2
| Maio/junho/2016
CARTA AO LEITOR
SUMÁRIO
Na História do Brasil e, mais particularmente, na História da Paraíba, a figura de José Américo de Almeida se avulta como um dos nomes mais destacados, ombreando-se, no que tange a esta, com outro vulto de distinguida relevância que foi Epitácio Pessoa, que ocupou o elevado cargo de Presidente da República. Este teria sido, com certeza, também alcançado por José Américo, não fosse a ocorrência do Estado Novo, episódio sobre o qual se derramam páginas e mais páginas dos historiadores, comentadores e intérpretes da história pátria. Mesmo sem ter chegado à curul governamental nacional, José Américo projeta-se no cenário político, histórico e literário do Brasil, assinalando sua passagem pela vida com uma ênfase tão marcante quanto a do filho de Umbuzeiro, visto que essa projeção se dá sem apelo a uma posição proeminente de Chefe da Nação, como logrou obter Epitácio. Epitácio nasceu sob a sombra do umbuzeiro e dela saiu para lançar-se ao mundo, de onde voltou para glorificar a si e ao Brasil, notadamente na luta pela redenção do nordeste, através de obras que implantou ou tentou implantar no combate aos efeitos da seca. José Américo nasceu ao solo do massapê, fértil e próprio para as culturas da região, dele saindo para voos que o mantivessem no Brasil, pois refratário se mostrou a ausências da pátria, como demonstrou ao recusar o posto de Embaixador do Brasil no Vaticano. E em aqui ficando, pôde realizar obra idêntica à de Epitácio, através das obras que também edificou contra as secas, nas duas oportunidades em que exerceu o cargo de Ministro da Viação. Na literatura, campo a que se dedicou com esmero, deu à Paraiba, ao Nordeste e ao Brasil uma das principais obras literárias conhecidas no Brasil – A bagaceira - demarcadora de uma nova diretriz à ficção brasileira, especificamente, à ficção nordestina, além de dois outros romances, também de tendências regionalistas – O boqueirão e Coiteiros. Outro trabalho de grande envergadura, no campo da não ficção, mas de abrangência igualmente regional é A Paraíba e seus problemas, em que ele, à Euclides da Cunha, empreende um estudo profundo do homem e da terra paraibana, com incursões na sociologia e na economia, trabalho que até hoje se mantém como a melhor análise de seu objeto. É esse vulto que GENIUS, como veículo cultural da Paraíba, homenageia nesta edição. Na capa, fotografia de João de Deus, Rio, constante dos arquivos da Fundação Casa de José Américo, João Pessoa.
05
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA O ESCRITOR E O ESTADISTA Ernani Sátyro
12
MAGO DO SERTÃO, PROFETA DAS RUAS José Sarney
19
UM PRECURSOR DE VANGUARDAS José Américo de Almeida
21
O CRIADOR DE UM NOVO ESTILO Alceu de Amoroso Lima
26
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA – UMA ABORDAGEM BIOGRÁFICA DO POLÍTICO PARAIBANO Ana Isabel Sousa Leão de Andrade
30
POESIA Dez poemas de José Américo
32
JOSÉ AMÉRICO E A BAGACEIRA Maria do Socorro Silva de Aragão
36
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA PARA CRIANÇAS E JOVENS Neide Medeiros Santos
38
A FÉ CRISTÃ EM JOSÉ AMÉRICO Lourdinha Luna
41
O JOSÉ AMÉRICO QUE EU LEMBRO Ramalho Leite
43
HOMEM TÍPICO DO NORDESTE Octacílio Nóbrega de Queiroz
46
DESTINO E HISTÓRIA SOCIAL EM ANTES QUE ME ESQUEÇA José Octávio de Arruda Mello
49
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA Paulo Bonavides
50
JOSÉ AMÉRICO NO ANO DO GOLPE Walter Galvão
51
EM BUSCA DE POSSÍVEIS EDIÇÕES ESLAVAS DAS OBRAS DE JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA Evandro da Nóbrega
Maio/Junho/2016 - Ano IV Nº 15 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br Impresso nas oficinas gráficas de A União Superintendência de Imprensa e Editora CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
Maio/Junho/2016 |
3
COLABORAM NESTE NÚMERO: 4
ALCEU AMOROSO LIMA (In Memoriam) (Rio de Janeiro, 1893 – Petrópolis, 1983) [O criador de um novo estilo] Escritor, crítico literário, filósofo, Membro da Academia Brasileira de Letras. Uma das mais expressivas figuras da intelectualidade brasileira. É célebre seu grito: “Romancista ao norte”, numa alusão ao romance de José Américo, A Bagaceira. ANA ISABEL SOUSA LEÃO DE ANDRADE [José Américo de Almeida – Uma abordagem biográfica do político paraibano] Arquivóloga, pesquisadora, com vários livros publicados em sua área de atuação, dentre eles O Arquivo José Américo e a Revolução de 1930, Síntese biobibliográfica de Gilberto Freyre, José Américo e Ascendino Leite – Correspondência, Catálogo da correspondência de Joaquim Nabuco – 1865/1994, ERNANI SÁTYRO (In Memoriam)(Patos, 1911 – Brasília, 1986) [José Américo de Almeida – O escritor e o estadista] Romancista, poeta, ensaísta, político. Deputado Estadual, Deputado Federal, Governador da Paraíba, Ministro do STM. Membro da Academia Paraibana de Letras, da Academia Brasiliense de Letras, do IHGP.
Neves, assumiu a Presidência da República, em virtude do falecimento do titular da chapa. Elegeu-se para a Academia Brasileira de Letras, em substituição a José Américo de Almeida. LOURDINHA LUNA [A fé cristã em José Américo] Escritora, memorialista, foi, por vários anos, secretária particular do Ministro José Américo, conhecedora, portanto, de várias particularidades ligadas à vida pública e particular do celebrado autor de A Paraíba e seus problemas. MARIA DO SOCORRO ARAGÃO [José Américo e A bagaceira] Especialista em Linguística, matéria de que é docente na Universidade Federal da Paraíba e na Universidade Federal do Ceará Autora de diversos títulos relacionados com estudos lingüísticos. Pertence à Academia Paraibana de Letras e outras instituições culturais. NEIDE MEDEIROS SANTOS [José Américo para crianças e jovens] Escritora, pesquisadora, autora de várias obras atinentes ao tema literatura infantil.
EVANDRO DA NÓBREGA [Em busca de possíveis edições eslavas das obras de José Américo de Almeida] Jornalista, escritor, historiador, pesquisador. Publisher consagrado, poliglota, membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP).
OCTACÍLIO NÓBREGA DE QUEIROZ (In Memoriam)(Patos, 1913 – Brasília, 1998) [Homem típico do Nordeste] Jornalista, escritor, político. Foi Deputado Estadual e Deputado Federal, representante da Paraíba, em diversas legislaturas. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA (In Memoriam) (Areia, 1887 - João Pessoa, 1980) [Um precursor de vanguardas] [Dez poemas] Forma com Epitácio Pessoa e Augusto dos Anjos a tríade de personalidades maiores do Século XX, na Paraíba. Nome de projeção nacional, na literatura, com o romance precursor A Bagaceira e, na política, como candidato à presidência da República, tolhido pelo golpe do Estado Novo, desfechado por Getúlio Vargas.
PAULO BONAVIDES [José Américo de Almeida] Professor Emérito do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. Doutor Honoris Causa por Universidades de vários países, Autor de diversas obras, dentre as quais se destaca Curso de Direito Constitucional, atualmente na 31ª edição. É autor também de História Constitucional dos Estados Brasileiros, elaborada em parceria com o Professor Flávio Sátiro Fernandes.
JOSÉ OCTÁVIO DE ARRUDA MELO [Destino e História Social em Antes que me esqueça] Professor de Direito do UNIPÊ, integrante do IHGB, do IHGP e da APL. Autor das biografias de Epitácio Pessoa e Samuel Duarte, para a série Perfis Parlamentares, da Câmara dos Deputados, de História da Paraíba – Lutas e Resistência e A revolução estatizada.
RAMALHO LEITE [O José Américo que eu lembro] Membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Ex-Superintendente de AUNIÃO – Superintendência de Imprensa e Editora. Ex-Deputado Estadual.
JOSÉ SARNEY [Mago do sertão, profeta das ruas] Escritor e político, publicou romances e ensaios. Candidato a Vice-Presidente da Nação, pelo colégio eleitoral, na chapa encabeçada por Tancredo
| Maio/junho/2016
WALTER GALVÃO [José Américo no ano do golpe] Jornalista, escritor, poeta. Com grande atuação no jornalismo paraibano, já tendo pertencido a diferentes órgãos de imprensa, notadamente, Correio da Paraíba e, agora, A UNIÃO, onde exerce a Diretoria Administrativa, depois de haver ocupado a Chefia de Redação.
HOMENAGEM JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA O ESCRITOR E O ESTADISTA(*) Ernani Sátyro
O SR. ERNANI SÁTYRO (PDS – PB. Pronuncia o seguinte discurso.) – Sr. Presidente, fácil e difícil este discurso. Poderá ser um paradoxo, mas não o primeiro da vida. Fácil, porque tantas são as saliências da personalidade, que basta apontá-las, para se fazer um elogio fúnebre. Difícil, porque, se mesmo as criaturas humanas aparentemente mais simples guardam seus mistérios insondáveis, que dizer de um homem privilegiadamente inteligente, completo, cheio de rasgos de coragem e insolência e, ao mesmo tempo, doce e manso, podendo ser conduzido pelas rédeas do coração e convencido pela força do argumento? Dir-se-ia, então, que existem dois José Américo de Almeida? Não, existem vários, e minha missão aqui, para colocar-me à altura do momento e da importância desta Casa, é pelo menos tentar uma interpretação de sua curiosa, estranha e original figura. Falarei, pois, do político, do escritor e do homem. É uma divisão um tanto arbitrária, como arbitrárias são todas as distinções dessa natureza. Mas o processo pelo menos servirá para que seja sublinhada, dentro da unidade de uma organização humana, cada uma de suas fases mais expressivas. Eu mesmo já disse sobre ele, quando ainda vivo, que era múltiplo e uno. Vejamo-lo, pois, na multiplicação dessa unidade. JOSÉ AMÉRICO, O POLÍTICO Não foram felizes os seus primeiros passos na atividade política. Inquieto, indomável, divergiu do seu tio, o então Presidente do Estado, Monsenhor Walfredo Leal. Só a muito custo reconciliou-se com ele, também chefe do partido dominante no Estado. Seu primeiro cargo público foi a Promotoria, numa
comarca do alto sertão paraibano. Aí, a sorte iria favorecer o escritor, pois foi precisamente nessa estada na comarca de Souza que lhe adveio o conhecimento visual do problema das secas. Poderia conhecê-lo nas suas repercussões, nas regiões brejeiras, então imunes da calamidade, mas não no próprio teatro da tragédia. Reconciliado com Walfredo, passou a ocupar, ainda muito moço, a Procuradoria Geral do Estado, junto ao Tribunal de Justiça. Essa ascensão viria provocar aquilo a que se poderia chamar uma verdadeira revolução na sua vida. Cioso de seus deveres, das responsabilidades do cargo, como deveria portar-se diante de homens já velhos, todos eles praticamente em fim de carreira, que essa era a condição dos magistrados da época, quando chegavam ao degrau superior da carreira judiciária? Também naquele tempo, um homem de mais de cinquenta anos já era considerado um velho. Passou, então, José Américo a vestir as mesmas roupas pesadas e escuras dos desembargadores, alguns com idade de serem seu pai. Envelheceu-se a si mesmo, só permanecendo o mesmo por dentro, nas suas leituras silenciosas, na sua fome e sede de leitura, ao lado dos tratados jurídicos de Direito, que também devorava. A essa adaptação exterior, no entanto, não correspondeu a postura intelectual. Cedo começou a discordar dos velhos, a trazê-los atormentados com as suas indagações jurídicas, na perquirição minuciosa dos fatos, em uma atividade dinâmica, que quebrava os silêncios da vetusta casa da Justiça. Foi nessa época – para citar apenas um exemplo – que escreveu uma série de artigos, contra um dos mais renomados juristas da época, lá da província, com o título de “Cartas a Lobo” parafraseava, assim, o título de
notas, que se transformaria em livros, do velho praxista português do mesmo nome – Lobão – nas suas famosas “Cartas a Mello”. Ao mesmo tempo, fazia suas incursões na literatura, ora escrevendo poesias para o “Almanaque do Estado da Paraíba”, ora artigos de crítica literária, sempre carregados de impetuosa fúria contra o que considerava sem valor artístico. Mas não soara ainda a sua hora, quer como escritor, quer como homem público. Isto só viria muito depois, e será também mencionado depois. Acompanhemos por mais tempo os passos do político. Nessa época os juizes poderiam ser políticos. Por que não o seriam os representantes do Ministério Público? E José Américo empenhou-se, encarniçadamente, pela imprensa, na campanha eleitoral de 1915, em que Epitácio Pessoa, continuador do venancismo, derrotou as hostes do Walfredismo, continuador do alvarismo. Consta da tradição paraibana que os mais inflamados e brilhantes artigos do walfredismo eram de autoria de José Américo, embora fossem de responsabilidade da redação. Vitorioso Epitácio, passou José Américo longo tempo de inatividade, permanecendo no seu cargo de Procurador Geral do Estado, então vitalício. Em começos da década de 20, a mão habilidosa de Solon de Lucena, então na presidência do Estado foi abrandando a resistência do vigoroso oposicionista, embora não lhe conseguisse propriamente o apoio político. Cercou José Américo pelo lado para esse mais sensível, que era a atividade intelectual. Incumbiu-o de escrever, juntamente com o consagrado jornalista Celso Mariz, um relatório sobre as obras realizadas
Discurso pronunciado na sessão de 25 de março de 1980, da Câmara dos Deputados, em homenagem a José Américo de Almeida
(*)
Maio/Junho/2016 |
5
por Epitácio Pessoa no Nordeste brasileiro, especialmente na Paraíba, para combater os efeitos das secas periódicas. Celso muito cedo abandonou a tarefa, para que também era dotado, por entender que a unidade da obra exigia que ela fosse elaborada por uma só pessoa. E José Américo mergulhou fundo na matéria. Diremos a seu tempo o que representa o livro escrito nessa época – “A Paraíba e seus Problemas”, publicado em 1923, pelas oficinas de A União. Tempos depois Walfredo Leal viria a reconciliar-se com Epitácio Pessoa, e a oposição paraibana se reduzia aos partidários do Desembargador Heráclito Cavalcanti, com uma fugaz efervescência na campanha política da Reação Republicana, de Nilo e Seabra, em 1922. Em “A Paraíba e seus Problemas”, José Américo prestou a Epitácio a justiça de um depoimento entusiástico, pelo que tentara realizar pelo Nordeste, sem que isso implicasse numa reentrada na atividade política. Tudo com altivez e dignidade. E assim correram os dias. Só em 1928, indo João Pessoa para a presidência do Estado, convocou o nosso eminente homenageado para Secretário Geral de Estado. Era a única Secretaria existente, pois os demais postos auxiliares do Governo eram diretorias. O convite a José Américo, embora causasse certa estranheza nos meios políticos do Estado, explicava-se, sem demérito para os seus demais atributos pessoais, pela imensa repercussão que tivera, naquele mesmo ano de 1928, a publicação do romance “A Bagaceira”” logo proclamada pela crítica literária nacional, à frente Tristão de Athayde, como uma obra-prima, das mais importantes da ficção brasileira. A João Pessoa, vindo do Rio de Janeiro, onde fora mais retumbante o êxito do livro, não podia ser indiferente o episódio, tanto mais quando conhecia José Américo e admirava de longa data seus méritos intelectuais e morais. João Pessoa fora indicado para a Presidência do Estado por Epitácio Pessoa seu tio e então árbitro supremo dos destinos políticos da Paraíba. Viera, segundo a inspiração de Epitácio, para evitar cisões no chamado Partido Republicano, em face de outras candidaturas, especialmente uma, que contava com a simpatia do então presidente, João Suassuna. Era a do Dr. Júlio Nascimento Lira. Assumindo a Presidência, João Pessoa começou uma obra administrativa vigorosa, procurando sanear as finanças do Estado, comprometidas principalmente pela sangria feita pelo comércio do Recife, onde se encontravam as grandes casas comerciais que abasteciam a Paraíba, da Capital ao sertão, praticamente sem pagar impostos. O novo
6
| Maio/junho/2016
presidente começou a fazer aquilo a que os pernambucanos chamaram “guerra tributária”. Os Pessoa de Queiroz, sobrinhos de Epitácio e primos de João Pessoa, foram os que mais se salientaram na resistência contra a ação do novo governo paraibano. E aí estaria “nessa guerra tributária” uma das causas da agitação que, em 1930, viria conflagrar a Paraíba e culminaria com a revolta de Princesa, hoje Princesa Isabel, conhecidas que eram as profundas ligações de José Pereira, o caudilho da Princesa, com os irmãos Pessoa de Queiroz. Este é um capítulo da história da Paraíba bastante conhecido, mas que deve ser tocado pelo menos de passagem. Ao lado dessa ação saneadora das finanças e defensora dos interesses tributários do Estado, João Pessoa iniciou também uma obra a que chamou a “moralização de nossos costumes políticos”, desprestigiando chefes tradicionais, responsáveis pelas grandes vitórias de seu tio Epitácio e sustentáculos do Partido Republicano da Paraíba do Norte – que este era o seu nome. Vivendo maior parte de sua vida fora da Paraíba, principalmente no Rio de Janeiro, onde ocupava o cargo de Ministro do então Supremo Tribunal Militar, o novo Presidente não tinha conhecimento do que era a vida pública e administrativa do Estado, como de resto de outras unidades federativas. Não se pode negar que suas inspirações eram elevadas, mas a terapêutica para os males era tentada através de dosagens excessivas e até de remédios impróprios. Quase acabou o partido de Epitácio. Mal sabia que, exceção feita a alguns pleitos memoráveis, como o de 1915 e o de 1922, as eleições de modo geral eram feitas a “bico de pena”, quer dizer, com as atas lavradas como se as eleições se realizassem. Não era propriamente uma fraude, uma vez que a própria oposição concordava, dava o seu reduzido número de deputados à Assembleia Legislativa e, quando o Governo aquiescia, o chamado “quinto” da representação federal. A própria eleição de João Pessoa fora feita a “bico de pena”, na quase totalidade dos municípios. De qualquer modo, a ação do Presidente, que já prestara, no Rio de Janeiro, valiosos serviços ao seu Estado, ajudando, com seu prestígio junto a Epitácio e aos órgãos federais, diversos pleitos paraibanos, foi corajosa e fecunda. À parte os excessos, as injustiças inevitáveis, o certo é que a Paraíba sentiu, e a opinião pública passou a ver que havia, naquele Estado, um sopro renovador. Pois José Américo foi o Secretário desse homem, seu maior assessor jurídico e administrativo. Em alguns momentos, pelo que conheço, foi também um freio moderador de
muitos dos ímpetos de João Pessoa. Sim, porque José Américo, também impetuoso, quase violento, quando se sentia ferido na sua sensibilidade, era homem de boa cabeça política, de visão e descortino. Isto, porém, no aceso dos desgostos e traumatismos sofridos pelos velhos epitacistas, não era reconhecido pelas vítimas dos atos do Presidente. E muitos deles queixavam-se de que tudo era obra de José Américo, de suas prevenções contra os antigos adversários. Até onde conheço os fatos, a queixa não era procedente, pois eu mesmo, ainda adolescente, fui testemunha do empenho com que ele defendeu meu pai, um dos chamados “generais do epitacismo” em dois episódios importantes para a vida do Município de Patos. Depois, Miguel SÁTYRO e José Américo viriam a separar-se, mas, por injunções de outra natureza. O ano de 1930 foi um verdadeiro incêndio na Paraíba. Campanha eleitoral agitada, a campanha da Aliança Liberal, cujo candidato à presidência da República era Getúlio Vargas, completando João Pessoa a chapa, como candidato a vice-presidente; rebelião de Princesa, deflagrada no dia da eleição, na cidade de Teixeira; assassínio do Presidente e, por fim, a Revolução. Tudo isso trouxe, durante quase um ano, o nosso Estado debaixo de chamas. Primeiro a chama política, depois, a chama das armas e, finalmente os incêndios das residências, fazendas e estabelecimentos comerciais. O espaço é pouco para relatar tudo, que já está na História. Esta foi a grande hora de José Américo. Primeiro, como grande orador da praça pública, como candidato a deputado federal, eleito e depurado por ordem de Washington Luiz, como Secretário de Segurança, que seguiu para o alto sertão, para comandar a resistência aos rebeldes de José Pereira, e, depois, morto João Pessoa, como o grande conspirador civil, secretário que continuou, no governo do Vice-Presidente Álvaro de Carvalho. Como se sabe, Juarez Távora comandou a revolução na Paraíba, conspirando, escondido, ora numa, ora em outra casa. Ali estavam também Jurandir Mamede, Juraci Magalhães, Agildo Barata e outros, na faixa militar, José Américo, com outros aliados, comandava a faixa civil. Vitoriosa a Revolução, a 4 de outubro, no Nordeste, José Américo foi levado, primeiro, ao governo do Estado e, logo depois, ao Governo Revolucionário da região. Isso duraria pouco, porque, logo a 24 de outubro, triunfaria o movimento no País, com a queda de Washington Luiz, a constituição de uma Junta Provisória e, logo depois, a entrega do Governo a Getúlio. Assumindo o Governo, Vargas passou a
constituir seu Ministério. José Américo foi convidado para a pasta da Viação. A princípio se pensou que a indicação partira de Juarez Távora. Foi depois esclarecido que o próprio Getúlio tivera a inspiração. José Américo, já conhecido e consagrado nacionalmente como escritor, passava a ser conhecido admirado como político. Logo depois se viria o pulso do administrador. No Ministério da Viação e Obras Públicas ficaria a marca de sua capacidade administrativa. Para citar somente alguns de seus empreendimentos, lembraremos, no plano material, a eletrificação da Central do Brasil, a unificação dos Correios e Telégrafos, a melhoria e aparelhamento de vários portos, a construção de ferrovias e rodovias e, no plano moral, o combate feroz à improbidade administrativa. Onde, no entanto, mais se elevou sua obra foi no plano e execução das chamadas “Obras do Nordeste”. Não foi apenas a assistência às regiões atingidas pela calamidade, em 1932, através dos serviços de emergência, mas na construção de obras duradouras, em toda a região, como açudes, estradas, pontes, portos, irrigação – esta em menor escala. Mas dizer isto ainda não é dizer tudo. Para prestar essa assistência era necessário dinheiro, muito dinheiro, e o Ministério da Fazenda, como de hábito, procurava retrair-se. “Não havia verba, o orçamento estava esgotado”, e outras coisas semelhantes. José Américo soltava, então, seus brados desesperados, gritava, rugia, comovia a opinião pública, comovia Getúlio – comovia ou atemorizava – e o dinheiro aparecia. Era como se repetisse as palavras famosas de “A Bagaceira”: “Há uma desgraça maior do que morrer de fome no deserto – é não ter o que comer na terra de Canahan.” Nem tudo foi honesto e regular nessas obras de assistência. Sempre houve e haverá os aproveitadores da desgraça alheia, os fraudulentos, os desonestos, os ladrões. Mas o Ministro sempre que sabia reclamava, bradava, demitia, mandava processar. Por mais de uma vez veio ao teatro da tragédia. De uma das vezes ia morrendo, na Bahia, em desastre de avião, de que escapou milagrosamente. Nesse acidente morreria o dinâmico interventor federal na Paraíba, Antenor Navarro. O nome de José Américo cresceu tanto, quer pela sua ação administrativa, no País, de modo geral, e no Nordeste, em particular, que, ao se tornar inevitável, por força da Constituição de 1934, a eleição de um novo Presidente da República, sua candidatura se
tornou como que natural. Foi indicado, pois, pelas forças majoritárias, sob a orientação de Getúlio Vargas. Levou a sério a indicação e passou a fazer uma campanha entusiástica, com seu verbo flamejante. Momentos houve em que mais parecia um candidato de oposição que um candidato do Governo. Enquanto isso, Getúlio maquinava na sombra. Não queria deixar o poder, que este era a sua única paixão na vida. Aproveitouse das circunstâncias, que sempre foram suas grandes aliadas, especialmente da expansão nazi-fascista no mundo, do perigo comunista e, depois de bem articulada trama, para a qual se serviu do chamado “Plano Cohen”, deu o golpe de 1937, com o qual fechou o Congresso, acabou com as eleições, decretou a Constituição depois batizada de “polaca” e, finalmente, permaneceu no Governo, com todos os poderes ditatoriais, tão do seu agrado. Uma vez José Américo me disse que, quando proferia aqueles discursos inflamados, praticamente de oposição e desafio, era porque já conhecia toda a conspiração palaciana. Um dia chegou a bradar que – “votaremos até debaixo de bala”. Chegou a convidar Armando de Sales Oliveira, seu eminente competidor, para uma candidatura única, de Armando, ou qualquer outro em condições de vitória, para evitar o golpe que restauraria, como restaurou, a ditadura de Vargas. Tudo foi em vão. Os militares, habilmente conduzidos por Góes Monteiro e convencidos de que um perigo iminente de comunização ameaçava o Brasil, concordaram com o golpe. Os governadores, por sua vez, informados da atuação, pelo emissário governamental, Negrão de Lima, também aderiram ao movimento. Alguns deles, embora apoiando formalmente a candidatura José Américo, não a queriam, por contrariar seus interesses políticos locais. Juracy Magalhães e Carlos de Lima Cavalcante divergiram do golpe e foram afastados do governo. Veio, pois, o irremediável. Getúlio era novamente ditador. Isso duraria até 1945. José Américo, como era natural, ficou no seu canto, desempenhando a sua missão, no Tribunal de Contas, para o qual fora nomeado antes, não como um favor de Vargas, mas, como o mínimo que se lhe poderia oferecer, depois do extraordinário trabalho que desempenhara no Ministério da Viação. Tinha renunciado o Senado Federal, onde não se sentia bem, talvez por ser mais um homem da execução que da atividade legiferante e parlamentar. Este é um aspecto que não pode deixar de ser ressaltado, em qualquer interpretação da personalidade de José Américo. Ele não tinha a vocação parlamentar. Era orador bri-
lhante, imaginoso, seguro, quer em discursos puramente orais, ou em discursos escritos. Mas, ao primeiro aparte que lhe contrariasse a opinião, agitava-se, irritava-se, às vezes se encolerizava. São exemplo disso as suas discussões com Góes Monteiro e outros. Não tinha a paciência, o jeito, a vocação do debate. Era essa, certamente, uma das falhas de sua organização política e intelectual. De 1937 a 1945, pois, ditadura, ditadura, ditadura. Já em 1933, para que Vargas convocasse a Assembleia Constituinte, de que resultou a Constituição de 34, foi necessário que São Paulo se cobrisse de sangue, em 1932. Agora, em 1945, outro fator poderoso contribuía para abreviar os dias da nova ditadura. É que terminara a Segunda Grande Guerra, e a Força Expedicionária Brasileira, que lutara contra o nazifascismo, vinha com disposição de não mais permitir que aqui permanecesse um regime que, afinal, naquele se inspirava e nele tomara alento para a sua empreitada. O General Dutra, que visitara a FEB, ainda na Europa, prestou esta informação a Getúlio. Mas este, como sempre, faziase de desentendido. Houvera, durante o regime do Estado Novo, algumas tentativas de resistência, das quais a mais importante foi o chamado Manifesto Mineiro. Também no Recife, por ocasião de formaturas de bacharéis, houve discursos de forte conotação democrática. Mas tudo era afinal abafado pelos extintores do Estado Novo, cuja principal finalidade era manter Vargas no poder e alimentar o culto de sua personalidade. Digo tudo isto com isenção, porque também paguei o meu tributo de apoio àquele regime, quer por princípio, dada a minha conhecida e inarredável posição anticomunista, quer por motivos políticos de natureza local. Havia, pois, uma fermentação, um fim de festa, que prenunciava o advento da restauração democrática. Mas, onde estava a voz, ao mesmo tempo autorizada e corajosa, que deflagraria a investida? Conheço alguns detalhes do episódio, porque me foram contados, tanto por José Américo como por Carlos Lacerda, o repórter incumbido da grande façanha. Lacerda, então a serviço do Correio da Manhã, conseguiu algumas entrevistas, com personalidades importantes do mundo político. Entregou-as ao jornal. A de José Américo foi logo considerada a melhor, quer pelo brilho da palavra, quer pela coragem das afirmações e propriedade dos termos em que colocou o problema da restauração democrática. A entrevista – não há outra palavra para defini-la, porque com esta é que passou à História – foi uma bomMaio/Junho/2016 |
7
ba. Abalou os alicerces da ditadura. Vargas apressou-se em anunciar eleições, mandar preparar a legislação e tomar as outras providências indicadas para o momento. O resto é o que se sabe. Getúlio, depois de ter lançado a candidatura do General Eurico Dutra à Presidência, depois de anistiar todos os criminosos políticos, inclusive integralistas e comunistas (a estes é que queria beneficiar de preferência) ainda tentou manobrar, insinuando uma Constituinte com Vargas. Era tarde, porém. As forças oposicionistas, por sua vez, já tinham lançado outra candidatura militar, precisamente um homem cheio de serviços à Pátria, herói da Revolta de 1922, criador do Correio Aéreo Nacional, portador de todos os títulos cívicos e morais para a investidura. Já se vê que falo do Brigadeiro Eduardo Gomes. Falhou a manobra de Getúlio. Ao sinal mais evidente de que queria mudar as regras do jogo, evitando as eleições e conservando-se no poder, depuseram-no. Homem engenhoso, de grande imaginação política e calma execução de seus planos, o feiticeiro falhou. Não lhe ocorrera que, dessa vez, não estavam no palco civis, eminentes, dignos, porém desarmados. Estavam em cena dois outros cidadãos, igualmente eminentes e dignos, mas com a vantagem de estarem armados. Eram antagonistas na disputa do voto, porém aliados na ideia da restauração democrática. Ninguém escreve, portanto, a história da reconstitucionalização do Brasil, em 1946, sem mencionar a entrevista de José Américo, que foi a sua alvorada, em 1945. E não ficou somente na entrevista. Empenhou-se na Campanha do Brigadeiro, com toda a sua energia, o seu civismo e a força do seu verbo. Tive a ventura de conviver e privar com ele, nessa campanha inesquecível, ao lado de meu chefe de então, Argemiro de Figueiredo, e companheiros como Oswaldo Trigueiro, João Agripino, Fernando Nóbrega e outros. Dutra foi eleito. Conseguimos vencer na Paraíba, comandados por José Américo e Argemiro. Em 1946, elegemos Oswaldo Trigueiro governador do Estado. Estas coisas são ditas por se tratar da terra de José Américo, do principal palco de sua atuação. Sem isso, não teriam importância. Em 1946, elegemos José Américo para o Senado. O PSD não teve condições de competir. Em 1950 deu-se a grande cisão na UDN paraibana, vitoriosa em duas eleições. Argemiro julgava-se o candidato natural ao governo do Estado, que já exercera com zelo e alta capacidade. José Américo aceitava outras soluções, mas recusava o nome de Argemiro. Era difícil bater a este, dentro do partido. Outro caminho não restava a José Américo, senão aceitar o apoio do PSD ao seu nome,
8
| Maio/junho/2016
como candidato para enfrentar Argemiro. Aceitou. Sempre dissera, em anos anteriores, que sua maior aspiração política era governar o seu Estado. Mas crescera tanto, em termos nacionais, que suas aspirações, como era natural, passaram a ser outras. O político, no entanto, não é dono de sua hora. O momento, muitas vezes, as circunstâncias, a conveniência, o dever é que são donos de sua decisão. Foi o que lhe aconteceu. Nós, os argemiristas, sustentamos a candidatura de nosso chefe. A campanha foi das mais árduas e apaixonadas que já houve na Paraíba. Fomos batidos esmagadoramente. José Américo, com o apoio do PSD, PL e outras forças partidárias, estava eleito governador do Estado. Lutamos ao lado do PR, PTB e outros, mas nada nos salvou. Eis, pois, o grande paraibano à frente do governo de seu Estado, que fora noutros tempos sua maior ambição, mas que agora lhe parecia mais uma obrigação que uma satisfação. Mesmo assim, passou a dar cumprimento aos seus deveres políticos e administrativos. Foi governar com os seus amigos e companheiros de lutas. Nós estávamos debaixo, naquela posição a que se chama comumente de ostracismo. Não demorou muito, porém, no governo do Estado. Chamado mais uma vez por Getúlio, que não era homem de alimentar inimizades, quando lhe convinha esquecê-las, José Américo voltou a ocupar o Ministério da Viação. Desta vez, como da outra, cuidou dos problemas gerais a seu cargo, mas a sua tônica foi o Nordeste, atingido por nova calamidade. Lá voltaram os trabalhos de emergência, ao lado do prosseguimento de obras duradouras – as eternas estradas, açudes, pontes e outras. Por toda a parte se encontram os sinais dessa obra indestrutível. Morto Getúlio, José Américo volta à Paraíba para terminar seu mandato de governador. É evidente que a uma ação administrativa dessa natureza, quebrada e depois restaurada, teria de faltar unidade apesar do zelo e lealdade com que o seu substituto eventual procurou conduzir a coisa pública. Mesmo assim José Américo ainda realizou uma administração proveitosa, como tudo quanto fez na vida. Não entrarei nos detalhes dessa atuação administrativa. Direi apenas que foi boa, sem poder ser excepcional. O que houve, no entanto, de notável, daí por diante, até o fim de seu governo, foi a sua preocupação com a pacificação política do Estado. Tendo sido um dos chefes da UDN, em 1945, e sendo eleito com o apoio do PSD, para ele nada mais agradável e justo do que entregar o Governo a um homem que representasse um traço de união entre
as duas principais forças políticas do Estado e, consequentemente, aos demais aliados de cada um desses partidos. Depois de muitas conversas, de que participaram os principais líderes dos dois lados, chegou-se ao entendimento de uma chapa comum, com Flávio Ribeiro, da UDN, para governador, e Pedro Gondim, do PSD, para vice-governador. Estava pacificada a Paraíba, e José Américo deixava o Governo debaixo de uma consagração pública que foi talvez uma das maiores alegrias e compensações de sua vida de lutador. Eleito e empossado Flávio Ribeiro, retraiu-se o grande paraibano, esquivando-se de qualquer interferência no governo do sucessor e até mesmo de fazer qualquer pedido, pessoal ou político. O que aconteceu depois, na política da Paraíba, não cabe ser mencionado, por não se relacionar com a vida e atuação de José Américo de Almeida. Só mais tarde, solicitado insistentemente por João Agripino, por mim e outros próceres udenistas, José Américo, nosso antigo companheiro de lutas em 1945, de quem nos havíamos afastado em 1950, mas com quem nos reconciliáramos, consentiu em ser candidato da UDN ao Senado. Afastara-se Flávio Ribeiro, gravemente enfermo, e assumira o governo o vice-governador Pedro Gondim, que passara a implantar uma política firmemente pessedista. O sonho de pacificação de José Américo, embora concretizado na eleição de Flávio Ribeiro para o governo do Estado, pouco duraria. No ano de 1958 rebentou outra terrível seca no Nordeste. Tivemos, pois, uma campanha árdua, em condições desfavoráveis. Gondim no governo do Estado, de bandeira despregada em favor do candidato de seu partido, o prestígio pessoal e político desse candidato, Senador Rui Carneiro, que pleiteava a renovação do mandato, e o emprego da máquina da Emergência em favor do candidato oficial – tanto do Presidente da República quanto do Governador do Estado – tudo isso constituía uma onda contra a qual não pudemos resistir. José Américo sofreu a sua primeira e última derrota. Recebeu-a estoicamente, sem recriminações, mas certamente surpreso, porque não imaginava que mesmo aquela máquina poderosa, montada em favor do candidato adversário, fosse capaz de derrotá-lo no seu Estado. Estava encerrada, por assim dizer, a sua atividade política. Recolheu-se à casa de Tambaú, uma das praias mais belas do mundo, que teve oportunidade de decantar em páginas literárias de expressivo vigor e força poética.
