipogresso, 1978. VIII) Ao Longo da Vida. 2ª Edição, Revista e Ampliada. Gráfica JB. João Pessoa, PB 2001. XI) ALCIDES CARNEIRO O Que Ficou Esquecido “ AO LONGO DA VIDA”. Rio de Janeiro, Nov. 2001. Publicação organizada por Solidonio Lacerda.
atuais colunas sociais especializadas dos nossos dias. Ali, também, vários autores, desde Auta de Sousa a Ademar Tavares, publicavam quadrinhas, para o “Álbum de Mademoiselle”. Este espaço foi freqüentemente ocupado pelas quadrinhas de Alcides, encontrando-se os originais, na sua maioria, em meu poder. Teria sido mais lógico, ter fornecido este material ao Des. Jansen, mas só foi observado o que fora “esquecido”, após o lançamento do livro. Este opúsculo, sem qualquer pretensão, ou outro intuito, autorizado por Sonia e Solange (filhas) visa ao que nos parece mais correto, que é brindar os muitos admiradores de Alcides e complementar o belo e laborioso trabalho do Des. Orlando Jansen”. No trabalho acima citado, constam as seguintes trovas de autoria de Alcides Vieira Carneiro: A APOSTA
Outrossim, no IHGP - Instituto Histórico e Geográfico Paraibano existe oito Arquivos Privados, pertencentes a importantes homens públicos paraibanos, dentre os quais se encontra o inventario integrado de documentos elaborados por Alcides Carneiro”.
Apostei um bom dinheiro Em como te beijaria Com o que depois me matou Quanta aposta eu não faria
No respeitante à sua produção poética, boa parte de seus versos poderão ser encontrados no magnífico trabalho acima aludido “ALCIDES CARNEIRO O Que Ficou Esquecido “AO LONGO DA VIDA”, organizado pelo saudoso médico Solidônio Lacerda, paraibano, natural de Cajazeiras, que era casado com Laura Maria Viera Carneiro - Laurita, sobrinha do tribuno princesense. No inicio de sua publicação, Solidônio Lacerda afirmou:
Ninguém pode neste mundo Dizer que amores não tem Casei-me com a solidão Já hoje lhe quero bem
“Este ano foi festivamente lançado na capital paraibana, a 2ª edição de “ AO LONGO DA VIDA”, que encerra uma coletânea de discursos de Alcides Vieira Carneiro. A reedição foi cuidadosamente organizada pelo Desembargador Orlando Jansen, à qual acresceu dados biográficos, alguns discursos, frases e trovas, do saudoso orador. Não é fácil a tarefa de reunir o que foi dito por Alcides, pelo fato de habitualmente usar o improviso nas suas orações, se descompromissando com a posteridade. Todavia, devem existir na memoria de uns, em notas taquigráficas ou em fitas de gravação, em poder de outros, palavras que não foram perdidas ou esquecidas e que ainda poderão ser perpetuadas. Motivado por esta razão, foi realizado um cotejo do que foi publicado no livro recém lançado, com algum material da autoria de Alcides que, carinhosamente, conservo. No final da década de 30, o CORREIO DA MANHÃ mantinha uma secção - “A Vida Social” - onde se liam pensamentos, pequenas crônicas, além de notas anunciando reuniões, conferências, formaturas, sem deixar de relacionar os viajantes e aniversariantes do dia, diferindo bastante das
AMORES
A GRAÇA No branco altar de S. Jorge Tres velinhas acendi Glória, amor, felicidade, As graças que encareci, Suas lindas chamas brilharam, Mas, depois, num bruxuleio, Duas delas se apagaram: Ficou acesa a do meio. BALANÇO Neste ano atormentado, Foi meu destino perder... Só lucrei experiência: Mas perdi (Deus louvado) Esta santa paciência Para esperar e sofrer. ALERGIA Dessa doença esquisita, Que bons cuidados requer, Só um caso não conheço Alergia por mulher... AFLIÇÃO Mulher feia dá desgosto, Mulher bonita aflição, Já notei que andar aflito, Me faz bem ao coração
CARNAVAL DA VIDA É bem triste o carnaval A que assisto a vida inteira, Constantemente de máscara, Sem as cinzas da quarta feira. CARRO DE BOI O carro de boi vai gemendo, Carro de boi vem cantando! Geme quem vai partindo, Canta quem vai chegando! CONVITE Meu outono já chegou, E não voltaste querida! Daqui a pouco é inverno E é hora da despedida... Apressa os passos e vem Dourar o fim desta vida!
CASTIGO Ajoelhei a teus pés E rezei uma oração... Mas o castigo sofri Pela estranha devoção: Tive tudo, mas perdi Para sempre o coração...
CORAÇÃO CUIDADO Na torre da velha Igreja Uma andorinha pousou, E bateu asa, assustada, Quando o sino repicou. Meu coração, não repiques! Uma andorinha pousou...
CONSELHO Amigo, não voltes nunca Aos teus amores passados: Os mortos por mais queridos, Devem ficar enterrados...
DESACORDO De riqueza me falaste, De ternura te falei; Foi essa a ultima vez Que na vida te encontrei...
DESCONSOLO Da vida nada se leva, A não ser mágoa e saudade Do nada, nada se traz, A não ser tola saudade CASTIGO Ajoelhei a teus pés E rezei uma oração... Mas um castigo sofri Pela estranha devoção: Tive tudo, mas perdi Para sempre o coração... D. QUIXOTE Contra as rochas da tu`alma Com toda força investi: Eram só montões de cinza As duas rochas que eu vi... DESQUITADO Sete anos já se foram E outros ai vêm Jacob esperou Rachel E eu não espero ninguém... ESPERANÇA Por dar-nos Deus um destino Que a gente nunca prevê É que não perco a esperança De ser feliz com você DILEMA Dinheiro e mulher bonita Na vida o mal representam, Mas, se da vida eles fogem, Vê-se que os males aumentam...
FINGIMENTO Não sou fingida: tu dizes, Entre arrogante e faceira, Mas esqueces que casaste Com flores de laranjeira... INFERNO O inferno é aqui neste mundo, Há quem diga por dizer, Mas quem já provou ciúme Cansado está de saber....
FOGO MORTO Ostentando triste cara, Que o pé do tempo pisou, Lastimoso me dizia Um velho que muito amou: “Antes, não marcava eu ia; agora, marco não vou”... LEMBRANÇA Saudade pra quem espera, Não é saudade é lembrança. Saudade só é saudade, Pra quem não tem esperança. MILAGRES IMPASSE Estás morta para mim! Ninguém pode roubar beijos, Muitas vezes tenho dito. Sem ser logo pressentido. Mas, logo ao segundo dia, Mas, se tal não acontecesse Eu mesmo te ressuscito Ah! Quanto roubo escondido!...
EVOLUÇÃO
PARADEIRO PRECE
As flores do cajueiro Ao nosso idílio assistiram... Mas depois, o resultado As castanhas é que viram...
Corri atrás do sossego, Eu peço a todos os santos No afã mais louco e mais sério: Que me livrem se puderem, Quando dei fé me encontrava De homens que ninguém gosta, Á porta do cemitério. De mulher que todos querem...
DISFARCE É zelo! Disse-te eu, Com rispidez e azedume, Boa desculpa disseste, Para esconder o ciúme... EXPIAÇÃO Geme o pobre coração, Alanceado de dor! Quem aqui faz, aqui paga, Não há perdão para o amor!...
PRECIPITAÇÃO PROBLEMA Jurei ser teu e só teu, Dos beijos que ela me dava, Eternamente, querida! como saber o montante? Mas nunca pensei, confesso Era um de cada vez, Que fosse tão longa a vida.... mas pedido a cada instante... janeiro/fevereiro/março/2015 |
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TRANSFORMAÇÃO
QUEIXA PREITO Sete anos já sofri, Á mentira devi sempre E outro tanto ahi vem.. O sossego dos amores; Jacob esperou Rachel, Á verdade, que respeito, Eu não espero ninguém... Metade das minhas dores... Muito obrigado à mentira À verdade, meus louvores....
Teu amor e uma cabana! Dizias e eu confiava: Mas, depois de certo tempo, Nem um palácio bastava... Existe mulher fatal, Paixão, ansiedade, ciúme, Quanta tristeza na morte! Eu tenho disso a certeza: Gôsto de sangue na boca! Quanto amargor no viver Pertence às forças do mal E nada disso mereces, Ainda é melhor sorte Contrarias à natureza Borboleta estranha e louca A quem morre no nascer..
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REFLEXÕES ROMPIMENTO Tenho saudades, querida, Agora é definitivo: Da infância do nosso amor, Entre nós tudo acabado. Agora, que está maduro, Mas o diabo é se eu te encontro Só tem dado dissabores. Com outro de braço dado
Meu coração é cabana Meu destino que eu pensava A cabana foi palácio Onde a saudade hoje mora, Ser livre como o tufão, Onde a alegria reinou: Sozinha, porque a tristeza Está preso, bem seguro Houve festa, sonho vida. De tão triste foi embora. Na concha da tua mão. Só a saudade ficou...
Então me ponho a pensar VINGANÇA Com recôndito amargor, Enganou-me ao telefone, Que isso que chamam juízo Fazendo voz de mocinha. É inimigo do amor Prá me vingar, perguntei-lhe:
Eu que tanto perdoei, Nem tanto ao mar coração, Se exatamente o contrario Aqui deixo esta lição: Ouve do adágio o rebate. Diz o novo Testamento Tanto menos se é amado Nem te escravize á ilusão É que o Autor desconhecia Quanto mais se dá perdão. Nem o desengane te mate...
“Quem me falou? A netinha?”
SACRIFÍCIO TIMIDEZ Para agradar meu amor Certa mulher me dizia Sou capaz de beber fel. Em tom de camaradagem: Já andei até pensando Não te falta inclinação, Em ser-lhe um dia fiel! O que te falta é coragem
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As razões do sentimento Prá fazer a confissão A dor ensina a gemer, Odeio, detesto a vida, Gaguejei, mudei de cor, Diz o ditado profundo: Porque nela não me aprumo, Achaste graça e então
Mas, não, já nasce sabendo Mas quero viver bem velho Começou o nosso amor. Quem nasce só, neste mundo. Para ver se me acostumo... Quando a nossa cruz é leve, Deu-me a mentira sossego, É fácil de carregar: A verdade, dissabores. Mas quando ela é pesada, muito obrigado! a mentira, Só o amor prá ajudar.... Á verdade, meus louvores Para concluir estamos inserindo o belíssimo soneto CAMINHOS PERDIDOS Fui monge, fui poeta, fui guerreiro; nas conquistas do amor desventurado, bati às portas do universo inteiro, por toda parte fiz ouvir meu brado. Na cela estreita e escura de um mosteiro quebrei as garras vis do vil pecado; sob a luz do luar fiz-me troveiro, cantando estrofes, da harpa ao som magoado. Venci batalhas, conquistei lauréis... E agora, quando, insone, nas caladas da noite, escuto a voz dos menestréis... Tristonho, evoco as vidas que levei, e os combates, os sonhos, as baladas... - o que fui! E o que sou eu bem não sei!
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BIBLIOGRAFIA ALCIDES CRÊ NAS DIRETAS MAS NÃO SERÁ CANDIDATO. Jornal o Norte, edição de 26/10/1975. ________________ Ao longo da Vida. Editora Universitária/ UFPB. João Pessoa, PB, 1976. ________________ Ao Longo da Vida. 2ª Edição, Revista e Aumentada. Gráfica JB. João Pessoa, PB, 2001 ________________ ALCIDES CARNEIRO O Que Foi Esquecido “ AO LONGO DA VIDA”. Rio de janeiro, Nov/2001.Publicação organizada por Solidonio Lacerda. CARNEIRO, Joaquim Osterne. Alcides Vieira Carneiro- O Inesquecível Orador Poeta das Multidões e dos Salões.A UNIÃO -Superintendência de Imprensa e Editora. João Pessoa, PB, 2006 NÓBREGA, Apolônio. Bacharéis de Olinda e Recife de 1832 à 1950. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Volume 262, janeiro-março 1964. Departamento de Imprensa Nacional.Rio de Janeiro, 1964, p.160
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MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
JACKSON DO PANDEIRO E O FUTEBOL Érico Dutra Sátiro Fernandes (Continuação da página 2) acabou servindo para todo o Brasil. Gravada em 1953, em Recife, e lançada em 1954, a música é de autoria do compositor pernambucano Edgar Ferreira (1922-1995), que foi um dos principais parceiros de Jackson no início de sua carreira, quando gravou sucessos como “Forró em Limoeiro”, “Cremilda”, “Ele disse” e “Vou gargalhar”. A canção foi gravada posteriormente por nomes como Zé Ramalho, Genival Lacerda, Quinteto Violado, Fuba de Taperoá, Carmélia Alves, Trio Nordestino e até mesmo pelo grupo de pop/ rock Os Paralamas do Sucesso. “4x1” (Damião Florêncio e José Gomes, 1957) – “4x1” marcou um dos poucos duetos vocais entre Jackson do Pandeiro e Almira Castilho (1924-2011), sua grande parceira musical e também esposa, com quem conviveu desde o começo de seu sucesso profissional, em 1953, até a separação do casal, no final dos anos 60. Apesar de constar na autoria o nome de José Gomes, a composição é de Damião Florêncio e da própria Almira Castilho, já que José Gomes nada mais era que o pseudônimo usado por Almira em algumas composições, em razão da incompatibilidade entre editoras musicais. Embora não cite nomes de clubes ou jogadores, a letra traz um “embate” entre a dupla de cantores na forma de uma partida de futebol. Foi lançada em 78rpm e no lp de 10 polegadas “Jackson e Almira – Os donos do ritmo”, de 1957. “Frevo do bi” (Braz Marques/Diógenes Bezerra, 1962) - a mais divulgada gravação de Jackson do Pandeiro sobre a seleção brasileira saiu em 1962, em um 78rpm, pouco antes da conquista do bicampeonato mundial no Chile. Na letra, os autores imaginam um “baile de bola” conduzido por Didi, Garrincha e Pelé. Gravada como um frevo épico, a canção também ganhou uma versão de Tom Zé e Gereba, lançada no álbum “Cantando com a plateia”, de 1990. “Scratch de ouro” (Maruim/Oscar Moss, 1963) – Interpretada em forma de samba, a música festeja o bi mundial da seleção brasileira, nominando toda a equipe
titular do escrete de ouro: Gilmar, Mauro, Djalma Santos, Zito, Zózimo, Nilton Santos, Zagallo, Didi, Vavá, Amarildo, Pelé e Garrincha. Apesar de a relação contar com 12 atletas, o fato pode ser explicado: Pelé deixou a Copa na segunda partida da seleção brasileira, após contusão, sendo substituído brilhantemente pelo artilheiro Amarildo. Os compositores, então, acharam por bem incluir os dois craques na letra. “Olé do Flamengo” (Jackson do Pandeiro/Braz Marques, 1964) – como o próprio título já transparece, a canção enaltece a paixão pelo Clube de Regatas do Flamengo, time de coração de Jackson do Pandeiro: “Eu vou, eu vou amanhã, ver Flamengo jogar lá no Maracanã...eu não perco nenhum jogo, seja de noite ou de dia”. Incluída no LP “Coisas nossas”, de 1964, a música fala do “olé” que a equipe rubro-negra dá em vários rivais locais, como Vasco, Botafogo e Fluminense, além da mais temida equipe brasileira da época: o “Santos de Pelé”. “A taça era dela” (Waldemar Silva e Rubens Campos, 1967) – de forma irreverente, o samba critica a polêmica conquista da Copa do Mundo de 1966 pela seleção anfitriã, a Inglaterra, que na final venceu a Alemanha após o juiz ter validado um gol em que a bola não chegou a ultrapassar a linha da trave. Na letra, o compositor é direto: “a Inglaterra fez uma Copa do Mundo, pra ela, pra ela, o campeonato ainda não havia começado e a taça já era dela”. A faixa saiu no álbum “A Braza do Norte” (brasa com “z” mesmo), de 1967, o último lp que traz Almira Castilho na capa. “Frevo do tri” (Braz Marques e Álvaro Castilho, 1971) – por muito tempo uma rara canção do repertório jacksoniano (somente em 2014 saiu em cd, em um box que garimpou preciosidades do Rei do Ritmo), o frevo “saúda os supercampeões”, celebrando a 3ª taça mundial conquistada pelo Brasil no futebol, dessa vez em território mexicano. Ao contrário das anteriores “Frevo do bi” e “Scratch de ouro”, a letra não cita nomes de
jogadores, mostrando a emoção do torcedor, que “gritou, torceu, chorou e sofreu”. Assim como o “Frevo do bi”, é uma excelente canção sobre Copa do Mundo, bem diferente das que são lançadas na atualidade. “O bom torcedor” (Braz Marques e Jackson do Pandeiro, 1971) – A letra retrata a paixão do brasileiro pelo futebol, “de norte a sul”. Nela, o autor fala sobre suas equipes prediletas em alguns estados, citando Flamengo, Corinthians, Atlético Mineiro e Santa Cruz, equipes de grande popularidade. Apesar de citar apenas clubes, a música traz na sua introdução a narração de um gol do Brasil anotado por Pelé, com pequeno trecho repetido no final da faixa. Foi lançada em 1971, no LP “O dono do forró”, disco que marcou a estréia do sanfoneiro Severo nas gravações com Jackson. “O Rei Pelé” (José Gomes Filho/Sebastião Batista, 1974) – A homenagem que o Rei do Ritmo fez ao Atleta do Século XX veio no LP “Nossas Raízes”, de 1974, mesmo ano em que Pelé se despediu do Santos Futebol Clube. A 1ª faixa do lado B, “O Rei Pelé”, que narra as virtudes de Edson Arantes do Nascimento dentro de campo, pode ser considerada a principal música do forró em reverência ao jogador, que também foi tema de canções em outros ritmos da MPB. Em cd, saiu apenas na coletânea “Enciclopédia Musical Brasileira”, que traz Jackson ao lado do baiano Gordurinha. “Bola de pé em pé” (Jackson do Pandeiro/Sebastião Batista, 1981) – lançada no último lp gravado por Jackson, 1 ano antes do seu falecimento, a música também homenageia o Flamengo. Quando fala em “Flamengo é tricampeão, acredite quem quiser”, a composição faz referência, de forma implícita, ao tricampeonato carioca conquistado pelo time em 1979. Nos anos seguintes, os versos poderiam ser utilizados novamente pelos torcedores em outras quatro conquistas de tricampeonato do rubro-negro: o brasileiro, em 1983, carioca, em 2001 e 2009, e da Copa do Brasil, em 2013. g janeiro/fevereiro/março/2015 |
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FOLCLORE
40º ENCONTRO CULTURAL DE LARANJEIRAS E O PULSAR DA CULTURA Oswaldo Meira Trigueiro Laranjeiras, cidade monumento nacional, localizada na Região Metropolitana de Aracaju/ SE, realiza há 40 anos, continuamente, um dos mais significativos encontros de cultura popular do Brasil, que reúne num simpósio importantes estudiosos e pesquisadores do nosso folclore. São 40 anos de história, de debates e documentação das tradições culturais brasileiras, em especial a sergipana e, Laranjeiras, um verdadeiro museu vivo a céu aberto, torna-se especialmente, em janeiro, a capital cultural do país. Na atualidade, é quase impossível estudar e pesquisar as manifestações culturais do nosso folclore sem citar os estudos publicados nos anais do Encontro e do Simpósio de Laranjeiras entre tantos outros artigos espalhados nos acervos e nas publicações dos que por lá passaram. No período da realização do evento, que este ano foi de 5 a 11 de janeiro, aconteceram várias atividades e o simpósio aconteceu nos dias 8 e 9 com uma extensa programação que teve a participação de convidados locais como Beatriz Góis Dantas, Aglaé Fontes e Jackson Lima, da Comissão Sergipana de Folclore; Luiz Soutelo, Presidente do Concelho Estadual de Cultura/SE, Irineu Fontes e Lindolfo Amaral, da Secult/SE, José Fernando Aguiar, Samuel Barros, Verônica Menezes, Maria Augusta Mundim e Gilson Rambelli, da Universidade Federal de Sergipe/ UFS, Izaura Júlia de Oliveira, do Museu Afro Brasileiro de Laranjeias/Secult/SE, Zé Rolinha e Bárbara Cristina, representando os grupos folclóricos locais. Como convidados de outros estados o evento teve a minha participação como membro da Comissão Paraibana de Folclore; José Fernando de Sousa, representando a Comissão Pernambucana de Folclore e do Rio Grande do Norte, Severino Vicente, Presidente da Comissão Nacional de Folclore. O simpósio teve como temas: O pulsar da cultura nos 40 anos do Encontro de Laranjeiras; Desafios e perspectivas na preservação da cultura popular; além da apresentação das comunicações e lançamentos de livros com o destaque para a publicação coordenada pela professora e pesquisadora sergipana Beatriz Góis Dantas, que conta a história dos 40 anos do Encontro Cultural e do Simpósio de Laranjeiras. Nas ruas e nas casas de Laranjeiras tudo era festa com os grupos folclóricos dançando e cantando nos espaços públicos, privados e sagrados das igrejas, em louvor aos Santos Reis, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. São os
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Grupo folclórico se apresentando nas ruas de Laranjeiras
“Devotos Dançantes” da Taieira, do São Gonçalo, da Chegança, do Cacumbi, do Reisado, do Pastoril entre outros grupos folclóricos que festejam os seus santos de devoção. Deus vos salve casa santa/Onde Deus feis a morada/Onde mora cálix bento/E a hóstia consagrada. Nos 40 anos do encontro foram lembrados pesquisadores que deram importantes contribuições para o surgimento e a continuidade do evento como: Luiz Antonio Barreto, Roberto Benjamin, Núbia Marques (in memoriam) e Braulio do Nascimento, só para citar esses entre tantos outros. O encontro teve o apoio de diversas instituições como a Prefeitura Municipal de Laranjeiras, Governo do Estado de Sergipe, Universidade Federal de Sergipe/UFS, do IPHAN/SE, com a coordenação geral de Silvia Maria de Oliveira e a coordenação executiva de Antonio Amaral, ambos da Secult/SE e que estão de parabéns por terem superado as adversidades para a realização do simpósio. Destacar também a hospitalidade e a maneira carinhosa como somos recebidos pelos organizadores do encontro e os colegas estudiosos e pesquisadores em Aracaju e em Laranjeiras. Mas, nem tudo são flores, no Encontro Cultural e no Simpósio, enquanto havia restrições técnicas e econômicas para a realização do evento e especialmente apoio aos grupos folclóricos para melhores condições nas suas apresentações, as autoridades locais alegaram a crise financeira e consequentemente a falta de recursos para as manifestações culturais tradicionais. Mas, por outro lado, para os shows das famosas bandas de “forró e de música sertaneja”, foi montado, logo ali do outro lado do Rio Cotinguiba, palcos com uma super estrutura e parafernália tecnológica de som e luz de não fazer inveja aos espetáculos nas grandes cidades brasileiras. Nada contra a cultura midiática, nada contra as famosas bandas, mas nada justifica a falta de apoio das autoridades para as manifestações tradicionais culturais que são os grupos folcló-
O autor quando apresentava sua ponencia
ricos, os protagonistas da festa e os verdadeiros representantes da cultura local. Foi sentida a ausência do Secretário de Cultura do Município de Laranjeiras no simpósio e especialmente na plenária de encerramento, mas teve a participação do Secretário de Planejamento do Munícipio de Laranjeiras, Paulo Menezes Leite, com atuação significativa nos debates e na plenária de encerramento, demonstrando certa preocupação com aquelas distorções.
