COMUNICAÇÃO
O JEITO COMO O BRASILEIRO VÊ TV, ESTEJA ONDE ESTIVER Oswaldo Meira Trigueiro
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatista – IBGE, acaba de divulgar os mais recentes indicadores sobre a utilização da Internet, da telefonia celular, sinal digital de televisão aberta, televisão por assinatura e de antenas parabólicas para o uso pessoal em domicílios particulares e permanentes. Os dados foram coletados a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE/PNAD 2013. A pesquisa constatou que os brasileiros com 10 ou mais anos de idade acessaram mais em 2013 a Internet por meios de microcomputadores, telefone celular, tablet e outros equipamentos. Ou seja, 85,6% milhões de brasileiros com 10 ou mais anos de idade utilizaram em 2013 a Internet, correspondente a 49,4% da população que busca informações, diversão e entretenimento pela rede mundial de computadores. A pesquisa demonstrou que 80,0% da população, com 10 ou mais anos de idade, que tinha telefone celular são da área urbana e 47,9% da área rural. São mais de 130 milhões de brasileiros que usam o telefone celular o que corresponde a 75,5% da população. Mas é a televisão que continua sendo o meio de comunicação de maior presença nos domicílios dos brasileiros, alcançando cerca de 97,2% da população do país. Sem dúvida, cada vez mais o microcomputador, o telefone celular, o tablet e tantos outros equipamentos tecnológicos já são partes integrantes da vida cotidiana da maioria dos brasileiros. Mas como a minha área de estudo no campo das mídias é mais voltada para a televisão, faço aqui uma resumida análise desse consumo e uso pelos brasileiros, conforme os dados obtidos na pesquisa do IBGE/PNAD – 2013, recentemente divulgada. Devido à sua extensão territorial e às diferenças socioculturais, o Brasil tem várias maneiras, jeitos, espaços e tempos de ver televisão na cidade e na área rural. Aqui ressalto as condições da audiência da TV em algumas
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das pequenas cidades do interior paraibano e na área rural. Em 2013, período de realização da pesquisa, dos 65,1 milhões de domicílios particulares e permanentes do Brasil, 63,3 milhões tinham televisão, o que corresponde a 97,2% da população, que tem
pelo menos um aparelho de televisão em casa. O acesso a TV por assinatura era de 29,5% da população, correspondendo a 18,7 milhões de domicílios; já 70,5% não têm acesso a TV por assinatura, o que vale (Continua na página 44)
CARTA AO LEITOR
SUMÁRIO
Na Carta anterior, manifestamos o nosso desapontamento com o desaparecimento de três órgãos de imprensa da Paraíba, levados a sustar a sua circulação por motivos diversos que não nos cabia perquirir. Naquela oportunidade, manifestamos o desejo sincero de que CONTRAPONTO, NORDESTE e A SEMANA, voltassem às bancas, para alegria e satisfação de seus leitores e dos nossos segmentos culturais. Eis que, agora, neste primeiro número, após a veiculação daquela lamentável ocorrência, podemos noticiar que o jornal CONTRAPONTO e a revista NORDESTE retomaram sua caminhada no cumprimento do objetivo e do ideal que se obrigaram de lutar pelo fortalecimento da nossa imprensa e defesa de nossa cultura. A alegria só não é maior por não podermos acrescentar àqueles dois órgãos a revista A SEMANA, valendo, porém, manifestar a nossa esperança de que ela retorne tão brevemente quanto é o nosso desejo. Enquanto isso, aqui estamos, em nosso décimo número, de caráter regular, depois de dar aos leitores, recentemente, uma edição especial em homenagem ao “brasileiríssimo Epitácio Pessoa”, Presidente da República, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Senador da República, Representante do Brasil na Conferência de Versalhes, Membro da Corte Permanente de Justiça Internacional, em Haia, edição que logrou retumbante êxito, haja vista as inúmeras manifestações de aprovação dadas por nossos leitores. Nesta edição, mantendo nosso compromisso de oferecer temas de relevância e interesse de todos, garantindo para GENIUS o epíteto de “o ponto alto da cultura”, trazemos às nossas páginas matéria de suma importância, qual seja, análise do modo como o brasileiro, notadamente o nordestino e os habitantes dos carrascais sertanejos veem TV, evidenciando como o homem do interior se mantém informado através das notícias e imagens captadas por antenas parabólicas instaladas nos mais longínquos pontos de nossa hinterlândia. Assunto também importante é uma retrospectiva do jornalismo literário na Paraíba, em meados do Século XIX, com as revistas A Ideia e Alva, já mencionada, esta última, na nossa primeira Carta ao Leitor, quando fizemos a apresentação de GENIUS, citando aquele periódico como um de seus precursores. O trabalho é da Professora Socorro de Fátima Pacífico Vilar. Tema de igual grandeza, de âmbito local e, paradoxalmente, universal, porque atinente à lexicologia, são os aspectos da linguagem regional–popular no Nordeste do Brasil, tratados magistralmente por Maria do Socorro Silva de Aragão. As relações entre melancolia e linguagem são versadas no profundo estudo do Professor Chico Viana, expert em Augusto dos Anjos, Carlos Drumond de Andrade, João Cabral, Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Álvares de Azevedo e outros luminares de nossa literatura. Ponto de destaque nesta edição é, sem dúvida, a notícia do centenário de nascimento dos Acadêmicos Aluísio Afonso Campos, José Lopes de Andrade e Epitácio Soares, este último ressaltado pelo nosso Diretor, Acadêmico Flávio Sátiro Fernandes, de quem divulgamos apreciação feita com base no discurso com que tomou posse na APL. Outros temas de igual merecimento compõem esta edição com que saudamos os nossos leitores, valendo destacar, finalmente, uma matéria que leva a reflexões em torno da criminosa desativação de nossas ferrovias, tratada, separadamente pelos Professores Josinaldo Gomes da Silva e José Romero Cardoso/Marcela Ferreira Lopes, ao evocarem as antigas estradas de ferro que interligavam o Recife a Fortaleza e as cidades de Mossoró, no Rio Grande do Norte e Sousa, neste Estado. Muito obrigado.
abril/maio/junho/2015 - Ano III Nº 10 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br Impresso nas oficinas gráficas de A União Superintendência de Imprensa e Editora
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O JEITO COMO O BRASILEIRO VÊ TV, ESTEJA ONDE ESTIVER Oswaldo Meira Trigueiro
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DISCURSO DE AGRADECIMENTO Paulo Bonavides
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A RELIGIÃO NO CINEMA Andrés Von Dessauer
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Discurso de posse JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA 9
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EPITÁCIO SOARES: A SIMPLICIDADE E A GLÓRIA EM UM CENTENÁRIO Flávio Sátiro Fernandes
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ALVA E IDÉIA: DUAS REVISTAS E UM PASSADO PARA A VIDA LITERÁRIA PARAIBANA DO SÉCULO XIX Socorro de Fátima Pacífico Vilar
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A CONSTITUIÇÃO DE 10 DE MAIO DE 1935 A LINGUAGEM REGIONAL–POPULAR NO NORDESTE DO BRASIL: ASPECTOS LÉXICOS Maria do Socorro Silva de Aragão
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MELANCOLIA E LINGUAGEM Chico Viana
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SERTANEJO DAS ESPINHARAS É NOMEADO BISPO DE GARANHUNS Equipe GENIUS
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CINCO POEMAS Cleide Maria Fernandes Ferreira (Dândy)
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CASSETETES E CONTRACHEQUES Cristovam Buarque
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HISTÓRIA DA PARAÍBA, DE HORÁCIO DE ALMEIDA Flávio Sátiro Fernandes
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AS ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS E AS SENSIBILIDADES DO MODERNO (1950 – 1960) Josinaldo Gomes da Silva
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NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ESTRADA DE FERRO MOSSORÓ-SOUSA José Romero Araújo Cardoso/ Marcela Ferreira Lopes
LIVROS GENIUS É EXALTADA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS Nilda Gondim
CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
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COLABORAM NESTE NÚMERO: 4
ANDRÈS VON DESSAUER [A RELIGIÃO NO CINEMA] Mestre em economia e ciência política, pela Universidade de Munique, Alemanha. Comentarista cinematográfico no triângulo Rio de Janeiro, São Paulo, João Pessoa, sobre filmes “cults”. Articulista em vários periódicos brasileiros. CHICO VIANA [MELANCOLIA E LINGUAGEM] – Professor da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua tese, publicada em 1994 com o título O Evangelho da Podridão, enfoca a representação da melancolia em Augusto dos Anjos. Ensina português e redação no curso que leva seu nome. CLEIDE MARIA FERNANDES FERREIRA (Dândy) [CINCO POEMAS] Poeta, publicou, em vida, AGGENDA de Dandy, uma seleção de poemas, editorada pelo Publisher Evandro Nóbrega, com capa de Milton Nóbrega e ilustrações de Plínio Palhano (1998) . CRISTOVAM BUARQUE [CASSETETES E CONTRACHEQUES] Pernambucano, natural do Recife, foi Reitor da Universidade de Brasília, Governador do Distrito Federal, Ministro da Educação. Atualmente, é Senador pelo Distrito Federal, sob a legenda do PDT. A educação é sua grande bandeira. FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES [EPITÁCIO SOARES: A SIMPLICIDADE E A GLÓRIA EM UM CENTENÁRIO] Diretor e Editor de GENIUS. Membro da Academia Paraibana de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Autor de História Constitucional da Paraíba e de História Constitucional dos Estados Brasileiros, este em parceria com Paulo Bonavides. JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA – In Memoriam [DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS] Bacharel em Direito, advogado, político, Ministro de Estado nos dois governos Vargas. Governador da Paraíba (1951-1955). Romancista, poeta, ensaísta, autor do célebre romance A Bagaceira. JOSÉ ROMERO ARAÚJO CARDOSO [NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ESTRADA DE FERRO MOSSORÓ-SOUSA] Geógrafo. Professor-Adjunto IV do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB) e em Organização de Arquivos (UFPB). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UERN).
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JOSINALDO GOMES DA SILVA [AS ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS E AS SENSIBILIDADES DO MODERNO (1950-1960)] Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Membro do Grupo de Estudos Teoria e História da Historiografia da UFCG. Professor de História no Ensino Médio. Pesquisador da temática Cidade e Modernidade, conta com vários trabalhos publicados em anais de eventos e em livros-coletâneas. MARCELA FERREIRA LOPES [NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ESTRADA DE FERRO MOSSORÓ-SOUSA] Geógrafa-UFCG/CFP. Especialista em Educação de Jovens e Adultos com ênfase em Economia Solidária-UFCG/CCJS. Graduanda em Pedagogia-UFCG/CFP. Membro do grupo de pesquisa (FORPECS) na mesma instituição. MARIA DO SOCORRO SILVA ARAGÃO [A LINGUAGEM REGIONAL–POPULAR NO NORDESTE DO BRASIL: ASPECTOS LÉXICOS] Professora da Universidade Federal da Paraíba. Mestra e Doutora. Especialização em Linguística pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. Professora Visitante da Universidade Federal do Ceará. NILDA GONDIM [DISCURSO NA CÂMARA DOS DEPUTADOS] Deputada à Câmara dos Deputados, na legislatura 2011-2015. Atualmente, é primeiro suplente de Senador, pelo Estado da Paraíba. OSWALDO MEIRA TRIGUEIRO [O JEITO COMO O BRASILEIRO VÊ TV, ESTEJA ONDE ESTIVER...] Professor aposentado da UFPB. Membro da Comissão Paraibana de Folclore. Pesquisador da Rede Brasileira de Folkcomunicação/FOLKCOM. Autor de várias obras em suas áreas de especialização. PAULO BONAVIDES [DISCURSO DE AGRADECIMENTO] Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará. Doutor Honoris-Causa por Universidades de vários países, autor de uma ampla bibliografia em que se destaca o CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, em 30ª edição, pela Editora Malheiros. Recentemente lançou História Constitucional dos Estados Brasileiros, em parceria com o Professor Flávio Sátiro Fernandes, edição também de Malheiros Editores. SOCORRO DE FÁTIMA PACÍFICO VILAR [ALVA E IDÉIA: DUAS REVISTAS E UM PASSADO PARA A VIDA LITERÁRIA PARAIBANA DO SÉCULO XIX] Possui graduação (Licenciatura Plena) em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (1982), Mestrado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (1990) e Doutorado em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (1999). Atualmente é Professor Adjunto IV da Universidade Federal da Paraíba e realiza estágio de Pós-Doutorado na PUCRS, com bolsa CNPq, sob a supervisão da Profa. Dra. Regina Zilberman.
CIÊNCIA POLÍTICA
DISCURSO DE AGRADECIMENTO(*)(**) Paulo Bonavides
Exmo. Sr. Marcus Vinícius Furtado Coelho, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil! Minhas Senhoras e Meus Senhores! Ao receber tão penhorante homenagem deste Congresso, pela qual me confesso sumamente grato, quero expressar a Vossa Excelência, Caro Presidente, minhas efusivas congratulações por haver realizado em sua gestão uma das mais importantes Conferências da advocacia brasileira desde que a Ordem as instituiu. A XXII Conferência Nacional da OAB chega ao seu termo num dos momentos de maior gravidade nos fastos do nosso presidencialismo desde a derrubada da monarquia. Com efeito, o sistema político da nação passa por uma deplorável crise de decadência que abala as instituições representativas. Há erosão de legitimidade dos Três Poderes em seus mecanismos de ação e governo, rodeando de angústias e incertezas a cidadania, que clama por reformas e encara com descrença e desconfiança a classe política, os partidos e os governantes, responsáveis da crise e do provável terremoto institucional. A coluna vertebral do corpo representativo nas Constituições da liberdade é formada de dois princípios cuja ausência determina o esfacelamento de toda a estrutura que garante e limita poderes na organização democrática do Estado constitucional. O primeiro princípio é o da liberdade de imprensa e dos meios de comunicação; o segundo, o princípio da moralidade pública dos governantes e governados, sintetizado no combate à corrupção e à injustiça. Acerca do primeiro invoco a autoridade ímpar de Rui Barbosa; mas antes de fazê-la explícita nesta oração cívica de agradecimento, faz-se mister assinalar que estamos debaixo da ameaça de cair na
escuridade histórica duma nova escravidão, tão funesta quanto a do Império ao longo do século XIX. A cruzada da Abolição elevou homens do espírito e grandeza de José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Castro Alves, Rui Barbosa e tantos outros à estatura de libertadores duma raça oprimida e martirizada por trezentos anos de cativeiro. Feria-se então a luta social da senzala contra a casa grande, do escravo contra o senhor de engenho, do índio contra o genocídio. O Nordeste da cana de açúcar era um dos palcos daquela tragédia que a herança maldita do colonialismo representara. Ontem a escravidão negra, a escravidão duma raça; hoje a escravidão branca, a escravidão do pensamento, que ameaça, vez por outra, instalar-se no país. Trata-se de escravidão, se vier a ocorrer, tão perniciosa, tão cruel, tão liberticida quanto a anterior por extinguir na sociedade a livre expressão das ideias e sujeitá-la à perda dos seus foros constitucionais. Desde 1988, a Carta Magna da restauração constitucional afiança ao povo voz e presença nas tribunas do pluralismo, onde a censura e o cárcere já não arredam os publicistas e o elemento popular dos órgãos e meios de comunicação. Por essa via é que a democracia republicana respira o oxigênio da liberdade, forma opinião, aprova ou condena políticas de governo, levanta o debate sobre temas nacionais, critica e julga as instituições. A palavra livre arejando as tribunas da imprensa é algo de que a nação não pode prescindir. Ao recebermos o novo galardão honorífico que a vossa generosidade nos outorgou é para o Patrono da advocacia brasileira que nos volvemos trasladando para este discurso as imperecíveis considerações morais e pedagógicas acerca da liberdade de imprensa.
Veja-se pois a eloquência inexcedível com que Rui parecia definir o momento de sombra e aflição que ora, na desventura da estagnação, no tombo da economia, no declínio do desenvolvimento, amargura a alma do povo e arrefece a fé nos valores da nação. Disse o egrégio baiano, taxativamente, ao propugnar a liberdade de imprensa: “Se instituirdes a inquisição da palavra escrita, o que tereis feito é banir do jornalismo os homens de alma, as penas independentes, os caracteres ilibados, os escritores mais capazes. Ficaria a ralé da venalidade, os pensionistas das verbas secretas, os encostados dos ministérios, os parasitas do Tesouro.”1 E a seguir com o mesmo talento e energia verbal de um Marco Túlio na tribuna do senado romano, proclamava o príncipe da oratória nacional: “Deixai a imprensa com as suas virtudes e os seus vícios. Os seus vícios encontrarão corretivo nas suas virtudes.”2 Prosseguindo: “(...) Sou pela liberdade total da imprensa, pela sua liberdade absoluta, pela sua liberdade sem outros limites que os do direito comum, os do Código Penal, os da Constituição em vigor. A Constituição imperial não a queria menos livre; e se o Império não se temeu dessa liberdade, vergonha será que a República a não tolere. Mas, extremado adepto como sou, da liberdade, sem outras restrições, para a imprensa, nunca me senti mais honrado que agora em estar ao seu lado; porque nunca a vi mais digna, mais valorosa, mais útil, nunca a encontrei mais cheia de inteligência, de espírito e de civismo, nunca lhe senti melhor a importância, os benefícios, a necessidade. A ela exclusivamente se deve o não ser hoje o Brasil, em toda a sua extensão, um vasto charco de Lama.”3 Também às vésperas da queda do Im-
Discurso de agradecimento à homenagem que foi prestada ao orador na XXII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 23 de outubro de 2014.) Reproduzido por incorreção gráfica, na última edição de GENIUS) 1 Rui Barbosa, Campanhas Jornalísticas, 3ª edição, outubro de 1968, Livraria Editora, São Paulo, pág. 35. 2 Rui Barbosa, ob. cit., pág. 35 3 Rui Barbosa, ob. cit., pág. 33 (*)
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pério, no auge da campanha da Abolição escreveu Rui que o Brasil estava bloqueado pelo mundo. Citava a frase de Laboulay proferida no Congresso Abolicionista de 1867.4 A mesma expressão do insigne publicista francês do século XIX se aplica com propriedade em nossos dias quando vemos a nação novamente bloqueada pelo mundo. As determinantes morais e medulares desse segundo bloqueio procedem da corrupção, do crime, da violência, do quebrantamento dos direitos humanos fundamentais. Aí está o espectro da crise. O Brasil é país injusto. Nada deprime tanto uma nação quanto a injustiça porque quem diz injustiça diz também corrupção, desigualdade, opróbrio. A injustiça, associada à corrupção, é o flagelo de todos os regimes, o carcoma de todos os governos, a larva de todas as crises que perfuram as instituições e destroem as células e os tecidos mais nobres da cidadania. No Diálogo da Justiça, Imagem da Vida Cristã, tomo I, um dos melhores clássicos da língua, Frei Heitor Pinto, companheiro de Camões no infortúnio, escreveu palavras que não envelheceram, que servem de lição a todas as repúblicas onde os foros da de-
mocracia e da liberdade constitucional são atraiçoados. Disse o egrégio frade dos jerônimos: “A corrupção, que tem um corpo sem alma, tem o povo sem justiça; porque faltando ela alevanta-se a dissensão, e cai por si a concórdia; falta a liberalidade e cresce a cobiça; vive a traição e é sepultada a lealdade; ensenhoreia-se a força e é abatida a paz; é atrevida a mentira e anda acovardada a verdade; anda solto o apetite e jaz presa em ferros a razão; prevalecem os maos, e são oprimidos os bons; e finalmente entram de tropel os vícios e são destruídas as virtudes. Porque assim como a justiça é triaga contra a peçonha dos vícios, assim a injustiça é cutelo das virtudes.”5 Em suma, com a Constituição, a liberdade, a salvaguarda da democracia, a governabilidade e a paz social hão de prevalecer. Mas, sem a Constituição seremos unicamente a república do medo, a nação dos golpes de Estado, das ditaduras, da discórdia, da luta de classes, das gerações sacrificadas. Por conclusão, quero render homenagem a baluartes da democracia e da nacionalidade nos fastos da advocacia, da liberdade e da consolidação do regime constitucional, a saber: A Evandro Lins e Silva e Heleno Fragoso, Patronos desta Conferência.
A Sobral Pinto, Raimundo Faoro e Raimundo Pascoal Barbosa, três advogados de bravura profissional nas sombrias quadras da ditadura. A Goffredo Teles Junior, autor da Carta aos Brasileiros. A Ulysses Guimarães, o formulador da Constituição-cidadã e a Bernardo Cabral, o heróico Relator da Constituinte. A Miguel Seabra Fagundes, memorável nos anais da ética forense6. A Luiz Pinto Ferreira, um dos fundadores, no continente, do Instituto Ibero-Americano de Direito Constitucional. E, por derradeiro, a Jorge Carpizo, mexicano, cujo trespasse enlutou as letras constitucionais da América Latina. Todos eles hão de perdurar para sempre na memória agradecida dos constitucionalistas do Brasil porque foram fiéis à Constituição, à Federação, à república, e à democracia das liberdades públicas. Minhas Senhoras e Meus Senhores! Mais uma vez minha gratidão pela homenagem que me fizestes em evento tão memorável qual o desta XXII Conferência Nacional dos Advogados do Brasil. Minhas Senhoras e meus Senhores, muito obrigado! g
Rui Barbosa, ob. cit., pág. 13 Frei Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã, vol. I, 7ª edição, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1952, pág. 147. 6 Com efeito, Miguel Seabra Fagundes, o primaz da ética na advocacia, precisamente há 30 anos ocupava no Recife a tribuna da X Conferência Nacional da OAB, para desenvolver, em breves considerações históricas, a análise do que há sido a corrupção no Brasil desde D. João VI até às vésperas da reconstitucionalização do País em 1988, quando a ditadura já não pôde sustentar o seu tenebroso regime de exceção. Alguns excertos dessa oração de tão viva atualidade vão reproduzidos a seguir: “Cumpre, para elementar valoração da vida pública, enfrentar a prática da corrupção. A principiar pelas cúpulas governamentais e burocráticas, no sentido de extinguir, ou, pelo menos, reduzir a um mínimo a ocorrência dos delitos contra o patrimônio público, de tráfico de influência, e , em suma, de todas as diferentes tipificações penais relacionadas com a probidade no exercício das funções de governo em qualquer dos seus ramos (executivo, legislativo e judicial) e, nestes, em quaisquer gradações de hierarquia.” Na exposição histórica acerca da corrupção que tem assolado o Brasil, Seabra Fagundes não poupou a época de D. João VI, quando fomos Reino Unido a Portugal e Algarves, mas cobriu de louvores os dois Reinados, escrevendo a esse respeito: “O Brasil, no entanto, erigido em estado por uma elite autóctone, de alto teor pelo idealismo, pelo valor e pela competência, superaria essas fases e viveria sob os dois Reinados, e, sobretudo, sob a Regência e sob D. Pedro II, num clima de governos decentes, voltados para a consolidação da unidade pátria e o progresso comum.” Em seguida, com a mesma inteireza e insuspeição, prossegue o conspícuo advogado e jurisconsulto: “Durante o Império, contribuíram para que a Administração fosse poupada a escândalos, não somente a grandeza moral dos estadistas que fizeram a Indepedência e consolidaram o Estado brasileiro, como a presença austera do segundo Imperador, a impor, mediante atos oficiais, comportamento probo na gestão da coisa pública, e a oferecer exemplo pessoal de comedimento nas próprias despesas da Coroa.” Segue-se a nota nº4 em que Seabra Fagundes conclui suas considerações acerca da corrupção no Império, escrevendo: “4. Nos Conselhos à Regente, destinados à Princesa Isabel quando da sua última viagem ao exterior, sugeria Pedro II, com sutileza, não se majorassem em sua ausência, as dotações da Família Imperial. Temeroso, ao que parece, de tendência reivindicatória do Príncipe Consorte.” (Miguel Seabra Fagundes, Instrumentos Institucionais de Combate à Corrupção, Tese 14, X Conferência Nacional da OAB, Recife, 1984, págs. 7, 3 e 11). 4 5
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CINEMA
A RELIGIÃO NO CINEMA Andrés Von Dessauer
Em sua obra ‘PHILOSOPHISCHE UNTERSUCHUNGEN’ (1953) Ludwig Wittgenstein afirma que deveríamos guardar silêncio sobre aquilo que desconhecemos. No que tange à religião, esse conselho, a priori, parece bastante pertinente, já que conceitos metafísicos possuem a péssima característica de permitir interpretações elásticas. A referida sugestão, no entanto, não vai muito além do plano teórico porque põe em sério risco nossa tão estimada ‘liberdade de expressão’. E a indústria cinematográfica exercitou como ninguém esse direito. Prova disso, é que La Passion (película sobre a vida de Jesus Cristo) foi produzida, pelos irmãos Lumière, em 1897 e, portanto, logo após a criação do próprio cinema. Posteriormente, em 1902, Albert Kirchner produziu ‘Passion du Chris’ e, assim, equiparou o êxtase religioso ao ápice do prazer carnal, tema central de seu filme ‘Le Coucheur de la Mariee’, rodado em 1896. Vê-se, assim, que a cinematografia ganhou e, muito, ao rechaçar os ideais ludwiquianos acima. E, como resultado positivo desse repúdio tem-se uma gama de trabalhos memoráveis, dentre os quais, hoje, merecem destaque: ‘O NOME DA ROSA’ e ‘DOGMA’. O NOME DA ROSA ‘Mistério’ e ‘fé’ são os principais pilares de qualquer religião e sempre funcionaram como um escudo eficiente contra indagações acerca de seus fundamentos. Mas, nem mesmo esse mecanismo de proteção é capaz de sufragar o anseio de trazer à luz a sujeira posta sob os tapetes do clero, quando o mal alcança a hermética organização da própria igreja. No filme ‘O Nome da Rosa’ de Jean Jacques Annaud (1986) somos remetidos à Idade Média, mais precisamente ao ano de 1.327, época em que a igreja católica reinava, plenamente, só esbarrando, vez ou outra, na aristocracia. Assim, resolver problemas obscuros na época do ‘Obscurantismo’, não era
uma tarefa fácil, pois além da competição entre várias vertentes católicas, a devastadora Inquisição, de origem dominicana, invariavelmente, se sobrepunha com o seu ‘Santo Ofício’ e ‘Auto da Fé’. É nessa atmosfera que a igreja, para investigar as ações de um provável ‘serial killer’, em uma abadia beneditina, designa o humilde franciscano William de Baskerville, personagem vivido por Sean Connery. Vale notar que o raciocínio empregado por esse intrépido corregedor eclesiástico, revela uma mente avangardista que, ao empregar o método empírico, antecipa por dois séculos o ‘Renascentismo’, movimento de incontestável relevância no que tange à evolução da humanidade em geral e, em específico, dos métodos de investigação. De fato, se esse filme não estivesse baseado na obra homônima de Umberto Eco, aclamado escritor italiano do século passado, certamente, estaria fadado a ser classificado como um simples romance policial. Mas, ao contrário disso, sua originalidade reside no movimento de aniquilar o conhecimento literário capaz de abalar a supremacia da igreja católica. E, nesse sentido, o livro de Aristóteles sobre o ‘Riso’ se revela uma metáfora perfeita, considerando que o humor é visto como o maior adversário da religião. Tanto é que as escrituras religiosas e, sobretudo os cultos monoteístas, são desprovidos de humor. O ‘riso’ é intolerável, por ser
altamente contagioso, e por conseguir romper as algemas intelectuais impostas pelo dogma que, naturalmente, não admite questionamento. Não por outra razão, o livro mencionado em nossa estória fora envenenado pelo clero e para o próprio clero, no intuito de impedir que seu conteúdo extravasasse os muros da abadia. Além de adentrar as entranhas da igreja, Umberto Eco traz a pauta uma questão tortuosa no mundo da linguística, ao denominar sua obra com um título aparentemente inofensivo. Nesse sentido, qual, afinal, o significado do título? O nome da Rosa já não seria Rosa? Explicar o significado do significado é uma das incumbências mais escorregadias da linguística, pois requer uma metalinguagem. Todavia, em uma escala de interpretação, a Rosa poderia representar uma flor, um nome, uma mulher, um símbolo (na época medieval o infinito poder das palavras) e, finalmente, um conceito. Mas, como encontrar o assassino não resolve, necessariamente, a razão dos crimes, é possível concluir que a simples opção por uma das hipóteses acerca da ‘Rosa’, não nos levaria à precisa intenção de Umberto Eco, que, diga-se de passagem, não raramente, deixa suas obras abertas a múltiplas interpretações. Contudo, para acalmar os impacientes e para aqueles que se contentam com o perfeito casamento entre a ‘Fé’ e o ‘Mistério’, a dupla Eco/Annaud indica uma provável saída que, de tão simples, chega a ser risível: ‘Rosa’ seria a pobre aldeã que segue seu caminho, se aproveitando das labaredas de um incêndio que destruiu uma preciosa biblioteca e, transformou em cinzas o livro de Aristóteles que, possivelmente, jamais existiu. DOGMA – em questão O termo “dogma”, etimologicamente, advém do grego e, em uma tradução livre, significa ‘o que se pensa é verdade’. Nesse passo, parece lógico para as três maiores religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) que o dito vocábulo represente uma afirmação irrevogável e incontestável, comprovada, exclusivamente, por meio da abril/maio/junho/2015 |
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fé. De fato, a depender da época, questionar um dogma poderia ser sinal de carência de fé. Deficiência que, na Idade Média, implicava em heresia, capaz de levar o sujeito ‘perguntador’ à fogueira da purificação. No Brasil, o filme em epígrafe, do cineasta e ator americano Kevin Smith, teve pouca recepção, já que três grandes distribuidoras (Cinemark, Severiano Ribeiro e UCI) refutaram sua exibição em razão do seu conteúdo blasfêmico. DOGMA, com efeito, combina inteligência com ironia - casamento que, por vezes, constitui ameaça real aos cânones religiosos. E isso talvez explique porque películas bem mais agressivas (de cineastas como: Godard, Scorcese, Lars von Trier etc.) tenham passado pela autocensura das distribuidoras. O curioso é que, nos USA, país aparentemente mais conservador, a película não sofreu qualquer restrição e obteve bilheteria expressiva. Cronologicamente em compasso com a profecia de Nostradamus, DOGMA, lançado em 1999, tinha, exatamente, como pano de fundo o prognóstico do fim do mundo. A infalibilidade divina é
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isso que viabilizou uma concepção celestial tão diversificada, na qual até um rio tem como protetor uma divindade. Quem sabe, se a civilização tivesse seguido esse norte, muitos rios não teriam virado esgoto e alguns dos problemas ambientais do século XXI seriam ficção.
o tema central do trabalho. Vale mencionar que os grupos que atuam no palco celeste foram moldados com base em crenças mitológicas. E foi justamente
DOGMA - indaga mais que responde. Questiona-se, por exemplo, sobre a cor branca caucasiana dos apóstolos e, até mesmo, sobre a imagem de Deus que poderia se tratar de uma jovem mulher cujo espírito pueril só busca diversão. Sob esse prisma, percebe-se que o filme tira alguns espectadores da zona de conforto. Mas, para amenizar eventual impacto, cabe frisar que, independentemente do sexo, Kevin Smith, sublinha o bom humor de Deus com base na criação do ornitorrinco. Aliás, para reforçar esse traço humano do Deus cristão, vale destacar que o mesmo não guardou qualquer rancor em relação ao filme em apreço, uma vez que, posteriormente, todos os protagonistas se tornaram grandes astros. g
PARAIBANOS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA Discurso de posse (*) DUAS REVOLUÇÕES Como aconteceu isto? Por que emergi de minha obscuridade, do isolamento compulsório da praia de Tambaú para esta evidência? Minha vida teve muitas direções; acompanhou-me, porém, uma constante, qualquer que fosse o caminho percorrido. Uma exigência da própria natureza que, não se afeiçoando a outros prazeres, se recreava nos livros, adquiriu a paixão da leitura e concebeu muito cedo a ânsia vã de criar. Começou por uma ingênua profecia. Eu era menino de engenho e, numa tarde de domingo, meu irmão mais velho me levou a cavalo pelas casas dos moradores espalhados no sítio. Parávamos em cada terreiro e ele mandava que me perguntassem o que era que eu queria ser. Ensinado, eu ia dando a resposta, sem saber o que dizia: – homem de letras. Ainda não sabia ler e já visionava estas esferas. Nomeado Procurador Geral do Estado, com 24 anos incompletos, passei a levar uma vida retirada, colocando-me à altura dos velhos desembargadores, minha veneranda companhia no Tribunal de Justiça. Aproveitei esse recolhimento para sistematizar minhas leituras e fazer uma educação literária. Depurei a frase e, como Augusto dos Anjos, no Pau d’Arco, longe de influências deformadoras, construí um estilo próprio. Incumbiu-me o Governo do Estado de redigir um memorial sobre o plano de obras contra as secas, iniciado por Epitácio Pessoa, com o fim de evitar a suspensão de que estava ameaçado pelo seu sucessor. Coligi os dados e, ao cabo, dispunha de material para um livro de ensaios. Foi minha estreia de escritor: A Paraíba e Seus Problemas. De tanto manipular esses temas, dos elementos físicos aos agentes internos, do ecológico ao social, ficou-me uma reserva que não pudera inserir no plano originário. Eu tinha mais o que dizer e essa disponibilida-
de procurava outro meio de expressão. Era a substância de um romance: A Bagaceira. Recuei, para ver tudo a distância, com uma aparência mais simbólica. Depois tornei-me político, mas a Literatura fazia-me falta. Quando fui Ministro de Estado, meus relatórios, escritos pelo próprio punho, também viravam livros: O Ministério da Viação no Governo Provisório e O Ciclo Revolucionário do Ministério da Viação. Não consentindo minhas responsabilidades certas manifestações, só ao deixar a pasta liberei duas novelas que moravam na minha cabeça: Coiteiros e Boqueirão. No exercício da Política não perdi o estilo. Como senador, recebi, num debate, este aparte, meio irônico, meio cordial: “Só posso entender que V. Exa. esteja falando, vamos dizer, literariamente.” Minha réplica foi esta: “Só sei exprimir-me literariamente, mas mesmo assim, digo o que penso. Não tenho outra forma falando ou escrevendo.” Combatendo, ainda no Senado, o parecer da Comissão de Finanças que recusara apoio ao auxílio concedido pela Câmara à Sociedade de Escritores, assim me manifestei no plenário: “Quero dizer aos meus companheiros de Comissão que, se estivesse presente, teria divergido de sua orientação, pelo apreço que devo à inteligência do meu País, ativa e desamparada. O espírito precisa sobreviver.” Com essas e outras palavras derrubei o parecer. Minhas orações iriam também dar livros: A Palavra e o Tempo e Discursos do Seu Tempo. Quando levantei a voz pela liberdade de expressão, na entrevista de 24 de fevereiro de 1945, aleguei que estava representando minha posição de escritor. Não sei como Rui Barbosa, com sua abundância verbal, se defendeu, no discurso do Jubileu, de ser literato. Foi essa devoção que me deu a chave da imortalidade. A Política, como diria Napoleão, foi o destino; as Letras foram a vocação.
À SOMBRA DE 1930 Não sou, certamente, o esperado, o candidato ideal entre tantos valores que ainda estão do lado de fora. Fui entretanto o eleito. Suponho que dois títulos influíram para esta opção: o de homem público e o de homem de letras. O remanescente dos revolucionários de 1930, que já se foram quase todos, e o pioneiro de uma nova fase do romance do Norte. Só essa significação histórica iria prevalecer; eu era um portador já raro dessas expressões do tempo. Falei em 1930 e provavelmente estou sendo interpelado por uma curiosidade que superestima o documento humano, o conhecimento pessoal desse episódio de nossa Sociologia Política. É um tema que não tem ingresso nesta Casa sem se isentar de toda e qualquer tendência. Sinto-me em condições de depor; meus princípios respondem por essa imparcialidade. Não sou capaz de pensar que minha presença aqui seja uma consagração daquele evento: bem sei quanto divergem suas interpretações. Podia ter sido, realmente, uma revolução, no seu sentido amplo, com um conteúdo reformista, em vez de simples mudança do poder, para, restaurada a legalidade, recair tudo na mesma. Não passou de uma simples revisão, sem alterar os costumes, nem a estrutura. Apenas substituindo grupos e deixando alguns traços positivos, como o voto secreto, o voto feminino, a justiça eleitoral, a previdência social e a erradicação do caudilhismo nordestino. Devemos, porém, reconhecer que, se a Revolução de 1930 não mudou a face do Brasil, inaugurou uma política diferente, pela participação das massas. As alianças do centro e a política de governadores seriam abaladas por essa intervenção. O sindicato teria sua hora, aliás, sem um programa trabalhista, sem nenhum programa ideológico. A representação de classe, que poderia ter sido outra tônica da República Nova, foi manipulada pelo personalismo político, abril/maio/junho/2015 |
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baixando o nível da Câmara dos Deputados. Deu algumas boas figuras, mas o comum era o desclassificado. Com a queda dos velhos quadros e o apoio coletivo, até o desencanto, tudo favorecia a reforma solicitada pelas campanhas mais ativas que precederam a eclosão armada. Faltou o centro regulador e as linhas divergentes deixaram de funcionar com a eficácia manifestada em outras circunstâncias. Chocaram-se tenentes e “carcomidos”, prejudicando a obra comum. A Constituinte, incolor e ambígua, refletiria essa disparidade. O que mais importa para se formar um juízo do processo discricionário é o estudo da figura central que deveria encarnar uma mentalidade definida. Alguns tenentes egressos do exílio tinham trazido uns fumos de esquerdismo. O lema “representação e justiça” era vago e limitado. O Clube 3 de Outubro deixou de cristalizar um programa. E não havia ainda uma concepção da Democracia moderna. A vanguarda do movimento nutria tão pouco idealismo que, quase sem exceção, apoiou o totalitarismo em 1937. Nada de fator econômico como móvel do golpe; tudo se originou da ruptura do eixo Minas-São Paulo, que monopolizava o Governo da República. Desfeitos esses elos, organizaram-se novas forças que venceram pelas armas, apelando para um Estado aguerrido. Getúlio Vargas era o contrário do gaúcho exuberante que dominava pela sedução pessoal. Faltava-lhe tudo na aparência física e nas próprias maneiras para representar a imagem de um condutor. Deixou de adquirir uma expressão. Para o povo era o Chuchu, isto é, o sem sabor, o neutro. Assim o apelidavam, menos pelo formato do que pela desconfiança na ação. Por sua simplicidade, seria também o Gegê, o íntimo, o inofensivo, o bonzinho. Encolheu-se. Omitiu-se. Um conselho secreto, de que eu fazia parte, tomava as deliberações mais importantes. Só se afirmaria, muitos anos depois, no exercício do poder pessoal. E mesmo aí o culto da personalidade seria simplesmente publicitário e fotográfico. Era uma natureza complexa, difícil de definir, por sua versatilidade. A melhor forma de dirigir é fazer-se compreender, ser claro e direto, com rapidez e decisão. Faço-lhe justiça. Já lhe tracei o retrato no meu livro A Palavra e o Tempo, reconhecendo-lhe “o sorriso indulgente, a simplicidade no viver, o apego aos amigos que não se atravessassem em seu caminho, a facilidade de reconciliação, a paciência e a probidade pessoal”.