Vinha de vez em quando ao Rio de Janeiro, em visita à família. Chegou a ser convidado pelo Presidente Jânio Quadros para uma missão diplomática. Jânio o trouxe da Paraíba no seu próprio avião. Veio, viu, escutou e recusou a prebenda. É que forte continuava a sua sensibilidade política, a sua antena sensibilíssima. Afastado, pois, da militância política, nunca se desinteressou da sorte e dos problemas da Paraíba. Passou a ser uma espécie de oráculo, a quem quase todo o mundo ouvia. Teve influência na escolha de todos os governadores indiretos da Paraíba. Influência discreta, manejando silenciosamente seus instrumentos, mas teve. Dizia que não, mas teve, senão para sugerir ou indicar nomes, pelo menos para afastá-los ou recomendá-los, quando consultado. E era consultado sempre. Dava informações que dizia impessoais, sem indulgência nem prevenção, mas dava. E sempre com a preocupação da melhor escolha, do que lhe parecia mais conveniente aos interesses da Paraíba. Em alguns casos recomendava, consultado, mais de um nome. Dizia quais as opções cabíveis. Ingrato seria entrar em pormenores ou citar nomes. Fique apenas a referência ao fato da consulta, que sempre lhe foi feita. Solitário de Tambaú! Assim o cognominaram no fim de vida. É uma força de expressão. Solitário, só se fosse porque não era mais viva a companheira de tantos anos, mãe de seus filhos e freio de seus impulsos mais agressivos. Solitário, não. Nunca vi uma casa mais concorrida, durante os quatro anos em que exerci o governo da Paraíba. De toda a parte do Estado e do País vinha gente para ouvi-lo, entrevistá-lo ou simplesmente conhecê-lo. Nada de solidão. Só se for a solidão do intelectual e do artista nas suas horas de leitura, de criação, de meditação. Nas suas horas sagradas, que não devem ser roubadas, nem sequer perturbadas. Ora, solidão! Fique, no entanto a expressão – Solitário de Tambaú que pegou bem, e ninguém mais retira. Solitário de Tambaú! E com esta expressão encerramos o capítulo – José Américo, o político. JOSÉ AMÉRICO – O ESCRITOR Eis-nos, talvez, diante da maior de suas dimensões. Uma vez me disse: “Tudo quanto sou, devo à literatura”. Não é que não tivesse sido um grande político. Certamente o foi pela força da palavra e do exemplo, pela capacidade administrativa, pela honradez e pelo combate à impro-
bidade. O que queria dizer é que, com a sua sensibilidade literária, com a sua capacidade de aprender nos livros não apenas o que é dos livros mas também o que é da vida, a literatura foi o grande canal por onde penetrou em todos os outros segredos. Foi um homem que, para a política, para a vida, para tudo, valeu-se, não por prévia determinação, mas, por uma exigência do seu próprio temperamento, de tudo quanto viu e sentiu na literatura. Era um homem telúrico, autêntico, uma força da natureza, mas impregnado até a raiz dos olhos de literatura. Que estranha e curiosa simbiose! Apesar disso, na literatura também começou com passos incertos. Suas tentativas poéticas, no Almanaque do Estado da Paraíba, dirigido por João Tavares de Lyra ou Tito Silva, não são das mais convincentes. Chegava a envergonhar-se, quando se lhe ousava falar nisso. Mas era uma bobagem. Qual o escritor que não veio a repudiar certas produções, principalmente da mocidade? No seu caso, a poesia, principalmente o soneto, não era a forma de expressão condizente com a sua natureza, não era o seu instrumento. Na prosa é que estava a sua força, na escrita ou na oralidade. Na prosa, sim, é que se exprimia com todo o vigor de sua natureza. Ali estava também a poesia, que se não encontrava nos seus versos. Escrevia artigos, como vimos, nas campanhas políticas. Escrevia artigos literários em A União, órgão oficial do Governo da Paraíba, e na revista Era Nova, que, no Governo Solon de Lucena, em começos da década de 20, sob a proteção de Solon de Lucena, se constituiu um magazine de alta categoria, com páginas dedicadas à política, ao mundo social e à literatura. Era Nova chegou a tirar, durante algum tempo, uma separata, sob o título “Novela”, na qual alguns escritores paraibanos exprimiram os seus pendores de ficcionistas. Muitas dessas novelas perderam-se na poeira dos tempos, mas algumas, duas pelo menos, deixaram a marca de sua passagem. Uma delas foi “Branca Dias”, de Carlos Dias Fernandes, considerado então o príncipe dos intelectuais paraibanos, de presença tempestuosa e absorvente, poeta, conferencista e prosador, cuja obra não corresponde à fama que alcançou em sua vida. Já enfrentei o problema Carlos Dias Fernandes, em meu discurso de posse na Academia Paraibana de Letras. Sobre ele há um capítulo famoso de Gilberto Amado, num dos livros de suas memórias. Também há páginas interessantes de José Lins do Rego, Celso Mariz, Gilberto Freire e outros. A outra novela foi “Reflexões de uma Cabra”, espécie de história apológica, no seu começo, mas que logo se transformaria em romance autobiográfico, ou em memórias, embora sem a rigorosa característica de ro-
man à clef. Foi publicada em 1922. Existe aí, em “Reflexões de Uma Cabra”, uma tentativa de auto-análise que não se repetiria em “A Bagaceira”. Durante muito tempo, talvez em virtude do êxito retumbante desta última, José Américo como que se envergonhava de “Reflexões”, no que não tinha razão, porque o livro, se não tem a força do outro, reeditado e lido muitos anos depois, podia ser assinado por qualquer escritor importante do Brasil. Ali se encontra, de certo modo, a semente de “A Bagaceira”, não no sentido de arquitetura e visão social da vida, mas como exercício da arte romanesca, da prática da ficção. Dessa fase, porém, a fase pró-Bagaceira, é um livro da maior importância para a sociologia e antropologia brasileira, livro que, como já tive oportunidade de afirmar, inclusive neste plenário, só é pequeno no nome – “A Paraíba e seus Problemas”. Pequeno no nome, porque pequena é a Paraíba, e um livro que trate apenas de problemas paraibanos, perde, ao primeiro exame o interesse do leitor, pela sua própria limitação. Pois saibam todos que “Paraíba e seus Problemas” não é apenas isto. Não é apenas o relatório do que são, ou eram na época, as solicitações mais urgentes daquele Estado. Não é simplesmente um mapa de nossas necessidades materiais. É mais, e muito mais. Começa pelo plano da obra, que se divide em três partes. A primeira, denominada, poeticamente, “Terra Ignota”, cuida do solo, do clima, dos rios, dos montes, de tudo quanto se refere propriamente à situação físico-geográfica do Estado. É um capítulo que, com as modificações de natureza local, em cada caso, pode aplicar-se a todo o Nordeste brasileiro. Depois vem o homem, o elemento humano que habitou e habita a terra paraibana, a começar pelos índios, as “nações” nativas que foram encontradas pelos portugueses, pelos franceses e holandeses que ali aportaram. Os tabajaras e os potiguaras, no litoral, os cariris, na região que hoje tem o mesmo nome, à entrada do sertão, os coremas, no Piancó, os pegas, os ariús, e assim por diante. É um capítulo de geografia humana ainda hoje válido, podendo considerar-se, apesar da limitação do título, uma obra clássica da sociogeografia brasileira. A terceira parte abrange propriamente os problemas, tudo de quanto necessita a Paraíba (ou seja, o Nordeste) para que se tenham melhores condições de vida ou até mesmo de sobrevivência. Agora mesmo acaba de sair, na Paraíba, uma terceira edição do livro. A primeira, de 1923, é de “A União”, o já mencionado órgão oficial do Governo da Paraíba. A segunda, de 1932, é de uma editora do Rio de Janeiro. “A Paraíba e seus Problemas” é, no entendimento de grandes autoridades, um Maio/Junho/2016 |
9
livro clássico da sociologia e da antropologia brasileira. Sem os aspectos novos trazidos por Gilberto Freire, sem as conotações científicas de Euclides da Cunha, não se envergonha de ser colocado ao lado dos dois. Tem uma bibliografia apreciável, embora não arrumada em um índice apropriado. Já tive oportunidade de dizer que José Américo seguiu as pegadas de Sarmiento, no “Facundo, e de Euclides da Cunha, em “Os Sertões”, aquele fazendo o levantamento da terra, do homem e de um episódio, na Argentina, e este seguindo o mesmo processo em relação ao Nordeste, no Brasil. A diferença está em que José Américo, depois da descrição da terra e do homem, enfrenta os problemas, e não a história de um episódio. Mas é um livro, o seu, da mesma categoria. Só em 1928, no entanto, tomaria de assalto a Literatura Brasileira. Publicou, ainda na Paraíba e nas oficinas de “A União”, um romance sem maiores pretensões, talvez uma simples história das secas, mais uma obra de ficção regional, ao lado de outras existentes no País. Trazia no título, em letra minúscula, a palavra “bagaceira”. Não tinha, talvez, a nítida consciência de sua força, da mensagem que iria incorporar-se definitivamente à Literatura Brasileira. José Lins do Rego, amigo fraternal de José Américo, me disse certa vez que nenhum artista tinha a completa consciência do que estava fazendo. E acrescentava: “Se tivesse, não faria”. É uma indagação que ainda hoje parece não ter resposta. É curioso relembrar o que, a propósito de “A Bagaceira”, no seu aparecimento, escreveu Tristão de Athayde, então em plena atividade de crítico literário, na sua coluna de “O Jornal”, do Rio de Janeiro: “Temos um grande romancista novo. Não sei se velho ou novo na idade. Sei apenas que é autor de um livro sensacional. Tomei desse volume com desconfiança. Livro feio, mal impresso, em papel ordinaríssimo, repelindo o contado com as mãos e com os olhos. A dedicatória, escrita numa letra trêmula, de velho ou de doente, numa letra de homem abalado, de nervos exaustos. E entretanto...” Segue-se, então, tudo quanto um crítico, sensível e criterioso, pode dizer de um livro. Acrescenta: “Até muito antes a literatura brasileira estava vazia desse livro e de agora em diante não pode viver sem ele.” Não era necessário dizer mais. “A Bagaceira” estava consagrada. De toda a parte do Brasil choviam os artigos, os pedidos de
10
| Maio/junho/2016
remessa do livro. Agripino Griecco, também no exercício da crítica literária de jornal, fizera um artigo diferente, não inteiramente desfavorável ao romance, mas cheio daquelas verrumadas do seu costume e da sua feição. “A Bagaceira” não seria, segundo ele, um romance social, nos termos pretendido pelo seu autor. José Américo não era rigorosamente um romancista, nem um estilista, mas, apenas, um paisagista, um colorista, que quase sempre retocava para estragar, e outras coisas semelhantes. Não negava, no entanto, merecimento ao seu livro, embora não lhe desse as dimensões que outros lhe estavam dando (Referia-se certamente a Tristão). Era eu estudante do Liceu Paraibano, com meus 17 anos de idade, e acompanhei, cheio de entusiasmo, tudo quanto se publicava em “A União”, que transcrevia os artigos que saíam no Brasil inteiro. A Editora Castilho logo se apressou em contratar uma nova edição do romance pois a outra, a primeira, era muito limitada. “A Bagaceira” invadia o Brasil inteiro, e assim prosseguia, em edições sucessivas. Para a terceira edição, a mesma editora solicitou um glossário, tal a quantidade de termos regionais, empregada pelo romancista. José Américo concordara com a solicitação, e saiu o glossário, que desapareceu em edições posteriores. Fora esse vocabulário que levara Griecco a indagar venenosamente, em que língua era escrito o livro. Tristão já dissera que o livro era escrito em brasileiro, ora culto, ora bárbaro, mas sempre em brasileiro, e era o romance que Euclides da Cunha teria escrito, se fosse romancista. Prefiro dizer que é escrito em português, que esta é a nossa língua. O que existe é a diferença de linguagem, quando escrevem o romancista e quando falam as personagens. Tudo sem transição brusca, artificial, como observou o próprio Tristão. Apesar do muito que já se escreveu sobre “A Bagaceira”, ousaria acrescentar algumas observações, sobre pontos que sempre me prenderam a atenção. Um deles seria a falta de substância psíquica das personagens. Ninguém saberia o que elas pensam, o que são, no seu íntimo. O romancista, no seu discurso de posse, na Academia Brasileira de Letras, procurou explicar-se, dizendo que as suas criaturas são seres primitivos, pessoas de formação rudimentar, sem maiores complicações psicológicas, e portanto impróprias para uma análise de seu mundo interior. A mim não satisfaz a explicação. Todo ser humano tem suas profundezas e seus abismos. A verdade é que José Américo, como romancista, não era um introspectivo. A introversão não era o seu forte, embora disso haja sinais, como já salientamos em as “Reflexões de uma Cabra”. Não é que suas criaturas não tenham vida e alma. Têm. Não são
criaturas vazias, passíveis, por exemplo, daquela crítica que Machado de Assis fez a Eça de Queiroz, a propósito de Luiza, personagem de “O Primo Basílio”. Para mestre Machado, Luiza não teria existência moral. As criaturas, de “A Bagaceira” têm vida e alma, têm existência moral, tomada, é claro, esta expressão no seu sentido psicológico. Mas elas existem pelas suas palavras, pelos seus gestos, pelos seus preconceitos, em suma, para repetir e deixar bem explícito, pela sua existência mesma. Não se analisam, é certo, não se indagam, não têm consciência de seus próprios mistérios interiores. José Américo não era um intimista, um perquiridor desses conflitos íntimos. Sua feição não era a de um Machado de Assis, de um Proust ou mesmo de um Sthendal. Ele estava mais na linha dos Balzac, ou mesmo dos Zola, dos Aluízio Azevedo, embora repudiasse o naturalismo, como “uma bisbilhotice de trapeiros”. Suas personagens são apresentadas pelo seu exterior, seus atos e palavras, e não pelos pensamentos, sondados na sua profundeza. Isso não quer dizer que sejam artificiais ou irreais. Salvo Lúcio Marçau, o Bacharel, única criatura culta do romance, as outras – Soledade, Valentim, Dagoberto – haverão de ser conhecidos pelo seu comportamento, e não através da verruma psicológica do romancista. Outro aspecto notável do romance é a natureza, que o já tão citado Tristão de Athayde disse ser personagem na “A Bagaceira”. E é personagem mesmo. Seja na paisagem da região brejeira, esta preponderantemente, seja nos longes da fisiografia sertaneja, em tudo e a propósito de tudo surge o paisagista, o colorista, o escritor descritivo, sem prejuízo da intensidade do drama, da violência da tragédia. Para escrever bem um romance da seca, o romancista tinha de percorrer os dois mundos, tais quais os conheceu na vida real, um deles, demoradamente, o brejo onde nasceu e se criou, e o outro, o sertão, como o viu com toda a sua curiosidade e sensibilidade de homem de vinte e poucos anos, carregado de leituras, míope dos olhos mas não de inteligência e sensibilidade. Antes portador de muitos talentos, inclusive o do observador e escritor. E já basta sobre “A Bagaceira”, em si mesma. Vale insistir apenas na sua própria surpresa, diante da repercussão do livro que escrevera e publicara quase escondido, na sua província, com aquela letrinha que parecia de menino de escola primária, mas que acentuava todo o ímpeto de um criador ou recriador da natureza, de pessoas, de ambientes, de intenso romance amoroso, o que vale dizer, de beleza literária. Como curiosidade, assinalaremos que o romance, escrito naquela letrinha, foi datilografado por sua esposa, D. Alice Melo Azevedo, e por seu filho Reinaldo, hoje Ministro
e Presidente do Superior Tribunal Militar e presente a esta solenidade. O êxito de “A Bagaceira” não foi repetido pelos outros romances que publicou depois. “Coiteiros” e “Boqueirão”, ambos de 1935, não vieram carregados da mesma força. Que teria acontecido? Ter-se-ia esgotado, com “A Bagaceira”, toda a mensagem romanesca de que era portador o grande escritor, o grande estilista? Seria o fato de ter ditado apressadamente os livros, como já confessou? Não temos a resposta. São os mistérios da criação. Não é que os outros sejam romances inferiores, sem valor. São inferiores a “A Bagaceira”, isto é fora de dúvida. Talvez a inevitável confrontação seja responsável por um julgamento menos favorável. A verdade é que o grande romance de José Américo é “A Bagaceira”. Não só um grande romance seu, mas, da Literatura Brasileira, por todos considerado um marco. Romance regional, sem ser regionalista. Romance do Nordeste, sem deixar de ser um romance brasileiro e um romance universal, pela força de suas criaturas – a natureza, as pessoas, o drama e a tragédia da seca, o sentido social da obra. Não há dúvida de que se, porventura, com “A Bagaceira”, se esgotou o romancista, não se terá esgotado o orador, carregado de emoção e beleza literária, o memorialista de alta capacidade de reconstituição e análise, o pensador político, tantas vezes revelado em entrevistas, o conferencista, de páginas inapagáveis sobre vários brasileiros, de âmbito nacional, como Epitácio Pessoa, ou da esfera estadual como Walfredo Leal, o poeta, já agora dos poemas, e não apenas da prosa poética. O conversador incomparável, cheio de colorido e de surpresas, sempre com um pensamento vivo, um “a propósito”, uma indagação, uma resposta, uma reminiscência ou um prognóstico sobre os destinos da Paraíba, do Brasil ou do mundo. Continuava, assim, até o fim da vida, um intelectual e um estadista. JOSÉ AMÉRICO, O HOMEM Chegamos, assim, à parte que abrange e sintetiza as outras, porque, afinal, o político, o administrador, o escritor, o sociólogo, o poeta – tudo isto está compreendido no homem. Mesmo assim, não é incabível examinar José Américo de Almeida como pessoa, como gente, e não apenas como o vulto que se projetou na História, como político e escritor. É a pessoa de José Américo, na sua simplicidade e ao mesmo tempo na sua complexidade, na sua unidade e na sua multiplicação. Conheci-o desde eu menino, embora com longas interrupções, e com períodos mesmo de afastamento, embora não de inimizade, em virtude das lutas políticas. Lembro-me, quando ele, em 1922 ou 1923, na cidade de Patos, hóspede de meu pai, juntamente com Celso
Mariz, tomava apontamentos para “A Paraíba e seus Problemas”. Eu teria meus onze ou doze anos, e só mais tarde compreenderia o sentido daquelas notas e indagações. Há uma inscrição em bronze, à entrada do “Fórum Miguel SÁTYRO”, em que ele, traçando em rápidas e incisivas palavras, o perfil do velho chefe sertanejo, faz referência a essa hospedagem. Depois vi-o várias outras vezes, na Capital do Estado, sempre em companhia de meu pai. Eles tinham sido companheiros de hotel, quando Miguel SÁTYRO era Deputado Estadual e ele Procurador Geral do Estado. Sua amizade vinha desse tempo. Depois, vi-o e ouvi muitas vezes, na tribuna, em discursos da praça pública ou em conferências, no Teatro Santa Rosa e em outros ambientes fechados. Hospedamo-lo outras vezes, em Patos, ora acompanhado do Presidente João Pessoa, ora do General Juarez Távora. Durante quase todo o meu Governo, na Paraíba, visitava-o quase todas as semanas, para ouvir suas opiniões, pedir seus conselhos e sugestões, embora agisse por conta própria e assumisse a responsabilidade de meus atos. Tinha um plano de Governo, cuidadosamente elaborado por um grupo de técnicos, sob o meu comando e a minha inspiração. Um grupo para dizer e projetar aquilo que eu queria fazer. Mas não deixava de ouvir, no curso da administração e até mesmo dos acontecimentos políticos, o parecer de homens como José Américo e outros de minha confiança. Conversávamos, então, longamente, sobre literatura, sobre pessoas, sobre acontecimentos passados, sobre tudo. Aí pude sentir mais de perto a pessoa humana que ele era. O homem que tinha o temperamento arrebatado, mas que o dominara, não apenas por força da idade, mas pela sua própria vontade e deliberação. Ainda há poucos dias, em conversa com o Ministro Reinaldo, este me dizia. “Meu pai mudou muito. Ficou mais compreensivo e mais tolerante. Acrescentou o General que sua mãe D. Alice, era o poder moderador que continha os arrebatamentos do pai. Pai que fora severo, exigente dos deveres dos filhos, sem deixar de ser amoroso e indulgente diante de seus erros. Erros que são comuns a todos nós, especialmente na mocidade. Uma vez, numa de nossas conversas, reproduziu a resposta que já tinha dado a alguém. Um jornalista lhe perguntara: “Por que o senhor não envelhece?” Respondeu: “Porque não quero.” Era comedido na alimentação. Comia pouco e aquilo que não lhe fosse prejudicial ao organismo. Fazia exercício no pomar, cuidando das fruteiras e, no jardim, das plantas. Caminhava na praia. Dessas caminhadas deixou páginas de rara beleza literária, prosa carregada de poesia e emoção. Tinha poucos haveres. A casa de residên-
cia, que será transformada em museu, conforme entendimento da Universidade Federal da Paraíba, criação sua, e o Governo do Estado, uma outra pequena casa, num bairro da Capital, e pequena importância em dinheiro, proveniente de sua aposentadoria, como Ministro do Tribunal de Contas da União, e da sua pensão, como ex-Governador do Estado. Essa importância foi destinada por ele para a secretária e domésticas, Seu testamento na imprensa, após sua morte, constitui uma página que honra não apenas o seu nome, mas a própria vida pública brasileira. Não é que sendo político, não pudesse ser rico. Podia, como pode qualquer político, desde que tenha recebido herança ou exercido atividade lucrativa honesta, que lhe justifique a fortuna. Na fase em que exerceu a advocacia, pouco dinheiro ganhou. Não sabia cobrar honorários, não tinha jeito para o lado comercial da profissão. Fez em discurso memorável, a defesa de um pobre guarda civil, que, em serviço, matara um estudante, à porta da Escola Normal. Era uma causa antipática, mas que lhe pareceu, se não justa, pelo menos humana. Chegou a bradar, numa de suas frases memoráveis, que aquele guarda era, de todos os presentes, o mais infeliz. Mais infeliz até do que a vítima, porque, estando vivo, carregaria por toda a vida a cruz de sua desgraça. O guarda foi condenado, mas não com a pena que os acusadores pediram. Impaciente, arrogante e até agressivo com os grandes, quando se sentia ofendido, era doce e suave com os pobres. Dava esmolas e auxílio a muita gente, pouco, porque também tinha pouco. E o fazia quase às escondidas, para que, biblicamente, nem a mão esquerda soubesse o que doava a direita. Tendo sido um grande fraseador, a ponto de me dizer certa vez que Napoleão Bonaparte foi maior pelos discursos que fez do que pelas guerras que venceu, já nos últimos tempos andava meio arrependido das frases. Dizia, numa espécie de justificação, que a frase não tinha importância. O que valia era o pensamento que ela encerrava. Parece que nem mesmo ele acreditava no que dizia, porque, na primeira oportunidade, lá vinha com uma de suas frases, que eram, no mesmo tempo, forma e pensamento. Tanto isso é verdade que morreu falando, dizendo que chegara a sua hora, que aquele era o seu fim. E, segurando a mão da secretária desvelada, o que ainda era uma forma de falar, expirou. Perguntarão agora os que me ouvem ou os que porventura me lerem depois: foi um homem perfeito? A resposta está na grande e imemorial lição da humanidade. Não foi perfeito. Teve virtudes, muitas virtudes, mas também teve defeitos. Apenas acrescentarei que até o sol tem sombras. g Maio/Junho/2016 |
11
PALAVRAS DO SUCESSOR MAGO DO SERTÃO, PROFETA DAS RUAS(*) José Sarney
Casa de Machado de Assis, símbolo dos nossos valores espirituais. À sombra dos meus deuses o sortilégio dos meus caminhos me fez chegar. Nada mais alto, aqui é o infinito. O deus primeiro, o Deus da minha fé, da minha submissão à sua voz semeadora dos destinos, que me guardou nas dúvidas, encheu de certezas os meus clarões de perplexidades, estendeu-me a mão firme de pai para que eu a apertasse o calor de suas crenças; que me criou José, que me fez Sarney e cobriu a minha cabeça da coroa fria e sem vaidade dos dias que me entregou e eu plantei. Encheu-me de estrelas que cintilaram em baldes de juçaras e de sofrimentos, nesta vida, como todas as vidas amassadas no barro frio e duro do trabalho, em dias vividos na alegria mais aberta, de risos e de alvíssaras, horas que cheiravam desde o mais simples canto de aniversário até a paixão sem barragens, das multidões que olhavam nos meus olhos e seguiam os meus passos. Dias, também, turvos, em que sangraram lágrimas e flores murcharam. CHAMAS DO BEM-QUERER Odes e elegias, vitórias e chagas. Mas aqui estou, também, sob a proteção de outra divindade, o Criador da convivência, que me deu irmãos e amigos, mesa larga de acalantos, rios de solidariedade, mananciais claros de ternura, gestos de amor e de sacrifício, chamas do bem-querer, vamos-juntos, vida-e-morte. Amigos, extensão de nossas almas, encheram este gosto de existir com a ânsia de que não se apagassem nunca, ligados todos nos meandros tecidos pelo conviver. Louvo os que aqui estão. Fecho os olhos da ausência para pensar nos que aqui estariam. Um deles vou buscar no retiro dos santos para que abençoe este momento: Odylo Costa, filho. Foi ele quem me fez possuir da sedução de subir estas montanhas. Mãos quentes de irmão que apertei a vida toda, mãos frias de eternidade que num domingo cinzento de agosto, aqui, nesta casa, beijei, na saída da morte.
A Academia era para mim um horizonte longínquo. Leve sedução transformada na ambição que, sem coragem de ser desejo, era um desejo de desejá-la e, desejando desejá-la, tornou-se desejo, esperança e sonho. Sonho que se realizou e, como diz Jorge Luis Borges, quem realiza um sonho, constrói uma parcela de sua própria eternidade. Chego trazido, acima de tudo, pela vocação das letras, que me fascinaram desde menino, quando ouvia nas madrugadas o meu velho avô, mestre-escola de uma pequena cidade das fraldas da floresta amazônica, tanger os bichos para o curral, recitando redondilhas de Camões. Esse canto das rimas e da transfiguração das palavras era como uma toada de aboio que eu não entendia, contudo me levava do despertar ao feitiço dos sons que tinham o misterioso encantamento da levitação e da fantasia. É este avô a marca dessas querências literárias. Tempos para lembrar o primeiro olhar àquele velho livro, na estante tosca, que se abriu e mergulhou-me nos primeiros versos: As Primaveras, de Casimiro. Vejo o couro envelhecido, páginas amarelas, livro de interior, sofrido, amargo. A vocação da política veio-me do outro avô, de quem ouvi legendas de sagas e violas. Era outra magia, a do menino parado em meio à gente grande, assistindo na noite silente dos campos, ao mar do desafio, entre lamparinas de bicos largos e fuligens por todos os caibros, tiquiras e meladinhas, noites da fazenda, só os homens e as estrelas. Crescia a cantoria, a viola, o quadrão, a choradeira, o repente, o romance e o baile como maré, nas altas e baixas das luas, ganhando a noite de pregões e rimas, no trotear das mangações violentas, marcadas por bichos, terra e gentes. Essas marcas não morreram com meus avós.
A extraordinária figura de meu pai sintetizou as duas vertentes: das letras e da política. Sensibilidade e inteligência, gosto e saber. Em nossa casa, nunca existiu estante vazia, nunca se fecharam os ouvidos à voz do destino dos pobres. Orgulha-me dizer: “Causa fuit, pater his”. Minha infância está povoada dessas visões que apontaram o caminho da vocação onde jamais consegui chegar. Mas se na vida fui deixando pelas ribanceiras dos rios, nas travessias das lagoas, na enchente das decepções, desejares, gostos, anseios, ambições e quereres – à literatura não deixei. Foi o meu refúgio, e não passou dia nem noite sem que para ela eu não tivesse um aceno, um olhar, um convite de noivado. O mundo da criação literária deu-me condições de suportar o saibo das amargas. A esta fidelidade, a este amor sem volta, a vossa escolha reconheceu. E agora, na comunhão dessa paixão comum, estou aqui, menor que todos vós e maior do que eu mesmo. MARANHÃO, POESIA E CRAVO A força poderosa da tradição cultural da minha terra obrigou-me a este gesto de audácia. Maranhão geográfico que vai das areias brancas dos lençóis do mar às barrancas vermelhas que morrem no Tocantins. Das serras que têm nome de Gado Bravo, das Meninas, da Chita, do Penitente, do Piracambu. Das Chapadas de Mangabeiras, do Peito de Moça, do Urucurana. Cidades como Olho d’Água das Cunhãs, S. Benedito do Rio Preto, Pinheiro do Pericumã, São Bento dos Peris, Buriti da Inácia, Vila de S. José das Mentiras, do Vale-Quem-Tem, do Quem-Diria, Centro dos Boas, Buritirana, Jejuí, Bom-Lugar, Pinto-Velho, Pau-Caiado, Água-Fria, Boi-Morto, Salvaterra do Destemor, Canafístula do Jovino. Padre Vieira diz que o Maranhão está nas
Discurso proferido na sessão de 6 de novembro de 1980, na Academia Brasileira de Letras, ao tomar posse na cadeira nº 38, sucedendo a José Américo de Almeida
(*)
12
| Maio/junho/2016
escrituras sagradas, nas Profecias de Isaías: “a terra de que fala é terra que usa embarcações, que tem nome de sinos; e estas são pontualmente os maracatins dos Maranhões. Claude d’ Abeville, que escreveu a História dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e fez parte da missão da ocupação francesa, afirma: Não há neste país outro jardineiro senão Deus e tão-somente a natureza cuida das árvores, dos enxertos e das podas. Haverá melhor jardineiro? E em verdade o Maranhão na terra do Brasil é bonito, bom e tão bem ordenado que com acerto se pode dizer: hortus odoratis cultissimus herbis. E o Capitão holandês Morris de Jonge, pedindo que o povo de Nassau não saísse do Maranhão? “O lugar, pela sua fertilidade e amenidade, bem pode ser comparado ao Jardim do Éden.” Vieram os portugueses e Simão Estácio da Silveira, navegador do século XVIII, alerta os lusitanos: Eu me resolvo que esta é a melhor terra do mundo, onde os naturais são muito fortes e vivem muitos anos, e consta-me que, das que correram os portugueses, a melhor é o Brasil, e o Maranhão é o Brasil melhor. Não fosse o Maranhão eu aqui não estaria. As letras no Maranhão dão título de nobreza e brasões de prestar. Maranhão, onde os púlpitos guardam até hoje a voz de fogo daquele Padre clamando contra o morticínio e escravidão dos índios: Vieira, o Vieira que escrevia e falava com os homens comuns, reis e Deus, orando e protestando com a mesma voz. Maranhão de Luís Alves de Lima, que afirmava em sua proclamação de despedida ter “saudades do Maranhão”. Quem era seu secretário, cronista da guerra? O poeta Domingos Gonçalves de Magalhães, fundador do romantismo no Brasil, que escreveu Suspiros Poéticos e Saudades. Não só o Maranhão passado, também o contemporâneo, tão grande quanto o outro, com poetas como Odylo Costa, filho, Bandeira Tribuzzi, Ferreira Gullar, José Chagas, Lago Burnett, Luci Teixeira, Nauro Machado; historiadores como Jerônimo Viveiros, Rubem Almeida, Mário Meireles; escritores como Franklin de Oliveira, Domingos Vieira Filbo, João Mohana, Carlos Madeira, Nascimento Morais Filho, Jomar Morais, Reis Perdigão, Bandeira de Melo, Carlos Cunha e tantos outros; mestres da língua, como Joaquim Campelo, brilhante colaborador de Aurélio; pintores como Floriano Teixeira, Péricles Rocha, Antônio Almeida; romancistas da culminância de Josué Montello, que tem hoje lugar sagrado na história da literatura brasileira.