Esperamos que todos esses equívocos sejam corrigidos e o Encontro Cultural e o Simpósio retornem ao lugar sempre desejado por Luiz Antonio Barreto e Braulio Nascimento. Parabéns a Laranjeiras, cidade Monumento Nacional. Parabéns a todos os brincantes dos grupos folclóricos, pela resistência de continuarem fazendo a festa para os santos de devoção, custe o que custar. g janeiro/fevereiro/março/2015 |
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TEXTO E DOCUMENTOS QUE INTERESSAM A HISTÓRIA DA PARAÍBA
CONSTITUIÇÃO DE 27 DE SETEMBRO DE 1930* A Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, consultando os princípios de justiça, utilidade pública e interesse do povo, em nome de Deus e de acordo com o Artigo 62 da Constituição, decreta que esta seja observada daqui por deante com o seguinte teor: TÍTULO I DO ESTADO Art. 1º - O Estado da Parahyba, parte integrante da República dos Estados Unidos do Brasil, reger-se-á por esta Constituição e pelas leis que adaptar, no exercício dos poderes que a Constituição Federal lhe concede, ou lhe, não recusa por clausula expressa ou implicitamente contida nas suas clausulas empressas, ou não atribue a competência privativa da União. Art. 2º - O território do Estado é o mesmo da antiga província. Os seus limites não poderão ser alterados senão em virtude de sentença do Supremo Tribunal Federal, ou si o Estado resolver incorporar-se total ou parcialmente em outro, ou desmembrar-se para formar novo Estado, mediante a acquiescencia da Assembléia ou Congresso do outro Estado, em duas sessões annuaes successivas, e approvação do Congresso Nacional. (Const. Federal), art. 59-60, I c, art. 4º e art. 34, nº 10). Art. 3º - O Governo do Estado tem por orgãos tres poderes legislativos, executivo e judiciário - harmônicos e independentes entre si. Art. 4º - É defeso ao Estado: 1º - recusar fé aos documentos públicos, de natureza legislativa, executiva ou judiciaria, da União ou de outros Estados; 2º - rejeitar a moeda ou a emissão bancaria em circulação por acto do Governo Federal; 3º - fazer ou declarar guerra a outro Estado e contra elle usar de represálias; 4º - denegar a extradição de criminoso os reclamados pelas justiças de outros Estados ou do Distrito Federal, segundo as leis da União por que esta materia se reger; 5º - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos, ou com elles criar relações de dependencia ou alliança. (Const. Fed. art. 66, art. 11, nº e art. 72, §7º). TÍTULO II CAPÍTULO I DO PODER LEGISLATIVO Art. 5º - o poder legislativo a exercido pela Assembléa Legislativa, com a sancção do Presidente do Estado. §1º - A Assemblea compor-se-á de 30 deputados eleitos por suffragio popular directo, e será presidida pelo Vice-Presidente do Estado. §2º - Quando o número de eleitores do Estado exceder de 50.000, o de membros da Assembléa poderá it sendo elevado na razão de um por 5.000 eleitores, ate ao máximo de 40 deputados. Art. 6º - A assembléa reunir-se-á em sessão ordinária na capital do Estado, independentemente de convocação, a 5 de agosto de cada anno, ou em outra data que a lei designar, e funccionará duran-
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te dois mezes, contados do dia da abertura. Poderá também reunir-se extraordinariamente por convocação do Presidente do Estado, e, neste caso, as suas deliberações serão restrictas ao assumpto que houver motivado a convocação. Art. 7º - Em garantia da independencia dos trabalhos legislativos, a Assembléa por deliberação propria ou, tratando-se de sessão extraordinaria, por indicação motivada e approvada do Presidente do Estado, poderá funccionar fora do local do costume, comtanto que o logar escolhido seja público e accessivel ao povo. Não estando reunida a Assembléa, a deliberação, no primeiro caso, e a approvação, no segundo, competirão à Mesa, precedendo consulta e acquiescencia da maioria dos deputados. O Presidente do Estado tem conhecimento do logar designado. Art. 8º - A reunido da Assembléa poderá ser adiada por voto della propria ou, em sua ausencia, pela Mesa, com assentimento previo da maioria, dos deputados. Ao Presidente do Estado, é licito suggerir, justifcando-a, a conveniencia do adiamento, que, entretanto, só se tornará effectivo por um dos meios acima indicados. Em qualquer hypothese, o adiamento será fixado de modo que a Assembléa possa funccionar dois mezes dentro do anno. Art. 9º - Só a Assembléa compete prorogar a sessão legislativa. Art. 10º - A Assembléa trabalhará em sessões públicas, si por motivos excepcionaes não resolver o contrario. Salvo os casos dos arts. 23, nº XXI, 26, §2º, 29, 43 e 71, §1º, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, achando-se presentes, pelo menos metade e mais um dos deputados. Art. 11º - Cada legislatura durará quatro annos, não podendo a Assembléa, em caso algum, ser dissolvida. Art. 12º - Cabe à Assembléa verificar os poderes dos seus membros; eleger sua mesa; organizar o seu regimento; nomear, demitir, licenciar e aposentar, na forma da lei, os empregados de sua secretaria; regular a sua polícia interna; providenciar sobre a publicação dos debates e, em geral, sobre as necessidades do seu serviço. Art. 13º - São condições de elegibilidade para a Assembléa: 1º) - ser brasileiro nato, ou naturalizado desde dois annos pelo menos, antes da eleição; 2º) - estar na posse dos direitos de cidadão brasileiro e ser alistavel como eleitor; 3º) - não estar incurso em incompatibilidade legal. Paragrapho único - A lei ordinaria declarara os casos de imcompatibilidade eleitoral. Art. 14º - o deputado, ao tomar posse, contrahirá, em sessão pública, o compromisso de bem cumprir os seus deveres. Art. 15º - o deputado não poderá ser judicialmente responsabilizado pelas opiniões e votos que emitir no exercício do mandato. Art. 16º - o deputado desde que receber o diploma até a nova eleição, não poderá ser preso nem processado criminalmente por facto da jurisdição da justiça do Estado, sem prévia licença da Assembléa, salvo o caso de fragrancia em crime inafiançavel. Nesta hypothese, levado o processo até a pronuncia exclusive, a autoridade processante o remetterá à Assembléa, para decidir si deve ou não continuar. Si a Assembléa resolver pela negativa, o processo ficará suspen-
so emquanto durar o mandato, a menos que o accusado prefira ser julgado immediatamente. Art. 17º - o deputado vencerá no periodo das sessões, incluidas as prorogações ate trinta dias, um subsídio pecuniario. Recebera, além disto, cada anno, uma ajuda de custo. Subsídio e ajuda de custo serão votados pela Assembléa no fim de cada legislatura para a seguinte; na falta deste voto, perdurarão o subsídio e a ajuda de Custo da legislatura anterior. Nenhum outro vencimento, de comissão ou cargo activo do Estado ou do Município. Poderá ser percebido cumulativamente com o subsidio. Art. 18º - Durante as sessões, cessa para o deputado o exercício de qualquer outra funcção pública. Art. 19º - o deputado que for eleito para o Congresso Nacional, optará por um dos dois mandatos. Art. 20º - Ao deputado, desde que tenha sido eleito, é vedado, sob pena de perda do mandato: a) celebrar contractos com o Governo do Estado; b) acceitar emprego ou comissão remunerada do mesmo Governo, salvo o caso de accesso ou promoção legal; c) ser presidente ou fazer parte da directoria de bancos, companhias ou empresas que gozem de favores do Estado definidos em lei. Art. 21º - É livre os deputados renunciar o mandato. Presumir-se-á a renuncia si o deputado deixar de tomar posse dentro dos trinta dias seguintes ao reconhecimento ou faltar sem causa justificada durante uma sessão annual inteira. Art. 22º - Em caso de vaga, o Presidente da Assembléa requisitará immediatamente do Presidente do Estado que mande proceder, dentro de quarenta dias, a eleição de outro deputado, para exercer o mandato pelo período restante da legislatura. Decorrido esse prazo, que se contará da requisição, sem que a eleição tenha sido marcada, o Presidente da Assembléa designará o dia em que ella se deva effectuar.
§2º - O projecto devolvido, ou a sua parte não sanccionada, serão sujeito a uma só discussão e se terá por approvado si, em votação nominal, obtiver dois terços dos votos presentes. Neste, como nos dois ultimos casos previstos no paragrapho antecedente, a lei será publicada pelo Presidente da Assembléa. §3º - No exercício do veto parcial, o Presidente do Estado recusará integralmente o artigo ou paragrapho da resolução com o qual não estiver de accordo, sendo-lhe defeso limitar-se a alteral-o de qualquer modo. Art. 27º - A sancção e a publicação das leis effectuam-se por estas fórmulas:
CAPÍTULO II DAS ATTRIBUIÇÕES DA ASSEMBLÉA
TÍTULO III CAPÍTULO I DO PODER EXECUTIVO
Art. 23º - Compete à Assembléa Legislativa, além das attribuições expressas em outros artigos: I - Orçar a receita e fixar a despesa do Estado annualmente, decretando os impostos necessarios, e tomar as contas de cada exercício financeiro no começo da subsequente sessão legislativa. II - Regular a arrecadação, contabilidade e distribuição das rendas, estabelecendo os meios de fazer effectiva a responsabilidade dos funccionarios que tenham a seu cargo esses serviços. CAPÍTULO III DAS ELABORAÇÕES DAS LEIS Art. 25º - Os projectos de leis podem ser propostos por qualquer deputado ou, em mensagem, pelo Presidente do Estado, e passarão por tres discussões em dias diversos excepto os das commissões da Assembléa e os do Governo que transitarão em duas discussões. Art. 26º - O projecto de lei, uma vez approvado será remetido ao Presidente do Estado, que, si com elle estiver de accordo o sanccionará e fará publicar. §1º - Si o Presidente julgar o projeto no todo ou em parte, contrario à Constituição Federal, a do Estado ou os interesses deste recusar-lhe-á, total ou parcialmente a sua sancção dentro de dez dias uteis, a contar daquelle em que o recebeu, e devolverá o projecto, ou a parte vetada, neste mesmo prazo, à Assembléa, com os motivos de recusa. Si o não fizer até o último dia do decennio, o projecto se considerará integralmente sanccionado e será publicado como lei. Do mesmo modo se procedera si, negada a sancção quando já estiver encerrada a sessão legislativa, o Presidente do Estado deixar de dar publicidade dentro do prazo às razões do veto.
“F., Presidente do Estado da Parahyba - Faço saber que a Assembléa Legislativa decretou e eu sanccionei a seguinte resolução: “F., Presidente da Assembléa Legislativa do Estado da Parahyba - Faço saber que a mesma Assembléa decretou e eu, de accordo com o art. 26, §2º (ou art. 24) da Constituição, publico a seguinte resolução”. Art. 28º - Com excepção do de orçamento, os projectos rejeitados e os que, tendo sido vetados, não obtiverem a approvação da Assembléa, não poderão ser renovados sinão depois de dois annos. Os últimos, todavia, poderão sel-o antes deste prazo, si a renovação tiver por fim modifical-os de accordo com as razões do Presidente. O projecto assim modificado voltará à sancção. Art. 29º - Os projectos de lei que versarem sobre interesses particulares, concessões ou auxilios a empresas ou associações, só se considerarão approvados quando reunirem dois terços dos votos presentes.
Art. 30º - O poder executivo é exercido pelo Presidente do Estado, eleito por quatro annos. Art. 31º - Substituirá o Presidente, nos seus impedimentos e succederlhe-á no caso de falta, o Vice-Presidente, eleito na mesma occasião e pelo mesmo espaço de tempo. Si, entretanto, a vaga se abrir antes de decorridos dois annos do periodo, proceder-se-á nova eleição para o tempo que faltar. §1º - No impedimento do Vice-Presidente, a substituição tocará successivamente ao 1º Vice Presidente da Assembléa, ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça e aos membros deste, por ordem de antiguidade. O substituto chamado ao Governo tomará posse perante o Tribunal, se a Assembléa não estiver funccionando. §2º - Verificada a vaga de Vice-Presidente, eleger-se-á um substituto pelo tempo ainda restante do mandato do Presidente. §3º- Vagando os dois cargos, a eleição para ambos se fará por um novo periodo de quatro annos. Art. 32º - Só pode ser eleito Presidente ou Vice Presidente o brasileiro nato, maior de trinta annos, que estiver no exercício de seus direitos políticos. Deverá, além disso, si não for natural do Estado, ter nelle domicilio desde cinco annos antes da eleição, ou represental-o já representado, na Assembléa Legislativa ou no Congresso Nacional. Art. 33º - O Presidente não pode ser reeleito ou eleito Vice-Presidente ou os substitutos, que houverem exercido o Governo dentro dos ultimos seis mezes anteriores à eleição, não poderão ser eleitos Presidentes ou Vice-Presidente para o periodo seguinte. Art. 34º - O Presidente e o Vice-Presidente deixarão os cargos no mesmo dia em que terminar o periodo, succedendo-lhes immediatamente os recém-eleitos. janeiro/fevereiro/março/2015 |
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§1º - Si algum destes ou ambos estiverem impedidos ou faltarem a substituição se fará nos termos do art. 31. §2º - Perderá o cargo o Presidente ou Vice-Presidente eleitos que deixar de tomar posse até trinta dias depois de iniciado o periodo, salvo caso de força maior, a juízo da Assembléa. §3º - Perdelo-á também, por decisão do tribunal especial de que trata o art. 43, no caso de enfermidade que o inhabilite de modo definitivo para exercer as suas funcções. Art. 35º - Ao tomar posse, o Presidente pronunciará perante a Assembléa ou, si esta não estiver funccionando, perante o Superior Tribunal de Justiça, o seguinte compromisso: “Prometto manter e cumprir com lealdade e patriotismo a Constituição e as leis, e promover, quanto em mim couber, o bem do Estado”. Art. 36º - O Presidente e o Vice-Presidente perceberão os vencimentos que a Assembléa fixar na conformidade do art. 23, nº XVII. Art. 37º - Não podem o Presidente e o Vice-Presidente, durante o quadriennio, exercer qualquer outro emprego ou função pública, nem acceitar da União ou dos Estados emprego, commissão ou mandato, sob pena de perda do cargo. Paragrapho único - São extensivas ao Presidente e ao Vice-Presidente as prohibições do art. 20. Art. 38º - O Presidente ou o Vice-Presidente em exercício não poderá sahir do Estado sem licença da Assembléa, ou do Superior Tribunal de Justiça, si esta não estiver reunida, sob pena de perda do cargo. Esta prohibição não comprehende os casos de ausência menor de quinze dias, determinada por motivo de moléstia ou serviço publico. CAPÍTULO II DA ELEIÇÃO DO PRESIDENTE E DO VICE-PRESIDENTE Art. 39º - O Presidente e o Vice-Presidente do Estado serão eleitos por suffragio popular directo. A eleição se fará tres mezes antes do último dia do quadriennio e no caso de vaga, dentro de quarenta dias. §1º - Trinta dias depois da eleição a Assembléa, reunida independentemente de convocação e com qualquer numero de deputados, procederá a sua apuração definitiva, e, reconhecida a sua legitimidade pela maioria dos presentes, o Presidente proclamará Presidente e Vice-Presidente do Estado os dois cidadãos que houverem obtido para estes cargos a maioria absoluta dos suffragios. §2º - Si nenhum dos candidatos tiver alcançado a maioria absoluta, a Assembléa, pela maioria dos votos presentes, elegerá o Presidente e o VicePresidente do Estado dentre os cidadãos que occuparam, na respectiva votação, os dois primeiros logares. Havendo sido na maioria absoluta attingida somente em relação a um dos cargos, o mesmo processo será observado para o preenchimento do outro. Em caso de empate, considerar-se-á eleito o candidato mais velho. Art. 40º - São inelegiveis para o cargo de Presidente ou Vice-Presidente: 1º, os membros da justiça federal do Estado e as autoridades administrativas da União que exercerem jurisdicção em todo o território deste; 2º, os membros do poder judiciário, os secretarios de Estado, o commandante da Forca Pública e quaesquer autoridades que exerçam jurisdicção em todo o território do Estado; 3º, os parentes consanguineos ou affins, até ao terceiro gráo civil, do Presidente, Vice-Presidente ou substituto que houver exercido o Governo dentro dos seis mezes immediatamente anteriores à eleição.
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Paragrapho único - A inelegibilidade prevista em os ns. I e 2 deste artigo subsiste ate tres mezes depois de haverem cessado as funcções que a determinaram. CAPÍTULO III DAS ATTRIBUIÇÕES DO PRESIDENTE Art. 41º - Compete ao Presidente do Estado, além das attribuições previstas em outros artigos: I - Sanccionar, publicar e fazer cumprir as leis votadas pela Assembléa. II - Expedir os regulamentos, instruções e actos necessarios à fiel execução das leis e também os que entender convenientes à organização e funccionamento dos serviços administrativos, desde que não contravenham as leis em vigor nem invadam a esphera de acção do poder legislativo. III - Nomear, remover, demittir, licenciar, aposentar, jubilar e reformar os funccionarios públicos, na forma da lei. IV - Dispor a Força Pública conforme o exigir o interesse do Estado. V - Contrahir empréstimos e fazer operações de credito (art. 23, nº III). VI - Celebrar com os Estados convenções e ajustes (art. 23, nº V). VII - Convocar extraordinariamente a Assembléa. VIII - Perdoar e commutar as penas nos crimes communs sujeitos a jurisdicção do Estado, salvo o disposto no art. 23, nº XII, em relação aos secretarios de Estado. IX - Decretar a desapropriação por utilidade ou necessidade pública nos termos da lei. X - Mandar proceder as eleições federaes, estaduaes e municipais, e velar por que se effectuem com inteira liberdade e rigorosa observancia das leis. XI - Solicitar e conceder a extradicção interestadual de criminosos, na conformidade da respectiva lei federal. XII - Solicitar socorros da União na hypothese do art. 5º da Constituição Federal ou, si delles não precisar, decretar as despesas necessarias em caso de calamidade ou perigo publico, ou outros de natureza urgente e inadiavel, sujeitando o acto à approvação da Assembléa em sua primeira reunião. Exceptuados estes casos, não poderá o Presidente ordenar despesas que não esteja prevista em lei. XIII- Suspender na ausencia da Assembléa, as leis, actos a decisões dos governos municipaes, nos casos previstos no art. 23, n. XIV, levando o acto ao conhecimento da mesma Assembléa logo que esta se reunirá. Esta attribuição será exercida dentro de vinte dias contados daquelle em que o Presidente tiver sciencia do facto. XIV - Representar o Estado perante os poderes federaes e dos outros Estados. XV - Entrar em accordo con o Governo Federal sobre a execução de leis da União no território do Estado (Const. Fed., art. 7º §3º). XVI - Reclamar a intervenção do Governo Federal no caso do art. 6º, nº III da Constituição da República. Art. 42º - Incumbe ao Presidente do Estado: I - Prestar, por escripto, ou por intermedio dos seus secretarios, as informações e esclarecimentos solicitados pela Assembléa sobre os negocios públicos. Tratando-se de assumpto reservado ou a divulgação possa ser prejudicial aos interesses do Estado, as informações e esclarecimentos serão dadas em sessão secreta. II - Apresentar a Assembléa, na sessão annual de abertura, um relatório minucioso dos negocios públicos, com o qual offerecerá os dados necessarios para a elaboração do orçamento e indicará os melhoramentos e reformas de que precise o Estado.
CAPÍTULO IV DA RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE Art. 43º - O Presidente do Estado será processado e julgado, depois que a Assembléa, por dois terços dos votos presentes declarar procedente a accusação: pelo Superior Tribunal de Justiça, nos crimes communs, e por um tribunal especial composto de tres deputados, eleitos pela Assembléa no começo de cada legislatura, e tres desembargadores eleitos na mesma occasião pelo Superior Tribunal, nos actos que attentarem contra: a) a Constituição do Estado; b) o livre exercício dos outros poderes; c) o goso e o exercício legal dos direitos políticos ou individuaes; d) a segurança interna do Estado; e) a probidade da administração; f) a guarda e emprego constitucional dos dinheiros públicos; g) a lei orçamentária. §1º - Uma lei especial definirá esses actos. §2º - O tribunal especial será presidido pelo Presidente do Superior Tribunal de Justiça. §3º - Si a Assembléa não estiver funccionando, o seu Presidente a convocará extraordinariamente. §4º - Uma vez declarada a procedencia da accusação, ficará o Presidente do Estado suspenso de suas funcções. §5º - O tribunal especial não poderá impor ao accusado senão a perda do cargo, sem prejuízo da acção da justiça ordinaria. §6º - A renúncia ou a terminação do mandato do Presidente por termo ao processo de responsabilidade, mas não obstara a acção dos tribunaes communs. §7º - O Vice-Presidente fica sujeito ao mesmo processo por actos praticados no exercício da presidencia. CAPÍTULO V DOS SECRETÁRIOS DE ESTADO Art. 44º - Para o auxiliar na administração do Estado, o Presidente terá, conforme a lei estatuir, um ou mais secretarios de sua confiança pessoal. Art. 45º - Os secretarios não poderão ser eleitos deputados, Presidente ou Vice-Presidente do Estado nem exercer qualquer outra missão ou emprego publico. §1º - O deputado que acceitar o cargo de secretario de Estado, perderá o mandato e não poderá ser votado na eleição a que se proceder para preenchimento da vaga. §2º - As funcções dos secretarios cessarão com as do Presidente que os houver nomeado. §3º - São extensivas aos secretarios de Estado as proibições do art. 20. Art. 46º - Os secretarios são obrigados a apresentar annualmente, ao Presidente do Estado, um relatório dos serviços que tiveram a seu cargo, e a ministrar, por escripto, as commissões da Assembléa, as informações que lhes forem solicitadas. Poderão, além disto, quando convidados, comparecer às sessões das mesmas commissões para prestarem verbalmente essas informações ou para justificarem os projectos propostos pelo Presidente. Art. 47º - Os secretarios serão processados e julgados, nos crimes communs e de responsabilidade, pelo Superior Tribunal de Justiça, e, nos casos de codelinquencia com o Presidente, pela auctoridade competente para o julgamento deste. TÍTULO VI DO PODER JUDICIÁRIO Art. 48º - O poder judiciário terá por órgãos: 1º) - O jury criminal, com escrutinio secreto; 2º) - O Superior Tribunal de Justiça, com sede na capital e jurisdicção em todo o Estado.