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Vejam como ele era. Aprecio algumas particularidades que explicam melhor a sua formação. Lidei com ele muitos anos e sempre o observei, interessado em decifrá-lo. Perdura sua fama, mas pouco se sabe de sua personalidade. O aspecto tranquilo aparentava uma calma, às vezes, trágica. Era tido como homem frio. Puro engano. Pude surpreender sua emotividade. A forma mais aguda, se estava contrariado, era o assobio, andando e assobiando, dentro do gabinete, de maneira quase imperceptível como um sopro de fadiga. Quando arqueava as sobrancelhas ou passava a mão na face estava intranquilo. E os olhos para cima era um sinal de dúvida. Se chegava a arroxear-se, estava preso de uma paixão reprimida. Jamais alteou a voz; não sabia gritar com humildes nem com poderosos. Nenhuma impulsividade. Havia um furor secreto que lhe mudava as feições. Nada de estudado, de espalhafatoso, de solene. Só tinha de ostensivo a gargalhada, solta, longa, rasgada, virando a cabeça para trás. Raro contava anedotas, mas gostava de ouvi-las, mesmo as mais livres, para dar essas risadas. A palavra, se não desagradava, nem sempre produzia efeito oratório, por sua monotonia. E de improviso tinha dias infelizes. Podia convencer as multidões, mas não as eletrizava. Os discursos não eram seus: apenas dava o roteiro. Hoje compreendo essas coisas; até Kennedy, o intelectual, confiava esse trabalho aos secretários. Não era o tipo reservado que se julga. Ocultava, discretamente, o pensamento para não ser discutido. Nisso, sim, era hábil. Uma vez Osvaldo Aranha, o irrequieto, o encantador, surpreendeu-nos num colóquio e ficou admirado de vê-lo abrir-se tanto comigo. Como eu usasse de franqueza, ele também abandonava as reservas. Suas conveniências eram desprezo pelos homens. Confiava em poucos e errou muito confiando. Não era também um calculista. Ao contrário, esperava tudo das circunstâncias, deixando que as coisas seguissem seu rumo, até amadurecerem ou se retirarem da cena. O tempo era seu melhor serviçal. Daí, as flutuações e o adesismo ao fato consumado. Cozinhar em água fria era um estilo que não deixava de agravar algumas crises. O que mais lhe valia, acima de toda a tática, era o apego ao poder. Para mantê-lo possuía-se de uma prudência ou, antes, de uma resignação acima dos seus brios de homem forte. O tom quase apagado era um sintoma de debilidade que lhe abatia o prestígio de chefe, nas horas difíceis, apesar da bravura
pessoal. Só tinha medo dos acontecimentos. Além disso, por um complexo que o inibia de certas exterioridades, mesmo de viajar, talvez pela míngua da estatura, agia quase sempre por interposta pessoa. Seu lado negativo provinha dessa esquivança. E só assim se explica tanta brutalidade praticada no Estado Novo sem o seu conhecimento. E não vacilo em desfazer uma lenda: a de sua habilidade política. Deverão objetar que isto é um absurdo. Como poderia ele, sem essa arte, deter o poder, ilimitadamente, interrompendo um sistema de temporariedade democrática? Tinha sorte para galgar as posições e era destituído de qualidade para conservá-las. Foi assim em 1930, sempre em crise, a ponto de ter-se cogitado de sua substituição por uma junta de civis e militares. E arcando com o levante de São Paulo que se sublevou, por um erro de psicologia política da revolução que já estava fraca e não caiu porque os interventores defendiam também as suas posições. Eram todos os Estados contra um. Deu trabalho elegê-lo presidente, em 1934, por já estar desfalcado de influência. Dois dos seus ministros andavam com a mosca azul. Eleito, reconstituiu-se, mas entrou logo mais a perder substância. Lá veio a Aliança Libertadora, que não foi vitoriosa porque os políticos envolvidos na conspiração suspeitaram em tempo do seu tom vermelho e descartaram-se. Em 1937, sofrera tal desgaste no Governo que perdera a base parlamentar e o apoio dos grandes Estados. Foi preciso que o ministro da Guerra desse um golpe de força derrubando as instituições para mantê-lo no Catete. Feito ditador, seria deposto em 1945 sem um tiro solidário. Nem todos os poderes concentrados o consolidariam. E em 1954 estava liquidado. Desesperou e foi levado ao suicídio por estar desamparado de qualquer meio de defesa. Grande líder do povo que cumulou de benefícios, desse povo que lhe deu a incomparável vitória de 1950, era inapto para manobrar a máquina política e as forças organizadas que garantem a estabilidade. Enquanto teve o que dar, deteve no meio do caminho as massas que poderiam marchar para a esquerda. COMO ME FIZ ROMANCISTA Este discurso será de confidências, tudo o que tenho para oferecer na hora da iniciação. Direi agora como me fiz romancista; recebido como tal, devo esta justificação. Foi uma fuga, evadindo-me de minha austeridade, para um espetáculo profano.
Estabeleci outra convivência, imaginária, livre de compromissos, como uma desintegração. Procurando ser natural, regressei às impressões da infância, que devolveu elementos nativos para engajar na minha estória. Experimentaria essa pressão dos fenômenos mais sensíveis esbatidos pelo tempo, para perderem sua vulgaridade. Compareceu o espectro que mais se fixava: o antagonismo regional. Grupos sociais atritando-se em encontros eventuais. Seria a consciência dos primeiros ambientes em toda a sua pureza. Simples reflexos que eu teria de estilizar como quem sonha o sucedido. O campo estava aberto. O Modernismo fora demolidor e desunira-se antes de realizar o tipo de literatura idealizado, menos intelectual e mais objetivamente brasileiro. Veio Macunaíma, de Mário de Andrade, com sua riqueza folclórica e sua imaginação formal, mas ressentindo-se do fundo de ingenuidade daquele grande espírito que tanto se distinguiu pela capacidade crítica e pelos achados poéticos. Poetas, sim, o Modernismo deu dos maiores, principalmente os líricos e parnasianos convertidos, alguns aqui presentes, cada qual sendo ele e sendo muitos, pelas renovações maravilhosas. Chegou a minha vez. O Norte precisava estar presente. Eu valeria por minha emancipação, ainda que fosse selvagem: os sentidos decidiram. Liberta de disciplinas, sem ligar ao encadeamento rotineiro, a composição tornou-se irregular, em recortes, saltando de um ponto a outro, só demorando no que representasse um papel. Estranhou-se a dessemelhança entre a linguagem do autor e a dos personagens. Eu fixara um estilo, adquirira uma ética de expressão e não iria abandoná-la para arremedar o povo. Permaneceriam as linhas de minha formação e eu utilizaria, nos diálogos, para ser mais autêntico, a fala comum, cada qual com o seu timbre. Garimpando e disciplinando, preocupado em não incorporar o material impuro à minha estrutura artística. Deixei que os outros elaborassem uma gíria plebeia ou que redigissem como quem está aprendendo a falar, confundindo primarismo com infantilidade. Acharão que falta vida interior. Não cuidei disso. Como analisar estados de consciência em seres vulgares, vazios de reflexão? Tudo era instinto e força da Natureza; não havia o que revelar, senão repentes da energia material.
Mas não faltou a pintura do caráter que pode ser modelado, como a matéria mais grosseira. E a honra sertaneja teve seus momentos épicos. O preconceito tem uma individualidade, como a avareza em Balzac. Lúcio cultiva seus problemas. O que parece inibição é o complexo de consanguinidade como freio dos impulsos amorosos. O conflito entre pai e filho é um agravante do espírito deformado por leituras espúrias. Pirunga passa por uma prova que só a Psicologia poderá avaliar: é testemunha passiva dos flagrantes de suas frustrações. Valentim, o mais castigado, é a virtude tradicional, na sua aspereza, uma espécie de homem já desaparecido. Soledade não conhece o medo e se rende à violência, lição da vida pastoril. Para sobreviver no meio perturbador usa, instintivamente, das armadilhas do sexo. Só a Beleza lhe daria o que a sorte tirara e aceita a nova condição sem remorso que seria arrependimento. Dagoberto, esse senhor, dentro dos seus limites, material e feudal, integra tudo em seu domínio, até a virgindade. Reconheço que esses tipos são o que há de mais inacabado e faço um apelo à imaginação dos leitores para que completem a escultura. Romântico é que não. O que parece romantismo é a enormidade do natural. Começa lento e, aqui e ali, a ação se precipita. Mas, mesmo no auge, o tom é excitante, sem se intumescer. E o que se afigura irrealidade é a Natureza bruta, tudo tão estranho que se torna inúmero. A cavalgada que já foi julgada fantástica não passa de uma lembrança das minhas próprias proezas, emparelhando e fazendo os cavalos desembestarem, um acompanhando o outro, num desafio. Não é um enxerto, mas desfecho, como as corridas em Naná de Zola e em Ana Karenina de Tolstoi, conforme notou um grande crítico. A região é o que está à vista, o único motivo disponível. Valoriza-se o caráter local para a obra de integração, sem desconhecer o que há de comum entre os homens. A paisagem intervém como uma espécie invasora. Está posta em cena porque regula uma geografia de contrastes, os vaivéns de um clima volúvel e misterioso. Veste-se e é um elemento poético; desnuda-se e não representa apenas a fisionomia da estação; é um cenário. Mesmo sem atividade, no seu natural, é sempre definidora. A imagem, também excessiva, de um lirismo que se impregnaria nessa literatura, brota das coisas vivas. Como evitá-la? Tudo é sol; tudo é feito de clarões. Não tive ideia de fazer um romance social, e saiu assim. O problema não foi pos-
to, nada foi intencional, como na ficção de Graça Aranha, a sátira política, a ostentação filosófica, a tese que não se dissolve no entrecho. E de repente essa paixão se converte em piedade. É, sem querer, uma denúncia e um grito de reforma agrária. O romance do Nordeste seria, assim, todo amargo. Só dois de seus obreiros, José Lins do Rego e Jorge Amado, sentiriam, como Flaubert, a falta de divertimento. Um daria Fogo Morto e o outro se lançaria na sua nova fase, deliciosamente, vitoriosa. Minha arte tinha de ser sincera como minha pregação. Restam, ainda, os segredos que se escondem na paisagem, nos gestos, num suspenso. São nomes, cores, cheiros, sombras. E o mais sugestivo é o que se traduz em símbolos. O que houve de minha parte foi ousadia, numa hora ainda indecisa. Apontei o caminho, contento-me com a minha atitude cronológica. O Modernismo teve o seu desenvolvimento e esse, sim, é que foi o fenômeno. Uma construção diferente evoluiu. Fiquei atrás. Da mesma forma que não posso ser traduzido, não sou imitado. Sou, estupidamente, pessoal. Sucederam-se estreias sensacionais. Apareceram romancistas completos. E nunca esse gênero foi tão popular no Brasil. O Modernismo foi um dia e aí está o romance moderno na sua maturidade: cariocas, paulistas, gaúchos, mineiros, baianos, pernambucanos, cearenses, maranhenses, piauienses, quase todo o Norte com esse novo padrão. A Bagaceira passou. Ficou só na história literária e com o reconhecimento que ainda se traduz como na dedicatória do grande Guimarães Rosa: “A José Américo de Almeida que abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro.” Não reparem ter falado tanto em mim; sou intérprete de outra revolução. A GALERIA INSIGNE Venho ocupar uma Cadeira que tem como patrono um nome legendário: Tobias Barreto. É uma vida que já faz parte do meu quadro votivo, como medida do seu tempo. E é a pessoa, mais que a obra, o que me impressiona, por ser figura de um drama. A origem obscura era uma condição de humildade e o temperamento reagiu. A força do espírito julgava-se injustiçada e rebelou-se. Ferira-lhe o coração enamorado o preconceito de raça; o objeto do seu lirismo amoroso fora-lhe negado. Pode-se avaliar o abril/maio/junho/2015 |
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que isso representou como fermento de um estado de revolta. Tudo seria provocação de um destino contraditório, de virtualidade e insucesso. A vida prática não correspondia às suas ambições; situava-se num nível que não distinguia relevos. Podia-se apostar. Falharia como homem prático, na Política e na Advocacia. E era um voluptuoso e um amante da vida. A mulher, a canção e a rua constituíam seus encantos. Só a música o satisfez; as outras alegrias eram amortecidas por um convencionalismo casmurro. Faltou-lhe equilíbrio e foi o brigão. Uma sátira pesada, da velha polêmica, servia de desabafo. Tentou, como compensação, um meio de ultrapassar-se e só a primazia intelectual lhe daria esse brasão. Utilizando suas faculdades, iria agigantar-se. O talento prodigioso, próximo do gênio, dispunha de todos os instrumentos para essa ascensão. Recife foi seu primeiro palco. Lá encontrou Castro Alves que o esperava para belos desafios, com o entono e a agilidade dos repentistas do povo. Foi ele, com efeito, o portador do hugoanismo, levado da Bahia; estava, no entanto, longe da sublime exaltação do êmulo adolescente. Nada mais oposto à Poesia que a sua substância; só o amor lhe tiraria do sangue algumas chispas mais vivas. O condoreirismo era um sinal dos tempos; antes de desembarcar, já fervia nos trópicos. Nenhum dos dois lograria imitar Victor Hugo, o poeta da família, que, no dizer de Valéry, ainda vive pela forma, em seus grandes caracteres. A influência não passaria do ritmo altiloquente e de oposição e antítese. O monstro da “musa vociferante”, da demagogia em verso e de romances ocos e retumbantes tinha momentos de sinceridade que comoviam o mundo. Castro Alves foi dessa estirpe pelo humanismo, pelo idealismo, pela inspiração épica, pelas mais puras paixões da Pátria e da liberdade. Tobias Barreto teria outra categoria no campo do pensamento. Seu mundo seria limitado: Sergipe, Bahia, Pernambuco. Quando voltou de Escada estava refeito para outra encenação. Chegou para o concurso como um elemento caído do céu, luminoso e turbulento. Era um ajuste de contas, menos contra pessoa, do que contra um mundo que não o reconhecia. Sua curiosidade mental inquietava-se. Tantas hipóteses e nenhuma resposta. Corria uma nova preocupação filosófica, uma
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onda de materialismo mais pretensioso, de falsa investigação científica. O darwinismo encontrara na Alemanha o estímulo de Ernest Haëckel, que lhe deu outra dimensão. Tobias Barreto professou esse sistema efêmero que se tornava atraente por suas raízes. Faltou-lhe, no entanto, base para o seu desdobramento. Tentou depois uma conciliação impossível do monismo evolucionista com o kantismo, decepcionado pelas causas mecânicas e tocado do saudosismo espiritualista. Foi um divulgador, nem sempre em primeira mão, pois Recife se convertera num centro cultural, a irradiar pelo Norte. Jurista, grande jurista é o que ele foi. Estudou essa ciência em suas fontes, na evolução e no campo correlato. Pôde renovar o seu conceito. A doutrina assimilada era retocada e ainda desenvolvida. Foi como Montesquieu, que, sendo um pensador, se tornou, sabiamente, um gênio do Direito. E foi, notadamente, o educador, embora negando tudo do Brasil. Essa face do seu espírito deu-lhe o primado a que aspirava. Excelente expositor, propagou ideias com uma vibração comunicativa. O estilo era cheio de claridade, de uma nitidez substancial, sem o tom oratório ou dramático do seu tempo. Faltou-lhe simpatia humana, mas tornou-se, pela movimentação da cultura e insistência da propaganda, o líder de uma área da inteligência do Brasil. Ganhou adeptos que se fanatizaram. Esse círculo de adesão foi chamado Escola do Recife, talvez impropriamente, porque a cultura no Brasil já não tinha fronteiras. O segredo de sua popularidade foi viver em camaradagem com os alunos. Seu orgulho não prejudicava essa simplicidade. Esquecendo a importância de lente, era rueiro, andava pelos hotéis e mostrava-se por toda parte, dando uma espécie de audiência pública numa livraria amiga. E franqueava a casa às visitas. Herói de suas convicções, fizera grandes amigos e maiores inimigos. Acabou na miséria. Caiu doente, tratou-se à custa de subscrições e foi morrer em casa alheia. Lutara muito pela glória mas não fora feito para a felicidade. Retratei o patrono com uma tinta diferente, sem as implicações de outras análises. É enorme a cabeça, mas preferi o corpo inteiro para algumas pinceladas. E que direi do meu antecessor? A Cadeira 38 tem um signo de superação. Deveria ter rodas para correr na frente. Graça Aranha, o primeiro detentor, foi o herói de suas atitudes. Como o mestre Tobias Barre-
to, seria o inconformista. Mais agitado do que agitador. Grandes frases, fosforescente e apegado à tradição doutrinária, comandou a reação, mas nunca deixou de ser um romântico. Faltava-lhe virgindade para essa experiência. Mas que grandíssimo escritor! E rico de seiva primorosa. Santos Dumont, que apenas sobrevoou esta Casa, tendo desaparecido antes da posse, foi outro reformista, herói de sua aventura. A paixão do voo dirigido era uma forma de genialidade. Celso Vieira foi o único que se voltou para o passado, exumando algumas glórias, com a sua paixão de biógrafo e sua mestria de escritor. Meu predecessor, Prof. Maurício de Medeiros, era o que se chamava um homem representativo. Desempenhou seu papel dentro e fora do Brasil com muitos méritos. Estudioso da personalidade, não me perdoaria um julgamento falso. Mestre de sua especialização, foi o catedrático e o clínico dotado de espírito científico. A Psicologia procura um campo fechado e a Psicanálise explora as intimidades. É uma ciência que não fatiga, porque tem uma parte cênica. O paciente é que se explica. Estava habilitado a uma atuação mais aberta. Frequentou a imprensa para alcançar outro raio de ação e o que se exteriorizou foi, muito mais que o escritor, o colunista, com sua autenticidade. O professor continuou a dar aulas: não tinha segredos, confessava-se a toda hora e, se julgava, estava também sendo julgado. A variedade dos temas demonstrava a extensão de sua cultura. Era o comentário ou a simples referência, mas também atingia a análise com profundidade e segurança. Tinha uma base para a argumentação. E essa atividade fragmentária revelou mais uma faceta do seu talento; o temperamento entretinha-se com a discussão e surgiu o esgrimista. Era uma espécie de polêmica, quando não aparecia com quem, com os acontecimentos. A idade não o esgotou. Foi até o fim com a sua reserva vital e o lustre do espírito, iluminado e afirmativo. OS PROBLEMAS DO MUNDO Ainda que não participe dos acontecimentos políticos, o intelectual tem de ser o espectador mais atento dos problemas do mundo. Já tive ocasião de dizer: “Ninguém se isola das condições gerais.” É uma posição histórica. Filosofias que edificaram novos estilos de vida. Romances
que mostraram a alguns povos a sua face oculta. Poemas que eternizaram lendas e tradições. Olhando esse panorama, confesso meu otimismo. Sou um entusiasta do progresso político e social de nossa época. O essencial é a paz, o elemento vital de segurança e sobrevivência. Também vislumbrei uma sombra que ameaçava envolver a civilização cristã. Delírios agressivos e o estado de pânico universal. Tanto se armaram os blocos adversos que já se considera afastada a ameaça da terceira guerra. O emprego do equipamento nuclear seria o fim de tudo. E o medo que sempre foi amigo da paz está sendo agora o seu advogado. Além disso, a posição da China, quebrando a unidade ideológica e impossibilitando a ofensiva conjunta, constitui um novo obstáculo à monstruosa aventura. São ainda obscuros os destinos do mundo, mas recuperou-se a calma, salvo algum incidente que servisse de estopim nas áreas de atrito. E o pesadelo do Vietname. Passou o susto que nos trouxe o Oriente Próximo com mais um documento da inviabilidade do conflito geral. A cooperação internacional, beneficiando regiões subdesenvolvidas, documenta índole benigna da era em que vivemos. Essa distribuição da riqueza pelos territórios da fome por um capitalismo mais sensível é um sistema de solidariedade e de equilíbrio econômico que poderá proporcionar uma convivência mais sincera. O anticolonialismo, que se tornou explosivo, demonstra o mesmo caráter. A queda dos imperialismos é o último arranco contra a servidão, coroado pelo reconhecimento do direito de autodeterminação aos povos. As últimas tentativas de reconciliação racial representam um imperativo do conceito da igualdade na sua forma mais coerente. O ateísmo político conquista mais espaço; uma onda irreligiosa percorre todas as direções. Não é a fé que declina: esse dom está ainda mais vivo nos corações que habita. A igreja voltou-se para as coisas deste mundo. Atualizou-se à luz do neo-tomismo e tornou-se atenta e serviçal. Nada disso é novidade; são realidades que se valorizam em massa, por sua significação humana. Só o problema da subsistência continua assustador. Seja o incremento demográfico, seja a falta de produtividade, seja a exaustão, seja o latifúndio, a fome poderá tornar-se mais devastadora que a guerra.
Observemos esse mundo em movimento. O trânsito não é fácil, mas a filosofia que diagnostica as crises indicará o tratamento da mais artificial que é a nossa. Precisamos sentir o nosso tempo; somos dos mais novos e aparecemos como dos mais velhos. LIBERDADE DE EXPRESSÃO Internamente, a análise dos fatos, sem a justificativa de estar fazendo História, resultaria num pronunciamento político, incompatível com este recinto. Limito-me a fazer votos pela preservação do que interessa mais de perto à inteligência que representamos: a liberdade de expressão. O Congresso goza de imunidade para ter iniciativa e para as críticas. A representação merece esse privilégio. O que repugna é a demagogia, por sua insinceridade e seus venenos. O objetivo da imprensa, como do rádio e da televisão, é informar e comentar esclarecendo. O espírito público equilibra-se nessa corrente de divulgação e poderá atingir a unidade, se não for ludibriado. Sendo controlado, o jornal desorienta, em vez de educar e organizar a opinião. O que se condena é o excesso de linguagem, é a falsidade, é a parcialidade ilícita. A simples doutrinação nunca seria criminosa. A cultura dirigida ou sob censura perde a originalidade e o vigor, não passando de um padrão monótono. Os doutrinadores mais puros serão quanto mais afirmativos mais sinceros. O operário também tem de ser ouvido para fazer valer os seus direitos. Não se deve negar ao estudante a faculdade de opinar, preparando-se para ser no futuro uma consciência ativa. Além dos exercícios espirituais, a Igreja entrou a manifestar-se. O estilo das Encíclicas descontenta os ricos e ela não tem o que dar aos pobres. Assim sua missão é patrocinar os humildes, excomungar o egoísmo, assistir aos perseguidos, impugnar as injustiças, censurar o luxo, que é sempre uma provocação e, sobretudo, vigiar os costumes. Essa ação será útil, se não tumultuar. A essas franquias deve corresponder a disciplina aceita, segredo de organização e eficiência dos povos, sem degenerar em passividade ou indiferença. Como obediência legal e opinião livre. Passou a fase aguda da segurança e restabeleceu-se a integridade constitucional. Consigno um voto de confiança na plenitude democrática. A inteligência tem este compromisso. Não pode ignorar nem pode calar.
A palavra é a mais nobre faculdade do homem, não deve morrer na garganta. HOMENAGEM FINAL O momento era este. Quite com tudo mais, entreguei-me às atividades do espírito, agora com um novo estímulo. Estou feliz. A verdadeira felicidade é o desejo satisfeito. Penetro nesta Casa como quem acha o seu lugar. Aqui não se sente o conflito das gerações. E cada qual guarda a sua independência, liberando-se a inteligência para variações mais fecundas. A Academia não se estagnou. Acolheu adversários de ontem como a prova mais sincera do seu propósito de renovação. Multiplicam-se qualidades enriquecendo o colorido. Ora, que direi mais aos meus confrades? Katherine Mansfield gritou: “Meus ouvidos estão vazios.” Eu estava bem com o meu silêncio, mas já precisava de uma convivência, de sombra e luz, de companheirismo e inspiração. Venho reanimar meus últimos dias. Não seria digno de uma vida longa se não aceitasse, em toda a sua plenitude, o tempo que ainda me sustenta. A bagagem é nenhuma. Trago só o que a experiência não revogou, o que vale por sua continuidade e coerência. Esta sala está cheia de paraibanos. Peço-lhes, meus conterrâneos, que não esqueçam os que vieram antes de mim, com mais direitos: Pereira da Silva, o simbolista que nunca deixou de ser um grande lírico da ternura e da melancolia. José Lins do Rego, que se desmanchou em romances famosos, a ponto de, quando teve de escrever suas memórias, já estar esgotado o segredo da vida, como disse Denis de Rougement, em Les Personnes du Drame: de Byron a Stendhal. Que falta ele está fazendo! Assis Chateaubriand, que continua a dominar os seus espaços com a mesma velocidade. O que ele tem são asas, a base terrena é um pouso do coração. Também não esqueci o patrono de minha primícia romanesca, o Acadêmico Alceu Amoroso Lima. Ele falará com sua força de pensamento e sua sábia tolerância para as minhas convicções. Ficarei a dever-lhe e ao consagrado espírito do Acadêmico Adonias Filho, pela colocação do colar, a palavra e o gesto que me sagram nesta hora. g
Discurso proferido quando de sua posse na ABL, em 28 de junho de 1967, quando foi saudado por Alceu Amoroso Lima. abril/maio/junho/2015 |
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O CENTENÁRIO DE UM BELETRISTA
EPITÁCIO SOARES: A SIMPLICIDADE E A GLÓRIA EM UM CENTENÁRIO Flávio Sátiro Fernandes
A Academia Paraibana de Letras realizou, em maio do corrente ano, uma série de palestras para comemorar o centenário de nascimento de Aluísio Afonso Campos, José Lopes de Andrade e Epitácio Soares, três campinenses, se não de nascimento, como no caso do último, mas apaixonadamente campinenses, como demonstra o relato da vida de cada um. Além do amor a Campina, une-os outra particularidade: eram eles autodidatas, pois, embora haja o primeiro se diplomado em Direito, dedicou-se mais aos estudos de economia, desenvolvidos por si próprio, salvo um ou outro curso de extensão ou especialização, conforme fiz destacar em palestra na APL, dentro daquelas comemorações. Tive a ventura de ingressar na Academia Paraibana de Letras ocupando a Cadeira 21 e sucedendo a um dos mais expressivos vultos do jornalismo paraibano – Epitácio Soares, que aliava à têmpera de jornalista apaixonado o predicado da simplicidade, com que vencia todos os embaraços, desde a difícil infância, a esforçada adolescência, à maturidade plena de realizações no jornalismo, a que se dedicou de corpo e alma. Ao entrar na Academia, coube-me fazer-lhe o elogio, como é da praxe acadêmica, enaltecendo as qualidades pessoais e profissionais do meu antecessor, realçando, sobretudo, o seu pensamento sobre uma variedade de temas por ele abordados em suas crônicas quotidianas no Diário da Borborema, matutino integrante dos Diários Associados, o grande empreendimento de Assis Chateaubriand. Transcorridos quase trinta anos de seu falecimento, em abril de 1988, e ao ensejo das comemorações do centenário de seu nascimento, podemos certificar que aquela figura de homem simples alcançou a glória jornalística, pelo reconhecimento que hoje se faz da obra que construiu ao longo de sua existência e de sua vida profissional, em que foi repórter, editorialista, noticiarista, comentarista diversificado, colunista diário, redator, secretário. Enfim, um fac-tótum. Ao ensejo de seu centenário de nasci-
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mento, reproduzo, aqui, o discurso que pronunciei na Academia Paraibana de Letras, em 18 de maio de 1990, quando fui saudado pelo Acadêmico Wellington Aguiar. Epitácio Soares nasceu ao primeiro dia do ano de 1915, no lugar São Boaventura, hoje, simplesmente, Boaventura, então distrito do Município de Itaporanga, erigido, presentemente, à categoria de cidade, sede do Município de mesmo nome, filho de José Soares de Sousa e Francisca Gomes de Araújo Melo. Seus estudos formais reduziram-se aos primários, feitos de modo incompleto e iniciados em Boaventura, na escola do professor Faustino, velho alto, de compleição forte e olhar penetrante, que inspirava verdadeiro terror à meninada, conforme retrato que dele nos traça seu ex-aluno. A passagem por essa escola duraria, apenas, seis meses. Posteriormente, em Bonito de Santa Fé, continuaria os estudos com os professores Andrelino Timóteo e Lauro Lima. O professor Andrelino Timóteo – revela Epitácio – possuindo maior preparo e sendo muito mais enérgico com os alunos do que o Velho Faustino, tinha melhores modos de tratar com os meninos, e por isso era muito mais estimado das crianças, obtendo destas os melhores rendimentos em todas as aulas, inclusive nas de religião. (“Minha primeira escola”, 15.03.64) Remonta a essa fase uma experiência com o teatro. Conta Epitácio que fez o papel principal de uma peça, encenada em um dia 7 de setembro, para festejar a data da Independência. O espetáculo foi levado a efeito por um grupo organizado por Antônio Pereira, um apaixonado pelo teatro, que residia em Bonito de Santa Fé. Também nessa cidade, Epitácio Soares aprenderia a ajudar missa, com o Monsenhor Frutuoso Rolim, virtuoso vigário da paróquia de São José de Piranhas. Em uma de suas crônicas, no Diário da Borborema, Epitácio confessa, com um tom de modéstia: Devo ao que aprendi em Bonito, com os professores Andrelino Timó-
teo e Lauro Lima, isso que sou até hoje. Um rabiscador de jornais, sem outras ambições mais altas do que a de ser tolerado pelos meus leitores campinenses. (“Bonito”, 30.01.1975) Anos depois, estudaria algumas matérias avulsas (português, história, geografia, matemática) em Patos, com Anésio Leão, Pe. Manuel Otaviano e o reverendo Cláudio Luiz Santiago, pastor protestante. Foi este, aliás, quem o iniciou na leitura dos clássicos. É o próprio Epitácio quem revela: Vivendo no alto sertão até a idade dos dezesseis anos, num ambiente cheio de dificuldades para a leitura, fiz a minha iniciação literária lendo folhetos de cordel. Passei, depois, sem orientação nenhuma, a ler romances policiais. Finalmente, foi um pastor evangélico, com quem estudei algumas matérias avulsas – o professor Cláudio Luiz Santiago – quem abriu para mim os horizontes das belas letras, insinuando-me na leitura dos clássicos. (“O hábito da leitura”, 12.07.85) Depois disso, não podendo, por razões diversas, proceder aos estudos regulares, entrega-se Epitácio Soares a um autodidatismo fecundo e edificante, recebendo lições de vida dadas pela própria vida que passa a levar, inteiramente dedicada ao trabalho. Nas horas de folga, a leitura devotada dos autores maiores. Epitácio Soares foi, também, um combatente armado, alistando-se e tomando parte na revolução paulista de 1932, ao lado das chamadas forças legalistas, no posto de sargento. Após a revolução foi que, voltando à Paraíba, passou a residir em Patos, onde foi Oficial de Justiça e Escrivão de Polícia. A paixão pelas letras o faria caminhar para o jornalismo, logo que passou a residir em Campina Grande, em 1937, como funcionário da antiga Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) que antecedeu o atual DNOCS. Ainda em Patos, escreve os dois primeiros artigos que seriam publicados em A Imprensa, o velho órgão da Arquidiocese da Paraíba, que desempenhou relevante papel
no jornalismo provinciano. Eram ainda – diz Epitácio – tímidas manifestações de uma inteligência despreparada para os embates do jornalismo militante e que tiveram antes que passar pelo crivo da censura do professor Cláudio Luiz Santiago. (“Fiapos de Memória”, Revista Campinense de Cultura). Esse primeiro artigo revela já o tipo de jornalismo que empreenderia ao longo de sua carreira – um jornalismo combatente e reivindicatório, sempre voltado para a defesa dos interesses do homem e da terra nordestinos. O artigo mencionado defendia a criação, em Patos, de um estabelecimento de ensino destinado a pessoas do sexo feminino. A idéia seria logo após aproveitada por Dom João da Mata Amaral que, com a ajuda da sociedade patoense, criou o Colégio Cristo Rei, de tão elevadas tradições naquela cidade. Em Campina Grande, colaborou nos jornais que se editavam à época, na cidade serrana, O Rebate e A Voz da Borborema. Dali enviava, também, artigos para alguns periódicos da Capital, notadamente aquele que tem sido ao longo do tempo uma escola paraibana de jornalismo – A União. A iniciação de Epitácio Soares na imprensa deu-se na convivência com Luiz Gil, Pedro Aragão, Murilo Buarque, Hortêncio Ribeiro, Elísio Nepomuceno, Mauro Luna, Luiz Gomes, Adauto Rocha e Tancredo de Carvalho, figuras do periodismo campinense de então. O valor intelectual, o talento, a capacidade de trabalho, atributos sempre demonstrados por Epitácio Soares, levariam o Poder Público, em diferentes épocas, a requisitar sua contribuição para o exercício de diversos cargos e funções. Foi ele chefe de gabinete dos prefeitos Williams Arruda e Paes de Lima. Assessorou com igual competência os prefeitos Severino Cabral e Newton Rique. Secretariou a Faculdade de Direito da Universidade Regional do Nordeste. Participou Epitácio de um sem número de eventos culturais, não só de âmbito local, como também de repercussão estadual, ao ponto de merecer do Conselho Estadual de Cultura a concessão de uma comenda de Menção honrosa, pelos serviços prestados à Paraíba no campo cultural. Conhecedor dos problemas que cercam o Município brasileiro e, mais do isso, municipalista convicto, manteve durante largo tempo, aos microfones da Rádio Borborema, em Campina Grande, em substituição a Felix Araújo, o bravo jornalista campinense, seu idealizador e fundador, um programa intitulado A VOZ DOS MUNICÍPIOS, de elevados índices de audiência em todo o Estado, através do qual não apenas veiculava
notícias das comunas paraibanas, bem como debatia os variados problemas do municipalismo brasileiro. Realizou, também, em Campina Grande, em 1955, o I Congresso Paraibano de Municípios. Epitácio Soares pertenceu a diferentes instituições culturais. Além de membro desta Academia, integrou a Academia Campinense de Letras, na qualidade de sócio efetivo, a Academia de Letras e Artes de Pernambuco e a Academia Norte-riograndense de Letras, as duas últimas na condição de sócio correspondente. O Acadêmico Aurélio de Albuquerque, de saudosa memória, no discurso com que recebeu Epitácio Soares, quando de sua posse na cadeira 21 desta Casa, faz minuciosa descrição das atividades culturais desenvolvidas pelo recipiendário e dos títulos que em vida lhe foram conferidos. Todos quantos conviveram com Epitácio destacam-lhe as qualidades pessoais: simplicidade, honestidade, sinceridade de propósitos, firmeza de caráter, amor e dedicação ao lar. Um homem de alma nobre, assim o chamaria Aurélio de Albuquerque. Não era dado a farisaísmos ou falsos moralismos, tão encontradiços entre os homens. Não gosto de brincar carnaval – disse ele – mas não censuro quem brinca. Em matéria de religião, Epitácio confessava-se católico apostólico romano. Mostrava-se, contudo, ecumênico, respeitando os demais cultos e religiões. Certa feita, convidado a assistir um culto evangélico aquiesceu em comparecer. Depois, em sua coluna, observaria que, não tendo preconceitos religiosos e sabendo que, embora diferentes, os caminhos que trilhamos conduzem ao mesmo destino, não havia porque não me sentir à vontade naquele ambiente fecundo de paz e fé cristã. (“Atenilde – A Mensageira de Deus”, 06.03.75) Nutria grande amor à família. Casado, em Patos, com D. Maria Minervina de Figueiredo Soares, de quem enviuvou, com ela teve dez filhos. Em uma de suas crônicas, tentando confortar um amigo cuja filha morrera jovem, Epitácio diz entender muito bem a dor que assolava o companheiro, pois já passara mais de uma vez por essa provação. Faleceu Epitácio Soares aos doze dias do mês de abril de 1988, deixando um vazio impreenchível em seu lar, nas rodas de amigos, no jornalismo provinciano, nas instituições de que participou e, sobretudo, em Campina Grande, cuja imagem se confunde com a do filho adotivo, pois, falar em Epitácio é falar em Campina, falar em Campina é lembrar Epitácio. Foi-se juntar à companheira e aos filhos que o antecederam nessa torna viagem para a qual todos nós temos passagem reservada.
HOMEM DE LETRAS A produção literária de Epitácio Soares está, toda ela, esparsa em jornais paraibanos, destacadamente no Diário da Borborema, em que atuou com coluna diária, por cerca de trinta anos. Fora daí uma ou outra palestra ou conferência divulgada em plaquetas ou obras coletivas, além dos discursos acadêmicos, pronunciados nesta Casa, versando sobre as figuras de José Lopes de Andrade e Maximiano Lopes Machado, e na Academia Campinense de Letras, em que abordou a figura inexcedível do Velho Capitão, o jornalista Assis Chateaubriand. Incursionou, igualmente, pela ficção. A Revista Campinense de Cultura publica em um de seus números um conto de autoria de Epitácio, intitulado A vingança do Papavento. Nos discursos acadêmicos, sobremodo no discurso de posse nesta Casa, ao discorrer sobre José Lopes de Andrade, Epitácio Soares revela uma grande capacidade de observação em torno do pensamento alheio, chamando a atenção para uma qualidade marcante na personalidade do sociólogo campinense. Para Epitácio, é fácil vislumbrar em Lopes de Andrade um provinciano, mas um provinciano nacionalista e mesmo universalista, ou seja, um provinciano que, apesar de tal condição, não perdeu, em nenhum instante o contato com os problemas nacionais e universais. Nesse sentido, provincianos de índole nacionalista e universalista, a observação é, ainda, de Epitácio, seriam, igualmente, Gilberto Freyre, em Pernambuco, Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, e José Américo de Almeida, entre nós. Semelhante capacidade de observação demonstra Epitácio Soares no discurso com que ingressou na Academia Campinense de Letras, ao discorrer sobre a figura de Assis Chateaubriand, patrono de sua cadeira, cuja vida está a clamar por um biógrafo capaz de retratar-lhe o espírito gigantesco e sua obra identicamente hercúlea. Chama Epitácio a Chateaubriand de o gênio buliçoso de Umbuzeiro. Gênio, diria eu, pela magistralidade de seu intelecto; buliçoso, di-lo Epitácio Soares, pela dinâmica espiritual que lhe inflamava o coração em todos os empreendimentos dos quais tomava a iniciativa. Em Assis Chateaubriand destaca Epitácio dois aspectos que lhe parecem fundamentais. Um é a sua nunca recusada condição de repórter. Dono de um império jornalístico jamais igualado no Brasil e composto de jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV; jornalista de dimensões internacionais (a revista O CRUZEIRO chegou a ter uma edição em espanhol); articulista abril/maio/junho/2015 |
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diário, na cadeia associada, versando temas de natureza política, econômica, diplomática, jurídica etc., Chateaubriand, observa Epitácio Soares, nunca deixou de qualificar-se como repórter. Nada daquilo que ele foi no campo jornalístico o seduzia mais do que a profissão de repórter. O outro aspecto que Epitácio assinala em Assis Chateaubriand é o caráter excessivamente telúrico de seu espírito. Jornalista, escritor, Senador da República, Embaixador do Brasil junto à Coroa Britânica, Assis Chateaubriand, diz Epitácio, não renuncia jamais ao aconchego do chão doméstico. Era um telúrico, com os pés fincados no massapê do nosso Nordeste calcinado pela seca. Nesses dois discursos acadêmicos, Epitácio revela-se, sem dúvida, um observador arguto das personalidades de Lopes de Andrade e Assis Chateaubriand. Curioso como Epitácio Soares portava em si essas mesmas qualidades que ele detecta em Lopes de Andrade, a quem chama de autodidata e provinciano nacionalista, e em Assis Chateaubriand, em quem enxerga, sobretudo, um repórter e um telúrico. Epitácio Soares foi tudo isso e, com certeza, mais que todos. Ninguém foi mais telúrico do que ele. Apegava-se ao seu sertão e a todas as cidades em que residia. A Bonito de Santa Fé referia-se, evocativamente, como o cenário de uma das melhores quadras de sua vida. A Patos continuaria preso por três motivos que ele revela em seu discurso de posse, na Academia Campinense de Letras. Em Patos eu me casei - diz Epitácio lá nasceram os meus primeiros filhos e lá, também, abriu-se-mea alma para o primeiro artigo com minha assinatura, publicado em letra de forma nas colunas de A IMPRENSA. (Discurso de posse na Academia Campinense de Letras) Campina Grande é, para ele, a cidade feiticeira, à qual dedica um amor em escala ascendente, à medida em que os anos passam. Afinal, são cinquenta anos de feliz união. Itaporanga, no vale do Piancó, município a que pertencia Boaventura até emancipar-se, mereceria dele páginas de saudosas recordações e de manifestações de alegria e confraternização, na passagem de alguns eventos. De Boaventura, a terra natal, jamais se afastou. Não digo em presença física, mas em permanente preocupação e repetidas demonstrações de amor. Prova disso foi a campanha que sustentou em favor da emancipação do pequeno lugarejo. Em defesa de Boaventura, chegou até a censuras e críticas de ordem pessoal, procedimento nunca utilizado em seus escritos. Tudo porque um deputado à Assembléia Legislativa, por
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questões puramente eleitoreiras e pessoais, entravava, a mais não poder, a tramitação do projeto de lei que conferia autonomia a Boaventura. Em prol da causa emancipacionista de seu pequeno burgo, Epitácio chamaria a esse deputado de homem de vistas curtas, a ele referindo-se, ainda, como o taciturno e monossilábico deputado de Itaporanga. Era, assim, Epitácio um telúrico inexcedível, no apego à terra natal, às cidades onde se fixou, ao rincão sertanejo, cujas tradições procurava preservar, cujos interesses sempre defendia, cujas alegrias costumava celebrar. Ele próprio assim se reconhece: Aqui na redação, os companheiros Josusmá Viana e Ademar Martins costumam chamar-me de o homem telúrico, porque sempre estou nos meus comentários a exaltar a pequenina terra do meu nascimento. Sou na verdade um telúrico, preso pelas raízes ao chão onde repousam as cinzas sagradas dos meus ancestrais. Por outro lado, o eterno repórter que ele viu em Assis Chateaubriand era a sua própria imagem, refletida no Velho Capitão. Aliás, em matéria de jornal, Epitácio foi um factótum. No Diário da Borborema ele foi repórter, editorialista, noticiarista, comentarista diversificado, colunista diário, redator, secretário. A propósito, ele mesmo depõe: Na província, o jornalista tem de tocar todos os instrumentos dentro da redação. Exercita-se na literatura, faz a crônica social, escreve sobre o teatro, futebol, treina na revisão e ainda traduz telegramas e redige os tópicos para a coluna de editoriais. Eu mesmo, para citar um exemplo pessoal, já escrevi durante três dias na Rádio Borborema o programa esportivo, sem entender coisa alguma de futebol. É que a equipe do Departamento Esportivo havia viajado a Maceió, a fim de fazer a cobertura de uma partida pelo campeonato nacional de futebol e o programa tinha, de qualquer maneira, de ir para o ar na hora certa, e era eu, na ocasião, o único redator disponível na emissora. (“Falando de jornal”, Revista Campinense de Cultura). Eis o jornalista Epitácio Soares, que foi tudo em jornal e que tudo fez sem abandonar a alma de repórter, a mesma qualidade que ele vislumbrou em Assis Chateaubriand. O PENSAMENTO JORNALÍSTICO DE EPITACIO SOARES Chamo de pensamento jornalístico de Epitácio Soares o conjunto de idéias, de reflexões, de opiniões, de sentimentos até, manifestados pelo autor, através dos diferentes periódicos em que atuou, destacadamente no Diário da Borborema.