E, se passarmos do Maranhão erudito para o Maranhão popular, chegaremos à beleza anônima dos folguedos das cheganças e do boi-bumbá, da língua do povo cheirando a poesia e cravo, à cantiga inocente e maliciosa de João do Vale, no Pisa na Fulô, ou o grito de uma nova “Canção do Exílio”, dessa extraordinária cantora brasileira, Alcione, filha do cantador Nazareth: “Oi Maranhão, oi Maranhão...”. Dos 40 membros iniciais da Academia Brasileira de Letras, cinco eram do Maranhão: Artur Azevedo, Graça Aranha, Coelho Neto, Aluísio Azevedo e Raimundo Correia. Dos escolhidos para patronos: Gonçalves Dias, João Lisboa e Joaquim Serra, Odorico Mendes e Sotero dos Reis. Depois vieram Humberto de Campos, Viriato Correia, Odylo Costa, filho. E temos Josué Montello. De quem recebe parecer - depois Lei nº 726, de 1900, de iniciativa do Deputado Eduardo Ramos - o projeto que concedia sede à Casa? Do chefe político maranhense, senador Benedito Leite. Escreve, na ocasião, Lauro Müller a Machado de Assis: “Vejo que anda bem informado, porque de fato entreguei o Projeto da Academia ao Senador Benedito Leite, maranhense e, portanto, ateniense, quer dizer, homem de saber e de bom parecer”. E Benedito Leite relata a proposta: “Recusá-la seria desconhecer a utilidade das letras e ter amor à obscuridade”. NORTE DAS ÁGUAS Meu acompanhamento não se esgota. É o instante dos meus dragões, e entram minha gente, minha alma, meu vinho. São amigos para a vida e para a morte, ponta de faca e disputa de moça, que nasceram dentro de mim e em mim cresceram. Só nós, eu, o tempo e eles. É gente de alpercata, pé dilacerado pela caminhada longa. Dos sertões úmidos do Brejal para o lusco-fusco desses brilhos. Peço licença para invadirem o salão e abancarem-se como se estivessem debaixo de um pé de tamboril. Que tirem os farnéis, puxem viola, citem as flores bestas da jitirana e do boizinho-de-são-caetano, invadam a Casa com a fatiota lavada e os aromas das cantigas, sebo-de-holanda e azeite de mamona, chitas de ramagens alegres, jasmins e chumbinhos. Venham Olegantino, Amordemais, Flordasina, Dordavida, Frasmamédia, Padecência e Ordivo, Merícia, Javali e Zé do Bule. Os Maribondos de fogo que ferem, picam e devoram, falando das gaiolas vazias com o sopro do adeus, as novilhas berrando nas noites e as águas conversando: ...águas nos cercaram, vindo do céu de todo lado e o vento zumbindo e as águas caindo e todas gritando como um bando de moça donzela, assim como se fossem moça e anjo,
voando e batendo no capim e escorrendo para os ribeiros, e elas todas cantando cantigas de aboio. Águas de toda cor, azul, verde, água branca, água araçá, água fusca, água alazão... Lá fora, amarrando seu cavalo, está Vitofurno, gordo do calcanhar ao pé do pescoço, mãos leves, as rédeas brandas nos seus volteios; chapéu de palha, sandálias, o 38 mais longo que o cano, escorre nas ancas largas. Vem dos campos, montado em animal de estimação, com chicote de bola, sela molhada e macia, de cabeçote alto, saltando no congozado do vento, com sangue de capelobo. Pára. Ressurge da morte e aqui está para ouvir o elogio de outro guerreiro valente, contador de histórias, velho firme e duro, lutador de engenhos e veredas, chefe de bando dos patriotas do Nordeste, José Américo de Almeida. A MARCA INDELÉVEL DO RECIFE Esta é uma cadeira marcada pela política. Ela foi o fato capaz de, alcançando um tratamento transcendente, entrar nos domínios da arte, por intermédio da participação literária de seus ocupantes. Nabuco dizia que a escolha dos patronos fez parte da biografia dos acadêmicos fundadores. “Não tendo Antigüidade,” - afirma - “escolhemos nossos antepassados. Escolhemos por motivo pessoal. A lista de nossas escolhas há de ser analisada como um curioso documento autobiográfico.” Analisemos o patrono da cadeira: Tobias Barreto. A escolha seria do exclusivo fascínio de Graça Aranha. Parece que sim. E ele o teria feito pela extraordinária trajetória, literária e jurídica, do grande sergipano? Acho que não. Ele não confessa, mas todos os que estudaram a sua obra afirmam ser a preferência motivada pela indelével marca do Recife. É o delírio do menino de 13 anos, genial e arrebatado, que, guardado pelo pajem escravo, assiste à espetacular cena de rebeldia do mestre. Tobias Barreto, o gênio que ocupou grande espaço da história literária daquelas paragens, onde foi galáxia e ferro. O incrédulo Graça Aranha refugia-se nessas estrelas que ele próprio diz ser “o martírio obscuro que ia cessar”. Vem o concurso para a cátedra de professor substituto da Faculdade. Os estudantes tinham simpatias, Graça Aranha “se eletrizava e inflamava”. Era dos primeiros a chegar e “tomava posição junto à grade que separava a Congregação da multidão de alunos!”. Ele descreve como foi esse encontro memorável em que tudo era idealismo e paixão. Os jovens acreditavam que Tobias estava emancipando “a mentalidade brasileira afundada no teologismo e no direito natural”. Maio/Junho/2016 |
13
Tobias Barreto era o demolidor de mitos. Tudo sabia. E lutava pelo que sabia. Graça Aranha vai assistir ao concurso. Tobias Barreto empolga o auditório. Destrói a concepção mecânica do universo. “Admite do monismo filosófico haeckeliano a parte do sentimento”. É o delírio. Graça Aranha não resiste, e afirma: ...atirei-me aos braços de Tobias Barreto, que me recolheu comovido e generoso. - Já é acadêmico? - perguntou-me admirado da minha idade. - Sim, calouro. - Pois bem, vá à minha casa esta noite. Desse dia jamais será liberto. Em Tobias encontra seu modelo. É igual ao do seu ancestral José Cândido, conhecido como O Farol, jornalista que, novo, morre nas causas da liberdade, defendendo o partido dos brasileiros. Nenhum panfletário teve tanto prestígio em minha terra. “Belas páginas de verdadeiro merecimento literário”, dirá Joaquim Serra. E Antônio Lopes, citando um dos seus biógrafos, afirma “que ele é um instante glorioso da imprensa brasileira, arauto das idéias liberais e voz sempre contra o arbítrio do poder”. Em Tobias Graça Aranha vê, num relâmpago de sebastianismo, o tio-avô maranhense, O Farol. Era a mesma chama, a mesma rebeldia. Então, afirma para sempre o seu pacto de fidelidade: “nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barreto”. É essa figura, a face revolucionária de Tobias, que ocupa a alma do grande maranhense. Eleito para a Academia, tem de escolher seu patrono. Fiel àquela marca inapagável do Recife, busca o velho guerreiro como apanágio. Mas não é o Tobias professor, o poeta, o ensaísta, o filósofo, o enciclopédico. É o Tobias do “Discurso em Mangas de Camisa” no Clube Popular de Escada, o revolucionário e audaz que o faz pular as grades do auditório para queimar-se no fogo dessa paixão da mocidade. O Tobias que dirá: “mais difícil do que falar aos que comem é falar aos que não têm o que comer.” O Tobias que, também antecipadoramente, forte e profeticamente anunciava, há um século, esta verdade presente: “O mais alto grau imaginável da igualdade - o comunismo - é também o mais alto grau da servidão.” A escolha, ao que me parece, foi a sedução política. Graça Aranha trair-se-á de maneira indireta quando afirma, ao escrever o seu ensaio às Cartas entre Machado de Assis e Nabuco: Neste sentido de harmonia perfeita do real com o invisível, raros foram os estilistas deste País. Podem-se nomear três ou quatro verdadeiramente superiores pela
14
| Maio/junho/2016
ciência e arte da frase, do conhecimento profundo e exato das palavras ligadas intrinsecamente aos objetos. Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Machado de Assis, Raimundo Correia. E pergunta: “Poderá Joaquim Nabuco ter este privilégio do estilo?” Onde está Tobias Barreto nesta relação? Nada melhor para definir Graça Aranha do que a sua afirmação tanta vez repetida: “aos 12 anos neguei a Deus, aos 14 neguei o Direito Natural, aos 15 neguei o princípio monárquico e o direito à escravidão. Dos 16 em diante acrescentei às minhas negações a libertação estética”. Não podemos falar em Graça Aranha sem abordar o episódio do seu rompimento com a Casa. Qual o mistério dessa separação? Depois que veio para o Rio, seu novo ídolo é Nabuco. A ele adere e acompanha em todas as causas. Morto Nabuco, Graça Aranha permanece sem modelo mas conserva o espírito de rebeldia. Na solidão da velhice, a alma do mestre volta-lhe à cabeça e deseja repeti-Ia. Será ele e não Tobias quem vai fazer um concurso. Era 16 de junho de 1924. O Jornal do Commercio, em nota lacônica, anuncia que Graça Aranha fará na Academia uma conferência sobre o espírito moderno e comunica “o encerramento no dia 29 das inscrições para a cadeira vaga com a morte de Vicente de Carvalho. A entrada é franca”. A casa está plena. A plateia, ávida. Nesta Tribuna a que o Destino também me trouxe, o velho Graça Aranha sobe e grita: - Morra a Academia! Os jovens aplaudem. O auditório ferve. Entre os que o carregam em triunfo está Alceu Amoroso Lima. Coelho Neto sucede-lhe. Vem replicar. Nesta mesma Tribuna, faz o elogio da Grécia. No público, o grito de contestação: - Morra a Grécia! E Coelho Neto responde: - Mas eu serei o último heleno. Ambos, no ataque e na resistência, eram do Maranhão. Mas, ironia da história, o Graça Aranha que provoca de Coelho Neto a expressão “último heleno” ouvira a mesma confissão que seu ídolo fizera no Teatro Santa Isabel, em Recife, no duelo com Castro Alves: Tobias, em honra de Adelaide do Amaral, recita: - Sou grego. Gosto das flores Dos perfumes, dos rumores! Castro Alves faz a réplica, na exaltação de Eugênia Câmara: - Sou hebreu... não beijo as plantas Da mulher de Putifar. A voz de Coelho Neto que gritou “último
heleno” é a mesma de Tobias: “Sou grego”. Graça Aranha envelhece sem perder o gérmen da rebeldia. É o ídolo dos moços. Poucos meses antes de morrer, em 1931, ainda escreve um Canto do Revolucionário e pede uma revolução integral, “não só política, mas sociológica”. Os gestos de Graça são sempre políticos, e o episódio da Academia é um gesto de política literária. A ÁGUIA FERIDA Morre Graça Aranha. A Academia elege Santos Dumont. Era uma escolha literária? Não! Era uma escolha política, pelo grande feito, mais que literário, o sonho da conquista do ar. Os Meus Balões e O que eu Vi e o que Nós Veremos são memórias de uma vida de desafios. Nessa vida devo destacar um gesto que define o homem. Quando recebeu o Prêmio Deutsch - o giro pela Torre Eiffel -, ele o distribuiu entre sua equipe de mecânicos e os mendigos de Paris. Sobre a nova descoberta faz uma autocrítica: “Aqueles que, como eu, foram os humildes pioneiros da conquista do ar pensavam mais em criar novos meios de expansão pacífica dos povos do que em Ihes fornecer armas de combate.” Santos Dumont passa nesta cadeira como uma grande águia ferida antes de pousar. Eleito, morre antes de tomar posse. José Américo, em um discurso de campanha em Ilhéus, afirmou: “Sobrevoei vossos céus, mas o vôo do homem é uma deformação da natureza”. Essa deformação é, contudo, a fascinante aventura que nos transformou em pássaros. O BIÓGRAFO DE ANCHIETA Celso Vieira é eleito para o lugar do Pai da Aviação. Talvez seja este o único em que a política não tenha sido o fenômeno deflagrador da atividade de escrever. Foi um grande prosador; erudito, de estilo claro e excelente pesquisador. Guardava a singularidade da profissão na mais completa ascetia. Teve grande destaque no mundo literário da época e chegou a ser presidente da Academia. Escreveu a biografia de Anchieta, sua obra máxima. Foi o pernambucano heróico que, saindo do nada, lutando contra tudo e todos, escreveu livros, fez histórias. Não passou porém em branco no terreno político e publicou Defesa Social, estudo de combate à violência pela polícia científica. OUTRAS REVOLUÇÕES VIRÃO Na sucessão acadêmica, com sua morte, é
eleito Maurício de Medeiros. Chega à Academia afirmando que “nenhum de vós, que tendes assento ao mais alto cenáculo da cultura brasileira, bateu-lhe às portas durante tanto tempo e com tanta constância”. É médico e professor. É o escritor que diariamente, na crônica dos jornais, faz literatura e política. Político, sobretudo, personalidade política, lutador político, discutindo problemas políticos e sociais. Combativo, como observou Clementino Fraga, era daqueles que chegavam à conclusão de Santayana: “todos os governos são bons... para os governantes”. Em 1935, passa o Natal preso a bordo do Pedro I. E ali define-se: “pus-me a meditar no meu estranho destino em que as prisões, os asilos, as fugas são os marcos com que se assinalam as fases da minha vida, conduzida incorrigivelmente por um mesmo pensamento, um mesmo sentimento, uma mesma vontade: o amor à liberdade.” É, finalmente, o escritor que brada num desespero final: “outras Revoluções virão.” MAGO DO SERTÃO, PROFETA DAS RUAS Escritor e político é também José Américo de Almeida, a figura solar que tenho a honra de suceder. O núcleo de sua personalidade é o político, o idealismo do homem público com um grande amor à sua região. Numa manhã ensolarada de João Pessoa estava o grande morto. A Paraíba e o Brasil inteiro o choravam. Fui o último orador e afirmei: Apaga-se a grande chama que iluminava este povo sofrido. Em breve o quente sol do Nordeste queimará as flores que depositamos em seu túmulo. Nesse instante, Paraíba, José Américo não estará mais aqui. Ele é espírito, é estátua, é história, e pairará sobre o Brasil. As flores de pedra, que não morrem, serão esculpidas pela eternidade, para perpetuar homens que, como ele, sendo de carne, transformaram-se em mármore. Escritor e político, mas um escritor que somente pôde ser escritor porque era político. Ele afirma que a política foi o destino; eu acredito que não, foi a vocação irrecusável. Um talento literário pode fugir à estrada das letras. Uma vocação política jamais pode eludir o seu destino. A política só tem uma porta, a da entrada. Afinal, destino e vocação estão ligados. Que incompatibilidade tem a política com a literatura? São dois rios, duas faces, dois mundos não antagônicos. Um, o mundo pragmático, da realidade, do cimento. Outro, do abstrato, da criação, da cor, dos sons, da palavra. Mas política “tem muito de realidade e de sonho”. E acrescento: de ficção. Em política, a ação é em grande parte pa-
lavra - tanto a que se diz e a que se cala como a que se ouve e a que se guarda; a que se imagina ter sido silenciada como principalmente a que se cumpre. Por sua vez, em literatura, a palavra é essencialmente ferramenta do comunicar, o instrumento integral da palavra - a palavra cumprida que diz todas as coisas geradoras das emoções e sensações do que se disse, do que foi ouvido, do que se guardou, do que se silenciou. Sono de silêncio que transmite vida. POLÍTICAS E LETRAS Defendendo a Academia contra o partidarismo político, Nabuco afirmava no discurso de instalação da Casa, como secretário: Nós não pretendemos /, no artista, o patriota, porque sem a pátria, sem a nação não há escritor e com ela há forçosamente o político. A política, isto é, o sentimento do perigo e da glória, da grandeza ou da queda do país, é uma fonte de inspiração de que se ressente em cada povo a literatura toda de uma época... Josué Montello, no seu estudo sobre Machado de Assis e a Academia, diz que há “essencialidade política nas Academias”. O mesmo pensamento era o do fundador da Cadeira 38: “Na Academia” - afirma - “o sentimento eleitoral é o mais ativo de todos e a ABL, graças ao seu quociente de mortos, jamais foi uma Academia morta. Os abençoados mortos deram-lhe a mais preciosa das vidas - a vida eleitoral.” Os biógrafos de Machado de Assis ressaltam que aqui foi “o seu Senado Vitalício”. Acolheu os antigos políticos do Império e da República. “Os novos escritores e os remanescentes da monarquia”. “Realizou-se, politicamente, sem se afastar da obra literária”. Magalhães Júnior, estudando o lado desconhecido de Machado de Assis, pôs em evidência o seu gosto pela política e no seu livro dá o testemunho da candidatura do notável escritor a deputado pelo 2o Distrito de Minas Gerais, em 1866. Nada melhor para um país do que verificar que os homens públicos prezam os valores do espírito. É possível pensar em Nabuco, em Rui, em Graça Aranha, em Tobias Barreto, João Neves, Otávio Mangabeira, Afonso Pena Júnior e em Afonso Arinos, em Luís Viana, em Alceu Amoroso Lima, em José Américo, em Barbosa Lima, Afrânio Peixoto, Aníbal Freire e em Gilberto Amado sem pensar na política? Churchill? De Gaulle? Mao? E o que não dizer do mais político que escritor, que escreveu das mais belas páginas
construídas pelo homem. Aquele lenhador, Lincoln, advogado de província que forjou com o próprio sangue a definição de democracia, no discurso de Gettysburg, da Casa Dividida, dos Espinhos não Cravados? E Jefferson, na precisão da Declaração da Independência? A expressão “busca da felicidade”, que inseriu, é a poesia da palavra - felicidade - que ganha transcendência para ser tudo não sendo quase nada. Felicidade, aí, é um mundo, é pão, é glória, é paz. UM MUNDO REAL IMAGINADO Toda a obra de José Américo é um discurso político. Ela tem sempre um interlocutor. Esse interlocutor, para ele, jamais seria o leitor despojado em busca de um livro. É um homem integral, consciente dentro do universo, senhor de direitos e deveres, que tem fome, tem sede, sofre, arde, dilacera-se. Não é literatura engajada, enlatada, induzida. Mas o testemunho espiritual de quem cria um mundo imaginário para modificar o mundo real que ele imaginou. José Américo confessa esse fato. “A Bagaceira é um grito de reforma agrária”. Ele o escreveu num desabafo, achando que apenas ocupava seu tempo, e surpreso exclama: “ Eu não sabia que o livro era tão grande”. A obra de José Américo de Almeida está toda analisada e dissecada em mínimos detalhes. Paraíba e Seus Problemas, A Bagaceira, Coiteiros, Boqueirão, Reflexões de Uma Cabra foram objeto de estudo dos grandes críticos brasileiros. Nada há a acrescentar. O autor assistiu em vida à glorificação de sua obra e à glória dos que a glorificaram. Cabe-me pintar um quadro impressionista em pinceladas largas e vivas, sem detalhes nem requintes porque ele será sempre maior que o elogio. Nasceu José Américo em 1887, no Engenho Olho d’Água, em Areia, Paraíba. Ali estive. Vi a serra da Borborema. Os bolsões verdes dos vales onde a paisagem tem quatro olhos, dois para o Brejo, dois para o sertão. A infância e essas terras marcaram-no definitivamente e deram-lhe um certo gosto de ficar só. Depois da morte do pai, vem a casa do tio, padre. O silêncio das rezas, o incenso que paira nos corredores dos curas do interior. Breviários ensebados, bíblias gastas, clássicos, sermões e o hábito das verdades eternas como fonte da vida. Casas onde as portas somente se abrem para as confissões, o viático, a esmola. Depois o seminário, outra reclusão comum das orações em conjunto, das lições de latim, da atitude em guarda de todos, para evitar que a impureza afaste as vocações. O Diabo sempre ronda os seminários. Maio/Junho/2016 |
15
Disciplina, silêncio e eterna imobilidade dos santos de altar. A educação induzida do religioso logo se apaga. Escolhe outra estrada: o caminho do Direito. Vai habitar as repúblicas de estudantes, sem contudo conseguir afastar-se de sua sempre presente solidão. Já agora ela é um hábito. Dentro de seu espírito germina o mundo triste e dramático de “agouro, presságios, honras, paixões”. “Tudo se desfaz, menos os elos nativos que prendem o homem à terra”, ele dirá para sua Areia. Gilberto Freyre, para defini-lo, citará Mauriac: “Revive no meu íntimo a atmosfera de minha infância e juventude: eu sou meus personagens e seu mundo.” Nessa fase de sua vida, a Faculdade de Direito do Recife ainda respira o romantismo do século XIX. É uma escola com sabor de teatro, e esse teatro tem um nome de Santa, Santa Isabel. Recife das rebeliões populares, do povo de arcabuz e jasmim, entre o sangue e a lágrima, entre a revolta e a paz. É Pedro Ivo, é Frei Caneca, são os heróis anônimos; é o Capibaribe, o Beberibe; é o vento, é a lembrança da ocupação, é o orgulho e o amor da resistência, a recifencidade, palavra sagrada, para untar os que ali passam com os santos-óleos da terra. Essa faculdade passou por José Américo sem tocá-lo. Incólume, não será jamais arrastado pelo sentimento de Pernambuco. Tudo nele é a paixão da Paraíba. O Brejo de Areia. O engenho. O amor à sua terra. Formado, depois de uma breve passagem em Sousa, como promotor, é nomeado procurador-geral do Estado. O cargo obriga-o à companhia de velhos desembargadores, de toga preta, passos lentos, autos manuseados, questões de terra, vistorias, habeas corpus, apelações, embargos e, em meio a tudo, os livros grandes de distribuição, os beleguins e a soturna justiça das sentenças com citações em latim e evocações mitológicas. É um isolamento que bem se ajusta ao seu gênio. Longe de tudo, acima, bem acima, só, solitariamente remoendo e moendo a denúncia que deveria explodir. É nesse período, na Rua das Trincheiras, que escreve o grande romance. Em 1928 ele aparece. O gajeiro Alceu aponta: “Romancista ao Norte!” Só neste ano saem três edições de A Bagaceira. O testemunho do ocasos Chega a celebridade. Tem grande legião de amigos e admiradores. Entre eles está João Pessoa, que lhe enseja a grande oportunidade preparada pela vida para cumprir um destino político. Ingressa na campanha e sai de sua solidão para a solidão das ruas. O desejo de
16
| Maio/junho/2016
mudança prepara a sociedade brasileira para a revolta. O fogo surge na tragédia que abala e comove o País: o martírio de João Pessoa, sangrado no ódio e na paixão que varrem o Nordeste. O Brasil crespa, surge 1930 e logo a vitória. Agora Governo - e como é difícil a tarefa de governar -, enfrenta a prova da reconstrução. Ministro da Viação, vem a seca de 1932. Assistira à de 1897, no Brejo aguado, para onde acorriam os famintos. Agora, não é o olheiro: - tem o timão. Ei-lo um retirante do Rio, no caminho inverso dos infortúnios, a ganhar o sertão árido no ambiente de tragédia dos açudes secos. Sente na realidade o drama que já construíra no seu livro. Profeta dos sertões, mago do Nordeste, voz do povo humilde, chamou-o Odylo Costa, filho. José Américo não tem certeza dos rumos da Revolução de 1930. Começa a fazer uma revisão crítica da sua participação no Governo. Esse processo leva-o a, em 1934, deixar o Ministério e recusar a embaixada no Vaticano. Eleito senador, renuncia ao mandato. Depois confessará que o fez não somente pelo apelo de ficar no Brasil, mas pelo desencanto dos rumos da situação nacional e paraibana. Em 1935, triste e angustiado, refugia-se na literatura e publica dois livros - Boqueirão e Coiteiros - que não tocaram no diapasão da estreia. Joaquim Nabuco diz que “a obra de quase todos os grandes escritores resume-se em algumas páginas; ser um grande escritor é ter uma nota distinta, e uma nota ouve-se logo; de fato ele não pode senão repeti-la.” Em 1937 é o candidato que arrasta multidões. É o instante de transformar A Bagaceira naquela denúncia pública que lançou, de que “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã.” E as frases célebres: - “O mais tremendo grito de guerra é o grito da fome.” - “A missão de governar é um apostolado de soluções humanas.” - “Ninguém grita de boca cheia.” - “Nem direita, nem esquerda. São formas de hemiplegia moral.” É o mesmo José Américo que, analisando o fenômeno da inflação, afirma que ela é terrível “porque não tira do bolso, tira da boca”. Em contraponto a esse tema, recolhi esta quadra de um cantador de Bacabal: Eu vi a cara de fome Na seca de vinte e um. Ôi bicha de cara feia Só mata a gente em jejum.
A campanha de 1937 morre na ponta de um golpe de Estado. Vem a escuridão. José Américo somente retorna à cena em 1945, bradando pela liberdade de imprensa. O caminho da volta Volta, então, à política diária, já que ela voltou. Eleito senador em 1946, confessa que gosta da nova experiência, diferente da de 1934. Ernani Satyro testemunha a sua irritação com os apartes. Mas o Senado não tem a sedução dos palanques de campanha. Ele é orador da praça pública. A oratória parlamentar vive de lampejos, de emendas, de projetos, de pareceres e discursos que se constroem muito no ambiente, nos atos e fatos da hora. Dessa, época vangloria-se, apenas, de ter sido acusado de falar sempre literariamente. José Américo respondeu que somente sabia falar assim. Desse mesmo defeito foi acusado o visconde do Rio Branco, que se desculpou: - Aprendi com o marquês de Abrantes, que aconselhava: “Converse sempre em linguagem apurada, como se tivesse de falar em público”. Abrantes, o homem das elegâncias parlamentares. José Américo, porém, não tem o gosto da tribuna senatorial. É o homem dos provérbios, das verdades que não devem ter apenas o pequeno espaço dos Anais ou dos Plenários. Em 1950 volta à Paraíba, às suas primeiras ambições. Elege-se governador. Dessa época é sua famosa frase: “Voltar é uma forma de renascer. E ninguém se perde na volta.” Em 1952, encanta-se de novo pela aventura nacional, aceita o convite de Vargas e retoma ao Ministério da Viação. Experiência amarga, volta perdida e trágica. Vem testemunhar mais um dos seus ocasos de sangue. É outro peito em chaga. Consumada a tragédia, como refúgio, vai cumprir o resto do mandato de governador. Tenta pacificar o Estado, mas os amigos o obrigam a uma nova candidatura em 1958. Ele não resiste. Cede. Prova o gosto ácido da derrota em sua própria terra. Despede-se para sempre dessa paixão tentadora de disputar eleições. Reconciliase com os inimigos, prepara a morte, vivendo a velhice de glória, na solidão sem silêncio, de Tambaú. Sua casa é transformada num símbolo do País, capela de peregrinação. Venerado e beatificado, recolhe-se aos livros e chega à Academia. Confessa que não realizara o seu derradeiro sonho: ser membro do Conselho Federal de Cultura. Já não é aquele vulcão, aquele gigante gladiador. É um pai da pátria, tranqüilo, sem desafetos, só admiradores, só cantares, só louvação. Assiste à sua obra ser analisada, redescorbertos os mais escondidos tesouros de suas páginas. Saem edições
e mais edições, as universidades estudam a sua linguagem, o seu estilo, suas hipérboles, suas reticências. É a consagração. A glória sedimentada na visão dela mesma. Nessa fase, testemunha seu filho Reinaldo Almeida: “Meu pai ficou mais compreensivo e mais tolerante”. O ROMANCE NORDESTINO Diz-se que o romance nordestino, cuja temática social inaugurou um tempo novo, veio de 1930, e que A Bagaceira é um marco precursor. Ovsiánico Culicovsqui afirma que “não há possibilidade de compreender a literatura de uma determinada época sem conhecer previamente a vida social e pública do país e o modo de ser econômico-social que forma a base desta vida”. É verdade que nenhuma temática conseguiu ser mais presente como deflagadora do fenômeno literário do que a temática do drama nordestino no tratamento que lhe foi dado por José Américo, José Lins, Graciliano, Rachel, Jorge Amado. Os precursores perderam-se pelos caminhos do tempo, do esquecimento ou da injustiça, como Carlos Dias Fernandes, Domingos Olímpio, Franklin Távora, Juvenal Galeno, Gustavo Barroso, Rodolfo Teófilo, Farias Brito, Carlos Vasconcelos e outros. Dona Guidinha do Poço, só na década de 1950 descoberto, é um cenário do sertão com todos os ingredientes da paisagem que seria embrião para os romances modernos. A versão do gênero na poesia popular, através dos romanceiros de tradição portuguesa, antecedia de muito o tratamento que lhe foi dado na atualidade. O romance naturalista, como exemplo, perdeu-se no Brasil, porque surgiu quando ainda não havia povo nas cidades com sentimento para recebê-lo. Seu modelo era o romance burguês, forma européia com séculos de vivência. O romance da terra, que nasce com Aluísio Azevedo em O Mulato, não pode ser visto somente no estereótipo de uma escola literária, pois ele é o veio que, em temas e paisagens diferentes, chegará a ter ponto alto na geração dos romancistas das secas. José Lins afirma que Gonçalves Dias e Alencar, inovando em ritmo e palavras, forma e espírito, conduziram o Brasil à libertação literária. “A presença do Nordeste está em ambos como condição essencial” é a sua conclusão. Otto Maria Carpeaux assinala que dois fatores: “a raça e o ambiente - estão em oposição irredutível ao fluxo cronológico dos acontecimentos literários: são fatores constantes; produzem continuamente obras e fatos que a evolução histórica já ultrapassou ou ainda não deixa prever”. Daí os muitos precursores e “atrasados que transformam a história literária em verdadeira corrida de cavalos”.
A Bagaceira nasceu de uma motivação política: o drama social. As mudanças que se processavam no mundo, chegando atrasadas àquelas bandas, determinaram uma literatura diferente que alcançava uma dimensão maior que o simples contemplar romântico do fenômeno físico das secas. Não bastava constatar nem sublimar o sofrimento, nem a tragédia dos retirantes, nem a morte e vida naquelas terras. Nem a pobreza das cidades, nem a ira santa dos fazedores de revolta. Era necessário descobrir o elo oculto das injustiças maiores para que a arte de escrever fosse, também, um protesto, uma inconformação social. Quem lê a história daquela região vê que em nenhum lugar a palavra revolução, revolta, reforma é tão presente. O desejo permanente de renovar, modernizar, foi uma constante. A própria história é a história de uma saga que não tem fim. Em José Américo toda a sua obra, a de político e de escritor, é uma denúncia. Ela começa por um fato político. Epitácio Pessoa pede que ele faça, juntamente com Celso Mariz, um relatório das obras realizadas na Paraíba. Era uma maneira de atrair o jovem intelectual. José Américo jogou-se de corpo e alma na tarefa. Este livro poderia ter a dimensão de um grande livro, na linha do de Euclides da Cunha ou de Gilberto Freyre, Os Sertões e Casa-Grande e Senzala. Na realidade, é um estudo em profundidade da sociologia do Nordeste, análise do homem, da terra e dos costumes, que perde a dimensão que devia ter quando se regionaliza para dedicar-se aos problemas locais. Mas é justamente aí que está a semente que vai frutificar em A Bagaceira. Euclides da Cunha revela, no seu discurso de posse na ABL, que foi escritor por acaso. Do trabalho que deveria escrever saiu o grande e monumental livro. É importante notar que o romance nordestino é grande porque é brasileiro em tema e tratamento. Não tem modelos. Na literatura americana os argumentos nasciam dos motivos criados pela nova terra; aqui a literatura do Centro-Sul era predominantemente voltada para o padrão da Europa. A região dos Estados Unidos que mais se aproxima do destino seguido pelo nosso Nordeste é o Sul. O livro de Darwin, Sobre A Origem das Espécies, teve muito maior repercussão, àquela época, no Mundo Novo do que na Europa. Nos Estados Unidos abalou o transcendentalismo, que era a base da filosofia que formara a nação americana. A era do romance pioneiro é a era da filosofia do pragmatismo. Pragmatismo que Papini disse ser tão difícil
de conceituar que podia, na verdade, ser definido “como menos uma filosofia do que o método de passar sem ela”. Vianna Moog estuda a falta de homogeneidade da cultura brasileira e delimita regiões culturais: uma é o Nordeste. Num estudo de literatura comparada, Cassiano Nunes nos adverte de que o modernismo americano buscava valores bem aproximados do modernismo brasileiro: a identidade nacional. No Nordeste, algumas conquistas do modernismo já estavam incorporadas à nossa literatura. O desamor ao gramaticismo, a linguagem popular, uma temática simples em que os personagens não tinham os conflitos existenciais das velhas sociedades. Tinham paixões. Na história literária do País, a rotina era outra. A escravidão e o sofrimento indígena, como exemplos, produziram obras românticas e os pretos e os índios dessas obras são como os das gravuras de Debret ou óleos de Vítor Meireles. A alma, a tragédia interna, aflora, informe, no grito condoreiro do “Navio Negreiro”, na linha dos discursos da Abolição, mas A Escrava Isaura não é a escrava Isaura. O grande verdadeiro romance da escravidão veio a ser escrito cem anos depois, por Josué Montello, com Os Tambores de São Luís. José Américo é um precursor com a força dos precursores. N’ A Bagaceira, ele mesmo proclama: “fiz um romance social”. É uma história em que o amor está misturado com a injustiça. Um grande crítico descobre no livro “sabor de romance russo”. Acho que essa definição se refere ao caráter daquilo que Vogué diz ser na literatura russa “paradas no niilismo e no pessimismo, podendo confundir-se Tolstoi com Flaubert”. “Os José Américo com seus livros o fizeram confiar mais no Brasil que os aliás por ele admirados e, na verdade, admiráveis Andrades, Mário e Osvaldo de São Paulo.” “As Bagaceiras mais que As Três Marias. Os pensadores e artistas do Nordeste mais do que os supereconomistas do Rio e de São Paulo, com seus superprojetos de superdesenvolvimento.” São afirmações de Gilberto Freyre. Será impossível completar a figura de José Américo sem falar no grande orador. A Bagaceira veio para a rua em seus discursos famosos. Provérbios, denúncias, protestos, poesia, revolta, exaltação, ternura e patriotismo. João Neves da Fontoura, também orador, e dos maiores, afirmava nesta Casa que jamais os povos se comoveram ou lutaram por uma causa sem o estímulo e o apoio dos oradores. A Bagaceira vai criar uma mentalidade Maio/Junho/2016 |
17
nova, uma visão diferente das secas, um despertar de posições. Na literatura inicia-se um veio perene e forte. Na política, uma visão científica e social do Nordeste. Podemos fechar este elogio ligando José Américo a Ferreira Viana. José Américo, rijo ser, dura cepa, acusado de falar de si mesmo, responde: - Falo porque posso. - E por que não envelhece? - Porque não quero! Lembro-me de Ferreira Viana: - O que disse está dito. A minha vida inteira não é senão um protesto. Os livros, como as pessoas, envelhecem e morrem. Há casos de ressurreição, como ocorreu há pouco com o redescoberto O Guesa, de Sousândrade. A Bagaceira tem 50 anos. As gerações novas não o podem ler com a paixão da nossa, mas ali descobrem o elo não perdido das histórias passadas, de um Brasil que desapareceu e ficou na desgraça do homem nordestino, dessa nação de andantes que têm coragem até para escrever romances de amor: edade e cio. Soledade e Lúcio. POVO DE CINZAS Despeço-me da Paraíba que está em mim, não apenas nos romances, mas na carne. Meu avô saiu daquele chão, cidade do Ingá, Ingá do Bacamarte, nos anos de 1920. Trouxe mulher e filhos, o dia e a noite, os braços rijos do trabalho em busca dos vales úmidos do Maranhão. Largava as secas e a sujeição. Jogava-se na aventura eterna desse povo nômade. Antes, casara-se em Pernambuco para que se cumprisse a alegria do meu destino de uma gloriosa mãe pernambucana. Nasceu na cidade de Correntes. Ali estive na curiosidade afetiva de saber dos meus antigos, e o que recolhi foi apenas a história de uma bisavó, a última de todos os que saíram e que levou os ossos do marido, num modesto cofre de zinco, para que o amor resistisse às mesmas cinzas, à tragédia e à pobreza. Eu ouvi com ouvidos tênues de menino o relato do cantochão das caminhadas. A epopeia daquelas fugas em um tempo sem estradas. O tição de brasa, como uma borboleta de chamas sacudindo aqui e ali, em busca de vento, para alumiar as puídas estradas por onde passam os pés rachados, os jegues, os burros, as miragens. Jamais deixei de ouvir um chocalho sem que o associasse ao grito de angústia que no pescoço dos animais anunciam aos que estão a chegada dos que trazem a marca do êxodo heroico irmanados na lágrima enxuta de todos os retirantes.