§1º) - A lei de organização judiciaria definirá as attribuições, de cada um destes orgãos, assim como dos membros do Ministério Publico, e estabelecerá o modo de provimento destes e dos juízes. §2º) - Entre as attribuições do poder judiciário se incluirá a de recusar applicação, na especie, sujeita a julgamento as leis que infringirem esta Constituição ou a legislação federal, e aos actos do poder executivo ou dos municípios que forem contrarios as leis da União ou do Estado. Art. 49º - As nomeações para o Superior Tribunal de Justiça serão feitas: a) dentre os juízes de direito incluidos numa lista que o Tribunal organizará para cada vaga occurrente; b) dentre cidadãos estranhos à magistratura de maior reputação e notaveis conhecimentos juridicos. §1º - A lista conterá os nomes dos tres juízes mais antigos, e além destes, dos dois de maior merecimento entre os que contarem mais de cinco annos de effectivo exercício como juiz de direito. O merecimento será apurado pelo Tribunal em concurso de documentos. Havendo mais de uma vaga a preencher ao mesmo tempo, a lista Será accrescida de tantos nomes, um por antiguidade, outro por merecimento, quantas forem as vagas excedentes. §2º - A nomeação, independente de lista e concurso, a que se refere à letra b, será feita sob aquellas condições, a juízo do Presidente do Estado, na proporção de uma para cada tres vagas occurrentes. Art. 50º - Para representar, perante o Superior Tribunal e os juízes, os interesses do Estado, da Justiça Pública, dos interdictos e outros que a lei indicar, haverá o Ministério Público composto do procurador geral do Estado, promotores públicos e curadores. Paragrapho único - o procurador geral, escolhido entre os cidadãos diplomados em direito com seis annos, pelo menos, de pratica forense, será nomeado por quatro annos e terá assento no Tribunal, sem voto. Art. 51º - Os membros do Superior Tribunal terão o título de desembargadores, e, do mesmo modo que os juízes de direito, só perderão o cargo: a) por effeito de sentença judicial passada em julgado; b) por abandono das funcções, superior e tres mezes; c) por incapacidade physica ou mental. As condições previstas nas Letras b e c serão verificadas de accordo com o processo que a lei estabelecer pelo tribunal especial do art. 43, ou pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se tratar de desembargadores ou de Juízes. Art. 52º - Os desembargadores serão processados e julgados, nos crimes communs, pelo Superior Tribunal e nos de responsabilidade, pelo tribunal especial de que trata o art. 43. Quando o numero de desembargadores desimpedidos for inferior a quatro o tribunal especial se completará com tantos deputados sorteados quantos bastem. Art. 53º - Os juízes de direito não poderão ser removidos senão a pedido, por accesso legal ou por proposta do Superior Tribunal, depois que este verificar em processo regular, a inconveniencia da continuação do juiz na respectiva comarca. O processo se fará por iniciativa do procurador geral ou em virtude de representação de um dos Conselhos Municipaes da comarca ou de um grupo de jurisdiccionados, eleitores, nunca inferior a cem. Não havendo vaga que possa preencher, o juiz ficara avulso, com direito ao ordenado do cargo, ate que a vaga occorra. Art. 54º - Ao Superior Tribunal, alem das attribuições já expressas e das que lhe conferir a lei de organização judiciaria, compete: I - Fazer o seu regimento interno, eleger, dentre os desembargadores o seu presidente; e nomear, demittir e aposentar os empregados de sua secretaria, na forma da lei. II - Dar posse ao Presidente do Estado, (art. 35) desembargadores e juízes. III - Julgar em grau de recursos as questões decididas pelo jury e as excedentes da alçada dos juízes. janeiro/fevereiro/março/2015 |
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IV - Decidir os conflictos de jurisdicção entre as auctoridades judiciarias, e entre estas e as administrativas. V - Processar e julgar o procurador geral do Estado e os juízes de direito, assim nos crimes communs como nos de responsabilidade. VI - Organizar annualmente o quadro de antiguidade dos juízes e resolver as reclamações que surgirem a este respeito. VII - Enviar ao Presidente do Estado, logo que occorra alguma vaga de desembargador, a lista de que trata o art. 49. VIII - Solicitar a intervenção do Governo Federal para garantir lhe o livre exercício das funcções (Const. Fed. art. 6º, nº III ). Art. 55º - Das sentenças da justiça do Estado em ultima instancia haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal. a) - quando se questionar sobre a vigencia, ou a validade de leis federaes em face da Constituição, e a decisão do tribunal do Estado lhes negar applicação; b) - quando se contestar a validade de leis ou de actos do Governo do Estado em face da Constituição ou das leis federais e a decisão do tribunal do Estado considerar validas as leis ou actos impugnados; c) - quando um ou mais tribunaes locaes divergirem do tribunal do Estado na interpretação da mesma lei federal, caso em que o recurso poderá ser interposto pelo proprio tribunal do Estado; d) - quando se tratar de questões de direito criminal ou civil internacional. (Const. Fed. art. 59-60, §1º a, b, c e d). Art. 56º - as decisões dos juízes do Estado não porão termo também às questões relativas a habeas-corpus e a espolio de estrangeiro em que a especie não estiver prevista em convenção ou tratado. Nestes casos, será igualmen te licito as partes recorrer para o Supremo Tribunal Federal. (Const. Fed., art. 61). Art. 57º - os juízes do Estado consultarão a jurisprudencia dos tribunaes federaes quando houverem de interpretar as leis da União. (Const. Fed. art. 59-60, §2º). Art. 58º - Os juízes do Estado não poderão intervir em questões submetidas aos tribunaes federaes, nem annullar, alterar ou suspender as suas sentenças ou ordens. (Const. Fed., art. 62). Art. 59º - Nenhum recurso judiciário é permittido contra a verificação de poderes, o reconhecimento, a posse, a legitimidade e a perda de mandato dos deputados, Presidente ou Vice-Presidente do Estado, assim como, na vigencia do estado de sitio, não poderão os juízes do Estado conhecer dos actos praticados em virtude delle pelo poder legislativo ou executivo da União. (Const. Fed. art. 5960, §5º). Art. 60º - Os desembargadores, juízes e membros do Ministério Público não poderão exercer funccões dos poderes legislativo ou executivo, excepto as de secretario da Segurança Pública. Art. 61º - Os vencimentos dos desembargadores e juízes do Estado são irreductiveis, salvo a hypothese de imposto geraes creados por lei. Art. 62º - Será permittido o julgamento por arbitros, desde que na questão não sejam interessados menores, interdictos ou a Fazenda Pública do Estado ou do Município. Nos contractos celebrados com a Fazenda poder-se-á, todavia, instituir o juízo arbitral para a solução das duvidas e contestações que surgirem em sua execução. TÍTULO V DOS MUNICÍPIOS Art. 63º - O Estado divide-se em municípios. A lei ordinaria regulará a criação destes, sua incorporação total ou parcial, divisão, suppressão, limites, organização, são attribuições fontes de renda e responsabilidade. Art. 64º - Os municípios são autonomos em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse. (Const. Fed., art. 68). Somente nos casos previstos nos arts. 23, nº XIV e 41, nº XII, e nos dois artigos seguin-
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tes, poderá o Governo do Estado intervir nos negocios municipais. Art. 65º - No caso de dualidade de Conselhos Municipais a Assembléa decidira approvando uma das eleições ou annullando ambas. Nesta ultima hypotese, mandara proceder immediatamente a outra eleição de modo que os novos eleitos possam assumir o exercício dos cargos no primeiro dia do perio do. Si isto não for possivel, ou si a Assembléa não estiver reunida, o mandato do Conselho a findar ficará prorogado até solução definitiva do conflicto. Art. 66º - A execução das deliberações do governo municipal relativa a empréstimos e a aforamento, permuta ou alienação de immoveis do Município, depende da approvação do Presidente do Estado. Art. 67º - Cada Município terá um Prefeito, de nomeação do Presidente do Estado ou eleito conforme o determinar a lei ordinaria, e um Conselho eleito por suffragio popular directo e por um periodo de quatro annos, além das auctoridades inferiores que criar a lei de organização municipal. Art. 68º - Para o exercício das attribuições previstas na primeira parte do art. 23, nº XVI e no art. 41, nº XII, os Conselhos Municipais remetterão à Assembléa e ao Presidente do Estado cópias authenticas de suas leis, actos e decisões, logo depois de publicadas nos respectivos municípios. Art. 69º - Os governos municipais poderão associar-se para a execução de serviços de interesse commum, dependendo, porém, de approvação da Assembléa as resoluções que a este respeito adptarem. TÍTULO VI DECLARAÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS Art. 70º - O Estado assegura, no seu territorio e nos limites de sua competencia, a effectividade dos mesmos, direitos e garantias que a Constituição da República reconhece e confere a nacionaes e estrangeiros. §1º - Todos são eguaes perante a lei. §2º - Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. §3º - Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum. §4º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos do Estado. §5º - O Estado só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. Serão do mesmo modo isentos de sellos e emolumentos todos os documentos e actos necessarios à effectuação do casamento. §6º - Os cemiterios terão caracter secular e serão administrados pela auctoridade municipal, ficando livre de todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritmos em relação aos seus crentes, desde que não offendam a moral pública e as leis. §7º - Em qualquer assumpto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa, pela tribuna ou por outro qualquer meio, sem dependencia de censura, respondendo cada um pelos abusos que commetter, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não a permitido o anonymato. §8º - A todos é livre associarem-se ou reunirem-se sem armas; a polícia não poderá intervir senão manter a ordem pública. §9º - É permitido a quem quer que seja representar mediante petição, aos poderes públicos, denunciar abusos das auctoridades e promover a responsabilidade dos culpados. §10º - Ninguém pode penetrar na casa do cidadão, de noite, sem o seu consentimento, senão para acudir a victimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescripta em lei. §11º - Aos accusados se assegurara na lei plena defesa, com to-
dos os recursos e meios essenciaes a esta, desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e assignada pela auctoridade competente com os nomes do accusador e das testemunhas. §12º - A excepção do flagrante delicto, a prisão, não poderá executar-se senão depois da pronuncia do indiciado exceptuados aos casos previstos na lei e mediante ordem escripta da autoridade competente. §13º - Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvas as excepções especificadas em lei, nem levado à prisão ou nella detido, si prestar fiança idonea nos casos em que a lei a admittir. §14º - Ninguém será sentenciado senão pela auctoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ella regulada. §15º - Nenhuma pena passaráda pessoa do delinquente. §16º - Dar-se-á o habeas-corpus sempre que alguém soffrer violencia, por meio de prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção. §17º - A excepção dos casos que, por sua natureza, pertencem a juizos especiaes, não haverá foro privilegiado. §18º - O direito de propriedade mantem-se em toda a plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública mediante indemnização previa. a) - as minas pertencem ao proprietario do solo, com as limitações estabelecidas por lei a bem da exploração das mesmas; b) - as minas e jazidas mineraes, necessarias à segurança e defesa nacionaes, e as terras onde existirem não podem ser transferidas a estrangeiros. §19º - É garantido o livre exercício de qualquer profissão, moral, intellectual e industrial. §20º - Aos autores de obras literarias ou artisticas é garantido o direito exclusivo de reproduzil-as pela imprensa ou por qualquer outro processo. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar. §21º - Os inventos indústriaes pertencerão aos seus autores com privilegio ou premio que a lei garantir ou conceder. §22º - É inviolavel o sigillo da correspondencia. §23º - Nenhum imposto de qualquer natureza poderá ser cobrado senão em virtude de lei. §24º - À parte as medidas acaso adotadas pelo Governo Federal em tempo de guerra, qualquer pessoa pode entrar no territorio do Estado ou delle sahir, com os seus bens, quando lhe convier. §25º - Os cargos públicos do Estado são accessiveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir. §26º - Além dos direitos acima especificados, o Estado garante todos os que decorrerem da forma de governo estabelecida e dos principios consagrados por esta e pela Constituição Federal. TÍTULO VII DA REFORMA DA CONSTITUIÇÃO Art. 71º - Esta Constituição só poderá ser reformada por proposta da terça parte, pelo menos, dos membros da Assembléa, ou de dois terços do municípios representado cada um destes pela maioria do seu Conselho. §1º - Em qualquer destes casos, a proposta, si for admittida como objecto de deliberação em duas discussões successivas e por dois terços dos votos presentes, será no anno seguinte submettida a tres discussões, e se tem por approvada, si obtiver em cada uma dellas dois terços de votos dos membros da Assembléa. §2º - A reforma, uma vez approvada, será publicada pela Mesa da Assembléa.
TÍTULO VIII DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 72º - Os funccionarios públicos são estrictamente responsaveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligencia manifestada em não responsabilizarem effectivamente os seus subalternos. Art. 73º - Nenhum empregado poderá accumular vencimentos, sejam estes pagos pelos cofres do Estado ou do Município, salvo tratando-se de funcções de ordem puramente profissional, scientifica ou techinica, que não envolvam autoridade administrativa, judiciaria ou política do Estado. Os aposentados, jubilados ou reformados, que acceitarem funcção remunerada, terão direito unicamente ao vencimento desta. Art. 74º - Só os desembargadores, Juiz de direito e tabelliães serão vitalicios. A lei ordinaria, entretanto, poderá estabelecer restricções a demissibilidade dos funccionarios que contem certo numero de annos de serviço ou que, pela natureza das funcções, devam gozar de certa estabilidade. Art. 75º - A polícia do Estado prestará auxilio aos officiaes judiciários da União, que o invocarem para execução das sentenças e ordens da magistratura federal. Art. 76º - São também irreductiveis, salvo a hypothese prevista no final do art. 61, os vencimentos dos funccionarios públicos. Art. 77º - Quando na repressão dos crimes, a gravidade dos factos, a, posição social dos culpados ou patrocinio de pessoas poderosas puderem tolher a acção regular das autoridades locaes ou embaraçar o esclarecimento da verdade, o Presidente do Estado poderá determinar que o Juiz de uma comarca extranha se transporte temporariamente para a comarca onde tenha occorrido o delicto e ali proceda a formação da culpa até a pronuncia inclusive, com recurso necessario para o Superior Tribunal. Confirmada a pronuncia, poderá o Tribunal ordenar que o julgamento se faça por juiz ou pelo jury, conforme o caso, de comarca differente daquella em que o crime foi commettido. Art. 78º - Para as eleições do Estado e dos municípios o alistamento eleitoral será o mesmo da União. Art. 79º - Não são sujeitos a penhora os bens e rendas do Estado e do Município. DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS Art. 1º - Os vencimentos dos desembargadores e juízes nomeados antes desta reforma continuam isentos de imposto. Art. 2º - Os funccionarios não comprehendidos na enumeração do art. 74, que houveram sido nomeados antes desta reforma com caracter de vitalicidade, continuam garantidos nos seus cargos. Art. 3º - Ex-vi do disposto nos artigos 30 e seguintes da presente reforma, fica extincto o mandato do actual 2º vice-presidente do Estado. Art. 4º - O actual 1º vice-presidente em exercício continuará na presidencia, na qualidade de vice-presidente do Estado nos termos da presente reforma até o fim do corrente quadriennio. Sala das Sessões da Assembléa Legislativa do Estado da Parahyba do Norte, em 27 de setembro de 1930, 41º da República. ANTÔNIO GALDINO GUEDES Presidente SEVERINO DE ALBUQUERQUE LUCENA 1º Secretario JOÃO MAURICIO DE MEDEIROS 2º Secretario Todo o processo de elaboração dessa Constituição se encontra descrito no capítulo III do livro História Constitucional da Paraíba, de autoria do acadêmico e historiador Flávia Sátiro Fernandes (Belo Horizonte, 2009, Editora Fórum, 2ª edição)
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FICÇÃO
CASADA E VIÚVA(*) Conto de Machado de Assis CAPÍTULO I No dia em que José de Meneses recebeu por mulher Eulália Martins, diante do altar-mor da matriz do Sacramento, na presença das respectivas famílias, aumentou-se com mais um a lista dos casais felizes. Era impossível amar-se mais do que se amavam aqueles dois. Nem me atrevo a descrevê-lo. Imagine-se a fusão de quatro paixões amorosas das que a fábula e a história nos dão conta e ter-se-á a medida do amor de José de Meneses por Eulália e de Eulália por José de Meneses. As mulheres tinham inveja à mulher feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido. Mas os dois filósofos do amor relevaram à humanidade as suas fraquezas e resolveram protestar contra elas amando-se ainda mais. Mal contava um mês de casado, sentiu José de Meneses, em seu egoísmo de noivo feliz, que devia fugir à companhia e ao rumor da cidade. Foi procurar uma chácara na Tijuca, e lá se encafuou com Eulália. Ali viam correr os dias no mais perfeito descuido, respirando as auras puras da montanha, sem inveja dos maiores potentados da terra. Um ou outro escolhido conseguiu às vezes penetrar no santuário em que os dois viviam, e de cada vez que de lá saía vinha com a convicção mais profunda de que a felicidade não podia estar em outra parte senão no amor. Acontecia, pois, que, se as mulheres invejavam Eulália e se os homens riam de José de Meneses, as mães, as mães previdentes, a espécie santa, no dizer de E. Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo sexto pecado mortal: pediam simplesmente a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da estofa e da capacidade de José de Meneses. Mas cumpre dizer, para inspirar amor a maridos tais como José de Meneses, era preciso mulheres tais como Eulália Martins. Eulália em alma e corpo era o que há de mais puro unido ao que há de mais belo. Tanto era um milagre de beleza carnal, como era um prodígio de doçura, de
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elevação e de sinceridade de sentimentos. E, sejamos francos, tanta coisa junta não se encontra a cada passo. Nenhuma nuvem sombreava o céu azul da existência do casal Meneses. Minto, de vez em quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de cinco meses de casados, Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se demorar mais do que costumava o amante José de Meneses. Mas não passava isso de uma chuva de primavera, que, mal assomava o sol à porta, cessava para deixar aparecer as flores do sorriso e a verdura do amor. A explicação do marido já vinha sobreposse; mas ele não deixava de dá-la apesar dos protestos de Eulália; era sempre excesso de trabalho que pedia a presença dele na cidade até uma parte da noite. Ano e meio viveram assim os dois, ignorados do resto do mundo, ébrios da felicidade e da solidão. A família tinha aumentado com uma filha no fim de dez meses. Todos que são pais sabem o que é esta felicidade suprema. Aqueles quase enlouqueceram. A criança era um mimo de graça angélica. Meneses via nela o riso de Eulália, Eulália achava que os olhos eram os de Meneses. E neste combate de galanteios passavam as horas e os dias. Ora, uma noite, como o luar estivesse claro e a noite fresquíssima, os dois, marido e mulher, deixaram a casa, onde a pequena ficara adormecida, e foram conversar junto ao portão, sentados em cadeiras de ferro e debaixo de uma viçosa latada, sub tegmine fagi. Meia hora havia que ali estavam, lembrando o passado, saboreando o presente e construindo o futuro, quando parou um carro na estrada. Voltaram os olhos e viram descer duas pessoas, um homem e uma mulher. — Há de ser aqui, disse o homem olhando para a chácara de Meneses. Neste momento o luar deu em cheio no rosto da mulher. Eulália exclamou: — É Cristiana! E correu para a recém-chegada. Os dois novos personagens eram o Ca-
pitão Nogueira e Cristina Nogueira, mulher do capitão. O encontro foi o mais cordial do mundo. Nogueira era já amigo de José de Meneses, cujo pai fora colega dele na escola militar, andando ambos a estudar engenharia. Isto quer dizer que Nogueira era já homem dos seus quarenta e seis anos. Cristiana era uma moça de vinte e cinco anos, robusta, corada, uma dessas belezas da terra, muito apreciáveis, mesmo para quem goza uma das belezas do céu, como acontecia a José de Meneses. Vinham de Minas, onde se haviam casado. Nogueira, cinco meses antes, saíra para aquela província a serviço do Estado e ali encontrou Cristiana, por quem se apaixonou e a quem soube inspirar uma estima respeitosa. Se eu dissesse amor, mentia, e eu tenho por timbre contar as coisas como as coisas são. Cristiana, órfã de pai e mãe, vivia na companhia de um tio, homem velho e impertinente, achacado de duas moléstias gravíssimas: um reumatismo crônico e uma saudade do regímen colonial. Devo explicar esta última enfermidade; ele não sentia que o Brasil se tivesse feito independente; sentia que, fazendo-se independente, não tivesse conservado a forma de governo absoluto. Gorou o ovo, dizia ele, logo depois de adotada a constituição. E protestando interiormente contra o que se fizera, retirou-se para Minas Gerais, donde nunca mais saiu. A esta ligeira notícia do tio de Cristiana acrescentarei que era rico como um Potosi e avarento como Harpagão. Entrando na fazenda do tio de Cristiana e sentindo-se influído pela beleza desta, Nogueira aproveitou-se da doença política do fazendeiro para lisonjeá-la com umas fomentações de louvor do passado e indignação pelo presente. Em um servidor do Estado atual das coisas, achou o fazendeiro que era aquilo uma prova de rara independência, e o estratagema do capitão surtiu duas vantagens: o fazendeiro deu-lhe a sobrinha e mais um bom par de contos de réis. Nogueira, que
só visava a primeira, achou-se felicíssimo por ter alcançado ambas. Ora, é certo que, sem as opiniões forjadas no momento pelo capitão, o velho fazendeiro não tiraria à sua fortuna um ceitil que fosse. Quanto a Cristiana, se não sentia pelo capitão um amor igual ou mesmo inferior ao que lhe inspirava, votava-lhe uma estima respeitosa. E o hábito, desde Aristóteles todos reconhecem isto, e o hábito, aumentando a estima de Cristiana, dava à vida doméstica do Capitão Nogueira uma paz, uma tranquilidade, um gozo brando, digno de tanta inveja como era o amor sempre violento do casal Meneses. Voltando à corte, Cristiana esperava uma vida mais própria aos seus anos de moça do que a passada na fazenda mineira
na companhia fastidiosa do reumático legitimista. Pouco que pudessem alcançar as suas ilusões, era já muito em comparação com o passado. Dadas todas estas explicações, continuo a minha história. Deixo ao espírito do leitor ajuizar como seria o encontro de amigos que se não veem há muito. Cristiana e Eulália tinham muito que contar uma à outra, e, em sala à parte, ao pé do berço em que dormia a filha de José de Meneses, deram largas à memória, ao espírito e ao coração. Quanto a Nogueira e José de Meneses, depois de narrada a história do respectivo casamento e suas esperanças de esposos, entraram, um na exposição das suas impressões de viagem, o outro na das
impressões que deveria ter em uma viagem que projetava. Passaram-se deste modo as horas até que o chá reuniu a todos quatro à roda da mesa de família. Esquecia-me dizer que Nogueira e Cristiana declararam desde o princípio que, tendo chegado pouco havia, tencionavam demorar-se uns dias em casa de Meneses até que pudessem arranjar na cidade ou nos arrabaldes uma casa conveniente. Meneses e Eulália ouviram isto, pode-se dizer que de coração alegre. Foi decretada a instalação dos dois viajantes. Tarde se levantaram da mesa, onde o prazer de se verem juntos os prendia insensivelmente. Guardaram o muito que ainda havia a dizer para os outros dias e recolheram-se.
CAPÍTULO II
— Conhecia José de Meneses? perguntou Nogueira a Cristiana ao retirar-se para os seus aposentos. — Conhecia de casa de meu pai. Ele ia lá há oito anos. — É uma bela alma! — E Eulália! — Ambos! ambos! É um casal feliz! — Como nós, acrescentou Cristiana abraçando o marido. No dia seguinte, foram os dois maridos para a cidade, e ficaram as duas mulheres entregues aos seus corações. De volta, disse Nogueira ter encontrado casa; mas era preciso arranjá-la, e foi marcado para os arranjos o prazo de oito dias. Os seis primeiros dias deste prazo correram na maior alegria, na mais perfeita intimidade. Chegou-se a aventar a idéia de ficarem os quatro habitando juntos. Foi Meneses o autor da ideia. Mas Nogueira alegou ter necessidade de casa própria e especial, visto como esperava alguns parentes do Norte. Enfim, no sétimo dia, isto é, na véspera de se separarem os dois casais, estava Cristiana passeando no jardim, à tardinha, em companhia de José de Meneses, que lhe dava o braço. Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente indiferentes à nossa história, José de Meneses fixou o olhar na sua interlocutora e aventurou estas palavras: — Não tem saudade do passado, Cristiana? A moça estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.
José de Meneses insistiu. A resposta de Cristiana foi: — Não sei; deixe-me! E forcejou por tirar o braço do de José de Meneses; mas este reteve-a. — Que susto pueril! Onde quer ir? Meto-lhe medo? Nisto parou ao portão um moleque com duas cartas para José de Meneses. Os dois passavam neste momento em frente do portão. O moleque fez entrega das cartas e retirou-se sem exigir resposta. Meneses fez os seguintes raciocínios: — Lê-las imediatamente era dar lugar a que Cristiana se evadisse para o interior da casa; não sendo as cartas de grande urgência, visto que o portador não exigira resposta, não havia grande necessidade de lê-las imediatamente. Portanto guardou as cartas cuidadosamente para lê-las depois. E de tudo isto conclui o leitor que Meneses tinha mais necessidade de falar a Cristiana do que curiosidade de ler as cartas. Acrescentarei, para não dar azo aos esmerilhadores de inverossimilhanças, que Meneses conhecia muito bem o portador e sabia ou presumia saber de que tratavam as cartas em questão. Guardadas as cartas, e sem tirar o braço a Cristiana, Meneses continuou o passeio e a conversação. Cristiana estava confusa e trêmula. Durante alguns passos não trocaram uma palavra. Finalmente, Meneses rompeu o silêncio perguntando a Cristiana: — Então, que me responde?
— Nada, murmurou a moça. — Nada! exclamou Meneses. Nada! era então esse o amor que me tinha? Cristiana levantou os olhos espantados para Meneses. Depois, procurando de novo tirar o braço do de Meneses, murmurou: — Perdão, devo recolher-me. Meneses reteve-a de novo. — Ouça-me primeiro, disse. Não lhe quero fazer mal algum. Se me não ama, pode dizê-lo, não me zangarei; receberei essa confissão como o castigo do passo que dei, casando minha alma que se não achava solteira. — Que estranha linguagem é essa? disse a moça. A que vem essa recordação de uma curta fase da nossa vida, de um puro brinco da adolescência? — Fala de coração? — Pois, como seria? — Ah! não me faça crer que um perjúrio... — Perjúrio!... A moça sorriu-se com desdém. Depois continuou: — Perjúrio é isto que faz. Perjúrio é trazer enganada a mais casta e a mais digna das mulheres, a mais digna, ouve? Mais digna do que eu, que ainda o ouço e lhe respondo. E dizendo isto Cristiana tentou fugir. — Onde vai? perguntou Meneses. Não vê que está agitada? Poderia fazer nascer suspeitas. Demais, pouco tenho a dizer-lhe. É uma despedida. Nada mais, em nenhuma ocasião, ouvirá de minha boca. Supunha que através dos tempos e das adversidades tivesse conservado pura e inteira a lembrança de janeiro/fevereiro/março/2015 |
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um passado que nos fez felizes. Vejo que me enganei. Nenhum dos caracteres superiores que eu enxergava em seu coração tinha existência real. Eram simples criações do meu espírito demasiado crédulo. Hoje, que se desfaz o encanto, e que eu posso ver toda a enormidade da fraqueza humana, deixe-me dizer-lhe, perdeu um coração e uma existência que não merecia. Saio-me com honra de um combate em que não havia igualdade de forças. Saio puro. E se no meio do desgosto em que me fica a alma, é-me lícito trazê-la à lembrança, será como um sonho esvaecido, sem objeto real na terra. Estas palavras foram ditas em um tom sentimental e como que estudado para a ocasião. Cristiana estava aturdida. Lembrava-se que em vida de seu pai, tinha ela quinze anos, houvera entre ela e José de Meneses um desses namoros de criança, sem consequência, em que o coração empenha-se menos que a fantasia. Com que direito vinha hoje Meneses reivindicar um passado cuja lembrança, se alguma havia, era indiferente e sem alcance? Estas reflexões passaram no espírito de Cristiana. A moça ia expô-las em algumas palavras cortadas pela agitação em que se achava, e pelas interrupções dramáticas de Meneses. Depois, como aparecesse Eulália à porta da casa, a conversa foi interrompida. A presença de Eulália foi um alívio para o espírito de Cristiana. Mal a viu, correu para ela, e convidou-a a passear pelo jardim, antes que anoitecesse. Se Eulália pudesse nunca suspeitar da fidelidade de seu marido, veria na agitação de Cristiana um motivo para indagações e atribulações. Mas a alma da moça era límpida e confiante, dessa confiança e limpidez que só dá o verdadeiro amor. Deram as duas o braço, e dirigiram-se para uma alameda de casuarinas, situada na parte oposta àquela em que ficara passeando José de Meneses. Este, perfeitamente senhor de si, continuou a passear como que entregue a suas reflexões. Seus passos, em aparência vagos e distraídos, procuravam a direção da alameda em que andavam as duas. Depois de poucos minutos encontraram-se como que por acaso. Meneses, que ia de cabeça baixa, simulou um ligeiro espanto e parou. As duas pararam igualmente. Cristiana tinha a cara voltada para o lado. Eulália, com um divino sorriso, perguntou: — Em que pensas, meu amor? — Em nada.