Não é fácil dissecar o pensamento jornalístico de Epitácio Soares. Eu diria até que é impossível fazê-lo nos estreitos limites de um discurso acadêmico, tão gigantesca é a sua produção, divulgada em coluna quase diária, naquele jornal, por cerca de trinta anos, além dos outros órgãos em que escreveu. São milhares de artigos, versando os mais variados temas. Epitácio Soares trata do sempiterno problema das secas; preocupa-se com o Nordeste e suas dificuldades; dedica-se às necessidades viárias da região, quer com respeito às rodovias, quer com relação às ferrovias; devota-se, amiudadamente, à defesa dos interesses dos agricultores; defende uma política de crédito agrícola que beneficie o homem do campo; bate-se pela implantação de um programa de irrigação no Nordeste; clama por uma política de preços mínimos, em favor do algodão e do sisal; sustenta a necessidade da extensão rural; fala em defesa da melhoria da educação e do desenvolvimento do ensino; escreve sobre uma infinidade de matérias. O municipalismo foi um dos seus assuntos preferidos. Raro o município paraibano que não tenha sido objeto de um comentário seu, ora defendendo-lhe um anseio, ora confraternizando-se por um melhoramento obtido. Campina Grande esteve sempre presente em sua temática. Escreveu muito em defesa e em louvor da cidade que o acolheu e a que ele chamava de cidade feiticeira. O abastecimento d’água de Campina, a construção de uma nova adutora, a industrialização do município, a criação de um zoo-botânico na cidade, o fortalecimento da Universidade Regional do Nordeste, a vida social, política e esportiva da Rainha da Borborema, tudo isso era matéria permanentemente por ele ventilada em seus artigos e comentários. Até pequenas questões, como o nome de ruas de Campina, mereciam os seus cuidados. Certa vez, criticando a mudança que se faz, comumente, no nome das vias públicas, rememora os nomes poéticos e populares de alguns logradouros campinenses: Rua do Emboca, Rua das Boninas, Rua da Pororoca, Rua do Esfola Bode. Em sua coluna, Epitácio Soares comenta, analisa, critica, divulga, saúda, parabeniza, opina, aplaude, manifesta-se pró ou contra, enfim, revela o seu pensamento, as suas idéias, as suas emoções. Sobre o jornalismo, sua atividade de longos anos, entende ser uma escola de humildade e a mais impessoal de todas as profissões. A não ser as colunas assinadas - observa - tudo mais que o jornal publica traz a marca da impessoalidade de quem escreve. Preocupava-se Epitácio com a pouca lei-
tura desenvolvida pelos nossos estudantes, que saem das Universidades incapazes de redigir um texto, por menor que seja. Os alunos terminam o curso chamado de segundo grau e entram para a Universidade sem saber escrever. Formam-se, adquirem depois de quatro ou cinco anos de estudos superiores um diploma, mas continuam mesmo assim sofrendo a angústia de não saberem dar o seu recado por escrito. O estudante, em geral, não lê outros livros a não ser os do currículo escolar, e isto mesmo apenas para entender os pontos suficientes para passar na prova. (“De onde vem o erro”, 11.01.75) Para ele o erro está em voltarem-se as escolas somente para o ensino dos conteúdos, sem se preocuparem em ensinar os alunos a escrever. O ensino da tecnologia - esclarece não implica que os jovens estudantes não se capacitem também para o exercício da palavra escrita. Quem exerce o magistério superior sabe muito bem como são procedentes e atualíssimas as palavras de Epitácio Soares. O analfabetismo participa, igualmente, de suas cogitações e sobre ele emite opinião avançada. Em sua lúcida visão do problema, não é por falta de professores que temos no Brasil um número tão elevado de analfabetos. Se quisermos de fato acabar com o analfabetismo - opina o colunista - extinguindo de uma vez por todas essa mancha nacional, que tanto nos envergonha nos cotejos com os demais povos do orbe civilizado, devemos primeiramente criar melhores condições de vida para o povo, que, desta maneira, poderá prescindir da colaboração da criança no trabalho diuturno, a fim de que esta possa freqüentar a escola com maior assiduidade, instruindo-se e educando-se para o futuro. (“A propósito de ensino”, 06.02. 58) Ainda em matéria de ensino, bate-se por uma reforma no setor, na qual se incluísse entre outras disciplinas o ensino da geografia e história dos municípios. Somente assim - deduz Epitácio - as crianças não cresceriam e não se tornariam homens ignorando as menores particularidades de sua própria casa, enquanto conhecem nos mínimos detalhes até os segredos de alcova da casa do vizinho. (“Ensino de história e ‘geografia municipal”, 23.03.58) Sem que tivesse já alcançado os grandes e tristes números de hoje, a violência alimentava suas inquietações. A propósito ele observaria que tudo é tão triste e tão feio, os homens estão se tornando cada vez mais tão embrutecidos, que não nos sentimos anima-
dos a comentar os seus feitos, ainda quando esses retratam lances de heroísmo ou páginas de santidade. Uma profunda nostalgia - queixa-se Epitácio - domina o espírito do cronista, diante desse espetáculo melancólico das guerras fratricidas, banhando de sangue humano países e continentes. (“Triste sinfonia de um mundo angustiado”, 20.04.61) Anos depois, com a violência a atingir índices assustadores, volta a considerar a questão. É preciso - diz ele - desenvolver-se uma intensa e bem planejada campanha de reeducação do homem, no sentido de sua humanização, dando-lhe um verdadeiro ensinamento cristão. Não será com processos violentos que teremos de combater a violência desencadeada no mundo. Mas teremos que combatê-la. Não é mais possível continuarmos assistindo de braços cruzados a tantos crimes contra a pessoa humana, sem que sejam punidos os seus autores. (“O grave fenômeno da violência”, 18.07.85) Inúmeros são os artigos em que Epitácio aborda o problema das secas, ora noticiando a falta de chuvas na época própria, ora clamando por providências para minorar o sofrimento dos sertanejos, ora, ainda, sugerindo soluções e alvitrando medidas reputadas, por ele, indispensáveis à convivência com o flagelo. Insurgia-se contra as ajudas de cunho assistencialista ou caritativo, vindas de outras regiões. Somos um povo válido - bradava do alto de sua coluna - e temos sobretudo vergonha de sermos tratados como mendigos, recebendo esmolas que nos mandam na hora dramática dos grandes cataclismos os nossos afortunados irmãos do sul. (“Situação calamitosa”, 13.02.58) Certa feita, tratou o problema das secas com fina ironia. Depois de enfatizar que, enquanto nos Estados Unidos e mesmo em países da África, a baixa escala pluviométrica tem ocasionado medidas eficazes de combate a seus efeitos, observa o comentarista que, no Brasil, as secas do Nordeste não passam de uma fonte de Castália, onde escritores e poetas vêm beber a água de suas líricas inspirações. Somos, não resta dúvida - nota Epitácio - um país de românticos. O progresso técnico e científico do mundo pouco tem influído para modificar a nossa psiquê romântica. Com uma formação e uma sensibilidade assim, é preciso que as secas continuem a vida inteira a castigar o Nordeste, para que não desapareça jamais esse motivo de superior encanto para os nossos escritores, o que em síntese representaria uma crise em nossa literatura, e
isso seria uma calamidade. (“Literatura e ação”, 17.01.58) Aliás, ele próprio não conseguiria fugir a isso. Em uma crônica intitulada Céu limpo, escreveria, em tom literário: De olhos erguidos para o alto, o nordestino não procura apenas divisar na amplidão azul do infinito a nuvem salvadora, porque naquele seu gesto assaz comum, há também uma súplica, um pedido ao Deus de sua crença, cuja religião ele adotou desde o seu nascimento, para que se apiede de sua sorte. A pastagem dos roçados acabou-se. Os mananciais, que lhe forneciam o líquido precioso para matar a sua sede e a sede do seu rebanho, já se exauriram. Somente a chuva caída do céu em forma de graça poderá salvá-lo da catástrofe. (10.01.58) A problemática rural o preocupava, sobremodo. Conhecedor a fundo dos problemas que afligem a agricultura e o agricultor, não hesitava em apontar soluções e sugerir providências capazes de minorar as dificuldades do setor primário e dos que dele cuidam. O agricultor brasileiro - lamentava o colunista - sem assistência técnica, sem crédito e, sobretudo, tendo o seu produto desvalorizado no mercado comprador, é a maior vítima deste país, porque, sendo o pedestal de sua economia, é, entretanto, a mais abandonada de todas as criaturas humanas. (“O agricultor, a maior vítima”, 15.01.58) Por várias vezes, tratou da questão do crédito agrícola, cuja falta constituía uma das causas da queda da produção e cuja obtenção se tornava difícil pelas exigências de ordem burocrática que o agricultor era obrigado a enfrentar. A propósito, diria ele: O pequeno produtor quando se dirige a qualquer banco oficial, objetivando uma operação de crédito para promover o desenvolvimento de sua agricultura, depara-se com tantas formalidades burocráticas, e com tantos óbices de outra natureza, que termina desistindo da pretensão. (“Crédito ao pequeno agricultor 29.10.59) Um dia, acusou o Banco do Nordeste do Brasil de fugir às suas finalidades, denunciando: O Banco do Nordeste não obstante a sua condição de banco de desenvolvimento econômico, não vem correspondendo às esperanças que nele depositaram os agricultores nordestinos, transformado que está num estabelecimento mercantil como outro qualquer banco particular. (“Crédito e produção”, 10.04.59) A irrigação é vista como o remédio para a recuperação das terras do Nordeste. abril/maio/junho/2015 |
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Temos sustentado - são palavras de Epitácio - que somente com um intenso trabalho de irrigação é possível recuperar-se as terras semi-áridas do Nordeste, fazendo-as produzir em abundância e por processos racionais as mais variadas lavouras que poderão ser cultivadas na região.(“Irrigação” 14.02.58) Já o problema da açudagem era por ele tratado sob uma perspectiva sócio-econômica, proclamando que os grandes açudes, tão duramente combatidos por alguns estudiosos dos nossos problemas, padecem, apenas, no nosso modo de entender a questão, do mal de não estarem ainda cumprindo a finalidade sócio-econômica para que foram construídos. No dia em que forem abertos os canais de irrigação e instaladas as centrais hidroelétricas em todos esses imensos reservatórios de massa líquida - prossegue Epitácio - acreditamos que se tenha alcançado um dos principais objetivos da política de desenvolvimento do Nordeste. (“Seja bem-vindo, Coronel”, 04.04.61) Não descurou-se do problema fundiário. A propósito da magna questão, asseverava que ninguém que tenha a mais rudimentar noção dos problemas econômicos do Brasil ousará discutir contra a necessidade de uma reforma de base em nossa estrutura agrária. (“Reforma agrária”, 01.04.59) A finalidade social da propriedade rural era-lhe presente e sobre isso diria: A distribuição das terras é um imperativo do desenvolvimento econômico e social da nação. Elas têm que produzir socialmente para a comunidade. Não é compreensível nem justo que enquanto milhões de brasileiros vivem uma vida de párias, sem ter o que comer, por carência agrícola, grandes áreas de terra permaneçam improdutivas para o regalo de meia dúzia de latifundiários. (“Novamente a reforma agrária”, 25.04.59) O pensamento político de Epitácio Soares emerge em alguns de seus escritos. Em tal matéria, proclamaria: Regime ideal
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mesmo é a democracia. Nele identificamos a imagem da liberdade, ideal perseguido pelo homem em todos os tempos e em todas as partes do mundo. Tinha porém, Epitácio, consciência da maneira equivocada como se pratica a democracia, entre nós, observando: Falta, ainda, ao brasileiro uma concepção ideológica do regime democrático, ou seja, de adaptação de democracia aos nossos problemas fundamentais. Se analisarmos dentro de um critério de rigorosa honestidade o comportamento político das multidões no Brasil, verificaremos que estas não se agitam em torno de princípios nem debatem problemas, porém se digladiam e se enfurecem algumas vezes no ardor de paixões incontidas por um homem que pode ser o melhor dos cidadãos, o mais puro de todos os representantes da espécie, mas que não possui a sensibilidade da verdadeira situação brasileira, sendo na maioria dos casos um político superado por sua falta de identificação com as questões do nosso tempo, incapaz, por isso mesmo, de agir politicamente em função desses problemas, uma vez que os desconhece completamente, não estando destarte preparado, suficientemente, para enfrentá-los. (“Beleza de democracia”, 25.02.1958) A problemática administrativa mereceu de sua parte variadas considerações, notadamente no que tange à administração municipal. Não obstante, tratou da matéria, também, em termos gerais, condenando a centralização e a burocracia. A primeira constitui, segundo entende, um dos grandes males que assolam o país. Descentralização - doutrinaria Epitácio - não quer dizer que o Presidente da República ou o Governador transfiram, integralmente, as atribuições de dirigir e comandar a máquina administrativa do Estado aos seus delegados e prepostos. Porém que lhe dê mais autonomia, libertando-os dos entraves da burocracia estatal que é outro grande escolho em que
tropeçam as mais das vezes os próprios empreendimentos do governo. («Administração descentralizada», 09.02.58) Como eu disse, no início destas considerações, acerca do pensamento jornalístico de Epitácio Soares, é impossível dissecá-lo em um discurso acadêmico. Aqui procedo a uma simples amostragem do que ele pensava sobre diferentes e palpitantes problemas. Para tanto, compulsei alguns volumes da coleção do Diário da Borborema e repassei os seus artigos publicados nos primeiros anos de sua atuação naquele jornal, outros mais, escolhidos nos anos intermediários e, por fim, os que marcaram os últimos momentos de sua presença no citado matutino. Pude notar que, nestes, Epitácio já não versava sobre aquelas matérias que ao longo de sua carreira jornalística o preocuparam. As derradeiras contribuições de Epitácio Soares evocam figuras amigas que desapareceram do convívio dos vivos e a quem ele dá o último adeus. Alternativamente, comenta livros, de lançamento recente, lembra fatos, festeja datas. Talvez a saúde não mais o permitisse entregar-se a pesquisas ou a leituras mais profundas que o ajudassem a debater os problemas que constituiam, outrora, suas inquietações. Ou, quem sabe, o desalento, o desencanto haja tomado conta de seu espírito idealista, ao ver que, depois de tantos anos, o agricultor continua sem crédito, os efeitos calamitosos das secas jamais foram contidos, a política de açudagem não teve, até hoje, aquela perspectiva com que ele sonhou, a reforma agrária não se fez, os municípios se mantêm dependentes do poder central, a nossa democracia persiste aquela planta tenra, passível de ser esmagada pelos coturnos vorazes de uma ditadura qualquer. Valeu, porém, a sua luta, mormente pelo exemplo que deixou à mocidade e aos que fazem o jornalismo provinciano, como modelo de combatente obstinado, em defesa da terra, dos seus irmãos sertanejos, das aspirações nordestinas, dos ideais de brasilidade. Muito obrigado. g
JORNALISMO CULTURAL
ALVA E IDEIA: DUAS REVISTAS E UM PASSADO PARA A VIDA LITERÁRIA PARAIBANA DO SÉCULO XIX (*) Socorro de Fátima Pacífico Vilar
RESUMO: Com o objetivo de tornar visíveis as práticas literárias e culturais paraibanas do século XIX, buscamos, neste ensaio, discutir o conteúdo das revistas Alva: Jornal Literário(1850) e A Idéia: Revista Crítica Noticiosa e Literária (1879), a partir da perspectiva do que era uma revista literária à época no Brasil, na tentativa de reconduzi-las ao seu presente da elaboração, de modo que sua leitura seja inteligível em relação ao que foram no passado. Trata-se de duas revistas que embora tenham sido muito referidas pelos historiadores, têm conteúdo inédito como fonte para a história da literatura paraibana, uma vez que estes o julgavam de pouco valor literário. Indo de encontro a esta posição, este ensaio mostra como seus textos são os fundadores da prosa de ficção paraibana. ABSTRACT: With the objective of turning visible the literary and cultural practices of Paraíba in XIX century, we look into this essay the content of the magazines Alva: jornal literário (1850) e A Idéia: revista crítica, noticiosa e literária (1879). We start from the perspective of what was a literary review to the time in Brazil, in the attempt of leading them to present of its elaboration, so that the reading is intelligible in relation to the what they were in the past. In spite of being a lot referred to the historians, her content is unpublished as source for the history of Paraíba´s literature, once these judged them of little lirerary value. Against this position, this essay shows as their texts are the founders of 19 century Paraíba prose. PALAVRAS-CHAVE: Revistas literárias – Literatura paraibana – História cultural do século XIX KEYWORDS: Literary reviews – Paraíba Literature – 19 Century Cultural History Dos nobres propósitos das revistas literárias
Vários historiadores paraibanos seja do jornalismo, seja da literatura, têm chamado a atenção para a existência das revistas literárias Alva e Idéia. Sempre referidas essas revistas, no entanto, pouco foram lidas – no sentido amplo do termo – e avaliadas a partir de uma perspectiva do fazer literário do século XIX. Em geral, quando se reportam a estes periódicos literários, os historiadores apenas indicam os dados de caráter mais geral, tais como os editores e a data de surgimento, como o faz Eduardo Martins, em relação à revista Alva (1976). Seguindo essas pistas, descobrimos nos arquivos da Biblioteca Nacional os microfilmes com os exemplares, o que nos dá a possibilidade de uma leitura mais atenta do seu conteúdo.1 Na verdade, existe o senso comum de que os periódicos pouco ou nada contribuíram com a vida literária da província, no século XIX, tanto pela falta de profissionalismo dos jornalistas, como pela pouca qualidade dessas revistas. Tomemos como ilustração o verbete “Revistas literárias”, do Dicionário literário da Paraíba que, por ser muito longo, peço licença para citar: “Documentário de diversas épocas e, por vezes, do pensamento que as caracterizava, contorno suave da vida da comunidade, colunismo, comentários vagos que beiravam às vezes a obscuridade, opinião expressa de figuras nem sempre questionadoras, porém empenhadas num pensamento lógico, num juízo coerente: são estas as principais características das revistas lit., [sic] tipo de publicação inaugurada, na PB, com a Alva, editada em 1850, e da qual só existem registros esparsos de uma coleção extraviada. Essas publicações efêmeras, consideradas como “revistas literárias”, mais por uma conveniência metodológica do que pelo noticiário puro e simples até o comentário opinativo, do colunismo social até a reportagem interpre-
tativa recheada de citações e bem ilustrada. Nessas revistas [...] os numerosos colaboradores manifestam uma proposta mais amadorística que profissional do fazer literário. Assim, não há aquela preocupação estética, nem há a lapidação da arte lit. tão própria a publicações do gênero”.2 Alguns fatores contribuem para nortear tal concepção. Entre eles, uma noção de literário e de jornalismo próprios de fins do século XX, em que naquele se valorizava a qualidade estética e neste o engajamento político. Além disso, tome-se a pouca valorização da revista em si como fonte para a história da literatura. A disseminação desse tipo de discurso contribuiu de certa forma para “apagar” parte da vida cultural paraibana, que à época, circulava prioritariamente pelas páginas dos pequenos periódicos e revistas. Na Paraíba,3 ocorreu o mesmo processo da Corte e de outras províncias, onde os periódicos também surgiam e sumiam regularmente. Nem por isso deixaram de ser determinantes na consolidação da prosa de ficção brasileira e paraibana. Indo de encontro a essa concepção, analisaremos as duas revistas paraibanas do século XIX: Alva: Jornal Literário e A Idéia: Revista Crítica Noticiosa e Literária, a partir da perspectiva do que era uma revista literária à época no Brasil, na tentativa de reconduzi-las ao seu presente, de modo que sua leitura seja inteligível em relação ao que foram no passado. Dessa forma, o primeiro aspecto a ser considerado diz respeito ao fato de que essas revistas em nada destoam daquelas publicadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entre os títulos, temos O Amigo das Letras, de São Paulo e vários do Rio de Janeiro, como O Cronista, O Jornal de Debates e o Gabinete de Leitura: serões das famílias brasileiras, jornal para todas as classes, sexos e idades.4 Na revista A Idéia, a
Trata-se do Projeto Jornais e folhetins literários da Paraíba do século XIX, com financiamento do CNPQ. SANTOS, Idelet Muzart Fonseca dos. Dicionário literário da Paraíba. João Pessoa: A União, 1994, p. 180. 3 Discuto esse assunto no texto “Livros e Leitores nos jornais paraibanos: uma história de leituras”. CD dos Anais da XXI Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos. João Pessoa: Idéia, 2006, p. 2769-2777. 1 2
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referência aos periódicos da Corte se dá através do processo de “extração” de algumas matérias, prática bastante comum à época, o que demonstra tanto a leitura, como um padrão de escrita a ser seguido.5 Alva. Jornal Literário apareceu em janeiro de 1850. Como era usual a muitos jornais, ela tinha uma epígrafe de (Louis) Bonald, “A Literatura é a expressão da Sociedade”, hoje amplamente divulgada em sites da internet. Eram redatores os acadêmicos João da Costa Ribeiro, José Carlos da Costa Ribeiro, Olinto José Meira, Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, Adelino Antonio de Luna Freire e Salvador Henrique de Albuquerque.6 A revista Alva foi impressa na tipografia de José Rodrigues da Costa, aquele que foi o mais importante tipógrafo da Paraíba no século XIX, cujo nome e importância ainda estão por se fazer.7 O primeiro passo da revista literária foi o de romper com as 4 páginas comuns aos periódicos da época, onde se espremiam as informações oficiais, partidárias ou noticiosas dos periódicos. Publicação mensal, contendo cada número de 12 a 20 páginas, sua assinatura custava 2$000 Rs, por semestre. A informação do número de páginas na contracapa da revista tem como objetivo atrair os leitores, pois, como afirma Barbosa Lima Sobrinho, para que o “conto aparecesse foi preciso que o periódico se desenvolvesse, até interessar leitores novos, preocupados com o domínio das letras, ou que se tornasse bastante próspero, para ganhar algumas novas páginas de texto, ou aumentar o formato inicial”.8 Outro dado interessante diz respeito ao fato de que as páginas dessas revistas eram numeradas numa seqüência que previa sua encadernação no futuro e a transformação em um livro. Depois de O Tapuia e o Investigador, a Alva representou a terceira tentativa de se ter uma publicação literária na província paraibana. Apesar do empenho demonstrado pelos seus editores, a revista Alva durou
apenas (ou só restaram?) seis números, que, embora poucos, são suficientes para restaurar parte da história das práticas de escrita e de leitura daquele tempo. Seguindo um padrão nacional, seu conteúdo se dividia em romances9, bosquejo histórico, poesia e biografia de autores nacionais, além de um ensaio opinativo. Na revista, também não poderia faltar a anedota, célula da qual surgiria, segundo Barbosa Lima Sobrinho, o conto brasileiro. Este modelo de revista literária vem de tempos anteriores, como ilustra o número inicial do Amigo das letras, periódico paulista, surgido em 1 de abril de 1830. Para seus editores, “os artigos que encherão as páginas do jornal” são aqueles que contribuem para “o desenvolvimento dos eternos e sagrados princípios das sociedades: filosofia prática, descrições históricas, alegorias, cartas, discursos oratórios, diálogos filosóficos, caracteres políticos, literários e morais, além destes, máximas e anedotas escolhidas”.10 Ao se aproximar deste padrão, a revista Alva forjou o seu conceito de revista de literatura em conformidade àquelas revistas literárias que circulavam no Brasil da época. Conforme discutiremos adiante, foi na seção literária que esses “jovens intelectuais” paraibanos ensaiaram pioneiramente a prosa de ficção paraibana. A Idéia: Revista Crítica Noticiosa e Literária surgiu no dia 05 de outubro de 1879. Publicação Quinzenal, tinha 12 páginas e era impressa na própria tipografia do jornal, que, como contam seus editores: “De acordo com as nossas pretensões, montamos uma pequena oficina, que pela exiguidade de seu material não se pode atualmente (ileg.) um jornal de maiores dimensões”.11 Provavelmente, a precariedade da oficina foi a responsável pelo grande número de “erros” tipográficos, corrigidos a tempo, na mesma edição em uma errata. Assim como a revista Alva, A Idéia não prescindiu de uma epígrafe: “Deixemos aos sábios de momento, aos
sacerdotes das cifras, a estes pretendidos espíritos positivos, sempre tomados pelo sucesso em flagrante delito de mistificação, a pueril satisfação de erguerem o ombro, com o sorriso nos lábios, à aparição, mostrando-a com o dedo: Mais uma utopia!”12 Em certo sentido, os propósitos dos jovens editores paraibanos não diferem daqueles dos que escreveram – e Machado de Assis pode ter sido o autor – a apresentação de O Espelho, revista de literatura, modas, indústria e artes, em 04 de setembro de 1859: [...] torná-la variada, mas de uma variedade que deleite e instrua, que moralize e sirva de recreio quer nos salões do rico como no tugúrio do pobre. Para esse fim temos em vista a publicação dos romances originais ou traduzidos, que nos parecem mais dignos de ser publicados, artigos sobre literatura, indústria e artes, e tudo quando possa interessar ao nosso público e especialmente ao belo sexo.13 A revista Ideia, por sua vez, era assim composta: a primeira página era constituída de um ensaio opinativo, seguido das seções literária, noticiosa e científica. Nela, ao contrário da revista Alva, onde predominaram os “romances”, destacam-se os folhetins – “esse espaço deliberadamente frívolo que constitui a matéria e modo da crônica brasileira”.14 Às primeiras revistas e produções literárias paraibanas também podemos aplicar o mesmo critério de Barbosa Lima Sobrinho em relação àquelas manifestações nacionais publicadas em periódicos paulistas e cariocas, tais como A Astrea, O Cronista, O Gabinete de Leitura, etc. Trata-se de pensar esses textos sem subordiná-los a “critério ou preocupações de valores literários”.15 Afinal, como bem observa o historiador, ao público da época não eram dadas outras produções mais complexas e com melhor tratamento literário, como aquelas que foram escritas posteriormente. Outra questão fundamental é não julgar “menor”
Todos os jornais aqui citados foram pesquisados na íntegra. Alva: Jornal Literário; A Idéia: revista crítica noticiosa e literária; O Amigo das Letras; O Cronista; O Jornal de Debates; Gabinete de Leitura: serões das famílias brasileiras, jornal para todas as classes, sexos e idades; O Conservador; O Reformista. 5 Em um anúncio da Livraria Econômica, de Manoel Ezequiel Pompeu d’Oliveira, publicado em A Idéia, de 05 de outubro de 1879, tomamos conhecimento de que a livraria recebe assinaturas de diversos jornais e outras publicações em fascículos como sejam: Moda Ilustrada, Novo Mundo, Arte, Revista Industrial, Dois mundos, Revista Brasileira. Além disso, a revista extrai da Revista Brasileira, um artigo de “Dr. Joaquim Teixeira de Macedo”, a propósito de “Pestalozzi e a Educação humana”. 6 Cf. MARTINS, Eduardo. Primeiro jornal paraibano: apontamentos históricos. João Pessoa: A União, 1976, p. 76-77. 7 Da sua tipografia e máquinas surgiram vários jornais paraibanos, mesmo depois de sua morte, que ocorreu em 8 de novembro de 1866. Além dos jornais – e foram vários – suas oficinas foram responsáveis pela publicação desde cartilhas de ABC a vários livros. O jornal O Reformista de 12 de junho de 1850 traz uma crítica de um livro, Discurso, de Afonso Almeida de Albuquerque, que teria sido publicado em sua tipografia. 8 Cf. LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 7. 9 Por romance ou novela, no contexto da década de 50 do dezenove, considere-se “prosa de ficção”, escrita em textos curtos que atualmente seriam considerados como conto. Cf SERRA, Cristina. Antologia do romance-folhetim. Brasília: Ed. da UNB, 1997; e ABREU, Márcia. Letras, belas-letras, boas letras. In: BOLOGNINI, Carmen Zink. (Org.). História da literatura: o discurso fundador. Campinas; São Paulo: Mercado Aberto, ALB; Fapesp, 2003. p. 11-69. 10 AMIGO das letras, 1o de abril de 1830, p. 1. 11 A IDÉIA: Revista Crítica Noticiosa e Literária, 05 de out. de 1879, p. 3. 12 Ibid., p. 3. 13 O Espelho, revista de literatura, modas, indústria e artes, 04 de set. de 1859, p. 1. 14 Cf: MEYER, Marlyse. Volatéis e versáteis: de variedades e folhetins se fez a chronica. In: _ 15 Ibid._____. As mil faces de um herói-canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998, p. 20. 4
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o que foi próprio a uma época porque se trata de obra romântica, como sugerem alguns historiadores.16 Um exemplo do que pensavam e da concepção que tinham acerca da literatura e da imprensa no século XIX, verifica-se no programa das duas revistas. É preciso que se afirme de antemão que nesta época o termo literatura ainda não estava sedimentado tal qual o concebemos atualmente. Segundo Márcia Abreu,17 sua autonomização só se dará no outro século, haja vista serem “tão tênues as fronteiras entre as áreas” que a definem, pois literatura era conhecimento. Esse é o sentido registrado no Dicionário da Língua Portuguesa, de Antonio de Moraes Silva, na edição de 1831: “literatura: erudição, ciência, notícia das boas letras, humanidades. Homem de grande literatura”. Apenas a partir de 1878, o autor define a palavra literatura numa concepção mais aproximada da contemporânea.18 Na apresentação da revista Alva, que poderíamos classificar de comovente pelo engajamento dos seus editores, observa-se a importância da imprensa para a ilustração e civilização dos seus leitores,19 indo ao encontro de uma concepção corrente à época, principalmente entre os jovens escritores. Ao introduzir mais uma publicação literária na Paraíba, o redator vai construindo de certa forma um mapa da circulação da cultura. Na época, o jornalismo literário era “o meio mais profícuo”, o que melhor traduzia a missão para a qual tinha nascido a imprensa: [...] oferecer em beneficio da instrução e moralidade do povo, pois que é ele o mais fácil de por ao alcance de todos uma variedade de conhecimentos que aliás a poucos chegaria – o jornalismo literário, representante do caráter, das idéias, do estado, de um país, e indicador dos passos dados na carreira do Progresso, tem-se tornado elemento indispensável da civilização.20
Entre as causas dos fracassos anteriores, segundo o editor, não pode ser incluí-
da a falta de “inteligências” que levassem a cabo a nobre missão da folha. Assim, o que parece ser o motivo maior de não vingar na Paraíba uma revista que viesse tirar do obscurantismo parte de sua população, era o que chamou “indiferentismo arraigado da província”, contra o qual a fundação de um periódico ganhava estatutos de peleja, como revelam as comoventes palavras do editor: Tristes são certamente algumas circunstâncias, cujo peso é necessário confortar, e não longo e aturado esforço empregar em combater. O que, porém nos dói fundo, e tem sido a causa principal de muitos de nossos atrasos, já não são elas – inda mal: é esse fatal indiferentismo tão gélido e tão arraigado, o qual infelizmente se estende a muitos respeitos, e parece enfim, como se fosse desta infeliz província, pesar em tudo que podia tender a sua prosperidade.21 Nessa batalha entre luz e trevas, surge a figura do editor e dos redatores, paladinos “poucos e fracos, mas levados do amor do estudo, e instigados pelo desejo de ver melhorada um dia a sorte de nossa terra, e desobstruindo o caminho que deve levá-la ao templo da civilização”.22 É neste contexto que deve ser lida a epígrafe da revista Idéia, quando seus editores a tomaram como “mais uma utopia”. Dessa forma, era de responsabilidade do jornal – esse suporte a que um grande número de pessoas tinha acesso e não demandava apenas a leitura solitária e silenciosa – “despertar o gosto pela leitura, adormecido sob a influência de hábitos maus, que a ociosidade alimenta”.23 As preocupações dos redatores paraibanos traduzem uma concepção que teve origem na Europa e que se “caracteriza pela valorização do povo e pela formação e ascensão de novas classes, que se não compõem apenas com os círculos limitados da nobreza e da alta burocracia, mas abrangem a burguesia e as novas classes”.24 No programa da revista Idéia, temos em linhas gerais o mesmo perfil da Alva. Os editores se definem como jovens com o
propósito de “combater o erro, profligar os costumes antagonistas da civilização, para descobrir a verdade que assinala o progresso, para garantir a todos a liberdade, único destino do homem antes remontar-se (sic) à pátria da imortalidade”.25 Na explicação de cada uma das seções do jornal aparecem as concepções que tinham de política e literatura, principalmente. Com relação à primeira, esta revista irá se diferenciar da abordagem comum, segundo a qual concebe-se a política, “como cousa mesquinha e individual que por aí rasteja, uma das mais livres e belas instituições vivendo de sórdidos interesses”.26 Para aqueles jovens utópicos, a política “é a vida de uma nação, do antagonismo dos partidos e da inviolabilidade das urnas surge a luz, nascem as verdadeiras instituições da liberdade, garantindo o pensamento livre na imprensa e na tribuna”.27 Sobre a literatura, observamos em Alva a mesma concepção abrangente que norteou os primeiros românticos. Trata-se da noção segundo a qual a literatura representa uma etapa do “progresso da humanidade”. Relacionada ao conhecimento e ao patrimônio cultural de uma nação, para muitos, ela foi suficiente para “fazer a glória de um povo”. Traduzindo esse conceito amplo que era o de Literatura à época, os editores concluem: Quer ela se enrede nas peripécias do drama e do romance, que se cadencie na melodia do verso e na harmonia do ritmo, quer sentada sob um monte de ruínas narre através dos tempos a história das gerações, quer se perca na contemplação estática das maravilhas da natureza, quer (ileg.) a terra nas asas cândidas da poesia para consolar o coração do homem, quer arrebate o seu espírito nos (ileg.) da metafísica a alturas infinitas, ela é sempre um degrau do progresso.28 Ao descrever a origem da revista, observamos uma prática bastante usual de criação de periódicos durante o século XIX: um grupo de jovens se reúne, em nome do pro-
Assim refere-se o historiador Gemy Cândido aos escritores do século XIX paraibano: “Uma multidão de poetas, alguns com livros publicados e outros que circulam nos periódicos de pequena duração, assimila uma espécie de ecletismo poemático que inclui todos os clichês do arcadismo, do romantismo, do realismo e do realismo e do parnasianismo, dominados por uma imitação subalterna e servil, de reprodução mimética, de pura cópia”. Cf. CÂNDIDO, Gemy. História crítica da literatura paraibana. João Pessoa: SEC, 1984, p. 41. 17 Cf. ABREU, Márcia. Letras, Belas Letras, Boas Letras. In: BOLOGNINI, Carmem. (Org.). História da literatura: o discurso fundador. Campinas; São Paulo: Mercado de Letras; Fapesp, 2003, p. 29. 18 A pesquisa que temos desenvolvido em jornais do século XIX torna mais visível a longa duração que o termo literatura exigiu para sedimentar o que hoje tomamos como tal. 19 Uma bela história da imprensa, ou das representações e imagens que jornalistas tinham dela, pode ser feita com esses programas, como eram chamados à época, ou “editoriais” como os chamamos atualmente, que constam de todos os periódicos do século, sejam os pequenos, sejam os mais importantes. 20 ALVA – Jornal literário, jan. de 1850, n. 1, p. 1. 21 Ibid., p. 2. 22 Ibid. 23 ALVA – Jornal literário, jan. de 1850, n. 1, p. 2. 24 Cf. LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 6. 25 A IDÉIA: Revista Crítica Noticiosa e Literária, 26 de nov. de 1879, n. 1, p. 4. 26 Ibid., p. 2 27 Ibid. 28 A IDÉIA: Revista Crítica Noticiosa e Literária, 26 de nov. de 1879, n. 1, p. 2. 16
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gresso e da divulgação do saber, e propõe a criação de um jornal ou revista. Alguns utilizaram tipografias de outros periódicos, outros, no entanto, montam sua própria tipografia. Os desconhecidos editores e escritores das revistas literárias Antes de a crônica e o conto se consolidarem como gêneros peculiares aos periódicos, este espaço, que nos jornais tinha por nome folhetim, variedade ou miscelâneas, abrigou toda a sorte de textos ou como quer Marlyse Meyer, “cães vadios, livres farejadores do cotidiano”.29 Entre estes, muitos eram cães sem dono, sem nome e sem pedigree. Sacramento Blake, em 1895, na introdução do terceiro volume do seu dicionário reclama: [...] e no estudo penosíssimo a que me tenho dado, que imensidade de trabalhos possuo de autores, brasileiros, que não posso contemplar no meu livro, porque esses trabalhos são publicados sob o anônimo, ou são assinados por pseudônimos, ou somente pelos apelidos ou por um título de autor?30 Da revista Idéia, nada se sabe acerca do nome dos seus redatores, a não ser, como é explicitado no programa do primeiro número da revista, que se trata de um grupo de jovens idealistas, imbuídos do desejo de contribuir para o “progresso” da província. Na verdade, esse compromisso da imprensa do dezenove com a instrução se estende também à luta pela educação do “belo sexo”, epíteto com o qual se designavam as mulheres.31 Porém, se não sabemos os seus nomes, podemos delinear os seus perfis. Assim, não há nada mais enfático na comprovação de que nem toda juventude letrada paraibana defendia os valores da “aristocracia patriarcal”, do que o editorial de 13 de dezembro de 1879, em que os jovens editores faziam duras críticas ao papel da mulher na sociedade paraibana: “Não é unicamente um erro o condenar-se a mulher a um papel medíocre na vida social e supô-la incapaz de ser participante de todos os interesses que se agitam além do lar doméstico de todos os resultados da atividade humana”32 Naquele
momento, as mulheres já eram as grandes leitoras de romances, da prosa de ficção e das revistas literárias, muitas das quais a ela destinadas. Retomando uma tendência da época, o folhetinista de A Idéia, Mefistófeles, dedica-lhes a poesia “O poema da Virgem”, a pretexto de agradar “o sexo amável” que deveria estar “muito despeitadas (sic) porque em todos os seus assomos de folhetinista ainda não lhes [reservara] alguns instantes de conversação”.33 No caso da revista Alva, sem as indicações do nome dos editores fornecidas por Eduardo Martins, seria impossível identificá-los, haja vista a maioria dos escritos ser publicada ou sem autoria, ou através das iniciais. A rigor pode-se aplicar aos “jornalistas” e primeiros escritores paraibanos as mesmas características daqueles que iniciaram ao mesmo tempo o jornalismo literário e a prosa de ficção no Brasil: Justiniano José da Rocha, Pereira da Silva, Francisco de Paula Brito. Não foram “vocações espontâneas”, como bem notou Lima Sobrinho. Foram os desbravadores da imprensa nacional e criaram todas as condições para o surgimento do conto e do romance nacionais, premidos pela demanda dos leitores. Os editores desse tipo de revista, entre os quais podem-se incluir as paraibanas, passaram a atender a essa demanda transformando a prosa como gênero dominante, principalmente em prosa de ficção. Essa despreocupação com a autoria, revelada pelo anonimato e pelo uso do pseudônimo, é o que melhor traduz o caráter de dessacralização da escrita fundada pelo suporte jornal.34 Esses usos, ao mesmo tempo em que confundem os historiadores da literatura, revelam o pouco “caso” com a “autoria” e a propriedade autoral, demonstrado pelos jornalistas/escritores do século XIX. Longe de significar uma prática da província paraibana, esse uso foi comum aos periódicos brasileiros. Dessa forma, quando não temos conhecimento desses dados, é quase impossível atribuir qualquer autoria. Considerando que no período em que vicejaram estas revistas ainda não estavam estabelecidas as regras relativas aos direitos autorais, pode ser que parte do seu conteúdo não seja propriamente de autores pa-