18
| Maio/junho/2016
Aquele tinir de ferro bronzeado, trabalhado no fole, assoprado por peito suarento nas artes de ferreiro. A bigorna da safra dobrando e fechando. A aranha e o badalo. A hora do caminho de barro, a velha louça com o bronze derretido para fazer o som fino ou grosso. São essas as vozes que no Maranhão se ouvem para anunciar a chegada dos sem-destino. É o primeiro canto. Depois, o descarregar dos alforjes, as trempes, a canastra surrada, trapos e santos velhos de estimação que afastam as visagens das andanças e protegem destinos. É um movimento eterno. Quando se chega, não chega. Os capins estão sempre nascendo e morrendo. O canto da cigana, o grito do rasgamortalha acompanham as tropas onde os homens “são mais pobres do que as cabras”. Quantos vi chegarem, quantos vi saírem. Minha metade viajante me faz estar sempre com uma ânsia de espaço. No Maranhão não temos a seca, mas temos o martírio dos que dela fugiram. Lá é a saga da sobrevivência. É este o ambiente, a visão, o sonho, que tenho dessas passagens contadas e vividas na literatura do Nordeste. São histórias da Paraíba que me chegaram desses ancestrais de quem não sei o nome e que lutaram contra Antônio Silvino e Cocada e cujos diálogos faziam parte da crônica familiar. Meu avô rememorava o relato épico. O tiroteio, a morte saltando de bala em bala, a faca, o rifle, o assalto. E a voz do diabo: - Morreu, Assuero? A resposta heroica: - Ainda não, desgraçado. Foi desse avô que recebi a melhor definição de Academia. Eu era bem jovem, publicara a Canção Inicial e, festejado na província, elegeram-me para a Cadeira de Humberto de Campos. Escrevi ao velho avô, que morava na roça, lavrando a terra de machado e foice num lugar que ele mesmo batizara de “Salvação”, dizendo do meu grande feito e da minha alegria. Com a notícia chegada, soltaram-se fogos de festa naquela casa de barro, e houve sorrisos e orgulhos. A vizinha, Dona Tudinha, sem saber o motivo, perguntou ao Velho a razão da folgança: - Meu neto José entrou para Academia! E ela, curiosa, perguntou: - E o que é Academia, Seu Assuero? Ele respondeu, em cima da pisada: - Eu não sei. Eu sei que é coisa grande. Coisa grande, aqui se guardam os
valores espirituais, aqui se busca aquele “sentimento da alma” de que nos fala Bergson. Galbraith, economista e humanista, diz que o que deve valer é a qualidade de nossa vida e não a quantidade de bens. A sociedade industrial cria valores materiais. A cultura deve estar hoje na mesa do planejador, numa prioridade que possa fazer entender que o Brasil somente será uma potência econômica, política e militar quando for uma potência cultural. O Brasil deve investir maciçamente no setor cultural. Precisamos criar o nosso renascimento. O CANTO DA DESPEDIDA A presença do Exmo. Senhor Presidente da República João Figueiredo testemunha seu apreço à Academia como instituição cultural que simboliza valores eternos da Nação. A Casa está cheia de amigos de todos os Estados e do meu querido Estado. Amigos, pedaços de nossas vidas. Dizia o padre Massieu que o agradecimento é a memória do coração. Ao nosso presidente Austregésilo de Athayde e a todos os acadêmicos - como expressar este sentimento? Com a palavra gratidão ou com a palavra coração? Deixo as duas. Sei que a eleição acadêmica não é um julgamento, é uma escolha e, como escolha, é um desejo de convivência. Esta, não abandonarei jamais. Minhas homenagens a Pedro Calmon pela entrega da espada, a Luís Viana pela aposição do colar e a Josué Montello pela bondade da saudação de chegada. *** Afrânio Peixoto dizia que um acadêmico são dois discursos. Um, que ele ouve no dia da posse; outro, que não ouvirá mais, na sua sucessão, já nos domínios da morte. Agora, vou ouvir aquele que ouvirei, o único dos dois. Antes de partir me chegam vozes e sons. Ouço as matracas do bumba-meu-boi, das madrugadas de minha terra. Elas anunciam o instante da despedida. A voz do cantador pede licença: Adeus, eu já vou embora. É chegada a hora de me despedir. Assim como o dia se despede da noite, Eu me despeço de ti. São as últimas encantorias que ficarão na lembrança deste instante. Esta é uma alegria que não murcha. g
UMA PÁGINA DE JOSÉ AMÉRICO UM PRECURSOR DE VANGUARDAS(*) José Américo de Almeida
A POESIA ESTÁ PRESENTE Perdemos Manuel Bandeira e vindes, Sr. João Cabral de Melo Neto, preencher esse claro com um nome da mesma grandeza. Esta Casa sempre amou a Poesia. Passaram por aqui muitos dos grandes poetas do Brasil e ocupam suas Cadeiras alguns dos maiores. Fala-se na decadência do verso; por sua envergadura e violência, o século XX dá a idéia de ser antipoético. E nunca se valorizou tanto a Poesia, os textos dos poemas consagrados são matéria de estudo dos cursos universitários, familiarizando a juventude com esses monumentos da expressão. E filósofos e ensaístas continuam como intérpretes dessa essência eterna. Enquanto houver capacidade de admirar, será celebrado esse fenômeno, porque, como dizia Carlyle, existe uma veia de Poesia no coração de todos os homens. Essas mensagens da visão e do som estarão sempre presentes no mundo do Espírito. UMA POSIÇÃO INDEPENDENTE Sois apontado como um dos participantes do ciclo de 1945, ponto de referência de dois afins de nossa História Literária: o modernista e o modernão. O Modernismo fragmentara-se e esvaziarase; já tinha condições para se repetir. Deixara, porém, o terreno desbravado para a inovação anunciada em sua fase inicial. Nossas Letras não eram mais tributárias de escolas importadas e encontravam o equilíbrio entre a revolução e a tradição. Seriam menos intolerantes nas relações com o passado e ávidas de espaço para não se obliterar o sentido universal. Restaurava-se ainda a estilística contra a improvisação informe. Apesar dos laços comuns, faltou unidade a essa nova experiência. Eram valores avulsos que não se assemelhavam. Deixaram de incorporar as características da época e não se formou também um grupo homogêneo com afinidades estéticas. O que se deu foi o desenvolvimento natural de uma tendência. Aparecestes então com uma poética dife-
rente que se singularizou, como uma aventura, por suas novas formas. Era modernidade e estilo próprio, tudo marcado pela originalidade que é uma aproximação do gênio e sobressaindo pela qualidade artística, pela seriedade e pela significação dos temas. Ia-se ver uma literatura magra, estuante de vida. Um corpo despido que seduzia sem a ostentação do sexo. “Que poeta é ele?” há ainda quem pergunte. O CONSTRUTOR Dirijo-me agora a todos os presentes. É uma Poesia que se realiza pela Arte, a ponto de tornar-se a obra distinta do homem. Organiza-se a forma como um processo racional. Não é uma formação espontânea; o poeta descrê da inspiração e não se julga um iluminado. Essa aptidão para construir o verso manifestou-se cedo, mas nunca deixou de ser laboriosa. Percebe-se o drama da elaboração. Renuncia o artesão a toda facilidade e automatismo e força a cabeça para colher os frutos do tempo, modelando um corpo perfeito. Ressalta a função da palavra com o seu significado ou seu valor conotativo. E a palavra não é tudo; o que vale é sua ordenação. E não é a procurada, mas que reivindica o seu lugar. A técnica despoja-se do velho formalismo: é resseca e econômica, sem faltar movimento. Há algo que vibra nas entranhas do poema com uma contensão febril. Concentram-se todos os sentidos para que se produza essa pulsação interior. Possuído do gênio da língua, o poeta constrói com instrumentos que vai transformando e adaptando. Esse material presta-lhe obediência, como se ele tivesse administrando coisa sua, para as nuanças vocabulares e sintáticas. É o domínio da linguagem com a sua carga formativa, orgânica e expressiva. A estrutura, livre de submissões, escoimada de caturrices vetustas, é culta e pura. Condigna do seu ofício. Não há necessidade de sinônimos, por ser
tudo tão exato que só conhece uma voz. Nem recorre a comparações para se multiplicar. O poeta não possui nenhum glossário privativo; usa a terminologia corrente, cada vocábulo com o seu compromisso de traduzir uma verdade. E para ser original não precisa ser anárquico; conserva o espírito lógico que não se sujeita a nenhuma coordenação, nem se vincula ao episódio ou à anedota. Patenteia-se, em suma, a aversão ao estereotipado, ao gasto e ao postiço; o poeta tem sempre sua solução. VARIEDADE O que mais surpreende é a variedade. Essa estranha Poesia sempre se distinguiu pela novidade formal. Nesse plano estabeleceu-se a unidade. Com tantas possibilidades de expressão elaborou-se Arte sem nada de semelhante. Mas essa vocação procurava desenvolver-se. PEDRA DO SONO A estréia emerge das visões da noite. O menino aprendera em casa a contar os seus sonhos. Daí a verossimilhança das imagens. Nem o homem dormindo seria antilógico; mesmo numa atmosfera irreal funcionaria a autocrítica. E reponta a insatisfação do criador: cada livro seria um novo estágio. O Engenheiro atinge a exatidão geométrica e busca o equilíbrio das linhas, que é mais ordem na expressão. Aprimorava-se, cada vez mais, a consciência da forma. Libertando-se do abstrato, aproximou-se o poeta de uma realidade que envolvia outros problemas. A Psicologia da Composicão explica o processo. A máquina proscrevendo o subjetivismo onírico é mais inventiva. São, por assim dizer, revisões, sem volubilidade, ao contrário, como capacidade de progredir e noção de novas perspectivas. Até que conseguiu fixar-se no seu construtivismo e em sínteses admiráveis da técnica
Discurso de recepção a João Cabral de Melo Neto, na Academia Brasileira de Letras, em 6 de maio de 1969.
(*)
Maio/Junho/2016 |
19
moderna representadas por Paisagens com Figuras, Uma Faca só Lâmina, Quaderna, Dois Parlamentos, Serial e A Educação pela Pedra. E aquele que começara difícil, quase hermético, evoluiu para o Realismo. Etapa que o consagrou com o “tríptico do Capibaribe” como precursor de vanguardas, conferindo-lhe ainda, pela comunicação direta, a popularidade e a glória a que tinha direito. UMA VISÃO MAIS PROFUNDA Intervém, de permeio, uma atividade mais profunda, sobretudo conhecimento e lucidez. É o esquema e o espírito crítico; identifica-se o rastro da pesquisa. O poeta está preparado para essa avaliação. É quase didático na exploração de estados psíquicos e na intimidade dos fenômenos. Há uma consciência a exercitar-se e poderá ser também o acaso que tem sua eficácia. A meditação não inibe; carrega o verso uma ideia e cada ideia, já disse alguém, tem uma forma especial. Uma sensibilidade discreta, mais ativa, conduz a essa atitude. Não há olhos mais enxutos. Ele se proíbe a si mesmo de emitir qualquer reflexo de sua emotividade, mas a opção dos motivos denuncia a natureza retrátil que se acanha de comover-se. Confessar-se para suas reservas naturais seria um impudor. Mas a personalidade que se omite elabora essas reflexões. É um ângulo pouco estudado dessa complexa formação que chega a especular a Ciência experimental para formular seus poemas. COMO O REAL SE MULTIPLICA Sim, essa nova Poesia teve um encontro feliz. O contato com o real favorece as descobertas que se revestem de uma matéria verbal proporcionada, promovendo combinações maravilhosas. Por mais primária que pareça a realidade, exerce-se a magia e tudo se dissolve em imagens. A Natureza é interrogada e dá-se a comunhão com as coisas. Não é o que se vulgariza, senão a essencialidade. Já tive ocasião de dizer. Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não vêem. E não é apenas ver. Sem mudarem a aparência, assumem os elementos outra posição e assim se revela a face oculta. É uma percepção imediata. O poeta não inventa; depois do desafio, o próprio mundo penetra-o, fornecendo-lhe incentivos para poder ser decifrado. Sente a pressão do ambiente e, mergulhando além dos contornos, seleciona a substância ideal para o seu plano. Não é a simples pintura. Gera-se uma visão inesperada para captar sensações. O mundo real tem essa significação. Cada objeto guarda sua história e reproduz as relações. O poeta só não distingue o ornamento e o pitoresco. E seu realismo torce a cara ao disforme, ao fétido, ao nu, às liberdades de um natu-
20
| Maio/junho/2016
ralismo indiscreto. Os cenários severos. Sem tirar os pés do chão, está todo impregnado de seus ares natais; embora ausente com seu horror à passarela, não perde de vista o objeto. Procura apenas um apoio nas coisas materiais. Os espetáculos naturais são convites para a análise. E, depois de feito, não há o que interpretar; nada perde sua condição. Prende-se o poeta a outra realidade; a objetividade não é apenas nativa. Radicou-se em terras de Espanha, afeiçoou-se à sua vida e à sua Literatura e devassou suas particularidades: a paisagem e o caráter. E uma temática com que se familiarizou, sem esquecer a identidade, como simples assimilação. Sendo seiva nordestina, foi-lhe fácil ser hispânico. A APROXIMAÇÃO COM O POVO O Rio é o livro que mais caracteriza essa feição concreta. O poeta quer compor uma prosa e é mais poeta. Iniciara-se com O Cão sem Plumas sua inclinação humana; aqui é humanidade e geografia. O poema narrativo depende da enumeração de elementos objetivos e não perde sua mecânica. Retivera seus perfis e assiste ao desfile por um caminho irrevelado que atravessa também a sua vida. Vai na mesma direção, segundo diria um grande lírico, como se a linha da água passasse em suas veias. A paisagem ribeirinha abandona a monotonia e exibe seus contrastes: o líquido fecundante e o quadro depressivo. O curso fluvial descreve a fisiografia e dá o salto do agreste para a várzea: são dois sistemas de vida. No fim, a cidade aprisiona a corrente formando o urbanismo das pontes. Tudo é atual e parece imaginário, sendo apenas revisto. A Arte que se isolara entrou em comunicação. Já não há nada vago. Havia, desde Mallarmé, a obscuridade procurada, como um meio de resistência à compreensão. Uma impermeabilidade só acessível à elite. Tornava-se a Poesia impenetrável, porque não lhe importava a massa para quem só é receptiva sua própria realidade. O encanto estava, às vezes, na incerteza, no desafio para a definição. Este é um poeta que não mente. Faz de conta que não sente e expõe, no seu normal, descontraído, para não deformar. Tocado de uma compaixão que sufoca, rememora que é viver duas vezes. Reconcilia-se com a sua origem, como quem paga uma dívida, cultivando temas nativos, sem cair no regionalismo. Representa outra versão do Nordeste, outra imagem histórica da região obscura. Espreita as situações e estiliza o folclore para ser mais preciso.
O Drama regional que se projetara com Jorge de Lima, Ascenso Ferreira e Joaquim Cardozo ressurge com a inocência da poesia oral. Morte e Vida Severina é ainda a memória ferida pelo fato físico. Nota-se uma pobreza de frases ajustada ao ambiente e ao assunto. Só aqui se trai o sotaque, a forma popular, sem os plebeísmos da Literatura de Cordel, guardando o sabor de suas fontes. Exercita-se a atenção. A insistência do tema é uma evocação do homem da mata que só conhece da seca o retirante. Não se acende o fenômemo no seu raio de ação: testemunha-se apenas seu fantasma. A figura humana de uma circunstância anormal deixa pela primeira vez de ser gregária. Não faz parte das levas que infestavam o litoral nessas perturbações climáticas. É o poeta do coletivo e passa a ser mais ouvido. Acolhe o palco a poesia viril dando-lhe maior audiência. Uma poesia que o romance vinha usurpando encontra a sua expressão. É mais representativa. Mais simpatia que protesto, mais realista que social, não responde por nenhuma função. O engenho com que se desenvolve o auto ganha intensidade, sem mistificar. É tão fiel que o mundo todo entende suas representações. Circula um sopro quente e perpassa uma presença especial. O monólogo é uma palavra úmida como se fosse cuspida, mas nos encontros o diálogo emancipa-se da austeridade da forma. Sente-se o suor da jornada e não há nada além do épico que tenta dissimular. A Poesia popular não desdenha seu lirismo e infringe o ar solene, na hora dos presentes, que, de tanta fidelidade local, cheira a música rústica. Dá-se a fusão do poema medieval com o cancioneiro nordestino, caracterizando-se o estilo por sua fluidez, sem nenhuma negligência. A frase que se repete vai mudando de sentido; a repetição é o grito que se eleva numa escala afirmativa. Mas não há lamentos nem cóleras; a tragédia reside na cena que é uma maldição da Natureza. O GRANDE TÍTULO Sr. João Cabral de Melo Neto, peço-vos perdão de não ter podido traçar vosso perfil literário usando a técnica com que fizestes o levantamento da vida de vosso antecessor. Assis Chateaubriand ocupou sua Cadeira, nesta noite, de corpo inteiro, enquanto estivestes na tribuna, graças à precisão com que foi reconstituída sua figura numerosa de realizações e de comando. E o título que mais importa, nesta hora, para caracterização de sua carreira, é o que pusestes em relevo – o do grande escritor que se fez homem de imprensa, aclamado e temido, para ser ainda maior, nas variações do seu ofício. g
RECEPÇÃO NA ABL O CRIADOR DE UM NOVO ESTILO(*) Alceu Amoroso Lima
Mais uma vez, Sr. José Américo de Almeida, se cruzam os nossos destinos. Ontem, num modesto trem da Leopoldina. Hoje, no limiar ilustre da Casa de Machado de Assis. Ontem, sob as vestes quase andrajosas de uma capa de romance provinciano. Hoje, com a vossa presença de capa e espada, nesses trajes auriverdes que no século XVIII foram introduzidos aliás na Academia famosa, cujo modelo serviu à nossa, juntamente para democratizar uma instituição, onde os trajes suntuosos dos príncipes começavam a humilhar os trajes modestos dos que só tinham o gênio para se cobrirem de gala. E como sois um modelo de autêntico democrata e o hábito não faz o monge, não são os alamares de acadêmico que vos dão hoje uma glória tão tardia. Foram as vestes quase andrajosas do vosso grande livro que deram glória antecipada ao vosso fardão de hoje. Esse ontem, acima invocado, já conta a bagatela de quase quarenta anos. Precisamente 39 anos, bem passados a ferro e fogo, de uma das existências mais ardentes, e mais marcantes, de nossa vida política e literária. Permiti que, mais uma vez, evoque, em poucas palavras, esse remoto episódio de nosso primeiro encontro. Era o verão de 1928. Subindo à tarde para Petrópolis, de fuga à canícula – pois as nossas praias guanabarinas, por mais belas que sejam, desconhecem a doçura ventilada da vossa branca e tão amada Tambaú, entre o sussurro dos coqueiros e o manso marulhar das ondinas atlânticas – sentei-me ao lado do meu velho amigo Carlos Delgado de Carvalho. Como crítico então militante no palco das pátrias letras – antes de passar às alienígenas e finalmente ao silêncio prudente das galerias anônimas –, fui logo tirando da inevitável pasta o inevitável livro recém-recebido. Mostrei-o ao meu vizinho de banco, e lhe disse: Veja o triste fado dos críticos literários. Em vez de ler um livro que me ensinasse alguma coisa da vida ou do pensamento hu-
mano, ser forçado a folhear esta Bagaceira provinciana (disse-lhe mostrando o título do livro desconhecido), ainda por cima embrulhado em vestes tão esdrúxulas, pois o romance vinha de fato encapado em uma espécie de camiseta listrada de branco e vermelho, que oscilava entre blusa de jóquei e bandeirinha de quermesse... Ainda não havia, entretanto, acabado o desfile, pela janela, das velhas árvores da Quinta da Boa Vista e já me interessava a leitura. Pela altura de Triagem, empolgado, dizia ao meu companheiro que o tal provinciano... Não me lembro o que lhe disse então. Hoje diria – fogo na roupa, bacana, brasa ou estouro! E no alto da serra, tinha devorado o livro quase todo, impaciente por chegar em casa e extravasar no papel o entusiasmo que sucedera ao desalento anterior à leitura! Por que tanto entusiasmo? Não sei. Um pouco pela surpresa do contraste: esperava um traste e o livro me saía uma obra-prima. Um pouco porque nunca soube fazer crítica racional e sim passional. Nunca consegui ser juiz e apenas leitor apaixonado e irritado, amando ou desamando o que era forçado a ler e contando apenas, aos outros, o que me segredara o amor ou o desamor das páginas lidas. Por isso mesmo nunca seria capaz de escrever, como por vezes pedem – ou me pediam –, uma História da Literatura Brasileira. Odi et amo non judico poderia ter sido escrito no pórtico de uma vila que nunca cheguei a possuir, nem mesmo em sonho, nos castelli Romani, perto da de Horácio... Um pouco, enfim, porque o romance desse desconhecido paraibano trazia para o ambiente literário que então respirávamos desde 1922 alguma coisa de novo, de realmente novo. É tão raro esbarrar na vida, em alguma coisa que nos dê a sensação de algo nuevo!, alguma coisa que rompa com a rotina do cotidiano, do convencional, do déja vu dos psiquiatras, que chega a ser um tipo de alienação mental. É desses esbarros que nasce o amor,
quando encontramos assim de surpresa aquela ou aquele que se haviam separado de nós, no céu de Platão, e a quem reencontramos, no plano das afinidades eletivas nesta terra, em que são bem mais frequentes os desencontros, que os encontros. É desses choques imprevistos que nascem os casamentos felizes, como brotam também as obras-primas da mão dos poetas ou dos artistas plásticos. A surpresa é sempre o segredo da juventude. Como a Arte. E quase sempre o caminho da felicidade. Quem perde o espírito de surpresa se encontra no limiar da morte. Viver bem é saber surpreender-se com tudo e com todos, como as crianças, para quem o sol que nasce cada dia nunca é o mesmo que o sol da véspera. Daí o horror da monotonia, o mais inumano dos suplícios humanos. 1922 tinha sido uma surpresa para nossa vida intelectual. Daí o seu rejuvenescimento. João Ribeiro, o velho crítico e humanista sempre novo daquelas eras, advertira os parnasianos mais ilustres de então, que eles se repetiam e com isso mostravam a hora de sair de cena. Os novos impacientes de então – e ai dos jovens que não sejam impacientes, por mais que só pela paciência – nos diz a Sabedoria eterna dos Livros Sagrados – é que podemos possuir as nossas almas –, os novos de São Paulo irrompiam dos horizontes cansados de repetições infindáveis, com suas surpresas mirabolantes. Como hoje começam a surgir novos, com surpresas ainda mais mirabolantes, sinal certo de que estamos vivendo vésperas e não dias seguintes, auroras e não crepúsculos, por mais sanguinolentas que sejam as cores dos horizontes de hoje. Se isso ocorre no plano dos acontecimentos universais, sem que saibamos ao certo se a loucura dos homens de hoje vai chegar às auroras do amanhã depois de carnificinas universais e suicidas – também ignoramos se as surpresas literárias dos jovens da geração que brota serão tão fecundas, em nossas Letras e Artes, como foram as que nos surpreenderam em 1922. Naque-
Discurso de recepção a José Américo de Almeida, na Academia Brasileira de Letras, em 28 de junho de 1967.
(*)
Maio/Junho/2016 |
21
le momento o foram, contra a expectativa e o matraquear dos “sapos” da lagoa de águas paradas, que eram as nossas Letras de então, antes das surpresas trazidas pelos modernistas. Toda surpresa, porém, tem um reverso: a precariedade. O imprevisto se converte logo em decepção, quando lhe falta a raiz, de perenidade, que distingue a novidade autêntica da simples originalidade decorativa. As revoluções são sementeiras de reações que tantas vezes agravam, pela volta exagerada ao passado, os males contra os quais se desencadearam. Isso que vale para o terreno político, também vale para o terreno literário. E como sois, Sr. José Américo, desses espíritos anfíbios mal comparando, como as baleias, mamíferos das grandes águas oceânicas, e palmilhais tão bem as selvas da beleza literária como os ásperos caminhos das lutas mais fogosas, colocastes a vossa rumorosa e mesma sensacional estreia na fronteira literária entre a revolução. Fostes um insigne reacionário nas Letras, como íeis ser um insigne reacionário na Política. Desencadeastes, em 1928, uma onda de reação contra a revolução de 1922. Mas uma reação – entendamo-nos que por sua vez se ia converter em ação revolucionária do futuro. O Modernismo de 1922 – pelo próprio caráter polêmico de que se revestira, de modo inevitável, pela luta contra o chamado passadismo – se concentrara especialmente no aspecto demolidor e, por conseguinte, no espírito sarcástico e na ênfase do desmedido, do desordenado, do chocante, contra a preocupação do equilíbrio, da medida, da beleza harmoniosa, da obediência às regras do “bom senso” e do “bom gosto”, de secular memória lusitana e à influência do helenismo em nossas Letras, desde o advento do espírito parnasiano, na década de 1880. Daí ter sido Coelho Neto o bode expiatório da primeira geração modernista, porque um dia se lembrou de classificar-se a si mesmo como “o último dos helenos”. E de nortear seu estilo pela obediência à vernaculidade clássica, mesmo ao versar temas nacionais, já que fora ele, na década de 1890, juntamente com os Afonso Arinos ou os Valdomiro Silveiras, a iniciar, em nossas Letras, o regionalismo moderno, de que íeis ser, Sr. José Américo, o mais ilustre dos renovadores, em pleno Modernismo. Pois o fato é que essa primeira geração modernista, de 1920 em diante, se ocupou, de modo particular, com o problema estilístico. Não há dúvida que o estilo é a Arte e não a Natureza. É a obra e não o homem, que me perdoe a memória ilustre de Buffon. Ou, antes, é o homem na Arte, isto é a obra.