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— Não é possível, retorquiu Eulália. — Penso em tudo. — O que é tudo? — Tudo? É o teu amor. — Deveras? E voltando-se para Cristiana, Eulália acrescentou: — Olha, Cristiana, já viste um marido assim? É o rei dos maridos. Traz sempre na boca uma palavra amável para sua mulher. É assim que deve ser. Não esqueça nunca estes bons costumes, ouviu? Estas palavras alegres e descuidosas foram ouvidas distraidamente por Cristiana. Meneses tinha os olhos cravados na pobre moça. — Eulália, disse ele, parece que D. Cristiana está triste. Cristiana estremeceu. Eulália voltou-se para a amiga e disse: — Triste! Já assim me pareceu. É verdade, Cristiana? Estarás triste? — Que ideia! Triste por quê? — Ora, pela conversa que há pouco tivemos, respondeu Meneses. Cristiana fitou os olhos em Meneses. Não podia compreendê-lo e não adivinhava onde queria ir o marido de Eulália. Meneses, com o maior sangue frio, acudiu à interrogação muda que as duas pareciam fazer. — Eu contei a D. Cristiana o assunto da única novela que li em minha vida. Era um livro interessantíssimo. O assunto é simples, mas comovente. É uma série de torturas morais por que passa uma moça a quem esqueceu juramentos feitos na mocidade. Na vida real este fato é uma coisa mais que comum; mas tratado pelo romancista toma um tal caráter que chega a assustar o espírito mais refratário às impressões. A análise das atribulações da ingrata é feita por mão de mestre. O fim do romance é mais fraco. Há uma situação forçada... uma carta que aparece... Umas coisas... enfim, o melhor é o estudo profundo e demorado da alma da formosa perjura. D. Cristiana é muito impressível... — Oh! meu Deus! exclamou Eulália. Só por isto? Cristiana estava ofegante. Eulália, assustada por vê-la em tal estado, convidou-a a recolher-se. Meneses apressou-se a dar-lhe o braço e dirigiram-se os três para casa. Eulália entrou antes dos dois. Antes de pôr pé no primeiro degrau da escada de pedra que dava acesso à casa, Cristiana disse a Meneses, em voz baixa e concentrada: — É um bárbaro! Entraram todos. Era já noite. Cristiana reparou que a situação era falsa e tratou de desfazer os cuidados, ou porventura as más
impressões que tivessem ficado a Eulália depois do desconchavo de Meneses. Foi a ela, com o sorriso nos lábios: — Pois, deveras, disse ela, acreditaste que eu ficasse magoada com a história? Foi uma impressão que passou. Eulália não respondeu. Este silêncio não agradou nem a Cristiana, nem a Meneses. Meneses contava com a boa fé de Eulália, única explicação de ter adiantado aquela história tão fora de propósito. Mas o silêncio de Eulália teria a significação que lhe deram os dois? Parecia ter, mas não tinha. Eulália achou estranha a história e a comoção de Cristiana; mas, entre todas as explicações que lhe ocorressem, a infidelidade de Meneses seria a última, e ela nem passou da primeira. Sancta simplicitas! A conversa continuou fria e indiferente até a chegada de Nogueira. Seriam então nove horas. Serviu-se o chá, depois do que, todos se recolheram. Na manhã seguinte, como disse acima, deviam partir Nogueira e Cristiana. A despedida foi como é sempre a despedida de pessoas que se estimam. Cristiana fez os esforços maiores para que no espírito de Eulália não surgisse o menor desgosto; e Eulália, que não usava mal, mal não cuidou na história da noite anterior. Despediram-se todos com promessa jurada de se visitarem a miúdo. Passaram-se quinze dias depois das cenas que narrei acima. Durante esse tempo nenhum dos personagens que nos ocupam tiveram ocasião de se falarem. Não obstante pensavam muito uns nos outros, por saudade sincera, por temor do futuro e por frio cálculo de egoísmo, cada qual pensando segundo os seus sentimentos. Cristiana refletia profundamente sobre a sua situação. A cena do jardim era para ela um prenúncio de infelicidade, cujo alcance não podia avaliar, mas que lhe pareciam inevitáveis. Entretanto, que tinha ela no passado? Um simples amor de criança, desses amores passageiros e sem consequências. Nada dava direito a Meneses para reivindicar juramentos firmados por corações extremamente juvenis, sem consciência da gravidade das coisas. E demais, o casamento de ambos não invalidara esse passado invocado agora? Refletindo deste modo, Cristiana era levada às últimas consequências. Ela estabelecia em seu espírito o seguinte dilema: ou a reivindicação do passado feita por Meneses era sincera ou não. No primeiro caso era a paixão concentrada que fazia irrupção no fim de tanto tempo, e Deus sabe onde poderiam ir os seus efeitos. No
segundo caso, era simples cálculo de abjeta lascívia; mas então, se mudara a natureza dos sentimentos do marido de Eulália, não mudava a situação nem desapareciam as apreensões do futuro. Era preciso ter a alma profundamente mirrada para iludir daquele modo uma mulher virtuosa tentando contra a virtude de outra mulher. Em honra de Cristiana devo acrescentar que os seus temores eram menos por ela que por Eulália. Estando segura de si, o que ela temia era que a felicidade de Eulália se anuviasse, e a pobre moça viesse a perder aquela paz do coração que a fazia invejada de todos. Apreciando estes fatos à luz da razão prática, se julgarmos legítimos os temores
de Cristiana, julgaremos exageradas as proporções que ela dava ao ato de Meneses. O ato de Meneses reduz-se, afinal de contas, a um ato comum, praticado todos os dias, no meio da tolerância geral e até do aplauso de muitos. Certamente que isso não lhe dá virtude, mas tira-lhe o mérito da originalidade. No meio das preocupações de Cristiana tomara lugar a carta a que Meneses aludira. Que carta seria essa? Alguma dessas confidências que o coração da adolescência facilmente traduz no papel. Mas os termos dela? Em qualquer dos casos do dilema apresentado acima Meneses podia usar da carta, a que talvez faltasse a data e sobrassem expressões ambíguas para supô-la de feitura recente. Nada disto escapava a Cristiana. E com
tudo isto entristecia. Nogueira reparou na mudança que apresentava sua mulher e interrogou-a carinhosamente. Cristiana nada lhe quis confiar, porque uma leve esperança lhe fazia crer às vezes que a consciência de sua honra teria por prêmio a tranquilidade e a felicidade. Mas o marido, não alcançando nada e vendo-a continuar na mesma tristeza, entristecia-se também e desesperava. Que podia desejar Cristiana? pensava ele. Na incerteza e na angústia da situação lembrou-se de ter com Eulália para que esta ou o informasse, ou, como mulher, alcançasse de Cristiana o segredo das suas concentradas mágoas. Eulália marcou o dia em que iria à casa de Nogueira, e este saiu da chácara da Tijuca animado por algumas esperanças.
CAPÍTULO III
Ora, nesse dia apresentou-se pela primeira vez em casa de Cristiana o exemplar José de Meneses. Apareceu como a estátua do comendador. A pobre moça, ao vê-lo, ficou aterrada. Estava só. Não sabia que dizer quando à porta da sala assomou a figura mansa e pacífica de Meneses. Nem se levantou. Olhou-o fixamente e esperou. Meneses parou à porta e disse com um sorriso nos lábios: — Dá licença? Depois, sem esperar resposta, dirigiu-se para Cristiana; estendeu- lhe a mão e recebeu a dela fria e trêmula. Puxou cadeira e sentou-se ao pé dela familiarmente. — Nogueira saiu? perguntou depois de alguns instantes, descalçando as luvas. — Saiu, murmurou a moça. — Tanto melhor. Tenho então tempo para dizer-lhe duas palavras. A moça fez um esforço e disse: — Também eu tenho para dizer-lhe duas palavras. — Ah! sim. Ora bem, cabe às damas a precedência. Sou todo ouvidos. — Possui alguma carta minha? — Possuo uma. — É um triste documento, porque, respondendo a sentimentos de outro tempo, se eram sentimentos dignos deste nome, de nada pode valer hoje. Todavia, desejo possuir esse escrito. — Vejo que não tem hábito de argumentar. Se a carta em questão não vale nada, por que deseja possuí-la? — É um capricho. — Capricho, se existe algum, é o de tratar por cima do ombro um amor sincero e ardente.
— Falemos de outra coisa. — Não; falemos disto, que é essencial. Cristiana levantou-se. — Não posso ouvi-lo, disse ela. Meneses segurou-lhe em uma das mãos e procurou retê-la. Houve uma pequena luta. Cristiana ia tocar a campainha que se achava sobre uma mesa, quando Meneses deixou-lhe a mão e levantou-se. — Basta, disse ele; escusa de chamar seus fâmulos. Talvez que ache grande prazer em pô-los na confidência de um amor que não merece. Mas eu é que me não exponho ao ridículo depois de me expor à baixeza. É baixeza, sim; não devia mendigar para o coração o amor de quem não sabe compreender os grandes sentimentos. Paciência; fique com a sua traição; eu ficarei com o meu amor; mas procurarei esquecer o objeto dele para lembrar-me da minha dignidade. Depois desta tirada dita em tom sentimental e lacrimoso, Meneses encostou-se a uma cadeira como para não cair. Houve um silêncio entre os dois. Cristiana falou em primeiro lugar: — Não tenho direito, nem dever, nem vontade de averiguar a extensão e a sinceridade desse amor; mas deixe que eu lhe observe; o seu casamento e a felicidade que parece gozar nele protestam contra as alegações de hoje. Meneses levantou a cabeça, e disse: — Oh! não me exprobre o meu casamento! Que queria que eu fizesse quando uma pobre moça me caiu nos braços declarando amar-me com delírio? Apoderou-se de mim um sentimento de compaixão; foi todo o meu crime. Mas neste casamento não
empenhei tudo; dei a Eulália o meu nome e minha proteção; não lhe dei nem o meu coração nem o meu amor. — Mas essa carta? — A carta será para mim uma lembrança, nada mais; uma espécie de espectro do amor que existiu, e que me consolará no meio das minhas angústias. — Preciso da carta! — Não! Neste momento entrou precipitadamente na sala a mulher de Meneses. Vinha pálida e trêmula. Ao entrar trazia na mão duas cartas abertas. Não pôde deixar de dar um grito ao ver a atitude meio suplicante de Cristiana e o olhar terno de Meneses. Deu um grito e caiu sobre o sofá. Cristiana correu para ela. Meneses, lívido como a morte, mas cheio de uma tranquilidade aparente, deu dois passos e apanhou as cartas que caíram da mão de Eulália. Leu-as rapidamente. Descompuseram-se-lhe as feições. Deixou Cristiana prestar os seus cuidados de mulher a Eulália e foi para a janela. Aí fez em tiras miúdas as duas cartas, e esperou, encostado à grade, que passasse a crise de sua mulher. Eis aqui o que se passara. Os leitores sabem que era aquele dia destinado à visita de Eulália a Cristina, visita de que só Nogueira tinha conhecimento. Eulália deixou que Meneses viesse para a cidade e mandou aprontar um carro para ir à casa de Cristiana. Entretanto, assaltou-lhe uma ideia. Se seu marido voltasse para casa antes dela? Não queria causar-lhe impaciências ou cuidados, e arrependia-se de nada lhe ter dito com antecipação. Mas era forçoso partir. Enquanto se vestia ocorreu-lhe um janeiro/fevereiro/março/2015 |
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meio. Deixar escritas duas linhas a Meneses dando-lhe parte de que saíra, e dizendo-lhe para que fim. Redigiu a cartinha mentalmente e dirigiu-se para o gabinete de Meneses. Sobre a mesa em que Meneses costumava trabalhar não havia papel. Devia haver na gaveta, mas a chave estava seguramente com ele. Ia saindo para ir ver papel a outra parte, quando viu junto da porta uma chave; era a da gaveta. Sem escrúpulo algum, travou da chave, abriu a gaveta e tirou um caderno de papel. Escreveu algumas linhas em uma folha, e deixou a folha sobre a mesa debaixo de um pequeno globo de bronze. Guardou o resto do papel, e ia fechar a gaveta, quando reparou em duas cartinhas que, entre outras muitas, se distinguiam por um sobrescrito de letra trêmula e irregular, de caráter puramente feminino. Olhou para a porta a ver se alguém espreitava a sua curiosidade e abriu as cartinhas, que, aliás, já se achavam descoladas. A primeira carta dizia assim: “Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Lúcia contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — MARGARIDA.” A segunda carta era concebida nestes termos: Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Margarida contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — LÚCIA. Como o leitor adivinha, estas cartas
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eram as duas que Meneses recebera na tarde em que andou passeando com Cristiana no jardim. Eulália, lendo estas duas cartas, quase teve uma síncope. Pôde conter-se, e, aproveitando o carro que a esperava, foi buscar a Cristiana as consolações da amizade e os conselhos da prudência. Entrando em casa de Cristiana pôde ouvir as últimas palavras do diálogo entre esta e Meneses. Esta nova traição de seu marido quebrara-lhe a alma. O resto desta simples história conta-se em duas palavras. Cristiana conseguira acalmar o espírito de Eulália e inspirar-lhe sentimentos de perdão. Entretanto, contou-lhe tudo o que ocorrera entre ela e Meneses, no presente e no passado. Eulália mostrou ao princípio grandes desejos de separar-se de seu marido e ir viver com Cristiana; mas os conselhos desta, que, entre as razões de decoro que apresentou para que Eulália não tornasse pública a história das suas desgraças domésticas, alegou a existência de uma filha do casal, que cumpria educar e proteger, esses conselhos desviaram o espírito de Eulália dos seus primeiros projetos e fizeram-na resignada ao suplício. Nogueira quase nada soube das ocorrências que acabo de narrar; mas soube quanto era suficiente para esfriar a amizade que
sentia por Meneses. Quanto a este, enfiado ao princípio com o desenlace das coisas, tomou de novo o ar descuidoso e aparentemente singelo com que tratava tudo. Depois de uma mal alinhavada explicação dada à mulher a respeito dos fatos que tão evidentemente o acusavam, começou de novo a tratá-la com as mesmas carícias e cuidados do tempo em que merecia a confiança de Eulália. Nunca mais voltou ao casal Meneses a alegria franca e a plena satisfação dos primeiros dias. Os afagos de Meneses encontravam sua mulher fria e indiferente, e se alguma coisa mudava era o desprezo íntimo e crescente que Eulália votava a seu marido. A pobre mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o casamento conservando o cônjuge, só vivia para sua filha. Dizer como acabaram ou como vão acabando as coisas não entra no plano deste escrito: o desenlace ainda é mais vulgar que o corpo da ação. Quanto ao que há de vulgar em tudo o que acabo de contar, sou eu o primeiro a reconhecê-lo. Mas que querem? Eu não pretendo senão esboçar quadros ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais. g (*) Este conto, um oferecimento de GENIUS aos machadianos, surgiu, pela primeira vez, em 1864, no Jornal das Famílias, que se editava no Rio de Janeiro.
FILOSOFIA
JOAQUIM NABUCO, EPICTETO E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA Aldo Lopes Dinucci RESUMO: Neste artigo veremos como Joaquim Nabuco juntou literariamente suas forças a Epicteto na luta contra a escravidão no Brasil, fazendo uma distinção entre a escravidão dos tempos antigos e a moderna e demonstrando que a instituição da escravidão corrompe as demais instituições sociais e ameaça a sociedade como um todo, tornando-a iníqua. PALAVRAS-CHAVES: Joaquim Nabuco, escravidão, Epicteto; ABSTRACT: In this paper we will see how Joaquim Nabuco united his forces with Epictetus in his fight against slavery in Brazil, making a division between the slavery of ancient times and the modern one and proving that the Institution of slavery corrupts the other social institutions and threats the society as a whole, making it iniquitous. KEY-WORDS: Joaquim Nabuco, slavery, Epictetus. De que modo puderam somar suas forças Joaquim Nabuco e o célebre filósofo estoico Epicteto na luta contra a escravidão no Brasil e em prol da abolição da escravatura? Em que circunstância a atuação política de Nabuco encontrou apoio e sustentação no pensamento e na vida do filósofo grego que viveu nos tempos de Nero? Sobre isto trataremos neste artigo a partir de uma interpretação do opúsculo de Nabuco intitulado Escravos: versos franceses a Epicteto1, que foi lido pelo autor no dia dezoito de março de 1886 durante banquete literário em casa de Luiz Guimarães2, a quem foram dedicados os versos tais. O abolicionista Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, pernambucano, nascido em 1849 de tradicional estirpe senatorial do Império (os Nabuco de Araújo), foi testemu-
nha ocular da brutalidade e da injustiça da escravidão, tendo passado a infância no engenho de Massangana, experiência que marcou sua vida e da qual fala em seu célebre livro Minha formação3. Tendo iniciado seus estudos de direito em São Paulo, transferiu-se depois para a Faculdade de Direito de Olinda. Sua atuação contra a escravidão iniciou-se, na prática, na sua defesa, em tribunal, de um escravo que havia assassinado seu senhor. Oito anos depois foi eleito deputado pela província de Pernambuco, mandato no qual iniciou, em companhia de outros deputados, campanha contra a escravidão e a favor da abolição da escravatura. Em 1886 não conseguiu reeleger-se, dedicando-se então a escrever vários opúsculos denunciando sobretudo a ligação da monarquia com a escravidão. Entre estes opúsculos está Escravos! Versos Franceses a Epicteto, de cuja interpretação nos ocuparemos no presente trabalho. Epicteto viveu entre os anos 55 e 135 de nossa era. Natural de Hierápolis, na Frígia, e um liberto de Epafrodito, o famoso liberto de Nero, teve no fulgurante imperador Adriano um respeitoso admirador, e no imperador Marcos Aurélio Antonino um entusiástico seguidor de seu pensamento, o qual praticou zelosamente em seu governo na medida do humanamente possível. Segundo relatos da Antiguidade, Epicteto claudicava em razão da extrema violência com que, enquanto escravo na juventude, fora tratado. Viveu de modo absolutamente despojado: seu quarto em Roma vivia de portas abertas, tamanha a simplicidade de seus haveres. Talvez ainda enquanto escravo assistiu às aulas do famoso filósofo estoico romano Caio Musônio Rufo, cujo pensamento absorveu e cultivou até o fim de sua vida. Nada escreveu e o que dele hoje sabemos se deve ao seu aluno Flávio Arriano, grego que havia conquistado a cidadania romana, que transcreveu suas aulas, transcrição que
nos chegou em parte (dos oito livros originais das Diatribes, quatro nos chegaram) e compôs o Manual de Epicteto, síntese das reflexões de seu mestre. Epicteto é um ícone disto que era a filosofia na Antigüidade, uma arte de viver de forma livre, corajosa e feliz, capaz de criar homens da mais elevada estatura moral. O despojamento de Epicteto, sua coragem ao falar, sua doce aceitação do destino e da adversidade, sua intrépida constatação e denúncia da escravidão em suas diversas dimensões, sua luta para que os homens tomassem ciência da necessidade de preservarem sua dignidade em quaisquer circunstâncias tornaram-no um homem universalmente admirado e reconhecido. Inda mais, o fato de ter sido escravo e ter lutado por sua dignidade a ponto de ver-se como um dos homens mais admirados não só em seu tempo mas em toda a história do Ocidente, fez dele um exemplo de que de fato o homem pode manter sua dignidade em todas as ocasiões, devendo por isso lutar para preservá-la a todo custo. Da figura deste homem toma partido Nabuco em seu poema, o qual, em seu início, ecoa este reconhecimento milenar: “Uns após outros, os séculos tornaram-se os clarins do teu áspero Evangelho4”. Este áspero Evangelho, claro, é aquele do estoicismo, de cuja origem Nabuco fala logo adiante: Quando Zenão, procurando um lugar, em Atenas, onde ensinar a Virtude e a obediência aos Deuses, e o onde o povo pudesse beber dessas grandes fontes, parou para refletir, no Pórtico odiado, -Onde, entre relâmpagos de divino Polygnoto, acendendo, em redor, os grandes Mitos Sagrados, ouvia-se gemer e palpitar a nota da Pátria, de luto, chorando os filhos mortos [...]5 Nabuco se refere aí a Zenão de Citium, criador do Estoicismo, também chamado de
NABUCO, Joaquim . Escravos! Versos Franceses a Epicteto. Rio: Leuzinger & Filhos, 1886. Idem, ibidem, p. 76. 3 NABUCO, Joaquim . Minha Formação. 13ª ed. Prefácio de Evaldo Cabral de Melo. Rio: TopBooks, 1999. p. 160. 4 NABUCO, Joaquim . Escravos! Versos Franceses a Epicteto. Rio: Leuzinger & Filhos, 1886, p. 65. Achei por bem atualizar a grafia das palavras do texto de Nabuco, visto eu não conhecer versão hodierna dos versos em questão e tendo eu acesso a uma cópia da edição original escaneada e graciosamente posta na Internet pelo Instituto Joaquim Nabuco. 5 Idem, ibidem, p. 67 1 2
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“Filosofia do Pórtico”, pois Zenão o teria concebido e cultivado no Pórtico Poikilé, em Atenas. Um pórtico (porticus em latim) numa cidade grega ou romana da Antiguidade era um passeio coberto, com um teto sustentado por colunas. Os pórticos, originalmente construídos ao redor dos templos para que os devotos se encontrassem e conversassem, passaram, com o tempo, a ser independentes de modo a atenderem a todas as necessidades da vida pública à qual os gregos e romanos se dedicavam intensamente. Muitos destes pórticos eram construídos ao longo dos locais de assembléia (ágoras), e eram extremamente luxuosos, com esculturas e obras de arte dos mais famosos artistas. Na maioria dos pórticos havia assentos que eram assiduamente frequentados pela intelectualidade de então, que aí entabulavam suas conversações. Como observa Smith6, “a escola estoica deve seu nome ao fato de que seu fundador costumava conversar com seus discípulos numa stoá (a palavra grega para “pórtico”). Este Polygnoto, do qual nos fala Nabuco, natural da ilha de Tasos, foi o maior de todos os pintores gregos, pelo que recebeu a cidadania ateniense. Floresceu na 90ª Olimpíada, em 420 a.C. e. Entre seus trabalhos figuravam pinturas realizadas neste pórtico no qual Zenão fundara sua escola de pensamento. Este pórtico foi reformado por Cimon, junto com as demais melhorias na cidade que ele empreendeu ao final das Guerras Médicas. Cimon aumentou o pórtico que, anteriormente chamado Pórtico de Peisianax, passou a ser conhecido como Poikilé Stoá ou Pórtico Pintado, em razão das pinturas de Polygnoto e Micon (grande pintor e escultor ateniense, contemporâneo de Polygnoto) com as quais foi então decorado. Este pórtico era uma longa colunata formada por uma fileira de colunas de um lado e uma parede de outro, e justamente nesta parede estavam os painéis ostentando as famosas pinturas. Estas pinturas representavam diversas batalhas das quais participaram os atenienses, daí a referência de Nabuco ao choro pelos filhos mortos da Pátria. Nabuco em seguida imagina Zenão refletindo diante das imagens de violência e criando a doutrina estoica: Sua alma estremeceu de indignação santa, à lembrança do morticínio que havia tornado deserto por tanto tempo este santuário da Grécia, o recinto glorioso (das tradições nacionais) onde os Pintores haviam excedido os heróis...
Mas, logo ela voltou ao seu equilíbrio sereno... Mestre de uma doutrina sem igual em todos os tempos – a única Liberdade digna do homem livre! – ele ficou cinquenta anos à sombra do Poecilo7. E... a mais nobre, mais forte e mais severa de todas as fés, - a estoica - nasceu assim, como uma flor, do sangue.8 Assim, a filosofia estoica é vista por Nabuco como tendo sido criada diante de uma reflexão sobre a condição humana em suas facetas mais terríveis, as guerras, a dor, a morte, as perdas e, sendo “a única liberdade digna do homem livre”, é apresentada como uma doutrina de severidade e de libertação. O próximo movimento do texto de Nabuco é inusitado para o leitor: realiza-se de súbito uma analogia entre a Poikilé Stoá e suas representações de batalhas e o Brasil: Ó, o Brasil inteiro é como o Pórtico, -onde brilhavam os combates sangrentos e radiosos das Amazonas, no território santo da Ática, Virgens que se atreviam a levar guerra aos Semideuses [...] Mas, como no Pórtico, um fantasma o persegue... Também ele é um campo de mortandade e tem lugares amaldiçoados. Uma sombra vingadora, implacável, errante, lança sobre o seu esplendor interditos sombrios.9 Nabuco se fixa na imagem da batalha de Teseu e os atenienses contra as amazonas. As amazonas, um povo mítico de mulheres guerreiras, aparecem em diversas instâncias da mitologia grega. Segundo todos os relatos na Antiguidade, seriam naturais do Cálcaso, vivendo próximas da moderna Trebizonda, de onde diversas vezes teriam realizado incursões contra os gregos. A capital do reino das amazonas (Themiscyra) teria sido habitada somente por mulheres, enquanto os homens (os gargareanos) viveriam do outro lado de uma montanha, montanha na qual, uma vez por ano, homens e mulheres se encontrariam para propagar sua estirpe. As meninas seriam criadas pela mulheres para serem guerreiras, tendo um dos seios vazados (de modo a não atrapalharem o manejo do arco e da flecha), enquanto os meninos seriam criados pelos homens. Teriam invadido a planície Ática durante o reino de Teseu, que as derrotou, expulsando-as. O termo amazonas é geralmente considerado como derivado de mazos, palavra grega para “seio”, significando talvez literalmente “sem seios” ou “com um só seio”. As amazonas e suas ba-
SMITH, William, Sir. Dictionary of Greek and Roman antiquities. Boston: C. Little, and J. Brown, 1870, p. 944. A Poikilé Stoá. 8 NABUCO, Joaquim . Escravos! Versos Franceses a Epicteto. Rio: Leuzinger & Filhos, 1886, p. 67. 9 dem, ibidem. 10 Idem, ibidem. 11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem, p.69. 6 7
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talhas eram frequentemente representadas pelos gregos em vasos, paredes e bronzes. Tal pintura (realizada não por Polygnoto, mas por Micon) mencionada por Nabuco é a mais célebre representação das amazonas da Antiguidade. O sentido dos versos de Nabuco transparece com clareza: as amazonas representam o que há de nativo, de selvático no Brasil: os índios, habitantes originais do que poderíamos chamar de Porticus Brasiliensis, representantes de uma natureza esplendorosa, “a apoteose ardente e embriagadora da terra”10, que ostenta “granitos de púrpura que as florestas subiram, em suas lages de flores, através de suas colunatas de palmeiras”11; os semideuses, os atenienses, pela força maior e tecnologia, representam os portugueses – e o banho de sangue nativo derramado pelos invasores, os massacres dos índios que vão preenchendo gravemente os cenários verdes e exuberantes desta nação tropical em formação que é o Brasil, do mesmo modo que as representações das batalhas dão um sentido sangrento e lúgubre à Poikilé Stoá. De fato, Nabuco também foi sensível às questões indígenas: em sua primeira legislatura (1878), defendeu os direitos indígenas, sendo veementemente contrário a um projeto de exploração econômica da região do Xingu. No seu poema, porém, logo Nabuco estabelece uma diferença entre a carnificina dos tempos heroicos gregos e o massacre dos índios e aquele massacre que ele contemplava então e que era a escravidão: Não a carnificina, um dia – como o trovão que rebenta – dos Valentes, cinzeladores da sua própria sorte, morrendo mortes de Deuses, taças de ouro que à roda os convidados passam uns aos outros, alegres, coroados de flores. [...] A matança aqui não tem esses reflexos róseos...12 Nabuco estabelece uma distinção entre o que poderíamos chamar de uma morte boa e uma morte má. Boa seria a morte do homem livre, que morre lutando por esta liberdade, e má a morte daquele que é escravizado em sua alma também, morto em vida, do qual se retira a própria noção de dignidade humana. Nabuco desenvolve este tema em seguida: É a escravidão dos Negros! A Escravidão Moderna! Mil vezes mais vergonhosa, mil vezes mais sanguinária do que no tempo em que Nero saía da taverna, tendo por archote resinoso o escravo, que ardia...