raibanos, mesmo porque, na época, continuava o hábito bastante consolidado de se “extrair” de outros jornais textos inteiros, algumas vezes com indicação apenas do nome do periódico, outras sem qualquer referência. Neste sentido, esses textos valem menos pela “identidade” paraibana, do que pelo modo como elaboram suas percepções do real, incorporando sob a forma de apropriação de textos e de escritos de outrem, “representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse”.35 A colaboração e a participação do leitor comum na escrita dos quadros dos periódicos era parte do programa de quase todos eles. A título de exemplo, tomemos a revista Semana Ilustrada, surgida em 1860 no Rio de Janeiro, que anunciava o seguinte: “Atenção! Tem direito a receber esta folha, gratuitamente por três meses, quem nos fornecer um bom desenho, artigo humorístico ou crítica, quer em verso quer em prosa”. Da mesma forma, parte do sucesso previsto para a revista Idéia vinha exatamente do fato de ter surgido, com a prévia notícia do seu aparecimento, “a afluência de comunicados, assim com a espontânea oferta de colaboração”.36 Essa concepção é bastante semelhante àquela revelada na introdução da revista Alva que previa como um dos grandes propósitos e responsabilidades da imprensa brasileira o de “estimular” as inteligências para o exercício da escrita. Como já observou Barbosa Lima Sobrinho a ficção nacional nasceu da pena dos jornalistas. Sem discriminar aqueles que buscavam contribuir para a “civilização”, o periódico foi o lugar por excelência de democratização da escrita e da leitura. Sobre outra noção de nacionalismo: a presença da invasão holandesa e a restauração portuguesa na Revista Alva. A revista Alva conta com seis números apenas. No entanto, chama a atenção que em todos eles haja alguma matéria relacionada
MEYER, Marlyse. Volatéis e versáteis: de variedades e folhetins se fez a chronica. In: ______. As mil faces de um herói-canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998, p. 154. BLAKE, Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970, p. IV. v. 3. 31 Sobre a precariedade da educação feminina na Paraíba, o jornal, O Conservador, de 19 de setembro de 1885, em um artigo sem autor, assim comenta: “Na Paraíba, é impossível educar-se satisfatoriamente uma moça! Não há recursos, não há mestres, não há mestres, não há gosto!”. O CONSERVADOR, 19 de set. de 1885, p. 3. 32 A IDÉIA: Revista Crítica Noticiosa e Literária, 13 de dez. de 1879, n. 1, p. 1-3. 33 Ibid., p. 11-12. 34 Sem querer ser anacrônica, pode-se estabelecer um paralelo entre os primórdios do jornalismo brasileiro do século XIX e o que vemos desde o surgimento da democratização da Internet: o aparecimento de gêneros distintos tais como Blogs, as comunidades, o MSN, onde pessoas comuns partilham com personalidades o seu uso através de uma escrita diversificada e múltipla, estabelecendo diálogos e debates quase intermináveis. Da mesma forma que o jornal, a internet fez surgir de seu emaranhado de textos e dos milhões de “escritores” alguns nomes que se destacaram. 35 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria ManuelaGalhardo. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 1990, p. 19. 36 A IDÉIA: Revista Crítica Noticiosa e Literária, 26 de nov. de 1879, n. 1, p. 2. 29 30
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à invasão holandesa. Dois deles são de caráter histórico e um de ficção. Tomemos primeiramente o “Bosquejo histórico sobre a origem e a história da província da Paraíba”, de S. (Salvador) H. (Henrique) de A. (Albuquerque), publicado em capítulos, como era de praxe. Interessa-nos esse texto para demonstrar o que Lima Sobrinho considera como a “simbiose do jornal e do conto, nesses inícios obscuros”.37 Nesse sentido, e ampliando a informação do historiador, acreditamos que qualquer texto em prosa, e não necessariamente os de ficção, adquire feições parecidas aos do conto, entre eles os de caráter histórico, as narrativas de viagem e a biografia dos poetas brasileiros. Todos esses gêneros quando dados a ler nos periódicos se despojaram da rigidez clássica e da linguagem “palaciana” e passaram a ser publicados em capítulos, “abençoada invenção periódica”, através de entrechos simples e linguagem singela e corrente.38 O Bosquejo histórico é um bom exemplo deste empenho dos autores de difundir a história através dos jornais. O seu autor, Salvador Henrique de Albuquerque, publicou em forma de livro vários títulos de história, de geografia, geometria, gramática e aritmética, que demonstram seus laços com a cultura clássica e o saber livresco.39 No Bosquejo, a origem da província tem como ponto de partida a ofensiva dos holandeses, na tomada dos fortes de Cabedelo e de Santo Antônio favorecida pela contribuição dos traidores Calabar e Bento do Rego Bezerra, dedicados aos interesses dos inimigos da sua nação, em troca da “conservação dos seus bens”. Observa-se neste bosquejo, bem como em outras narrativas da revista, que os editores elaboraram o nacionalismo paraibano não a partir da “fundação do Brasil”, mas da invasão dos holandeses e das lutas pela restauração da colônia. O tema, na verdade, não é novo. Em 1841, Joaquim Norberto de Sousa e Silva publicou As duas órfãs, romance cujo enredo tem como pano de fundo a cidade do Recife e a batalha contra os holandeses.40 Em 1852, sob o título de Romances e novelas, o autor reúne vários de seus textos, entre os quais o acima citado.41
Utilizando a técnica de suspense do romance em folhetim S. H. A. termina o capítulo com a invasão da província, matéria que só retomará no número 3. Neste número, ao iniciar a narração, o autor faz questão de lembrar ao leitor: “Deixamos o leitor com a desagradável impressão da conquista desta bela capital, pelas tropas Holandesas: agora relataremos mais uns fatos dignos de memória, para execração de uns e glórias daqueles a quem couber”.42 Mas não é apenas na técnica do suspense que o bosquejo imita os folhetins. A maneira como a história é narrada delineia heróis, antiheróis, tragédias, traições e sofrimento causados pelos traidores da pátria. Os holandeses tomam a Paraíba com ajuda de mercenários, entre eles Bagnuolo, que a abandona nas mãos dos estrangeiros. Entre os colaboradores, destaca-se o novo “Calabar”, cujo nome passou a ser sinônimo de traidor, Matias de Albuquerque. Assim como nas narrativas romanescas, quanto maior a vilania do traidor, mais realçada é a “constância e a coragem” do herói e no caso em questão, a de André Vidal de Negreiros: “um paraibano, cujo nome, circulado todo de glória, deve ser conservado sempre na memória dos seus patrícios”. É dele e de suas estratégias para vencer os invasores em 13 de junho de 1645 que “começam os rasgos de patriotismo mais assombrosos, e os lances de valor mais denodados”. O paraibano tem suas façanhas narradas em prosa e verso, dentro do próprio bosquejo, o que o torna menos um personagem da história, do que um herói de romance, como demonstra o trecho abaixo: Entre arbustos e canas de improviso, Dispara o Luso sobre a incauta gente, E precedendo o dano ante do aviso, Desbarata o Holandês com fúria ardente: Suspende a marcha o Batavo indeciso, E sem ver o inimigo o golpe sente; Até que vendo o estrago dos soldados, Cedem o campo e fogem destroçados.43 Como um herói, o paraibano mesmo em combate, como o da Casa Forte, se porta “mais militar e mais humano do que vingati-
vo, sabendo conciliar a bravura de soldado, com a humanidade de cristão”,44 características que irão ornar aquele que será o herói português da literatura romântica, Martins Soares Moreno, parceiro de Vidal de Negreiros. Na narrativa paraibana, Pero Poti é um holandês “mais bárbaro e cruel que os mesmos antropógafos”.45 A necessidade de interrupção do capítulo exige que deixe alguma expectativa no ar. Por isso, o autor termina a sua narrativa com o espírito de independência que movia os heróis e o povo paraibanos. Foi o “espírito de independência” o que, segundo o autor, muita influência teve na batalha que viria a ser narrada no próximo número da revista. Dirigida para leitores comuns, a narrativa histórica exigia que esses se reconhecessem naquilo que estava sendo narrado. Por isso, parte da vitória sobre os holandeses tem como origem “o patriotismo dos Paraibanos que só esperava um momento oportuno para desenvolver-se” e “despedaçar os grilhões da mais terrível escravidão”. Assim, movidos pelo patriotismo, os anônimos paraibanos “acudiram e se armaram, parecendo antes um exército disciplinado do que muitos paisanos reunidos”.46 É interessante observar, no apelo do Governador Gomes Muniz, o discurso providencialista se mistura aos ideais de liberdade e nação, próprios da Revolução francesa: “Camaradas! Aqueles hereges que ali vedes, são os opressores da nossa pátria. Não vos espante o seu número porque os excedemos no valor. A causa que defendemos é sagrada e o Céu a protege. A fama não se adquire em empresas vulgares e neste momento faremos ver ao mundo, quanto pode o amor da liberdade por quem arriscamos”. É esse o tom que norteará o romance “A noiva do soldado”, publicado na mesma revista.47 Outro exemplo em que percebemos um modo folhetinesco de narrar é o da “Breve notícia da vida e feitos de Salvador Correia de Sá e Benevides”, escrito por A. (Adelino Antonio de) L. (Luna) Freire. Inserida entre os capítulos I e II do bosquejo, ela irá forjar a coragem e bravura do personagem na sua
Cf: LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 8. 38 Ibid., p. 9. 39 ALMEIDA, Horácio de. Contribuição para uma bibliografia paraibana. João Pessoa: A União, 1994, p. 26. 40 Cf: LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 10. 41 SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Romances e novelas. AZEVEDO, Silvia Maria. (Org.). São Paulo: Landy, 2002. 42 ALVA – Jornal literário, mar. de 1850, n. 3, p. 36. 43 43 Id., abr. de 1850, n. 4, p. 50. 44 ALVA – Jornal literário, abr. de 1850, n. 4, p. 50. 45 ALVA – Jornal literário, abr. de 1850, n. 4, p. 51. 46 Ibid.. 47 Lamentavelmente, como parte das narrativas da revista, o bosquejo fica sem conclusão. 37
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luta, embora inglória, contra os holandeses. O herói foi desde o berço “bafejado com o sopro daquela nobre coragem”, que distinguira os seus antepassados. Sua iniciação se deu com os “temíveis holandeses – com quem sustentou combates arriscados – sem que o silvo das balas, e o raivar dos escarcéus, encontrassem no seu ânimo um vislumbre de temor”. A mover esse herói, o amor pela pátria. É esse amor que o motiva, que o torna superior aos holandeses “cegos de ambição”, dispostos a tudo para se apropriar das riquezas brasileiras. É a luta dos “poucos recursos [...] sustentados pelo sublime prazer de dar a vida pela pátria” contra milhares de braços “mercenários”. Após tão gloriosa batalha, seguida por outras nas costas da África, onde luta contra os holandeses em defesa dos domínios portugueses, o herói finda seus dias como burocrata, na cidade do Rio de Janeiro, onde por duas vezes fora governador. A impressão que se tem, é que a “Breve notícia...” vem a pretexto de aumentar o rol dos heróis que lutaram pela liberdade da pátria, cuja origem estaria na guerra aos holandeses. Às narrativas do periódico paraibano podemos aplicar o mesmo critério de Barbosa Lima Sobrinho àqueles que ele considera os fundadores do conto brasileiro. Trata-se de textos aos quais não podemos reivindicar o mesmo valor literário que aplicamos às narrativas contemporâneas, sob o risco de incorrer em anacronismo.48 Em A noiva do soldado, de J. (José) C. (Carlos) da C. (Costa) R. (Ribeiro) vemos mais uma vez tratada a heróica restauração portuguesa. Antes porém de analisar o nacionalismo nele representado, se fazem necessárias algumas observações sobre esse que talvez seja um dos primeiros textos da prosa de ficção paraibana. Tido como romance, pelo seu autor, o texto de J. C. C. R. demonstra a imprecisão do termo e a dificuldade de caracterizar o que fosse conto, novela ou romance na época, por isso melhor chamá-lo de história curta de ficção, publicada em capítulos. Nessa linha de pequenas narrativas de ficção encontra-se Dor e Prazer (Romance), de J. C. R. dividido em três partes, mas publicados em um único número. Além de O Sócio (Romance), do mesmo autor, que tem como cenário as ruas e igreja da Paraíba. Publi-
cado em capítulos, lamentavelmente fica incompleto. Mesmo assim, percebemos um melhor acabamento literário e maior aproximação com as regras do que Marlyse Meyer considera como primeira fase do romance-folhetim.49 Em linhas gerais, a primeira das características é a de ser publicado aos pedaços, em uma sessão do jornal que passou a ser designada com o nome de Folhetim. Os romances eram distribuídos entre duas vertentes principais, que incluía o folhetim histórico e folhetim “realista”. Entenda-se que, como afirma Marlyse Meyer, segundo a concepção da época, “realismo” deve ser compreendido como “um real recriado a partir do concreto muito amplificado pela vigorosa imaginação que o transcreve”.50 O folhetim histórico ressuscita o passado através de “espadachins e suas bravatas, ministros e rainhas”, fazendo muita vez o “papel da verdadeira história”.51 É o caso de “A noiva do soldado”, em que ficção e história se misturam em uma linguagem muito próxima àquela do “Bosquejo histórico”, mas com os ingredientes próprios ao gênero folhetinesco: vingança, valentia, coragem, além da dama que sofre ou morre. Dessa forma, se o tema é semelhante ao do Bosquejo histórico, se alguns personagens são verídicos e se a paisagem é localizável, o título, no entanto, irá apontar para outra direção, quiçá outro leitor. O leitor acostumado com esse tipo de narrativa sabe de antemão que a ênfase recairá sobre os dilemas amorosos, tais como a vingança e o sofrimento feminino, a despeito da grandiloquência com que é descrito o cenário e caracterizada a valentia dos “heróis nacionais”. Os “pitorescos sítios próximos ao famoso Guararapes” eram o cenário e a data 16 de abril de 1648. Seria neste dia e neste lugar que se travaria “batalha esganiçada e sanguinolenta”, haja vista a disparidade de forças: de um lado dois mil e quinhentos brasileiros, movidos pelo desejo de independência, dispostos a derramar pela pátria “a derradeira gota do seu sangue”, do outro, oito mil “batavos”. É dessa cepa de heróis que surge o protagonista, o Capitão Teles Muniz, cuja noiva Isabel se encontra encarcerada em poder do “perverso” holandês Hamel. Dividido entre a noiva Isa-
bel e a noiva Pátria, Teles Muniz sente-se atordoado, pois para salvar a noiva terá que desertar. Como lembra Rodrigo, um velho soldado seu amigo que não concorda com a sua resolução: “Que importa, que salveis a vossa amante, se para isso é mister, que deserteis, e que desse modo calqueis aos pés o juramento sagrado, que fizeste de dar o vosso sangue e a vossa vida pela restauração de vossa pátria?”.52 O capítulo encerra com a decisão de Teles Muniz de seguir os conselhos de Rodrigo de “não abandonar a nossa causa, a causa da liberdade, da liberdade da pátria, para chorar amores de donzela”. O Continua estrategicamente é bastante de acordo com as expectativas do leitor de folhetim, pois se o capitão resolve seu problema de honra à pátria, não o faz em relação aquele relativo a sua noiva. O capítulo II tem início com a grande batalha, onde muitos holandeses perecem e os índios tapuias deserdam. O entusiasmo entre os vitoriosos é imenso. Mas o comandante batavo Sigismundo reanima sua tropa e tem início outra grande batalha, dessa vez os combatentes se “assemelham a leões, que se mordem e se despedaçam raivosos”. É nessa guerra corpo a corpo que lutam os dois inimigos: Hamel e o Capitão Teles Muniz. Como decidira no capítulo I, o capitão luta bravamente pela Pátria e finda essa parte “num derradeiro” esforço tentando pegar a mão do amigo Rodrigo, que morria naquele momento, cheio de culpa, uma vez que Teles Muniz acabara de sucumbir: – Rodrigo! – diz Teles fortemente agitado – Uma nuvem de sangue me escurece a vista!...Eu sinto que também...ah! dá-me a tua mão. – Mancebo! Combateste... e morres! Não o querias...induzi-te eu... Matei-te!... Perdoa-me... – Não! Não!... – exclama o oficial – Era... o meu dever! ...era ... a causa da pátria!... Por ela... foi por ela! ...Rodrigo...ah! é o último esforço! – E desfaleceu.53 Marlyse Meyer aplica com muita propriedade os termos “recursos de maquinaria” para definir os ingredientes comuns aos dois
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 22. A técnica de publicação de um fragmento de romance no rodapé do jornal foi inventada por Émile Girardin, em 1836. O jornalista se aproveitou da mania de leitura de ficção do país para lançar essa estratégia que teria grande sucesso e se instalaria por quase um século aqui no Brasil. Sobre a presença do romance-folhetim no Brasil, Cf. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 50 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 67. 51 Ibid. 52 ALVA – Jornal literário, fev. de 1850, n. 2, p. 25. 53 ALVA – Jornal literário, fev. de 1850, n. 2, p. 26. 48 49
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gêneros de folhetim. Entre estes temos: “raptos, perseguições no escuro, tempestades no momento oportuno (ou inoportuno), maniqueísmo com a vitória dos bons sentimentos e da virtude” e principalmente nem sempre o romance-folhetim precisa ter happy ending.54 A ressurreição de personagens, no entanto, só seria recurso de maquinaria da segunda geração de romance-folhetim, com o famosíssimo Rocambole, ressuscitado pelo seu autor Ponson Du Terrail. A estratégia do autor de A noiva do soldado parece ser essa. Por isso, deixa o capitão desfalecido e inicia o capítulo III com o narrador a se perguntar por sua noiva: “O que é feito da infeliz amante de Teles Muniz?” Isabel, a amante, tem o perfil da heroína sofredora. A atração que exerce sobre o pérfido holandês é involuntária, movida por “seus encantos” que “acedem no coração de Hamel um amor cego e louco, que busca despedaçar quantas barreiras se lhe opõem”. Isso inclui matar o pai de Isabel, o que a torna mais vítima, visto que agora vive sozinha, sem ninguém para defendê-la: “cheia de indignação para com ele [Hamel], e de amor e dedicação para com Teles Muniz, ela se conserva firme e inabalável – como a rocha no meio do oceano – esperando pelo esposo, que deverá correr em seu auxílio”. O leitor sabe que ele não virá em seu auxílio, pois preferiu lutar pela pátria, o que o levou a sucumbir. Isso mobiliza no leitor uma empatia pelo sofrimento da moça, ingrediente fundamental para o desenrolar do romance-folhetim: “Miseranda! Que será feito de ti agora, que és só no mundo, exposta às garras do leão, que ruge a teu lado?...”55 Firme no seu amor e integridade, Isabel resistirá até mesmo às investidas menos agressivas de Hamel: “Por que hás de em troca de amor dar-me tão grande aversão?... És sozinha na terra... e eu te ofereço um coração todo amizade, e amor; [...] Dou-te um rico palácio, ouro, jóias, riqueza imensa... e tu desprezas tudo isto!”56 Sim, a pobre Isabel rejeita tudo em nome do amor a Teles que subitamente “reaparece” para defender a noiva das mãos do holandês. Gesto que na concepção do narrador e de Hamel é “um claro indicio da justiça de Deus”. O autor, acompanhando a tendência do drama romântico, não dá chance à pobre Isabel e pune a “covardia” ou heroísmo de Teles:
“De repente Isabel ajunta as mãos, e as leva ao peito dele, desprendendo ao mesmo tempo uma risada estridente e desconcertada!... A infeliz estava louca!”57 “A noiva do soldado” e os outros “romances” da revista Alva não são um exemplo de validade literária e qualidade estética, mas demonstram o esforço de uma geração paraibana de colocar a sua literatura nos trilhos do gosto do público leitor. Rompendo preconceitos: sobre paródia e representação feminina em A Idéia Uma das surpresas reveladas pela leitura de A Idéia e que merece ser analisada diz respeito a uma poesia publicada na Seção literária do número 2. Trata-se de “O besouro”, paródia à poesia – Beija-flor, de T. Barreto. Para quem conhece o poema do autor sergipano, a paródia sugere uma aproximação com aquelas feitas por Álvares de Azevedo, principalmente “É ela, é ela”. A publicação de um único texto, ao mesmo tempo em que revela o intercâmbio cultural entre a Paraíba e Pernambuco, demonstra que nessa época o romantismo piegas já não tinha vez entre os jovens poetas paraibanos. Um simples exemplo como esse também contradiz a opinião corrente, segundo a qual era de subserviência às trocas culturais ocorridas entre as duas províncias. No número 3 da revista, o editorial tratará daquilo que os jovens editores da revista A Idéia julgam o grande erro contemporâneo, que é o de “condenar a mulher a um papel na vida social e supô-la incapaz de ser participante de todos os interesses que se agitam além do lar doméstico de todos os resultados da atividade humana”. Os jovens editores paraibanos indicavam, como péssimo exemplo de defesa de uma posição favorável e justa para a mulher, Tobias Barreto, modelo dos homens “ilustres e liberais” que sentam nas assembléias legislativas, no caso da Província de Pernambuco, e contestam “com veemência e com a fisiologia nas mãos os predicados intelectuais da mulher e se lhe estreita pela restrição da educação o círculo já tão limitado de suas funções sociais”. Compreende-se assim que a paródia ao poema Beija-flor não diz respeito apenas a questões de estética literária, mas também a posturas políticas em relação a uma imagem de mulher que, ao mesmo tempo em que é
cultuada como “santa” no poema “Beija-flor” de Tobias Barreto, é destituída de direitos entre os quais o de se expressar e fazer parte da imprensa e da vida literária. Apesar de longo e quase infinito, vale a pena transcrever o período onde melhor se revelam essas posições, da qual não escapam mulheres ricas ou pobres: A verdade: que é a sua condição a mais triste e degradante nas sociedades modernas, que não há para ela educação pública ou profissional, que sobre ela recaem as mais das vezes o peso das faltas do homem, que vive na ausência dos mais inocentes direitos, que para ela tem os códigos lacunas imensas, que sobre ela recaem unicamente a mácula da infidelidade conjugal e as conseqüências da sedução e da bastardia, que se lhe julga um espírito frágil e inativo, uma inteligência incapaz de auto-cometimentos, que para tudo precisa de tutelada, que ainda mesmo no altar ornada de branco para o sacramento das núpcias é-lhe arrancado o sim, antes como um lamento ou um suspiro de dor, do que como o som de um hino de amor e de liberdade, que nas classes pobres ela é a mais miserável e nas abastadas a mais infeliz!58 Esse trecho também vai de encontro ao lugar-comum segundo o qual os jovens jornalistas paraibanos traduziam em sua produção os valores de uma aristocracia patriarcal.59 É interessante observar que, no contexto sobre o qual estamos tratando – o da democratização da escrita, patrocinada pela imprensa do dezenove –, o exemplo acabado de mulheres de valor sejam justamente o das escritoras e poetisas, entre as quais as “ilustres” Rita Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Delfina Maria Ribeiro, Narcisa Amália.60 Neste número, a seção literária traz o que o autor chama de “rápido esboço, o apanhado de ligeiros traços de uma mulher ilustre, direi mesmo, célebre, que apareceu com este século fadado para tão grandes coisas”. Ele refere-se a Georg Sand. Ao contrário de Alva, a revista Idéia privilegiará o ensaio opinativo, o folhetim. Tome-se por folhetim aqui um lugar preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rez do chão, rodapé. Como afirma Marlyse Meyer, “é um espaço vazio destinado ao entretenimento”,
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 71. ALVA – Jornal literário, fev. de 1850, n. 3, p. 45. 56 Ibid. 57 Ibid. 58 A IDÉIA. Revista crítica, noticiosa e literária, 13 de dez. de 1879, n. 3, p. 3. 59 Ainda está por se fazer uma revisão da história da imprensa na Paraíba, a partir da leitura cuidadosa de seus editoriais e folhetins. Sobre a visão aristocrática dos editores do século XIX Cf: CÂNDIDO, Gemy. História crítica da literatura paraibana. João Pessoa: SEC, 1983. 60 À exceção de Delfina Maria Ribeiro, todas as escritoras nomeadas têm sua vida e obra resgatadas por historiadoras em estudos organizados por Zahidé Lupinacci Muzart, no livro Escritoras brasileiras do século XIX. (Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999). 54 55
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que haverá de “constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira e é desde os seus primórdios um espaço deliberadamente frívolo”.61 Os folhetins da revista Idéia podem ser tomados como a origem da crônica paraibana. Esse espaço “vale-tudo” como o chama Meyer permitiu, favoreceu o exercício da escrita para vários escritores paraibanos por quase todo o século. Como a possibilidade de “recheio” do espaço era ilimitada, o folhetim abrigou a ficção, os fatos cotidianos, a poesia, as intrigas amorosas, sempre carregados de ironia, de sarcasmo e de linguagem simples e coloquial. O folhetim também esteve nas páginas dos jornais sob o epíteto de Variedade, Miscelânea, Crônica etc. Os folhetins dos periódicos paraibanos são o testemunho dos fatos diversos do cotidiano, do dia a dia da província, de modos de ver e dizer a história e o presente. Parte dessa história, no entanto, ficou perdida no anonimato ou nas iniciais até hoje raramente identificadas, o que leva a se pensar ter havido pouca prosa e prosadores no século XIX paraibano. Para
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quem conhece os “folhetins” de Machado de Assis e José de Alencar, os textos escritos por Mefistófeles, um dos folhetinistas da Idéia, não deixam a desejar. Desde a escolha do pseudônimo, que já sugere o sarcasmo e perfídia. Longe de imitar os modelos consagrados, Mefistófeles busca um estilo próprio De exercer a função de folhetinista, cargo a que muitos se prestavam sem o devido talento ou vocação, como demonstra a passagem do Folhetim de A Idéia, de 26 de novembro de 1879: Leitor Nada há tão empanzinante como supor-se humorístico um folhetinista, e roubar-vos o tempo e a paciência com as suas sensaborias. É uma cousa de enjoar a todo mundo; mas uma vez que comprometi-me a aborrecer-vos aqui estou na firme intenção de conversar estiradamente convosco. É uma mania como outra qualquer. Nem todos nasceram para o bom senso. Conheço um sujeito muito barrigudo, à semelhança de um touro, que deu em arremeter a gente pelos
jornais como o fim de dar expansão ao gênio maníaco com que dotou-o a natureza. Palavras finais Este estudo está distante de esgotar as possibilidades de análise oferecidas por esta atual “descoberta” dessas duas revistas. O nosso propósito é o de conhecer melhor o passado e reconhecer o valor e o modo como se davam as práticas da cultura escrita e de leitura produzidas na província paraibana no século XIX. Muito embora estejam longe de apresentar qualidades literárias, muito menos se comparamos às das obras atuais, estas revistas revelam a importância da literatura, compreendida à época com um significado mais amplo, na disseminação do saber. Para isso, os editores não se intimidavam de aceder ao gosto do leitor e, como têm revelado as pesquisas recentes, não apenas ao leitor alfabetizado. O jornal e tudo o que ele “mobilizava” envolvia a leitura oral, as conferências e os reclames de livros representando em si um grande acontecimento, por mais modesto que fosse em seus propósitos, conteúdos e aspectos materiais. g
MEYER, Marlyse. Volatéis e versáteis: de variedades e folhetins se fez a chronica. In: ______. As mil faces de um herói-canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998, p. 113.
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TEXTOS E DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA
A CONSTITUIÇÃO DE 10 DE MAIO DE 1935 Em nome do povo e confiante em Deus, a Assembléia Constituinte da Parahyba decreta e promulga a seguinte
CONSTITUIÇÃO TÍTULO I Da organização do Estado CAPÍTULO I Disposições Preliminares Art. 1º - O Estado da Parahyba, parte integrante da Federação Brasileira, reger-se-á por esta Constituição e pelas leis que adoptar nos limites de sua competência. Art. 2º - O território do Estado da Parahyba é o mesmo da antiga Província, reconhecido pela Constituição anterior e pelas leis da Republica, e não poderá ser alterado ou incorporado a outro, senão mediante acquiescência da Assembléia Legislativa em duas legislaturas successivas e conseqüente approvação por lei federal. Art. 3º- O Estado tem por base o municipio autonomo, e por orgãos três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciario - independentes e coordenados entre si. § 1º- É vedado a qualquer dos poderes delegar as suas funcções ou investir-se em attribuições constitucionaes, que não the sejam peculiares. § 2º- O cidadão investido na funcção de um delles não poderá exercer a de outro. Art. 4º- Compete privativamente ao Estado: 1º- Decretar as leis por que se deva reger, respeitadas as leis federaes e os principios desta e da Constituição da Republica. 2º- Prover a expensas proprias, as necessidades da sua administração, podendo requisitar da União, em caso de calamidade publica, os soccorros de que necessitar. 3º- Elaborar leis suppletivas ou complementares da legislação federal, nos termos do art. 5º § 3º da Constituição da Republica. 4º- Crear um Conselho Estadual de Educação, com funcções autonomas, semelhantes às do Conselho Nacional de Educação. 5º- Exercer em geral todo e qualquer poder ou direito que não lhe for negado, explícita ou implícitamente, por clausula expressa da Constituição da Republica. 6º- Decretar impostos sobre: a) propriedade territorial, excepto a urbana; b) transmissão de propriedade causa mortis; c) transmissão de propriedade immobiliaria inter vivos inclusive a sua incorporação ao capital de sociedades; d) consumo de combustivel não produzido no país, para motor de explosão; e) vendas e consignações effectuadas por commerciantes e productores, inclusive os industriaes, ficando isenta a primeira operação do pequeno productor, como tal definida em lei; f) exportação de mercadorias de sua producção, até o maximo de 10% ad valorem, vedados quaesquer addicionaes; g) industrias e profissões; h) actos emanados do seu governo e negocios de sua economia, ou regulados por lei ordinaria. § 1º- O imposto de vendas e consignações será uniforme, sem dis-
tincção de procedencia, destino ou especie de productos. § 2º- O imposto de industrias e profissões será lançado pelo Estado e arrecadado por este e pelo municipio, em partes iguaes. Art. 5º- Compete ao Estado concorrentemente com a União: 1º- Velar pela guarda da Constituição da Republica e leis da União; 2º- Cuidar da saúde e assistencia publicas; 3º- Proteger as bellezas naturaes e os monumentos de valor histórico ou artistico, podendo impedir a evasão de obras d’arte; 4º- Promover a colonização; 5º- Fiscalizar applicação das leis sociaes; 6º - Diffundir a instrucção e educação publicas em todos os seus graos, especialmente o primario, bem como o ensino profissional; 7º - Decretar, em caso de insufficiencia dos que lhes são attribuidos privativamente, outros impostos, de accordo com o art. 10º nº 7 da Constituição da Republica. § unico - A arrecadagção dos impostos, a que se refere o nº 7, seraá feita pelo Estado que entregará dentro do primeiro semestre do exercício seguinte, trinta por cento à União e vinte por cento aos municipios donde tenham provido. Art. 6º- É vedado ao Estado e aos municipios: 1º- Adoptar para funcções publicas identicas, denominações differentes das estabelecidas na Constituição da Republica; 2º- Crear distincção entre brasileiros natos, ou preferencia em favor de Estados ou municipios; 3º- Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercicio de cultos religiosos; 4º- Ter relações de alliança ou dependencia com qualquer culto ou egreja, sem prejuizo da collaboração reciproca, em pról do interesse collectivo; 5º- Alienar ou adquirir immoveis, ou fazer concessões sem lei especial que o autorize; 6º- Recusar fé aos documentos publicos; 7º- Rejeitar a moeda legal em circulação; 8º- Denegar a extradicção de criminosos, reclamada, de accordo com as leis da União, pelas justiças de outros Estados do Districto Federal ou dos Territorios; 9º- Contrahir emprestimo externo, sem previa autorização do Senado Federal; 10º- Dar garantias de juros a emprezas concessionarias de serviços publicos; 11º- Cobrar, sob qualquer denominação, impostos interestaduaes ou intermunicipaes de viação ou de transporte, ou quaesquer tributos que, em seu territorio, gravem ou perturbem a livre circulação de bens ou pessoas e dos vehiculos que os transportem; 12º- Negar a cooperação dos respectivos funccionarios no interesse dos serviços da União, dos demais Estados, do Districto Federal, ou dos municipios; 13º - Cobrar quaesquer tributos sem lei especial que os autorize ou fazel-o incidir sobre effeitos já produzidos por actos juridicos perfeitos; 14º- Tributar bens, rendas e serviços da União, dos outros Estados ou dos municipios, extendendo-se a mesma prohibição ás concessões de serviços publicos, quanto aos proprios serviços concedidos, e ao respectivo apparelhamento installado e utilizado exclusivamente para o objecto da concessão; 15º- Celebrar contractos de valor superior a um conto de reis sem concorrencia publica; 16º- Conceder privilegios. § unico - A prohibição constando nº 14 não impede a cobrança de abril/maio/junho/2015 |
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taxas remuneratorias devidas pelos concessionarios de serviços publicos. Art. 7º- É facultado ao Estado celebrar accordos com a União, os demais Estados, o Districto Federal, o Territorio do Acre e os Municipios, para melhor coordenação e desenvolvimento dos respectivos serviços, e especialmente para uniformidade das leis, regras ou praticas, arrecadaçãcao de impostos, pretenção e repressão da criminalidade e permuta de informações. Art. 8º- Poderá o Estado, mediante accordo com o Governo da União, incumbir funccionarios federaes de executar leis e serviços federaes e actos ou decisões de autoridades federaes. Art. 9º- É vedada a bi-tributação, bem como a tributação simultanea. Incumbe á Assembleia Legislativa, quando a competencia for concorrente, exofficio ou mediante provocação de qualquer interessado, sem prejuizo do recurso judiciario que couber, declarar a existencia da simultaneidade ou da bitributação, determinando qual dos tributos deva prevalecer. Art. 10º- São do dominio do Estado: 1º- Os bens cuja propriedade lhe é attribuida pela legislação actualmente em vigor, com as restricções impostas pela Constituição da Republica; 2º- As margens dos rios navegaveis, destinados ao uso publico, si por algum título não forem do dominio federal, municipal ou particular. Art. 11º- O Estado poderá crear um orgão de assistencia technica ás administrações municipaes e fiscalização das suas finanças. CAPÍTULO II Do Poder Legislativo SECÇÃO I Disposições Preliminares Art. 12º- O Poder Legislativo é exercido pela Assembléia Legislativa, com a sancção do Governador do Estado. Art. 13º- A Assembléia Legislativa se compõe de trinta representantes do povo e seis representantes eleitos pelas associações profissionaes. § 1º- Os deputados do povo serão eleitos, mediante systema proporcional e suffragio universal, igual, directo e secreto. § 2º- Os deputados das profissões serão eleitos por suffragio indirecto das associações profissionaes, comprehendidas para esse effeito com os grupos affins respectivos, nas quatro categorias seguintes: a) industria, lavoura e pecuaria; b) commercio e transportes; c) profissões liberaes; d) funccionarios publicos. As duas ultimas classes darão, cada uma, um deputado e as duas primeiras, cada uma, dois deputados, sendo um representante das associações de empregados e outro das de empregadores, eleitos todos mediante suffragio secreto, igual e indirecto, em gráus successivos. Art. 14º- São elegiveis para a Assembléia Legislativa do Estado os brasileiros natos, maiores de vinte e um annos, alistados, eleitores e que estiverem em gozo de seus direitos politicos. Os representantes das profissões deverão ainda pertencer a uma associação comprehendida na classe e grupo que os elegeram. Art. 15º- São inelegiveis para a Assembléia Legislativa: a) O Governador do Estado e seus Secretarios, inclusive o Chefe de Policia; b) O Commandante da Região Militar, os commandantes de batalhões e corpos do Exercito estacionados no Estado e os officiaes da Milicia Policial. c) Os membros do Poder Judiciario e os do Ministerio Publico, inclusive o Procurador Geral do Estado. d) Os parentes até o terceiro gráu, inclusive os affins, do Governador do Estado, salvosi já tiverem exercido o mandato, ou forem eleitos simultaneamente com elle. § unico - Essas inelegibilidades permanecem até um anno depois da cessação defmitiva do exercicio dos respectivos cargos.
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Art. 16º- Nenhum deputado, uma vez empossado, poderá: I) Celebrar contracto com a administração federal, estadual ou municipal; II) Acceitar cargo, commissão ou emprego publico remunerado; III) Ser director, proprietario ou socio de empresa beneficiada com privilegio, isenção ou favor, em virtude de contracto com a administração publica; IV) Occupar cargo publico de que seja demissivel ad nutum; V) Accumular o mandato com outro de caracter legislativo federal, estadual ou municipal; VI) Patrocinar causas contra a União, o Estado ou os Municipios. § 1º- A infracção deste artigo importa perda de mandato e será comunicada pelo Presidente da Assembléia ao Tribunal de Justiça Eleitoral, para os fins de direito. § 2º- As incompatibilidades de que tratam os ns. II e IV não attingem os deputados designados para o desempenho de qualquer missão diplomatica. § 3º- Durante os trabalhos da Assembléia Legislativa, sendo deputado, o funccionario publico contará, por duas legislaturas no mazimo, tempo para promoção, aposentadoria ou reforma, e só receberá dos cofres publicos ajuda de custo e subsidio, sem outro qualquer provento do posto ou cargo que occupe, podendo, na vigencia do mandato, ser promovido unicamente por antiguidade. § 4º - No intervallo das sessões, o deputado poderá reassumir as suas funcções, cabendo-lhe então as vantagens correspondentes á sua condição. Art. 17º - No caso de vaga por perda do mandato, renuncia ou morte do deputado, será convocado o supplente, na forma da lei eleitoral. Si não houver supplente, proceder-se-á á eleiçãcao, salvo si faltarem menos de três meses para se encerrar a ultima sessão da legislatura. Art. 18º- A Assembléia Legislativa reune-se annualmente na Capital do Estado, independente de convocação, no dia primeiro de outubro de cada anno, ou em outra data que a lei designar e funccionará durante três meses, contados do dia da installação, podendo ser convocada extraordinariamente por iniciativa de metade dos seus membros ou do Governador. Nestas hypotheses, as suas deliberaçães serão restrictas ao assumpto que houver motivado a convocação. Art. 19º- Durante o prazo das sessões, a Assembléa funccionará todos os dias uteis, com a presença de um terço, pelo menos, dos seus membros, em sessões publicas, salvo resolução em contrario. Art. 20º- As deliberações da Assembléa, a não ser nos casos expressos nesta Constituição, serão tomadas por maioria de votos, presentes metade e mais um dos seus membros. § unico - Nenhuma alteração regimental será approvada sem proposta escripta, impressa, distribuida em avulso e discutida, pelo menos, em duas sessões successivas. Art. 21º- Installados os trabalhos legislativos, passará a Assembléa ao exame e julgamento das contas do Governador do Estado, relativas ao exercicio anterior. § unico - Si o Governador do Estado não as prestar, a Assembléa Legislativa elegerá uma commissão incumbida de organizal-as, e, conforme o resultado, determinará as providencias para a punição dos culpados. Art. 22º- O voto será secreto nas eleições e deliberações sobre vetos e contas do Governador. Art. 23º- A Assembléa Legislativa póde convocar qualquer Secretario de Estado para prestar informações sobre questões previa e expressamente determinadas, attinentes a assumptos da respectiva Secretaria. O não comparecimento do Secretario convocado, sem prévia justificação, importa crime de responsabilidade. § 1º- Igual faculdade, e nos mesmos termos, cabe ás suas commissões. § 2º- Tanto a Assembléa Legislativa como as commissões designarãao dia e hora para ouvir os Secretarios de Estado, que lhes queiram solicitar providencias legislativas ou prestar esclarecimentos. Art. 24º - A Assembléa Legislativa creará commissões de inquerito sobre factos determinados, sempre que o requerer a terça parte, pelo menos dos seus membros.