22
| Maio/junho/2016
Enquanto o estilo é apenas o homem, isto é, antes de nascer a obra, representa apenas um valor potencial. É uma aspiração, uma predisposição e quando muito uma promessa. O estilo é o homem, apenas enquanto a obra se encontra em estado de gestação na mente do artista. Ou então quando marca o leitor ou o espectador ou mesmo o intérprete. Nesse ponto todos nós, leitores, espectadores, intérpretes, críticos, somos estilistas. Estilistas, em sentido lato. Mas o estilo, em sentido próprio, só nasce com a obra. Só existe, realmente, quando encarnado na vida que o autor infundiu ao novo ser, surgindo de sua intenção criadora. Só então é que nasce o estilo propriamente dito. O estilo é a obra. É a intenção que se converteu em expressão. É a potência criadora que se transformou em ato. É a atualização de uma vocação. É a obra, depois de nascida. A forma exterior em que se concretizou um puro impulso, uma forma interior que morre geralmente frustrada, na maioria dos homens. Pois todos nós somos poetas ou romancistas frustrados. Sem estilo. Os verdadeiros e poetas são os criadores de estilo, isto é, de obras, que passam a ter uma vida independente de seu autor. Exatamente porque são um estilo. Adquiriram uma autonomia ao serem criadas. E só possuem essa autonomia, só adquirem uma vivência independente de seu autor, porque são um estilo. Se forem apenas um verbalismo oco ou um formalismo plástico convencional ou de uma originalidade também convencional – e não há pior convencionalismo do que o anticonvencionalismo oco –, se assim for, a obra morre ao nascer. Era um produto sem estilo, sem vida própria. O estilo ficou no autor, no homem que pensou ter vocação para criar um estilo. E não tinha condições senão, quando muito, para ser um estilo frustrado. E não há fauna literária mais perigosa do que a que se compõe de estilos frustrados, de estilos sem obra, de estilos que não deixaram de ser o autor para ser a obra. Fostes, Sr. José Américo, o criador de um novo estilo. Daí a vossa importância na história de nossas Letras modernas. Vosso estilo não era apenas vossa personalidade. Como o de Os Sertões excedeu de muito a pessoa de Euclides da Cunha. E por isso é que sua obra se libertou do seu autor e hoje vive por si. Como tendes de admitir que A Bagaceira já não é só vossa. É de todos. E desde de 1928 vive uma vida à vossa. Sois hoje a obra d’A Bagaceira. Não mais A Bagaceira obra vossa. É o destino de todas as obras-primas da humanidade. A Ilíada é maior que Homero, como A Divina Comédia é maior que Dante. E embora convenha-
mos que a vossa obra, por mais importante que seja, não faz parte da constelação das obras universais e perenes, ninguém nega que seja uma pedra branca imortal na história de nossas Letras e por isso mesmo obedecendo ao critério que fez de Os Lusíadas algo de maior do que Camões. As obras autênticas são como os filhos de grande personalidade. Uma vez formados, o mais que devemos desejar é que não se voltem contra nós. Estou certo que A Bagaceira não repudia o pai. Mas também há muito que passou a residir em casa própria... A culpa é vossa. Quem vos mandou criar um estilo novo? Quem vos mandou, com Augusto Frederico Schmidt e com Jorge de Lima, no campo anexo ao vosso da Poesia, formar uma trilogia, que iria fazer do ano de 1928 uma data semelhante à de 1922? Se nesta foi lançada a primeira pedra da nova escola que iria colocar-se irreversivelmente na sequência que vai do Classicismo ao Concretismo ou pelo menos ao Neomodernismo em nossas Letras – em 1928 se levantava o primeiro andar do novo edifício. Os fundamentos eram os mesmos, o da renovação das Letras modernas brasileiras, por uma nova visão da vida e, por consequência, na mão de criadores de um novo estilo de obra de arte. E se a primeira geração modernista, de que o nosso Manuel Bandeira ia ser o precursor e Mário de Andrade o verbo literário encarnado, procurara um estilo novo para se exprimir, a vossa se caracterizou precisamente pelo oposto. Não o procurastes. Foi ele quem vos procurou, como a sombra segue o corpo. Vínheis, com os dois outros companheiros de 1928, na onda dos vossos predecessores imediatos. A batalha do contra fora desencadeada pela primeira leva dos novos aventureiros da Revolução. A trilogia do ano 1928 era uma reação por ser um novo passo. Não por ser um retrocesso. Vínheis reagir contra o convencionalismo, contra a fidelidade, contra o mimetismo, em que ameaçava mergulhar a onda inicial. Vínheis reagir, pela manifestação de um estilo novo, não procurado, menos original e mais natural, contra o perigo dessa forma detestável de academicismo, que é o do antiacademicismo convencional. Quando as revoluções se repetem ou se monotizam é que começam a se esvaziar e a estimular as reações criadoras. Essa reação criadora, herdeira e renovadora do movimento de 22, é que viestes fazer, Sr. José Américo, junto a Schmidt e a Jorge de Lima, quando lançastes de surpresa A Bagaceira, como de surpresa surgiram, nesse mesmo ano, o Canto do Brasileiro e “Essa Nega Fulô”. Estava dada a partida da segunda fase do
movimento modernista. E vós, ilustre desconhecido da véspera para este Sul pretensioso e ingrato com tudo o que o Norte nos dera nos movimentos literários anteriores, íeis lançar uma nova pedra na lagoa agitada pelas primeiras pedras de 1922, mas ameaçando voltar à antiga placidez convencional. Já havia, em Pernambuco, Gilberto Freyre levantado a voz desse Nordeste que iria de então em diante constituir, tanto em nossas Letras, como em nossa Ciência, como em nossa Política, um dos dados imediatos e fundamentais da cultura e da nacionalidade brasileiras contemporâneas. José Lins do Rego procurava reconciliar o regionalismo tradicionalista do futuro autor de Casa-Grande & Senzala com o Modernismo paulista e carioca, acoimado por ele de “mimetista”. Os ares já começavam a transmitir os rumores de um descontentamento ou de um preparativo bélico que vagamente recordava as tentativas frustradas de Franklin Távora, no sentido da criação de uma “Literatura do Norte”, que a crítica autorizada e insuspeita de Sílvio Romero, como bom sergipano, se havia encarregado de sufocar no berço. Quando o vosso livro imprevisto foi jogado, como a espada de Breno, no prato da balança Norte-Sul, um resultado inesperado se produziu: em vez do prato Sul subir, ao novo peso do prato Norte, ou o prato norte permanecer onde estava, pelo desinteresse do Modernismo sulista, isolando-se os dois pratos da balança, equilibraram-se ambos, de modo surpreendente. A espada do novo Breno não vinha a ser uma opção, mas uma fusão. O Norte, ainda desconfiado, vinha trazer ao Modernismo sulista a sua contribuição, o seu peso forte. E vinha a ser um peso de tanta substância, que foi o Modernismo todo, como escola e movimento, que saiu ganhando. Foi toda a Literatura Brasileira que se enriqueceu de um valor irreversível, de um estilo novo que o grande analista insigne da Literatura Cavalcanti Proença, tão prematuramente desaparecido, iria estudar a fundo na última obra que deixou de sua lavra. Íeis ainda ensaiar de novo nos Coiteiros e no Boqueirão o voo de vosso avião literário. Mas é uma tendência de nossas Letras ao longo dos séculos – de que O Guarani ou Os Primeiros Cantos, Os Sertões ou Canaã foram as provas comprovadas – que os nossos grandes autores dão logo o melhor do seu gênio em suas obras de estreia. Há exceções, sem dúvida, porque a Arte é uma eterna surpresa e um desmentido constante às pretensões dos críticos, de verem leis e ritmos onde há apenas a liberdade de espírito, que sopra sempre onde
quer, como o próprio Espírito de Deus, de que aliás o espírito de cada criador humano não é mais do que um pálido reflexo. Era pois o Nordeste literário que o nosso famoso romance trazia como novo comensal para o ágape das letras modernas de 1928, como desde 1902 Euclides da Cunha o lançara, violentamente, maltrapilho e descabelado, na sala de visitas envernizada de nossa Sociologia. E viria a ser esse mesmo Brasil bravio e inconformado, autêntico e intimorato, temerário mesmo que dois anos mais tarde iríeis também lançar, como um garrote indomado, na nova arena política que o ano de 1930 ia abrir no curso de nossa história. Como ministro de 1930, tendo de atender aos apelos de todo o Brasil, nem por isso se apagou em vossa alma a voz de vossa região calcinada e sofrida, que sempre palpitou em vosso coração como símbolo da vossa indefesa brasilidade. Eis como numa dessas páginas palpitantes da vossa pena exuberante, a única que me permitirei citar de vossa obra considerável, por ser mais significativa da vossa personalidade e do vosso estilo – eis como descrevíeis, certa vez, a vossa paixão de nordestino: Sou aquele que, um dia, era ministro da Viação e foi designado, na ausência temporária do titular da Pasta da Fazenda, para substituí-lo. Nesse momento, o Nordeste sofria e eu não encontrava meios para atenuar seus sofrimentos. Para não me sentir humilhado diante de vossa magnanimidade (pois se dirigia a nordestinos), farei todas as confissões. Mal entrei no Ministério, mandei vasculhar os cofres. Só havia dez mil contos disponíveis e raspei-os. Todo o dinheiro que houvesse eu tiraria, fosse como fosse, para matar a fome dos brasileiros. Para mim, tudo mais podia se acabar, na hora em que os brasileiros morriam de fome. Redigi o decreto-lei de abertura de crédito e corri ao Catete para que o chefe do Governo assinasse. No dia seguinte, voei ao Ceará, por falta de outro transporte, num avião da Marinha, que se perdeu no mar, deixando dois Ministérios acéfalos: o da Viação e o da Fazenda. Declarou-se a seca e eu conhecia essa história. Eu tinha uma alma irmã da vossa. Sem verba para socorrer o Nordeste, mais uma vez atormentado pelas desordens de sua Natureza, sentia a angústia dessa inação forçada, como um ferrete na alma e na carne. Mas a Providência conduziu-me até onde poderia encontrar o milagre da salvação. Cheguei sem ser esperado e tive uma recepção que nunca mais me sairá da memória. A das multidões famintas que já tinham invadido vossa alegre e graciosa capital, como sombras que a empanavam, nesses seus dias
de mais sol. Entranhei-me pelo sertão, mergulhando em fogo vivo. Já era a hora da debandada, do fluxo humano a derramar-se na odisseia das retiradas. A terra desventurada esvaziava-se, nesse transe, vaga após. Vi a raça que se desgarrava, fugindo, sem culpa, de um castigo do céu, do mais terrível dos céus. O vaqueiro que deixava o seu cavalo morrendo e marchava a pé. As mães que se matavam e os filhos de fome, dando-lhes o seio sem leite. Família de vinte e mais pessoas, porque, nessas horas de precisão, ressurgia um patriarca macabro, como os rebanhos semimortos que se protegiam do sol, à sombra dos juazeiros. Em longas peregrinações, pelo deserto pedregoso e afogueado, ia encontrando a natureza espectral e a morte rondando um mundo inteiro. Atalhei essa evasão. Prendi a maré desordenada em campos de emergência, até que fosse escoada para as obras em organização, além do retirante, um montão de cegos, aleijados e macróbios, da mendicidade que já não tinha a quem pedir. Nesses imensos arraiais, alguns de perto de cem mil almas, onde reinou a moralidade mais severa, contrastando com a história de outras secas, chegou a florescer felicidade e lirismo nos corações que não se estiolaram. Houve noivados. Dei enxovais de casamento.* Nesta página admirável está retratada, de corpo inteiro, a vossa figura tríplice de nordestino, de homem de letras e de homem público, numa simbiose indissolúvel. Aí vemos a paixão pelo vosso povo sofredor e sofrido; a capacidade estilística em traduzir essa paixão em palavras tão candentes como o sol de fogo que o estiolava; e, finalmente, o homem público, que não se limitava a sofrer com os que sofrem, nem apenas a contar maravilhosamente os seus sofrimentos, mas em tomar as medidas enérgicas e práticas para minorá-los. E até mesmo para fazer florescer, no deserto calcinado dos esqueletos ambulantes, a flor do amor, os noivados, os casamentos, a perpetuação da vida! Pois o nordestino, por mais que a morte aperte o laço que o garroteia, não deixa nunca de amar a vida e de a perpetuar prodigamente. Já então, em 1930, uma vez lançado inopinadamente o vosso nome no tapete da glória literária, todo o mundo veio a saber que éreis um velho, mas ainda jovem estudioso das coisas provincianas, e já havíeis mesmo publicado um volumoso estudo sobre A Paraíba e Seus Problemas, que havia passado inteiramente despercebido à miopia do nosso sulismo crítico. De modo que, ao ser vitoriosa, em 1930, essa onda do tenentismo e do nortismo, que Juarez Távora e Maio/Junho/2016 |
23
seus companheiros vinham projetar no Norte, ao encontro das cavalhadas gaúchas que subiam do Sul, o vosso nome surgiu na crista da onda, como o mais típico representante desse espírito nordestino que tão fundamente iria caracterizar o Brasil de hoje. Vejo, nesse espírito nordestino, uma nota dominante e típica: a primazia do caráter sobre todas as demais faculdades mentais. Pelo caráter é o homem todo que se afirma e não esta ou aquela qualidade. É a forma interior da pessoa humana. Sua unidade substancial. É o traço de união das partes dispersas cuja soma constitui o sinal distintivo de nossa personalidade. É ele que nos torna unos ou múltiplos, fracos ou fortes, serenos ou angustiados, varonis ou efeminados. É o cimento de nossas pedras interiores. Sem ele, somos apenas parcelas isoladas. Nosso indivíduo se converte em pessoa, para utilizar a tão discutida distinção maritainiana, na medida aglutinativa do nosso caráter. Pois bem, tomando o povo brasileiro em bloco, o caráter nordestino é o cimento do nosso humanismo coletivo. E como sois um exemplo típico do caráter nordestino, vosso destino, Sr. José Américo, é de ser, por natureza, um antimacunaíma. É tão fácil lidar com os macunaímas como é difícil lidar com os antimacunaímas. E por isso dizem não ser muito fácil o convívio convosco. Do pouco que, infelizmente, tenho tido, não posso afirmar nem desmentir o que dizem as más línguas... Seja como for – fácil o vosso trato, de antes quebrar que torcer, como a memória que deixastes dos vossos tempos de lutador político –, o fato é que representais também na arena política um dos ângulos (e é certo que sois um anguloso e nunca um sinuoso) de um novo triângulo. Na Literatura, fostes, com Augusto Frederico Schmidt e com Jorge de Lima, o triângulo literário iniciador da segunda etapa do Modernismo brasileiro. Na Política e na Sociologia formais, com Gilberto Freyre e com Hélder Câmara, um novo triângulo, tanto a casa grande como a senzala, imortalizadas por Gilberto Freyre, e a cidade colonial – isto é, o povoado, assinalado por Nelson Omegna, constituem os três elementos sociais da realidade regional nordestina, de que vindes a ser, depois que José Lins do Rego tão cedo nos deixou, o mais típico dos representantes na casa de Machado de Assis. Vejo novas personalidades, três encarnações humanas desses ângulos fundamentais, da realidade regional nordestina: o espírito da casa-grande, isto é, da tradição patrícia, representado por Gilberto Freyre; o espírito da senzala, isto é, o elemento popular, representado pela figura de Hélder Câmara, o novo Dom Vital; e o espírito do povoado, do
24
| Maio/junho/2016
arraial, do grupo político, que tão bem representais. Voz do patriciado de outrora; voz do povo de hoje; voz do civismo de sempre, eis o que vejo na estrutura institucional desse espírito nordestino. Essa fusão de uma tradição aristocrática culta e autoritária, com o impulso expansivo de um povo de fibra indomável, de religiosidade profunda, de humanidade ardente e convicções inabaláveis, combinados com a vivência cívica que vem das velhas Câmaras Municipais, tão bem estudados por João Francisco Lisboa ou por Afonso Taunay, e de que viestes a ser, em nossa política, uma voz que se fez ouvir de modo estentórico – essa tríplice fusão é a marca indelével de uma consciência nordestina, destinada a ser um elemento decisivo no cimento aglutinador de nossa unidade nacional, que será uma rosa-dos-ventos de todos os nossos quadrantes nacionais ou não manterá por muito tempo esse milagre de nossa história política. Sois um exemplo vivo do que o civismo pode fazer na história de um povo. Como sois, por isso mesmo, o exemplo do que hoje se chama engajamento dos intelectuais. Cada vez mais se politiza a vida da inteligência, como cada vez mais se exige, para a complexidade da política moderna, as mais altas expressões da inteligência. O Leste e o Nordeste, como o Norte em geral, sempre nos deram, desde a Monarquia, o exemplo dessa participação dos homens de talento criador na obra dura da política militante, de José de Alencar a Gilberto Amado, de Rui Barbosa a Jackson de Figueiredo. Sois um deles, e certamente dos mais meritórios, nessa integração harmoniosa do Norte, do Sul, do Centro e do Litoral, de que está surgindo o Humanismo brasileiro. Que trouxestes à revolução política de 1930? Algo de selvagem, de sem-modos, de rude, de telúrico. Fostes o espalha-brasas, o desbocado – não de palavras sujas com que os vossos continuadores do Modernismo nordestino imundaram as nossas Letras desde então –, mas de verdades duras, de franquezas candentes, de que desde as campanhas épicas de Rui Barbosa estava desabituada nossa política de boas maneiras. Com Monteiro Lobato nas letras pré-modernistas, e um pouco também nas ideias políticas, deixastes de lado as cerimônias e imprimistes à política revolucionária de 1930 um estilo despenteado, como ao de Euclides da Cunha chamou Joaquim Nabuco. Essas maneiras de sertanejo mal polido, em suas atitudes cívicas, de pão-pão-queijo-queijo, contrastando aliás com a máxima polidez em nossas atitudes sociais, na vida privada, essas maneiras frustras encobriam,
ao mesmo tempo, uma grande timidez e uma grande audácia. Por mais incrível que pareça, sois um tímido, Sr. José Américo, que não troca por nada a solidão sonora das praias paraibanas. Mas sois, ao mesmo tempo, um aventureiro que não enjeita parada, quando se trata de pegar o touro à unha. E o touro iria ser, em breve, no vosso destino político, a tentação do poder absoluto. Fostes, em 1937, no momento em que os propósitos democráticos do movimento de 1930 se converteram numa ameaça autoritária e ditatorial, o representante do mais autêntico civismo popular. Saístes a campo, sem medo de nada como representante desassombrado da Democracia realista, contra a plutocracia e a demagogia autoritária. Era, por isso mesmo, inevitável a vossa derrota. Mas uma derrota que mais valia do que qualquer vitória mal conquistada. Éreis o Davi de uma causa perdida de antemão, ante os novos ventos ditatoriais, que já começavam a rondar os nossos horizontes. Do fundo de vossas lentes de ultramíope escrutáveis melhor os mais longínquos pressentimentos do futuro do que todos aqueles que se prezavam de não precisar de óculos para ver bem. Pressentistes então a onda que se aproximava e tentastes a aventura temerária de buscar no voto do povo a legitimidade do poder, como fora a ilusória ambição dos revolucionários de 1930, especialmente os que desceram do Norte como uma avalanche irresistível, que vos trouxe na crista da onda. Aliás, vossa derrota de 1937 – e até hoje murmuramos a cada momento, lembremo-nos de 1937, mesmo que seja em vão – iria ser ainda mais ressaltada em seu sentido profundo pela vitória de 1945. Pois não só de derrotas fecundas se compõe a panóplia das vitórias autênticas. Há vitórias que são vitórias mesmo e não derrotas disfarçadas. Essa ia ser a vossa, quando ganhastes a mais bela vitória de vossas lutas, a da liberdade de imprensa. Quem não se lembra daquela vossa memorável entrevista, em que, desafiando toda a máquina montada da censura, tivestes a candura infantil de murmurar, ante o espetáculo de um cesarismo periclitante: o rei está nu. No caso se tratava dessa falsa realeza de todos os tempos, a realeza caricata da censura prévia. Lançastes então um novo Grito do Ipiranga, perante o qual desmoronaram, sem remédio, os falsos ouropéis de um dirigismo governamental da informação pública e do pensamento, que veio abaixo, ao som do vosso grito, como um castelo de cartas. Tínheis sido o enfant terrible da revolução de 1930. Vossa presença dera àquele movimento o único sentido que podia colocá-lo, e de fato o colocou, como uma curva
realmente marcante em nossa história política. Posso dizê-lo à vontade, porque não fui dos que o apoiaram. E se não o fiz, é que não creio em processos violentos como método de progresso social. Só creio nas revoluções cotidianas e invisíveis, que hão de operar as grandes transmutações de estruturas do mundo moderno, feitas pelo povo e pela mocidade. Desaconselhando então os golpes, como que já previa, a trinta anos de distância, que uma virada à esquerda, como fora a de 1930, seria a justificativa remota para as futuras viradas à direita. Posso, pois, falar à vontade, embora sumariamente e sem entrar no terreno da política partidária, sobre o que representou, naquele momento, vossa presença na crista da onda revolucionária. Ocupando uma pasta de caráter técnico como a da Viação, vínheis ser o homem sem papas na língua, que diz as verdades tanto a amigos como a inimigos. Vínheis ser o portavoz desse povo do sertão que pela primeira vez era ouvido nos conselhos governamentais. Vínheis ser a entrada do Nordeste na liça política, a proclamação da moralidade administrativa como base do civismo, assim como a presença das Letras na Política, não apenas como elemento decorativo, para abrilhantar as bancadas nos palácios dos governadores, mas como uma conclusão lógica das premissas lançadas por vossa entrada espetacular no campo literário. Se fostes realmente o iniciador de uma nova fase do Modernismo, foi precisamente porque trouxestes, para a revolução formalista dos lançadores do movimento, uma substância de brasilidade, de sertanismo, de problemática social e talvez, acima de tudo, de gravidade patética, que faltara aos modernistas da primeira hora. Estes tiveram o mérito excepcional de romper com o convencionalismo estilístico e acadêmico. Mas, precisamente porque assumiram uma posição polêmica, perderam-se demais no sarcasmo e na acrobacia. Fostes vós que infundistes na revolução modernista o sentido de tragédia, sem a qual nenhuma Literatura se torna autêntica. Porque a vida é naturalmente trágica. E se os tempos decisivos, como os do século em que vivemos, são particularmente trágicos, que dizer dos povos em via de conquistarem uma independência real, depois de vencida a etapa da independência nominal? E é essa a posição de nossa civilização e de nossa cultura. Estamos passando da independência nominal para a independência real. E daí para a interdependência universal. Se o Modernismo de 1922 teve uma importância tão grande no plano das Letras, como a revolução de 1930 no plano da Política, é precisamente porque ambos os movimen-
tos, quaisquer que tenham sido nossas posições naquele momento, em face deles, se colocaram de modo irreversível na tomada de consciência de uma civilização e de uma Cultura que passavam, como ainda passam, do Nominalismo ao Realismo. E no caso a tomada de consciência da cultura precedeu a da civilização. A Arte, mais uma vez, foi o modelo da Natureza segundo o paradoxo de Oscar Wilde. 1930 ia imitar 1922. Em 1928 vínheis operar nossa participação na revolução literária, através de uma reação radical: o lançamento da nota trágica numa revolução, que tanto os partidários como os adversários ainda mantinham do plano da galhofa, ou da piada. Vossa reação foi a do homem do povo, que tudo faz com seriedade, que leva tudo a sério, mesmo quando canta. Esse sentido trágico da vida que comunicastes ao Modernismo de 1922 era o mesmo que dois anos mais tarde trouxestes à nossa Política. A vitória inesperada da revolução, com que nem mesmo contavam os revolucionários, ia deixar o êxito sem frutos, se Lindolfo Color ao Sul e vós mesmo ao Norte não tivésseis aberto dois canais decisivos para encaminhar o fervor que despertou no povo a esperança de melhores dias. Se Lindolfo Color ia abrir o caminho das leis sociais, com que se canalizavam as esperanças do proletário urbano, na fase de industrialização em que já se encontrava então o Brasil, ia ser vossa a voz do povo do sertão, da massa rústica e esquecida, cujo abandono já Euclides da Cunha denunciara no seu livro patético. E vossa tríplice intervenção, literária em 1928 e política em 1930 e 1945, se operou sob esse mesmo signo patético, sob o qual se desenrolou toda a vossa vida. Não é naturalmente aqui nem o momento nem o recinto adequado à análise de tais acontecimentos. Quis apenas, na hora em que nesta Casa das Letras se consagra vossa glória nacional, relembrar a importância capital que, por três vezes ao menos – uma no plano literário e duas no plano político –, teve a vossa intervenção rumorosa em nossa vida pública, com civilização e com cultura. Muitos poucos se podem orgulhar de tal brasão... Por isso mesmo é que – desde a vossa segunda e dramática intervenção em nossa vida política, e depois de demonstrardes, de novo, a vossa capacidade de homem público no Senado e no Governo de vossa pequena mas gloriosa província –, por isso mesmo é que vos recolhestes, como novo Cincinato, à reclusão quase monástica, mas arejada de brisas marinhas, do vosso retiro em Tambaú. Solidão e silêncio que vos permitiram, depois de tantos anos de lutas incessantes e intimoratas no plano da ação política e li-
terária, não dormir sobre os louros, mas ao contrário, iniciar uma fase de vossa trepidante vitalidade nordestina. Voltado para o passado e para dentro de vosso próprio espírito, em livros sucessivos de memórias, discursos e meditações, o balanço que ides fazendo em nossa própria existência e no fundo de vossa consciência é um testamento precioso de sabedoria e de experiência, que torna tão fecunda a vossa aposentadoria como foram as vossas façanhas de outrora no campo das Letras e do civismo. Madeleine Delbrêl, num desses livros que marcam uma época e rasgam novos horizontes às nossas vidas, Nous autres, gens des rues – tanto mais quanto só foi publicado depois de sua experiência de uma vida cristã a mais autêntica, toda vivida no meio dos mais autênticos marxistas seus amigos –, Madeleine Delbrêl nos legou, entre inúmeras outras sentenças luminosas, esta frase inesquecível: “La solitude n’est pas l’absence des hommes. C’est la présence de Dieu.” Como só na solidão é que encontramos verdadeiramente a Deus, essa solidão só é fecunda quando não representa uma fuga, mas uma participação. Se temos Deus conosco, podemos estar divinamente sós no meio das massas mais compactas. Se não temos Deus conosco, podemos viver solitários, no mais deserto dos desertos, que só teremos dentro de nós o deserto. Vosso deserto, Sr. José Américo de Almeida, nesse silêncio e nessa paz de Tambaú, que tive a ventura de partilhar ao menos uma vez, por algumas horas inesquecíveis, vosso deserto é a mais povoada das solidões. Se nele habita a mais cruciante das saudades, nele também vos acompanham, como companheiros da mais perfeita fidelidade, as evocações do dever cumprido, sem nenhuma deserção, ao longo de oito décadas de uma vida por todos os motivos exemplar. Bem sei também que nessa solidão habita o Hóspede que torna férteis todos os desertos, como marca indelével que vos ficou da adolescência de seminarista, e como tão bem o conta o vosso biógrafo José Rafael de Menezes, no belo livro que acaba de dedicar à vossa vida e à vossa obra. Ao sussurro dos coqueiros que embalam, à noite, o vosso sono, e ao marulho das ondas que vêm beijar na praia os vossos pés, como símbolo de gratidão de vossos irmãos nordestinos que sempre amparastes em seu calvário, Deus habita a vossa solidão. E por isso, nesse epílogo de uma vida tão nobre e tão embebida do nosso povo e da nossa terra, vossa solidão é um mundo de almas que vos cercam e vosso silêncio do Tambaú noturno é a presença daquele que abençoa a mansa despedida de uma vida tão fecunda, tão bela, tão vivida. g Maio/Junho/2016 |
25
MEMÓRIA JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA – UMA ABORDAGEM BIOGRÁFICA DO POLÍTICO PARAIBANO Ana Isabel Sousa Leão de Andrade
“A política ceva-se na administração, absolve crimes e encobre escândalos.” José Américo de Almeida, In: Discursos do seu Tempo) José Américo de Almeida, filho do casal Ignácio Augusto de Almeida e Josepha Leopoldina Leal de Almeida nasceu às duas da madrugada de uma sexta-feira, 10 de janeiro de 1887, no Engenho Olho d’Água, no município de Areia, Estado da Paraíba. É o quinto filho de onze irmãos. Aos 11 anos de idade faleceu o seu pai Ignácio e José Américo, aos 12 anos, teve que sair do engenho onde nascera e foi morar na cidade de Areia com seu tio paterno, o vigário Odilon Benvindo que o assume com as funções paternas. Mesmo contra a sua vontade, aos 14 anos, ele foi enviado para o Seminário com a finalidade de seguir os passos de seu irmão mais velho, Inácio, e lá permanece por três anos. Abandona o Seminário por não ter vocação para o sacerdócio como ele afirma: “Eu nunca pensei ser Padre; fui coagido. Quando estava no Seminário sonhei coisas de menino.”(CAMARGO, Aspásia et. al. O nordeste e a política:. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 579 p., p.71) Fez de uma só vez os estudos preparatórios no Liceu Paraibano. Os exames do Liceu nessa época eram o que se chamava de jubileu. No mesmo ano, 1904, matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife e recebeu o titulo de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1908, com 21 anos de idade. Foi político, escritor e advogado. Como político, assumiu vários cargos importantes na vida nacional: Secretário Geral do Estado da Paraíba; Secretário do Interior e Justiça e de Segurança Pública; Interventor do Estado da Paraíba e chefe do Governo Central do Norte; Ministro da Viação e Obras Públicas por dois períodos; candidato à Presidência da República em 1937, Senador pela Paraíba e Governador da Paraíba eleito em 1950.
26
| Maio/junho/2016
A sua trajetória política se iniciou em 1907 na sua cidade natal. Segundo seu irmão Augusto de Almeida em entrevista a Aspásia Camargo, em 1983, publicada no livro O nordeste e a política: diálogo com José Américo (1984), os “pendores literários e políticos de José Américo se manifestaram desde cedo e caminharam juntos.” Ainda acadêmico do quarto ano de Direito, e juntamente com seu primo Antônio Simeão Leal, filiou-se ao partido que era chefiado pelo Senador Gama e Melo, partido de oposição ao seu tio e padrinho Monsenhor Walfredo Leal, então presidente do Estado da Paraíba. Ambos apoiaram a candidatura dissidente de Gama e Melo. O partido perdeu a eleição e a dissidência levantou sua bandeira. A briga com o tio e o partido oficial quase o induzem a emigrar para o Rio Grande do Sul, deixando a política, mas a família insiste para que fique na Paraíba. Pouco tempo depois é nomeado promotor em Sousa, em pleno sertão paraibano. Foi em 1915 que José Américo voltou a se envolver nos conflitos entre as facções políticas do seu Estado, na cidade de Areia, com a ruptura entre Epitácio Pessoa, líder ascendente de Walfredo Leal, herdeiro político do ex-Governador da Paraíba Álvaro Lopes Machado. José Américo apoiou seu tio Walfredo Leal contra Epitácio Pessoa. Em entrevista a Aspásia Camargo no livro O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida (1984), José Américo diz:“[...] aberta a luta fui dos mais aguerridos.” Destacou-se, então, como figura de proa do walfredismo, graças a ferinas polêmicas contra os epitacistas divulgadas na imprensa. Mesmo assim, Epitácio Pessoa admirava os discursos do jovem José Américo quando estava no cargo de Procurador. O cargo de Procurador-Geral do Estado era um cargo político e José Américo, mesmo contrário ao governo, conti-
nuou exercendo essa função por mais alguns anos. Seu saber jurídico estava acima das querelas políticas. Segundo Ivan Bichara Sobreira, em seu livro “José Américo de Almeida: o escritor e homem público (1977), José Américo, enquanto ocupava o cargo de Consultor Jurídico, nomeado por João Pessoa, recebeu o seguinte elogio de Epitácio Pessoa: “Estou informado de quanto tem sido brilhante e proveitosa a sua colaboração no cargo de Consultor[...] não vai nisto um simples cumprimento mas o reconhecimento de uma verdade por todos proclamada.” Nesse período, o Presidente do Estado da Paraíba Solon de Lucena, sabedor de seu interesse pelos estudos paraibanos, encomendou ao ilustre paraibano para que fizesse um inventário sobre o meio geográfico e social do Estado, do qual resultou o livro: “A Paraíba e seus Problemas”. Esse livro trata dos problemas nordestinos, sobretudo, a seca, livro que veio a ser publicado em 1923. Atualmente, já está na quarta edição com uma edição especial publicada pelo Senado Federal. Este tema foi a tônica de suas gestões políticas futuras. Esta obra segundo o próprio José Américo em entrevista a Aspásia Camargo: “tinha como objetivo expressar ao Senhor Epitácio Pessoa o reconhecimento da Paraíba pelos benefícios outorgados como solução dos problemas das secas e perpetuar num livro a história desse esforço redentor” Em 1928, selada a Aliança entre walfredistas e epitacistas, desde que Walfredo Leal apoiara Epitácio Pessoa para Presidente da República, o presidente do Estado, João Pessoa, que era sobrinho de Epitácio Pessoa, convidou José Américo, com 41 anos de idade, consultor prestigiado, próspero advogado e escritor já reconhecido, para ocupar o cargo de Secretário Geral do Estado. Esse convite ocorreu poucos meses após o lançamento do livro “A bagaceira”, atualmente com 44 edições. Mesmo afastado da política, por não
Foto Arquivo da FCJA
Campanha eleitoral para o governo do Estado, 1950
concordar com alguns procedimentos desenvolvidos na época, José Américo aceitou o convite, com o objetivo de atender ao pedido de João Pessoa que desejava fazeruma reforma política no Governo. Sobre o assunto, José Américo comenta, em entrevista a Aspásia Camargo, que teve o seguinte diálogo com João Pessoa: “[...] Por que me convida ?O que vai fazer lá? Ele me respondeu: Vou dar uma “vassourada”. A reforma foi realizada e este ato fez com que João Pessoa se tornasse impopular por um bom período. Por sugestão do próprio José Américo, o Presidente João Pessoa desmembrou a pasta da Secretaria Geral do Estado e criou a Secretaria do Interior e Justiça e a de Segurança Pública. A princípio, José Américo foi nomeado Secretário do Interior e Justiça, depois foi acionado pelo próprio João Pessoa para ocupar a segunda pasta Secretaria de Segurança Pública. Nas eleições de março de1930, com o apoio de João Pessoa, foi candidato a Deputado Federal pela Paraíba e eleito com cerca de 28 mil votos. Seu mandato foi depurado com toda a bancada situacionista da Paraíba e de Minas Gerais, em favor de um candidato que contava apenas com pouco mais de 3 mil votos. Isto ocorreu como reação contra a Aliança Liberal de que fazia parte. Esse episódio foi de grande decepção para José Américo. Narrando os fatos em entrevista a Aspásia Camargo, sobre o que ele mesmo chamou de “a degola”, disse: “[...] ..deixei a Secretaria do Interior e fui o deputado mais votado da Paraíba, com 28.000 votos. Mas organizaram uma junta apuradora inteiramente facciosa. Eleito, vim para o Rio, mesmo
sabendo que era tempo perdido. Da maneira como agia a Comissão de Poderes, vi que ela era inteiramente facciosa, porque chegaram a mudar os seus membros. Chequei aqui e fui depurado, com toda a bancada situacionista da Paraíba e a mineira” e ainda acrescentou: “Fiquei decepcionado com a política.[...] Mas fui ficando no Rio, até que João Pessoa me mandou chamar...[...] porque a resistência do governo da Paraíba contra a revolta estava sendo destruída: tinham desertado trezentos homens numa única semana. Cheguei lá e ele (João Pessoa) me pediu para voltar. Eu disse: “Não. Estou desencantado, deixe-me voltar para a minha banca de advogado”. Ele disse: “Eu quero mais um sacrifício seu. Não será mais secretário do Interior. Você vai para a Secretaria de Segurança”. Mandou que o secretário de Segurança pedisse demissão – eu relutei muito – e me nomeou. [...]....”.(CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida, 1984. Após o episódio da eleição para Deputado Federal, Aspásia Camargo em entrevista a José Américo, lhe fez a seguinte pergunta: — E como encontrou a Paraíba, ao voltar para o Estado? “— Naquela ocasião, a luta armada já havia sido deflagrada. Em Princesa, José Pereira se levantara, apoiado pelo presidente eleito, Júlio Prestes.” respondeu José Américo. No cargo de Secretário de Segurança Pública, José Américo comandou no interior do Estado as operações contra a Revolta de Princesa até a vitória da Revolução de 1930. Com o assassinato de João Pessoa, Presidente do Estado (1930), foi
solicitado pelo 1º. Vice-Presidente, Álvaro Carvalho a permanecer no cargo, nesses dias turbulentos. Em Ivan Bichara Sobreira, José Américo de Almeida: o escritor e homem público (João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 215) vamos encontrar alguns fragmentos do porquê da permanência de José Américo no cargo de Secretário de Segurança Pública após a morte de João Pessoa:“[...]José Américo, de volta do centro de operações, inesperadamente, num dia que coincidia com a morte de João Pessoa, como um toque misterioso, procurou Álvaro de Carvalho, 1º Vice-Presidente em exercício para pedir-lhe demissão, alegando que o seu Compromisso era com João Pessoa. A resposta foi decisiva: “Se deixar a Secretaria eu deixo o Governo”. O 2º Vice-Presidente, Júlio Lyra era adversário e aliado do Catete. Teve, assim, José Américo de Almeida de permanecer no cargo durante os 70 dias que mediaram entre a morte de João Pessoa e a vitória da revolução, num quadro de verdadeira loucura coletiva, dando garantias aos elementos contrários ameaçados pela fúria popular.” A Revolução de 1930 foi o movimento armado, liderado pelos Estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul que culminou com o Golpe de Estado, chamado Golpe de 1930, que depôs o presidente da República Washington Luís em outubro de 1930. O movimento impediu a posse do Presidente eleito Júlio Prestes e pôs fim a República Velha. Em 1929, lideranças de São Paulo romperam com os mineiros, no que tange à conhecida política do café-com-leite e indicaram o paulista Júlio Prestes como candidato à presidência da República. Em reação, o Governador de Minas Gerais Antônio Carlos Ribeiro de Andrada apoiou a candidatura oposicionista de Getúlio Vargas. Em 1º de março de 1930, foram realizadas as eleições para Presidente da República que deram a vitória ao candidato governista Júlio Prestes, que era governador do Estado de São Paulo. Ele não tomou posse em virtude do golpe de Estado desencadeado em 3 de outubro de 1930, e foi exilado. Getúlio Vargas assumiu a chefia do Governo Provisório em 3 de novembro de 1930, data que marca o fim da República Velha. Na Paraíba, José Américo de Almeida era o líder da Revolução. Com a deposição de Washington Luiz, José Américo de Almeida foi aclamado Interventor da Paraíba e Chefe do GoverMaio/Junho/2016 |
27
no Provisório do Norte pelas forças revolucionárias. Até a posse de Getúlio Vargas, ficou como Governador da Bahia ao extremo Norte. Sobre o cargo de Interventor da Paraíba, José Américo explicou a Aspásia Camargo: “[...] Depois de vitoriosa a revolução, eu fui aclamado Interventor da Paraíba e, ao mesmo tempo, tive um cargo um pouco caricaturado de governadorgeral do Norte. Getúlio não tinha tomado posse ainda; [...] constituí “ministério”, chamei auxiliares, sugeri nomes de outros estados, Pernambuco, de Sergipe e Alagoas e esse governo durou até a posse de Getúlio. Eu fui com Juarez Távora pelo Norte todo, empossando os interventores que nomeava. Fui até Belém como governador – geral..(CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.579., p189.) “ [...] José Américo projeta-se no cenário político em nome da Paraíba, como ele mesmo diz, “pequenina e louca”, que não hesitara em desafiar o governo Washington Luís, apoiando a chapa oposicionista de Getúlio Vargas e em seguida aderindo à revolução que o leva ao poder em 1930.” (CAMARGO, Aspásia et al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.579., p.31 ) Juarez Távora deu poderes a José Américo como Chefe da Revolução no Nordeste, através de carta datada de 3/10/1930, um dia antes de deflagrar, na Paraíba, o movimento de 1930. Da Paraíba, como foco da Revolução de 1930 no Nordeste projetaram-se, dois nomes, o de José Américo de Almeida como civil e o de Juarez Távora como militar. O filho de José Américo, General Reynaldo Almeida, quando da entrevista dada a Aspásia Camargo fez a seguinte avaliação:“A aproximação entre os dois dá-se na fase conspiratória, quando Juarez dirige clandestinamente, da Paraíba, o movimento militar no Nordeste. [...] Na realidade, Juarez era um instrumento do campo militar no desenvolvimento da revolução. E meu pai, José Américo, representava o contato entre o movimento armado e o movimento político, uma vez que João Pessoa era meio afenso à ilegalidade, a todo problema que significasse revolução.” José Américo exerceu o cargo de Ministro da Viação e Obras Públicas por dois períodos. Em 1930, foi nomeado pelo Presidente da República Getúlio Vargas para aquele lugar em que se manteve até encerrar-se o ciclo do Governo Provisório em 1934. Deu grande relevo à ação dos poderes públicos no combate aos efeitos devastadores da seca de 1932 comple-
28
| Maio/junho/2016
tando a obra que Epitácio Pessoa havia deixado inconclusa. Em 1953, a convite de Getúlio Vargas José Américo voltou a assumir o cargo Ministro de Viação e Obras Públicas. Deixou por um período o cargo de Governador do Estado da Paraíba:“Na metade do período governamental, foi chamado, outra vez, para ocupar o Ministério da Viação. Relutou o quanto pôde, mas a seca, que conflagrava todo o Nordeste, obrigou-o a ceder. Disse então: “Em vez de pedir, vou dar”. Ao saltar no Galeão, foi interpelado por jornalistas que estranhavam sua atitude, depois do que se passara em 1937: “Por que veio?”. A resposta foi simples e direta: “Porque me chamaram. Porque precisam de mim””. (SOBREIRA, Ivan Bichara. (Org.).O político. In: José Américo: o escritor e homem publico. João Pessoa: A União, 1977, 344 p., p. 217). No mês de setembro de 1954, após o suicido de Getúlio Vargas, o paraibano que valorizou sua terra e o Brasil retornou ao cargo de Governador do Estado da Paraíba a fim de encerrar o seu mandato com dignidade. Em 1934, quando José Américo deixou o Ministério, foi nomeado Embaixador junto ao Vaticano, cargo que não chegou a assumir. No ano de 1935 foi eleito, pela Paraíba, Senador da República, cargo a que renunciou três meses depois, como também à Chefia do Partido dominante em seu Estado. Desiludido da reforma política que o Brasil esperava, José Américo solicitou a Getúlio Vargas a sua nomeação para o cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União. Retraiu-se por um período até quando, em 1937, retirado do Tribunal de Contas da União, candidatou-se a Presidente da República. O nome de José Américo foi lançado inicialmente por Assis Chateaubriand, por Juracy Magalhães e os antigos tenentes que disseram:“Nós podíamos reabilitar a Revolução de 1930 se tivéssemos um elemento autêntico.”[...] Chateaubriand me procurou . Eu estava em casa quando ele entrou e me disse:“Você é o candidato à Presidência da República.”[...] os tenentes acham que a revolução de 1930 não deu o que devia dar.(CAMARGO, Aspásia et.O nordeste e politica: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984 589p. p 255.). José Américo apresentou-se à convenção nacional de 25 de maio de 1937 e recebeu o apoio de 17 Estados contra três Estados que ficaram com o seu competidor Armando Sales de Oliveira. Na campanha, José Américo pronunciou discursos de grande repercussão nacional, a exemplo
do Discurso na Esplanada do Castelo onde disse que era candidato do povo brasileiro: “ O que sou, consequentemente, é candidato do povo brasileiro, dos ricos e dos pobres, sobretudo dos últimos, dos que não esperam ser ricos mas esperam ser mais felizes. (ALMEIDA, José Américo.A palavra e o tempo. Discurso da Esplanada do Castelo.Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. p. 47). Proclamou, ainda, a expressão que se tornou famosa: Eu sei onde está o dinheiro. Em vez de um arranha-céu serão duzentas casas”Essa expressão repercutiu no cenário nacional e foi motivo de charges de vários caricaturistas do Brasil. Sem a conivência de José Américo, em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas deu o Golpe de Estado, não permitindo a eleição e permanecendo no Poder. Com o Golpe de Estado é estabelecido o Estado Novo. José Américo retornou à judicatura fiscal na Paraíba. Em entrevista a Aspásia Camargo, relatou José Américo sua situação depois do golpe: “Para a família, o saldo da campanha frustrada foi doloroso, traumático. Com o golpe, a casa, que até então estava sempre cheia, esvaziou-se do dia para a noite, demonstrando a prioridade dos interesses sobre as lealdades políticas.”(CAMARGO, Aspásia et. al. O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.p.370) Em 1945 José Américo concedeu a famosa entrevista ao jornalista Carlos Lacerda, publicada no Jornal Correio da Manhã. A entrevista determinou a queda da censura à imprensa que vigorava no Estado Novo de Vargas e em 1946, candidata-se a Vice-Presidente da República pelo voto indireto. Perdeu para o Senador Nereu Ramos, por uma pequena margem de votos. José Américo, em janeiro de 1947, foi eleito Senador pela Paraíba. Foi escolhido para a presidência nacional da União Democrática Nacional - UDN, partido do qual se desligou, em maio de 1948, por não concordar com a aproximação do mesmo com o governo do General Dutra. Em 1950, o grande paraibano é eleito para Governar com muito orgulho o seu Estado natal. Governador do Estado da Paraíba, pelo Partido Social Democrático – PSD, contra o candidato Argemiro de Figueiredo, obteve uma vitória esmagadora, com uma diferença de 37.000 votos, maior vitória eleitoral do Estado à época. Tomou posse no Governo do Estado da Paraíba em 31 de janeiro de 1951, substituindo o Governador Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello . O pleito de 1950 foi profundamente desagregador, o clima de guerra se propa-
gando aos poucos nos comícios. Os conflitos tomam proporções alarmantes em todo o Estado. Um dos maiores confrontos ocorre em Campina Grande – Praça da Bandeira - domingo, dia 9 de julho de 1950 -, quando a polícia atirou em várias pessoas que participavam do comício. Diz Jose Américo:“Fiz a campanha mais vivo e vigoroso do que nunca. Varava o sertão com o sol batendo na cara, comendo poeira, como nos dias combativos de 1930. Havia conflitos. Derramou-se sangue nas ruas. Jogaram lama na minha comitiva, antes que eu passasse, para saltar do carro e desafiar esses selvagens. Nomearam, demitiram, fizeram tudo isso e perderam feio. Deu-me trabalho, mas venci, por uma grande margem de votos” (ALMEIDA, José Américo de. A palavra e o tempo. (1937-1945-1950) Rio de Janeiro: José Olympio / Fundação Casa de José Américo, 1986, 325 p., p. 297-298). O seu período de Governador do Estado da Paraíba foi interrompido pela volta ao Catete, a convite do Presidente Getúlio Vargas. José Américo atendeu ao chamado para voltar ao Ministério da Viação e Obras Públicas, motivado pela severidade da seca que assolava o Nordeste. Com o suicídio de Getúlio Vargas em 24 de outubro de 1954, José Américo voltou ao Governo da Paraíba e terminou sua gestão em triunfo, diante do povo que praticamente o carregou nos braços até a sua residência na praia de Tambaú. Ficou no cargo de Governador do Estado da Paraíba até 31 de janeiro de 1956. Em 1958, José Américo candidatou-se, mais uma vez, ao Senado Federal pela Paraíba. Perdeu a eleição, lutando contra os governos Estadual e Federal e coincidindo
com uma seca em que todos os serviços de assistência foram mobilizados contra seu nome, com ameaça de suspensão. Com a sua derrota para o Senado, afastou-se da política e da vida pública. O pleito foi entre José Américo e Ruy Carneiro. Diante desses fatos, José Américo recolheu-se à sua casa na praia de Tambaú, e passou a dedicar-se inteiramente à família e à literatura. Quando do seu afastamento voluntário, ficou sendo chamado “O solitário de Tambaú”. Apesar da insistência do seu filho Reynaldo de Almeida em levá-lo para residir no Rio de Janeiro com seus familiares, ele se recusou pelo apego que “ele tinha a terra, à Paraíba”, independente dos homens. Entregou-se ao trabalho literário, que era um dos seus maiores prazeres. Sempre lúcido, patriótico, oportuno era procurado por políticos e amigos para dar os melhores conselhos nas horas difíceis da política paraibana, fazendo renascer a esperança na alma dos brasileiros. Alguns depoimentos sobre José Américo de Almeida: O escritor Osias Nacre Gomes em entrevista a Aspásia Camargo, disse: “José Américo recolheu-se à vida privada e era muito visitado. Era o oráculo. A casa vivia sempre cheia de intelectuais e políticos. Ele era grandemente representativo da Paraíba.[...] Era um Chefe político de tal influência, que a palavra dele nunca deixou de ser ouvida.”(CAMARGO, Aspásia et.O nordeste e politica: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984 589p. p 463). O escritor Monteiro Lobato fez um depoimento reconhecendo o valor político de José Américo: “O Nordeste é uma vítima que só deixará de ser no dia em que José Américo for o Presidente
da República. Fora de José Américo não há salvação para o Nordeste. (PEREIRA. Joacil de Brito. José Américo de Almeida: a saga de uma vida. Brasília: Instituto Nacional do Livro, Senado Federal, 1987. p. 162. Juracy Magalhães assim se manifestou: “Sinto-me bem em afirmar ao Brasil e à gloriosa Paraíba ser José Américo a figura ímpar entre quantas a Revolução confiou a execução de seus altos objetivos patrióticos.” (PEREIRA. Joacil de Brito. José Américo de Almeida: a saga de uma vida. Brasília: Instituto Nacional do Livro, Senado Federal, 1987. p. 165. José Américo, escritor de grande reconhecimento nacional publicou vários livros, entre eles: Reflexões de uma cabra, Coiteiros, Boqueirão (novelas); A Paraíba e seus Problemas; A bagaceira; As secas do Nordeste; O ciclo revolucionário do Ministério da Viação; O ano do Nego; Sem me rir, sem chorar; Discursos do seu tempo; A palavra e o Tempo; Ocasos de Sangue; Antes que me esqueça (memórias); Quarto Minguante (poesias). Como preservação da sua memória foi instituída pela Lei nº 4.195, (D.O.E. de 11/12/1980) do Governo do Estado da Paraíba a Fundação Casa de José Américo de Almeida, com sede na Casa de número 3.336, da Avenida Cabo Branco, João Pessoa-Paraíba, antiga residência do escritor e politico José Américo de Almeida, onde viveu seus últimos anos de vida. Faleceu em 10 de março de 1980 aos 93 anos de idade. Como bem disse o escritor Juarez da Gama Batista em entrevista a Aspásia Camargo publicada no livro O nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida, 1984: “José Américo de Almeida é um monumento vivo dele mesmo”. g
ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA BEL. FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES OAB Nº. 17.131/PB Fone: (83) 99981-2335
Especialista em Direito Administrativo Maio/Junho/2016 |
29
POESIA DEZ POEMAS DE JOSÉ AMÉRICO(*)
Rede
Minha estrela
A rede que me balança E me levanta no ar É minha última esperança, Porque me ensina a voar.