[...] O homem-escravo de então era igual ao senhor. Bravo, artista, eloquente, poeta, criador; Bárbaro, cujo coração livre podia renascer, ele foi o Gladiador, e foi o Mártir. Muitas vezes Legiões afogaram-se em suas ondas, e somente Cônsules os teriam podido dobrar! A raça deles hoje governaria o mundo, e os nossos senhores seriam os seus libertos... Não, esses não eram escravos pelo coração, a quem romanos levavam após si como Vencidos; esses, cuja alma estava toda coberta das lavas do grande vulcão antigo – o sangue de Espártaco.13 Quanto a Nero, Nabuco lembra a história mencionada por Tácito14, segundo a qual o dito imperador havia, numa festa, usado como archotes para a iluminação cristãos condenados. O fato é paradigma da crueldade com a qual os escravos às vezes eram tratados na Antiguidade, crueldade, no entanto, reconhece Nabuco, sobretudo física, na medida em que não atingia completamente a moralidade do indivíduo escravizado, quer dizer, na medida em que não lhe retirava totalmente a dignidade humana. A escravidão antiga se dava por direito de guerra, os vencidos eram tomados como espólio e eram vendidos como mercadorias. Isso, porém, fazia da escravidão uma condição, um fato determinado por circunstâncias externas. Em nenhum momento o vencedor propunha ser o escravo inferior por natureza, por nascença ou por origem. Assim, ainda que os fatos levassem uns a serem escravos e outros a serem senhores, continuavam todos a ser humanos. Nabuco evidentemente não defende a escravidão na Antiguidade, mas percebe-a como sendo menos brutal que aquela de seu tempo, na medida em que a diade senhor-escravo de então era uma relação acidental. Senhor e escravo eram papéis que se davam pelas circunstâncias do mundo e não por uma falha ou uma debilidade intrínseca. Assim, grandes homens foram escravos por algum tempo: Platão, Fédon de Élis, Diógenes de Sínope, por exemplo. Outros chegam como escravos em Roma e logo adquirem liberdade e reconhecimento, tais como Plutarco e Epicteto. Outros ainda rebelam-se contra a escravidão e liquidam impiedosamente seus supostos senhores, como por exemplo Espártaco, sob o comando de quem um exército de servos sublevados dizimou legiões. A escravidão dos tempos de Nabuco, porém,
tem uma característica terrível: o escravo é declarado escravo por nascença, por natureza, por origem. A pele negra e a origem africana eram a marca do escravo: ter esta característica e esta origem significava ser intrinsecamente, naturalmente, inapelavelmente escravo, tendo os demais pleno direito de usá-lo como coisa sem maiores cerimônias e sem culpa. As consequências disso se vêem até hoje: aqueles que possuem as características acima mencionadas são por parcela da população brasileira ainda vistos como por natureza inferiores, abaixo da natureza humana, muito embora a escravidão legalmente tenha sido extinta há mais de um século. Nabuco encerra esta reflexão sobre a distinção entre a escravidão na Antiguidade e em seu tempo e passa a retratar a escravidão de então: Os nossos escravos, ó deuses, como a escravidão é covarde!... não são prisioneiros, homens livres do Norte, tendo no coração o ódio e nas mãos o machado, e só rendendo-se, conquistados, ao direito bárbaro da força.15 Para Nabuco, a escravidão de seu tempo é “a mina de carvão... Subterrânea, profunda” 16, uma mina “formada por corpos em arco”, onde se enxerga apenas à luz das lágrimas, na qual “não se acende [...] uma só consciência”: Porque essa massa escura, que se vê no fundo das galerias, onde nenhum clarão penetra e não sopra nenhum vento, essas crianças tristes, essas mulheres infamadas, esse montão de gente, é o Carvão Vivo... Jazendo no subsolo, em camadas de sofrimento... sem pressentir que ele é um povo a desabrochar; assim como o carvão de pedra, inerte, frio, preto, ignora que se vai tornar força, calor e luz.17 A analogia de Nabuco entre os escravos brasileiros e o carvão é derivada de sua comparação da escravidão de então com a antiga: os escravos de seu tempo, tendo introjetado a ideologia perversa segundo a qual eles são por nascença e necessariamente escravos, se entregam à escravidão sem perceberem que são tão humanos quanto seus senhores. Esta indigna condição dos escravos, dirá Nabuco imediatamente a seguir, na verdade contamina e corrompe a sociedade inteira. Corrompe-se e torna-se indigno aquele que toma partido desta situação, ou mesmo aquele que pretende ignorá-la, vivendo como se tal situação fosse moralmente tolerável:
Ó, é horrível de dizer, mas é preciso que se leia. O nosso grande mercado, é esse mercado negro... Perto do trono, no senado, nos tribunais, na Igreja, os Negreiros, em toda a parte levantam os seus talhos. É o mercado de um povo em proveito de uma Casta; onde o forçado compra a criança que lhe agrada, de onde o covarde leva consigo o bravo, o vicioso leva a pura, que, se for Mãe, não terá mesmo direito ao seu leite. Grande feira de sangue, onde se vende por bocados uma raça que acaba de ser abatida inteira... onde o padre de Deus, depois que disse a Missa [...] Percorre sem estremecer as imundas barracas em que se faz o retalho, almas, de vossa carne... Ele, como o magistrado... ambos simoníacos, mas achando que o preço das mulheres é muito caro.18 Corrompe-se, assim, e torna-se indigna, a sociedade por inteiro: o imperador, admitindo e sustentando uma tal situação, os políticos, não só não a denunciando mas também enriquecendo com o trabalho escravo, a Igreja, tolerando ou amparando ideologicamente a escravidão. A sociedade inteira se torna perversa, injusta e iníqua. Nabuco salienta a contradição na atitude do sacerdote cristão que, anunciador de uma doutrina do amor universal e de um Deus comum a todos os homens, igualmente pai de todos os homens, convive e vê como acontecimento trivial a compra e a venda de seres humanos. Ao lado desse, Nabuco alinha o magistrado que, representante da justiça entre os homens, torna-se o guardião da iniquidade ao aceitar como norma tal comércio. Deste modo Nabuco denuncia duas instituições que davam suporte á escravidão em seu tempo, a Igreja Católica e a Justiça Brasileira. Nabuco encerra seu retrato da sociedade escravocrata brasileira relembrando a distinção entre a escravidão antiga e a moderna. Esta retomada se justifica pela evocação a Epicteto e seus ideais que Nabuco empreenderá na conclusão de seu poema: É que esse povo, com o olhar embaciado de medo, úmido das lágrimas que escondeu, não é o escravo antigo, cujos braços agarravam, nus, o leão da Numídia, cujo coração resistia ao fogo Estoico... O dono o cegou, segundo o costume selvagem dos Citas, para que ele não pudesse contar quantos eles são... Águia perseguida pelo abutre, sem saber que é águia, ele entrega sem combate... os filhos ao ultraje.19
Idem, ibidem, p.69-71 TÁCITO. Anais. Tradução de Leopoldo Pereira. São Paulo: Ediouro, 1985, p. 248. 15 NABUCO, Joaquim . Escravos! Versos Franceses a Epicteto. Rio: Leuzinger & Filhos, 1886, p. 71. 16 Idem, ibidem. 17 Idem, ibidem. 18 Idem, ibidem, p. 73. 19 Idem, ibidem, p. 73 13
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Os romanos capturavam leões na Numídia para serem usados nos jogos de gladiadores, espetáculos que a princípio eram feitos por escravos que eram treinados para serem gladiadores e enfrentarem todo tipo de fera e homens. Tal gênero de espetáculo tornou-se uma febre na Antiguidade, e os gladiadores tornaram-se tão famosos que logo homens livres (inclusive senadores romanos) começaram a participar destes espetáculos desumanos e brutais em busca da fama. Nabuco encara a questão do gládio a partir da extrema coragem dos gladiadores-escravos em oposição à timidez dos escravos de seu tempo oriunda da aceitação da ideologia segundo a qual eles estavam abaixo da humanidade. A imposição desta ideologia é identificada à selvageria dos citas, que vazavam os olhos de seus escravos para melhor submetê-los. Nabuco chega, por esta via, à última parte de seu poema, na qual o filósofo e ex-escravo. Epicteto é evocado. Podemos dizer que Epicteto é a refutação desta ideologia perversa que Nabuco denuncia, ideologia que retira a dignidade dos homens, que lhes amputa, de fato, a própria humanidade. Epicteto é paradigma desta verdade que diz que os homens todos são potencialmente humanos, não importando a origem ou o que for, e que essa humanidade é derivada do conhecimento que se tem sobre si mesmo e sobre a sua condição. Em outras palavras: a humanidade do homem é uma questão de valores, e o homem se humaniza na medida em que vê todos os demais como iguais, como irmãos, na medida em que reconhece aquilo que o distingue dos demais animais: sua faculdade de ser livre e de se libertar não importando em que situação se encontre e de não tolerar aquilo que pretenda dele retirar essa dignidade, essa liberdade. Epicteto, saído da condição de escravo, sem família, brutalmente tratado a ponto de tornar-se inválido, eleva-se e impõe-se ao meio hostil no qual vive a ponto de ser não apenas aceito, mas também reconhecido como homem do mais alto valor moral. Dos demais filósofos todos, antigos, modernos e contemporâneos, sempre há uma opinião a favor e outra contrária em relação à sua vida e à sua doutrina, bem como à harmonia entre estas. Epicteto é exceção a esta regra: mesmo aqueles que não concordam com sua doutrina não lhe podem negar o valor. O reconhecimento quanto a isso, na Antiguidade, é impressionante, abrangendo tanto cristãos quanto pagãos. Homens como Herodes Ático, Aulo Gélio, Marco Aurélio, Luciano,
Orígenes, Hélio Espartano, Temístio, Gregório Nazarieno, Macróbio, Agostinho, Damáscio e Simplício o elogiam, além de epigramas anônimos e de um elogio anônimo a Epicteto que aparece em Suidas20. Mas o que tem Epicteto de tão especial? E por que é ele particularmente evocado por Nabuco em sua luta contra a instituição da escravidão em terras brasileiras? Quanto a isso nos fala Stockdale: Epicteto eventualmente tornou-se aprendiz do melhor professor de estoicismo do império, Musônio Rufo, e, depois de dez anos ou mais de estudo, alcançou, por seus próprios méritos, o status de filósofo. Com isso lhe adveio a verdadeira liberdade em Roma, e a preciosidade deste acontecimento foi devidamente celebrada pelo ex-escravo. Estudiosos afirmam que, em suas obras, a liberdade individual é elogiada seis vezes mais que no Novo Testamento. Os estoicos sustentam que todos os seres humanos são iguais aos olhos de Deus: homem e mulher, negro e branco, escravo e livre21. Em Epicteto encontramos a doutrina do amor à liberdade e sua aplicação à prática. Pode-se dizer que a filosofia de Epicteto é a verdadeira filosofia da liberdade em ação. Epicteto tem plena ciência de que a liberdade é em primeiro lugar uma condição interna. O homem que reconhece sua própria humanidade, redescobre sua dignidade e nada mais de externo pode escravizá-lo. Epicteto fala sobre isso claramente nas suas Diatribes: Que não nos guiemos unicamente pelos valores das coisas exteriores para distinguir entre o racional e o irracional, mas também pelos valores das coisas segundo o caráter de cada um. Pois para alguém é racional segurar um pinico unicamente porque ele considera que, se não o segurar, receberá golpes e não receberá alimentos, mas se o segurar, não receberá algo violento ou triste. Mas, para um outro, não unicamente parece insuportável segurá-lo, como também suportar que outro o segure. Portanto, se me perguntares: “Segurarei o pinico ou não?”, dir-te-ei que mais valor possui o receber alimentos que não os receber, e que é mais indigno ser castigado que não ser castigado. De modo que, se medes por estas coisas as tuas próprias, que vás então segurá-lo. “Mas para mim não seria digno.” Isso te é necessário acrescentar à reflexão, não eu. Pois és tu aquele que conhece a ti mesmo, quanto valor tens para ti mesmo e por quanto vendes a ti mesmo. Pois diferentes homens vendem-se por diferentes preços22.
SCHWEIGHAUSER. Epicteteae Philosophiae Monumenta. 1 ed. Leipzig: Weidmann, 1800. p. 123-126. STOCKDALE. Courage under Fire: testing the doctrine of Epictetus in a Laboratory of Human Behavior. Standford: Hoover, 2001, p. 6. EPICTETO. Diatribes, Livro I. Tradução de Oldfather. Harvard: Loeb, 2000, p. 53. 23 NABUCO, Joaquim . Escravos! Versos Franceses a Epicteto. Rio: Leuzinger & Filhos, 1886, p. 75. 24 MARCOS AURÉLIO. Meditações. 10 ed. Tradução de C. R. Haines. Harvard: Loeb, 199. p. 17-19. 20 21 22
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Epicteto compreende que não é o homem que é escravizado, mas é o homem que se deixa escravizar por não conhecer a si mesmo, por achar que vale mais a pena viver como escravo do que morrer como homem livre. Esta é a diferença entre Espártaco e os escravos dos quais fala Nabuco. Espártaco tem plena ciência de sua dignidade de ser humano e de que só será escravo se assim o permitir, se o quiser – pois, se não o quiser, em última análise a morte garantirá sua liberdade. Epicteto compreendeu profundamente este fato: ninguém pode obrigar ser humano algum a fazer coisa alguma – tudo o que fazemos, fazemos por considerar “um bom negócio” diante das alternativas. E muitos homens, ignorantes de sua dignidade e de sua humanidade, consideram “um bom negócio” sobreviver sem a liberdade, consideram um bom negócio se deixarem escravizar. A partir desta perspectiva, cremos nós, Nabuco evoca Epicteto: o filósofo e ex-escravo é aquele que pode iluminar não a desgraçada multidão de escravos e a sociedade criminosa que deles retira a subsistência, mas sim a mente do imperador Dom Pedro II: como um homem supostamente esclarecido, como um homem supostamente racional pode tolerar e manter a monstruosidade moral que é a escravidão do Brasil? É assim que, através da distância que nos separa, tu te sentes acordar no fundo de teu sepulcro, pelo gemido articulado em um latim bárbaro, de escravos, como tu eras, em um Mundo que não conheceste, [...] para te pedir, ó Frígio, um milagre, a ti de quem o grande Marcos Aurélio tinha amor em ser discípulo, e que foste para ele o mais nobre dos reis, o oráculo que lhe transmitia toda a vida as respostas dos deuses. Faze ao Brasil inteiro, grande Escravo, esta esmola: Deixa o teu espírito, que brilha imortal na noite do erro, dissipar ainda uma vez as trevas de um trono, e lançar ainda um reflexo à fronte de um imperador!23 Marcos Aurélio Antonino, o grande imperador romano, não conheceu pessoalmente Epicteto, mas teve acesso ao pensamento epictetiano desde tenra idade por intermédio de seu professor de filosofia estoica, Júnio Rústico24. E o que fez Marcos Aurélio com o auxílio do radical humanismo epictetiano para distinguir-se positivamente entre os demais imperadores romanos? De acordo com os historiadores, adquiriu costumes frugais e despojados (concordes com o estoicismo25),
notabilizou-se por seu caráter democrático26, por seu respeito às resoluções do senado27, por seu reconhecimento da desumanidade do gládio, que fez com que ele limitasse na máxima medida possível os espetáculos de gladiadores28, muitas vezes requisitando seu serviço nas forças armadas para não se apresentarem nos jogos29, baixou um edito proibindo que quem quer que fosse sofresse perseguição por motivos religiosos nos territórios que se curvavam ao seu império30. Nabuco quer que essas luzes humanísticas penetrem na mente de Dom Pedro II de modo que este perceba o absurdo da escravidão do Brasil e proclame a abolição. Note-se que Nabuco nunca foi por princípio contrário à Monarquia. Outrossim, tornar-se-á um seu defensor quando da proclamação da República, chegando mesmo a escrever, em 1889, um opúsculo intitulado Por que sou monarquista , mantendo tais convicções até o fim da vida. No dia dez de fevereiro de 1888, cerca de dois anos após a publicação de Escravos! Versos Franceses a Epicteto, Joaquim Nabuco encontrou-se no Vaticano com o papa Leão XIII, informando-o sobre a luta dos abolicionistas no Brasil. Esse mesmo pontífice elaborou uma encíclica contra a escravidão (Libertas Praestantissimum) que foi publicada em 20 de junho de 1888. Em 13 de maio de 1888, a campanha abolicionista, da qual Nabuco foi um dos líderes, chegou ao fim com a abolição da escravatura decretada pela princesa Isabel, em nome do imperador Dom Pedro II. Joaquim Nabuco faleceu em 17 de janeiro de 1910 quando ocupava o cargo de embaixador em Washington. Curiosamente deixou por publicar uma obra da juventude intitulada A escravidão, que escreveu em 1870, aos vinte e um anos de idade, em seus tempos de estudante de direito em Olinda, obra que permaneceria inédita até 1988. Nesse trabalho encontramos o desenvolvimento do ideário que transparece em seu poema Escravo! Versos franceses a Epicteto. A distinção entre a escravidão da Antiguidade e a de sua Época que aparece
no poema que analisamos é, naquela obra póstuma, estabelecida em detalhe, inclusive citando Epicteto: Nessa civilização – diz-nos Nabuco falando sobre a escravidão na Grécia-- [...] havia certos detalhes que salvavam a dignidade do homem, assim a avaliação de seus talentos, cuja manifestação eram plenamente permitida. Ao passo que nos Estados do Sul da América, era proibido ao escravo, sob penas as mais cruéis, o aprender a ler, na Grécia as faculdades de cada um eram desenvolvidas com a animação do senhor e escravos houve que tocaram aos gregos a maior glória. Esopo, Fedro, Epicteto são nomes ilustres em seu país31. A corrupção da religião cristã por tolerar a escravidão também é pensada em detalhe: A religião de Cristo não podia permitir abençoar cativeiro algum. Mas o interesse tem tanta força que às vezes chega a falsear o sentimento, e quando se supõe argumentar convencido, argumenta-se interessado [...] O cristianismo também tem sido evocado, e do fato de ser o cristianismo uma instituição hebraica, contra a qual Cristo nunca se levantou especialmente, tem-se concluído que ela não é contrária ao espírito cristão32. Entretanto, observa Nabuco mais adiante, Cristo “veio para remir; a liberdade humana, sublime objetivo de seus esforços na terra, não vive com o cativeiro; diante de todos os princípios cristãos ele é um crime; a fraternidade humana, a caridade, a igualdade, a humildade, todas as intenções cristãs repelem-no” 33. A degradação da religião por aceitar ou tolerar a escravidão é apenas um caso particular da corrupção moral à qual se submete toda sociedade que aceita ou tolera a escravidão. Como Nabuco didaticamente expõe em seu poema, a escravidão degrada moralmente a sociedade como um todo. Essa reflexão abre seu livro A Escravidão, no qual Nabuco traça, ao longo da primeira parte da obra, o retrato da escravidão no Brasil e da degradação moral que ela acarreta para as várias instituições que compõem a sociedade brasileira:
Ao penetrar nas sociedades modernas destruiu-lhe a escravidão a maior parte de seus fundamentos morais e alterou as noções mais precisas de seu código, substituindo um estado, comparativamente e para todas, de progresso pelo mais obstinado regresso até fazê-las encontrar a velha civilização de que sairão através de chamas purificadoras. Na verdade, somente quem olha para essa instituição cegado pela paixão ou pela ignorância pode não ver como ela degradou vários povos modernos, a ponto de torná-los paralelos a povos corrompidos. Por fim, na última página de sua célebre obra Minha formação, Joaquim Nabuco, fazendo um balanço de sua vida, junta-se à galeria dos homens ilustres que reconheceram o valor de Epicteto e de sua vida absolutamente conforme ao seu pensar, em defesa da liberdade e da dignidade humanas: Dizendo as letras, quero apenas dizer o que elas podem ser para mim: o lado belo, sensível, humano das coisas que está ao meu alcance, a ressonância, a admiração, o estado de alma que elas me deixam... Foi a necessidade de cultivar interiormente a benevolência o que, talvez, me dispôs a trocar definitivamente a política pelas letras, a dar a minha vida ativa por encerrada, reservando, como vocação intelectual -- a política não fora outra coisa para mim --, o saldo de dias que me restasse para polir imagens, sentimentos, lembranças que eu quisera levar na alma... Olhei a vida nas diversas épocas através de vidros diferentes: primeiro, no ardor da mocidade, o prazer, a embriaguez de viver, a curiosidade do mundo; depois, a ambição, a popularidade, a emoção da cena, o esforço e a recompensa da luta para fazer homens livres (todos esses eram vidros de aumento)...; mais tarde, como contraste, a nostalgia do nosso passado e a sedução crescente de nossa natureza, o retraimento do mundo e a doçura do lar, os túmulos dos amigos e os berços dos filhos (todos esses são ainda prismas); mas em despedida ao Criador, espero ainda olhá-la através dos vidros de Epicteto, do puro cristal sem refração: a admiração e o reconhecimento.... g
JULIUS CAPITOLINUS. Scriptores Historiae Augustae. 2 ed. Tradução de David Magie. Harvard: Loeb, 1991, p. 136. Idem, ibidem, p. 150. Idem, ibidem, p. 156. 28 Idem, ibidem, p. 160. 29 Idem, ibidem, p. 184 30 Marcos Aurélio. Meditações. 10 ed. Tradução de C. R. Haines. Harvard: Loeb, 199. p. 388 31 NABUCO. A Escravidão. 1 ed. Recife: Massangana, 1988, p. 71. 32 Idem, ibidem, p. 45. 33 Idem, ibidem, p. 47. 25 26 27
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PARAIBANOS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
DISCURSO DE POSSE A. J. PEREIRA DA SILVA
CREIO, Senhores, Na imortalidade. Ninguém me desengana De que é divina a passionalidade Da dor humana. O que é pó, volta ao pó, mas a certeza Desse destino igual É condição da própria Natureza E a minha crença é sobrenatural; Pois, se tivesse os mesmos fundamentos Da razão positiva, Não se tornava cada vez mais viva Nas horas dos soluços mais violentos. Nas horas em que a morte prematura Sem causa e sem razão Priva os que ficam da melhor criatura Que nossos olhos nunca mais verão. Sim, creio em Deus! Em Deus, única Origem E único Fim, e minha fé ovante Aumenta a todo instante Em que a dor e os meus erros mais me afligem. Talvez fosse por mero comprazer Que Hamlet chegasse àquela argúcia extrema Do célebre dilema Em que duvida do seu próprio Ser. O coração também tem seus motivos: Fé, Esperança, Amor, Saudade – íntimo espelho refletor Dos seres mortos e dos seres vivos. Creio no eterno Espírito Onisciente, Senhor do Bem, dominador do Mal, – Numen que a Fé, por ser divina, sente, E não vê a Razão por ser mortal. No seu discurso inaugural, nesta Casa ilustre, declarou Luís Carlos que o melhor elogio de João Francisco Lisboa, fizera-o José Veríssimo, escolhendo-o para o patrono da sua Cadeira. Sintetizou, assim, exalçando-os, por sua vez, os méritos desses dois espíritos de eleição, representativos de fases tão distantes da nossa vida literária. Evocando o nome do famoso estilista do Jornal de Timon, o autor da Literatura Brasileira afirmava a unidade do senti-
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mento nacional de 1831 até nossos dias. As contingências por que se vem orientando o nosso gênio, de povo, através de tantos anos de vicissitudes políticas e sociais, não alteraram, como se vê, o nosso amor ao idioma e a nossa paixão pelas boas letras. Se em 1832 o jovem Francisco Lisboa já era notável e êmulo de Alexandre Herculano pela expressividade de sua elocução nacional, em 1916 não era menor, entre os mestres da língua, a reputação de José Veríssimo como clássico e doutrinador de estética. Jornalista brilhante e temido, escritor notável e político de integridade moral até à abnegação, o autor do Jornal de Timon, da A Vida do Padre Antônio Vieira, e da A Festa de N. S. dos Remédios é, por seus talentos e por suas obras, um dos bens de mais alta estima do nosso patrimônio mental. Quaisquer que sejam os traços diferenciais dessas duas individualidades, o certo é que ambas revelaram a mesma dedicação pela nossa cultura. Comemoremos, pois, com José Veríssimo, o paraninfo que ele escolhera – esse estrênuo polemista genuinamente nosso pela desenvoltura do liberalismo ardoroso e pela plasticidade verbal própria, autêntica, “no qual, por mais que o contenha o seu bom gosto e natural compostura, vibram as paixões que lhe agitaram a mocidade e não estavam de todo extintas nem na sua alma, nem na sociedade que lha formara”. Essas paixões são as mesmas deste grande momento histórico: – as de um Brasil maior, cônscio de seus deveres cívicos, ciente de sua unidade moral, consciente de sua finalidade neolatina na destinação política do novo mundo americano. “Brasileiro de origem e nascimento, brasileiro pelas íntimas fibras de sua alma e pelo mais profundo do seu sentimento”, como diz Veríssimo, João Lisboa foi, é e continua sendo, em cada ocupante transitório desta cadeira simbólica, um justo motivo de ufania. A nobreza desta Academia está princi-
palmente em ser a guarda de honra de nosso patrimônio intelectual. Cada uma de suas solenidades votivas é para nós, os que vivemos na crença da inteligência criadora, um ato de fé em nossa destinação étnica. Para a Raça, o passado e o presente continuam no desejo sempre maior de atingirmos um pensamento mais lúcido e uma estilização mais perfeita, e nós, os indivíduos, somos os momentos rítmicos dessa emulação incoercível. Efêmeros ou duradouros, temos que evoluir segundo o determinismo das nossas energias vivas. Contingentes, mas necessárias, são elas que nos exaltam as idéias superiores e mantêm essa eterna comunhão eucarística entre os seres visíveis e invisíveis. Para elas não há, com efeito, limites de tempo e de espaço, tal como se a vida fosse, em verdade, a mesma e eterna volúpia do futuro. João Lisboa, Sílvio Romero, Veríssimo, Araripe Júnior, Osório Duque-Estrada, Nestor Victor, e só para falarmos dos mortos que fizeram críticas literárias; são espíritos integrados à nossa evolução cultural. Devem-lhes as gerações sucessivas o exemplo que deixaram, de labor invencível, alta cultura e probidade analítica. Se muita vez erraram ou estacaram inquisitorialmente em conceitos ou preconceitos doutrinários, nem por isso desmerecem suas convicções honestas e seu desinteresse apostólico. As novas correntes estéticas, iconoclastas por índole, nem sempre toleram as crenças impertinentes. Os “novos” de meu tempo assim procederam com José Veríssimo, cuja autoridade de crítico atingia as culminâncias, precisamente quando já era outro o senso da Vida e a juventude, proclamando-o revolucionariamente, lhe imprimia, em todas as esferas da emoção, a espiritualidade, a graça, o movimento e o ritmo inédito do Simbolismo. José Veríssimo, como, aliás, os grandes vultos da poesia e da prosa contemporâneas, compreenderam certamente o rumor e a
beleza diferente dessas outras vozes; mas persistiram no caráter próprio, como esses rios caudais, que nada desvia do curso grave e surdo, – curso que as nascentes lhe imprimiram às águas, vastas como o céu, que as admira, e as claridades que refletem. Moços de ontem, só agora podemos apreciá-los com a experiência, único juiz que satisfaz o foro íntimo. Podemos apreciá-los sem prevenção, porque Arte e Poesia são modos da mesma e eterna sofreguidão de Beleza e esta é sempre nova desde que alcance o milagre de uma realização viva. Os moldes pouco importam. O Poeta, como todo e qualquer realizador de símbolos, tem o dom imanente do que porventura há de divino em nosso espírito humano e foi, é, será sempre o mesmo em todas as suas revelações. É ele que cria as obras-primas para maior glória de todos os séculos. Não há “velhos” e “novos”, não há “passadismo” e “futurismo” senão estados de graça criadora, os quais, como a Perfeição que ideamos, desconhecem fórmulas, preconceitos dogmáticos ou invocações cronológicas. José Veríssimo não teve, nem podia ter a vibratilidade da nossa adolescência, nem esta poderia apreciar, como um vinco de caráter, a sua atitude inflexível. A verdade, porém, é que a Filosofia da Arte já havia descortinado outros horizontes e surgíamos, no plenário das nossas aspirações insofridas, orientados por uma nova interpretação finalística da Beleza em Poesia. A emocionalidade parnasiana havia atingido a perfeição possível com os grandes nomes da plêiade Bilac, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho, Luís Murat, Raimundo Correia, João Ribeiro, Augusto de Lima, Emílio de Menezes, Luís Delfino e Francisca Júlia. Aos moços do tempo esse tecnicismo do verso só interessava como um nobre documento humano de consciência artística que eles aproveitariam a seu modo e em outro sentido: no sentido das tendências impressionistas e espiritualistas dominantes. Essas tendências, aliás, já se pronunciavam indistintamente em alguns daqueles poetas luminares e em outros, como o excelso Alphonsus de Guimaraens, Emiliano Perneta, Dário Veloso, Silveira Neto, espíritos cuja afinidade com a geração recém-vinda proclamava a Poesia Nova, direta ou indiretamente aqui chegada com os decadentes e logo depois com os simbolistas franceses e belgas, todos vindo ao encontro das nossas audácias juvenis.