§ unico - Applicam-se a taes inqueritos as normas do processo penal indicadas no Regimento Interno. Art. 25º- Cada legislatura durará quatro annos. Art. 26º- É livre ao deputado renunciar o mandato. Presumir-se-á renuncia si o deputado, sem justificação, deixar de tomar posse dentro dos trinta dias immediatos á installação da Assembléa, ou á sua convocação no caso de supplencia, ou uma sessão annual. Art. 27º- O deputado não poderá ser judicialmente responsabilizado pelas opiniões e votos que emittir no exercicio do mandato. Art. 28º- Os deputados receberão uma ajuda de custo por sessão legislativa e, durante a mesma, perceberão subsidio pecuniario mensal. § unico - No ultimo anno de cada legislatura, serão fixados para a legislatura seguinte o subsidio e a ajuda de custo. Art. 29º- Os deputados, desde que se lhes haja expedido diplomas até a expedição dos novos para a legislatura subsequente, não poderão ser processados criminalmente, nem presos, sem licença da Assembléa Legislativa, salvo caso de prisão em flagrante por crime inafiançavel. Esta immunidade é extensiva ao supplente mais votado. § unico - A prisão em flagrante por crime inaflançavel será logo communicada ao presidente da Assembléa Legislativa, com a remessa dos autos e dos depoimentos tomados, para que ella resolva sobre sua legitimidade e conveniencia, e autorize, ou não, a formação da culpa. Art. 30º- Durante as sessões, cessa para o deputado o exercicio de qualquer outra funcção publica. SECÇÃO II Das attribuições da Assembléa Legislativa Art. 31º- Compete privativamente á Assembléa Legislativa, com a sancção do Governador do Estado: 1) Decretar leis organicas para a completa execução desta Constituição; 2) Votar annualmente o orçamento da receita e despesa; 3) Fixar annualmente o effectivo da Força Publica do Estado e sua despesa. 4) Dispor sobre a divida publica do Estado e providenciar sobre os meios do respectivo pagamento; 5) Autorizar a abertura e operações de credito; 6) Crear e extinguir empregos publicos estaduaes, fixar e alterar os vencimentos dos respectivos funcionarios; 7) Transferir temporariamente a séde do Govemo, sempre que a segurança publica o exigir; 8) Solicitar a intervenção da União, nos termos da Constituição da Republica; 9) Autorizar os emprestimos do Estado e dos municipios; 10) Legislar sobre: a) licenças, aposentadorias e reformas, respeitados os direitos adquiridos; b) exercicio dos poderes estaduaes; c) organização dos municipios e do Departamento das Municipalidades; d) divisão e organização judiciaria do Estado; e) incorporação, annexação, subdivisão ou desmembramento do Estado; f) fixação dos limites intermunicipaes e interestaduaes; g) representação profissional para o Estado, podendo fazel-o igualmente para o municipio; h) intervenção nas municipalidades, nos termos desta e da Constituição da Republica; i) assistencia economica ás populações da área assolada pelas secas, nos termos do § 3º do Art. 177 da Constituição da Republica; j) autorização ao Poder Executivo para celebrar, com outros Estados ou com a União, os accordos previstos nos arts. 7º e 8º desta Constituição, e bem assim autorização aos municipios para se associarem nas execuções dos serviços de interesse commum; k) concessão de auxilios aos municipios nos casos permitidos em lei e cooperação do Estado com elles na execução de serviços ou melhoramentos que execedam seus recursos ordinarios.
l) autorização para desappropriação por necessidade e utilidade publicas; m) autorização para acquisição de bens para o Estado, sua venda ou permuta; n) ensino primario, secundario, superior e profissional, respeitadosos principios traçados no plano nacional do ensino; o) assistencia publica, hygiene publica e particular. Art. 32º- Compete á Assembléa Legislativa: I) Commutar e perdoar as penas impostas aos funccionarios públicos por crime de responsabilidade; II) Propor ao Poder Legislativo da União as emendas ou revisões da Constituição da Republica; III) Emendar ou rever esta Constituição; IV) Julgar as contas do Governador do Estado; V) Prorogar as suas sessões e adial-as; VI) Autorizar ao Governador ausentar-se do Estado, quando a ausência exceder de trinta dias; VII) Fixar a ajuda de custo e o subsidio dos membros da Assembléa Legislativa e a representação e subsidio do Govemador; VIII) Decretar uma lei de contabilidade publica; IX) Legislar sobre a instituição do Montepio obrigatorio, em beneficio dos funccionarios do Estado e de suas familias; X) Examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo e suspender a execução dos dispositivos illegaes; XI) Autorizar a intervenção nos municipios e exercer, nos limites de sua competencia, todas as demais attribuições que the são proprias. § unico - As leis, decretos e resoluções da competencia exclusiva da Assembléa Legislativa serão promulgadas e mandadas publicar pelo seu presidente. SECCÃO III Das leis e resoluções Art. 33º- A iniciativa dos projectos de lei, guardado o disposto no artigo seguinte, cabe a qualquer membro ou commissão da Assembléa e ao Governador. Art. 34º - Resalvada a competência da Assembléa, quanto ao respectivo serviço administrativo e aos casos constantes da Constituição da Republica, pertence exclusivamente ao Governador do Estado a iniciativa dos projectos de lei, sobre augmento de vencimentos dos funccionarios, creação de empregos em serviços já organizados, ou modificação, durante o prazo de sua vigencia, da lei de fixação do effectivo da Força Publica. Art. 35º - Approvados pela Assembléa, os projectos de lei serão enviados ao Governador do Estado que, acquiescendo, os sanccionará e promulgará. § 1º - Quando o Governador do Estado julgar um projecto de lei, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrario aos interesses do Estado, o vetará, total ou parcialmente, dentro de dez dias uteis, a contar daquelle em que o recebeu, devolvendo nesse prazo á Assembléa, com os motivos do veto, o projecto ou a parte vetada. § 2º - O silencio do Governador do Estado, no decennio, importa sancção. § 3º- Devolvido o projecto á Assembleéa Legislativa, será submettido, dentro de trinta dias do seu recebimento ou da reabertura dos trabalhos, com parecer ou sem elle, a discussão unica, considerando-se approvado, si obtiver o voto de dois terços de seus membros, e será neste caso enviado ao Governador, para promulgal-o. § 4º - A sancção e promulgação effectuam-se por estas formulas: I) “A Assembléa Legislativa decreta e eu sancciono a seguinte lei” (ou resolução). II) “A Assembléa Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei” (ou resolução). Art. 36º- Não sendo a lei promulgada dentro do prazo de quarenta e oito horas, nos casos dos §§ 2º e 3º, o Presidente da Assembléa Legislativa àpromulgará, usando da seguinte formula: “O Presidente da Assembléa Legislativa faz saber que a Assembléa abril/maio/junho/2015 |
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decreta e promulga a seguinte lei” (ou resolução). Art. 37º- Si a sessão legislativa já estiver encerrada, o projecto e os motivos da recusa serão publicados no orgão official. Art. 38º- Os projectos rejeitados não podeão ser renovados na mesma sessão legislativa. Art. 39º- Poderão ser approvados em globo os projectos de codigos e de consolidação de dispositivos legaes, depois de revistos por uma commissão especial da Assembléa Legislativa, quando esta assim resolver, por dois terços dos membros presentes. Art. 40º- Os projectos de lei seão apresentados com a respectiva ementa, enunciando de forma succinta o seu objectivo e não poderão conter materia estranha ao seu enunciado. SECÇÃO IV Da elaboração do Orçamento Art. 41º- O orçamento será uno, incorporando-se obrigatoriamente á receita todos os tributos, rendas e supprimentos de rendas, incluindo-se discriminadamente, na despesa, todas as dotações necessarias ao custeio de serviço publico. § 1º- O Governador enviará á Assembléa, dentro do primeiro mês da sessão legislativa ordinaria, a proposta de orçamento. § 2º- O orçamento da despesa dividir-se-á, em duas partes, uma fixa e outra variavel, não podendo a primeira ser alterada, sinão em virtude de lei anterior. A parte variavel obedecerá a rigorosa especialização. § 3º- A lei de orçamento não conterá dispositivo estranho á receita prevista e á despesa fixada para os serviços anteriormente creados. Não se inclue nesta prohibição: a) a autorização para a abertura de creditos supplementares e operações de credito por antecipação de receita; b) a applicação de saldo ou o modo de cobrir o deficit. § 4º - É vedado á Assembléa conceder creditos ilimitados. § 5º- Será prorogado o orçamento anterior, si no inicio do exercício financeiro o novo orçamento não estiver em vigor. Art. 42º- Na organização dos orçamentos serão também attendidas as seguintes normas: a) applicar-se-á, no minimo, um por cento das rendas tributarias do Estado no serviço de amparo á maternidade e á infancia, e meio por cento ao serviço da assistencia judiciaria; b) destinar-se-ão vinte por cento, pelo menos, da renda dos impostos estadues á manutenção e desenvolvimento da instrucção e educação publicas, inclusive ensino profissional, e dez por cento, pelo menos, ao combate das endemias ruraes. c) empregar-se-ão no minimo quatro por cento da receita tributaria, sem applicação especial, na assistencia economica á população das áreas assoladas pela secca. § unico - O Estado destinará no seu orçamento dois por cento das rendas agro-pecuarias para o auxilio aos estabelecimentos de credito agricola pecuario existentes no Estado. CAPÍTULO III Do Poder Executivo SECÇÃO I Do Govemador do Estado Art. 43º- O poder executivo é execido pelo Govemador do Estado. Art. 44º- O periodo governamental durará um quatriennio, não podendo o governador ser reeleito, sinão quatro annos depois de cessada a sua funcção, qualquer que tenha sido a duração desta. § 1º - A eleição governamental far-se-á em todo o territorio do Estado, por suffragio universal, directo, secreto e maioria de votos, cento e vinte dias antes do termino do quatriennio, ou sessenta dias depois de aberta a vaga. § 2º- São condições essenciaes para ser eleito Governador: ser brasileiro nato, alistado eleitor, ter mais de trinta annos de idade e estar em pleno gozo dos seus direitos politicos. § 3º- São inelegiveis para o cargo de Governador do Estado:
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a) As pessoas indicadas em os numeros 1º e 2º do art. 112 da Constituição da Republica. b) Os substitutos eventuaes do Governador do Estado, que tenham exercido o cargo, por qualquer tempo, dentro dos quatro meses anteriores à eleição. § 4º - Decorridos trinta dias da data fixada para a posse, si o Governador não houver assumido o cargo sem causa justificada, a Assembléa Legislativa declarará a vacancia do mesmo e communicará ao Tribunal Regional de Justiça Eleitoral para que providencie, na forma da lei, sobre a nova eleição. § 5º - O exercicio do cargo de Governador cessa no dia em que expirar o periodo de quatro annos, contados de acto da posse. Art. 45º- Ao empossar-se no cargo, o Governador pronunciará em sessão da Assembléa Legislativa, ou si esta não estiver reunida, perante a Corte de Appellação do Estado, o compromisso legal. Art. 46º- O Governador será substituido em suas faltas e impedimentos: a) pelo Presidente da Assembléa Legislativa; b) pelo vice-presidente da mesma Assembléa; c) pelo Presidente da Corte de Appellação do Estado. § unico - Faltando o Presidente da Assembléa Legislativa, reunir-se-á esta, cinco dias depois da abertura da vaga ou impedimento do Governador, e elegerá seu novo presidente que assumirá o Governo. Art. 47º- O deputado estadual ou federal ou o senador da Republica, eleito Govemador do Estado, não poderá assumir o exercicio deste cargo sem previa renuncia do mandato. Art. 48º- O Governador do Estado terá o subsidio fixado pela Assembléa Legislativa, no ultimo anno da legislatura anteriorá sua eleição. Art. 49º- O Governador não podera sahir do territorio do Estado, sem permissão da Assembléa Legislativa, nem exercer outra funcção publica, sob pena de perda do mandato. § unico - A prohibição da primeira parte deste artigo não comprehende os casos de ausencia menor de trinta dias, determinada por motivo de doença ou de serviço publico. Art. 50º- É o seguinte o compromisso que o Governador prestará ao empossar-se: “Prometto manter e cumprir lealmente a Constituição do Estado, promover o bem geral da Parahyba, observar as suas leis e defender-lhe a integridade e autonomia dentro do regime federativo brasileiro”. SECÇÃO II Das attribuições do Governador do Estado Art. 51º- Compete ao Governador do Estado: 1) Sanccionar, promulgar e fazer publicar as resoluções e leis da Assembléa Legislativa, e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução. 2) Vetar os projectos approvados pela Assembléa Legislativa, podendo fazel-o no todo ou em parte. 3) Nomear e demittir os secretarios de Estado, o Prefeito da capital e os dos municipios que possuirem estancias hydromineraes. 4) Apresentar á Assembléa Legislativa, no inicio de suas sessões annuaes, as contas do exercicio fmanceiro anterior e expor em mensagem a situação do Estado, indicando á mesma Assembléa as providencias e reformas que julgar necessarias. 5) Prestar á Assembléa Legislativa os esclarecimentos e informações que lhe forem solicitados. 6) Propor em mensagem especial á Assembléa Legislativa a decretação de qualquer projecto de lei que julgar necessario aos interesses do Estado. 7) Prover os cargos civis e militares, salvo as restricções constitucionaes expressas. 8) Moderar e perdoar as penas impostas por crimes comuns, sujeitos á jurisdição do Estado. 9) Convocar extraordinariamente a Assembléa Legislativa, quando o exigir o interesse do Estado. 10) Determinar a applicação dos fundos consignados pela Assem-
bléea Legislativa aos diversos serviços publicos. 11) Dispor da Força Publica do Estado para o integral e perfeito preenchimento de seus fins. 12) Requisitar do Governo da União o auxilio das forças federaes, sua permanencia e quaesquer outras providencias aconselhaveis para a ordem publica. 13) Dirigir os negocios da administração civil e militar do Estado. 14) Intervir nos municipios, nos termos do art. 91 desta Constituição. 15) Solicitar a intervenção federal, nos termos da Constituição da Republica. 16) Representar o Estado perante os poderes da União e dos outros Estados. 17) Celebrar com a União e os outros Estados, ad referendum da Assembléa Legislativa, accordos e convenções. 18) Conceder e solicitar a extradição de criminosos comuns, na conformidade das leis federaes. 19) Contrahir emprestimos internos e externos, mediante autorização da Assembléa Legislativa, observado, na ultima hypothese, o disposto na Constituição da Republica. 20) Conceder lecenças até seis meses aos funecionarios publicos, de accordo com a legislação ordinaria independente de autorização da Assembléa. SECÇÃO III Da responsabilidade do Governador do Estado Art. 52º- São crimes de responsabilidade os actos do Governador do Estado, definidos em lei, que attentarem contra: a) a existencia da União; b) a Constituição e forma de Governo da União ou do Estado; c) o gozo ou exercicio legal dos direitos politicos, individuaes ou sociaes; d) a segurança interna do Estado; e) a probidade da administração; f) a guarda e emprego constitucional dos dinheiros publicos; g) as leis orgamentarias do Estado; h) o cumprimento das decisões judiciarias. Art. 53º- O Governador do Estado será processado e julgado, nos crimes communs, pela Corte de Appellação e nos de responsabilidade, por um Tribunal Especial que terá como Presidente o da referida Corte e se comporá deste ultimo e de mais seis membros, sendo três desembargadores e três deputados à Assembléa Legislativa. O Presidente tera apenas voto de qualidade. § 1º- A decretação da procedencia da accusação incumbe á Assembléa Legislativa; ficando desde logo o Governador suspenso de suas funcções. § 2º - Far-se-á a escolha dos Juizes do Tribunal Especial por sorteio, dentro de cinco dias uteis, depois de decretada a accusação. § 3º - O processo e julgamento do Governador serão regulados por lei especial e não lhe serao applicadas outras penas, além da perda do cargo e incapacidade para exercer qualquer funcção publica, sem prejuizo das acções civis e criminaes cabiveis na especie. Art. 54º - A decisão da Assembléa que decretar a procedencia da accusação contra o Governador do Estado, quer nos crimes communs, quer nos de responsabilidade, será tomada por dois terços dos membros presentes. SECÇÃO IV Dos Secretários de Estado Art. 55º- O Governador será auxiliado, de accordo com as necessidades do serviço publico, por Secretarios de Estado, maiores de 21 annos e alistados eleitores. Art. 56º- Além das attribuições que a lei ordinaria fixar, competirá aos secretarios: a) subscrever os actos do Govemador do Estado; b) expedir instrucções para a boa execução das leis e regulamentos;
c) apresentar ao governador o relatorio dos serviços de sua Secretaria referentes ao anno anterior; d) comparecer á Assembléa Legislativa nos casos e para os fins especificados na Constituiçãoo; e) preparar as propostas dos orçamentos respectivos. § unico - Ao Secretario da Fazenda compete mais: 1º) Organizar a proposta geral do orçamento da despesa e receita do Estado, com os elementos de que dispuzer e os fornecidos pelos outros Secretarios; 2º) Apresentar annualmente ao Governador do Estado, para ser enviado á Assembléa Legislativa, o balanço definitivo da receita e despesa do ultimo exercicio. Art. 57º- Os Secretarios de Estado serão responsaveis pelos actos que subscreverem, ainda que conjunctamente com o Governador, ou praticarem por ordem deste. § unico - Os Secretarios de Estado serão processados e julgados, nos crimes communs e nos de responsabilidade, pela Corte de Appellação do Estado e, nos crimes connexos, com os do Governador, pelo Tribunal Especial. Art. 58º- Os Secretarios de Estado, durante o exercicio de seus cargos, não poderão desempenhar quaesquer outras funcções publicas e perceberão os honorarios que a lei lhes fixar. CAPÍTULO IV Do Poder Judiciario SECÇÃO I Disposições Preliminares Art. 59º- São orgãos do Poder judiciario do Estado: a) A Corte de Appellaçao; b) Os juízes de Direito; c) Os Juízes Municipaes; d) O Tribunal do Jury. Art. 60º- A constituição, jurisdição, alçada, competencia e condições de exercicio dos diversos orgãos do Poder Judiciario serão determinadas em lei ordinaria, respeitados os principios constitucionaes. § 1º - A lei de divisão e organização judiciarias não poderá ser alterada dentro de 5 annos da data em que for promulgada, salvo proposta motivada da Corte de Appellação. § 2º - A creaçãoo, suppressão, restauração ou transferencias das sedes de comarcas ou termos também sé poderão ser feitas, mediante proposta da Corte de Appellação. Art. 61º- Salvo as restricções expressas nesta Constituição, os juizes de Direito e os desembargadores, além dos direitos e vantagens assegurados ao funccionalismo publico em geral, gozarão das garantias seguintes: a) vitaliciedade, não podendo perder o cargo sinão em virtude de sentença judiciaria, exoneragdo e pedido, ou aposentadoria que será compulsória aos 68 annos de idade, ou por motivo de invalidez comprovada e facultativa em razão de serviços publicos prestados, por mais de trinta annos, definidos em lei. b) Inamovibilidade, salvo em caso de promoção, remoção a pedido ou em virtude de interesse publico, quando dois terços dos membros effetivos da Corte de Appellação o exigirem. c) Irreductibilidade de vencimentos, que ficam todavia sujeitos aos impostos geraes. § unico - Os vencimentos dos juizes ou desembargadores que forem aposentados serão os integraes do cargo, ao termo da aposentadoria. Art. 62º- Os juizes e desembargadores, ainda que em disponibilidade, não podem exercer outra funcção publica, salvo o magisterio e os casos previstos em lei. A violação importa perda do cargo judiciario e de todas as vantagens correspondentes. Art. 63º- É vedado aos desembargadores e juizes exercer actividade politico-partidaria. Art. 64º- Nenhuma percentagem será concedida aos magistrados em virtude de cobrança de dividas. Art. 65º- A justiça do Estado não poderé intervir em questões subabril/maio/junho/2015 |
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mettidas aos tribunaes federaes, nem lhes alterar, suspender ou annullar as ordens ou decisões. Art. 66º- Os juizes negarão applicabilidade as leis inconstitucionaes e recusarão validade aos actos contrarios ás Constituições Federal e Estadual, devendo a inconstitucionalidade, na Corte de Appellação, ser declarada por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus membros. SECÇÃO II Da Corte de Appellação Art. 67º- A Corte de Appellação, com sede na capital do Estado e jurisdição em todo o seu territorio, compor-se-á de sete desembargadores. Sob proposta da mesma Corte, o numero de desembargadores poderá ser elevado por lei até nove e, em qualquer caso, sera irreduzivel. Art. 68º- Salvo o disposto no § 2º, os desembargadores serão nomeados pelo Governador do Estado dentre os juizes de Direito indicados pela Corte de Appellação, a qual, obedecendo ao criterio de antiguidade e merecimento, organizará, neste ultimo caso, uma lista com três nomes. § 1º - As vagas, successivas ou simultaneas, serão providas alternadamente, mediante accesso por antiguidade e merecimento. § 2º - Um quinto do numero total dos lugares será preenchido por advogado inscripto na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção deste Estado, ou por membro do Ministerio Publico, de notorio merecimento e reputação illibada, também escolhido em lista triplice pela Corte de Appellação, em escrutinio secreto. Art. 69º- A lei, sob proposta da Corte de Appellação, poderá dividil-a em camaras ou turmas, e distribuir entre estas ou aquellas o julgamento dos feitos, com recursos, ou não, para o Tribunal collectivo. Art. 70º- Nos crimes communs e nos de responsabilidade, os desembargadores da Corte de Appellação serão processados e julgados pela Corte Suprema, de accordo com o art. 76, letra b, da Constituição da Republica. Art. 71º- Compete a Corte de Appellação: I - Processar e julgar originariamente: a) o Governador do Estado nos crimes communs; b) os secretarios de Estado nos crimes communs e nos de responsabilidade não connexos com os do Governador; c) o Procurador Geral do Estado e os juizes de Direito, nos crimes communs e nos de responsabilidade; d) os conflictos de jurisdição suscitados pelos juizes de Direito; e) a extradição de criminosos, requisitada pela justiça de outros Estados; f) o habeas-corpus, quando for paciente ou coactor funccionario ou autoridade, cujos actos estejam sujeitos emmediatamente a jurisdição da Corte; g) o mandado de segurança contra actos do Governador ou dos Secretarios de Estado; h) a execução das sentenças nas causas de sua competencia originaria,com a faculdade de delegar actos do processo a juiz inferior. II - Julgar as acções de seus accordãos. III - Julgar em recurso ordinario: a) as causas, inclusive mandado de segurança, decididas pelos juizes de Direito; b) as decisões de juizes de Direito denegatorias de habeas-corpus. § unico - A lei de organização judiciaria especificará os demais actos de competencia da Corte de Appellação, para o completo desempenho de suas funcções. Art. 72º- Os vencimentos dos desembargadores da Corte de Appellação serão fixados em quantia nunca inferior á que percebam os Secretarios de Estado. SECÇÃO III Dos Juizes Art. 73º- Os juizes de Direito serão nomeados dentre os bra-
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sileiros natos, bachareis ou doutores em direito, de reconhecido saber e reputação illibada, que não tenham menos de vinte e cinco nem mais de cincoenta annos de idade, salvo os juizes municipaes e os membros do Ministerio Publico, quanto a este ultimo limite. Art. 74º- A nomeação dos juizes de Direito será feita pelo Governador do Estado dentre três nomes com os requisitos do artigo anterior, indicados em escrutinio secreto pela Corte de Appellação, depois de classificados em concurso organizado pela mesma Corte. Art. 75º- As comarcas do Estado serão divididas em entrancias, para effeito de promoção dos juizes. Art. 76º- A investidura para a primeira entrancia será mediante concurso de provas e titulos. Art. 77º- As promoções far-se-ão alternadamente por antiguidade ou merecimento. § 1º- Nos casos de promoção por antiguidade decidirá preliminarmente, a Corte de Appellação, em escrutinio secreto, si deve ser proposto o juiz mais antigo; si três quartos dos votos dos juizes effectivos forem pela negativa, proceder-se-á á votação relativamente ao immediato em antiguidade, e assim por diante, até se fixar a indicação. § 2º- Para a promoção por merecimento, a Corte de Appellação organizará lista triplice por votação em escrutinio secreto. Art. 78º- Os juizes de Direito de entrancia superior terão vencimentos não inferiores a dois terços dos vencimentos dos desembargadores; e os demais com differença não excedente a trinta por cento de uma para outra entrancia, não podendo em qualquer hypothese, ser inferiores aos que actualmente percebem. Art. 79º- Em caso de mudança da sede do juizo, é facultado ao juiz remover-se com ella, ou pedir disponibilidade com vencimentos integraes. Art. 80º- Os juizes municipaes, após dez annos de exercicio, gozarão das garantias prescriptas nas letras a, b e c do artigo 61, e neste caso, somente perderão o cargo nas mesmas condições previstas para os juizes de direito. CAPÍTULO V Do Ministerio Publico Art. 81º- O chefe do Ministério Publico será o Procurador Geral do Estado de nomeação do Governador dentre os gradua judiciaria do Estado, de accordo com os principios estabelecidos nesta Constituição. Art. 82º- O chefe do Ministerio Publico será o Procurador Geral do Estado, de nomeação do Governador, dentre os graduados em Direito, de notorio merecimento e reputação illibada. Terá os mesmos vencimentos dos desembargadores, sendo, porém, demissivel ad nutum. Art. 83º- Os membros do Ministerio Publico serão nomeados dentre os graduados em Direito, mediante concurso de provas, e só perderão os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciaria ou processo administrativo no qual Ihes será assegurada ampla defesa. Art. 84º- Os membros do Ministerio Publico serão classificados por entrancias correspondentes aos juizados em que servirem e perceberão vencimentos nunca inferiores a dois terços dos que forem abonados aos juizes das respectivas comarcas, sendo promovidos alternadamente por antiguidade e por merecimento, segundo as regras applicaveis aos juizes de Direito. CAPÍTULO VI Dos Municipios Art. 85º- O territorio do Estado continuará dividido em municipios, subdivididos estes em districtos. Só por lei ordinaria poderão ser creados outros municipios, ou alterada a constituição dos existentes, precedendo sempre representação das camaras municipaes interessadas. Art. 86º- Os municipios serão organizados por lei ordinaria, de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo o que respeite ao seu peculiar interesse. Art. 87º- Compete privativamente aos municipios:
a) a decretação dos seus impostos e taxas e a arrecadação e applicação de suas rendas. b) a organização dos serviços de sua competencia. Art. 88º- É da privativa competencia do municipio a divisão do seu territorio em districtos. Art. 89º- Haverá em cada municipio: 1º- Uma camara com funcções deliberativas, sendo o numero de vereadores fixado em lei ordinaria, conforme a categoria do municipio; 2º- Urn prefeito com funcções executivas. § 1º- O prefeito e os vereadores das camaras municipaes serão eleitos por suffragio directo, universal e secreto, pelo periodo de quatro annos. O prefeito não poderá ser reeleito, sinão quatro annos depois de cessada a sua funcção, qualquer que tenha sido a duração desta. § 2 - O prefeito será de nomeação do Governador do Estado no municipio da capital e nos que possuirem estancias hydro-mineraes. Art. 90º- A lei de organização municipal determinará os municipios, cujas camaras devem comportar representação obrigatoria das classes profissionaes. Art. 91º- O Estado não poderá intervir nos municipios, salvo: a) para lhes regularizar as finanças, no caso de impontualidade nos serviços por elles garantidos; b) para prover a falta de pagamento da sua divida fundada por dois annos consecutivos. § 1º- A intervenção será decretada pela Assembléa Legislativa que lhe fixará amplitude e duração podendo ser prorogada por nova deliberação. A Assembléa autorizará ao Govemador do Estado nomear o interventor. § 2º - A intervenção não implica subrogação do Estado nos direitos e obrigações do municipio e sómente se effectuará, mediante representação de qualquer dos poderes estaduaes ou municipaes. § 3º - Compete ao Governador do Estado executar a intervenção facultando ao interventor todos os meios de acção que se façam necessarios. § 4º - O interventor prestará contas da sua administração á Assembléa Legislativa. Art. 92º- Quando a Assembléa Legislativa nao estiver reunida, o Governador a convocará para, dentro de dez dias, tomar conhecimento da representação de que trata o § 2º do artigo anterior. Art. 93º- São condições de elegibilidade para os cargos de prefeito e vereador: 1º- Ser brasileiro nato e maior de vinte e um annos; 2º- Ser alistado eleitor; 3º - Estar em gozo dos direitos politicos; 4º - Não estar incurso em incompatibilidade legal. § unico - Prevalecem para as eleições aos cargos municipaes os motivos de inelegibilidade estabelecidos quanto aos deputados á Assembléa Legislativa, além dos indicados em o numero terceiro do art. 112 da Constituição da Republica. Art. 94º- São attribuições das camaras municipaes, além de outras que a lei estatuir: 1) orçar a receita e fixar annualmente a despesa do municipio, frcando prorogado o orçamento anteior, quando o novo não tiver sido elaborado até trinta e um de dezembro e, respeitadas as disposições constitucionaes da União e do Estado, decretar impostos, taxas, contribuições, emolumentos e multas; 2) fiscalizar a administração dos bens e a arrecadação, applicação e destino das rendas municipaes; 3) celebrar com outras camaras ajustes convenções e contractos de interesse municipal; 4) autorizar aos prefeitos contrahir emprestimos, depois de previa consulta á Assembléa Legislativa, determinando logo a respectiva applicação e designando os fundos necessarios a juros e amortizações; 5) organizar a politica municipal; 6) consignar no minimo, dez por cento das rendas municipaes ao serviço de instrucção e educação e, pelo menos, cinco por cento ao amparo á maternidade e á infancia, e combate ás endemias ruraes; 7) autorizar despesa com os serviços de illuminação publica, asseio, limpeza, calçamento, exgoto, arborizações, ajardinamentos e qua-
esquer outros, inclusive socorros aos indigentes e enfermos pobres do municipio; 8) legislar, por meio de posturas, sobre estradas, ruas, jardins, logradouros publicos, mercados, abastecimento dagua, obras de irrigação e asseio publico, illuminação, bibliothecas populares, predios escolares, hospitaes, hygiene e saúde publicas, embellezamento e regularidade dos edificios, ruas e povoações, cemiterios, respeitada a propriedade, a administração e livre exercicio do respectivo culto naquelles que forem mantidos por corporações religiosas; assim como serviços e obras de interesse local; 9) nomear, promover, aposentar e demittir os empregados de sua immediata dependencia, nos termos desta Constituição e respeitadas as leis do Estado; 10) approvar as nomeações e aposentadorias propostas pelo prefeito, quando relativas a funccionarios que deste dependam; 11) julgar as contas que o prefeito deverá apresentar na primeira sessão de cada anno, concernentes á sua administração, durante o exercicio financeiro findo; 12) decretar desappropriações por necessidade ou utilidade publica, nos casos e na forma determinados por lei; 13) comminar multas por inflacção às leis municipaes. Art. 95º- São attribuições do prefeito, além de outras indicadas na lei de organização municipal: 1) sanccionar ou vetar total ou parcialmente, os projectos de leis ou resoluções da camara municipal e providenciar para que sejam os mesmos promulgados, publicados e fielmente executados; 2) exercer a superintendencia de todos os estabelecimentos obras e serviços municipaes e administrar os bens e rendas do municipio; 3) apresentar á camara um relatorio annual sobre o estado de todos os serviços municipaes, dando conta da administração do anno findo e apresentando as bases do orçamento do anno seguinte; 4) convocar extraordinariamente a camara municipal, para deliberar sobre negocio urgente que por ella deva ser resolvido; 5) nomear, demittir e suspender os funccionarios subordinados á sua administração, de accordo com a legislação em vigor. Art. 96º- O prefeito que não prestar contas de sua administração, nos termos da lei ordinaria, ou não entregar ao seu substituto o archivo e a thesouraria, sob sua guarda, ficará inhabilitado para o exercicio de qualquer funcção publica, até que satisfaça aquelle dever, além de sujeito á pena a que possa ser condemnado pela justiça commum. Art. 97º - Nos crimes de responsabilidade, o prefeito responderá perante o juizo de Direito, com recurso necessario para a Corte de Appellação do Estado. § unico - Para os effeitos deste artigo, constituem crime de responsabilidade os mesmos previstos no art. 52º do capitulo III. Art. 98º- As resoluções das camaras municipaes, que forem pelos prefeitos consideradas prejudiciaes aos interesses do municipio, não serão executadas emquanto a camara, depois de receber as razões produzidas pelo prefeito, que terá o prazo de dez dias para oppor e justificar o seu véto, não as mantiver por dois terços da totalidade dos seus membros. Art. 99º- Os prefeitos terão o subsidio que a camara municipal fixar na legislação anterior ao seu exercicio, sendo gratuito o mandato de vereador. Art. 100º- As camaras não poderão perdoar as dividas activas do municipio, nem conceder favores de qualquer especie, sem previa autorização da Assembléa Legislativa. Art. 101º- O municipio que não estiver em condições de prover as despesas com os serviços publicos poderá requerer á Assembléa Legislativa a sua annexação a um ou mais dos municipios limitrophos. Art. 102º- Os municipios não poderão crear impostos de transito pelo seu territorio, sobre productos de outros municipios. Art. 103º- A execução das deliberações dos poderes municipaes, relativas a operações de credito, aforamentos e alienações de immoveis, depende da approvação previa da Assembléa Legislativa. Art. 104º- Occorrendo a vaga de prefeito, até três annos depois do inicio de sua funcção, terá lugar nova eleição, de accordo com o disposto nesta Constituição. abril/maio/junho/2015 |
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§ unico - Havendo impedimento, falta, licença ou ocorrendo a vaga depois de três annos, a contar do inicio de seu periodo, serão chamados successivamente a occupar o cargo de prefeito, o presidente da camara municipal e os seus substitutos eventuaes. Art. 105º- Além dos impostos previstos nos arts. 4º, inciso 6º, letra g, e 5º, nº 7, desta Constituição, pertencem aos municipios: 1) o imposto de licença; 2) os impostos prediaes e territoriaes urbanos, cobrado o primeiro sob a forma de decima ou cedula de renda; 3) o imposto sobre diversões publicas; 4) o imposto cedular sobre a renda de immoveis ruraes; 5) as taxas de serviços municipaes. § 1º- Applicam-se á organização do orçamento e do regimen tributario dos municipios, as disposições estabelecidas desta Constituiçõo para o Estado. § 2º- O municipio da capital auxiliará directa ou indirectamente a construcção de casas populares, de modo a solucionar o problema da habitação proletaria. Art. 106º- Aos municipios não serão attribuidas as despesas de serviços estaduaes, cujos funccionarios não sejam por elles nomeados. TÍTULO II Dos Funccionarios Publicos Art. 107º- Os cargos publicos no Estado e nos municipios são accessiveis a todos os brasileiros, sem distincção de sexo ou estado civil, observadasas condições que a lei estatuir. Art. 108º- Os funccionarios que contarem menos de dez annos de serviço effectivo não poderão ser destituidos dos seus cargos, sinão por justa causa ou motivo de interesse publico. Art. 109º- O Estatuto dos Funccionarios Publicos, a ser votado em lei ordinaria, obedecerá ás seguintes normas, desde já em vigor; a) o quadro dos funccionarios publicos comprehenderá todos os que exerçam cargos publicos, seja qual for a forma de pagamento, inclusive tabelliães, escrivães e todos os officios da justiça; b) a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas e nos demais, que a lei determinar, effectuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas e titulos; c) salvo os casos previstos na Constituição, serão aposentados compulsoriamente os funccionarios que attingirem 68 annos de idade; d) a invalidez para o exercicio do cargo ou posto determinará a aposentadoria ou reforma que, neste caso, si contar o funccionario mais de trinta annos de serviço publico effectivo, nos termos da lei, será concedida com os vencimentos integraes; e) o prazo para a concessão da aposentadoria com vencimentos integraes, por invalidez, poderá ser excepcionalmente reduzido, nos casos que a lei determinar; f) o funccioriario que se invalidar, em consequencia de accidente occorrido no exercicio do cargo, será aposentado com vencimentos integraes, qualquer que seja o seu tempo de serviço, serão também aposentados com as mesmas vantagens os acommetidos de doença contagiosa ou incuravel, que os inhabilite para o serviço publico; g) os proventos da aposentadoria ou reforma não poderão exeder aos vencimentos da actividade; h) o funccionario publico terá direito, contra decisão disciplinar e nos casos determinados, á revisão do processo que lhe impuzer penalidade; § unico - Haverá uma comissão de concursos e promoções, nomeada pelo Governador, a qual se incumbirá de propor, na forma da lei, os candidatos á nomeação e ás promoções aos postos da carreira administrativa. Art. 110º- Os funccionarios publicos serão solidariamente responsaveis com a Fazenda Estadual ou municipal, por qualquer prejuizo decorrente de negligencia, omissão ou abuso, no exercicio de seus cargos. Art. 111º- É vedado a accumulação de cargos publicos remunerados do Estado, da União e dos Municipios, salvo as excepçães previstas na Constituição da Republica. Art. 112º- Annullado por sentença o afastamento de qualquer fun-
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cionario do seu cargo, dar-se-á a reintegração, ficando destituido de plano o que houver sido nomeado em seu lugar, sem direito a qualquer indennização. Art. 113º- O funccionario publico licenciado por motivo de molestia, devidamente constatada em rigorosa inspecção de saúde, não soffrerá descontos em seus ordenados, salvo os decorrentes das obrigações referentes á contribuição e joia do Montepio. Art. 114º- Em lei ordinaria será regulado o direito de ferias remuneradas, assegurado aos funccionarios publicos do Estado e do municipio, bem como a forma e condições das aposentadorias. Art. 115º- Os funccionarios publicos, que exerçam cargos que não tenham accesso, terão direito a uma gratifcação addicional por tempo de serviço, depois de dez annos de effectivos exercicio no cargo. A gratificação acima referida não poderá exceder de cincoenta por cento dos vencimentos percebidos. Art. 116º- Os professores dos estabelecimentos officializados contarão tempo para effeito de aposentadoria e vitaliciedade, quando vierem a exercer cargos publicos estaduaes. TÍTULO III Da Segurança Publica Art. 117º- Cumpre ao Estado assegurar a ordem publica e promover a tranquilidade social, mantendo para esse fim corporações especiaes, civis ou militares. Art. 118º- A Policia Militar ou Força Publica, instituição permanente no Estado, subordinada ao Governador, é também reserva do Exercito Nacional e, dentro da lei, essencialmente obediente aos seus superiores hierarchicos. Art. 119º- Compete á Força Publica: a) garantir precipuamente a segurança interna do Estado e, eventualmente, a do país, em collaboração com as demais forças nacionaes; b) assegurar o exercicio das funcçães de policia, na conformidade das leis referentes á organização policial do Estado. Art. 120º- Dependem de regulamentação por lei federal, conforme dispõe a Constituição da Republica, a organização, instrucção, justiça e garantias da Policia Militar ou Força Publica, bem como as condições geraes de sua utilização em caso de mobilização ou de guerra. Art. 121º- Os uniformes, distinctivos e insignias da Força Publica são privativos e de uso exclusivo no Estado dos seus officiaes e praças. TÍTULO IV Da reforma da Constituição Art. 122º- A Constituição poderá ser emendada ou revista. § 1º - Na primeira hypothese, a proposta deverá ser formulada de modo preciso, com a indicação dos dispositivos a emendar, e será de iniciativa: a) de uma quarta parte, pelo menos, dos membros da Assembléa Legislativa; b) de mais de metade dos municipios, pelo voto das suas Camaras Municipaes, manifestado dentro do prazo de dois annos. Dar-se-á por approvada a emenda que for acceita, em duas discussões, pela maioria absoluta da Assembléa Legislativa, em dois annos consecutivos. Se a emenda obtiver o voto de três quartos dos membros componentes da Assembléa Legislativa, poderá ser,no mesmo anno, submettida a uma terceira discussão, entendendo-se definitivamente approvada di lograr quorum identico. § 2º - Na segunda hypothese, a proposta de revisão será apresentada á Assembléa Legislativa e apoiada, pelo menos por dois quintos dos seus membros, ou a ella submettida por dois terços dos municipios, em virtude de deliberação da maioria absoluta de cada uma das Camaras Municipaes, tomada dentro de dois annos. Si por maioria absoluta de votos, a Assembléa Legislativa concordar com a opportunidade da revisão, proceder-se-á pela forma que determinar, a elaboração do projecto que será, em seguida, discutido e emendado em três turnos. Approvada a redacção final, o projecto será publicado em avulso para larga distribuição no Estado. Na legislatura seguinte, no decurso do
primeiro anno, haverá uma unica discussão e votação, sem apresentação de emendas na qual se ultimará o processo da revisão com a approvação ou rejeição do projecto. § 3º - As emendas approvadas nos termos do § 1º serão annexadas com numeros de ordem ao texto constitucional que, nessa conformidade, deverá ser mandado publicar pelos membros da Mesa da Assembléa Legislativa, incumbindo a estes a promulgação. § 4º - Quando occorrer a approvação do projecto de revisão, nos termos do § 2º, a nova Constituição será promulgada igualmente pela Mesa da Assembléa Legislativa, depois de assignada pelos Deputados presentes. § 5º - Não se procederá a reforma da Constituição na vigencia de estado de sitio no territorio do Estado. § 6º - Não serão admitidos, como objecto de deliberação, projectos infringentes da Constituição da Republica. TÍTULO V Da declaração de direitos e garantias Art. 123º- O Estado da Parahyba assegura a nacionaes e estrangeiros, nos termos da Constituição da Republica, a inviolabilidade e o exercicio dos direitos individuaes, politicos e sociaes. Art. 124º- É assegurado o direito de requerimento nas repartições publicas estaduaes e municipaes. A lei ordinaria regulará o prazo dentro do qual será proferido o despacho, bem como os meios necessarios ao rapido andamento das petições. TÍTULOVI Da Familia, da Educação e da Cultura Art. 125º - O Estado assegurá protecção especial á familia, constituída pelo casamento indissoluvel, como fonte de conservação e desenvolvimento da raça e base primaria da educação, disciplina e harmonia social. Cumpre assim ao Estado como ao municipio: a) amparar por leis e meios adequados, a maternidade e a infância; b) assegurar amparo aos desvalidos, creando serviços especializados e animando os serviços sociaes, cuja orientação procurarao coordenar; c) estimular a educação eugenica; d) soccorrer as familias de prole numerosa; e) proteger a juventude contra o abandono physico, moral e intellectual, e contra toda e qualquer exploração; f) adoptar medidas legislativas e administrativas, tendentes a restringir a mortalidade e morbilidade infantis; g) cuidar da hygiene em geral, especialmente da mental, e incentivar a lucta contra os venenos sociaes. Art. 126º- O Estado e os municipios cooperarão com a União no combate ás grandes endemias do paiz. Art. 127º- A educação e a instrucção são obrigatorias e incumbem á familia e aos estabelecimentos officiaes do Estado e do Municipio, ou aos particulares, em cooperação com a familia. Art. 128º- O Estado organizará o seu systema educativo, mantendo estabelecimentos officiaes ou subvencionando institutos particulares de ensino primario, secundario, profissional e superior, dentro das directrizes geraes do plano nacional, estabelecidas nos termos da Constituição da Republica. Art. 129º- O plano estadual de educação, uma vez approvado pelo Conselho Estadual de Educação, só se póde renovar, em prazos determinados e obedeceráas seguintes normas: a) ensino primario integral, gratuito e de frequencia obrigatoria, extensivo aos adultos; b) tendencia á gratuidade do ensino educativo ulterior ao primario, a fim de o tornar accessivel ás classes pobres; c) liberdade de ensino em todos os gráos e ramos, observadas as prescripções da legislação federal e da estadual; d) obrigatoriedade, nos estabelecimentos particulares, do ensino, ministrado no idioma patrio, salvo o de linguas estrangeiras; e) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino,
somente quando assegurarem aos seus professores a estabilidade, enquanto bem servires e uma remuneração condigna. Art. 130º- O ensino religioso seraá de frequencia facultativa nas escolas publicas primarias, secundarias, profissionaes e normaes do Estado e dos Municipios, ministrado de accordo com os principios da confissão religiosa do alunno, manifestada pelos paes ou responsaveis e constituirá materia do horario escolar. Art. 131º- O Estado e os municipios reservarão uma parte dos seus patrimonios territoriaes para a formação dos respectivos fundos de educação. Art. 132º- Aos professores nomeados por concurso, para os institutos secundarios e superiores officiaes, cabem as garantias de vitaliciedade e de inamovibilidade. § unico - Em caso de extincção da cadeira, será o professor aproveitado na regencia de outra, em que se mostrar habilitado. Art. 133º- Toda firma ou empresa localizada fora dos centros escolares e na qual trabalhem mais de cincoenta operarios a obrigada a manter, pelo menos, uma escola primaria para ensino gratuito dos empregados, trabalhadores e seus filhos. TÍTULO VII Da Ordem Social e Economica Art. 134º- O Estado, dentro da competencia que lhe é assegurada pela Constituição da Republica, promoverá em lei ordinaria: a) a organização de pensões, aposentadorias, seguros e assistencia medica aos funccionarios publicos e suas familias; b) a instituição de seguros sociaes contra a invalidez, accidentes no trabalho, molestias, velhice e desoccupação não procurada; c) o desenvolvimento da assistencia social, notadamente a hospitalar, e do amparo á infancia, á maternidade, á velhice e ao trabalho intellectual, com especial attenção ás populações ruraes; d) o regimen de oito horas para trabalho machino-factureiro, commercial e mineiro; salario minimo, restricção dos trabalhos nocturnos, limitação dos diumos para as mulheres gravidas ou para as lactantes, com adopção obrigatoria de medidas protectoras da sua saúde; interrupção dos turnos para menores entre 14 e 18 annos; e) o fomento e reconhecimento de syndicatos, cooperativas e associações profissionaes regulares e estaveis, inclusive as de profissões liberaes; f) as providencias necessarias para que nos accidentes de trabalho, em obras publicas do Estado, a indemnização seja feita pela folha de pagamento, dentro de quinze dias, depois da sentença defmitiva; g) o combate á usura, amparando e estimulando por todos os meios os estabelecimentos de credito agricola existente e promovendo a creação de outros, na base do systema cooperativo; h) a organização de planos technicos referentes a todo serviço publico; i) o descanso hebdomadario dominical; j) promover a organizarção de colonias agricolas, para onde serão encaminhados os habitantes que o desejarem, das zonas empobrecidas ou assoladas pela seca, e os sem trabalho. Art. 135º- O Estado reconhece a personalidade juridica das associações de classe, organizadas para fins de beneficencia e defesa, de conformidade com as leis federaes. Art. 136º- O Estado, em lei ordinaria, adoptará medidas de amparo á pequena propriedade para maior aproveitamento das terras, e assegurará protecção á agricultura e á pequaria, proporcionando aos agricultores e criadores meios de combate ás pragas dominantes. Art. 137º- Os direitos e deveres especificados neste titulo tambem competirão aos municipios, no que lhes for applicavel. TÍTULO VIII Das Disposições Geraes Art. 138º- São impenhoraveis os bens e rendas do Estado e dos municipios. Art. 139º - Os pagamentos devidos pela Fazenda Estadual ou muniabril/maio/junho/2015 |
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cipal, em virtude de sentença judiciaria, far-se-ão na ordem da apresentação dos precatorios e á conta dos creditos respectivos, sendo vedada a designação de caso ou pessoas nas verbas legaes. § unico - Esses creditos serão consignados pelo Poder Executivo ao Poder Judiciario, recolhendo-se as importancias ao cofre dos depósitos publicos. Cabe ao Presidente da Corte de Appellação expedir as ordens de pagamento, dentro das forças do deposito, e, a requerimento do credor que allegar preterição da sua precedencia, autorizar o sequestro da quantia necessaria para o satisfazer, depois de ouvido o Procurador Geral do Estado. Art. 140º- Nenhum imposto, tanto no Estado como nos municipios, será elevado além de vinte por cento do seu valor ao tempo do augmento. Art. 141º - Nenhum encargo será creado ao Thesouro si não houver recursos sufficientes para custear as despesas delle decorrentes. Art. 142º- Não poderá ter applicação differente o producto dos impostos, taxas ou quaesquer tributos creados para fins determinados. Art. 143º- O producto das multas não poderá ser attribuido, no todo ou em parte, aos funccionarios que as autuarem, impuzerem ou confirmarem. Art. 144º - Para o Estado, como para os municipios, a abertura de credito especial ou supplementar depende de autorização expressa da Assembléa Legislativa e das Camaras Municipaes respectivamente; a de créditos extraordinarios poderá occorrer, de accordo com a lei ordinaria, para despesas urgentes e imprevistas, em caso de calamidade publica ou de grave alteração da ordem. § unico - Salvo disposição expressa em contrario, só serão abertos creditos não decorrentes de autorização orgamentaria, depois do segundo semestre do exercicio. Art. 145º- Quando em algum municipio se perpetrarem crimes que, por qualquer circunstancia, possam tolher a acção regular das autoridades locaes ou embaraçar o esclarecimento da verdade, a Corte de Appellação, por solicitação do Governador do Estado, designará immediatamente um magistrado para proceder a rigoroso inquerito, formação de culpa e pronuncia dos criminosos, com recursos necessario para a mesma Corte. Art. 146º- Respeitados os direitos adquiridos de qualquer natureza preexistentes a esta Constituição, ficam revogadas todas as disposições legaes que, explicita ou implicitamente, contrariem os seus dispositivos. DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS Art. 1º- Promulgada esta Constituição, a Assembléa Constituinte trasnformar-se-á em Assembléa Legislativa e, depois de eleitos e proclamados os deputados classistas, elaborará as leis ordinarias de urgencia e todas as demais que se fizerem necessarias á boa organização dos serviços publicos. § 1º- Essa reunião não prejudica a primeira sessão ordinaria da Assembléa. § 2º- A primeira legislatura terminará no dia 24 de maio de 1938. Art. 2º- As eleições dos representantes das profissões e as dos prefeitos e vereadores, salvo a excepção estatuida no § 2º do art. 89, realizar-se-ão respectivamente sessenta e cento e vinte dias após a promulgação desta Constituição, nos termos da legislação eleitoral. § 1º- O numero de vereadores das primeiras Camaras Municipaes será em cada municipio, igual ao dos antigos conselheiros. § 2º- Para as primeiras eleições municipaes não prevalecerão incompatibilidade, impedimentos ou inelegibilidades, nem serão exigidos requisitos especiaes, salvo a qualidade de brasileiro nato, o exercicio pleno dos direitos politicos e mais a condição de trinta dias antes do pleito, demittirem-se das respectivas funcções todos os cidadãos candidates a prefeitos que occuparem este cargo. Art. 3º- A lei prevista no art. 109º desta Constituição somente será votada depois que a classe dos funccionarios publicos estiver represen-
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tada na Assembléa Legislativa. Art. 4º- Emquanto não entrarem em vigor as leis federaes sobre organização, justiça, instrucção e garantias das Policias Militares, continuarão vigorando no Estado todas as leis ou decretos que regulem a materia, em tudo quanto não contrariem os principios desta Constituição. Art. 5º- A discriminação de rendas estabelecida nesta Constituição e nos arts. 6º, 8º e 13º, § 2º da Constituição Federal, só entrará em vigor a 1ºde janeiro de 1936. § 1º- O excesso do imposto de exportação, cobrado actualmente pelo Estado, será reduzido automaticamente, a partir de 1º de janeiro de 1936 e á razão de dez por cento ao anno, atá attingir ao limite estatuido pela Constituição da Republica. § 2º- A’ mesma reducção ficam sujeitos os impostos que o Estado e os municipios cobrem cumulativamente, constantes dos seus orgamentos para 1933, e que lhes não sejam attribuidos pela Constituição da Republica. Art. 6º- Os subsidios dos deputados, bem como o do Governador do Estado, serão fixados pela Assembléa Legislativa em sua primeira reunião. Art. 7º- Dentro de 30 dias, após a promulgação desta Constituição, o Governador do Estado nomeará uma commissão composta de um magistrado, um advogado e um funccionario do Thesouro, para examinar a situação dos funccionarios demittidos sem processo administrativo desde 1930, que contarem mais de dez annos de serviço, e a dos magistrados que foram afastados nas mesmas condições e dentro do mesmo prazo. § unico - Os funccionarios, contra os quaes nada ficar apurado, serão aproveitados á medida que se forem abrindo vagas nas repartições em que servirem, ficando os magistrados desde logo em disponibilidade, emquanto não houver vagas preenchiveis, ou aposentados si estiverem em condições e o requererem. Em nenhuma hypothese, porém, os funccionarios e os magistrados a que se refere este artigo terão direito a percepção de vencimentos atrazados. Art. 8º- O Estado e os municipios, após a promulgação desta Constituição, poderão fazer a revisão dos contractos lesivos aos interesses publicos e celebrados sem as formalidades legaes. Art. 9º- O actual periodo governamental terminará no dia 25 de janeiro de 1939. Art. 10º- Esta Constituição sera promulgada pela Mesa da Assembléa Constituinte, depois de assignada pelos deputados presentes; entrará em vigor na data de sua publicação e será distribuida gratuitamente em todo o Estado pelo Governo, que promoverá os meios necessarios para tornal-a amplamente divulgada. Mandamos, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento desta Constituição pertencer, que a executem e a façam executar e observar fiel e inteiramente como nella se contem. ba.