A noite morta Não quer que eu saia, Fecho-me a porta E eu quero praia.
E a deitar-me me convida, Oferecendo-me um sonho, Outro mundo, uma outra vida, Um minuto mais risonho.
Há sempre acesa uma estrela, A que brilha lá sozinha. Quero vê-la! Quero vê-la! Essa estrela já é minha.
Se a casa não dá um pio, Gritam os dois armadores, Cantam o seu desafio Os dois irmãos cantadores.
Se o vento tirar-me a vida, Não prexia vela não, Pois essa estrela querida É a vela na minha mão.
Como se fosse de mola, Vira a rede, se me viro. E o corpo todo me enrola E murcha, se me retiro.
Augusto dos Anjos Meu rastro A areia marcou meus pés, Voltei-me contente e vi, Mar volúvel, por quem és, Não subas até aqui. Peço-te: em tua viagem, Nesse teu doido vaivém, Não apagues essa passagem, Pelo valor que ela tem. Andar é tudo que faço Nesta praia, nesta areia, E depois olhar meu traço, Até vir a maré cheia. Já escrevi minha história, Já fui trunfo, já fui astro E hoje minha trajetória É simplesmente esse rastro.
30
| Maio/junho/2016
O sabiá cantou Era um alegre sabiá. Peguei-o ali perto no arvoredo E trouxe-o prisioneiro para cá, A debater-se e a piar, cheio de medo. Para mostrar quem era Fechou o bico. Sim, ficou calado. O tempo bom, como uma primavera, E comida no cocho, bem tratado. Eu devia saber: era um casal. Veio outro e sentou-se na gaiola. Estava triste e se agravou seu mal; uma simples visita não consola. Depois cantou e o preso respondeu. Foi um canto de amor e de saudade. Mas quem sentiu mais prazer fui eu: Deu-me alegria e dei-lhe liberdade.
Amigo, a tua poesia plasmas Com teus problemas e filosofias. Ou, então, conversando com fantasmas Que são teus visitantes e teus guias. Passeaste com Haeckel, ombro a ombro, E tomaste lições com Edard Poe. Foram teus nervos, foi o teu assombro. Não foi ninguém, nem Poe e nem Rimbaud. Tiveste, Augusto, apenas um irmão, Com Euclides da Cunha és parecido, A mesma febre, a mesma exaltação E a música irreal que fere o ouvido. Tu em verso fizeste a sua prosa E ele na sua prosa fez teu verso. Em tudo a mesma flama dolorosa, O mesmo lume aceso no Universo.
Brinquedo
A dança do eito
Homem Crescente
Ciranda a roda inocente, Meninas em bando Cantando e saltando Com a alegria de ainda não ser gente. Um grupo lindo Pernas no ar, Saía subindo A cantar e a saltar. Pode a vida tornar-se um paraíso. É a alegria vã De quem, tendo o seu dia, Não vive ainda o dia de amanhã. E viva o carnaval, Uma alegria fingida Que não faz bem nem faz mal, Por não ser, sequer, a vida.
Trabalha, de pé no chão, No lamaçal ou na areia. Tem saudade da função, Larga a enxada e sapateia. Vai e muda de lugar, Um ponto livre procura, Mas sempre a sapatear Em cima da mancha escura. Passou a dançar no eito Prejudicando o serviço. Isso não está direito. Que quererá dizer isso? E faz outra pirueta Sentindo um fogo apagado. Dança na formiga preta, Escalda os pés no roçado.
A propósito do livro Quarto Minguante e sob o título acima, o escritor Austregésilo de Atahyde, da Academia Brasileira de Letras, escreveu, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro (03/07/1975) o seguinte:
Um flamboyant que escureceu meu telhado
Mar generoso
Fiz a tua mudança. Enterrei-te a raiz neste meu chão, Como quem planta uma esperança Ou coloca um amor no coração. Cresceste mais do que eu, Foste belo e foste forte. Num verão quase tudo aqui morreu E tu escapaste à morte. Quando eu tinha a casa cheia, Enchias também a tua Pegada, parede-meia, Como uma casa de rua. Vinha voando um povo imenso Para ver o teu jardim, Teu lindo jardim suspenso, Quando eras todo carmin. Mas um dia fiquei só, Caiu a tua folhagem E me cobriste de pó E eu te matei. Boa viagem.
Sentei-me. A areia que este mar lavou É meu leito mais limpo e mais macio. Penso nos broncos pescadores ou O céu azul, meu cortinado, espio. Uma onda subiu. Estou molhado. Subiu e me cobriu todo de espuma. O céu me viu aí quase afogado, Porque foi mais; não foi somente uma. Meu mar extraordinário, mar sem fim, Quem foi que disse que eu não sei nadar? Não fui em que chamei; vieste a mim. Tudo que pulsa é coração, meu mar. Deixei o mundo e vim morar contigo, Deixei o campo e, afinal, a praça, Para viver neste teu seio amigo, Onde tudo que há se dá de graça.
Colegas de ano A maneira melhor de lembrar o passado É tê-lo lado a lad; É essa lembrança que acompanha a vida. Na pessoa querida. Colegas de ano, o tempo desigual É para nós o mesmo. Tal e qual. Conversamos. Passamos em revista. Pena é que o melhor já não exista. O que passou passou. É indiferente. Mas o nosso passado está presente.
(*)
Poemas extraídos do livro QUARTO MINGUANTE, 1975.
Leio na imprensa uma comunicação que conforta e eleva o espírito: aos 86 anos de idade, o acadêmico José Américo de Almeida, no seu retiro da Praia de Tambaú, anuncia a publicação de um livro que será também o seu primeiro livro de poemas. E ainda há quem diga que a literatura acabou, que a poesia já não existe e que o ideal literário é coisa do passado. Quando se vê um homem que abriu novos caminhos para a ficção regionalista brasileira sentir que ainda existe no seu coração uma alvorada de beleza, compreende-se que há no espírito uma imanente força de eternidade. “Quarto Minguante” é o nome dessa coletânea de versos, que não foram escritos na juventude nem na idade madura e sim agora, quando para tantos chegam as sombras do amanhecer. José Américo define o seu livro: “Uma adesão provisória, sem nenhum compromisso que me leve à certeza de ainda poder ser poeta”. Só a ideia de escrever o livro encerra tal sentimento, o poético, que isso basta para recomendá-lo, não como uma “adesão provisória” e sim como o rejuvenescimento de uma alma perpetuamente criadora. Grande e maravilhoso exemplo é a vida desse nordestino rijo em sua energia espiritual, como na vitalidade física. Aprendam os moços com ele, que não há idade que justifique o desencanto e a estagnação. Enquanto houver um sopro, ele será aproveitado para alimentar o sonho. O poeta José Américo será tão grande como o romancista José Américo, unidos ao homem público de incomparável patriotismo. Todos nós na Academia e na sociedade intelectual do Brasil sentimo-nos felizes e revigorados, vendo agora um poeta ao Nordeste, como há cinquenta anos foi anunciada a presença do grande romancista de A Bagaceira. Maio/Junho/2016 |
31
A BAGACEIRA JOSÉ AMÉRICO E A BAGACEIRA Maria do Socorro Silva de Aragão
Fostes, Senhor José Américo, o criador de um novo estilo. Daí a vossa importância na história de nossas letras modernas. Vosso estilo não era apenas vossa personalidade. Como o dos Sertões excedeu de muito a pessoa de Euclides da Cunha. E por isso é que sua obra se libertou de seu autor e hoje vive por si. Como tendes de admitir que a Bagaceira já não é só vossa. É de todos. E desde 1928 vive uma vida alheia à vossa. Sois hoje a obra da Bagaceira. Não mais a Bagaceira obra vossa. E o destino de todas as obras-primas da humanidade.1 INTRODUÇÃO O Estado da Paraíba, um dos menores da Federação, é conhecido não só por sua capacidade de luta e resistência, mas, principalmente, por seus filhos ilustres, que se destacaram e ainda se destacam nacionalmente na política, nas artes e na literatura. Nomes como João Pessoa, Epitácio Pessoa, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Pedro Américo e Augusto dos Anjos ilustram a afirmação acima. José Américo de Almeida, além de político, é um dos mais importantes escritores paraibanos e nacionais, com uma obra multifacetada que abrange do romance às memórias, passando pela poesia. 1. JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA, O HOMEM E O ESCRITOR 1.1. José Américo - o Homem José Américo de Almeida nasceu no dia 10 de janeiro de 1887, no Engenho Olho d’Água, no município de Areia, Estado da Paraíba, filho de Ignácio Augusto de Almeida e Josepha Leopoldina Leal de Almeida. Em suas palavras, diz José Américo: Sou de Areia, Estado da Paraíba, na encosta oriental da Borborema, terra alta, de chuvas copiosas e verões suavíssimos, em plena fogueira tropical. (Em suas memórias,
André Rebouças compara esse clima aos da Bélgica, de Paris e de Petrópolis.) A altitude de 622 metros modifica a temperatura, fenômeno pouco sensível em outras latitudes.2 Em 1901, aos 14 anos José Américo é levado pelo tio, Padre Odilon Benvindo de Almeida, para o Seminário da Paraíba, onde permaneceu por três anos, iniciando o Curso de Humanidades. O tio Padre foi muito importante na formação de José Américo. Em 1904, José Américo deixa o Seminário e faz, de uma só vez, todos os preparatórios no Liceu Paraibano. No mesmo ano matricula-se na Faculdade de Direito do Recife. José Américo de Almeida formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade de Direito do Recife em 1908, aos 21 anos de idade. Foi Promotor Público, Procurador-Geral do Estado da Paraíba,Consultor Jurídico do mesmo Estado e Ministro do Tribunal de Contas da União. 1.2. José Américo - o Escritor A vocação literária de José Américo de Almeida revelou-se aos vinte anos quando em 1907 – juntamente com Simão Patrício e Eduardo Medeiros edita, em Areia, o jornal CORREIO DA SERRA. Nesse mesmo período publica sonetos no Jornal A UNIÃO, diário da Capital. José Américo escreveu romances, relatórios, ensaios, crônicas, discursos e memórias. Algumas das obras de José Américo vêm tendo novas edições e A BAGACIERA possui versões em Inglês: Trash; Espanhol: La Bagacera e Esperanto: La Bagasejo. Escreveu, também, em diversas revistas da Paraíba e do Brasil, como Era Nova, A Novella e O Cruzeiro. Deu entrevistas em revistas como Manchete, Veja e em jornais, algumas delas que abalaram a
Alceu Amoroso Lima. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977, p. 25. ALMEIDA, José Américo de. Apresentação. In: Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, 171p., p. 11. 3 ALMEIDA, José Américo de. Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976,171 p., p. 25 - 167-168). 1 2
32
| Maio/junho/2016
República, como a entrevista concedida a Carlos Lacerda. 1.2.1. José Américo - o Romancista O romance escrito por José Américo e que o tornou famoso foi A Bagaceira. Falando sobre sua condição de como se tornou romancista, diz o autor: Notava-se meu ar distante. Se não houvesse noite, seria preciso inventá-la e, mesmo de olhos abertos, eu sonhava. Inventava meu mundo e convocava meus mitos. Fugindo do meu ambiente para montar outros quadros. Nesses momentos de fuga ia ao ponto de plantar minha paisagem e gerar outras vidas, por obra da imaginação. Cultivava essa linda mentira e sentia-me realizado. A fantasia que transfigurava as coisasconstruía meu universo. Demoravame nessa atmosfera fictícia e meus sonhos tomavam corpo. A imagem estava sempre presente e eu brincava com essa ilusão. Só me concediam criar, como um direito meu. E assim me fiz romancista.3 Segundo os críticos literários da época, A Bagaceira iniciou o movi- mento regionalista da Literatura Brasileira e causou sensação junto ao público especializado naquele momento. Tristão de Athaíde disse sobre A Bagaceira: Pois esse livro é um romance da seca, e embora considerando apenas em suas repercussões e não diretamente – talvez o grande romance do Nordeste pelo qual há tanto tempo eu esperava. Se não completo, ao menos intenso. O romance que Euclides da Cunha teria escrito se fosse romancista. De um Euclides da Cunha sutil e bárbaro a um só tempo. O romance daquilo de que os Sertões foram a epopeia.4
Outros escritores e críticos também se pronunciaram sobre A Bagaceira, como João Ribeiro, que escreveu: A Bagaceira – é de agora em diante o livro clássico da literatura do norte porque alia à perfeição dos seus temas a correção da linguagem sem dano do idioma nacional, Alí está debuxada a vida dos engenhos, o flagelo da migração forçada dos retirantes, com a fragrância da verdadeira realidade. José Américo de Almeida não é só um romancista, é um grande romancista, um grande intérprete da vida brasileira.5 José Lins do Rego, contemporâneo e amigo de José Américo disse sobre A Bagaceira: Começaria dizendo da Bagaceira que este romance me foi uma forte surpresa. Deu-me uma impressão, para melhor, que não esperava do seu autor, deixando a alegria de quem descobrisse em mãos de amigo uma loteria premiada de sorte grande. E porque não dizer, alegria misturada com uma muito humana pontinha de inveja.6 Assim, toda a produção literária de José Américo, que daria milhares de análises, sob os mais variados aspectos, será aqui representada apenas por seu romance A Bagaceira. Alguns autores consideram romances as Novelas, como as chamou José Américo, Reflexões de uma Cabra, O Boqueirão e Coiteiros, classificação em que seguimos o autor, como Novelas. 2 A LINGUAGEM DE A BAGACEIRA Este trabalho trata das variações regionais populares do autor paraibano José Américo de Almeida. O estudo baseia-se nos princípios teórico-metodológicos das ciências da linguagem Dialetologia, Sociolinguística e Etnolinguística, analisando o léxico do autor. Sabe-se que todas as variações e mudanças linguísticas são evidenciadas, imediatamente, pelo léxico, uma vez que ele acompanha a mobilidade sociocultural da comunidade. As relações entre língua, sociedade e cultura são muito fortes e a língua pode revelar o sentir e o pensar da sociedade e de um povo, seus valores culturais e sua visão de mundo. O autor aqui estudado representa, em seus personagens a língua, a sociedade e a cultura do povo paraibano.
Se partirmos, como pretendemos, das variantes regionais, no caso, as paraibanas, e direcionarmos nosso olhar para a perspectiva cultural desses falares poderemos afirmar que a linguagem utilizada nessas variações, marca ou é marcada pelos aspectos socioculturais que revestem essas realizações. Em se tratando de falar regional nordestino da Paraíba, o léxico e a fonética são os aspectos onde mais se percebem as diferenças entre esses falares e os de outras regiões brasileiras. Aqui trataremos dos aspectos léxicos do falar paraibano, que é uma marca dessa cultura rgional. Como corpus para esta análise utilizaremos itens lexicais da Linguagem Regional da Paraíba na obra de José Américo de Almeida, autor paraibano, que, apesar de erudito, usou nos personagens de sua obra a linguagem do povo simples e muitas vezes não escolarizado de nosso Estado. O próprio autor diz: A língua nacional tem rr e ss finais... Deve ser utilizada sem plebeísmos que lhe afeiam a formação. Brasileirismo não é corruptela nem solecismo. A plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir [...].7 2.1 As Relações Entre Léxico, Sociedade e Cultura Ao se estudar a língua, os contextos socioculturais em que ela ocorre são elementos básicos e, muitas vezes, determinantes de suas variações, explicando e justificando fatos que apenas linguisticamente seriam difíceis ou até impossíveis de ser determinados. No caso específico do léxico, esta afirmação é ainda mais verdadeira, pois toda a visão de mundo, a ideologia, os sistemas de valores e as práticas socioculturais das comunidades humanas são refletidos em seu léxico. Segundo Barbosa (1992, p. 1): [...] o léxico representa, por certo, o espaço privilegiado desse processo de produção, acumulação, transformação e diferenciação desses sistemas de valores. Para se apreender, compreender, descrever e explicar a “visão de mundo” de um grupo sócio-linguístico-cultural, o objeto de estudo principal são as unidades lexicais e
suas relações em contextos. O léxico enquanto descrição de uma cultura está no seio mesmo da sociedade, reflete a ideologia dominante, mas, também, as lutas e tendências dessa sociedade. Os itens lexicais aqui estudados poderão mostrar a diversidade de visões de mundo, e como o autor elabora lexicalmente esse universo. 3. ANÁLISE DO CORPUS A publicação em 1928 de A Bagaceira, do escritor e homem público paraibano José Américo de Almeida foi um marco na literatura regional brasileira por sua linguagem regional nordestina e por ter, também, uma linguagem popular, ligada às pessoas simples do interior da Paraíba eprojetou-lhe o nome em todo o país, com o destaque dado à literatura regionalista. Falando sobre regionalismo, tão bem representado em sua obra,diz José Américo: O regionalismo é o pé-do-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque é uma expressão de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.8 A obra de José Américo é riquíssima para análises do ponto de vista da Sociolingüística, ciência que estuda as relações entre a língua e a sociedade, suas inter-relações e o papel que cada uma exerce sobre a outra, determinando os níveis ou registros de fala, que vão desde o nível mais informal da modalidade falada ao mais formal da modalidade escrita, que é o literário, correlacionando-os com o nível sócio-cultural de seus usuários. São as variações sócio-culturais, também chamadas diastráticas, que determinam as diferenças entre a linguagem erudita e a popular, entre outras. A integração das três ciências da linguagem, a Sociolingüística, a Dialetologia e a Etnolinguística é que nos permite analisar a linguagem do autor vendo-lhe os aspectos erudito, popular e regional. Assim, José Américo de Almeida, autor da linha regionalista da literatura brasileira é fonte da maior significação para o estudo das variações linguísticas, diatópicas e diastráticas, ou seja: variações regionais, sóciais e culturais. Outro tipo de variação que tam-
4 Tristão de Ataíde. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977, p. 13-14. 5 João Ribeiro. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977, p. 38. 6 José Lins do Rego. (In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977, p. 55. 7 ALMEIDA, José Américo de. Antes que me falem. In: A bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, 215 p. p.2. 8 ALMEIDA, José Américo de. Antes que me falem. In: A bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, 215 p. p.2.
Maio/Junho/2016 |
33
bém pode ser estudada em José Américo é a diafásica ou estilística. A temática, a estrutura literária e a linguagem de sua obra caracterizam, com rara precisão, o nosso povo, seu falar, costumes, crenças e tradições, e seu modo de ser, viver, pensar e agir, dentro do seu universo sócio-lingüísticocultural. Sua linguagem popular se manifesta, basicamente, no léxico, com um vocabulário de palavras e expressões regionais/populares. 3.1 Aspectos Léxicos 3.1.1. Falar Regional-Popular É no léxico onde o caráter regionalpopular da obra de José Américo de Almeida aparece mais fortemente em «A Bagaceira». Os termos e expressões regionais/populares marcam, de forma inequívoca, o escritor nordestino que usa a linguagem de seu povo e de sua terra de forma magistral também nesta obra. Vejamos alguns exemplos ilustrativos: Aboletar-se – alojar-se, instalar-se, aquartelar-se em casas particulares. “Aboletese moço. Tome a tipóia. O vocábulo está registrado em (AB) e (HA), com o mesmo sentido. Alapardado – escondico, oculto, agachado. “Pirunga estava alapardado atrás de uma cajazeiracom, a garrucha aperrada”. O vocábulo está registrado em (CA, CF, AM), Como acachapado está em (AB). Amorrinhado – amolecido, cansado: adoecer de morrinha, enfraquecer-se. “A mulataria prostrava-se amorrinhada pela fadiga do aluguel”. Os dicionários (AB, AH) registram as formas alquebrar-se e sem ânimo. Brote - bolacha grande e dura. “Deitavam-se a elas nos fundos das bodegas por um rabo de bacalhau ou um brote duro”. O termo brote foi introduzido no vocabulário nordestino numa adaptação da palavra holandesa brood (pão), durante o período da dominação holandesa no nordeste. Apenas Horácio Almeida registra o termo, mas com outro sentido. Bangalafumenga – João-ninguém, indivíduo sem importância. “Ela não dança com bangalafumenga daqui”. O dicionário de (HA) registra com o mesmo sentido e (CF) registra: banga-la-fumenga. Chumbergada pancada, açoitamento, golpe dirigido contra uma
34
| Maio/junho/2016
pessoa ou animal. “Arrochei-lhe outra chumbergada”. Dos dicionários consultados apenas Horácio de Almeida registra este termo. Os demais não o registram.
Anda agora renovada Que a paixão é como o sonho, Chega sem ser esperada. Pirunga improvisou:
Embiocar – entrar, entocar. “Quando Fifi me avistou embiocou pra dentro”. Os dicionários de (HA), (AB) e (CF), registram com o mesmo sentido do autor.
Não se vê um olho-d’água, Quando há seca no sertão E enchem-se os olhos d’água, Quando seca o coração...
3.1.2. Provérbios e Frases Feitas Andar com uma mosca na orelha – estar suspeitando de alguma coisa. “Papai já anda com uma mosca na orelha, é capaz de fazer uma das dele”. Nenhum dos dicionários consultados registra a expressão. Andar de capas encouradas disfarçado, dissimulado, mascarado. “Há gente que anda de capas encouradas; quando menos se pensa, bota as mangas de fora.”. Nenhum dos dicionários consultados registra esta forma. Dar de mamar à enxada – apoiar-se no cabo da enxada. “Só vive dando de mamar à enxada.” Nenhum dos dicionários consultados registra a expressão. Andar com uma pele-de-ceará nos olhos – não perceber as coisas, ser conivente, fazer de conta que não vê as coisas. Faz e acontece, e quando acaba, não tem um tiquinho de sentimento. Anda com uma pele-de-ceará nos olhos. Esta expressão não está registrada em nenhum dos autores consultados. 3.1.3. Uso de elementos da cultura popular Numa cena de festa do engenho, os cantadores de coco cantavam: Cabra danado, Se não tem corage, eu tenho De pegar numa pistola E atirar no senhor de engenho... Minha senhora, De que chora este menino? Chora de barriga cheia Com vontade de apanhar... Ou ainda numa trova de Fabião das Queimadas, o violeiro puxava a alma com os dedos: A minha alma de velho
O xexéu de minha terra Que me ensinou a cantar Antes me tirasse o canto E me ensinasse a voar... CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao trabalharmos com a linguagem regional popular do nordeste do Brasil, especialmente a do Estado da Paraíba, podemos nos perguntar, como muitos dos colegas dialetólogos e sociolinguistas certamente também o fazem: o que é regional, o que é popular, o que é criatividade não só dos escritores, dos personagens, mas do povo em geral, ao utilizar sua linguagem para se comunicar, para se expressar, para afirmação do eu ou como função estética? As respostas a estas questões são, muitas vezes, difíceis, senão ambíguas, pois o homem usa sua linguagem com todas estas funções, intercalando-as, mesclando-as, dando maior ênfase ora a uma, ora a outra, mas sempre partindo de sua realidade, realizando adaptações que têm uma motivação muito específica, com o objetivo final de transmitir aquilo que deseja, criando e/ou modificando sua linguagem para atingir esses objetivos. O estudo e análise do romance A Bagaceira de José Américo de Almeida mostra-nos essas variações oferecendo possibilidades, as mais variadas, fato comprovado pelas centenas de trabalhos publicados sobre sua obra, em vários níveis, abordando novos e diferentes aspectos, desde artigos e ensaios até teses de doutorado. Concordamos com Tritão de Athaíde quando diz sobre A Bagaceira: E todo o livro é escrito em brasileiro ora culto, ora bárbaro, mas sempre em brasileiro, sem transição brusca artificial entre a linguagem dos que sabem e a dos que não sabem. Uma língua só e nova, em todas as suas gradações. De um sabor e de uma vida admiráveis. g
REFERÊNCIAS ALMEIDA, Horácio de. Dicionário popular paraibano. Campina Grande: Grafset, 1984. ALMEIDA, José Américo de. Antes que me esqueça. Memórias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976,171 p. _____.A Bagaceira. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, 215 p. p.2. ARAGÃO, M. do Socorro Silva de et al. Cartilha literária José Lins do Rego. João Pessoa: FUNESC, 1990. _____.Glossário aumentado e comentado de A Bagaceira. João Pessoa: A União, 1984. ATHAÍDE, Tristão de. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977. _____. Uma revelação. In: ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. BARBOSA, Maria Aparecida (1998): Relações de significação nas unidades lexicais, em: _____. O léxico e a produção da cultura: elementos semânticos. I ENCONTRO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DE ASSIS. Anais. Assis; UNESP, 1993. CLEROT, L.F.R. Vocabulário de termos populares e gíria da Paraíba: Estudo de glotologia e semântica paraibana. Rio de Janeiro: s.ed. 1959. FERREIRA, A. Buarque de H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LIMA, Alceu Amoroso. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977. OLIVEIRA, Ana Maria P. P. de.; ISQUERDO, Aparecida N. (Orgs.) As ciências do léxico: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia. Campo Grande: UFMS, 1998, p. 133. OLIVEIRA, Ana Maria P. P. de. Regionalismos brasileiros: a questão da distribuição geográfica. In: OLIVEIRA, Ana Maria P. P. de; ISQUERDO, Aparecida N. (Orgs.) As ciências do léxico: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia. Campo Grande: UFMS, 1998. REGO, José Lins do. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977. RIBEIRO, João. In: SOBREIRA, Ivan Bichara (Org.). José Américo: o escritor e homem público. João Pessoa: A União, 1977.