Foi assim que daquela nova corrente emotiva, ou por influição dela, surgiram, entre nós, alvoroços e abnegações que a história literária deve cultuar pela novidade do estilo e mobilidade sintática que imprimiram à Prosa e ao Verso. Os arautos desse advento glorioso foram Cruz e Sousa, Gonzaga Duque, Mário Pederneiras, Castro Meneses, Hermes Fontes, Leoni Ramos, Paulo Barreto, Patrocínio Filho, Paulo Araújo, Augusto dos Anjos, Faria Neves Sobrinho, Paulo Gonçalves, Euricles de Matos e outros nomes admiráveis prematuramente desaparecidos. José Veríssimo, como já disse, não se tomou de entusiasmo por essa ruidosa festa da juventude irreverente. Mas nem por isso a sua atividade literária deixou de ser edificante e exemplar por sua vasta cultura e nobreza de atitude. A José Veríssimo sucedeu o Barão Homem de Melo, estadista, historiador e geógrafo, cuja atuação didática, durante longa existência, foi tão fecunda e benéfica a tantas gerações. Sucedeu-o Alberto Faria, outro apaixonado da nossa história literária, principalmente no que ela tem de mais intrínseco: a sua feição folclórica. Ouvi-o ocasionalmente uma ou duas vezes em tertúlias de letrados, mas guardei forte impressão de sua franqueza expansiva e abundância erudita. Nos livros Aérides e Acendalhas, a sua acuidade de filólogo e intuição crítica, apreciando ou comentando os motivos da poesia ou das coisas idiomáticas, são obras inestimáveis para os curiosos de psicologia indígena nas efusões dos seus instintos líricos. Não há talvez maior força para a intensificação da unidade nacional que os motivos folclóricos, invocadores, como são, das origens dos povos e dos múltiplos episódios e lendas de sua vida primitiva, de suas crenças e superstições. São eles que influem no desenvolvimento de um povo e, com os fatores mesológicos, contribuem para a formação dos usos e costumes, das qualidades e defeitos comuns às respectivas populações, sem que lhes contrarie o peculiarismo gregário e, antes, individuando todas como variantes rítmicas do mesmo sangue racial. Apreciando essas influências de origem, é que podemos compreender porque, num vasto país como o nosso, tão vário na geografia e nos climas quanto unitário nos anelos gerais das populações diferenciadas, a harmonia destas se impõe como um determinismo psíquico de suas conveniências políticas; porque as próprias diversidades resultantes desse peculiarismo eventual
não só fazem que elas se sintam reciprocamente necessárias, completando umas, pelos contrastes e confrontos o que falta às outras, como também lhes estimula as forças criadoras, integrando-lhes os interesses mútuos, coordenando-as na mesma orientação étnica e identificando-as na unidade espiritual da mesma língua. Se é certo que as sociedades se regem por leis análogas às leis orgânicas, não vejo razão especulativa que justifique a secessão do Brasil. Os poetas nada sabem de política, mas sentem, pela impulsividade dos instintos, que a sua gente repeliria qualquer idéia cirúrgica de desmembramento da pátria. Uma pátria ou é inviolável como a fé que lhe deu o nome, o sangue que lhe edificou a autonomia e a honra dos filhos que a exaltaram no conceito universal, ou deixa de ser um patrimônio de tantos sacrifícios e tantas glórias para degradar-se no vulgarismo locativo de uma simples designação geográfica. O sentimento inato desta verdade, temo-lo todos nós, filhos de todas as latitudes brasileiras, que, por isso mesmo, queremos o país integral, como o quiseram e fizeram os seus desbravadores bandeirantes e no-lo entregaram consolidado, livre e independente, os mártires de todas as inconfidências de nossa História. Pátria! Quisera ver-te diferente/De todas as demais do continente,/– De todas as demais de todo o Mundo./Tens um céu tropical e um chão fecundo,/Rios caudais, terras de hulhas e rosas,/Florestas virgens, minas dadivosas,/Tudo quanto num mundo adolescente/Deslumbra os olhos e fascina a mente./Pátria de almas ilustres e homens de ação,/Filhos de heróis de espírito cristão,/Quisera ver-te exuberando vida,/Fértil e farta e de tal forma unida/Que não sentisses descontinuidade/Nos teus instintos de brasilidade/E fosses uma só, única e forte,/De norte a sul, como de sul a norte./ Quisera ver-te, Pátria, sem rival/Na emulação da tua paz rural,/No rumor de colméia das fazendas,/Na faina dos engenhos e das moendas,/Nos teus gados à solta e na expansão/Dos teus vastos roçados de algodão./Pátria que a vista fica a contemplar,/Ébria de azul e de esplendor solar,/ Quisera ver-te e hei de te ver um dia/Inda mais alta do que eu pressentia,/Porque tens tudo, tudo que é grandeza:/Clima fecundo, fértil Natureza,/A paixão da Justiça e da Eqüidade,/O sentimento da latinidade,/O culto do Dever, o instinto são,/Os dons da forma e da imaginação,/Toda uma gente de altivez tão boa,/Que um Cruzeiro Simbólico abençoa. janeiro/fevereiro/março/2015 |
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Luís Carlos, sucessor de Alberto Faria e o último laureado desta Cadeira, na ordem do tempo, foi também o único que lhe deu a glória da Poesia. Quis a vossa magnanimidade que participasse eu nessa glória, sucedendo-o. Quis ainda o Destino que fosse Adelmar Tavares o meu paraninfo nesta noite constelada de sonhos vivos e mortos, como a sua “Noite Cheia de Estrelas”. Rendo graças aos deuses por me haverem proporcionado a ventura de ser conduzido pelo Caminho enluarado dessa alma peregrina à serenidade grave e sábia da vossa Companhia. Impõe-me a nobreza do motivo por que me preferistes um duplo reconhecimento: – o do poeta que porventura vos pareceu plausível e o do homem que a boa fortuna identificou, por longa estimação e admiração recíprocas, àquele de cujo elogio posso vos dizer com Fagundes Varela: “Qualquer o fará mais belo. Ninguém tão d’alma o faria!” Ninguém, sim; porque ninguém conheceu tão de perto Luís Carlos nas suas qualidades e nos seus defeitos, – se são defeitos os excessos das qualidades. Uma vida é a projeção de uma alma no Mundo. Para bem conhecê-la é necessário, inda que sucintamente, considerar-lhe as contingências biológicas e as circunstâncias eventuais do desenvolvimento. Umas e outras, felizmente, não foram desfavoráveis a Luís Carlos. Era um belo tipo de homem, cujas tendências espontâneas uma boa educação soube orientar desde a infância. A educação, no meu modo de sentir, não tem maior conseqüência se o indivíduo, chegado ao estado de compreender, não submete à vontade própria as predisposições inatas. A vontade é que é a base física ou psíquica de nossas virtudes. Filho de um casal ilustre, – Dr. Eugênio Augusto de Miranda Monteiro de Barros, e dona Francisca Carolina Werna da Fonseca Monteiro de Barros, – Luís Carlos nasceu e criou-se num ambiente propício ao desenvolvimento daquela distinção pessoal e daquela nobreza de idéias que o sagraram um doutor da gentileza. Os seus pais participavam da intimidade da família imperial, e todos nós sabemos quanto era, de fato, uma verdadeira elite a alta sociedade dos últimos tempos do Império. O Conde de Afonso Celso, um dos mais notáveis sobreviventes desse período ilustre da nossa vida cultural, fez interessantes revelações, a propósito dos ascendentes de Luís Carlos, quando manifestou o seu pesar nesta Academia, pelo prematuro desaparecimento do poeta. Ouçamo-lo:
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Durante longo prazo a família dos pais e avós de Luís Carlos, então na infância, habitou prédio contíguo ao da família paterna do orador, que, mais velho do que ele vinte anos, o conheceu e apreciou desde criança – e que linda criança ele foi! O avô, de quem adotou integralmente o nome, – o Dr. Luís Carlos da Fonseca, – era mineiro, como o pai do orador, o Visconde de Ouro Preto, e, como este, senador do Império pela Província de Minas Gerais. A avó, filha da Condessa de Belmonte, camareira mor do Paço Imperial, e a quem foi confiado o futuro imperador D. Pedro II, quando nasceu, e sua professora de primeira instrução e educação, fazia versos encantadores, mas só os mostrava aos íntimos. Uma das irmãs dele, senhora exemplaríssima, esposou o hoje almirante Pedro Cavalcanti de Albuquerque, querido amigo do orador. Foram das mais estreitas as relações entre os dois lares vizinhos. Menino ainda Luís Carlos, a mãe dele, também notável, como seus ascendentes e a sua prole, pela inteligência e virtudes, companheira de infância e particular amiga da Princesa Isabel, a Redentora, enviou ao orador algumas composições poéticas do filho, indagando em carta: “Diga-me, com franqueza, se lhe acha jeito para a poesia, como o de mamãe.” Respondi que os versos me pareciam magníficos para a idade do poeta, a quem augurei fulgente destino social e literário. O delicado documento de carinho maternal entreguei-o a Luís Carlos, quando ele entrou para a Academia e ele mo agradeceu chorando. O orador evoca estas reminiscências, para outros insignificantes, mas para ele caríssimas, no intuito de comprovar que o prematuro desaparecimento de Luís Carlos não só o confrangeu no caráter de homem de letras, seu irmão espiritual na Academia, como ainda lhe feriu fibras profundas do coração que lhe dedicava um afeto algo parecido com a ternura e o desvanecimento paternais. Nasceu poeta, como se vê, o futuro autor de Colunas. Não só nasceu poeta, como teve a fortuna de contar um irmão poeta, e dos melhores líricos da época, Francisco de Paula Monteiro de Barros. Os excessos românticos criaram, entre as famílias, uma espécie de terror supersticioso contra a Poesia e os pais usavam de toda autoridade no preparo dos filhos para as vicissitudes quotidianas. É possível que, por este motivo, Luís Carlos se voltasse exclusivamente para o seu curso de engenheiro e só muitos anos depois reatasse, de novo, o ritmo de sua vocação literária. Durante essa longa ausência, as Musas não se teriam molesta-
do com as Matemáticas? As primeiras eram uma vocação; as outras uma contingência. Mas todos nós temos que obedecer a essa contingência e nem por isso precisamos renegar os impulsos estéticos de nossa natureza. A vocação, sendo inviolável, não vacila e os obstáculos, na maioria das vezes, a estimulam. Luís Carlos é uma prova do quanto a vocação pode aproveitar até mesmo a riqueza técnica, amoldando-a aos seus fins. DESTINO CÉLERE As energias do meu ser congrego-as/ No anseio de furtar-me a vãs demoras;/ Segundos, para mim, minutos e horas/São metros, são quilômetros, são léguas.../Pautam-me a vida os trilhos como réguas,/Por sobre cujas féveras sonoras,/Dias e noites, vésperas e auroras,/Jungido ao trem, vivo a correr sem tréguas.../E, enquanto, assim, desgasto a argila impura/Em terra, sinto em mim que, mais aflito,/O espírito, buscando o ideal na altura,/Sobre o alado corcel do velho mito,/Num galope fantástico procura,/Através do infinito outro infinito... Logo depois de formado e iniciado em sua carreira pública, passou ele a exercer as suas funções no Estado de Minas. Estava em plena primavera de vida e de coração, graças a um casamento feliz. Essa existência pura e tranqüila favoreceu-lhe o aperfeiçoamento profissional e a cultura geral do espírito. Favoreceu-lhe principalmente a comunhão ou, antes, a união emocional com a Natureza. O ambiente não podia ser melhor. Minas é um milagre de horizontes espetaculares para o olhar, e para o espírito, toda uma evocação de dramaturgia histórica. É sempre o mesmo desafio à volúpia mirífica da visão que se multiplica e amplia com a variedade telúrica dos seus aspectos e a fascinação de lanterna mágica dos seus céus cromatúrgicos. É sempre a mesma sugestão cívica para quem lhe recorda os lances de heroicidade sangrenta em holocausto à vitória, inda que tardia, da nossa libertação política. HORIZONTES Horizontes vastíssimos de Minas/– Volúpia eterna dos contempladores,/Vibram, na transfusão de vossas cores,/Claras sonoridades matutinas./Sois formados, talvez, de sensibilizada/Contextura sutil de pétalas cheirosas,/Porque em vós se pressente o olor que a madrugada/– Borboleta do Céu espiritualizada –/Com dois raios de sol, como antenas radiosas,/Dissolve nos jardins, desabrochando as rosas!/Quando
os olhos mergulho em vossa calma/E longínqua alagoa policroma,/Tem-me o corpo a feição de erma redoma,/Porque me vai, dentro dos olhos, a alma! Ambiente, como se vê, de pura brasilidade. Foi inefável a sua influência na imaginação de Luís Carlos. Ele guardou, para o sempre, na retina e na alma, essa impressão de grandeza e serenidade. Enquanto nos centros intelectuais se discutiam escolas e se injustiçavam reciprocamente parnasianos e simbolistas, Luís Carlos se entretinha consigo mesmo e compunha os seus poemas sem outros cânones que os ditados pelos próprios estremecimentos íntimos. Identificado, por bem dizer, com a majestade daquele meio físico e com as doutrinas clássicas, a única forma que convinha às suas idéias e emoções era a tradicional. Entre os poetas, já então considerados mestres, preferiu Alberto de Oliveira e Augusto de Lima; o primeiro, por seu panteísmo imagético; o segundo, pelo surto haekeliano da imaginação cósmica. Também os dois luminares do Verso souberam estimar o discípulo amado. O primeiro, o Príncipe dos Poetas, disse-lhe em carta: – “Seus versos, como as rimas, não cedem em lavor aos mais apurados. Se o tempo, consoante autorizado juízo, não respeita senão as obras em que entra como colaborador, estas Colunas, lavradas com tanto desvelo, não são das que facilmente se derrocam; se tal se desse, até as pedras, as preciosas e sonoras pedras que as formam, clamariam contra o atentado.” O segundo, cuja memória estará sempre viva neste Cenáculo, pelo impressivo e imprevisto dos seus arroubos panteístas, não foi menos eloqüente: – “Poeta de grande estro, servido por uma imaginação privilegiada, conhecendo bem a língua e sabendo tirar dos temas mais simples os efeitos mais comoventes, o Sr. Luís Carlos tem já pronto um formoso livro a que deu o título de Colunas e em que há versos de uma grande beleza interior e modelados com perfeita maestria.” Não obstante o seu culto por esses dois nomes gloriosos, Luís Carlos tem expressão própria, como todo verdadeiro artista. Nela é que está o cunho da inteligência ou da sensibilidade pessoal. A expressão poética é a fisionomia da nossa alma. Na poesia, como na Música, a faculdade inventiva é tão interessante ou menos que o processo verbal, com seus arranjos e combinações prosódicas, suas alegorias e símbolos, suas cadências e ritmos. É ela que comunica a quem lê ou ouve a mesma disposição lírica em que o poeta concebeu e viveu intima-
mente o seu poema. Desde que o verso produza o milagre dessa consubstanciação lírica, isto é, se imponderabilize com a idéia ou com o sentimento que queria transmitir a outrem e consiga transmiti-lo, não vejo como diferençar o pensamento da sua plasticidade expressional, ou seja, a idéia da forma; pois transmitimos nossa emoção a estranhos tal como a havíamos recebido e desejávamos que eles igualmente a compreendessem e sentissem como nós. Parece, pois, que aquela distinção é mais teórica que real e só tem personalidade estética quem é capaz de se objetivar distintamente, individualisticamente. O autor de Colunas, Astros e Abismos e Amplidão satisfaz, como raros, essa condição ingênita a toda obra de arte realmente duradoura. É, por suas faculdades líricas de ideação e estilização, um poeta autêntico. Mereceu a consagração dos críticos, da imprensa, da elite espiritual das duas últimas gerações. Mereceu-a, porque tinha emocionalidade inata e sabia comunicá-la. Sua lira foi bem um septicórdio. Quando quer, orquestra estrofes sonoras e vivas como um brasileiro, estrofes cujos efeitos prosódicos dão a impressão cromática do calor de verão dos meios dias tropicais. SERTÃO A canícula escalda... Espadanando adusto/No espaço os raios crus, relumbra, a pino, o fausto/Do Sol. A terra esturra... O vegetal, exausto,/Se estorce, sopesando a ramaria a custo!/Alastra o amplo deserto a estagnação de um susto./Algares e álveos nus soltam, na ânsia de um hausto./O bafo bochornal, que exsica o solo infausto./Tudo estarrece, ao sol, num sofrimento augusto!/ Um boi galgaz estrinca, ao longe, a agra caatinga./Numa heróica ilusão, vingando todo o estorvo,/Em busca de um marnel, onde água, enfim, distinga!/E por sobre a amplidão do panorama torvo,/Num sarcasmo feral, porque o sol já se extinga,/Surge a noite à feição de um formidável corvo! Quando é outra a sua emoção, este mesmo aguafortista se transfigura no pintor das tardes brasileiras, em cujas perspectivas seráficas parece que o desmaio das claridades tem melancolias a Schumann. Sossego... Hesita o Azul... Timidamente,/Vésper espia, no alto, e, embaixo, espia,/ Agonizando atrás de uma vertente,/O Sol, entre os troféus finais do dia.../Seguindo o rubro funeral do poente,/A sombra alastra a Altura... O tempo esfria./Vibram, pelo ar,
as coisas sutilmente//Uns vagos sons de estranha melodia.../Calma... Já pela síncope do ocaso/O dia apenas transparece raso./ Espessa, a noite cerra-se e flutua.../No espaço há um calafrio rutilante.../Calma... Como um suspiro do levante,/Entre silêncios vem surgindo a lua... Qualquer das cordas do seu instrumento produz a mesma encantação. Nesta encantação Luís Carlos teve momentos de pura extasia. A sua intuição de poeta apreende, aqui e ali, motivos, cuja beleza realiza com imagens ou analogias inéditas. São verdadeiras criações. Para o seu impressionismo há sempre combinações imprevistas no mundo sensível. Sabeis, meus Senhores, que a razão conhece o mecanismo lógico dessas combinações ou correspondências; porém, somente a curiosidade intuitiva pura e divinatória do poeta entrevê ou julga entrever essas afinidades esotéricas das coisas. Não só das coisas consideradas objetivamente, mas das suas relações com a nossa imaginação criadora, em cujo espelho interior como que tudo se reflete, integrando-se à pura espiritualização. Para interpretar e exprimir esses estados de alma é que os poetas se servem de processos indiretos, sugestões, imagens, metáforas. A metáfora é uma ênfase lírica. Só as almas reférteis de beleza, cheias de graça, isto é, de sensação imediata e de visão instantânea, conhecem esses recursos mágicos de dizer os seus enternecimentos imortais. Para elas cada palavra já é, em si mesma, uma metáfora, senão uma entidade móbil e múltipla nos efeitos de sua significação musical e léxica. É um poeta, e verdadeiro, todo aquele que tem esse dom evocador, revelador ou criador de metáforas – dom que a cultura pode aprimorar, mas que só os deuses conferem. Luís Carlos tinha essa riqueza de metáforas, conseqüência de um temperamento exuberante. Tinha-a nos livros de versos, como nos outros. No prosador de Encruzilhada e do Rosal de Ritmos há toda a floração verbal do poeta de Colunas, Astros e Abismos e Amplidão. O seu estilo é um só. A imaginação é sempre a força dominante no desdobramento dos assuntos. A cor, o som, a luz e a sombra são inerentes à visualidade tropical de Luís Carlos. Para ele, escrever é, antes de tudo, impressionar. Não resiste à eloqüência que Deus lhe deu. O escritor é um pintor. Sua pena é uma paleta e prefere a imagem ao desenho, o esplendor do vocábulo à seqüência fria do raciocínio. Para ele, a emoção é que convence, é que interessa, é que persuade. Para ele o que orienta a inteligência criadora é o sentimento, origem e fim de toda janeiro/fevereiro/março/2015 |
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emoção. Para comunicar esse sentimento aos outros, o artista se serve do seu temperamento. Se este varia com os indivíduos, fora um contra-senso criticar tal ou tal autor por ser tal ou qual a sua feição psíquica. Seria o mesmo que obrigá-lo a deformar a própria emoção. Também pensei sempre assim. Por isso, a meu ver, o direito de crítica termina onde começa o senso subjetivo do crítico. Precisamente porque não há mais alta e nobre função na vida literária, é que os espíritos eminentes que analisam e interpretam devem ter toda cautela para não transpor esse limite. O conhecimento e a emoção neles devem ser tais que se compensem e compreendam, graças à razão pura, a psicologia de cada artista. Só assim serão meritórios os seus conceitos. É com razão que a Sra. Albertina Berta, a este propósito, diz no belo estudo que fez da obra de Olavo Bilac que “nas literaturas adultas, os críticos autênticos granjeiam a admiração e o respeito, a estimação de iniciados e leigos pela afabilidade, pela competência e pelo discernimento”. Se Luís Carlos tinha no sangue a paixão da imagem e da metáfora, o seu estilo não poderia ser outro e suas metáforas nada perderão com isto, desde que sejam como são, espontâneas e perfeitas, isto é, desde que exprimam, como exprimem, ao justo, os seus entusiasmos ou as suas angústias, seus desfalecimentos ou suas exaltações. Há uma virtude da qual o escritor não declina, nem pode declinar: ser ele mesmo, com todas as estranhezas que lhe notem, desde que a sua consciência não o acuse e a sua fé não admita outras inspirações senão as oriundas de seus ditames infalíveis. Foi esse predeterminismo fatal que impressionou quantos conheceram Cruz e Sousa. Ninguém, como este poeta estranho, viveu entre nós o “Sentido do Azar e o conceito da Fatalidade”, que a argúcia introspectiva de Félix Pacheco viu tão nitidamente no psiquismo inelutável de Charles Baudelaire e do qual dotou nossa literatura ensaísta de um dos mais incisos estudos de crítica psicanalista. Cruz e Sousa também tinha a paixão da imagem e da metáfora. – Paixão irresistível e que era, de certo, o tormentoso fragor de seu sangue de Dante Negro. Os Guelfos e Gibelinos da Crítica o desdenharam por seus excessos verbais; mas a sua locução não podia deixar de obedecer à passionalidade arterial das suas volúpias e tragedismos atávicos. Felizmente os admiradores íntimos, Tibúrcio de Freitas, Félix Pacheco, Saturnino Meireles, Nestor Vítor, Maurício Jobim, Castro Menezes, Paulo Araújo, Gonçalo Jacome,
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Carlos Dias Fernandes, Euricles de Matos e outros lhe salvaram as obras que foram todas editadas e exalçaram-lhe o nome, que a revista Rosa-Cruz ostentosamente glorificava em cada publicação. Hoje, graças à evolução geral das idéias e aos sacrifícios pessoais que concorreram para ela, a crítica já é mais humana e aprecia, compara, comenta, pondera, coteja diferenças e julga, muita vez, com simpatia surpreendente as concepções mais esquisitas. Antes assim. “Há certamente erros estéticos, diz Edmond Barthelemy, mas mesmo as literaturas em que excedem, as coisas não são tão falsas como geralmente se pensa.” Parece-me que a crítica está adotando mais ou menos este conceito eclético. Antes assim, repito, porque tudo leva a crer que a preeminência de imaginação e de sentimento é que individualiza as nossas ideações e realizações artísticas, imprimindo-lhes forma e significação originais. O caráter de cada escritor, isto é, o que há na sua natureza emocional fundamentalmente inflexível às contingências externas, tem de se trair nas suas obras como na sua própria fisionomia; porque, pois, lhe desmerecer a expressividade real, quando não pode ter outra, se for sincero ou não confundir arte com artifício, estilo com virtualismo sintático? A falta deste critério foi que levaram tantos espíritos ilustres a acusações injustas ao Romantismo, considerado por eles mesmos como uma atitude filosófica, uma espécie de afetação voluntária dos próprios sentimentos. A verdade é que o Romantismo era, antes de tudo, uma crise sentimental dos homens de 1830, tal como a rapidez poderá também ser diagnosticada amanhã como um mal do nosso século de naus-aviões e cavalos-motores. Tanto assim era que cada poeta imprimia às suas locubrações um timbre unipessoal impossível de ser confundido com o de qualquer dos seus êmulos. Musset, Victor Hugo, Lamartine, Théophile Gautier, todas essas almas de gênio são tais justamente pela pessoalidade que cada qual comunicava a seus versos em tudo semelhantes aos de seus pares, menos na substância íntima dos ritmos. Esta consideração pode ser feita relativamente aos parnasianos. Leconte de Lisle, Heredia, Sully-Prudhomme, Catulle Mendès são tão admiráveis na perfeição escultural das estrofes, quanto inconfundíveis na virtualidade emotiva que os distingue entre si. Vê-se, por aí, que o versilivrismo não surgiu da carência de outro instrumento capaz de pessoalizar os executantes, mas por motivos de natureza