Publique-se e cumpra-se em todo o territorio do Estado da Parahy-
Sala das sessões da Assembléa Constituinte do Estado da Parahyba, na cidade de João Pessoa, capital do Estado, aos dez dias do mês de Maio de mil novecentos e trinta e cinco. (ass.) José de Sousa Maciel, presidente, Adalberto Ribeiro, 1º secretario, José Peregrino de Araujo Filho, 2º secretario, Pedro Ulysses de Carvalho, José Targino, Américo Maia, Francisco Duarte Lima, Octávio Amorim, Severino Lucena, Fernando Caneiro da Cunha Nóbrega, Tertuliano Correia da Costa Brito, Miguel Bastos, Paula e Silva, Emiliano Castor da Nóbrega, Mons. Odilon da Silva Coutinho, José Rodrigues de Aquino, José Francisco de Paula Cavalcanti, Alcindo de Medeiros Leite, Raphael Sebas, José Antonio da Rocha, Raymundo Vianna, Newton Nobre de Lacerda, Celso Mattos Rolim, Fernando Pessoa, Aluisio Affonso Campos, Ernani Ayres Satyro e Sousa, Delfim Costa, Lauro Wanderley, Francisco Seraphico da Nóbrega. g
LINGUÍSTICA
A LINGUAGEM REGIONAL–POPULAR NO NORDESTE DO BRASIL: ASPECTOS LÉXICOS Maria do Socorro Silva de Aragão
INTRODUÇÃO Os estudos linguísticos no Nordeste têm se destacado em determinadas áreas, em momentos diferentes. Assim, tivemos uma fase da Dialetologia e Geografia Linguística e uma fase, atual, da Sociolinguística, cada uma dessas fases abordando aspectos específicos da análise linguística da Língua Portuguesa, desde o fonético-fonológico, ao léxico e ao morfossintático. De alguns anos para cá tem surgido uma nova onda de estudos dialetais e sociolinguísticos com enfoque no aspecto léxico, mais precisamente na publicação de dicionários, vocabulários e glossários de falares regionais nordestinos, começando pela Bahia, com o do baianês, passando por Alagoas, com o do alagoanês, por Pernambuco, com o do pernambuquês, pelo Ceará, com o do cearês e pelo Piauí, com o do piauiês. Essa tendência atual segue uma tradição começada por Pereira da Costa (1937) com o Vocabulário pernambucano; Leon Clerot (1959), com o Vocabulário de termos populares e gírias da Paraíba; Raimundo Girão (1967) com o Vocabulário Cearense; Horácio de Almeida (1979) com o Dicionário popular paraibano; Raimundo Nonato (1980) com o Calepino potiguar - gíria riograndense; Tomé Cabral (1982) com o Dicionário de termos e expressões populares; Leonardo Mota (1982) com o Adagiário brasileiro e Florival Seraine (1991) com o Dicionário de termos populares - registrados no Ceará. Uma das características dos novos dicionários, vocabulários e glossários é que seus autores não são lexicógrafos ou linguistas. São pessoas com outras formações profissionais: jornalistas, engenheiros, médicos, folcloristas ou pessoas curiosas que resolveram listar e publicar, em forma de dicionário, palavras e expressões populares que, crêem eles, são típicas daquele estado específico. Este trabalho faz uma rápida análise da estrutura desses dicionários, vocabulários e glossários regionais nordestinos.
1. LÉXICO, SOCIEDADE E CULTURA Ao se estudar a língua, os contextos socioculturais em que ela ocorre são elementos básicos, e, muitas vezes, determinantes de suas variações, explicando e justificando fatos que apenas linguisticamente seriam difíceis ou até impossíveis de serem determinados, pois, no dizer de BARBOSA (1981:158): “Língua, sociedade e cultura são indissociáveis, interagem continuamente, constituem, na verdade, um único processo complexo...” No caso específico do léxico, esta afirmação é ainda mais verdadeira pois toda a visão de mundo, a ideologia, os sistemas de valores e as práticas socioculturais das comunidades humanas são refletidos em seu léxico. Ainda segundo BARBOSA (1993:1): “... o léxico representa, por certo, o espaço privilegiado desse processo de produção, acumulação, transformação e diferenciação desses sistemas de valores.” Para se apreender, compreender, descrever e explicar a “visão de mundo” de um grupo sócio-linguístico-cultural, ou de um grupo de especialistas ou profissionais, o objeto de estudo principal são as unidades lexicais e suas relações em contextos. O linguista francês MATTORÉ ao estudar a sociedade francesa viu a política social, o jornalismo, as artes e os esportes através do que chamou palavras-chave, as que exprimem, numa sociedade, uma idéia, um ser, um sentimento que a sociedade reconhece como modelo, e as palavras-testemunho, como elementos em função das quais se hierarquiza e se coordena a estrutura da comunidade. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Todo ato ou todo objeto ideológico é sempre acompanhado, comentado, analisado, glosado por discurso, na medida em que a ligação que une linguagem e pensamento é uma ligação de unicidade. O discurso é determinado pelas condições sócio-históricas de sua produção, do mesmo modo que os objetos ou as formações ideológicas são condicionadas por per-
tencerem a um corpo social no momento de sua história. O léxico (dicionário, vocabulário, glossário), enquanto descrição de uma cultura, está no seio mesmo da sociedade, reflete a ideologia dominante mas, também, as lutas e tendências dessa sociedade. Assim, como vimos, não se pode estudar a língua sem relacioná-la com a sociedade e a cultura nas quais o falante está inserido. 2. OS DICIONÁRIOS, VOCABULÁRIOS E GLOSSÁRIOS REGIONAIS NORDESTINOS Vistos os aspectos regionais e sociais da linguagem, as relações entre léxico, cultura e sociedade e sua formalização lexicográfica em dicionários, vocabulários e glossários, surge a questão que divide os especialistas: os chamados dicionários regionais, são dicionários, são vocabulários ou são glossários? Se tomarmos a posição de MULLER-BARBOSA (1994), os consideraríamos vocabulários, uma vez que suas unidades se constituem norma no falar de um estado ou região e de uma classe definida socioculturalmente. Esta afirmação pode levar a outras discussões e maiores especificações, porém, para nosso objetivo, continuaremos a usar o termo dicionário, que é o utilizado pelos autores dos “dicionários regionais” que iremos analisar. O Brasil é tido como um país-continente, com diferenças regionais e socioculturais imensas e, por isso mesmo, a língua portuguesa, em nosso país, apresenta uma diversidade bastante significativa, tanto regional quanto social, especialmente em relação ao léxico. Essa diversidade muitas vezes é característica de um estado específico, outras vezes se estende para toda uma região, e é nesse aspecto que vamos ver como se comportam os dicionários regionais populares da região nordestina. Analisamos oito dicionários: da Bahia, de Alagoas, de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, do Ceará, abril/maio/junho/2015 |
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do Piauí e do Maranhão. Desses, dois são mais tradicionais, o da Paraíba, de Horácio de Almeida, historiador e dicionarista e o do Rio Grande do Norte, de Raimundo Nonato, cronista riograndense do norte. Os outros seis são mais novos: o da Bahia, de Nivaldo Sariú; o de Alagoas, de Elza Cansanção Medeiros, jornalista e militar, ex-combatente na Itália; o de Pernambuco, de Bertrando Bernardino, engenheiro, o do Ceará, do engenheiro Marcus Gadelha, o do Piauí, do jornalista Paulo José Cunha e o do Maranhão, de Domingos Vieira Filho. Esses têm nomes de baianês, alagoanês, pernambuquês, cearês e piauiês, palavras criadas pelos autores para se referir aos falares desses estados. • Apenas o do Ceará e o da Bahia não apresentam exemplos ou abonações; os demais vêm com contextos que esclarecem melhor o conceito; • Deles, apenas o da Paraíba tem a categoria ou classe gramatical das palavras e expressões; • As palavras e expressões vêm na forma como são faladas e não na ortografia padrão. Muitas vezes, estão numa transcrição quase fonética, como em arrudiar, (arrodear) balai (balaio), caboco (caboclo); • Os verbos não vêm na forma infinitiva, e os nomes não vêm no masculino singular, como de praxe nos dicionários; • Os dicionários de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí são de médio porte; os da Bahia, Alagoas, Ceará e Maranhão são pequenos, do tipo livro de bolso; • Os da Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Maranhão têm um caráter mais sério, linguístico e mesmo lexicográfico. Os da Bahia, Ceará, Piauí e Pernambuco são mais descontraídos, de gozação, sem qualquer preocupação lexicográfica. 2.1. EXEMPLOS DE FORMAS COMUNS EM ALGUNS DICIONÁRIOS Abestado - abobalhado, bobo, otário, idiota. (CE, PI). A PB, BA e PE apresentam a variante abestalhado. Aurélio Buarque registra como brasileirismo a forma abestalhado. Aperreado - irritado, agastado, angustiado, contrariado, afobado, atormentado, cheio de preocupações. (AL, PB, CE, PE). O MA apresenta a variante Avexado. Aurélio Buarque registra como brasileirismo.
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Arre-égua - interjeição que pode significar qualquer coisa, a depender do tom de voz e da ocasião: alegria, irritação, surpresa, enfado, contrariedade. (CE) Há ainda as variantes Ai-égua (AL), Arre-lá (PI), Arre-Elza e Arre-ema (CE). Aurélio Buarque registra apenas a forma arre, para designar cólera, enfado. Assanhada - moça exibida, saliente, namoradeira, avoada, fogosa, espevitada, sem compostura, sem termos de gente. (AL, RN, PB, PE). Há, também, o conceito de despenteada. Aurélio Buarque registra como brasileirismo (2) irrequieto, buliçoso, turbulento, e como familiar (4) erótico, namorador. Dar fé - perceber, observar, dar por si, reparar, tomar tento. (PB, RN, CE, PI). Aurélio Buarque não registra. Descansar - dar à luz, parir, ter filho. (BA, AL, PB, RN, CE, PI). Aurélio Buarque registra como brasileirismo. Gastura - indisposição estomacal, enjôo, náuseas, sensação de fome, sensação desagradável produzida pelo tato, audição ou ao sabor. (BA, AL, PE, PB, RN, CE, PI, MA). Aurélio Buarque registra como brasileirismo. Inticar - ter prevenção ou má vontade contra alguém, implicar, provocar, ficar de marcação. (BA, AL, PB, RN, PI). Aurélio Buarque registra como provincianismo lusitano e açoriano, forma enticar. 2.2. EXEMPLOS DE FORMAS ESPECÍFICAS DE ALGUNS DICIONÁRIOS 2.2.1. DICIONÁRIO DO BAIANÊS Abafa banca - espécie de picolé caseiro Arabaca - carro velho Bibiano - lamparina 2.2.2. DICIONÁRIO DE ALAGOANÊS Abaferro – trabalho intenso Bulutrica – algo incompreensível Cafinfa – pessoa impertinente,ranzinza 2.2.3. DICIONÁRIO DE PERNAMBUQUÊS Alfenim - pessoa de modos delicados
Buruçu - confusão
Ferrolho - homem fiel a uma mulher 2.2.4. DICIONÁRIO PARAIBANO
Acender a venta – farejar vantagens Bacalhau – mulher alta e magra Caixa dágua – cachaceiro, beberrão
2.2.5. CALEPINO POTIGUAR Café de parteira – café frio, choco
Dizer missa – encher o tempo com conversa fiada Espingarda – concubina, amancebada 2.2.6. DICIONÁRIO DO CEARÊS Carne de tetéu - pão duro Chapéu de touro – chifre Fuampa – mulher da vida
2.2.7. DICIONÁRIO DO PIAUIÊS A caldo de pinto – chateado, irritado Cismar da boneca – teimar Furupa – farra, algazarra 4.2.8. Dicionário do Maranhão Agafe - alfinete de segurança Lençol - mau pagador Maranha - lábia, falácia
3. CONCLUSÃO Pela rápida análise que realizamos nos oito dicionários regionais do Nordeste, pode-se concluir que as palavras e expressões consideradas de cada um desses estados, na realidade a grande maioria é encontrada, também, nos demais estados do nordeste. Das treze palavras analisadas, apenas três não são registradas no Aurélio, as demais são registradas como brasileirismos, dessas, apenas três são registradas como brasileirismos do Norte e/ou do Nordeste e apenas uma diz que é uma forma popular. Uma pesquisa mais aprofundada poderá nos dar uma visão melhor do que se pode considerar léxico regional nordestino e léxico de linguagem popular brasileira e não apenas léxico nordestino. Isto poderá ser mais um caminho para comprovar uma de nossas hipóteses ao trabalharmos com linguagem regional/popular, ou seja, para nós as diferenças diatópicas não são muito significativas. O que é mais marcante, são grandes diferenças diastráticas no léxico da língua portuguesa do Brasil. g
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LITERATURA
MELANCOLIA E LINGUAGEM Chico Viana
Pretendemos nesta comunicação, de um lado, tecer considerações sobre a relação entre melancolia e linguagem, e do outro, apontar em autores brasileiros alguns dos procedimentos retórico-poéticos vinculados a uma poética da melancolia. O que segue é um resumo dos resultados a que chegamos com as atividades desenvolvidas no projeto integrado A Sombra em Eros: imagens da melancolia em escritores brasileiros, apoiado pelo CNPq. Uma das questões colocadas em nossa pesquisa é até que ponto os procedimentos literários dos referidos autores refletem as marcas do discurso melancólico, caracterizado por uma série de “deficiências” que dificultam a comunicação. No plano literário, esses traços transmutam-se em imagens cuja recorrência redunda em vigor expressivo e visa a traduzir a “dor moral” própria da melancolia. Um dos efeitos da melancolia é enfraquecer os vínculos associativos que propiciam a representação. O melancólico expressa-se com dificuldade, como se lhe fosse difícil estabelecer o nexo entre significante e significado. A sua fala é lenta e marcada por claros, ambiguidades, repetições fônicas e lexicais que revelam uma espécie de desestruturação do discurso. Isso reflete o retardamento ideativo e a morosidade somática próprios de quem não vê sentido nas pessoas, nas coisas, no mundo. O melancólico é marcado pela culpa, que o leva a “dissociar discurso e sujeito num modo de desafetivização” (LAMBOTTE, 1997, p. 59). Em razão disso há nele desequilíbrio entre emoção e intelecto, com uma espécie de hipertrofia da função cognitiva e o aumento da capacidade de raciocinar sobre o seu estado. Há também certa dificuldade de agir, decorrente de inibição e anestesia. O protótipo dessa inabilidade para a ação é Hamlet, que se serve do discurso para adiar a vingança que pretende levar a cabo contra o assassino de seu pai. Hamlet fala interminavelmente e termina como que desvinculando suas palavras da experiência real. Ele fala porque não faz e, da mesma forma, não faz porque fala. Seu discurso desliza num espaço autônomo, mobilizado pela ansiedade e por um medo
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disfarçado em saber. No plano literário, o discurso do melancólico revela sucessivas imagens de solidão e devaneio, em que o eu lírico ou ficcional se reconhece apartado do mundo e numa condição privilegiada para refletir sobre o destino humano. Ele recusa o comércio afetivo com as pessoas, como se tal comércio constituísse um rebaixamento, e com um ar de superioridade prefere, a viver, contemplar o espetáculo da vida. Ao mesmo tempo, o melancólico encontra na criação literária, que o instala “no universo do artifício e do símbolo”, uma compensação emocional. A literatura permite-lhe “transpor o afeto nos ritmos, nos signos, nas formas” (KRISTEVA, 1989, p. 28), sendo uma maneira de ele preencher o seu vazio. São, pois, marcas essenciais do discurso do melancólico o excesso de ideias e a repetição obsessiva de imagens e temas. Segundo a psicanálise, isso indica a fixação que ele tem no “objeto perdido”, ao qual adere com um desespero quase místico. Na chamada melancolia narcísica o objeto encontra-se no interior do indivíduo, que segundo Lacan (1988, p. 69) está de luto da Coisa “enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar”. Através desse significante sem significado – a Coisa –, designa-se “o real rebelde à significação” (KRISTEVA, 1989, p. 19), cuja perda está na base do sofrimento propiciado pela melancolia. É impossível na modernidade dissociar o vazio melancólico da desconfiança quanto à capacidade que tem a linguagem de expressálo, já que a melancolia, no sentido moderno, “nasce nessa grande cesura histórica entre os séculos dezesseis e dezessete, quando a língua perde suas referências ontológicas” (BUCIGLUCKSMANN, 1987, p. 38). A reflexão sobre a linguagem, perceptível também nos ironistas, constitui uma alternativa a esse impasse e não deixa de representar um triunfo sobre o colapso, melancólico, diante da folha em branco. O melancólico, órfão do Absoluto, debate-se entre o medo da assimbolia e o desejo de capturar o signo, a imagem, o vínculo se-
mântico que dê sentido à perda. Sua angústia é a de não falar, ou a de fazê-lo de maneira precária, insuficiente. A linguagem, para ele, é o meio de traduzir a fratura do espírito ante a perda do Sentido Absoluto, matriz do sentimento melancólico cristão, instalado no homem por força do pecado original. Daí a frequência com que, na poética da melancolia, ocorrem imagens que traduzem a angústia com a forma, a desconfiança na eficiência do verbo, o dramático combate entre a ideia e “a expressão que não chegou à língua” – para lembrar o famoso verso de um melancólico típico, Augusto dos Anjos. Outro dado importante revelado por nossa pesquisa foi a estreita relação existente entre melancolia e ironia. Ambas parecem ter uma base comum – a percepção do contraste entre a pequenez do homem e o seu desejo de transcender a si mesmo rumo a uma experiência do Infinito. Tanto o melancólico quanto o ironista, seja lamentando a perda do Objeto, seja reagindo a ela com ceticismo e afetada indiferença, manifestam a consciência do impasse entre a relatividade do indivíduo e o Absoluto a que ele em vão aspira. A angústia em face dessa constatação encontra-se tanto no citado Augusto os Anjos quanto num Carlos Drummond de Andrade, passando por Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa e, em grau menor, em Olavo Bilac. Uma das características da melancolia e da ironia, pois, é o combate entre ideia e forma, sentimento e expressão. Essa característica adquire grande intensidade nas reflexões metalinguísticas dos autores modernos e se explica pelo fato de que é através da Forma que o melancólico procura compensar o sentimento de vazio, o vácuo narcísico que lhe compromete a referência autoidentitária. A arte passa a sucedâneo do Absoluto perdido e, com isso, a elaboração artística adquire um estatuto de essencialidade e transcendência. No entanto, segundo Muecke (1995, p. 36), quando se procura a perfeição formal rejeita-se a ironia. Esta constitui um importante ingrediente para o antilirismo moderno, conforme se percebe num João Cabral ou num Drummond.
Martiriza o ironista a constatação de uma linguagem que já não nomeia o mundo, engendrando sentidos a partir dela mesma. Como figura, a ironia, ou antífrase, é a ilustração de uma suprema arbitrariedade – a de dizer alguma coisa pelo seu oposto. Ela ocorre quando “a palavra, deixando de ser a expressão direta do pensamento, o sugere por antítese e significa o seu antônimo” (PAIVA, 1961, p. 9). A expressão irônica “divide o homem em homem autêntico e um outro homem, cuja existência só se dá pela linguagem – uma linguagem, porém, que conhece a sua própria inautenticidade” (NESTROVSKI, 1996, p. 11). O melancólico sucumbe à perda do objeto; o ironista reage a ela com um desdém que parece alimentar-se do próprio fracasso. Se na melancolia o ego se reconhece vencido e tende à autodepreciação, na ironia ocorre “uma espécie de acordo na economia psíquica do sujeito” que “o coloca na possibilidade de não sucumbir ao puro autoenvilecimento” (SILVA, Internet, p. 9). Neste sentido a ironia é diferente da mania, que segundo Freud (1980, p. 286) constitui o humor alternativo, e antitético, ao afeto melancólico. Para o criador da psicanálise, a mania “é o oposto (da melancolia) em seus sintomas”, já que concede ao eu, livre do conflito em que se consumia devido à identificação com o objeto perdido, um excedente de libido que o torna eufórico e triunfante. A ironia, ao que nos consta, ainda não foi avaliada na perspectiva da economia libidinal. Também não ostenta a euforia com que o melancólico, no surto maníaco, revela-se liberto do seu luto. Ela coexiste com a tristeza e, ao mesmo tempo, suaviza a angústia melancólica pelo que tem de compreensivo, mordaz, superior. A chamada ironia romântica alimenta-se do mesmo contraste que dá ensejo à melancolia – isto é, o de o homem aspirar a um Absoluto que não está ao seu alcance, ressentindo-se consequentemente de uma perda, ou de uma falta. Ela nasce “da consciência do caráter antinômico da realidade e constitui uma atitude de superação, por parte do eu, das contradições incessantes da realidade, do conflito perpétuo entre o absoluto e o relativo” (AGUIAR E SILVA, 1982, p. 516). A expressão do caráter contraditório e antinômico do real permeia também a produção dos melancólicos e se constitui em leit motiv da poética da melancolia. Pela ironia suaviza-se a angústia, tão pungente nos melancólicos, ante a perspectiva da finitude. Diferentemente do humor, que supõe a resignação, a ironia aparece como um protesto ressentido. Segundo Susan Sontag (1986, p. 103), ela “é o nome positivo que o melancólico dá à sua solidão, às suas escolhas associais”. Mas a ironia é bem mais do que
uma denominação prestigiosa para a tristeza, ou um disfarce para a misantropia. Ao mesmo tempo que se funde ao sentimento melancólico, sendo conatural a ele, a ironia se lhe contrapõe por meio de um impulso racionalizante, filosófico e, sobretudo, crítico. Isso faz com que ela, conforme observa Olivier Reboul ” (1998, p. 133), seja o contrário do humor. Enquanto na ironia o sujeito se coloca “bem acima do que denuncia ou critica”, no humor ele “abandona sua própria seriedade, abdica da (sua) importância”. Importa ressaltar que tanto a melancolia quanto a ironia têm a sua poética, ou a sua retórica. É pela linguagem que se explicita a intenção de traduzir um ou outro desses estados ou atitudes do espírito, procedendo-se ao deslizamento em função do qual o que seria derrota em razão da perda transforma-se, de algum modo, em vitória. A leitura de autores brasileiros vinculados a diferentes estilos de época, à qual vimos procedendo ao longo da nossa pesquisa, tem demonstrado, quanto à expressão do afeto melancólico ou da atitude irônica, a existência de traços comuns e de outros que variam conforme as características da escola e a natureza de cada escritor. Isso era mais ou menos esperado, porém nos surpreendeu perceber em autores a respeito dos quais erigiram-se determinados clichês – Álvares de Azevedo e Olavo Bilac, por exemplo – procedimentos textuais que revelam deles novas facetas, concorrendo para um redimensionamento do seu perfil na literatura brasileira. A rejeição ao erotismo, a aversão ao prazer própria da melancolia, conduz a um ódio especial ao corpo, de modo que se pode equacionar o sentimento da dissolução psíquica ou sobretudo moral, que acomete o melancólico, com uma espécie de dissolvência física. Se o melancólico tem culpa, seu corpo é o lugar de ele se punir. No plano da representação literária, o efeito de tal correspondência é a segmentação ou mesmo o desaparecimento do corpo material, que ora se volatiza, na perspectiva da sublimação e da idealização, ora aparece despedaçado, corrompido, putrefeito. O corpo idealizado e inacessível, conforme se percebe, por exemplo, nas produções românticas e simbolistas, confirma a presença do sentimento de culpa. Estudando a obra de Augusto dos Anjos (Cf. VIANA, 2014), vinculamos a segmentação corporal ao emprego do assíndeto e da enumeração caótica. As inúmeras repetições, inversões e hipérboles, características do barroquismo do poeta, foram por nós associadas à busca do enfático e do perifrástico que conduzem a uma espécie de inflação da forma, mediante a qual o eu lírico objetiva compensar o sentimento de perda, de vazio, de carên-
cia ontológica – próprio do melancólico. Álvares de Azevedo, longe de ser o romântico ingênuo e monolítico que alguns ainda insistem em apregoar, procede a uma representação dicotômica, ambígua e mesmo agônica do objeto amoroso. Há nele um desconforto com os códigos da escola literária a que se filia, uma flagrante insatisfação com os limites e com os exageros do Romantismo – o que o faz perseguir o realismo na caracterização da natureza, do eu poético e, sobretudo, do objeto de amor. Lira dos vinte anos testemunha essa crise e se constitui numa tentativa de superá-la. É possível arrolar no espaço poético de Lira...várias designações que, dentro de uma poética da melancolia, concorrem para a representação da mulher enquanto perda, lacuna, falta. O primeiro grupo é constituído por expressões vinculadas ao campo lexical da divinização ou, quando menos, da angelização do objeto feminino. No segundo, a mulher aparece como uma imagem da morte – inerte, silenciosa, pálida, o mais das vezes dormindo. Brancura e mudez são predicados tradicionalmente associados à morte. No terceiro, por fim, os atributos da mulher aparecem vinculados à natureza. Não é raro a mulher ser chamada de rola, flor, rosa, identificando-se com a pureza do elemento natural. Tais designações, no entanto, não são comuns. O mais frequente é o eu lírico ver em sua donzela um ente sombrio, distante e mortal, que por estar proibido ao desejo confunde-se com uma miragem, um sonho, uma não-natureza. Se o idealismo e a fantasia constituem a tônica da primeira parte do livro, na segunda busca-se a antítese de tudo isso. Procura-se representar com tintas mais reais a imagem do poeta, do objeto amoroso e do mundo. O autor persegue uma estética capaz de enlaçar as múltiplas configurações da realidade. É quando opta pela ironia, capaz de tornar a poesia mais próxima da “doença da vida”. À opção pela ironia correspondem importantes mudanças linguísticas, perceptíveis sobretudo no plano lexical. Álvares de Azevedo adere ao coloquial e ao prosaico, utilizando palavras que evocam a experiência cotidiana. Com isso – e poucos estudiosos o referem –, antecipa a dicção pré-modernista de Augusto dos Anjos. A poética de Olavo Bilac caracteriza-se pelo rigor formal e pelo despojamento na expressão dos estados emocionais. É comum acusá-lo de cerebral e frio, opondo-lhe o artesanato conciso ao derramamento dos românticos e dos simbolistas. Por essa ótica, é difícil concebê-lo como um melancólico a lamentar o seu objeto perdido. A verdade, no entanto, é que em Bilac a representação melancólica perpassa diversas composições. Alguns dos principais topoi da melancolia abril/maio/junho/2015 |
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– como a perda da crença, a angústia ante a passagem do tempo, a insuficiência da palavra para exprimir os anseios humanos – estão nele presentes. Cada um desses autores fornece bons exemplos de como se distinguem as manifestações do afeto melancólico na estética romântica e na parnasiana. Um dos traços distintivos entre elas está, por exemplo, na maneira pela qual cada um busca pôr fim ao sentimento de exílio. Em Álvares de Azevedo o degredo só termina com a morte. O eu lírico se compraz, por conta da idealização e do sentimento de culpa, em lamentar a perda do objeto e compensá-la no sonho ou no devaneio. Incorpóreo e distante, o objeto aparece nas suas fantasias como um ente espiritualizado, que se dilui enquanto figura física na abstrata atmosfera do sentimento que deve inspirar. Mais importante do que a amada, é o Amor. Já no parnasiano destaca-se a nota sensual, afirmando-se sem grandes escrúpulos a rejeição ao platonismo e a preferência pelo corpo. Essa atitude, que reflete o classicismo que lhe moldou a formação, estende-se à apreciação do objeto amoroso, que é requisitado menos por sua beleza espiritual que pela física. Percebe-se então que o eu lírico bilaquiano rejeita a visão de mundo romântica, para qual a mulher é um ser etéreo e espiritualizado que se presta antes à adoração do que à posse. Ele afirma a legitimidade do seu desejo e advoga a justeza dos seus impulsos eróticos. O que considera “baixo” é trocar a terra pelo céu, o corpo pelo espírito. Em Bilac, ao contrário do que acontece no romântico, a expressão melancólica tempera-se de um racionalismo e de um rigor compositivo que atenuam as representações da perda do objeto. Enquanto em Álvares – e também em Cruz e Sousa – são intensos o sentimento de culpa e o desejo de morte, no parnasiano tais disposições são contrabalançadas por um erotismo que se orienta sem maiores entraves na direção do corpo da mulher. É certo que em alguns momentos prevalece nele o pessimismo, e a morte é desejada. No entanto ela aparece mais como uma contingência do destino humano do que como um preço a ser pago pelo prazer. O parnasiano não se compraz na dor da perda. Tampouco se consome em idealizações que lhe acenam com a dimensão transcendente do objeto de amor. Nele, a despeito de tudo o que no homem é incompleto e faltoso, percebe-se para além da tristeza o anseio de exaltar e fruir o corpo da mulher – dimensão imanente da Harmonia e da Beleza. A ironia, segundo Muecke (1995, p. 21), “liga-se à consciência dos meios expressivos” e se revela com particular intensidade
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na atitude metalinguística. A metalinguagem não deixa de ser uma forma de dissimulação, e portanto de ironia, já que nela ocorre uma aparente recusa de representar o mundo. Em vez de evocar a experiência humana e se constituir em sinal de uma realidade que deve nomear, a linguagem se volta para si mesma. Por efeito desta suspensão, o processo compositivo integra-se ao produto artístico e os meios se confundem com o resultado. Esse procedimento tem particular relevância na obra de Carlos Drummond de Andrade (1973), para quem é vital o testemunho acerca do combate com as palavras. Em composições como “Consideração do poema” (p. 75) e “Procura da poesia” (p. 76), o poeta não apenas reflete sobre a linguagem e o fazer poético, como também sugere procedimentos para a elaboração do poema. Talvez a maior ironia esteja em que tais conselhos, que refletem um impasse no processo criativo, possam se constituir numa fórmula para a criação. É possível que o próprio poeta não acreditasse neles. O apelo à metalinguagem demonstra a tendência que tem o eu poético drummondiano a refletir, a mentar a experiência do mundo e da própria poesia. Essa também é uma forma de ele revelar seu lado melancólico, já que uma das características da melancolia, como vimos, é o impulso para meditar, às vezes abismar-se em cogitações. Outra das marcas estilísticas da ironia é o uso expressivo de fonemas que, pelo exótico, contrastam com as formas predominantes na língua. Isto se verifica em várias passagens da obra drummondiana. Destaquemos, a título de exemplo, o efeito de encolhimento e compassiva depreciação que o fonema i, substituindo o fonema a, concede ao vocábulo janela – transformaado em jinela. Está no segmento Sabará (p. 7), de “Lanterna mágica”, no qual o poeta menciona as “casas encardidas onde há velhas nas jinelas”. Por meio desse recurso fonético, ele sugere um apequenamento que intensifica a ideia de decrepitude do lugar. Outro exemplo ocorre em “Fuga”, poema no qual se critica a alienação dos brasileiros em relação à Pátria. Nele, a similaridade de fonemas finais em palavras contíguas, presente no penúltimo verso, concorre para ironizar nosso fascínio pelo estrangeiro. Se a nossa basbaque admiração passou da Europa para os Estados Unidos, somos os bárbaros que “se entregam perdidamente/ sem anatólios nem capitólios/ aos deboches americanos” (p. 18). Procedimento semelhante ocorre em “Jardim da praça da Liberdade” (p. 17), através da referência aos “tanques langues” que ressaltam a pouca brasilidade do lugar. O efeito é diferente do que se verifica no poema “Igreja”, onde a inversão de joelhos em geolhos, vocábulo por sinal registrado
nos dicionários, parece visar ao destaque do substantivo olhos, nele incluído. Que olhos? Certamente os do eu poético, hipnotizados pelo movimento piedoso e involuntariamente erótico das pernas em genuflexão. O estudo desses e de outros autores serviram de subsídio para o delineamento de uma poética da melancolia, cujas principais característica são: - O sentimento de perda da Unidade entre o indivíduo e o cosmo: em decorrência disso, o real afigura-se ao melancólico como dicotômico e mesmo fragmentado. Rompida a Unidade que integra indivíduo e natureza, o eu lírico vê-se presa de inconciliáveis antinomias; a antítese será a figura típica desse tipo de representação. A fixação nos contrastes faz o melancólico ver em tudo o seu oposto – na felicidade, a tristeza; no sensualismo do corpo, o esqueleto; na saúde, a doença; no esplendor, a ruína; na vida a morte, enfim. - A ambiguidade na representação da natureza: apesar de alguns momentos raros de comunhão, verifica-se nas produções melancólicas um desequilíbrio entre o indivíduo e a natureza. O eu lírico tanto a ama quanto a maldiz. A natureza é mãe e também madrasta, o que faz nascer contra ela um desejo de vingança. - O sentimento de estar exilado e a tendência à contemplação: o melancólico se sente sozinho, apartado dos homens e do mundo. Isso o predispõe à contemplação e a uma exacerbada consciência de si mesmo. A meditação corresponde ao impulso de sondar o micro e o macrocosmos – que aparecem, por efeito de projeção, como enigmas da sua própria subjetividade. - A tendência a sublimar o desejo sexual e a idealizar o objeto amoroso: para o romântico, sobretudo, a mulher aparece como uma entidade ilusória; é no plano da imaginação que ele a concebe e dela se acerca. O eu lírico não deseja propriamente o ato sexual, ele anseia pelo amor em sua forma psíquica – daí a fantasia, o delírio, o excesso de imaginação. Essa atitude aparece bem menos em Olavo Bilac, que alterna a sublimação do desejo com a disposição para a posse física do objeto amoroso. - a angustiosa consciência da transitoriedade: é comum no melancólico o desespero ante a efemeridade do mundo. Tal sentimento o leva a se fixar nos escombros e nas ruínas, que constituem indícios da totalidade perdida. Dessa fixação nas ruínas decorre a construção de alegorias, que são representações espaciais denunciadoras da passagem do tempo. O sentimento do efêmero o assusta e ao mesmo tempo o fascina, pois lhe acena com a perspectiva da morte. - o combate entre ideia e forma, sentimento e expressão: essa característica é menos
acentuada no romântico, mas no simbolista e, sobretudo, no parnasiano, adquire uma intensidade que prenuncia as reflexões metalinguísticas dos autores modernos. Ela se explica pelo fato de que é através da Forma que o melancólico procura compensar o sentimento de vazio, o vácuo narcísico que o leva a transferir para a Arte a referência autoidentitária. A arte passa a sucedâneo do Absoluto perdido e, com isso, a elaboração artística adquire um estatuto de essencialidade e transcendência que justifica a “religião da Forma”. - a disposição para o sacrifício: é co-
mum no melancólico o desejo de se sacrificar – seja pela arte (como em Olavo Bilac), seja pelo ser humano (como em Augusto dos Anjos ou Cruz e Sousa). No romântico Álvares de Azevedo esse impulso se confunde com a falta prometeica, em função da qual o eu lírico parece querer purgar um crime da espécie; esse impulso também se observa no neorromântico Augusto dos Anjos, que manifesta explicitamente o desejo de ser Cristo para se sacrificar pelos homens. A consciência de suas renúncias e padecimentos faz o melancólico ver a si como um ser de exceção,
que suporta em níveis intensos o efeito dos pecados humanos. - o desencanto consequente à perda da crença: como topos melancólico, tal desencanto constitui uma variante do mito do paraíso perdido. É comum o eu lírico referir o contraste entre um passado de inocência e esperança, e um presente marcado pela perda das ilusões. Na representação dessa ruptura, que o fez triste e desencantado, ele imagina ter vivido num lugar/tempo ideal (ilha, pátria, infância) do qual foi banido pelas duras injunções da realidade. g
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COMUNICAÇÃO
O JEITO COMO O BRASILEIRO VÊ TV, ESTEJA ONDE ESTIVER Oswaldo Meira Trigueiro (Continuação da página 2) dizer que 44,6 milhões de domicílios não possuem a TV paga. Quanto ao sinal digital, em 2013 a TV aberta alcançava 19,7 milhões de domicílios, apenas 31,2% dos brasileiros com acesso a essa prestação de serviços. A recepção do sinal de TV por antena parabólica era utilizada por 38,4% da população; desse total 78,3% estava nos domicílios rurais. A maioria dos brasileiros continuava usando nos domicílios as TVs de tubo antigas, mas ainda eficientes. No total das antenas parabólicas em uso no Brasil 50,7% estavam instaladas na Região Nordeste. Com relação ao uso da televisão por assinatura é o Nordeste que tem o menor percentual, apenas 15%. Portanto, quem faz mais uso das antenas parabólicas são as famílias de menor poder aquisitivo que encontram nesse tipo de equipamento a melhor alternativa de acesso ao sinal de TV com qualidade e com maior quantidade de canais a baixo custo. Não foi por acaso que o Nordeste apresentou o maior percentual de antenas parabólicas nos domicílios das áreas rurais e das cidades interioranas com menos de 20 mil habitantes, onde se concentra grande parte das famílias de menor renda per capita por domicílio, ou seja, nas cidades rurbanas e nas áreas rurais do interior nordestino. Cidades Rurbanas, aqui usando o neologismo empregado pelo sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, para definir as pequenas cidades com menos de 20 mil habitantes em transição do rural para o urbano mas, que com o jeitinho brasileiro estão interligadas ao mundo globalizado pelos diferentes meios de comunicação, estejam onde estiverem. Na Paraíba, o estado de referência das minhas pesquisas, os domicílios com sinal digital de TV aberta correspondiam a 26,7%, já aqueles com acesso ao sinal por assinatura o percentual era de 14,1% e os domicílios com antenas parabólicas 50,9%. A taxa das pessoas com 10 ou mais anos de idade que possuíam telefone celular chegava a 73%, os estudantes com 10 ou mais anos que usavam a telefonia móvel era de 71,2%, já o uso do tablet nos domicílios não chegava aos 9,1%, mas, o percen-
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tual de domicílios que usavam a Internet banda larga fixa era de 71,5%. A população estimada do Estado da Paraíba em 2014 era de 3.943.885 e, deste total, em janeiro de 2015, 524.822 famílias eram beneficiárias do programa Brasil sem Miséria, que tem o objetivo de tirar da linha de pobreza as famílias com renda per capita inferior a R$77,00. Portanto, 44,56% da população paraibana distribuída nos 223 municípios, recebe do Bolsa Família um valor médio mensal de R$177,00. Mesmo diante dessas condições de baixa renda per capita, os dados demonstram que é crescente o número de famílias que têm nos seus domicílios equipamentos das novas tecnologias de informação e comunicação – TIC, como aparelhos de TV, de rádio, telefone celular, acesso a Internet, além de outros bens duráveis como geladeira, fogão, micro-ondas, máquina de lavar roupas, motos e tantos outros (Fontes: IBGE/PNAD 2014 – MDS/Ministério do Desenvolvimento Social/2015). O acesso às novas tecnologias, com mais recursos, com mais alternativas de uso, está diretamente condicionado a uma melhoria de renda da família e consequentemente ao seu poder de compra, mas, adquirir TV com tela