Maio/Junho/2016 |
35
LITERATURA EM QUADRINHOS JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA PARA CRIANÇAS E JOVENS Neide Medeiros Santos
Só tenho uma vaidade: é a literária. E não é vaidade: é alegria. (José Américo de Almeida). José Américo de Almeida escreveu romances, livros de memórias, crônicas, ensaios e poesia, não se dedicou à literatura para crianças e jovens, contudo textos pinçados dos romances, das memórias, das crônicas e da poesia podem ser aproveitados nas escolas para um melhor conhecimento da obra deste escritor pelo público infantojuvenil. Nos anos de 1980, a Fundação Casa de José Américo, sob a coordenação da professora Maria do Socorro Aragão, e contando com a colaboração das professoras Cleusa Palmeira Menezes, Francisca Neuma Fechine Borges e Geralda Soares de Lucena editou a “Cartilha Literária – José Américo de Almeida” com textos retirados dos romances, livros de memórias e das crônicas. O objetivo desse trabalho era atingir os alunos do nível médio das escolas públicas e privadas da Paraíba. A escolha dos textos obedeceu a uma seleção criteriosa, “levando-se em consideração sua representatividade, a linguagem utilizada, as possibilidades literárias e linguísticas de exploração do texto, além de seus aspectos éticos e didáticos”. Cada texto vinha seguido de um estudo que abrangia elementos literários e linguísticos. Esse material foi bem difundido na rede pública do Estado da Paraíba e teve uma 2ª edição. A respeito dessa cartilha, o professor José Loureiro Lopes, Secretário de Educação do Estado da Paraíba na época da publicação, assim se expressou: A Cartilha traz a literatura à criança, educa pelo exemplo e aproxima professores e alunos da visão do mundo, de um dos mais fecundos pensadores e estadistas paraibanos, quiçá nacionais, José Américo de Almeida. Esta Cartilha pode ser consi-
36
| Maio/junho/2016
derada um exemplo e uma iniciativa a ser seguida por quantos se preocupam com os problemas de formação da nossa juventude, o maior potencial deste país. Os anos se passaram e José Américo de Almeida ganhou uma fotobiografia, publicada em janeiro de 2015. “José Américo de Almeida: Uma Fotobiografia” (Ed. Ideia, 2014). Este livro resultou de um projeto aprovado pelo FIC - Augusto dos Anjos em 2012, coordenado pela professora Maria do Socorro Silva de Aragão, com a colaboração de Ana Isabel de Souza Leão Andrade e Neide Medeiros Santos. Destina-se a pesquisadores e estudiosos da obra de José Américo. O livro “José Américo de Almeida, Uma Fotobiografia” é endereçado ao público adulto, mas pode também ser consultado por crianças e jovens. Vários exemplares deste livro foram destinados às bibliotecas públicas do Estado da Paraíba e estão disponíveis para professores e alunos do ensino médio. Para ter um melhor conhecimento da vasta produção literária de José Américo de Almeida, o leitor terá oportunidade de ler resenhas de todos os livros do escritor, acompanhar a sua trajetória política e literária, além da leitura de inúmeras cartas endereçadas ao autor de “A bagaceira” por escritores e políticos brasileiros Como podemos verificar, é leitura para todos aqueles que se interessam pela vida e obra de José Américo de Almeida. Em 2015, a literatura infantil paraibana que tem marcado presença no cenário nacional com os livros da coleção “Primeira Leitura”, uma parceria da editora Patmos com a Energisa Cultural, publicou “José Américo de Almeida em quadrinhos” com roteiro de Lourdinha Luna e ilustrações de Val Fonseca. Por essa editora, já foram publicados dez livros que procuram valorizar escritores, artistas plásticos, políticos, músicos e médicos paraibanos. O objetivo da coleção é torná-los familiares do público infantil e que as
crianças e jovens saibam quem foram os vultos biografados e o que fizeram em prol da Paraíba e dos paraibanos. Dentro desse rico universo literário, destacamos os escritores Augusto dos Anjos, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, José Américo de Almeida e Anayde Beiriz; nas artes plásticas, o pintor Pedro Américo; na política, Epitácio Pessoa, João Pessoa e José Américo de Almeida que foi escritor e político; na música, Jackson do Pandeiro e na medicina, o médico humanista Napoleão Laureano. A coleção não termina com esses nomes, proximamente teremos Vidal de Negreiros e Sivuca. É sobre a figura do literato e político José Américo de Almeida, de forma mais específica para “José Américo de Almeida em quadrinhos” (Patmos, 2015), lançado em novembro de 2015, que voltamos a nossa atenção. Durante muitos anos, Lourdinha Luna foi secretária de José Américo, datilografando os livros do autor quando ele deixou a vida política e se voltou inteiramente para a literatura. A convivência diária com o escritor deu oportunidade à roteirista de conhecer mais de perto a figura do biografado, suas preferências literárias, seus hábitos cotidianos. Para realizar este trabalho, contou com a efetiva colaboração do quadrinista Val Fonseca, exímio na arte de retratar pessoas. Val Fonseca conseguiu captar os traços mais peculiares de cada personagem dessa história viva: o biografado, a professora Júlia Verônica, Dona Alice, a mulher de José Américo e a própria roteirista. A fidelidade fisionômica de José Américo, retratado por Val Fonseca, já se evidencia na capa. O ilustrador representou os traços mais marcantes do escritor: óculos de lentes grossas para demonstrar o alto grau de miopia de que era portador, semblante sério e sereno, vestido formalmente, tudo isso condizente com as funções exercidas pelo político/escritor: Pro-
curador do Estado da Paraíba, Senador, Governador da Paraíba, Reitor da UFPB e Ministro do governo de Getúlio Vargas por dois períodos, Membro da Academia Brasileira de Letras. Na capa, no segundo plano, aparece a casa que hoje é a Fundação Casa de José Américo, última morada do biografado. Na contracapa, o ilustrador aproveitou uma foto do escritor à beira-mar olhando o horizonte ou a ponta do Cabo Branco, talvez motivo de inspiração para esta crônica que traz o título “A corrida para o mar”. Um excerto do texto reflete o que o retrato tenta traduzir: Ali está o Cabo Branco, com sua plástica monumental, prolongando-se por mais de uma milha e sofrendo um contínuo desgaste, pela erosão das ondas e dos ventos. Seus resíduos formam uma língua amarela que se estira pelas águas. No roteiro elaborado por Lourdinha Luna, a autora procurou estabelecer um diálogo entre o bisavô (José Américo) e o bisneto Guilherme. O menino deseja saber como foi a vida do bisavô. Através das perguntas do bisneto e das respostas do bisavô a história vai sendo contada. Inicialmente José Américo fala sobre sua vida de menino. Passava férias no sítio do avô Augusto Clementino. Era uma vida semelhante ao poema “Meus oitos anos”, de Casimiro de Abreu – tomava caldo de cana e subia nas árvores para colher frutas, às vezes ainda verdes. Depois veio o tempo de ir para a escola e a professora Júlia Verônica era muito severa, colocava os meninos de castigo quando desobedeciam ou não sabiam a lição. Para representar a professora Verônica, o ilustrador se valeu de uma mulher de fisionomia dura com ar de dominadora. A figura da professora toma quase todo o quadrinho. Os alunos, nessa mesma cena, aparecem pequeninos e submissos. A morte do pai, ainda na infância, mudou
a vida do menino, a mãe deixou o Engenho Olho D´Água e José Américo foi encaminhado para a casa do tio padre, Odilon Benvindo, em Areia, homem de hábitos rígidos como a professora Júlia Verônica. Morando na casa de padre Odilon, este encaminhou José Américo para o Seminário Diocesano de João Pessoa. Ficou pouco tempo, não desejava ser sacerdote, tinha outras ambições, mas aproveitou bem os ensinamentos dos padres e preparou-se para voos mais altos. Não se fez padre, passou no vestibular do curso de Direito no Recife, formou-se em 1908, foi contemporâneo de faculdade do poeta Augusto dos Anjos e seguiu a carreira jurídica, inicialmente promotor em Sousa, depois advogado em Guarabira. Desde a época de estudante do curso de Direito já revelava pendores literários, publicando alguns sonetos no jornal “A União”, de João Pessoa. Em 1912, foi chamado para ser Procurador Geral do Estado da Paraíba e ficou doze anos nessa função. Foi nesse período que conheceu Dona Alice Azevedo na casa de um tio, monsenhor Walfredo Leal. Alice era uma jovem prendada, tocava piano, era muito bonita e encantou o jovem advogado com “sua graça e virtudes”. O casamento foi realizado no mesmo ano do noivado e da união nasceram os filhos Reinaldo, Selda e José Américo Filho. Em 1928, foi convidado pelo presidente da Estado (denominação que se dava antigamente ao governador) João Pessoa para exercer as funções de Secretário de Segurança Pública. Era o braço forte do governo. Vieram a morte de João Pessoa, a Revolução de 30 e as coisas tomaram outro rumo. Passo a passo a roteirista vai explicando, como se fosse José Américo falando ao bisneto, as suas atividades na vida política e literária. Tanto na política como na literatura foi um vencedor, exerceu os cargos mais importantes no legislativo e no executivo: senador e governador. Na literatura, conseguiu
prêmios por seus livros, ganhou o Troféu Juca Pato, pertenceu à Academia Paraibana de Letras (APL) e à Academia Brasileira de Letras (ABL). Quando Ministro da Viação e Obras Públicas, no primeiro governo de Getúlio Vargas, voltou seu olhar para o Nordeste, construiu inúmeros açudes e abriu muitas estradas, procurando diminuir o sofrimento dos seus conterrâneos que padeciam de fome e de sede. Sempre preocupado com o destino da educação na Paraíba, quando foi governador, criou colégios estaduais em vários municípios paraibanos e foi um dos fundadores da Universidade da Paraíba, transformada, depois, em Universidade Federal da Paraíba. Foi Reitor da Universidade da Paraíba, em seus primeiros anos. No hall da reitoria da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, encontra-se o busto de José Américo e a inscrição dessa frase lapidar pronunciada por José Américo na inauguração do campus de João Pessoa: Eu vos dei as raízes, outros vos darão asas e o selo da perpetuidade. Na Fundação Casa de José Américo, situada na Av. Cabo Branco, 3.336, encontra-se o rico arquivo de José Américo que abrange correspondências, artigos de jornais, revistas, fotografias, discursos, textos que proporcionam ainda muitas pesquisas; uma biblioteca; o Museu Casa de José Américo, aberto à visitação pública, o mausoléu onde repousam os restos mortais de José Américo e de sua esposa, Alice Almeida, tudo isso disponível para visitas e pesquisas de professores e alunos. Nos livros escritos por José Américo e na vasta fortuna crítica do escritor e político paraibano, professores e alunos das escolas de nível fundamental e médio encontram um vasto material que pode ser explorado. “José Américo de Almeida em quadrinhos” (Ed. Patmos) é, porém, a porta de entrada para outras leituras. g
REFERÊNCIAS ALMEIDA, José Américo de. Cidade de João Pessoa. Roteiro de ontem e de hoje. João Pessoa: Prefeitura Municipal de João Pessoa, 2005, 40p. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. et al. Cartilha Literária, José Américo de Almeida. João Pessoa: Fundação Casa de José Américo/ Ministério da Educação, 1987, 159p. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão Andrade. José Américo de Almeida, Uma Fotobiografia. João Pessoa: Ideia/FIC- Augusto dos Anjos, 2014, 678p. LUNA, Lourdinha. José Américo de Almeida em quadrinhos. Il. Val Fonseca. João Pessoa: Patmos, 2015, 34p. Maio/Junho/2016 |
37
SENTIMENTO RELIGIOSO A FÉ CRISTÃ EM JOSÉ AMÉRICO Lourdinha Luna
“A fé é um tesouro de almas eleitas.” A sentença é de autoria de José Américo de Almeida que se sentia possuidor desse patrimônio espiritual. Nos momentos mais difíceis de sua vida pública e privada, encontrou no aforismo religioso o guia e amparo para vencer as vicissitudes. Se pudéssemos emoldurar a primeira virtude teologal, ela estaria à mostra, em paredes da mansão do Cabo Branco, como defesa e proteção,por atos e decisões do “Ministro das Secas”, pseudônimo que lhe outorgou o Ceará. Ninguém é obrigado a crer. A religião acende uma flama no coração, quando a alma está aberta para receber a graça. Em José Américo a confiança na clemência divina esteve sempre atuante em suas ações de menor ou maior porte. Sem ser um frequentador assíduo dos atos litúrgicos, quando o fazia era com respeito e contrição. Pouco ia a missa limitando-se às votivas e às de 7º dia por amigos. Não deixava de assistir a de Natal, oficiada pelo papa e transmitida pela televisão, que eu gravava para ele ver no outro dia. Quando seminarista, segundo dizia, frequentara o Santo Sacrifício pelo resto dos seus dias, portanto, tinha em caixa uma reserva de indulgências satisfatória. A primeira demonstração de força da fé, emanada do biografado, teve origem na prece encaminhada ao sobrenatural, para que não lhe permitisse ser um sacerdote sem vocação. Faltava-lhe aptidão para a vida clerical, pela ausência total da inclinação para os votos monásticos. Sem sentir a tendência natural do espirito e da vontade para continuar os estudos eclesiásticos, comunicou ao Provedor da Escola Sacra seu desinteresse para a missão que lhe fora imposta pelo vigário Odilon, seu tio e tutor, após a morte de Inácio Augusto de Almeida e Albuquerque, seu pai. A desistência do aluno-seminarista foi levada ao arcebispo da Paraíba, dom
38
| Maio/junho/2016
Adauto Aurélio de Miranda Henriques, seu padrinho de Crisma e conterrâneo, que o liberou da carreira eclesial com a sentença: - “Ele terá outras missões!” Palavras proféticas do nosso Pastor Ecumênico que se realizaria em décadas de trabalhos e disposição para as realizações oriundas de suas lutas humanas e sociais. José Américo iria mostrar em circunstâncias adversas que servir ao próximo o abeirava do Evangelho, sem a carência do sacramento da ordenação. Na seca de três anos, iniciada em 1930, com inverno escasso, em 1931, de pouca chuva e variável, em 1932, a estiagem prolongada foi mais tormentosa e angustiante. Para informar sobre o sofrer de homens e animais, naquela calamidade, transcrevo a introdução do improviso do poeta popular Dimas Batista: De trinta a seca inconstante Não há quem magoas não sinta Trinta e hum foi como trinta Trinta e dois mais torturante Enquanto o sol causticante Tostava a face do chão Surgiu por Deus um Cristão Apagando a labareda José Américo de Almeida O salvador do Sertão. Como Ministro de Viação e Obras Públicas do governo Provisório de Getúlio Vargas, teve por dever de oficio conduzir os feitos para amenizar o sofrimento dos sem água, sem pão e sem trabalho, no Nordeste. No começo de sua ação pediu a sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, que o guiasse em sua marcha, para que errasse o menos possível, em seu apostolado de salvação dos seus irmãos nordestinos. Seu desejo maior dirigia-se a mitigar a dor dos que sofriam com as agruras do clima avaro.
O primeiro passo ao chegar no Ceará foi visitar o Juazeiro do Norte e solicitar do líder carismático, Padre Cicero Romão Batista, que contivesse o êxodo dos retirantes para o litoral e teve no “santo” do povo a ajuda desejada. Passados anos da batalha encetada naquela época, ao se referir aos retirantes, que deixaram para trás o pouco que possuíam e sem destino palmilhavam as estradas poeirentas à procura de refrigério, o narrador ainda se emocionava ao relembrar a rude jornada. Sem forçar a prodigiosa mente, descrevia a cena em que os famintos ao “triturarem o pão, parecia comerem as mãos, tal a sofreguidão em matar a fome”. Com a emoção que extravasava do seu ser, recordava quando, em Santa Luzia, cumpriu a promessa do Presidente João Pessoa ao amigo comum Manuel Emiliano de Medeiros, ao prometer o Açude que serviria à cidade. Ao anunciar:“quem tiver uma enxada, uma foice, um facão, uma quicé de pica fumo, esteja, amanhã cedo, para o desmatamento do terreno do reservatório”. Os instrumentos agrários se confraternizaram no alto e as lágrimas molharam a terra seca e mais ainda o rosto do Ministro José Américo, que não pôde conter o pranto. Jornalistas de países da América do Sul e do Brasil, amigos ou inimigos do governo Vargas, interpelaram o Ministro: “O Senhor faz obras no Nordeste,sem licitação.” A resposta estava na ponta da língua: “a fome não espera.” E nada mais disse, porque não lhes deu a confiança de mais informações. Não podia adiar com expediente administrativo, o quadro dantesco de miséria, com homens, mulheres e crianças esqueléticos, arrastando-se pelas estradas, só comparáveis aos prisioneiros dos campos de concentração de Treblinka e
Auschwitz, na Alemanha na guerra de 1939/45, que foram mostrados anos depois. Outro momento em que a fé foi soberana diz respeito ao revés sofrido no naufrágio em águas da baía de São Salvador, no anoitecer de 26 de abril de 1932, quando regressava ao Rio de Janeiro, para comunicar ao Presidente Getúlio Vargas sobre as providências adotadas, até então, e angariar mais recursos, para o combate ao flagelo. A comitiva, composta de quatro passageiros e três tripulantes, partiu do ancoradouro do Jacaré (Rio Sanhauá) no Varadouro, na capital da Paraíba, no Savoia-3, um hidro já saturado pelo uso em outras travessias. Beiravam o litoral a 90 milhas horárias porque o vento leste não permitia maior velocidade. De vez em quando um tranco sacudia a aeronave e um cheiro de borracha queimada invadia a nave. Nessa situação costearam Itamaracá, Olinda, Recife, Santo Agostinho, Porto Calvo. Já divisavam os contornos de Maceió, quando o motor superior sofreu considerável queda de rotação e rastejando pousou na Lagoa da Morte, no flutuante da Panair. Um começo de incêndio assustou os passageiros. Realizados os reparos levantaram voo às 15 horas. A uma altura de 500 metros podiam identificar o Rio São Francisco transbordando, porque em suas nascentes a chuva fora copiosa. Porém, a abundância fluvial, naquele momento, não podia favorecer o Nordeste, pela carência de um plano de irrigação para a zona castigada pela estiagem. Na enseada de Itapagipe, em Salvador, o hidroavião desceu ao fundo do mar. Sucumbiu nesse naufrágio o Engenheiro Antenor Navarro, o radiotelegrafista e o Diretor da IFOCS, Engenheiro Lima Campos, braço direito do Ministro José Américo, nessa empreitada e em outras do Ministério. Era mais um luto para a Paraíba que em menos de dois anos, desfalcara-se de 5 filhos da melhor estirpe: João da Mata, João Pessoa, João Dantas, João Suassuna e encerrando os acontecimentos lutuosos o já referido Interventor da Paraíba, Antenor Navarro. Sem saber nadar, ferido e sangrando pelas fraturas provocadas pelo acidente, emergiu do fundo do golfo amparado pela excelsa e milagrosa intercessão do Alto. Ao encontrar um fio elétrico, do apa-
relho sinistrado e agarrado a ele, foi subindo até alcançar os destroços de sua asa, onde se sentou à espera do socorro. De repente ouviu um grito angustiado chamando por ele. Era o piloto Dante de Matos que, com o pé esmigalhado, nadava à procura dos náufragos. “Estou a salvo da agonia dos afogados. Salve os outros.”. Foi a resposta tranquilizadora do ministro acidentado. O estrondo do hidro, foi o mensageiro para avisar aos amigos que aguardavam a caravana no Porto, do insucesso da viagem. Do ancoradouro, os holofotes avisavam aos pescadores da costa para a busca e salvamento dos feridos. A noite sem lua fazia-se mais escura. Mesmo de longe, sem óculos, que ficara no fundo do mar, o fraturado avistava a iluminação distante da cidade. Os sinos badalavam nas igrejas. Um jangadeiro recolheu o ensanguentado José Américo. Nessa hora fatídica, na memória do que quase soçobrou, evidenciaram-se as cenas do fogaréu que deixara ardendo e pediu a proteção divina para as pessoas e os campos da terra esturricada pelo clima impiedoso. No hospital baiano, José Américo, passou quatro meses sob os cuidados do Diretor do nosocômio, o médico Edgar Santos e do paraibano Lafaiete Coutinho, cunhado do tabelião de João Pessoa, Eunapio Torres, que se esforçaram para lhe devolver a vida... E ainda teve tino para, do leito hospitalar, com a ajuda de sua valorosa equipe, administrar o Ministério de Viação e Obras Públicas, no Rio de Janeiro. Quando governador do Estado, em 1952, José Américo deparou-se com outra visita mesquinha da seca emblemática. Ao receber a Virgem Peregrina de Fátima, que naquele ano fazia sua inserção no Brasil, para inocular nos brasileiros a devoção à santíssima mãe de Jesus, pôs à vista sua fé. Na reverência à ilustre visitante, o governador pronunciou dois discursos, um de recepção à sua vinda de Portugal, o outro de despedida. Qualquer das homilias poderia receber o “imprimatur” da Igreja Católica, para ser declamada como oração oficial do catolicismo. Na alocução do Chefe de Estado da Paraíba, no Palácio da Redenção, pincei os excertos que ofereço aos leitores. “Sede benvinda Nossa Senhora de Fátima, excelsa portadora, nesta hora de penúria e desassossego dos povos, de
uma exortação de fé, que é o bálsamo infalível dos espíritos. Conheceis, ó Santa Peregrina, os caminhos do mundo. Vinde percorrendo os logradouros que se esgotam e apavoram. Há os que têm fome e têm medo. A terra exausta já não dá o que comer. Domina por toda parte o terror da ruina total, o sacrifício das gerações que antes de se curarem das últimas feridas, ainda cobertas de cicatrizes, pressentem a aproximação de outra catástrofe. Invade os corações o pânico de outras eras, de outras confusões e de outras sangueiras. Como que se escuta o tropel das arremetidas carniceiras que deixaram uma herança de maus instintos como estiletes de novas devastações. O futuro era o aceno promissor o convite de dias melhores, o alvo das esperanças mais esquivas e passou a ser o pavor do desconhecido, o caos em que todas as ilusões poderão abismar-se. Tudo marcha como se fosse a palmilhar um campo de vulcões adormecidos, entre pressentimentos e sobressaltos. Há de um lado o ar opressivo de horizontes toldados, perspectivas inquietadoras, sinal de destruição. E de outro lado a onda inativa, a renúncia, o abandono, a rendição diante do caso perdido, do suicídio de um mundo sem coragem de salvar-se. E como uma trágica volúpia, a sofreguidão de aproveitar os restos do festim. Apetites que devoraram tudo, até as almas. Um utilitarismo insaciável a sugar as últimas gotas de sangue do organismo desfeito. Mas no meio da perdição há virtudes vigilantes. Há um patrimônio espiritual a reagir contra a dissolução mortal. Ficou o eterno. O que não se destrói é uma reserva da eternidade, inesgotável porque poreja do céu, como um orvalho matinal a refrescar a floração das almas. Convocai, Nossa Senhora de Fátima, todas as forças morais que emergem do sentimento religioso para que o homem possa ser melhor, a sociedade se purifique e as nações se pacifiquem. Para que a humanidade não se afunde na várzea do vicio e do pecado e se derrame o sangue dos inocentes.” Outros instantes de angustia o aguardavam na idade provecta. Se viver muito tem seus percalços, José Américo viu não só seus caminhos como o seu lar despovoar-se. Primeiro partiu sua companheira das horas certas e Maio/Junho/2016 |
39
incertas, Alice Almeida, de um mal hoje vencido com regime alimentar e sol. E se foi quando muito ainda tinha a oferecer ao esposo, filhos e netos e bisnetos. Passados alguns anos foi surpreendido com a perda do seu homônimo – José Américo Filho – numa maturidade bem sucedida, quando, com a família e um casal amigo, para desparecer, dirigia-se ao sul, para minorar a dor da perda, por acidente, do primogênito do casal –Américo/Miriam, batizado como Marcelo.
40
| Maio/junho/2016
Nada mais normal do que um filho acompanhar os pais à última morada, o inverso, porém, é uma agressão à alma sensível e compassiva dos genitores. A devoção ao sobrenatural, a promessa do reencontro noutro plano, tudo isso auxiliou o genitor idoso a dissipar a aflição moral que a farmácia não alivia. A vida parecia ter terminado, para quem a amava acima de todas as coisas. Mas, reagiu e viveu até a manhã de 10 de março de 1980, quando desejou que Vésper
fosse a vela em sua mão. Reconheceu o instante final e avisou: “Está tudo terminando...” A chuva que era a alegria, por excelência, de sua vida, desde que se dizia rural, o levou ao encontro daqueles a quem amou. Com certeza, sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, o aguardava para recebê-lo, festivamente, e coroá-lo, pelos serviços que prestou na terra a seus irmãos desvalidos. g
MEMÓRIA O JOSÉ AMÉRICO QUE EU LEMBRO Ramalho Leite
Foi a primeira vez que ouvi falar em José Américo de Almeida, ou Zé Américo, como preferia o povão. Tinha sete anos de idade quando ele aportou na minha vila, em campanha para o governo do Estado. Meu pai, Arlindo Rodrigues Ramalho, fora candidato a vereador na primeira eleição pós-redemocratização do País e era o representante local da União Democrática Nacional. Reuniu muitos amigos, para, de longe, na calçada alta do Grupo Escolar, apreciar a visita do candidato à casa de José Amâncio Ramalho. Zé Américo fora colega do dono da casa, na turma de 1908 da Faculdade de Direito do Recife. Com ele estavam Rui Carneiro, candidato ao Senado; Humberto Lucena, que pleiteava vaga na Assembléia Legislativa e Pedro Augusto de Almeida, eleito deputado na Constituinte de 1947 e candidato à reeleição. (Viria a falecer após ser diplomado para o exercício de novo mandato). Políticos dos municípios vizinhos também compunham a comitiva. À época, José Américo renunciara à presidência da UDN e, como senador, disputava o cargo de governador da Paraíba. A Coligação Democrática Paraibana era resultado de um acordo entre Rui Carneiro, que representava o Partido Social Democrático - PSD, e José Américo. Muita gente da UDN preferiu acompanhar Zé Américo, a exemplo de Pedro de Almeida, Ivan Bichara e Nominando Diniz, para lembrar os mais conhecidos, todos dissidentes udenistas. Foi, portanto, com uma UDN dividida, que o então deputado Argemiro de Figueiredo enfrentou as urnas nas eleições de 1950. Para reforçar sua posição, contava o político campinense com o apoio ostensivo dos governos federal e estadual, este, chefiado por José Targino, em função da renúncia do governador Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo e aquele, tendo como homem forte, justamente, o candidato ao Senado, José Pereira Lira, falando em nome do presidente Eurico Gaspar Dutra. Para José Américo, foi a “campanha mais violenta que eu ganhei”. E conta: “Fiz
a campanha mais vivo e vigoroso do que nunca. Varava o sertão com o sol batendo na cara, comendo poeira, como nos dias combativos de 1930. Havia conflitos. Derramou-se sangue nas ruas. Jogaram lama na minha comitiva, antes que eu passasse, para saltar do carro e desafiar esses selvagens. Nomearam, demitiram. Fizeram tudo isso e perderam feio”. Na Vila de Borborema ninguém jogou lama ou apupou a comitiva do candidato. Meu pai, presente com os seus, mantinha a ordem e controlava os mais exaltados. A briga dele era local, deixasse a comitiva ir embora que a UDN soltar-se-ia. E assim foi feito. Bastou o último visitante tomar seu veículo e a ala feminina irrompeu cantando um dos hinos do argemirismo, que ainda tenho na memória, uma paródia com a música de Taí, um grande sucesso de Joubert de Carvalho, gravado por Carmen Miranda. Minhas tias Helena de Moura Leite e Ivanilda Pinto Ramalho, que haviam levado seus alunos da escola de adultos para a rua, puxaram a musica: “Taí, Argemiro tem que ser governador/com Renato seu maior batalhador/Zé de Almeida, o seu bonde vai errado, sim senhor!/Pereira Lira vai para o senado/que é homem forte e muito estimado/na vibração da grande vitória/exalta a glória do seu passado/Taí, Argemiro tem que ser governador. Não foi não, o bonde de Zé de Almeida não correu errado, mas célere em direção ao Palácio da Redenção. Perderam Argemiro, seu vice Renato Ribeiro Coutinho e o “cachimbão”, Pereira Lira, que chefiara a Casa Civil do governo Dutra e foi por este contemplado, com uma cadeira no Tribunal de Contas da União. Essa campanha ao governo mexeu com os paraibanos e jamais seria esquecida, em virtude do comício da Praça da Bandeira, em Campina Grande, que terminou em tragédia com mortos e feridos. Os lenços brancos de Zé Américo e os amarelos de Argemiro ornavam o pescoço dos seus correligionários. Até em Bananeiras essa rivalidade chegou,
dividindo famílias e separando irmãos. Exemplo disso foi contado por Maurilio Almeida: dona Donana, sua avó, portanto sogra de Pedro de Almeida, seu pai e candidato a deputado estadual, era irmã de Dona Dondon, avó de Clovis Bezerra, candidato dos amarelos. Certo dia, ao voltar da missa dominical, dona Donana avisou que não mais visitaria sua irmã Dondon, enquanto perdurasse a campanha política. E a razão foi explicada: - Ela não está nem um pouco resfriada, mas usou um lenço amarelo para assoar o nariz, só para me afrontar... Pedro Augusto de Almeida, não tivesse falecido em dezembro daquele ano de 1950, certamente, sob a liderança de Ivan Bichara, formaria na bancada americista e ingressaria como outros dissidentes da UDN, no nascente Partido Libertador. Sua morte fez ascender logo no primeiro dia de mandato, em 02 de fevereiro de 1951, o primeiro suplente Humberto Coutinho de Lucena que ali dava os primeiros passos para sua respeitável carreira política. O governo de Zé Américo, na casa de um político udenista do interior, acumulou uma coleção de histórias de perseguições. Nunca ouvi boas referências. As minhas tias que puxaram o hino de Argemiro, por exemplo, foram exoneradas nos primeiros dias de governo. Hoje eu diria que se cumpriram exigências da política local, mas na minha alma de criança, ficou a marca de um governo que tirava o emprego de quem precisava. Por isso, a vida inteira, sempre olhei para o solitário de Tambaú com um pé atrás. Apesar dessa antipatia herdada do passado, lí quase tudo que publicou. E quanto aprendi com seus escritos! Sua vida é um exemplo que não poderia ser escondido das gerações que o sucederam. Por sua longevidade, seu modelo de homem público e escritor, também serviram aos seus contemporâneos. Era um vaidoso? Sim, mas tinha motivos para sê-lo. Não tive o privilégio da sua convivência. Uma única vez fui à sua residência Maio/Junho/2016 |
41
acompanhando o prefeito Dorgival Terceiro Neto. O município projetou uma avenida ao pé do morro do Cabo Branco, para possibilitar o tráfego de mão única na Beira Mar. Essa avenida de retorno teria que cortar um pedaço de todos os quintais das casas defronte à praia. Só tinha quintal de gente importante. O Prefeito resolveu visitar primeiro o maior de todos, e expôs ao Ministro a sua idéia e a importância da obra para a cidade. Não quero nada de graça, vou desapropriar, indenizar e pagar, explicou o edil. O ministro ouviu tudo calado, fez algumas perguntas e se satisfez com os detalhes que queria conhecer. - Não quero pagamento. Pode lançar
42
| Maio/junho/2016
mão do pedaço de terreno necessário. Só quero que salve os meus pés de jabuticaba. O prefeito lembrou de que a jabuticaba só produz depois de trinta anos. - Sei disso, mas lhe garanto que vou colhê-las! A aquiescência do Ministro desarmou o espírito dos demais moradores da orla. Todos concordaram com a nova avenida que os terminou beneficiando com uma entrada pelos fundos de suas casas, Pelo homem que foi, nas posições que ocupou e honrou, Zé Américo levou o nome da Paraíba aos píncaros. Por isso, repito, tinha motivos para se orgulhar da sua história, daí porque, tornou célebre e até folclórica
a sua extrema vaidade, mesmo tentando escondê-la, permanentemente. Aqui e acolá, porém, deixava escorregar... Quando fez as pazes com Getulio Vargas e deixou o governo da Paraíba para ser novamente ministro da Viação e Obras Públicas, ao chegar ao Rio de Janeiro, cercado por jornalistas, foi indagado: - Por que veio? - Por que me chamaram. Porque precisam de mim! Ao assumir a cadeira da imortalidade, na Academia Brasileira de Letras, não se fez de rogado: - Penetro nesta casa como quem acha o seu lugar. g
HOMENAGEM HOMEM TÍPICO DO NORDESTE(*) Octacílio Nóbrega de Queiroz
Em face da honrosa indicação da liderança do Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – cumpre-me traduzir, nesta sessão da Câmara dos Deputados, em memória do Ministro José Américo de Almeida, recentemente falecido em João Pessoa (PB), as expressões de seu pesar e, ainda, de integral solidariedade a esta homenagem póstuma, sem dúvida, de todos os componentes deste Legislativo e, em particular, de nossa bancada. Trata-se, por elementar evidência, de reverenciar, de homenagear, com o formalismo das obrigações regimentais, nesta Casa dos representantes do povo brasileiro, a memória do político de projeção nacional, que ele foi ao curso de vários decênios da vida republicana deste País, de Ministro de Estado e do Tribunal de Contas da União, de Governador da Paraíba, de Senador da República, de candidato à Presidência, de escritor de renome e membro da Academia Brasileira de Letras, em resumo, de um dos mais raros e nobres estadistas desta Nação. Sem dúvida, José Américo atingiu, pelo seu alto valor, pela inteligência e a coragem, merecidamente a tudo isso, o que, de logo, poderia justificar plenamente esta solenidade. Mas, a propósito, em sessão anterior, tive a oportunidade de dizer, surpreendido com a notícia de seu falecimento, que o seu nome ocupava páginas de nossa História republicana, pelo civismo, o brilho e a combatividade democrática, a ação administrativa ou política, honesta e edificante, ao lado de uma inteligência criativa, original e privilegiada até mesmo ao término de sua longa existência, quase centenária. E adiantava: homem típico do Nordeste, espírito polêmico e combativo, dele já se disse, muitas vezes, que foi e, em verdade, continua sendo um dos seus intérpretes mais autênticos, a partir de sua criação romanesca (*)
Foto Arquivo da FCJA
José Américo de Almeida
e artística de A Bagaceira, livro que marcou época em seguida à eclosão do Movimento Modernista e da insólita revelação do regionalismo literário nordestino. Era também um estudioso profundo dos problemas da Paraíba e do Nordeste, da Terra e do Homem. Por isso mesmo pôde imprimir objetivamente o timbre inconfundível de sua competência, de sua sensibilidade e de seu amplo conhecimento da região sofrida, secularmente martirizada, ao desempenho das atividades de Ministro da Viação por duas vezes, e durante o período governamental à frente dos destinos de seu Estado. Faleceu nonagenário, lúcido e consciente, espantosamente lúcido à hora em que as sombras da eterna viagem caíam-lhe como sopro fatal a apagar a viva centelha do espírito. Mas, em maior análise de sua personalidade política e literária, podem-se adiantar algumas outras breves considerações,
neste limitado instante, embora evocativo e solene. José Américo, nascido em Areia, na Paraíba, a 10 de fevereiro de 1887, herdaria, de logo, talvez, a tradição ilustre, sem dúvida, de sua cidade natal, erguida no mais alto dorso do peneplano da Borborema, que amplamente informa a geomorfologia paraibana, dividindo-a em várias sub-regiões. Tradição de que se devia àquela sua pequenina urbs interiorana, toda uma constelação de notáveis paraibanos. De políticos eminentes, professores, latinistas, oradores, sacerdotes até a alta hierarquia eclesiástica, governadores do Estado, artistas – a exemplo maior do pintor Pedro Américo, enaltecido nome da arte nacional, notadamente durante o Segundo Reinado. Pequena cidade alcantilada, de clima ameno, à margem dos incendidos sóis das áreas do Curimataú e dos Cariris Velhos, de economia à base de roças e, sobretudo, dos
Discurso pronunciado na sessão de 26 de março de 1980, da Câmara dos Deputados, em homengaem a José Américo de Almeida, falando em nome do Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
Maio/Junho/2016 |
43
engenhos de rapadura, do eito das lavouras de cana, mas que também se bateu nas revoluções libertárias de 1824 e de 1848 e que foi a primeira, na Paraíba, a emancipar os escravos. Foi esse, por óbvia conclusão, o primeiro cenário físico, familiar ou tradicional de infância que, decerto, imprimiu em José Américo aqueles indeléveis traços, o “pano de fundo dos longes da vida” de que nos fala Joaquim Nabuco, nas páginas clássicas da Minha Formação, bem revelado em maior romance e em suas memórias. Depois, o Seminário, o Lyceu Paraibano, a legendária Faculdade de Direito do Recife. No entanto, vinculou-se, bem jovem, à vida pública. Promotor de Justiça, na Capital do Estado, quando era um dos dominadores da política local o tio, Monsenhor Walfredo Leal. E era possuído, de certo modo, aos vinte anos, das angústias literárias da mocidade de seu tempo a que Augusto dos Anjos, conterrâneo e colega de Faculdade, elevou ao paroxismo nos versos mais tristes e estranhos da poesia brasileira. Assim, poeta, José Américo, versejava romanticamente pela imprensa, à data aniversária: Passam-se, como um pesadelo, os anos: Eu, que vivi oitenta e uma estações, Tenho, em vez de ilusões, desilusões, Deixando enganos pelos desenganos! Para que o orgulho e o sofrimento humanos? Por que Deus disse tantas maldições? ................................................................ ................................................................ Mas do Passado quase nada resta! É que perdura a construção da Dor. A passagem dos anos, de lutas partidárias, notadamente aquela famosa batalha eleitoral entre epitacistas e walfredistas, os bacuraus e os condores, duas correntes estaduais, de 1914 a 1915, em luta pelo Parlamento e o domínio político do Estado, iria colocar Epitácio Pessoa à frente dos destinos da Paraíba, por longa escalada do tempo. José Américo fez-lhe oposição. Depois, voltou para a vida forense, ao jornalismo e à literatura, publicando, nos anos vinte, a novela Reflexões de uma cabra. Iniciava a brilhante trajetória nas letras da Província e, em 1928, com A Bagaceira, no cenário nacional. Não pretendo ir mais adiante relembrando outros fatos de sua atuação na vida pública e cultural da Paraíba, porquanto, a esta altura, sobrelevam a tudo isso os acontecimentos da fase convulsa de 1930 e, a seguir, a sua projeção no cenário nacional, quase
44
| Maio/junho/2016
que até aos dias presentes, já como “o solitário da praia de Tambaú”, das reportagens jornalísticas. O Presidente João Pessoa, entretanto, vindo governar o Estado, convidou José Américo para Secretário de seu governo. Toda a paisagem política dali passou a ser revolvida. Velhas oligarquias, fieis e tradicionais ao epitacismo, foram afetadas em seu prestígio, antes inabalável. Novas decisões administrativas, financeiras e no domínio da aplicação da ordem pública e da Justiça foram implantadas. O Erário passou a maiores rendas, o funcionalismo a melhores condições e obras públicas foram atacadas ou realizadas. Mas, veio a sucessão presidencial da República. A Paraíba negou apoio à candidatura oficial de Júlio Prestes, e a luta eleitoral entre liberais e perrepistas passou ali à luta armada com a rebelião de Princesa. Eleito Deputado Federal, José Américo teve o seu mandato deputado juntamente a todos os companheiros de chapas da Aliança Liberal. Claro está que, na brevidade do tempo, não irei recompor toda a extensa série de fatos e de incidentes históricos que levaram a Paraíba, àquela agitada época, a uma situação excepcional perante o País. Mas, por último, deu-se o assassinato do Presidente, em 26 de julho de 1930. Foi isso, reconhecidamente, o estopim que deflagrou a Revolução Liberal de 1930. José Américo tornou-se o líder revolucionário do Nordeste. Depois, Ministro da Viação, enfrentou a terrível seca de 1932, que abrasou toda a região nordestina, As suas providências, a decisiva e infatigável determinação que assumiu, junto ao Presidente Getúlio Vargas, de acudir os seus irmãos nordestinos e flagelados, transformou-o em “salvador do povo do sertão”. Semelhante à canção que, em campanha política, acirrada, muitos anos depois, se repetia, na Paraíba: Como outrora em 32, (bis) salvou o povo do sertão. Traz, agora, à nossa gente, (bis) a esperança e a redenção. Outra fase significativa, mas de projeção nacional, foi sua indicação como candidato à Presidência da República, em 1937. Frustrado pelo golpe que instituiu o Estado Novo, cujos resultados foram os mais lamentáveis para a democracia e a liberdade, volta José Américo à vida política nacional, em 1945, rompendo a estrutura rígida do sistema ditatorial e da censura. Governador da Paraíba, período 1951/1955, e, novamente, Ministro da Via-
ção, são estes, em breves linhas, acredito que alguns dos pontos culminantes de sua presença lúcida, honrada, polêmica e combativa na vida política nacional. Frases como “A política dos ricos já está feita. Venho fazer a política dos pobres” – reeditavam, decerto, aquele famoso dito, que lhe fora atribuído, em 1937, e glosado por todo o País, assombrando a rica burguesia de São Paulo: “Eu sei onde está o dinheiro”. Voltava-se ele, no entanto, sempre, ao combate contra a miséria de nossas populações, à procura de soluções e, assim, em 1949, dizia ao Jornal de Debates: “Reconheço que a nossa economia agrária é ainda semifeudal e responsável, mais do que pela pobreza do povo e do Brasil, pela própria decadência física da raça subnutrida”. E, como afirmação de um democrata sem tergiversações, durante o Governo Dutra, manifestou-se contrário à cassação do mandato do Senador Luiz Carlos Prestes e de parlamentares comunistas, embora não fosse esquerdista. Não obstante a política tenha absorvido grande parte de sua edificante existência, não poderia omitir, nestas palavras, a importância da obra literária de José Américo, outro aspecto de suas excepcionais qualidades de inteligência. A Paraíba e seus problemas, a despeito do tempo já passado, é um livro de significação básica não só para o Estado da Paraíba, mas para o Nordeste e, por que não dizê-lo, para o País. Sente-se de sua leitura a influência do gênio de Euclides da Cunha, de Os Sertões. Até por sua própria divisão em capítulos, de logo, ressumbra, sem plágios, o conhecimento profundo da epopeia euclideana. Terra ignota, o Martírio, o Abandono são capítulos, assim, ao lado de trechos dessa natureza: “O sertanejo é um lutador. Blindado de uma coragem serena, não se teme da própria natureza hostil que o envolve, a quanto e quando, em círculo de fogo. É o centauro das corridas temerárias, destro e imperturbável”. Semelhante a muitas frases como estas de A Bagaceira: “Os ocasos congestos entravam pelas trevas em nódoas sanguíneas. Sombras férvidas, como um cinzeiro em brasas”. “Um derrame de luz exaltada que parecia o sol fulminante derretido nos seus ardores”. Ou ainda, agora, para retratar a secular exploração rural dos trabalhadores do Nordeste:
“E saiu, levando os cacarecos num braçado e 400 anos de servilismo na massa do sangue”. Há outros e conhecidos livros de José Américo – inclusive as duas novelas -, Boqueirão e Coiteiros, novelas do sertão, tendo como back-ground o cangaço e os primeiros contatos da civilização tecnológica com o meio retardado. Trabalhos históricos como Ocasos de sangue e Ano do Nego reportam-se à morte do Presidente João Pessoa e ao período pré-revolucionário de 30. Trabalhos sobre suas atividades administrativas no Ministério da Viação ou à frente do Governo da Paraíba. Artigos polêmicos, literários e de jornal, incontáveis, na imprensa paraibana ou nacional, discursos acadêmicos – não se pode dar no momento, um exato sumário de tudo isso. As memórias Antes que me esqueça, divulgadas nos seus últimos dias. Era essencialmente como sempre pretendeu, desde a infância, um homem de letras, no sentido real da expressão; o amor à causa sagrada do bem público o levou à atividade política, intensa e absorvente. E, no entanto, se o regionalismo literário exauriu-se – o que a crítica mais recente poderá visualizar na obra ideologicamente declinante de um Gilberto Freyre, para falar de um de seus maiores representantes -, não se poderia deixar de exaltar sempre, mesmo que se situe entre aqueles da “família, grupo imóvel, mas sempre fixa”, de Carlos Drumond de Andrade, o nome ou o romance de José Américo de Almeida.