psicológica e que talvez coincidissem com a nova orientação filosófica a que Bergson acabara imprimindo tanta beleza dialética e subtileza persuasora. Não há, pois, como desdenhar a forma literária porque seja linear e subtil, como em Machado de Assis ou transbordante e ruidosa, como em Castro Alves, Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Luís Carlos. O temperamento será sempre a dominante psíquica entre as múltiplas energias que concorrem para a formação do que pensamos ou sentimos. O de Luís Carlos poeta e o de Luís Carlos prosador revela-se o mesmo, sem que deixe de lhe caracterizar especificamente as estrofes e os períodos, segundo imperativos estéticos que tornam antônimas as duas formas de elocução. Realmente há prosa e verso. Nenhuma inteligência confunde emoções de natureza tão diferente. A mesma individualidade pode sentir uma ou outra e exprimi-las com as mesmas vibrações emotivas, mas estas não teriam forças para lhes desvirtuar o estilo e os fins específicos. Os grandes poetas e grandes prosadores, como Bilac e Humberto de Campos, são igualmente sonoros e claros em todas as lavras da sua pena prismática: poesia, conferências, crônicas, novelas. A elocução lhes vem da mesma fonte de encantações verbais. Apenas é onímoda. * * * Foi Castro Menezes, cuja morte prematura privou nossa geração do seu talento mais fulgurante, quem primeiro me falou de Luís Carlos. – Não o conheces? pois é um grande poeta. Substituiu – porque Luís Carlos é engenheiro – o Pégaso pela Locomotiva. Aludia, sem dúvida, à exuberância do seu estro. E contou-me, com a verve de seu espírito expansivo, como o conhecera em São Paulo. Fora ouvir Luís Carlos a propósito de tarifas da Central do Brasil e passaram, em seguida, à palestra, durante a qual descobrira o poeta. – Um poeta autêntico e dos maiores da nossa grei. Meses depois Luís Carlos vinha desempenhar, no Rio, na alta administração daquela Estrada, as funções de Chefe do Movimento. Fui recebê-lo e abraçamo-nos, como velhos amigos, porque Luís Carlos já havia lido o meu livro Solitudes. Daí por diante a convivência estimulou cada vez mais a nossa cordialidade. Durante o dia, era o trabalho em comum na repartição. À noite, o entretenimento literário em sua vivenda. Verifiquei que Castro Menezes não
lhe exagerara os méritos. Fizemos a leitura do seu grande livro Colunas, cujos sonetos e poemas ainda estavam manuscritos e emendados, corrigidos, denotando tudo sério labor e viva ansiedade de perfeição. O meu entusiasmo por um poeta de emoções tão espontâneas e expressões tão corretas induziu-me à idéia de procurar-lhe editor. Luís Carlos não acedeu senão depois de muita insistência minha e reiterada afirmação de que seria absolutamente triunfal a sua estréia. Apresentei-o ao livreiro Jacinto dos Santos, que se louvara no calor dos meus prognósticos. E jamais esqueci o meu desapontamento nessa ocasião; pois, enquanto o editor se regozijava com a preferência que lhe dava o editando, Luís Carlos fazia tudo para convencê-lo dos grandes prejuízos comerciais que possivelmente lhe poderia causar. – Compreendo perfeitamente, dizia o Jacinto. O Sr. Dr. Ainda não é um nome lido nos jornais e revistas daqui. Mas eu sei que é um grande poeta. – Pois bem! concluiu Luís Carlos, depois de longa reflexão: assinaremos o contrato, uma vez que fique explicita a obrigação da minha parte de reparar os prejuízos que porventura o amigo venha a ter. O Jacinto olhou-me espantado. Na sua longa vida de trato comercial com autores inéditos, certamente nunca encontrara um só que lhe fizesse exigência de tal natureza: reembolsá-lo de possíveis prejuízos nas respectivas publicações. Percebendo-lhe o espanto, intervim: O Dr. Luís Carlos é assim mesmo. – Sem dúvida! exclamou Luís. Nunca me conformaria com a idéia de ter prejudicado a quem, como o nosso amigo, tão generosamente confia no meu nome. O Jacinto concordou, como se vê, com a cláusula leonina e recebeu os originais. O livro foi dado à publicidade, com extraordinário êxito de livraria e de crítica, êxito que, aliás, ele já tinha obtido nesta mesma Academia, na memorável sessão em que o nosso mestre Augusto de Lima tão eloqüentemente atraiu a vossa atenção para o grande poeta, cujos sonetos mereceram a honra da sua leitura e a glória dos vossos aplausos. Foi o grande acontecimento da vida literária de Luís Carlos. Viu, sentiu, compreendeu que a Academia Brasileira o recebera de alma aberta, sem nenhuma prevenção contra a sua engenharia, reconhecendo que ele realizara o milagre de harmonizar os ruídos mecânicos da locomotiva com os ritmos vivos do coração. Ele os conservou em equilíbrio, uns e outros, graças ao domínio que tinha sobre si,
como técnico, e a sua justa intuição de beleza, como poeta. Tudo no homem, como no autor, guarda essa mesma equivalência. Perfeita harmonia de sua varonilidade plástica e sua sensibilidade. Força e bondade proporcionais. Combinavam-se, ao justo, nele, a gentileza e a cultura. A ética profissional não lhe alterou a afetividade. A hierarquia fê-lo menos um chefe que um ídolo dos homens mais desiguais pelas origens e condições. Numa hora em que se discutia toda autoridade, a sua era um dogma para a multidão dos funcionários e operários da maior ferrovia nacional. É que essa autoridade tinha o seu fundamento na única lei que todos respeitam: a equanimidade. A equanimidade era o segredo aberto de sua vida, como foi e é toda a beleza de sua obra. Não pude, Senhores, diferençar uma de outra. Verifiquei, durante longos anos de convivência quotidiana, que as ações do homem nunca divergiram dos sentimentos do poeta. As suas palavras eram tão belas como os seus atos. Com as primeiras abriram-se lhe as portas deste cenáculo; com os segundos afeiçoaram-se lhe todos os corações. Foi uma vida tão ilustre pelas obras, como edificante pelos exemplos. Em Luís Carlos equivaliam-se a Bondade e a Inteligência. Nenhum homem, como sabeis, pode ser apreciado fora das influências em que nasceu e se lhe cultivou o espírito. Essas influências são múltiplas. Não lhe alteram, talvez, o caráter; mas ou se harmonizam ou se não harmonizam com ele. Nesta última hipótese é preciso uma rara longanimidade, para que os indivíduos superiores conservem intangíveis as excelências do espírito, embora já estejam elas no sangue e constituam a razão atávica do seu destino ulterior. A pluralidade das aptidões implica as desigualdades das condições individuais e sociais, causa das revoltas e conflitos de toda espécie. Mas isso é conseqüência de nossa condição de seres incompletos e imperfeitos, seres que só a ação redentora da Dor pode melhorar, induzindo-os à Consciência Universal de sua verdadeira destinação. Harmonizar neste sentido as inclinações e as ideias gerais, é a aspiração da Pedagogia, tão eficiente nas almas nobres, quanto precária nas inferiores. Estas vão resistindo a todos os recursos da Escola, mas nem por isso deixam de evoluir consciente ou inconscientemente pela própria ação do tempo. Essa evolução é lenta. A grande maioria fica sempre muito longe de compreender a elite dos contemporâneos. Daí, o drama íntimo de certas almas em seu convívio com a gente vulgar. Os poetas vi-
veram esse drama em todos os tempos: uns ruidosamente, outros em silêncio. “Não ser conformista! eis o grande crime”, exclamava Baudelaire. É o grito de todos os verdadeiros artistas. Eles têm um ideal e é a multidão que deve subir para aplaudi-lo, e não eles descerem para lisonjeá-la; porque, para os artistas só há uma hierarquia: a inteligência. Toda a gente a encarece e deseja, mas raros a reconhecem e estimam. As ideias e realizações deste século impressionante transformaram as condições sociais, mas não melhoraram a Psicologia individual. O acréscimo, que nos trouxe ele, em riquezas e utilidades, não compensa a cupidez mórbida em que nos lançou e a evolução da inteligência tornou mais lúcida e lancinante a nossa emotividade. Se há mais rumor e beleza na vida, o anelo de tudo absorver é mais insopitável, e a dor das possíveis decepções dos que confiam na própria coragem, e abatem, adquiriu acentos de angústias e inquietações jamais suspeitadas pela acuidade da tragédia clássica. É bem verdade, Senhores, que o homem moderno pode dizer com Goudal: “Este planeta não é tão desproporcional com o ser que o habita. Já é possível abrangê-lo todo de uma só vez. O avião pode fazer a volta ao mundo em alguns dias. Um radiograma nos informa de tudo quase instantaneamente. Conversarei, em breve, com meus vizinhos antípodas e o cinema me apresentará, na realidade viva dos minutos, os mais longínquos acontecimentos.” Sim! É bem verdade que a técnica fez tudo isso, mas prejudicando a atividade das energias afetivas, mas levando o Mundo ao caos deste momento de apreensões, para o qual não se discerne solução, mesmo porque o homem medíocre domina a massa igualitária e há crise de gênio como carência de fé. Viver intensamente essas tribulações da alma moderna e guardar, como um príncipe, nas palavras e nos atos, nos motivos e nos gestos, a fé jurada ao gênio da Raça – eis aí uma excelência de espírito que explica a admiração humana pela figura fraternal de Luís Carlos. Ele soube ser uma afirmação cristã da nossa gente. Numa hora negativista, de confucionismo invasor, quando a inexperiência dos moços se deixava contagiar pelo mentalismo infrene dos iconoclastas, ninguém melhor do que ele soube ser brasileiro na ternura por nossas coisas, na magnanimidade de nosso caráter, na confiança em nossa índole, na certeza da vitória de nossa têmpera de três raças caldeadas nas rudes epopéias marujas, no sacrifício do sangue líbio e na intrepidez nativa do gêjaneiro/fevereiro/março/2015 |
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nio selvagem. A sua ascendência pessoal, nesse sentido, foi tanto mais viva quanto a nova geração o queria e admirava, como uma síntese que era, da força e da indulgência – as duas linhas verticais da Brasilidade. É, pois, para mim, um grande contentamento proclamar um ser tão nobre e comentar a imaginação, a suntuosidade verbal e a ternura lírica da sua obra literária. Se a vida de Luís Carlos foi tão edificante de bondade, a sua literatura não foi menos eloqüente de beleza. Para Luís Carlos nada existe sem uma razão de ser. Graças a essa simpatia por tudo, sua Musa é rica de imagens novas e imprevistas. A crítica dificilmente encontraria um livro, como Colunas, no qual a alma do Poeta e do Homem estivessem em tão perfeita correspondência. Luís Carlos mereceu da Fortuna, sempre tão avara para os artistas, esse equilíbrio quase providencial do espírito e do coração. Tudo em seus poemas é harmonia da razão e do sentimento, da idéia e da forma, da inteligência e do instinto. Vivendo numa hora tão atormentada e entre outras almas tão diferentes, a sua soube manter, inalterável e pura, a mesma poesia de nobre elevação, culto a estética da língua, amor à forma perfeita e paixão por todos os anseios da criatura humana no que ela tem de excelente nas idéias, nos sentimentos e nas exaltações magnânimas. A compreensão filosófica que tínhamos da vida era a de duas almas afins. Eu não posso deixar de recordá-la neste momento votivo. Toda a beleza espetacular do mundo visível, com o ritmo eterno das estações, com o múltiplo esplendor dos dias e a solitude misteriosa das noites, nada significaria para nós, se não fosse uma representação profusa do nosso espírito. Em si mesmas as coisas não têm realidade emotiva. É a sua correspondência com o cérebro e o coração que as torna interessantes ao nosso destino. Excluído da vida moral, que é uma volúpia do perfeito, o universo seria um grande nada. É nossa natureza imortal que lhe ausculta as forças latentes, estuda-as e compreende, como nas folhas de um livro de ilustrações, os signos vivos deste mundo. A poesia não está nas coisas, mas em nós. Só tem substância eterna aquilo que nós sentimos. É nisto que estão a nossa grandeza e a nossa miséria. E a Poesia é precisamente esse diálogo de esfinges entre o Homem e a Natureza. Pouco importa que os espíritos fáceis desdenhem dessas cogitações. Elas não são frutos da Vaidade. Como atribuir à vaidade a avidez de conhecer a vida para gozá-la em toda a sua
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plenitude feliz? Esse desejo é a substância mesma de toda ideação. A ciência é ele realizado ou realizando-se no mundo das conjecturas, como a Arte e, especialmente, a poesia, é ele feito volúpia dos sentidos e do espírito, exaltação, desespero, arrependimentos, remorsos, fome e sede de santificação. É certo que hoje, mais que nunca, a humanidade parece entregue exclusivamente a paixões e a instintos de outra ordem. Mas notai bem que ela não é sincera. Pelo contrário. É uma fase de transição, que estamos passando nessa crise de alma humana, nessa paixão de riqueza material que faz da vida intensa uma tragédia de todo instante. Tanto é verdadeira esta impressão que os homens em sua generalidade pensam e sentem de um modo, agem e realizam de um outro. É o desacordo entre a consciência e os atos, impressivo sintoma de uma civilização incoerente. A vida não é, não pode ser essa obsessão do Rei Midas. Há interesses legítimos, como os há ilegítimos. Os primeiros não exigem, nem justificam a desarmonia entre os atos e a dignidade de seres livres e nobres. É essa noção do verdadeiro utilitarismo que o nosso século esqueceu. O que todos vemos, no geral, é a simulação e a dissimulação, ao invés de sentimentos equânimes e fraternos. Todo um sistema de pragmáticas e fórmulas desvirtua os intuitos e as aspirações superiores. Multiplicam-se, assim, as causas de aflições, os motivos de desgostos, e as almas delicadas têm a sensação de vazio num mundo alheio a todos os bons pendores e onde tudo é instabilidade, inquietude, angústia, vertigem, insatisfação. Por isso mesmo a nossa sensibilidade tomou proporções desconhecidas e a poesia de agora, a poesia moderna, tem acentos de profunda melancolia. O mundo, Senhores, é uma matéria plástica para a nossa imaginação. Trabalhá-la a camartelo, vivê-la na realidade impressiva das tintas, transformá-la nas retortas dos químicos, transfundi-la no milagre audível da música, estilizá-la como Flaubert, dar-lhe a eloqüência litúrgica das Basílicas e, na síncope do verso, imprimir-lhe o ritmo do próprio coração, – eis o grande dever, a nobre missão messiânica da Inteligência. A Graça divina não nos deu somente a Vida, mas também esse vasto cenário de maravilhas para a volúpia insatisfeita da nossa curiosidade. A virtude estética está precisamente em saber contemplá-lo e exprimi-lo. O poeta é uma voz íntima de tudo isso. É um temperamento autêntico, um revelador e um refletor do eterno. Para tanto
não lhe basta a maestria da composição. É preciso que esta lhe brote das estrofes animada da própria substância cardíaca dos ritmos... Como um ser vivo que é, se a sua composição não trouxer da gênese espiritual condições intrínsecas de seu próprio sangue, os versos não resistirão às vicissitudes do tempo. A finalidade do Poeta é imanente. Como os temperamentos são tantos quantos são os homens, a poesia tem necessariamente de apresentar múltiplos, indefinidos aspectos. É tão natural a poesia da dor como a do entusiasmo, como a de quaisquer outras efusões líricas ou dramáticas. Na Arte, como na Vida, não há hipocrisia impune. Iludem-se os intrusos que pensam confundir a multidão com uma angústia fingida ou que não tem raízes vitais em sua natureza imortal. Direi o mesmo dos temperamentos tristes que pretendem dissimular seu próprio psiquismo com uma efusão eufórica tanto mais débil quanto menos espontânea. Sem sinceridade é impossível comover, persuadir, exaltar. O artifício não dura mais que um minuto. Trai-se a cada instante. Pode, quando muito, criar fantasmagorias verbais. Nunca fará estilistas e, muito menos, poetas. Deslumbrará ingênuos ou leigos; mas será sempre vaidade, frivolidade, habilidade, invencionice. A poesia não é uma vaniloqüência e só aqueles que não são poetas, por fortuna ou infortúnio, poderiam julgá-la uma sublimidade ilusória. Há almas que vivem e morrem de êxtases e de enternecimentos. Como compreendê-las? Como defini-las? O que delas sabemos é somente o que têm de visível. Ignoramos, ignoraremos a sua verdadeira substância, que é um segredo inviolável para elas mesmas. Luís Carlos era uma dessas almas. Tudo conspirou para fazê-la plenamente feliz. Tê-lo-ia sido? Não sei. Para além da concepção egoística de felicidade há em certos seres eleitos carência absoluta de outros bens irreconciliáveis com as contingências planetárias. Também essas criaturas não são tão ingênuas que se recriminem ou culpem o mundo por serem tais. Preferem a resignação estoica à rebeldia estéril. Para elas, como disse Luís Carlos, o triunfo máximo está em florescer a frutificar em bondade e beleza, sejam quais forem as intempéries de cada dia. Pouco lhes importa o mais. Infelizmente a trepidação da vida raro permite que elas se mantenham na plenitude de sua espiritualidade. Daí, essa tristeza tácita, cuja causa obscura elas mesmas não percebem. Era o recôndito mal que Luís Carlos sentia e aceitava sor-
rindo como uma condição necessária à própria perfectibilidade. Dele, nele e por ele viveu, sofreu e morreu, cercado da glória de “profeta da Beleza e apóstolo da Bondade” na síntese feliz de Gustavo Barroso: SUPREMO TRAVO Esta muda tristeza indefinida,/Que prematuramente me envelhece,/Dando-me ao ser a contrição da prece,/Dando-lhe à vida a sombra da outra vida;/Este surdo pesar, que me intimida/E o ânimo quente, aos poucos, me arrefece,/Colhendo lágrimas em larga messe,/Sempre à mesma recôndita ferida;/É a condição da minha essência humana/ E sente-a, apenas, quem, no curso incerto/Da existência falaz, nunca se engana;/Quem não vibra à ventura, que tem perto;/Quem, no seio de alegre caravana,/Compreende a sós a mágoa do deserto. Este supremo travo, sentimo-lo também todos nós que vivemos esta hora espectantemente interrogativa. Como não senti-lo num momento de desespero das idéias e paroxismo das ações? Se os métodos, se as fórmulas, se as sínteses de nossa cultura cristã vacilam contra a anarquia dos instintos, como não sentir esse supremo travo? Por absoluta que seja a confiança no futuro da Ciência, não é menor a angústia de respirarmos um outro ambiente cujas impressões nos desolam de tão estranhas à atmosfera normal de nossa alma. Felizmente, como diz Joaquim Gasquet, há uma lei de constância lírica que mantém em estado de virtude poética as sociedades decadentes. O poeta é o intérprete dessa lei de constância lírica. Inda que tudo vacile, a virtude recôndita da vida vibrará sempre nos entusiasmos ou nos desfalecimentos das suas estrofes. Vibrará com essa espontaneidade que não trai os corações e antes os identifica no mesmo sentido oculto do Destino. Sendo assim, pouco importa que as impressões, as emoções, os conceitos do poeta variem segundo a percepção de cada um. Nessa variação é que está a sua riqueza emocional. Seus desesperos ou suas resignações, suas crenças ou suas dúvidas involuntárias são outras tantas manifestações subterrâneas da beleza viva. Bergson, concebendo a evolução criadora, teve um desses instantes de intuição profética, e o poeta não é mais que a expressão sonora dessa vertigem das almas e das coisas. Na coragem do seu sangue ardem todas as energias da Raça. Ele mesmo não atina com as causas incógnitas desses frêmitos fecundos; mas
obedece às suas influências recônditas como a tudo que é determinado pelo seu gênio. O poeta pode não ser compreendido, porque nem todos os homens estão no mesmo grau de lucidez espiritual. Mas a sua voz será sempre anunciadora de uma verdade que a Ciência dirá cedo ou tarde. Há, com efeito, dois meios de conhecer: a intuição poética e a observação material. “As diferenças existem, diz Duhamel, mas somente na base; e no supremo céu da Idéia, Claude Bernard está sentado ao lado de Dante.” Aquele que trouxe das origens essa angústia de ser, não pode fugir às intranqüilidades e fragilidades do coração. Sua natureza eminentemente comunicativa tem carência de viver todas as alegrias e todas as lágrimas, porque todas as criaturas são igualmente dignas de amor e de piedade. A poesia é também um ofício divino. O ritmo é o ritual de suas oblações líricas. Deus, com a sua presença invisível e a sua misericórdia por nossas fraquezas, assiste, de certo, à consagração mística da alma e do sangue propiciatório do Poeta. A inspiração é uma graça. Para alcançá-la ou merecê-la é preciso sofrer, como é preciso amar, e a alma do Poeta, como a Natureza no verso de Da Costa e Silva, é “tanto mais virgem quanto mais fecunda”. Sim! A Poesia é uma obra de Arte e de Fé, – uma obra de verdade e beleza ao alcance de todas as almas. É a revelação do Perfeito e do Imortal, tanto quanto podem caber um e outro nos movimentos rítmicos de uma estrofe: Para além das virtudes transitórias;/Do luxo, dos brasões, do ouro e das glórias;/ De tudo que é grandeza entre os mortais,/ Há nossa estrela eternamente acesa,/Iluminando a mística beleza/De sóis e céus que não terminam mais... Não creio que essa estrela se apague como as outras. Sejam quais forem as perspectivas futuras, o homem de amanhã viverá, como nós, os dramas da Razão e do Sentimento; sentirá as mesmas vertigens ou os mesmos deslumbramentos diante da Natureza e se auscultará com a mesma perplexidade com que nós outros nos auscultamos. Sua estrutura será mais forte que a nossa e seu cérebro talvez trepide como um dínamo. Outra vontade, outras forças, outras energias, outras ações e reações psíquicas lhe darão certamente outras impressões do mundo sensível e novas e imprevisíveis concepções do Amor e da Morte. Mas nem por isso deixará de ser o mesmo joguete das realidades e das utopias. Sua imaginação refletirá sempre, como as “Kodacks”,
as mesmas aparências falazes e sua volubilidade continuará eternamente insatisfeita consigo mesma. Permanecerão, pois, nos séculos a vir, os motivos íntimos dos outros séculos e a Poesia prosseguirá a sua missão civilizadora. Senhores: há na minha sala de estudos uma cabeça de Cristo. É de Leonardo Da Vinci. Não precisaria dizer que é de um gênio, tal a sua estranheza. Para concebê-la e realizá-la, fora mister que, ao menos, no momento sublime, o Artista vivesse a Divindade tangível do único homem sem culpa. Só a Arte é capaz desses prodígios. Como os processa, nenhum alquimista da inteligência o saberia. Quero crer que o próprio Da Vinci quedava, muitas vezes, maravilhado, diante dessa imagem. É que já tinha descido do Tabor. Sim! a Arte é uma transfiguração. Transfiguração interior das almas de gênio para as outras. Aquelas são a única luz que não é deste mundo; estas, o espelho material que reflete ou refrata essa luz. Umas são a Aristocracia que nos provisiona de força, paciência, fecundação, vontade, coragem, ciência e beleza; as outras são a multidão que escuta, espera, sofre, confia, admira. Encontraríeis na Paraíba, a Verônica do Nordeste, representantes autênticos dessa Aristocracia. Há entre os meus conterrâneos, gente de vontade heróica e consciência do dever, característica de sua psicologia nordestina, tão bem estudada pelo grande tribuno Castro Pinto, estadistas, jornalistas, oradores, romancistas e poetas, a cuja fama evidente deve a nossa Cultura legítimos títulos de glória intelectual. Preferistes a tantos valores notórios um nome que só tem este mérito: haver sido fiel à sua própria destinação. Eu vos protesto, a todos vós, Senhores Acadêmicos, e ao meu Paraninfo, com sua oração constelada como a sua alma, o meu reconhecimento, e vos reafirmo a minha paixão de vida e morte pela Beleza.