fina, telefone celular e até mesmo Internet no domicílio não significa, necessariamente, uma melhor qualidade de vida, é mais uma decisão de prioridade da família. Ou seja, na sociedade de consumo a apropriação das novas tecnologias, especialmente da televisão, continua sendo um ato de grande significação nos domicílios independente da classe social e das condições de habitação, até porque a TV não é mais um dispositivo eletrônico que está na casa, faz parte da casa e da vida cotidiana das famílias brasileiras, onde é quase impossível viver em família e em sociedade sem ver televisão. Hoje em dia é bastante fácil comprar TV, celular, acesso à Internet até por que são várias as alternativas de aquisição desses equipamentos, as ofertas dos negócios de crediário ou da compra “fiado” nas lojas autorizadas, nos camelódromos, nos negócios piratas e nas feiras de trocas espalhadas pelo país afora, onde se pode comprar a baixo custo quase todos esses equipamentos. Mas, até hoje persistem as preocupações sobre a televisão como um dos meios de informação e comunicação de maior influência nos hábitos e costumes da sociedade com seus efeitos devastadores, alienantes, com con-
teúdo que quase sempre exibe as mesmas coisas, veicula ideologias dominantes, deforma as criatividades das crianças e adolescentes; que empobrece ainda mais a curiosidade e as opiniões dos adultos; isso tudo, para os mais pessimistas ou apocalípticos. Para os mais otimistas ou integrados, a televisão continua sendo um símbolo da modernidade por excelência, que democratiza a informação e o conhecimento. Será que há razão para essas preocupações entre apocalípticos e integrados? De um lado ou de outro, será necessária vigilância constante sobre a televisão, mas, só se for uma vigilância sem “armas apontadas” para os apocalípticos ou integrados. As preocupações manifestadas com relação ao dualismo do “bem” e do “mal” na televisão são pertinentes, mas devem ser analisadas criteriosamente e não só no achismo ou na transferência de responsabilidades para culpar a televisão por quase tudo de errado e de ruim que acontece na família brasileira. A culpa é das novelas que só ensinam coisa errada? A culpa é da televisão pelo crescimento da violência? Será verdade? E qual é o papel da família, da escola, da igreja e de tantas outras instituições civis organizadas que operam como mediadoras da sociedade? O que estamos fazendo para melhorar a recepção dos conteúdos midiáticos? Chamo atenção para a importância de uma discussão de corresponsabilidade sobre o consumo e uso da televisão e das redes sociais, que envolva diretamente as famílias e todos os níveis de educação, já que a pesquisa do PNAD 2013, cuja amostragem probabilística inclui pessoas com 10 ou mais anos de idade. Ou seja, aqui no Brasil, crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos são todos constituintes da audiência da televisão. Os dados demonstrados na pesquisa são referências importantes para se estruturar uma política educacional de tempo integral, uma política de consumo e uso dessas novas tecnologias, especificamente da televisão, do telefone celular e o acesso à Internet. Não basta acessar essa avalanche de conteúdos que recebemos, nas 24 horas do dia, mas, educar para melhor acessar é papel fundamental principalmente da família e da escola. O mundo atual é outro, as mídias estão alcançando os mais longínquos recantos do país e precisamos pensar a sociedade brasileira inserida no contexto global da economia, da educação e da cultura, levando em consideração as suas especificidades regionais e o espírito do local. É essa a realidade em que vivemos, é inevitável, diria até irreversível, a relação direta das mídias com a sociedade, consequentemente com a família a educação e a cultura. Os domicílios das cidades rurbanas ou rurais são quase sempre pequenos, com sala de
visitas, com um ou dois quartos, cozinha, banheiro e terraço, telhado rústico e quase sempre sem forro. São construções de tijolos ou taipa, tipologia que caracteriza a arquitetura interiorana do Nordeste brasileiro. É na sala de visitas, o espaço mais nobre da casa, onde fica o aparelho de televisão e tantos outros equipamentos eletrônicos da modernidade industrial para atender os desejos da sociedade contemporânea. O telefone celular, que também é relógio, rádio, máquina fotográfica, câmera de vídeo, calculadora e mais uma série de funções, ora está no terraço, na sala, no quarto, no banheiro, na cozinha, na carroça, no cavalo, na bicicleta, no carro, na moto, na igreja, nas festas, sempre perto do seu usuário. Vale dizer, o telefone celular e a televisão são próteses como extensão do nosso corpo, é quase impossível viver sem uma delas. Quase sempre o sinal de TV, do telefone celular e o acesso à Internet chega primeiro nas pequenas cidades – cidades rurbanas - mesmo antes das estradas ou das ruas asfaltadas, do saneamento básico, da iluminação pública, da delegacia de polícia, dos hospitais e até mesmo de uma boa escola. Os jovens brasileiros entre 10 e 20 anos passam em média mais de quatro horas diárias assistindo TV ou acessando a Internet como meio de diversão e entretenimento (Fonte: Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. – Brasília: Secom, 2014). Passam mais tempo na TV, ou na Internet do que na sala de aula (Fonte: www.todospelaeducacao.org.br). Os domicílios nas pequenas cidades e nas áreas rurais não são mais espaços com tempos marcados só pelas datas cíclicas das festas sagradas e profanas da religiosidade popular, do cronograma do trabalho e do lazer com características próprias das famílias brasileiras, antes da chegada da televisão, agora do celular e da Internet. Os espaços e tempos do domicílio, na sociedade midiatizada, são cada vez mais
agendados pela hora da televisão determinada pelas novelas das seis, das sete e das nove, pelos programas policiais, telejornais e tantos outros que ocupam esses espaços e tempos durante o dia e a noite, e agora pelas redes sociais nos telefones celulares e tablets. Mesmo assim, os domicílios continuam interligados à cidade e à rua e ao mundo globalizado, porém sem a perda total das suas referências, da vida sociocultural do local onde permanecem os códigos, os valores éticos e morais tradicionais da família. A televisão, a Internet, os telefones celulares e as redes sociais chegaram e modificaram o comportamento da sociedade humana e não seria diferente com a população brasileira. Mas, os meios de comunicação não têm poder para tanto, de isoladamente transformar uma sociedade para melhor ou pior, é necessário que encontre um campo socialmente fértil, com fatores que favoreçam tais influências e para isso necessitam de uma sociedade frágil em vários aspectos. É verdade que os conteúdos das mensagens televisivas provocam significativas mudanças, mas, sempre mediadas por diferentes fatores educacionais e culturais, nunca isoladamente como um instrumento principal dessas mudanças para o bem ou para o mal. Os mais importantes instrumentos de transformação de uma sociedade são, sem dúvida, a família e a educação, quero dizer, a casa e a escola. Sou um dos otimistas, um dos integrados e vejo avanços significativos no uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação - TIC no desenvolvimento da sociedade brasileira. Os registos fotográficos, aqui, são resultado de documentos da pesquisa empírica desenvolvida no período de 2003 a 2011, sobre a recepção da televisão, em diferentes cidades paraibanas, principalmente com menos de 20 mil habitantes, onde estão localizadas as famílias de baixa renda per capita, mas, que são cada vez mais consumidoras, usuárias de bens materiais e simbólicos da sociedade midiática. g abril/maio/junho/2015 |
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CATOLICISMO
SERTANEJO DAS ESPINHARAS É NOMEADO BISPO DE GARANHUNS Equipe GENIUS
O Papa Francisco, nomeou, em 20 de maio do corrente ano, o Pe. Paulo Jackson Nóbrega de Sousa para o cargo de Bispo de Garanhuns, em Pernambuco, conforme anúncio feito por Dom Eraldo Bispo da Silva, através dos microfones da Rádio Espinharas, com as seguintes palavras: “A Diocese de Patos acorda em Festa”, passando a discorrer sobre o ato do Papa e sobre a figura do Pe. Paulo Jackson. A notícia da escolha papal foi dada a Dom Eraldo pelo Padre Paulo Jackson que para ele ligou, manifestando-lhe, assim como a todo o povo da Diocese, a sua alegria de ter sido nomeado Bispo de Garanhuns, ao mesmo tempo em que pediu orações para bem exercer a nova missão que lhe foi confiada pelo Papa Francisco. O Padre Paulo é natural de São José de Espinharas, no sertão paraibano. Nasceu no dia 17 de abril de 1969, filho de José Nóbrega de Sousa, já falecido, e Maria Ida da Nóbrega. Pelo lado paterno, é neto de Cícero Lúcio de Sousa, que foi Vereador, em vários mandatos, à Câmara Municipal de Patos. Pe. Paulo Jackson estudou teologia no Instituto de Teologia do Recife (1987-1989) e no Seminário Imaculada Conceição, em João Pessoa (1990-1992). Foi ordenado Padre no dia 17 de dezembro de 1993. Na diocese de Patos assumiu as funções de administrador paroquial nas paróquias de São Sebastião, em Catingueira (1994-1995), paróquia de São Pedro, Nossa Senhora das Dores, em Mãe D´Água (1995-1996), Nossa Senhora de Fátima (1996-1997), Vigário Paroquial de Nossa Senhora da Guia (2001-2002), Reitor do Seminário São José (2001 a 2006), Coordenador Diocesano de Pastoral (2002-2003), Pároco da Paróquia Santo Antônio (2002-2007) e Pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em São Mamede (2010-2011). Tem, portanto, o novo antístite de Garanhuns uma longa experiência vicarial. O Padre Paulo Jackson é Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (2007-2010), foi Secretário Nacional da Organização dos Seminários e Institutos Filosófico-Teológicos do Brasil (2004-2007), Vigário Paroquial da Paróquia São Geraldo, em Belo Horizonte (2011-2013). Atualmente reside em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde é professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pároco da Paróquia de Senhor Bom Jesus do Horto e Formador dos Seminaristas de Patos que estudam na capital mineira. Logo após ser escolhido, o Pe. Paulo dirigiu mensagem aos seus diocesanos, que vai reproduzida ao lado. A sagração episcopal do Pe. Paulo se dará no próximo dia 18 de julho, na Catedral de Nossa Senhora da Guia, em Patos, que já foi palco da sagração de um prelado ilustre: Dom Fernando Gomes dos Santos, que foi Bispo de Penedo (AL) e Aracaju (SE) e Arcebispo de Goiânia (GO). g
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MENSAGEM DO PADRE PÀULO JACKSON AOS SEUS DIOCESANOS: Amadas irmãs, queridos irmãos; Caríssimo Mons. Benevenuto, Graça e paz! Sou um homem de quarenta e seis anos, de uma família simples e piedosa. Cresci junto a José e Maria, meus pais, e a Nossa Senhora de Fátima e São José, protetores da minha família e da comunidade eclesial de onde provenho. Fui ordenado presbítero há vinte e um anos, confiando na misericórdia de Deus que se revela em Cristo Jesus. Desde a mais tenra idade, tenho consciência das minhas múltiplas limitações; ao mesmo tempo, cresce a certeza de que a graça divina nunca faltou. Recebi a notícia da minha nomeação como bispo da Diocese de Garanhuns com um misto de surpresa e alegria, consolo e gratidão. Desejo, então, expressar, o meu sentimento de comunhão com a Igreja de Jesus Cristo e a mais profunda gratidão a Sua Santidade, o Papa Francisco. Como disse o seu predecessor: “o fato de que o Senhor saiba trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes me consola”. Desde o primeiro contato do Sr. Núncio Apostólico, D. Giovanni d´Aniello, venho orando por vocês, porção do povo de Deus que está na Diocese de Garanhuns: pelos fiéis leigos e leigas, pelos diáconos, religiosos e religiosas, consagrados e consagradas, presbíteros e seminaristas. Cada comunidade do Sertão, da Zona da Mata e do Agreste, cada irmão e irmã dos vinte e seis municípios espalhados pelos sete vicariatos está permanentemente em meus pensamentos e preces para que se cumpra o que propõe o Apóstolo dos Gentios: apresentemos os nossos corpos como “sacrifício vivo, santo e agradável Deus” (Rm 12,1). Escolhi, como lema inspirador do meu ministério episcopal, a frase de Pedro, no contexto vocacional daquela pescaria cristofânica: In Verbo tuo (Lc 5,5). Que minha vida e ministério estejam em profunda comunhão com o Cristo, Verbo eterno do Pai, inserido na história e revelado especialmente na pele sofrida dos preferidos de Deus. Que Maria, minha mãe, a mulher do silêncio mais eloquente e do “sim” mais discreto, totalmente esvaziada para que a Palavra de Deus nela se cumpra, me acompanhe, indicando-me a arte do perfeito discipulado. E São José, companheiro desde a minha infância, seja a certeza de que “Deus continuará acrescentando” graça sobre graça. Minha gratidão, em nome da Igreja, aos meus irmãos bispos predecessores e, em especial, a Monsenhor Benevenuto, pelo exercício da missão de Administrador Diocesano. Alegro-me em ser acolhido na Diocese de Garanhuns, onde há vários irmãos presbíteros, meus contemporâneos no seminário ou que foram meus alunos no Curso de Teologia. Regozijo-me pelo fato de chegar a essa Diocese no momento em que se abre o triênio de preparação para o seu centenário (1918-2018). Aproveito também para comunicar e convidar toda a Diocese de Garanhuns para a ordenação episcopal, que será no dia 18 de julho (sábado) em Patos (PB). Desejo ardentemente poder encontrá-los e abraçá-los como irmão. Deus os abençoe a todos. Em comunhão de orações, seu primeiro servidor, Pe. Paulo Jackson Nóbrega de Sousa
POESIA Cinco Poemas de Cleide Maria Fernandes Ferreira (Dândy)(*)
Uivo
Porto
Ela está insone e a longa treva da noite lhe traz medo. O grito na garganta que ela, tão doce, não deixa fluir.
No espaço da solidão não cabe o sol sob o prisma da dor o sofrimento do (ente) só.
Certamente um dia ela se fará loba e tristemente o mundo ouvirá seu uivo de socorro.
O foco desvia a via sacra percorridas chagas crucificada. O silêncio das horas a mudez das palavras no cio do dicionário.
Outubro de 1992
À capela uma ária evolui o cântico dos deuses enclausurados. Triste palco opaco arcabouço de estático tempo no porto da solidão.
Violão
Agosto de 1998
Gravatá azul pedaço de vida mágica.
Este rosto
Araçá anil vezes vontade de pegar o fuzil.
Esfinge
Se alguém perguntar por mim saí por aí com um violão debaixo do braço e promessas de vida no meu coração.
Quem me garante a aurora se o ocaso é perene? Que profundas algas garimpam estrelas se destruída está a célula-mater da ilusão? no espaço cósmico perdida o buraco-negro furtou a luz.
1992
Quem me garante flores se já não tenho amores? Quem me levará à terra cavalgando Alfa navegando Ômega no êxtase final? Quem me fará ilimitada dividirá comigo o ser e o nada e comungará dores e cores na enigmática esfinge que sou eu. (*) Poemas extraídos da plaqueta a GGenda de Dândy.
Nua no ar reina. Rainha caminha sol e só. Sozinha marinha menina. No rosto a dor no sono o sonho. Arremedo do medo medonho. 1998
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POLÍCIA X PROFESSORES
Cristovam Buarque
Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a greves de professores nos mais diversos estados e cidades. Pode-se estimar em milhares o número de aulas perdidas e em milhões o número de alunos sem aulas ao longo de anos. Não é necessário ter imaginação para perceber as consequências da falta das aulas na formação dos estudantes e as consequências dessa má formação para o futuro do país. Apesar disso, o país não percebe o risco. Ainda mais grave é o fato de pais e professores dizerem que as escolas são tão ruins que a ausência de aulas não faz falta. Muitos pais lamentam as greves apenas porque seus filhos não têm onde ser deixados. Outros lamentam apenas porque os filhos ficam sem merenda. A população brasileira indignou-se com a violência contra professores nas ruas de Curitiba, na tarde do último 29 de abril. Ver policiais correndo em perseguição a professores, espancando e ferindo dezenas deles, indignou e envergonhou os brasileiros e causou repercussão negativa aos olhos do mundo. Mas há séculos o futuro do Brasil vem sendo espancado pela má qualidade das nossas escolas. Nossos professores são agredidos silenciosamente pelos contracheques jogados sobre eles. O Brasil foi espancado visivelmente em uma tarde em Curitiba, mas tem sido vítima de maneira não percebida pelos maus-tratos diários aos professores, às esco-
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las e aos alunos. Igualmente grave é o fato de que as greves só ocorrem nas escolas públicas, onde estão os filhos das camadas mais pobres, ampliando assim a desigualdade na qualidade da educação conforme a renda das famílias. Cada greve aumenta a brecha na qualidade da educação das crianças filhas de pobres em relação às filhas de ricos. Sem bons salários é impossível atrair para o magistério os mais preparados jovens da sociedade; e sem boas condições de trabalho para o professor — conforto e equipamentos nas escolas — é impossível atrair o interesse dos alunos. Mesmo assim, como pedir aos professores que não façam greves, se os salários estão entre os mais baixos do mundo e entre os menores no universo dos profissionais com a mesma qualificação no Brasil? Como pedir aos docentes que não façam greve, quando as aposentadorias são modificadas em prejuízo de seus direitos? A saída não é impedir as greves; é fazê-las desnecessárias. Precisamos desarmar a necessidade de os professores serem obrigados a recorrer à greve. Embora seja sabido que os sindicatos muitas vezes têm interesses políticos na declaração de greves, seja para fortalecer uma corrente interna, seja por enfrentamentos partidários na política nacional e local, as greves deixariam de ser instrumento indispensável se os professores estivessem satisfeitos com os benefícios
pessoais e com as condições de trabalho ao redor. Greves de professores têm características perversas quando comparadas às paralisações nos demais setores por, pelo menos, dois motivos. Primeiro: enquanto a greve do operário penaliza o patrão, a greve do professor pune as famílias. Segundo: ao voltar da greve e retomar o trabalho de onde parou, o operário encontra a matéria-prima e as máquinas esperando nas mesmas condições anteriores; os professores encontram alunos que perderam a motivação e que até mesmo regrediram. É como se nas greves de operários, além de parar a construção, eles destruíssem casas prontas. Para oferecer um salário que permita atrair os melhores quadros da sociedade e oferecer-lhes as necessárias boas condições de trabalho, seria preciso investir ao redor de R$ 9.500 por aluno a cada ano. Raras cidades teriam condições de reservar recursos de tal porte para a educação. A única forma de parar as greves é por meio de um esforço nacional que adote as escolas e as crianças de cada cidade por meio da federalização da educação de base. E federalizar significa termos uma carreira nacional do magistério e, ainda, que o equipamento das escolas tenha padrão de qualidade elevado e equivalente em todo o território nacional. g *Cristovam Buarque é Professor Emérito da UnB e Senador pelo PDT-DF.
LIVROS UMA RELEITURA DE MINHA VIDA 90 ANOS, Zuleida de Sá Leitão Dutra, João Pessoa, Sal da Terra, 2015. Poderíamos dizer que são escritos diversificados, uma obra artística de Zuleida. Artística porque descobrimos nela todo um manancial de palavras e textos mágicos e criativos. São palavras que encantam, são histórias que comovem ou emocionam, são textos que migram ao coração, são versos ou poemas que fazem refletir sobre o mundo, a vida, e são frases que derrubam o choro e alegram a alma. Um pouco de humor encontramos, o que representa a menina risonha e brincalhona que ela é. (Eliane Dutra Fernandes – Apresentação).
UMA PERSONALIDADE LUMINOSA – Síntese biográfica de Vicente Trevas Filho, Ivan Y Plá Trevas e José Y Plá Trevas (Orgs.), João Pessoa, s/e, 2014. Informar é preciso! Especialmente às novas gerações, para que conheçam o que certas pessoas ousaram fazer para contribuir com humildade e determinação para o nosso progresso, tirando da mesmice provinciana, reacionária às mudanças, provocando inovações que contribuíram para a renovação de modos de agir e pensar, ou seja, mudanças culturais. Foi com essa preocupação, sem maiores interesses ou proveitos, que os filhos do químico, professor, autodidata, pesquisador científico e, sobretudo, um grande fazedor de amigos, sem distinção de classe, cor e modo de pensar – um relações públicas nato – elaboraram esta singela síntese biográfica do cidadão Vicente Trevas Filho, para ser distribuída entre seus descendentes, parentes e amigos, na passagem do seu centenário de nascimento, com simplicidade e sem badalações. (Prefácio)
RONALDO CUNHA LIMA, UM NORDESTINO DE TODO CANTO, Diógenes Cunha Lima, Fortaleza, Editora IMEPH, 2014. Tive a boa ventura de ter em mãos os escritos deste livro logo que concebidos pelo autor. E, embevecida desde o início, fiz uma leitura atenta. Durante esta, houve momentos em que meus olhos lacrimejaram; em outros, sorri; algumas passagens fizeram-me gargalhar. Imagino que todas essas emoções esse homem/menino, chamado Ronaldo Cunha Lima, provocou em muitos – homens e mulheres – durante a primeira parte de sua caminhada. Sim, porque a caminhada desse SER feito de rimas continua infinitamente. (Professora Francisca Freire da Costa)
A COMISSÃO E A VERDADE – SOBRE “ANOS DE CHUMBO” E ANISTIA, Washington Alves da Rocha, João Pessoa, Sal da Terra, 2012. Com a maturidade, Washington, bom filósofo que é, encontrou na aristotélica virtude do meio-termo o leitmotiv de sua agora mais equilibrada sabedoria e conduta ética. Reconciliado com o cristianismo, mergulhou mo ambiente místico onde a natural generosidade do seu coração se ampliou, atingindo os píncaros do perdão e do amor sem troco ou exigências. É o que se evidencia este seu corretíssimo texto A Comissão e a Verdade – Sobre “anos de chumbo e Anistia”, em que consegue fazer uma análise magnânima e desapaixonada dos fatos e dos valores relacionados à questão da Anistia, com a autoridade de quem deles participou efetiva e intensamente. (Iremar Bronzeado – Prefácio)
PERMÍNIO ASFORA – Centenário de Nascimento, Adauto Ramos, João Pessoa, Sal da Terra, 2014. Plaqueta alusiva à figura de Permínio Asfora, piauiense de nascimento (Valência), descendente de palestino, que residiu em Sapé, neste Estado, em cujo Cartório do Registro Civil teve seu assento de nascimento lavrado. Ali viveu até os vinte anos, “integrando-se na vida prática através do comércio, profissão paterna, fase em que foi mais intenso e aprofundado seu contato com o Nordeste, viajando de léu a léu a cavalo, de trem, de automóvel. Participava assim da vida do povo humilde, dos seus problemas, dos seus dramas, que mais tarde transporia para os romances que escreveu”. (Adauto Ramos)
A MARCA INDELÉVEL, Benedito de Abreu, Recife, Livro Rápido, 2009. “O leitor vai se deparar com a descrição de cenas de erotismo – mas, um erotismo lírico, leve e sem apelação, contidas no desenrolar da história, o que não deve se estranhar, uma vez que muitos adolescentes, no ápice da puberdade, temendo serem castrados e nunca mais poderem exercer a atividade sexual, transavam com garotas, antes de serem internados no Seminário. Trata-se de um livro para gente grande, gente adulta de sólida formação moral e religiosa. Quem faz a narrativa desenvolvida com imparcialidade e sem máscara é um escritor que foi seminarista e vivenciou muitas cenas que se assemelham às que aqui são descritas” (Contracapa do livro).
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REGISTRO
GENIUS É EXALTADA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS A atual Suplente do Senador José Maranhão (PMDB-PB), Nilda Gondim, antes de deixar a Câmara dos Deputados, de que participou durante quatro anos, fez, da tribuna daquela Casa, a comunicação abaixo, em que exalta a edição especial de Genius, dedicada ao centenário de nascimento de Pedro Moreno Gondim: DEPUTADA NILDA GONDIM: Senhor Presidente, Senhoras Deputadas, Senhores Deputados: Ocupando mais uma vez esta tribuna, reporto-me ao lançamento especial da Revista GENIUS, que trouxe a publicação de diversos artigos em homenagem ao meu pai, o ex-governador Pedro Moreno Gondim. “Quem é o homem? O homem é Pedro! Está com medo? Não, estou com Pedro” Es-
ses refrões impressos na capa da revista bem representam a coragem e a determinação do então candidato ao governo. Pedro Gondim precisou transpor enormes obstáculos para chegar à chefia do Poder Executivo paraibano. Enfrentou os líderes partidários sem se curvar, uma vez que contava com um forte apoio popular que clamava por seu nome e o ajudava com doações em dinheiro para que pudesse levar sua campanha adiante. O trabalho publicado pela Revista Genius é um excepcional resgate da memória política deste que foi um dos maiores homens públicos de nosso Estado. A iniciativa do diretor e editor chefe, Flávio Sátiro Fernandes, juntamente com o traba-
lho de sua equipe e dos colaboradores Adylla Rocha Rabelo, Evaldo Gonçalves, Gonzaga Rodrigues, Hélio Zenaide, José Octávio de A. Melo, Lourdinha Luna, Manoel Batista de Medeiros, Nelson Coelho, Pedro Moreno Gondim (In Memoriam), Renato César Carneiro, Severino Ramalho Leite, Waldir dos Santos Lima, merecem todos os nossos agradecimentos, pois não falo apenas em meu nome, mas no de toda a família. Esse resgate histórico vai ajudar a preservar a memória desse extraordinário paraibano, para que as futuras gerações possam conhecer o seu legado, que foi marcado pelo zelo, a dedicação e a honestidade no trato com a coisa pública. Muito obrigada. g
DESTAQUES DA BIBLIOGRAFIA PARAIBANA
HISTÓRIA DA PARAÍBA, de Horácio de Almeida Flávio Sátiro Fernandes É, até hoje, a mais completa História da Paraíba surgida entre nós, abrangendo desde a época precabralina, com estudo a respeito da população indígena, a sua organização social, a criminosa devastação do gentio, os grupos tribais da Paraíba na época da conquista, a mitologia indígena, costumes, a toponímia indígena na geografia paraibana e vários outros aspectos da vida dos gentios, detendo-se, em seguida, nas guerras da conquista, nas invasões estrangeiras, dos primeiros e demais governadores da era colonial, a conquista do interior, criação das primeiras vilas, a subordinação a Pernambuco e a posterior retomada de sua autonomia, a participação paraibana no movimento revolucionário de 1817. Seguem-se os capítulos alusivos à independência do Brasil, de cujo ato de proclamação não se sabe em que data tiveram conhecimento os paraibanos, conforme assertiva do autor. Tocante a esse longo período de nossa história, reporta-se Horácio de Almeida, entre outros episódios, à escolha dos representantes de nosso Estado à Assembleia Constituinte, que resultou na Constituição de 1823; ao movimento armado denominado Confederação do Equador, com suas lutas, marcando, sobretudo, a participação de Pernambuco e da Paraíba, no seu decorrer, até a debelação da revol-
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ta, com a coluna de presos, perseguida até o Ceará, recambiada para Pernambuco, através do interior da Paraíba, entre eles o mais importante dos revoltosos, Frei Caneca, executado no Recife; outras revoltas como a Praieira e a Quebra-quilos são narradas ao longo da obra, assim como a visita do Imperador Pedro II à Paraíba, que aqui chegou a 24 de dezembro de 1859. Revela Horácio de Almeida que a abolição da escravatura marcou presença em nosso Estado por lei municipal da Câmara de Areia, em 3 de maio de 1888, antes mesmo, portanto, da Lei Áurea, somente sancionada, como se sabe, aos 13 de maio daquele ano. “A República chegou à Paraíba sem ter quem a recebesse”, declara Horácio de Almeida, ao iniciar a narração dos fatos do período republicano, a qual se estende, apenas e infelizmente, até a campanha epitacista de 1915, não sem antes se reportar aos acontecimentos que se seguiram, na Paraíba, à proclamação da República, tais como a nomeação de Venâncio Neiva para Governador; a eleição da Assembleia e elaboração da primeira Constituição estadual, o golpe de Floriano, com a derrubada de Venâncio Neiva e a nomeação de Álvaro Machado para substituí-lo, a feitura de uma nova Carta Porta Política do Estado. Menciona o autor aspectos diversos dos governos
de Álvaro Machado, Walfredo Leal, Gama e Melo, José Peregrino, João Machado, Castro Pinto, Antônio Pessoa e Solon de Lucena. Concluindo História da Paraíba por volta de 1975, fecha-a Horácio de Almeida sua extraordinária obra com uma lição de história: Está chegada a hora de bater o ponto final. Apenas sessenta anos são decorridos dos fatos acima narrados. O tempo tão recente desfavorece o historiador, porque lhe tira quase toda a ação de apreciação na crítica histórica. História sem crítica, sem interpretação, é narrativa incolor. O passado é preciso que se estude com critério e independência, para melhor compreensão do comportamento do homem em face dos acontecimentos de seu tempo. Quando o passado é recente o melhor é parar. O campo afigura-se ainda propício aos debates polêmicos, às monografias destorcidas da verdade história, às memórias fementidas, com que muita gente abjura o seu passado ou só conta dele o que convém à conservação de uma imagem, que retoca cada dia e forceja por não desfigurar. A história continua, mas só poderá ser tratada com independência e critério depois de decantados os fatos que ainda estão em ebulição. Essa tarefa caberá ao historiador do futuro. g
HISTÓRIA
AS ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS E AS SENSIBILIDADES DO MODERNO (1950 – 1960) Josinaldo Gomes da Silva
RESUMOO presente trabalho tem como tema central investigar as viagens inaugurais do trem de ferro, tendo em vista o seu impacto, nessa ou naquela cidade, vila, ou povoado; entender as estações ferroviárias como um locus de novas sociabilidades. Assim sendo, procura-se perceber nos relatos orais de memórias (e demais fontes consultadas), o impacto do trem inaugural, e a importância da estação ferroviária de Patos, como um ambiente de novas sociabilidades, um dos pontos mais importantes da cidade, para onde afluem: senhoritas, cavalheiros e rapazes, que vão entre outras coisas, assistir a chegada do trem. Nesse contexto, os trens que aportam na referida estação, trazendo ou levando pessoas e objetos, além de boas ou más noticias, ou simplesmente noticias, não esquecendo de sonhos a realizar ou desfeitos, tornam-se canais por meio dos quais a (referida) estação se constitui enquanto espaço de intensa sociabilidade, convergindo para ela praticamente todos os interesses da coletividade em seus laços com o mundo exterior, sejam econômicos, políticos, afetivos, etc. Palavras-chaves: viagens inaugurais – estações ferroviárias – sociabilidades. Viagens do trem inaugural: imagens do ícone da mecânica moderna em meados do século XIX e inicio do século XX As representações referentes às inaugurações de estradas de ferro, nessa ou naquela localidade, eram encaradas como um grande acontecimento. “O dia do trem inaugural aparecia, então, como um dia decisivo para a vida do lugar, que concretizava um sonho alimentado durante anos, às vezes durante décadas” (ARANHA,2001:373 ). Assim sendo, as populações acorriam em massa dando vivas ao grande acontecimento. Foi assim na experiência pioneira no Brasil, no trem inaugural entre o Rio de Janeiro e Petrópolis, no ano de 1854; foi assim no Recife no ano de 1858, quando da inauguração do trecho entre a capital e a vila do Cabo; foi assim na cidade de Parahyba (hoje João Pessoa) em agosto de 1880, quando da inaugura-
ção dos trabalhos de construção dos trilhos; foi assim em Campina Grande, também na Parahyba, em 02 de outubro de 1907; foi assim na cidade de Patos, no Sertão paraibano em 19 de abril de 1944, e foi assim na cidade de Juazeirinho, no Cariri paraibano, em 16 de janeiro de 1956. Para se ter uma ideia da importância do evento, em setembro de 1830 o trem inaugural da ferrovia Liverpool – Manchester reuniu em torno de 400 mil expectadores. Em 1853 Irineu Evangelista de Souza, proporcionou uma amostra (a um grupo de privilegiados) de como funcionava a locomotiva, depois de concluído um pequeno trecho da Estrada de Ferro de Petrópolis. Um periódico da época assim descreveu o decantado acontecimento: De repente um grito prolongado, estridente, um sibilo de força de cinqüenta sopranos estrugiu pelos ares e nos fez levar as mãos aos ouvidos. Era o anúncio da partida, era o aviso a quem se achasse à frente para acautelar-se do bote mortal, aviso dado por um tubo da própria locomotiva. Mais veloz do que uma flecha, do que o vôo de uma andorinha, o carro enfiou-se pelos trilhos, embalançou-se, correu, voou, devorou o espaço e, atravessando campos, charnecas e mangues aterrados, parou, enfim, arquejante no ponto onde o caminho não oferece segurança. O espaço devorado foi de uma milha e três quartos. O tempo que durou o trajeto foi de quatro minutos incompletos. (CASTRO, 2007:51) Contudo, a inauguração oficial da referida ferrovia, só se deu no dia 30 de abril de 1854, e contou com a presença de grande multidão (inclusive a presença do Imperador D. Pedro II). Um certo cronista, a serviço de um Jornal Pernambuco, que se encontrava no referido evento, descreveu o acontecimento, nos seguintes termos: “nenhum dos acontecimentos nestes últimos tempos, deu tamanho rebate, excitou mais a curiosidade e a atenção pública que o grande sucesso de hoje”(ARANHA, 2001:375 ). Enfim, a inauguração da primeira estra-
da de ferro brasileira foi assunto em vários jornais do país. O mesmo aconteceu com a primeira viagem de trem ocorrida na Capital pernambucana, considerada a primeira do Norte e a segunda do Brasil. Nessa perspectiva, um cronista da época, registra: Os trilhos estavam sentados, as estações prontas; os vagões armados. E, afinal, entre festas, curiosidades e entusiasmo, o trem inaugural partiu de Cinco Pontas atingiu, debaixo de foguetes, músicas e repiques, a cidade (na época ainda vila) do Cabo. Tratava-se de um grande acontecimento, festejado publicamente por milhares de pessoas, acerca do qual Estevão Pinto, em seu clássico estudo, fornece mais detalhes: ‘no dia em que ocorreu o primeiro trem do Nordeste (08 de fevereiro de 1858), a estrada de ferro do Recife ao São Francisco transportou de Cinco Pontas à Vila do Cabo, mais de quatrocentas pessoas. O comboio partiu às 12 horas, após a benção tradicional; meia hora depois atingira aquela vila, entre aclamações da população apinhada nos caminhos. Isto para não falar que na hora do ‘lunch’, oferecido na Vila do Cabo a convidados ilustres, não faltaram brindes de saudação a dois chefes de estado, ao Imperador e à Rainha Vitória. (ARANHA,2001:374) E não pensem que a chegada do trem era motivo de festa apenas quando se tratava de grandes cidades ou capitais, pois, imagens legadas por romances dão conta de que a chegada da locomotiva nas pequenas cidades, vilas ou povoados era motivo de grandes festas, a exemplo do ocorreu no Una – Mata sul de Pernambuco – “a estaçãozinha embandeirada não faltando ‘vivas’ e mais ‘vivas’ ao trem e rifles disparados para o ar” (ARANHA, 2008). Houve casos em que até mesmo o início dos trabalhos de construção da linha férrea era motivo de festa. Como, por exemplo, o que ocorreu na Capital paraibana, em 09 de agosto de 1880, sem dúvida um dia festivo, onde aconteceram passeatas, queima de fogos e artifícios, discursos, cujo tom exaltava abril/maio/junho/2015 |
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no trem de ferro a condição de algo novo por excelência na vida dos paraibanos. Enfim, foi um dia dedicado à comemoração de algo que se mostrava iminente. Quando o primeiro trecho foi inaugurado, em 1883, um certo cronista da capital que se fazia presente à solenidade, assim se expressou: Cumprindo o cerimonial religioso, com a presença de ‘el cura’, que ‘latinou, empunhou o byssope e atacou água’ na locomotiva Isabel, esta, já devidamente ‘baptisada’ e com todos os convidados a bordo, pôs-se em movimento. Assim, ‘como um luctador que experimenta as forças, a Isabel jogou os músculos de aço, soltou o grito alarmante do progresso e, desenrollando no espaço o novello fumarento do seu hálito, partio ao som da música e da aclamação dos que ficavam. (...) variando de velocidade, corre a locomotiva, attritando os rails; voa o tempo e diminue o espaço, de lado e de outro da estrada, como no fundo de um scenario, surgem admiradores do grande invento, a exemplo daquele velho com uma creança nos braços e que parece dizer-lhe: ‘ainda não saíste do berço e já estás vendo aquilo que só me foi dado quase ao entrar para o túmulo; quando tiveres da minha idade, (...) o que não terá o gênio do homem inventado, o que não mostrarás a teus netos!! (ARANHA,2001:378) A presença do trem marca um novo espaço-tempo para aquelas populações e a partir daquele momento a vida daquelas pessoas não seria mais a mesma, pois, precisavam aprender a conviver com a máquina, e, por sua vez, com o novo ritmo marcado pela cadência da nova tecnologia, o vaqueiro, apesar da sua simplicidade, sabe que a vida do neto será diferente, marcada pela convivência com a máquina, coisa que ele viu já “bem perto de ir para o túmulo,” e o seu espanto, ao ver a locomotiva varando a estrada, talvez expresse um pouco de admiração e medo. Enfim, fosse onde fosse, até mesmo o anúncio de um decreto autorizando o decantado benefício era motivo para comemoração. Foi o que aconteceu na cidade de Campina Grande –PB, em 1904, quando do anúncio, por decreto, do prolongamento dos trilhos, até aquela cidade. O chefe político Cristiano Lauritzen percorreu a cidade de telegrama na mão, mostrando ao povo e convidando-o para irem a festa que promoveria para comemorar tal acontecimento. Mas toda essa efusão se explicava facilmente: é que no imaginário local o trem se configurava como a realização de um sonho, pois
tanto os políticos1 como os letrados faziam tanto alarde em torno das benesses de uma estrada de ferro, que quando uma cidade, vila ou povoação entrava no rol das possíveis beneficiadas seus habitantes já não falavam em outra coisa. Além disso, a imagem da serpente de aço deslizando sobre os trilhos, o apito da locomotiva a vapor, sua fumaça inundando tudo, transformou-se em matéria-prima para a arte em suas diversas manifestações. Em 1873, o pintor impressionista Édouard Manet pintou A ferrovia (Gare Saint Lazare), focalizando uma mulher e uma criança nessa estação ferroviária de Paris. Quatro anos depois, o também impressionista Claude Monet exibiu sete estudos sobre a Gare Saint Lazare, além de produzir nessa mesma época diversos quadros representando trens e ferrovias. Em 1895, ainda nos primórdios do cinematógrafo, os irmãos Auguste e Louis Lumière encantaram os espectadores com A chegada do trem à estação de La Ciotat, uma pequena obra prima. A plasticidade da Maria-fumaça, o símbolo de força e poder que representava, iniciava assim seu namoro com as telas. (FERREIRA, 2008:54) Além disso, o trem é decantado em versos, a exemplo do Trem de Alagoas publicado em 1939, indicando que o trem partia do Recife (em 1930) com destino à cidade alagoana de Catende. E em plena década de 1950 quando já ninguém mais ignorava o descaso das autoridades brasileiras com a malha ferroviária do país, ainda ecoava forte, como parte do imaginário do trem, o que representava em termos de padrão de velocidade. Em belíssimo poema publicado em 1954, João Cabral de Melo contempla todo o percurso do rio Capibaribe, desde sua nascente até a cidade do Recife, onde se encontra com o mar. O trem de ferro também é decantado em romances, como por exemplo as tramas do ciclo do açúcar, do paraibano José Lins do Rego, profundamente marcadas pelo imaginário do trem.2 Enfim, se nas décadas de 1930 e 1950 a presença do trem de ferro causara ainda grande impacto no imaginário da época, que dizer da repercussão da chegada do trem na cidade de Campina Grande – PB, em 1907? O cronista Cristino Pimentel, que se encontrava na estação ferroviária de Campina Grande, (no dia da chegada do trem) rememorou: (...) eu me transportei ao palco da minha infância, quando o vapor chegou a Cam-
pina (...) houve música, e vivas ao gringo [referência a Cristiano Lauritzen], a quem se devia aquela iniciativa. De fato na inauguração do trem em Campina Grande foram muitos ‘vivas ao gringo’, o prefeito da terra. Na ocasião, uma quarta-feira, 02 de outubro de 1907, milhares de pessoas marcaram presença no grande acontecimento, cujo registro fotográfico mostra que uma verdadeira multidão, composta por homens, mulheres e crianças, com trajes típicos da época, aglomerava-se na plataforma da estação para esperar o trem inaugural. (ARANHA, 2001:385) O trem que chegou à estação ferroviária de Campina Grande naquela data, partiu de Itabaiana e fez um percurso de 82 quilômetros. Um repórter do Diário de Pernambuco fora enviado para fazer a cobertura do grande acontecimento. De maneira que as imagens desse trem inaugural se fundamentam nas notas de viagem escritas pelo referido repórter. O nosso repórter se mostra indignado com a falta de conforto no referido trem, descrevendo a viagem como um verdadeiro martírio. Porém, talvez por ser do Recife, cidade que há décadas já convivia com o trem, o nosso jornalista não percebia que mesmo uma velha locomotiva era capaz de proporcionar um enorme espetáculo, pelo interior afora, como, em Campina Grande no começo do século XX, onde 4 mil pessoas esperavam ansiosamente pelo trem, que chegou com três horas de atraso. 2. Imagens do trem inaugural na cidade de Patos: a estação ferroviária e as sensibilidades do moderno. No dia 19 de abril de 1944, a cidade de Patos, acorda em ritmo de Festa, pois nessa data acontece a inauguração oficial do trecho ferroviário Pombal – Patos. Nesse dia está se concretizando uma obra, cuja aspiração remonta ao século XIX, pois, em 19 de julho de 1891 um jornal da capital divulga correspondência oriunda da vila de Patos dando conta de que “chegou por aqui a notícia de se ir já continuar com a estrada de ferro deste Estado, até Cajazeiras, e esta noticia foi recebida com geral agrado” (FERNANDES, 2003:132). Em 1907 os trilhos chegam à cidade de Campina Grande, em 1908 já se davam no papel os primeiros passos para o prolongamento dos trilhos para o Sertão3. Neste contexto, “A Voz do Sertão” jornal sediado em Patos, em 20 de julho de 1915 publica um apelo dos moradores de Taperoá, que conta com 54 assinaturas solicitando ao presidente Wenscelau Braz,
Para saber mais sobre o assunto ver: ARANHA, Gervácio. Trem e imaginário na Paraíba e região: tramas políticas e econômicas (1880-195) Ver: ARANHA, Gervácio. Trem de ferro em imagens literárias: advento triunfal da mecânica moderna no Brasil na transição do 19 para o 20. In: CITTADINO, Monique; GONÇALVES, Regina Célia. História em diversidade: ensaios de história e Ensino de História. Campina Grande: Editora Universitária-UFCG, 2008. 3 Ver Diário da Borborema de 16 de fevereiro de 1958. 1 2
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o prolongamento dos trilhos para o Sertão passando por Taperoá. A justificativa para tal empreendimento era o tão propalado discurso da seca.4 Enfim nas primeiras décadas do século XX, vários projetos foram discutidos, alguns iniciados e depois interditados, como é o caso do projeto de obras contra as secas, do presidente Epitácio Pessoa, que incluía as estradas de ferro, interditado pelo Presidente Artur Bernardes5. Porém, o jornal A União, de 23 de abril de 1944, traz uma longa reportagem sobre a inauguração que se deu em Patos no dia 19 de abril do referido ano. Nesse dia Patos despertou no uso da velha praxe da salva de 21 tiros. Era o convite a população para as festas. Assim as 7:30 horas as ruas se mostravam movimentadas. Desfilavam pela via pública o Ginásio Diocesano de Patos, o colégio Cristo Rei e o Grupo Escolar em direção a matriz para ouvir a missa campal celebrada pelo padre Francisco Lopes. Estavam presentes o representante do governo do estado, autoridades municipais e destacados elementos do comércio e da lavoura. Após o encerramento da parte religiosa, ocorreu a cerimônia de hasteamento da bandeira na Prefeitura Municipal, o dr. Lourival Cavalcanti diretor do Grupo Escolar falou exaltando as virtudes do Presidente Vargas6. Em seguida foram para a estação ferroviária inaugurar o trecho (ferroviário) que liga Pombal a Patos. Como é possível perceber na foto abaixo, o ato de inauguração do trecho ferroviário revestiu-se de solenidade, pois apesar da primeira viagem de trem entre Pombal e Patos ter ocorrido em 26 de janeiro de 1944, aquele dia representava a inauguração oficial da referida obra. Sendo assim, na sala principal da estação ferroviária, o engenheiro diretor da RVC, abre a sessão e convida para ocupar a presidência o dr. Janduhy Carneiro, diretor do Departamento de Saúde, representando, ali o interventor Ruy Carneiro. Na ocasião, usaram da palavra o engenheiro José Olinto, diretor de construções, que expôs aos presentes todo o desenvolvimento dos trabalhos para a conclusão, até ali, do novo ramal da Rêde de Viação Cearense, dizendo da importância da estrada para as populações sertanejas e, sobretudo, do interesse tomado pelo Governo para que se objetivasse aquele secular anseio dos nordestinos que sempre sonharam com aquela
ligação. Usou em seguida da palavra o dr. Janduhy Carneiro que se congratulou, em nome do interventor Ruy Carneiro, com o povo de Patos, pela inauguração da ferrovia que tantos benefícios iria proporcionar ao povo do sertão. Nesse momento (da chegada do trem vindo do Ceará), Patos já é uma cidade promissora, sendo um entreposto cultural e comercial do sertão, principal elo de ligação com Campina Grande, através da estrada central que possibilitava o tráfego de caminhões. Já contava com a ACIAP (Associação Comercial Industrial e Agrícola de Patos) fundada numa reunião que ocorreu no prédio da Ação Católica, ao lado da Igreja Matriz em novembro de 1943. Naquele instante (quando o trem chega do Ceará) Patos já respira um certo ar de modernidade, pois com a instalação de Anderson Clayton em 31 de Janeiro de 1936 e de SANBRA, duas poderosas indústrias de algodão, que passam a gerar empregos na cidade, o seu comércio já se destaca, inclusive com uma feira semanal. O Cine Eldorado, inaugurado em 1934, alegrava as noites patoenses, com seus filmes antológicos, a difusora A voz das Espinharas trazia as notícias da guerra através da sintonia com a BBC de Londres. Em 1941 é instalada uma agência do Banco do Brasil, enfim, Patos era a cidade que mais crescia no sertão paraibano. Com a chegada do trem, a estação de Patos tornou-se por excelência um espaço de novas sociabilidades, espécie de passeio público, sem dúvida, um dos lugares mais atraentes da cidade, segundo o memorialista Madureira77: Interessante o que é a gente ver isso aqui de novo, daqui até certo ponto virava um glamour! era um grande vai e vem, um verdadeiro costurar! Usava-se as melhores roupas, a espera do trem, alguns vinham esperar familiares, e outros vinham só mesmo pra passear... para ver coisas diferentes, aqui era o setor de carga e descarga, ali era o setor de transporte de passageiros, isso aqui era cheio, era muita gente da cidade só para esse acontecimento, não tinha muita motivação na época, essa chegada de trem era uma beleza, isso acontecia as quartas feira as 3 horas da tarde, quem anunciava essa chegada era o sol, quando o sol esfriar, eu vou para a estação, quando o trem chegava na ponte do Frango8 aí tinha aquele buzinar! aí as pessoas já ficavam naquela ânsia da chegada do trem, isso aqui se enchia de gente, era preciso que o guarda de trilhos ficasse
limitando o avanço das pessoas. O setor no qual a estação foi construída ainda é bastante carente em termos de infra-estrutura urbana, porém, “outra mudança digna de nota está relacionada com a emergência de uma rede de serviços em torno das estações, a exemplo de bares, cafés, hotéis, baixo meretrício, etc. espécies de portas abertas para o mundo, elas atraíam tanto a rede de serviços como a mancha urbana” (ARANHA, 2007:114). Assim sendo, deixemos que o nosso memorialista, Madureira se expresse: Você vê que isso aqui cresceu, de inicio o comércio veio para aqui, principalmente auto pecas, aqui tinham dois postos de gasolina, restaurante, (na época era rua do Sol), os bons restaurantes vieram pra cá em função da rede ferroviária, hotéis vieram para cá, tinha o Santa Terezinha, e outros, eram hotéis de grande porte, olhe em matéria financeira a rede ferroviária foi de uma enorme importância, tudo vinha no trem quando atrasava o trem atrasava tudo, quando chegava o trem tinha novidade, os circos vinham de trem, era uma maravilha, a região dos circos era onde o trem faz a manobra, isso daqui que você vê tudo pertence a rede ferroviária federal, os circos era um acontecimento! ver os elefantes! e demais animais. O centro de Patos não lembro bem mas, nessa época não era calçado, o carnaval da época era uma maravilha, não sei por que acabou o carnaval de rua em Patos era uma maravilha. Pra você ter uma idéia quando o exército veio para Patos isso (se refere a uma casa localizada em frente a estação) foi o quartel do exército, quem botou os trilhos foi os soldados do exército. Ali (se refere a outro prédio também em frente a estação) era a oficina da rede ferroviária onde concertava máquinas e vagões, o trem quebrava a rotina da cidade, o pessoal vinha antes um pouco, dependia do sol, mas mesmo assim vinha muita gente, tinha o comércio informal, pirulito rolete de cana, cavaco chinês, se usava as melhores roupas, pra você vê a importância do evento. Entretanto, a partir de tais relatos é possível perceber o impacto que o trem de ferro causa no imaginário dos patoenses, a estação ferroviária torna-se um ponto de novas sociabilidades, um local para onde afluem: senhoritas, cavalheiros e rapazes a fim de assistirem a chegada do trem. Nessa perspectiva as imagens literárias, como também os testemunhos, memórias e demais indícios
ARANHA, Gervácio. Trem e imaginário na Paraíba e região: tramas políticas e econômicas (1880-195) ALMEIDA, José Américo. A Paraiba e seus problemas. 3 ed. João Pessoa –PB:1980. A exaltação à figura do Presidente Vargas se dava pelo fato da referida festa de inauguração ter acontecido dentro das comemorações do seu aniversário natalício. 7 Depoimento concedido ao autor, no dia 05 de março de 2.010 8 A ponte a que o nosso memorialista se refere está localizada na propriedade de mesmo nome, que fica a uns 3 0u 4 km (sentido oeste) de Patos. Fonte: Jornal a União de 23 de abril de 1944 4 5 6
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que acenam para a presença do trem de ferro, nessa ou naquela cidade ou povoado, nos dão mostra da grande importância que as estações ferroviárias passam a representar no universo de cada localidade onde é instalada, tornam-se espécies de portas abertas para o mundo. Os trens que aportam nessas estações – trazendo ou levando pessoas e objetos, além de boas ou más noticias, ou simplesmente noticias, não esquecendo de sonhos a realizar ou desfeitos – tornam-se canais por meio dos quais essas estações se constituem enquanto espaços intensa sociabilidade, convergindo para elas praticamente todos os interesses da coletividade em seus laços com o mundo exterior, sejam econômicos, políticos, afetivos, etc. (ARANHA, 2006:75) Neste contexto, Seu Bau, é mais um dos frequentadores da estação ferroviária de Patos, ele descreve de forma bem romântica os passeios públicos na referida estação, deixemos seu Bau falar: Quando o trem dava um eco, o povo corria pra estação, ali era lotado de gente, ficava carro de trem carregado de mercadoria, o povo ia mais olhar o movimento, vinha muita gente de fora, eu me lembro que Mocinha tinha um vestido de linho com golas, era lindo demais, era mais ou menos parecido com esse aí, (no momento da entrevista D. Mocinha estava sentada em frente a Seu Bau) as pessoas se vestia com diagonal branco chega cheirava a água de coco. Tinha um tio de mocinha que tinha 50 par de meias, agente tinha muito alfaiate que fazia as roupas, o tropical azul era para o derradeiro dia de festa (ele se refere a festa de Nossa Senhora da Guia), era uma maravilha9! O nosso memorialista também lembra os passeios na praça Getúlio Vargas, nos domingos à noite. Olhe você pergunte a Madureira, na praça Getulio Vargas era uma festa, você vê, andava tudo engravatado de roupa de diagonal, tropical, a banda tocava ali,a gente tomava uma cervejinha com um pedacinho de frango, não era assado, era recheado, com verduras, era uma festa, que a gente tinha aqui todo domingo na praça10. Dona Mocinha, esposa de seu Bau que também se encontrava presente no momento da entrevista, assevera: “era bom demais, eu morava aqui, (no atual Bairro do Belo Horizonte), o meu pai não queria deixar a gente sair, a gente fugia para ir pra praça, o carnaval era na prefeitura o bloco na rua era muito bom” Seu Bau: - “naquele tempo
usava lança, era uma coisa linda.” D. Mocinha: - “meu pai comprava lança pra nós, nós botava no lenço e cheirava, mais era bom, rapaz, mais tudo sem maldade, era uma beleza rapaz, nessa época!”. Percebe-se a partir de tais depoimentos uma certa mudança de comportamento, são novos valores, novas atitudes, contrastando com os valores ditos tradicionais, pois o processo de modernização da urbe vai fomentando novas sensibilidades, isto é, o comportamento (das pessoas) vai ganhando feições modernas, hábitos considerados civilizados nas principais capitais brasileiras, a exemplo do Recife e do Rio de Janeiro, principais vitrines do moderno na época, vão fazendo parte do cotidiano da cidade. Contudo, a instalação de equipamentos modernos contribui também para o crescimento da população urbana, pois as dificuldades econômicas, a pressão, a que grande maioria da população rural estava submetida, tendo em vista que muitos fazendeiros ainda conservavam atitudes escravocratas11, contribuem para o êxodo rural, isto é, a procura de melhores condições de vida na cidade, o que nem sempre acontece. Assim sendo, na década de 1950 já é bastante visível o crescimento urbano de Patos. O censo realizado em 1951 apresenta os seguintes números: população do Município: 49.540 habitantes; sendo que destes, 34. 290 moram na zona rural; 13.672 na zona urbana; e 1.578 na zona suburbana. Contudo, a população rural ainda é maior do que a população urbana, porém em uma década a população urbana praticamente duplicou. Entretanto, apesar do transporte ferroviário não representar mais a prioridade dos governos, na década de 1950, pois o transporte rodoviário já ganhara espaço, e isso representou um certo abandono da malha ferroviária do país, a ligação ferroviária com Campina Grande, ainda era um grande anseio da população de Patos e região. Assim sendo, Em 10 de outubro de 1955 é feito o assentamento do primeiro trilho em direção a Campina Grande (da ligação ferroviária Patos – Campina Grande), o ato é assistido pelo Coronel Rodrigo Otávio, Comandante do Grupamento de Engenharia do Nordeste e pelo Cel. Onofre de Brito, Comandante do Batalhão Ferroviário sediado em Campina Grande e conta com o comparecimento do Prefeito Darcílio Wanderley e outras autoridades. (FERNANDES, 2003:295). Mas, só em 08 de fevereiro de 1958 é
Depoimento concedido ao autor em 04 de março de 2.010 IDEM 11 Ver WANDERLEY, Allyrio Meira. Ranger de dentes. Rio de Janeiro: Companhia Editora Leitura, 1945 9
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feita a viagem inaugural entre as duas cidades paraibanas. O jornalista José Soares de Souza, que se encontrava na cidade de Patos naquele dia, descreveu: No dia 08 do corrente esta cidade viveu momentos de grande alegria com a entrega do tráfego (provisoriamente) da Estrada de Ferro CAMPINA GRANDE-PATOS, uma velha aspiração, não só de Patos como de todo o sertão que hoje também se vê ligado aos grandes centros, através de linhas ferroviárias. A tarde daquele dia grande multidão se concentrou em frente a Estação da R.V.C. aguardando a chegada da composição da Rêde Ferroviária do Nordeste que conduzia mais ilustre embaixada composta entre outros de altas figuras do exército nacional tendo a frente o Dr. Renato Feio. Ao chegar a ilustre comitiva o povo vibrou de entusiasmo num gesto de agradecimento àqueles que eram os portadores de tão grande realização. Saudando os homenageados falou em nome das autoridades municipais o dr. Francisco Soares, representando o Governador do Estado falou o deputado José Gaioso, em seguida ocupou o microfone o professor João Norberto, terminando, usou a palavra o Gal. Otacílio Terra Ururahy, agradecendo aquela manifestação e entregando ao trafego a referida ferrovia que será inaugurada oficialmente em abril ou maio próximo, com a presença do senhor presidente da República. Cristino Pimentel, denominou o referido acontecimento de “abraço de trens” pois afinal o trem da Rede Ferroviária do Nordeste encontra-se com o seu colega da Rede Viação Cearense, que vem de Fortaleza, ligando as duas cidades mais progressistas da Paraíba. Patos. A cidade bonita da Espinhara, onde o progresso calça umas botas brilhantes e expõe vitrines no seu comércio volumoso (...) Campina Grande e Patos, duas mãos que se apertam, duas culturas que se encontram, duas colméias do progresso, que realizam o milagre da multiplicação pelo trabalho, sofrimento e pela paciência. O sonho de décadas estava concretizado. Com a entrega desse trecho ao tráfego ferroviário, cinco Capitais Nordestinas ficam interligadas – via trem – e por sua vez a estação ferroviária de Patos passa a representar uma porta aberta, um ponto privilegiado de comunicação com as referidas capitais, pois os trens que ali chegavam apitando e apitando partiam, se davam como um espetáculo à parte. Assim sendo, Madureira relembra: O trem era de uma utilidade que eu não
sei ... tanto pra carga quanto para o deslocamento de pessoas, eu conheço pessoas que tinha caminhão como caju verde que viviam exclusivamente do transporte de matérias primas que vinham no trem para distribuir na cidade e na redondeza, os vagões ficavam na linha secundária, e os caminhões ficavam ao lado, era algodão, oiticica, o algodão era beneficiado aqui e daqui saia no trem, eu viajei pra Souza, pra cá, viajei até Itabaiana onde fazia a baldeação, rapaz olhe o dia da chegada do trem em Patos era uma festa, até as mu12
lheres do baixo meretrício ficavam na espera, ali vinham os namorados essas pessoas que trabalhavam na linha férrea eram muito namoradores, eles ganhavam muito bem para o padrão da época, quando eles chegavam! ai na zona do meretrício não tinha pra ninguém.12 No final da década de 1950, o progresso de Patos é decantado nos principais periódicos do Estado. Em 5 de maio de 1959, o Diário da Borborema publica um editorial, assinado por Cristino Pimentel (correspondente do Correio da Manhã do
Rio de Janeiro). O mesmo visitou a referida cidade, em trabalho de divulgação do seu livro “Pedaços da História de Campina”. O cronista fica encantado com a beleza da cidade sertaneja, “onde sente-se o cheiro de civilização. Os patoenses vivem uma vida não muito longe da ideal.” Falta-lhes água encanada e energia de Paulo Afonso. O que leva outros cronistas a admirarem-se com o impressionante progresso da urbe, mas por outro lado também reclamarem da escuridão e da falta de água encanada. g
Depoimento concedido ao autor em 05 de março de 2.010
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, José Américo. A Paraiba e seus problemas. 3 ed. João Pessoa –PB:1980. ARANHA, Gevárcio Batista. Parahyba do Norte na passagem para o século XIX: vida Urbana e Modernidade. IN: SOUZA, Antonio Clarindo, e SOUSA, Fábio Gutemberg (orgs). História da Paraíba - ensino médio. Campina Grande: EDUFCG, 2007. ____________________. Seduções do Moderno na Parahyba do Norte: trem de ferro, luz elétrica e outras conquistas materiais e simbólicas (1880 – 1925). IN: DO Ó, Alarcon Agra, e SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa (orgs). et. al. A Paraíba no Império e na República: estudo de História social e cultural. 3. Ed. Campina Grande: EDUFCG, 2006. ___________________. Trem de ferro em imagens literárias: advento triunfal da mecânica moderna no Brasil na transição do 19 para o 20. In: CITTADINO, Monique; GONÇALVES, Regina Célia. História em diversidade: ensaios de história e Ensino de História. Campina Grande: Editora Universitária-UFCG, 2008. __________________. As Estações de trem e um novo espaço-tempo. In: Trem, modernidade e imaginário na Paraíba e região: tramas político-econômicas e práticas culturais (1825 -1925), tese de doutorado: Campinas-SP, 2001 CASTRO. Bertholdo de. Caminhos de ferro. In: Revista BrBrasil, ano I, nº I, março de 2007. FERNANDES, Flávio Sátiro. Na rota do tempo – datas, fatos e curiosidades da história de Patos/Paraiba. João Pessoa: Imprel, 2003. FERREIRA, Marieta de Moraes, e AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998 FERREIRA, Victor José. O trem no imaginário brasileiro. In: Caminhos do Trem: a conquista do trem. São Paulo: Duetto editorial, 2008 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François (et al). Campinas- SP: Editora da UNICAMP, 2007
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HISTÓRIA
NOTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA ESTRADA DE FERRO MOSSORÓ-SOUSA José Romero Araújo Cardoso/Marcela Ferreira Lopes
Para Wilson Bezerra de Moura, Ivanildo Formiga (In memoriam), Geraldo Benevides de Paiva e a todos os heróis da grande saga ferroviária mossoroense. A dinâmica econômico-comercial de Mossoró começou a se efetivar de forma proeminente quando do assoreamento do importante porto de Aracati, inserido geograficamente no estado do Ceará, fato verificado a partir da década de setenta do século XIX. Antes disso, toda movimentação comercial do litoral setentrional era feita através da cidade localizada na desembocadura do rio Jaguaribe, ponto terminal das tropas de burros que demandavam essa localidade cearense, intuindo encontrar compradores para o que restava das mercadorias que transportavam em dificílimas viagens através das veredas do sertão. Inúmeros comerciantes começaram a se deslocar para Mossoró, até então inexpressiva localidade potiguar, havendo destaque para o suíço Johannes Ulrik Graf, importante comerciante dedicado ao ramo de exportação e importação, sediado na conceituada casa Graf, a qual, localizada em Macaíba, representou a influência europeia no cotidiano econômico-social da então província do Rio Grande, pois era extraordinária a variedade de produtos de fora que disponibilizou quando de sua intensa atividade comercial. Devido a não dispor de meios de transporte eficazes, a produção sertaneja do próprio estado, bem como dos vizinhos, Paraíba e Ceará, direcionada à comercialização em Mossoró, era deslocada em tropas de burros, as quais tinham por característica marcante a notável depreciação, tendo em vista os desafios enfrentados pelos antigos almocreves e suas históricas jornadas em busca de melhores preços na praça mossoroense. Observando que havia necessidade de implementar meio de locomoção mais eficiente, Graf propôs que a solução estaria na construção de uma ferrovia interligando o oeste potiguar às barrancas do São Francisco, tendo em vista que o sal poderia ser escoado e peles, couros, algodão, etc. poderiam também ser transportados com mais facilidade, sem os
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percalços que notabilizavam as aventuras dos tropeiros pelas veredas da terra do sol. Graf obteve a concessão para a construção de tão sonhada ferrovia, mas por falta de recursos não teve como levar avante o almejado plano de dotar o estado do Rio Grande do Norte do mais moderno meio de transporte daquela época. Falido, dizem que Graf ganhou as matas da Amazônia, talvez em busca da riqueza representada pela borracha. Deixou para trás a utopia da estrada de ferro de Mossoró e o notável plano também arquitetado por ele de criar uma instituição de ensino que formulasse e disseminasse conhecimentos a fim de buscar referendar a convivência do homem com as secas. Esse sonho de Graf se efetivou nos três últimos anos do final da década de sessenta do século passado, quando da federalização da antiga Escola Superior de Agronomia de Mossoró (ESAM), hoje Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA). Em 1915 o sonho de Graf se concretizou, não obstante há décadas ter falecido o empreendedor suíço que deixou marcas indeléveis na história econômica, política e social de Mossoró. A inauguração da estação ferroviária, ligando Mossoró a Porto Franco, era o primeiro passo para a conquista da racionalidade no deslocamento de produtos e pessoas, pois, a partir daí, começou verdadeira odissseia em prol da conexão com o Estado da Paraíba. Porto Franco, localizado no atual município de Grossos, era a via de escoamento da produção, para onde se destinava o fruto do trabalho sertanejo, não obstante sabermos que as diferenças sociais se notabilizavam pela proeminência, a exemplo das condições que fomentaram a criação do Sindicato do Garrancho. A firma responsável pela construção dos primeiros trechos da ferrovia era particular, patrimônio de um ousado cearense, natural de Sobral, Coronel Vicente Saboya. Um filho deste, de nome Vicente Saboya Filho, o famoso Saboinha, se tornaria um dos comandantes da resistência mossoroense ao bando de Lampião no fatídico dia 13 de junho de 1927. O transporte da produção sertaneja até
Porto Franco, antes feito em penosas jornadas através de carros-de-boi, passou a ser realizado com o trem, sofisticado e bastante seguro, enfatizando, dessa forma, garantias de maior comodidade e evitando a depreciação da penalizada produção sertaneja, antes submetida ao jugo das condições inaceitáveis representadas pelo duro ofício do tropeirismo. A importância econômica de Mossoró se exponencializou de tal forma que foi necessário estruturar um outro porto, o qual ficou conhecido por Porto de Santo Antônio, distante do locus central de embarque e desembarque, onde as barcaças adentravam o rio Apodi-Mossoró, visando a serem carregadas com algodão, peles, couros, gesso, sal marinho, etc. Em seguida, seguiam a correnteza do rio e chegavam ao oceano. Navios de grande calado, impossibilitados de atracar em Porto Franco, devido a suas estruturas, esperavam esses produtos para levar para a comercialização no exterior. Durante o boom econômico dos países periféricos, observado depois da primeira grande guerra, quando a Europa necessitou de matérias-primas em larga escala, objetivando reconstruir-se dos impactos causados pelo grande conflito mundial, verificou-se intensamente a dinâmica do processo que assinalou a necessidade de ser implementado o transporte férreo em razão de os antigos já não mais corresponderem aos interesses econômico-comerciais-financeiros que estiveram diretamente vinculados a importantes decisões, algumas a nível nacional, a exemplo da instalação da agência de número 36 do Banco do Brasil em Mossoró no ano de 1919, o que se constituiu em um dos motivos propalados por Lampião para invadir a cidade quando do malogrado ataque do cangaceiro, oito anos depois que a referida agência foi inaugurada. A etapa seguinte foi chegar ao então distrito mossoroense de São Sebastião (hoje município de Governador Dix-sept Rosado), onde encontravam-se as maiores reservas de gipsita da América Latina. Nas Vossorocas da Espadilha explorava-se essa rocha sedimentar, cujo transporte em direção a Porto Franco era feito
da forma mais difícil possível. Depois de São Sebastião vieram Caraúbas, Jordão, Patu, Almino Afonso, Mineiro, Antônio Martins, Ulrick Graf, Alexandria, Santa Cruz e o distrito de São Pedro, sendo esses últimos em solo paraibano. Os últimos quilômetros da estrada de ferro Mossoró-Sousa em direção ao estado da Paraíba foram marcados pela apreensão e pela exultação, pois estava se concretizando o sonho de Graf, de Filipe Guerra, de Jerônimo Rosado, entre tantos outros defensores intransigentes da necessidade de meio de transporte eficaz interligando Rio Grande do Norte, Paraíba e o restante do País. Em meados da segunda metade da década de cinquenta do século XX, finalmente, os trilhos da tão sonhada estrada de ferro, que interligasse Mossoró ao restante do País chegaram a Sousa, Estado da Paraíba, marcando de forma épica um capítulo importante na história dos dois Estados. O trem passou a representar um elo fenomenal, tendo em vista a relação bastante enfática entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte, quando laços econômico-comerciais, familiares e afetivos passaram a se concretizar da forma mais extraordinária possível. Era intensa a movimentação de pessoas em direção às cidades cortadas pelos trilhos, mas, sobretudo, em direção a Mossoró, polo econômico visivelmente mais desenvolvido do oeste potiguar. As indústrias Fernandes eram alimentadas com matérias-primas levadas pelos vagões da Mossoró-Sousa. Algodão e oiticica eram produtos requisitados incessantemente pelas importantes firmas localizadas em Mossoró, surgidas com a inversão de capitais do comércio para a industrialização original que se firmou ali, responsável pelo importante momento da
história econômica do Estado do Rio Grande do Norte. A estrada de ferro Mossoró-Sousa, de forma direta ou indireta, transformou-se em ganha-pão de milhares de pessoas, através de empregados efetivos da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), substituta do empreendimento de Saboinha, e, de forma indireta, com incontáveis seres humanos que aproveitavam as oportunidades, quando das passagens do trem, para aumentar a renda familiar, vendendo tapiocas, pastéis, cocadas, enfim, comercializando uma variedade de produtos caseiros que hábeis mãos produziam e que encontravam, imediatamente, consumidores em cada parada, fosse em direção a Sousa ou a Mossoró. Viúvas, órfãos e outros, marcados pelas aspereza da vida, aguardavam ansiosamente a chegada do trem para oferecer delícias que a culinária sertaneja disponibilizava para fregueses certos. Para essas pessoas marcadas pelo destino, a estrada de ferro Mossoró-Sousa era a garantia de que no dia seguinte haveria melhores condições de vida, pelo menos temporariamente, pois não tinham a quem recorrer para tentar mudar a sina inglória, tendo em vista que ninguém se importava com a vida dura que levavam, só o trem era a certeza de uma felicidade com data certa para terminar, como de fato terminou, quando da atrocidade cometida ao desativarem a estrada de ferro Mossoró-Sousa. Embora a importância da Mossoró-Sousa fosse incontestável, logo surgiram vozes contrárias à ferrovia, taxando-a de arcaica, de anacrônica, etc. Disseram até que a mesma era anti-funcional, anti-higiênica, e que, por isso, quem não gostaria de fazer uma viagem cômoda em um carro ao invés de realizá-la em uma composição férrea que sujava de terra todos os passageiros?
A técnica do empedramento seria uma solução para o problema das viagens desconfortáveis, mas a palavra de ordem era priorizar o individualismo, através da produção da indústria automobilística, em vez do coletivismo representado pela conquista árdua simbolizada na estrada de ferro Mossoró-Sousa. Todas essas acusações eram tão somente reflexos da política econômica adotada na era JK, a qual preconizava cinquenta anos em cinco, tendo como carro-chefe a indústria automobilística. A mídia, por sua vez, responsabilizava-se pela formação de um novo imaginário no qual estava inserida a ideia de que ter um carro era mais importante, enquanto sinônimo de status e de afirmação social. A inauguração do Porto Ilha e o assoreamento do Porto Franco foram o início da desativação da estrada de ferro Mossoró-Sousa. Um porto em alto-mar, longe das correntes marítimas que carreiam sedimentos para a costa, capaz de realizar extraordinários embarques e desembarques através de transportes pela imensidão do oceano, era tudo que a sofrida estrada de ferro não suportaria. As estatísticas começaram a demonstrar que a nova realidade se concretizava a olhos vistos, pois ao invés de priorizar a estrada de ferro, importantes agentes econômicos, sobretudo do setor salineiro, passaram a dar ênfase ao Porto Ilha no que tange à decisão de escoar a produção. Os anos 80 e 90 do século passado marcaram a forma trôpega como a Mossoró-Sousa despontava no cenário regional, sendo desativada criminosamente e seus trilhos e obras de arte vendidos como ferro pesado em grandes centros econômicos nacionais, não obstante protestos, sufocados pela lógica do capital em sua sanha indescritível. g
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COLABORADORES A. J. Pereira da Silva (In Memoriam) – Nº 9 Abelardo Jurema Filho – Nº 5 Adylla Rocha Rabello – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Alcides Carneiro - (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Aldo Di Cillo Pagotto – Nº 8 Aldo Lopes Dinucci – Nº 9 Alessandra Torres – Nº 9 Alexandre de Luna Freire – Nº 1 Álvaro Cardoso Gomes – Nº 5 Américo Falcão (In Memoriam) – Nº 9 André Agra Gomes de Lira – Nº 1 Andrès Von Dessauer – Nº 7, Nº 8, Nº 9, Nº 10 Ângela Bezerra de Castro – Nº 1 Anna Maria Lyra e César – Nº 6 Anníbal Bonavides (In Memoriam) – Nº 8 Antônio Mariano de Lima – Nº 4 Astênio César Fernandes – EE/Augusto dos Anjos/ Novembro/2014, Nº 8 Augusto dos Anjos (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/ Novembro/2014 Berilo Ramos Borba – Nº 3 Boaz Vasconcelos Lopes – Nº 7 Camila Frésca – Nº 5 Carlos Alberto de Azevedo – Nº 4, Nº 6 Carlos Alberto Jales – Nº 2 Carlos Meira Trigueiro – Nº 2, Nº 5 Carlos Pessoa de Aquino – Nº 5 Chico Viana – Nº 1, Nº 2, Nº 4, Nº 6, – EE/Augusto dos Anjos/ Novembro/2014, Nº 10 Ciro José Tavares – Nº 1 Claúdio José Lopes Rodrigues – Nº 5, Nº 6 Cláudio Pedrosa Nunes – Nº 7 Cristóvam Buarque - Nº 10 Damião Ramos Cavalcanti – Nº 1 Diógenes da Cunha Lima – Nº 6 Durval Ferrreira – Nº 7 Eilzo Nogueira Matos – Nº 1, Nº 4, Nº 7 Eliane de Alcântara Teixeira – Nº 6 Eliane Dutra Fernandes – Nº 8 Érico Dutra Sátiro Fernandes Nº 1, Nº 9 Ernani Sátyro (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/ Novembro/2014, Nº 7, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Esdras Gueiros (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Eudes Rocha – Nº 3 Evaldo Gonçalves de Queiroz - EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014, Nº 8 Evandro Nóbrega- Nº 2, Nº 4, Nº 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Everardo Cunha Luna - (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/ Maio/2015 Ezequiel Abásolo – Nº 8 Fábio Franzini – Nº 7 Firmino Ayres Leite – Nº 4 Flamarion Tavares Leite – Nº 8 Flávio Sátiro Fernandes – Nº 1, Nº 2, Nº 4, Nº 6, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 7, Nº 8, Nº 9, Nº 10 Flávio Tavares – Nº 3 Francisco de Assis Cunha Metri (Chicão de Bodocongó) - Nº 2 Francisco Gil Messias – Nº 2, Nº 5 Giovanna Meire Polarini – Nº 7 Glória das Neves Dutra Escarião – Nº 2 Gonzaga Rodrigues – Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins – Nº 4, Nº 8 Hamilton Nogueira - (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Hélio Zenaide – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Itapuan Botto Targino – Nº 3 João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (In Memoriam) – Nº 4
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Joaquim de Assis Ferreira (Con.) (In Memoriam) – Nº 6 Joaquim Osterne Carneiro – Nº 2, Nº 4, Nº 7, Nº 9, EE/ Epitácio Pessoa/Maio/2015 José Américo de Almeida (In Memoriam) – Nº 3, EE/Epitácio Pessoa/ Maio/2015 José Jackson Carneiro de Carvalho – Nº 1 José Leite Guerra – Nº 6 José Octávio de Arruda Melo – Nº 1, Nº 3, Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Nº 9 José Romero Araújo Cardoso – Nº 2, Nº 3, Nº 10 Josinaldo Gomes da Silva – Nº 5, Nº 10 Juarez Farias – Nº 5 Juca Pontes – Nº 7 Linaldo Guedes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Lourdinha Luna – EE/Pedro Moreno Gondim/2014, Nº 7 Luiz Fernandes da Silva- Nº 6 Machado de Assis (In Memoriam) – Nº 9 Manoel Batista de Medeiros – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Marcela Ferreira Lopes - Nº 10 Marcelo Deda (In Memoriam) – Nº 4 Marcílio Toscano Franca Filho - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Marcos Cavalcanti de Albuquerque – Nº 1 Margarida Cantarelli - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Maria do Socorro Silva de Aragão – Nº 3, Nº 10 Maria José Teixeira Lopes Gomes – Nº 5, Nº 8 Maria Olívia Garcia R. Arruda – EE/Augusto dos Anjos/ Novembro/2014 Marinalva Freire da Silva – Nº 3, Nº 9 Mário Glauco Di Lascio – Nº 2 Matheus de Medeiros Lacerda - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Mercedes Cavalcanti (Pepita) – Nº 4 Milton Marques Júnior – Nº 4 Moema de Mello e Silva Soares – Nº 3 Neide Medeiros Santos – Nº 3, Nº 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Nelson Coelho – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Neroaldo Pontes de Azevedo – Nº 2 Nilda Gondim - Nº 10 Octacílio Nóbrega de Queiroz (In Memoriam) - Nº 6 Oswaldo Meira Trigueiro – Nº 2, Nº 5, Nº 6, Nº 7, Nº 9, Nº 10 Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Melo - (In Memoriam) EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Otávio Sitônio Pinto – Nº 7 Paulo Bonavides – Nº 1, Nº 4, Nº 5, Nº 9, EE/Epitácio Pessoa/ Maio/2015, Nº 10 Pedro Moreno Gondim (In Memoriam) – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Raimundo Nonato Batista (In Memoriam) – Nº 3 Raul de Góes - (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Raúl Gustavo Ferreyra – Nº 5 Raul Machado (In Memoriam) – Nº 4 Renato César Carneiro – Nº 3, Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014, Nº 7, Nº 9 Ricardo Rabinovich Berkmann – Nº 5 Severino Ramalho Leite – Nº 4, EE/Pedro Moreno Gondim/ Maio/2014 Socorro de Fátima Pacífico Vilar - Nº 10 Thanya Maria Pires Brandão – Nº 4 Verucci Domingos de Almeida – Nº 5, EE/Augusto dos Anjos/ Novembro/2014 Virgínius da Gama e Melo - (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/ Maio/2015 Waldir dos Santos Lima – EE/Pedro Moreno Gondim/ Novembro/2014 Walter Galvão – Nº 3, Nº 9 Wills Leal – Nº 2, Nº 7 (EE=Edição Especial)
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