É meu tormento. Chamam-lhe poesia, Arte do verso. Chamo-lhe o madeiro, A Cruz da minha noite e do meu dia. – Cruz em que verto o sangue verdadeiro, E em que minh’a1ma em transes agonia, g E o coração se crucifica inteiro...
(*) Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 26 de junho de 1934, sucedendo a Luiís Carlos, quando foi saudado por Adelmar Tavares.
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ARTES PLÁSTICAS
ARTE E CULTURA NA OBRA DE MIGUEL GUILHERME Walter Galvão
Esse texto rápido sobre o artista paraibano Miguel Guilherme cumpre a função de um alerta que é também apelo, além de ser uma advertência. É alerta para a necessidade que a Paraíba tem de recuperar e difundir personalidades, processos, estilos e gêneros criativos para a fixação e circulação da história e da historiografia da arte produzida nos municípios do Estado. Uma responsabilidade que tanto é da imprensa e dos meios de comunicação, dos críticos e especialistas em arte, dos educadores, da escola, das universidades e do poder público. É um apelo ao conjunto da sociedade no sentido de se propiciar aquisição a partir dos núcleos familiares de conhecimentos sobre a produção artística estadual. Conhecimentos que fortalecerão princípios fundamentais para a estruturação de uma identidade capaz de expressar valores locais que suportam noções de participação crítica, de liberdade e pertencimento. A nossa atualidade globalizada nos impõe fenômenos que requerem novos procedimentos cognitivos a partir de novos estímulos sensoriais, formas de estruturar os ritmos do pensar para a obtenção de uma consciência do mundo. Afinal, já de anteontem a certeza da mudança à qual nos referimos. É preciso lembrar que no «Manifesto comunista» Karl Marx afirma, em 1848: «Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas». Essa «nova» consciência passa no século 21 por uma reestruturação espaço-temporal que realizamos através das práticas conectivas como o manejo de terminais eletrônicos, a integração às redes sociais, a exposição dos fatos ao vivo em latitudes as mais diversas, entre outras formas de interagir no cotidiano. Com isso, novos códigos culturais nos
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Teto da igreja de Monteiro
enlaçam e nos projetam para múltiplas dimensões como a da transitoriedade permanente (o fluxo incessante das informações), os não lugares (espaços uniformizados por marcas, designs específicos, arquiteturas híbridas, centros de compras, agências de atendimento, calls centers), as moedas baseadas em criptografia (bit coin e similes) e as interações cérebros-máquinas das quais o neurocientista brasileiro Miguel Nicole-
lis é um dos avatares mundiais, certamente entre os três principais pesquisadores do mundo. Precisamos, portanto, nesse contexto, e em defesa de uma identidade cultural possível, do resgate histórico de referências locais. Esse texto também cumpre a função de advertência quanto ao fato de que não podemos mais perder tempo na estruturação de mecanismos seguros para difusão de no-
mes como o de Miguel Guilherme, seguramente uma das mais expressivas vozes da inteligência plástica nordestina a emergir criativamente nos anos 1920 e a se firmar a partir de 1930 quando das mudanças revoucionárias. O paraibano de Sumé, no Cariri paraibano, foi fotógrafo, pintor, escultor, designer, frasista, contista, poeta e cenógrafo. Neste 2015, se completam 20 anos desde a sua morte ocorrida em julho de 1995, período em que pouco se disse a respeito da representatividade de uma obra que se espalhou na região por força da estilística da arte sacra popular que ele praticou, aplicando pinturas em igrejas e capelas de propriedade particular de Sumé, Monteiro, Campina Grande e também em Pernambuco. A última referência institucional específica capaz de dimensionar o talento e a contribuição do artista autodidata, nascido em 1902, e que fabricava em seu ateliê os próprios pincéis e tintas que utilizava, foi de responsabilidade do Museu de Arte Popular da Paraíba, de Campina Grande. Em 1984, a instituição apresentou um catálogo do artista de Sumé, além de integrar algumas de suas obras ao acervo da entidade. Em agosto de 2007, A União Superintendência de Imprensa e Editora imprimiu
o volume «Miguel Guilherme Vive», de autoria de Jacquelline Oliveira e Zito Júnior. Nesse livro de 86 páginas, além de esboços inéditos e reproduções de quadros, há também aforismos, poemas, pequenos «causos» e um conto. Entre as referências esparsas da imprensa estadual, estão as reportagens de 2012, quando das comemorações dos 110 anos de nascimento do artista. Hilton Gouveia assinou para A União um perfil que incluiu também a presença do acervo do artista no Cariri. A propósito do seu engajamento criativo, afirma o próprio Guilherme num poema: «Não sou pintor, nem escultor/nem músico, muito menos poeta/ou escritor sou artista». Multiartista sobre quem eu diria ser um esteta, na perspectiva do que afirma José Rafael de Menezes, em «Três estetas paraibanos»: «O esteta persevera disponível, inquieto e franqueado, em superação dos gêneros. E no entanto é o amadurecido intelectual que tolera e se autolimita, que crê e respeita a dúvida. Um ecumênico e não um ortodoxo». Considero redutor o procedimento acadêmico que limita a expressividade do artista ao gênero naïf, ou primitivo. É ver-
dade que Miguel Guilherme não domina as técnicas acadêmicas, mas não é correto circunscrevê-lo àquela tradição que se caracteriza por densidade psicológica específica, necessidade mínima de múltiplos conteúdos narrativos e pela deficiência na aplicação das cores na dimensão dos classicismos. Há quadros de grande resolutividade quanto às tensões naturalistas-realistas da imagem pictórica na obra do artista de Sumé, a abundância da perspectiva mostra o poder de sua intuição e o ímpeto do observador atento, além da diversidade temática que inclui da cena bucólica naturalista, passando pelo realismo da seca à inventividade do logotipo. Do fotógrafo que se fez referência no Cariri à mesma época em que o meticuloso trabalho artístico de nomes a exemplo de Pedro Tavares e Walfredo Rodrigues explodia no contexto da emergente modernidade urbanística, ao frasista de escopo existencialista - «Se não podermos acrescentar anos à nossa vida, pelo menos vida a nossos anos» - Miguel Guilherme deixa uma obra consistente dentro dos limites do tempo em que viveu e das condições materiais que lhes foram possíveis. Mas, principalmente, deixa uma obra autêntica. g
ARTIGO
O PONTO DE EQUILÍBRIO Alessandra Torres “A pressa é inimiga da perfeição”. Quem nunca ouviu ou constatou que esse famoso ditado popular é completamente verdade? Nenhuma ação apressada, ou quase nenhuma, resulta em bons frutos, muito menos nos mais esperados. Entretanto, hoje, o mundo é da pressa. As pessoas estão mais agitadas, numa correria excessiva e conviver com essa realidade é o dilema de muitos, inclusive o meu. Algumas culturas e a maioria das religiões nos ensinam a sobreviver a todo esse estado de que tudo é para ontem, emprestando sabedoria e o exercício da paciência, mas na prática, há o contrário. Até os momentos de felicidades não são aproveitados em todas as suas minúcias e passemos por ele como locomotivas em busca sempre de algo a mais e o pior é que, muitas vezes, nem percebemos. No trânsito sempre é possível observar uma pressa além do normal, resultando em conflitos, estresse e mortes, muitas mortes
precoces. Só não consigo compreender porque a pressa do outro é maior do que a minha ou vice-versa? E não é, são absolutamente iguais porque o mundo e, até a maior parte dos problemas, também! E eis aí desafio. Os indianos acreditam que a vida acontece em ciclos e o que está ruim, causa aflição ou dor, passará. Isso não significa ficar aguardando o andamento sem agir, representa encontrar um ponto de equilíbrio para compreender que tudo, até a tristeza, a decepção e a dor fazem parte da mesma vida em igual importância para amadurecer e saborear melhor as vitórias, a alegria e os instantes de “nadismo” com prazer. Para encontrar esse entendimento e conviver com a realidade temos que deixar de lado, primeiramente, o egoísmo de achar que só nosso problema é importante e partir para uma convivência harmoniosa com tudo que a vida nos apresenta, sendo agente, mas aceitando e aguardando o movimento da evolução da humanidade.
Algumas pessoas conseguem esse tão almejado estado dedicando-se aos outros, à literatura, à família, procurando seu próprio oceano azul, encontrando uma forma, não de se isolar, mas de viver em sociedade e contribuir. E foi isso que realizou o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, Dr. Flávio Sátiro, com a revista Genius, contribuindo para a cultura, para a história de maneira educativa e culta, preservando a memória de fatos e pessoas importantes não apenas para a Paraíba, como também para o mundo, sendo um exemplo para seguir e aplaudir. Dr. Flávio Sátiro, com sabedoria e bondade, encontrou um modo de conviver e contribuir com a humanidade, buscando paz interior para viver nesse mundo da pressa, sem esquecer também do próximo. g
(Transcrito do Jornal CORREIO DA PARAÍBA, edição de 22/03/2015)
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DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA
APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA TERRITORIAL DA PARAÍBA
Flávio Sátiro Fernandes
Este é, sem dúvida, um dos mais importantes livros que integram a bibliografia paraibana, indispensável para quem deseja estudar a história da ocupação do território não só de nosso Estado, mas de todo o Nordeste, e, quiçá, do Brasil, tendo em vista as considerações iniciais que o autor faz sobre “o domínio de Portugal no território brasileiro”, estendendo-se a respeito do sistema de sesmarias, que foi a base da divisão fundiária em nosso país, nos primórdios da colonização. As terras objeto de sesmarias mediam, via de regra, “três léguas de comprido e uma de largo”, situando-se, quase sempre, próximas a rios, riachos, fontes, olhos dágua, necessárias para a atividade criatória, que era o principal fundamento das solicitações feitas às autoridades reinóis. É livro, pois, de grande valia para o conhecimento da história da Paraíba daquele período, valendo por isso repetir as palavras do Senador Dinarte Mariz, na apresentação do volume que marcou o aparecimento de uma nova edição do
mencionado trabalho, através da Coleção Mossoroense, sob a inspiração do saudoso e dinâmico historiador Vingt-Un Rosado, com a colaboração da Mesa do Senado Federal e do Centro Gráfico da Alta Casa do Congresso Nacional. A simplicidade do nome – APONTAMENTOS – parece querer encobrir a grandiosidade e a importância do que se contém nesse livro – HISTÓRIA TERRITORIAL DA PARAÍBA, surgido em 1909, contendo informações relevantes para o conhecimento da maneira como se procedeu à ocupação do território paraibano. É de lastimar como uma obra de tal porte, de tão grande importância para a Paraíba, tenha tido uma nova edição por iniciativa de instituição norteriograndense e de abnegado homem de cultura daquele Estado, como foi o mossoroense Vingt-Un Rosado, de saudosa memória. Isso mostra o desprezo com que o poder público local trata, ao longo de sucessivos períodos administrativos, a questão da política editorial, que poderia garantir a permanência de
obras imprescindíveis ao conhecimento de nossa história. Pontualmente, um ou outro plano de editoração logra manter-se por algum tempo, mas logo se engolfa no torvelinho das questiúnculas político-partidárias que o fazem desaparecer. João de Lyra Tavares conseguiu localizar e anotar cerca de 1.138 sesmarias, correspondentes a 3414 léguas de terras de comprido, não compreendendo esses números a totalidade das concessões feitas pelos Governadores provinciais. Fica, aqui, registrada a relevância do livro de João de Lyra Tavares para a história do nosso Estado e, também, do Rio Grande do Norte, a quem a pesquisa do autor igualmente abarca, como bem assinalou o saudoso Senador Dinarte Mariz, apresentador da segunda edição, patrocinada pela Gráfica do Senado Federal, em 1982. Aliás, o decurso de tempo que nos afasta dessa segunda edição dos Apontamentos, nos aponta para a necessidade de uma nova tiragem da obra. g
Conheça a História Constitucional dos Estados Brasileiros, Elaborada conjuntamente pelos constitucionalistas Paulo Bonavides e Flávio Sátiro Fernandes,em edição primorosa da Editora Malheiros
PEDIDOS PARA: Malheiros Editores Ltda. Rua Paes de Araújo, 29, Conjunto 171 São Paulo-SP - CEP: 04531-940 Fone: (11) 3078-7205 E-mail: malheiroseditores@terra.com.br
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LIVROS CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO DESEMBARGADOR LUÍS SÍLVIO RAMALHO, Marcos Cavalcanti de Albuquerque, Edições do TJPB, 2014. O Desembargador Marcos Cavalcanti de Albuquerque já legou à Paraíba obras de muito valor. Mas, como é muito moço, ainda haverá de nos brindar com muitas surpresas lítero-históricas, quer no TJPB ou no TRE-PB, quer na Academia Paraibana de Letras e/ou no Instituto Histórico. Além do dinamismo característico de sua personalidade e de seu gosto pelo trabalho metódico, tem a seu favor, igualmente, aquela espécie de motto que adotou como filosofia de ação: para ele, tudo é para ter sido feito... ontem! Quem não dispuser deste mesmo pique não será capaz de acompanhá-lo nesse afã em prol da cultura. (Evandro Dantas da Nóbrega)
ANÊMONAS. Ciro José Tavares, Natal, Sebo Vermelho Edições, 2010. Ciro José Tavares, nem um lustro mais velho do que eu, é figura minha conhecida desde a adolescência. Em Natal dos anos 50 e 60, contemporâneo do meu irmão e dos amigos do Colégio Marista, do qual escapei por bem sucedida rebeldia juvenil, Ciro desfrutava da visibilidade de ser filho de um dos maiores cirurgiões da cidade e ser integrante do Teatro de Cultura de Natal. Pelo lado materno, ambos tínhamos raízes familiares e afetivas em Ceará-Mirim e não param por aí as identificações entre nossas trajetórias. [...] Assim sendo, o que me chama atenção na poesia de Ciro não são as características eruditas de que outros já falaram, nem a sua própria justificativa dos estudos alentados e cuidadosos. O que me encanta e faz inveja é a simplicidade ancestral e gregamente de pessoas e situações da pequena cidade nordestina e canavieira de Ceará-Mirim. (Paulo de Tarso Cor- reia de Melo) O EVANGELHO DA PODRIDÃO. Chico Viana, João Pessoa, Fundação Casa de José Américo, 2012. (Edição comemorativa do centenário de aparecimento do EU). Autor respeitado, professor renomado, cientista das letras e outros tantos títulos que sua personalidade permite, Chico Viana é dessas pessoas admiráveis, cuja obra pode ser considerada riquíssima em vários aspectos. Homenagear Augusto dos Anjos pelas linhas do Professor Chico Viana é como interagir dois vultos em uma só seara. Ou dois intelectuais em duas vertentes de valor ou, simplesmente, unir o passado e o presente, numa corrente de letras e valorosa inspiração. (Flávio Sátiro Fernandes Filho – Ex-Presidente da FCJA)
LEITURAS DIVERSAS – crônicas, ensaios e contos. Magno Nicolau (Org.) João Pessoa, 2014, Ideia. Volume comemora- t i v o dos 25 anos da Editora Ideia, que nesse período publicou cerca de dois mil e quinhentos títulos, numa média aproximada de cem títulos por ano. O livro contém trabalhos de diversos autores, que participam com crônicas, ensaios e contos. São 294 páginas de agradável leitura.
HISTÓRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Deusdedit Leitão & Evandro da Nóbrega. João Pessoa, 2014, TJPB. Saído da pena admirável do historiador Deusdedit Leitão, esse livro, depois do falecimento de seu autor, vem tendo a parceria do também historiador Evandro da Nóbrega, que o atualiza a cada biênio, narrando os feitos do Presidente que deixa a direção da Corte, após dois anos de efetivo exercício. A presente edição comemora os 123 anos do TJPB.
RONALDO CUNHA LIMA – a trajetória de um vencedor (1936-2007). José Octávio de Arruda Melo. João Pessoa, 2015, Editora Ideia. Mais do que a narrativa de uma carreira política vitoriosa, o que o leitor terá sob os olhos é a descrição contextualizada de uma fase tumultuada da história nacional, com oportunas incursões no cenário internacional e as evidentes implicações no ambiente político da Paraíba. Não há como separar essas realidades. Daí a validade do estudo de José Octávio, que, diferentemente das descrições encomiásticas, contemplou tanto o cenário quanto o ator. E essa abordagem, mais panorâmica do que personalista, não diminui a importância do biografado; pelo contrário, dimensiona-o na relevância de sua participação ativa e transformadora como um dos principais homens públicos da Paraíba, inserindo-se no processo com senso de oportunidade, rara competência e muita espontaneidade. (Josué Sylvestre) ERA UMA VEZ UM MENINO CHAMADO AUGUSTO. Neide Medeiros Santos, João Pessoa, 2014, Editora Ideia. Era uma vez um menino chamado Augusto é um romance juvenil que conta a vida de Augusto dos Anjos, compreendendo as fases da infância, juventude e idade adulta. Os fatos relacionados à infância trazem a marca da ficção. A narração, que abrange juventude e idade adulta, teve o apoio de livros teóricos sobre o poeta. Poemas e sonetos se entrecruzam com o texto narrativo e com as bonitas ilustrações de Tonio. Texto verbal e texto pictórico caminham pari passu, misto de ficção e realidade da vida do poeta Augusto dos Anjos.
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COLABORADORES A. J. Pereira da Silva (In Memoriam) – Nº 9 Abelardo Jurema Filho – Nº 5 Adylla Rocha Rabello – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Aldo Di Cillo Pagotto – Nº 8 Aldo Lopes Dinucci – Nº 9 Alessandra Torres – Nº 9 Alexandre de Luna Freire – Nº 1 Álvaro Cardoso Gomes – Nº 5 Américo Falcão (In Memoriam) – Nº 9 André Agra Gomes de Lira – Nº 1 Andrès von Dessauer – Nº 7, Nº 8, Nº 9 Ângela Bezerra de Castro – Nº 1 Anna Maria Lyra e César – Nº 6 Anníbal Bonavides (In Memoriam) – Nº 8 Antônio Mariano de Lima – Nº 4 Astênio César Fernandes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 8 Augusto dos Anjos (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Berilo Ramos Borba – Nº 3 Boaz Vasconcelos Lopes – Nº 7 Camila Frésca – Nº 5 Carlos Alberto de Azevedo – Nº 4, Nº 6 Carlos Alberto Jales – Nº 2 Carlos Meira Trigueiro – Nº 2, Nº 5 Carlos Pessoa de Aquino – Nº 5 Chico Viana – Nº 1, Nº 2, Nº 4, Nº 6, – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Ciro José Tavares – Nº 1 Claúdio José Lopes Rodrigues – Nº 5, Nº 6 Cláudio Pedrosa Nunes – Nº 7 Damião Ramos Cavalcanti – Nº 1 Diógenes da Cunha Lima – Nº 6 Durval Ferrreira – Nº 7 Eilzo Nogueira Matos – Nº 1, Nº 4, Nº 7 Eliane de Alcântara Teixeira – Nº 6 Eliane Dutra Fernandes – Nº 8 Érico Dutra Sátiro Fernandes Nº 1, Nº 9 Ernani Sátyro (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 7 Eudes Rocha – Nº 3 Evaldo Gonçalves de Queiroz - EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014, Nº 8 Evandro Nóbrega- Nº 2, Nº 4, Nº 6 Ezequiel Abásolo – Nº 8 Fábio Franzini – Nº 7 Firmino Ayres Leite – Nº 4 Flamarion Tavares Leite – Nº 8 Flávio Sátiro Fernandes – Nº 1, Nº 2, Nº 4, Nº 6, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 7, Nº 8, Nº 9 Flávio Tavares – Nº 3 Francisco de Assis Cunha Metri (Chicão de Bodocongó) - Nº 2 Francisco Gil Messias – Nº 2, Nº 5 Giovanna Meire Polarini – Nº 7 Glória das Neves Dutra Escarião – Nº 2 Gonzaga Rodrigues – Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins – Nº 4, Nº 8
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Hélio Zenaide – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Itapuan Botto Targino – Nº 3 João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (In Memoriam) – Nº 4 Joaquim de Assis Ferreira (Con.) (In Memoriam) – Nº 6 Joaquim Osterne Carneiro – Nº 2, Nº 4, Nº 7, Nº 9 José Américo de Almeida (In Memoriam) – Nº 3 José Jackson Carneiro de Carvalho – Nº 1 José Leite Guerra – Nº 6 José Octávio de Arruda Melo – Nº 1, Nº 3, Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Nº 9 José Romero Araújo Cardoso – Nº 2, Nº 3 Josinaldo Gomes da Silva – Nº 5 Juarez Farias – Nº 5 Juca Pontes – Nº 7 Linaldo Guedes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Lourdinha Luna – EE/Pedro Moreno Gondim/2014, Nº 7 Luiz Fernandes da Silva- Nº 6 Machado de Assis (In Memoriam) – Nº 9 Manoel Batista de Medeiros – EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014 Marcelo Deda (In Memoriam) – Nº 4 Marcos Cavalcanti de Albuquerque – Nº 1 Maria do Socorro Silva de Aragão – Nº 3 Maria José Teixeira Lopes Gomes – Nº 5, Nº 8 Maria Olívia Garcia R. Arruda – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Marinalva Freire da Silva – Nº 3, Nº 9 Mário Glauco Di Lascio – Nº 2 Mercedes Cavalcanti (Pepita) – Nº 4 Milton Marques Júnior – Nº 4 Moema de Mello e Silva Soares – Nº 3 Neide Medeiros Santos – Nº 3, Nº 6 Nelson Coelho – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Neroaldo Pontes de Azevedo – Nº 2 Octacílio Nóbrega de Queiroz (In Memoriam) - Nº 6 Oswaldo Meira Trigueiro – Nº 2, Nº 5, Nº 6, Nº 7, Nº 9 Otávio Sitônio Pinto – Nº 7 Paulo Bonavides – Nº 1, Nº 4, Nº 5, Nº 9 Pedro Moreno Gondim (In Memoriam) – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Raimundo Nonato Batista (In Memoriam) – Nº 3 Raúl Gustavo Ferreyra – Nº 5 Raul Machado (In Memoriam) – Nº 4 Renato César Carneiro – Nº 3, Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014, Nº 7, Nº 9 Ricardo Rabinovich Berkmann – Nº 5 Severino Ramalho Leite – Nº 4, EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014 Thanya Maria Pires Brandão – Nº 4 Verucci Domingos de Almeida – Nº 5, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Waldir dos Santos Lima – EE/Pedro Moreno Gondim/Novembro/2014 Walter Galvão – Nº 3, Nº 9 Wills Leal – Nº 2, Nº 7 EE=Edição Especial
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