A Bagaceira manteve e continuará tendo uma importância ímpar para a ficção brasileira, semelhante a livros de outras grandes individualidades latinoamericanas, continentais, a exemplo de Ramon Gallegos, na Colômbia, como Dona Bárbara, publicado pela primeira vez em 1929 (A Bagaceira saiu em 1928), de José Hernandez, do Uruguai, com La Vuelta de Martin Fierro. Semelhanças, por outra, ao que o livro famoso do argentino Sarmiento, Facundo, representa para Os Sertões, de Euclides da Cunha, o primeiro datando de 1845. São todos de uma indiscutível perenidade, traços de vidas humanas ou de agrupamentos sociais, moldados em relevo de sangue, de crueldade e violências sobre a paisagem bárbara do continente, pelo poder criativo e original de seus autores, que honram a cultura dos países a que pertencem. *** Há sempre nos discursos, quer parlamentares ou não, o dever da peroração, de encerrá-los, enfim, com frases eloqüentes, cálidas, bem ressoantes. Concluo estas palavras, não obstante os deveres da retórica e dos bons tribunos, apenas com duas referências. A primeira é parte do que disse, em sua homília, o Arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, no sepultamento do estadista paraibano, em João Pessoa: “A classe política deve mirar-se em José Américo como um modelo, não para ser repetido, mas para ser fonte de inspiração, a
fim de que possa dar sua melhor contribuição aos destinos do País”. Nesta sessão de hoje, diria igualmente que essa mesma fonte de inspiração, de civismo, de dedicação ao bem comum, deve estar bem viva na consciência de todos, não somente dos parlamentares e dos responsáveis pelos destinos desta sofrida e grande Nação, mas ainda perante os jovens, responsáveis no amanhã, pelo que se avizinha, com todas as suas indagações, dúvidas, todavia, com fundadas esperanças de justiça, na luta pela emancipação econômica e social do povo brasileiro, pela democracia e a liberdade. A outra, também em relação a José Américo, reporta-se ao que se poderia entender como símbolo a fixar-se na tradição e no tempo. Havia em Areia, a sua cidade natal, uma gigantesca árvore, imensa, inundando a paisagem urbana com a exuberância de seus ramos, de seu impressionante porte, de ancestral milenário da flora brasileira. “Era o céu verde da cidade”, como disse ele nas páginas de A Bagaceira, e motivo de culto quase druídico da população. Ao povo da Paraíba, ao Nordeste e ao País, a presença intelectual, política, espiritual e humana de José Américo continuará à semelhança do que, na pequenina Areia, durante muitos e muitos anos, representava, na ordem física e natural, aquela imensa árvore. E, da floresta de tantos e altos valores da Paraíba, há de se descobrir sempre o nome de José Américo. g
Maio/Junho/2016 |
45
ANTES QUE ME ESQUEÇA DESTINO E HISTÓRIA SOCIAL EM ANTES QUE ME ESQUEÇA José Octávio de Arruda Mello
No prólogo de Antes que me esqueça, confessa José Américo, em referência às tensões de memorialista, que “Acumulei matéria suficiente e passei a redigir. O que fora feito era, em vez de memória, psicologia aplicada, sociologia aplicada, geografia humana e não o que eu concebera. Cancelei tudo e acabei fazendo um trabalho todo novo”. Não adiantou.isso, porque o sociólogo e o historiador que residem no autor de A Bagaceira terminaram emergindo, de tal sorte que esse seu primeiro volume de memórias datado de 1978 e do qual me ocuparia lugar de destaque apenas como prosa enxuta e bem acabada, mas como, sobretudo, instrumento de vivenciação de nossa realidade, o que vale dizer, como compêndio de Sociologia, de Antropologia, de História Social até. Não sou eu, por certo, o primeiro a perceber-lhe tais implicações. Falando durante curso de História da Paraíba do Instituto Histórico, onde proferiu conferência subordinada ao tema “Instituições Político-Culturais da Paraíba Colonial – Administração, Escravidão, Propriedade e Regime Familiar”, Humberto Melo acertou em cheio quando, de improviso, referiu-se a várias passagens do Antes que me esqueça comprovadoras das relações familiares e econômico-sociais que presidiram a sociedade colonial paraibana, só posteriormente afetada por fatores de mais significativa transformação. Foi, porém, o professor Hugo Moura quem desceu ao fundo da questão. Escrevendo para o número trinta e sete do Correio das Artes lúcido ensaio, o folclorista sustentou que, sendo A Paraíba e seus Problemas a obra mater de José Américo, seria natural que todas as outras fossem por ela influenciadas, ante o sentido claramente histórico-social de seus romances, entendimento que não escapou a José Rafael de Menezes em face de A Bagaceira, Juarez Batista diante de Boqueirão e Nelson Lustosa Cabral no tocante a Coiteiros.
46
| Maio/junho/2016
Foto Arquivo da FCJA
José Américo de Almeida
SOCIOLOGIA, ROMANCE E MEMÓRIAS Tendo o sociólogo precedido o romancista, o tema dos livros do sr. José Américo tornou-se sempre o mesmo, ou seja, o do homem diante do destino. Compreenda-se, porém: nem o homem avulta aí como ser abstrato/ideal, ou o destino como divindade metafísica à Camus. Assim, enquanto o herói americista (Lúcio, Remo, Roberto) possui conotação viva, efetiva, real, o destino de cada um deles adquire perspectiva concreta, existencial, terrena, d’onde as circunstâncias, captadas pela História e a Sociologia, que os cercam e contra as quais lutam, em permanente rebeldia. Nesta síntese dialética entre o homem e o destino, a raiz de um equilíbrio que difi-
cilmente encontramos noutros autores, quero dizer José Américo torna-se tanto o escritor das paixões da alma quanto de um cromatismo paisagístico que não raro evolui para os dramas da realidade social sacudida pela ação humana. A temática repete-se em Antes Que me esqueça, onde o personagem central é o próprio autor. O próprio autor? – Nem tanto, eis que este primeiro tomo das memórias de José Américo, transitando de um engenho (Olho D’Água) para a cidade (Areia), e desta para o Seminário, localizado distante, na cidade maior, em que, contudo, “atrás era o Roggers ainda feito mato” (João Pessoa, aliás Parahyba), assinala-se por tal Universalismo que a infância ali retratada confunde-se com a de qualquer um de nós, podendo ser, como diria o poeta, a do “último homem/da última Casa do Afaganistão”. JOSÉ AMÉRICO E O HISTORICISMO Numa comprovação do espírito historicista do autor, para o qual José Medeiros Vieira e José Honório Rodrigues sempre me chamaram a atenção, o importante em Antes que me esqueça não são os lugares mas o tempo histórico de clara transição patriarcal-urbana, de imbricação, aliás, mais rurbana do que urbana, em que transcorre a ação, ou seja, “uma espécie de renascimento (...) a restauração do tempo vindo” (pág. 9). Explico melhor: nascido em 1887, em um engenho do município de Areia, José Américo tornou-se figura típica da transição entre dois séculos. E na Paraíba, o que ocorre aí? – Simplesmente o início de nosso processo de urbanização que, limitado pela introversão de culturas como o açúcar e o algodão, ainda assim avançará resoluto na chapada da Borborema (Areia, Campina Grande), ponto de encontro das duas culturas, e no litoral (João Pessoa, Mamanguape). Falei em avanço resoluto da urbanização? – Pois falei mal. Este avanço é contido, no
sentido de que, no Brasil, ao contrário da Europa – E Gilberto Freyre e Oliveira Viana já o explicaram com muita precisão – a cidade não reage contra o campo pois prolonga-o. Nas memórias de José Américo sente-se isso muito bem, sendo preciso, até, certa atenção para se distinguir a fazenda do campo – com a rurbanização, a sobrevivência das relações patriarcais prolonga-se no compadrio da conta de caderneta de venda (pág. 101), no empréstimo & “o que era de um era de todos. Tomavam tudo emprestado: jornal, ovo, açúcar, sal, pó de café, ferro de engomar”, pág. 114). Vale ainda ressaltar a hegemonia da Igreja em torno da qual se desenrolará a Festa da Padroeira (pág. 93). Resultado: certos hábitos trazidos pela civilização terão de ser impostos à força, como no caso em que “para evitar porte de faca de ponta o delegado mandava enfiar a camisa nas calças: ensaque” (pág. 106). Em Assim eram as coisas, José Leal vislumbrou em Alagoa Grande a mesma quizília, agilizada pelo delegado Ernesto Cavalcante que ganhou até nome de rua... UM HOMEM E SEU DESTINO Dentro desse quadro em que os mitos infantis se incorporariam ao universo adulto com uma lição (pág. 32), até o homem feito amplificar a criança (pág. 34), porque “eu ia aprendendo as coisas; tive meus mestres para estudar essa natureza de instintos” (pág. 42) -, a força condutora da vida é o Destino, sendo que, por certo, José Américo pensa como seu exegeta Juarez Batista, para quem, em confissão procedida no I Seminário Paraibano de Cultura Brasileira, “eu só acredito em destino. Quem quiser que não acredite. Eu, de minha parte, ainda sou dos antigos que só acreditam em destino”. “Nossa Senhora da Conceição, se, por uma cegueira, eu chegasse a descrer ainda amaria Aquela que me criou, debaixo do seu manto, e me deu de presente a minha Estrela. (...) Era o tio padre fazendo o sobrinho padre. A história do clero repetia-se; tinha essa linha. (...) Senti o bafo de um mundo misterioso. (...) Faltavam dois dias para encerrar-se a matrícula na Faculdade de Direito do Recife e ainda tive essa sorte: matriculei-me”. (págs. 93, 117, 139, 147 e 171). Estrela da Vida (a imagem, também presente à página 82, é extraída do poema “Minha Estrela” da coletânea Quarto Minguante, apelos da cidade, linha de presumida vocação religiosa, bafo de um mundo misterioso (aqui, trata-se do Seminário do início do século dominado pelo rigor ultramontano de d. Adauto), sorte para ainda encontrar as matrículas abertas na Faculdade de Direito do Recife, depois de o cunhado Josafá em-
prestar-lhe “um paletó que me descia quase aos joelhos” – que constitui tudo isso senão a força avassaladora do destino a impor seu ritmo na construção de uma grande vida? DESTINO, REBELDIA E LIBERDADE Sem se deixar, todavia, dominar por ele, até bem porque em várias passagens de Antes que me esqueça antecipa-se, claramente, a rebeldia do futuro estadista perante quem um dia as multidões se postarão comovidas, à ordem de “marchemos!”, na bela campanha de libertação nacional que foram os discursos de 1937, José Américo enfrenta e domina o destino até o alcançamento da liberdade, sofridamente obtida, como nas sagas de Adão, Prometeu, Orfeu. Isso em troca da falsa segurança de um universo idílico, de relacionamento com a mata (págs. 18, 21, 24), de “intimidade com o mundo vegetal” (pág. 27), com os bichos cuja castração lhe fascinava (págs. 34/47), com o brejo (pág. 37), tudo isso sintetizado no apego à terra que não o abandonaria sequer no momento da partida, o de cumprimento do Destino: “Não havia tempo para chorar. Nem ao menos permitiram que fosse à cachoeira banhar-me para chegar limpo, como a cidade exigia. Nem também que me despedisse das fruteiras amigas. Desejava ir abraçá-las e beijá-las, até a macaíba com sua barriga coberta de espinhos. Seria bonito, mas não fiz essa fita, nem devo romancear. Nada me disse adeus”. (pág. 82). Ao contrário dos que se deixam esmagar pelos fados e se amesquinham na miséria e na dependência, José Américo, criança e rapaz, ganha, na luta que empreende ante o destino, o bem maior - o bem supremo que é a liberdade. Vem daí que sua transição para a adolescência só poderia culminar na conclusão das páginas poéticas e reveladoras do Antes que me esqueça. Quando se decide a repelir imposições familiares, abandonando o seminário. “Estava solto. Minha vida ficava em minhas mãos”. (pág. 171) Se levarmos em conta que essa liberdade de determinar seus próprios rumos de vida (a palavra adquire em JÁ o sentido de sina, destino), equivalia, na mesma época, a dezenas de outros rapazes do interior que flutuavam entre o bacharelato e a escola militar, caberia a pergunta: essa libertação conseguida pelo autor se estenderia ao plano social, significando a libertação de uma comunidade inteira?
Em parte, sim. Situado na fronteira de dois mundos, como parcela de uma sociedade rural que se (r)urbanizava, o que José Américo percebe, sem saudosismos, mas com certa ponta de estoicismo, derivada dos que não temem o confronto do destino (“que será, será”), é uma transição de valores acelerada, no tocante aos camboeiros que punham o brejo em contacto com sertão, por fatores como “o caminhão (que) pôs fim a esses denodados viajeiros” (pág. 52). CAPITALISMO E PODER PÚBLICO Nessa perspectiva, a Sociologia e a História perfeitamente afinadas como entre nós o pediu João Lyra Filho, passam a dominar Antes que me esqueça. Nesta, em pelo menos um ponto se percebe o fenômeno político-social típico da passagem do século no Brasil que é, graças às relações capitalistas que então se cristalizavam, a emersão do novo poder público (Raymundo Faoro denominá-lo-á “novo estamento burocrático”), que se comporá (Victor Nunes Leal) com os grandes proprietários para estabelecimento do coronelismo. Assim, inicialmente: “Meu pai tinha o comando; enfeixava todos os poderes. Como era costume dizer-se, casava e batizava. Era a polícia, o juiz, o médico, o padre. Mantinha a ordem; o destacamento local não tinha ingresso no feudo. Julgava e sua sentença era inapelável. Só o delegado de polícia, Zacarias Cabral, ousou, por ter endoidecido, invadir a propriedade para proibir um samba” (pág. 57). Pouco depois, contudo, essa prepotência começa a ceder, sob o impacto das novas forças sociais. Assim, quando Felizardo, cortador de cana, cometeu, certa feita, um crime na cidade. “Veio o comandante do destacamento, tenente Moreirinha, e pediu licença para correr a propriedade. Contrariando a tradição de inviolabilidade dos engenhos, meu pai permitiu. Além de varejar todas as casas, a polícia surrou a mãe do assassino e sua cunhada, mulher de Antônio Cuíca, o que causou indignação a meu pai” (pág. 60) Não há dúvida de que, graças a seu rápido processo de (r)urbanização Areia tornar-se-á uma das primeiras cidades da Paraíba a sentir o problema – expressões visíveis e imediatas do nascente poder público são o fisco e a polícia, contra os quais reagirão as forças tradicionais assimetricamente apoiadas na matutada. Maio/Junho/2016 |
47
Enquanto os Quebra-Quilos, centrados nas feiras, porque “a cidade devoradora tomava o dinheiro da matutada” (pág. 105), se insurgiram pouco antes, na chamada Revolta dos matutos contra os Doutores, assim batizada por Geraldo Irineu Joffily, a polícia, politicamente manipulada pelos oposicionistas em busca de intervenção no município (pág. 123), as mais das vezes motivava tensões como o Quebra-Vidros (pág. 126/7), quando “um soldado de linha não podia ver um da polícia que eles chamavam manichupa, sem agredi-lo” (pág. 124). Tudo isso ocorria dentro de um contexto de “histeria coletiva que tumultuava” (Ibidem). Sob este aspecto, foi pena que esse primeiro volume das memórias de José Américo haja surgido depois dos estudos de Armando Souto Maior e Geraldo Joffily sobre o Quebra-Quilos – ambos teriam muito a lucrar com essas ilações derivadas da abordagem histórico-sociológica em que Antes que me esqueça se situa. SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS CAMPO/CIDADE Vejo, porém, que, impelido por essas considerações, não respondi à pergunta que me formulei e que foi a seguinte: o declínio do patriarcalismo majestático, que a cana de açúcar tanto fortaleceu em Areia, com sua progressiva substituição pela primazia da cidade, libertou o povo, melhorando-lhe a sorte? É preciso acompanhar atentamente o devenir literário do Antes que me esqueça para comprovar a resposta do primeiro impulso
48
| Maio/junho/2016
que foi “em parte”. Se é bem certo que em matéria de organização familiar (pags. 61/68) e educacional (89/137), a cidade, com a sisudez das visitas (pág. 94) e a extraordinária figura do tio-padre que praticamente toma conta de todo livro, prolongava o campo, não faltavam certas compensações representativas dos modestos avanços da vida urbana. No conjunto, e do ponto de vista social, quanto às limitadas perspectivas que abriam, ambas se equivaliam: no campo “só tinham um desejo: encher a barriga (...) A pobreza era tanta que melão-de-são-caetano e joá serviam de sabão (págs. 62/7). Na cidade, “a vida era apertada. Tendo-se de botar luto, o chapéu palheta era pintado de preto com nubian. Lustrava-se sapato com casca de banana e fazia-se colcha de retalhos” (pág. 103). Em matéria de saúde, se o coleramorbo e a febre amarela (págs. 19/33) grassavam no campo, na cidade, “as praças do destacamento eram portadoras da varíola que grassavam na capital e isolavam os bexiguentos em ranchos de palha no mato. Se algum escapava, ficava com uma máscara no rosto esburacado” (pág. 102). Param aí, contudo, as aproximações. Se na cidade, e em matéria de tratamento médico, os sinapismos, sanguesssugas e curandeirismo já cediam vez às injeções e à vinda ocasional de um médico da capital (no caso o dr. Sá Andrade – pág. 115), era nela que a incipiente vida social se dilatava para admitir as primeiras manifestações de liberdade. Estas constituíam, para os meninos precoces como José Américo, as brigas (“Havia brigas
na escola e quase sempre terminavam na rua. O brigão traçava dois círculos na areia: - Esta é minha mãe e aquela é a sua. Quero ver pisar. As mães eram as vítimas. Cobertas de nomes feios, pagavam pelos filhos”.) -, a leitura escondida dos jornais maçônicos (págs. 119/130), o circo de cavalinhos (pág. 101), o vício de fumar coibido pelo padroado (pág. 90) e as primeiras preocupações românticas que não possuem em José Américo a intensidade naturalista de Lawrence ou José Lins do Rêgo. A tais mundividências urbano-juvenis, correspondiam, para os adultos, as lutas de família já revestidas de significação política como no episódio Chacon x Santos Leal (pág 81); o mês de maio, o Natal e o entrudo de carnaval (págs. 129, 131 e 134/5); a botica, “que representava, igualmente, uma espécie de Instituto Histórico celebrando as tradições”; e as eleições em que “os eleitores iam “comer do boi”. Enchiam as urnas e as barrigas por conta do chefe” (pág. 104) HISTÓRIA SOCIAL, POLÍTICA E ANTROPOLOGIA Tudo isso, História Social das mais legítimas porque História do povo e das instituições, ao invés de mera apologia dos poderosos do dia, desponta bem vívido em Antes que me esqueça, obra prima que assume, igualmente, imensa consistência política e sócio-antropológica. Se a História Social aparece, não falta ao autor certo estoicismo (“Homem não chora”, pág. 135) que se confunde com sua grandeza e seu Destino... g
MEMÓRIA JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA(*) Paulo Bonavides
O silêncio é dor para o Ceará que deplora a morte de José Américo de Almeida. Na vida pública deste homem se acham escritas algumas décadas da história brasileira, sobretudo os sucessos políticos que culminaram com a Revolução liberal de 1930 e a traição constitucional do golpe de Estado de 1937. Quando digo que esse silêncio é dor, quero interpretar do modo mais indulgente possível a mesquinhez da homenagem póstuma àquele cujo desaparecimento deveria ter merecido um registro mais significativo da parte do meio oficial cearense. Não sei se alguma bandeira tremulou a meio mastro, mas achamos muito pouco o decreto de três dias de luto oficial. Não vimos nenhum ofício fúnebre partir do Governo do Estado ou do Município para render ao insigne paraibano, que na seca de 1932 teve com os cearenses a mesma grandeza, a mesma fortaleza de ânimo, a mesma generosidade do Imperador, cujos anéis da Coroa se dispunha ele a vender ou empenhar. Contanto que nenhum flagelado dos Inhamuns ou dos vales do Jaguaribe, do Banabuiú ou do Acaraú padecesse a morte pela fome, em meio ao flagelo de uma natureza agressiva e indomável aos avanços do progresso, dos quais o atraso do País ainda distanciava a Província flagelada. Os socorros públicos, na emergência das secas do passado, quando não dispúnhamos de condições corretivas que tolhessem, por outras vias, os efeitos das catástrofes periódicas, minorando, pois, a consequências do desastre da natureza, eram o remédio único e supremo para as estiagens que de janeiro a março culminavam com a experiência do dia de São José, marcando a retirada e o desespero das grandes massas sertanejas. A natureza e o homem se congraçavam então na mesma tragédia. As secas periódicas de três séculos produziram no Ceará um fenômeno de sacrifício de vidas e dispersão humana, que conduziu o cearense retirante a povoar as regiões inóspitas da Amazônia, onde a sobrevivên-
cia era por igual um desafio, uma obstinação, quase um holocausto. Esse cearense patriota, radicando-se ora no Acre, ora no Amazonas, levou sua presença humana aos mais remotos igarapés da bacia amazônica. Colhe naquele universo verde o “látex” de uma riqueza nacional efêmera, de que a cobiça internacional logo nos privou. Dilatando, pois, nossas fronteiras setentrionais com o episódio da epopéia acreana, fez do seu sofrimento uma afirmação sempre identificativa com o meio e a pátria, comparável, no Brasil meridional, à do gaúcho, cuja sensibilidade patriótica guardou e preservou as fronteiras da bacia platina, expostas à invasão e à controvérsia histórica dos limites territoriais. Os descendentes dos retirantes, ao contrário do riograndense meridional, muitas vezes lutavam com a selva e o índio, o mosquito e a endemia e, principalmente, com os mistérios e a solidão da floresta, tão bem fixados por Ferreira de Castro, em quadros que o escritor imortalizou numa obra já hoje pertencente ao patrimônio da literatura nacional. Tornemos, porém, a José Américo, personalidade cívica ilibada, símbolo da coragem liberal. Nunca político de outro Estado se afeiçoou tanto ao Ceará. A literatura com que ele nos enalteceu não está nas páginas de A Bagaceira, mas nos arquivos do Ministério da Viação, nos despachos e decisões com que, em 1932, socorreu o Ceará, erguendo barragens, construindo estradas, riscando o sertão de comboios de alimentos, concentrando flagelados, para dar-lhes o pão ou minorar-lhes a tragédia já pressentida na prosa daquele romance, o grito literário precursor das correntes regionalistas. A repercussão dessa obra só um crítico fino e agudo como Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde das letras pátrias, pôde, com assombro e sensibilidade, desde logo proclamar e discernir. Romancista ao norte! era o espanto crítico de Tristão.
Mas, do estadista, só a Revolução de 30 daria a dimensão e o alcance. Quando o Império caiu, Pedro II, sem ódios e sem ressentimentos, confessava a Rebouças, a bordo do barco que em triste navegação o conduzia para o exílio, só enxergar nas trevas do golpe do Campo de Santana – assim se lhe afigurava o advento da ordem republicana – uma luz no horizonte: a estréia de Rui Barbosa, o gênio do baiano, apóstolo da justiça e da liberdade, sobrepairando depois às ambições dos oligarcas, usufrutuários do poder e das posições republicanas conquistadas com a espada de Deodoro. No dia em que João Pessoa morreu, com o coração varado por uma bala na Confeitaria Glória do Recife, desceu também sobre a Paraíba em pranto uma noite que não queria amanhecer. José Américo de Almeida foi, naquela ocasião, como Rui em 89, a aurora das esperanças liberais. Havia ideais que não deveriam ser atraiçoados. Havia uma bandeira que o crime do Recife não faria arruinar na consciência do povo paraibano. Desapareceu esse homem aos noventa e três anos de sua idade. Vítima do Estado Novo, este talvez lhe arrebatou, com o golpe de 10 de novembro de 1937, a Presidência da República. Mas, oito anos depois, ocupando largo espaço nas colunas do Correio da Manhã deu a Carlos Lacerda a entrevista histórica, que derrubou a censura e com a queda da censura a ditadura: o rei estava nu, o povo recobrava a ditadura. Não posso, consternado, deixar de afirmar: o Ceará fez muito pouco até agora, em matéria de celebração póstuma, por aquele amigo – o ídolo dos anos 30 – que num comício em Antenor Navarro, emudecendo de emoção, explicava, logo a seguir, aos circunstantes, com a eloqüência do tribuno, a hesitação daquele silêncio. Não queria que do Ceará tão próximo, do Ceará que ele venerava, ouvissem os cearenses o ministro de 1932 mendigar votos em sua própria terra natal! g
(*) Este trabalho do insigne jurista paraibano, radicado no Ceará, foi publicado na imprensa cearense logo após o falecimento do Ministro José Américo e foi transcrito do livro CONSTITUINTE & CONSTITUIÇÃO, 2ª edição, Fortaleza, 1987. Maio/Junho/2016 |
49
O GOLPE DE 37 JOSÉ AMÉRICO NO ANO DO GOLPE Walter Galvão
No próximo ano, a história nos presenteia com um link para momentos de muita emoção e de relevância, além de decisivos da história do Brasil. Link para flashs em flashback de um lance crucial da política brasileira: a candidatura de José Américo de Almeida a presidente da República. Foi em 1937. Nessa passagem em 2017 dos 80 anos desde aquela postulação, que não foi do paraibano, mas de um grupo que o identificava como o melhor nome, inclusive com o apoio, virtual, totalmente falso, de Getúlio Vargas, se abrem caminhos para uma observação especial sobre aquele período. E dos seus desdobramentos. Eles modificaram os conteúdos do tempo e do espaço em que evoluíamos enquanto nação rumo a dias de aberturas e transformações. 1937 foi o ano do golpe Estado liderado por Getúlio Vargas. É quando se inaugura a ditadura, com seus porões para tortura e suas plataformas inovadoras. Ditadura contra os comunistas e, nas palavras do próprio Getúlio, para “reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país”. José Américo de Almeida, escritor e político, se projeta da história para a história em várias perspectivas. E todas são convergentes com o ideário autonomista e racional da modernidade. No caso brasileiro, uma modernidade expandida desde o Tenentismo e a Semana de Arte Moderna, fervores dos anos 1920, que se consolida entre nós com a metropolização do país via Revolução de 1930. No caso singular de José Américo, revolucionário do primeiro momento com João Pessoa, inaugura, ele mesmo, um dos ciclos modernistas mais expressivos nas Américas que foi o do regionalismo literário brasileiro. Digo da história para a história por ter sido o autor do clássico romance “A bagaceira” artífice consciente da modelagem de um novo tempo de expansão dos embates revolucionários que se inauguram no século XX. Ele articula com êxito um projeto estético de dissolução de petrificações de lin-
50
| Maio/junho/2016
guagem e de mentalidade com o seu manifesto sócioantropológico embutido no romance de 1928 que inaugurou o referido regionalismo. Além disso, empreende uma jornada política autonomista que o consagra, enquanto referência do ideário das elites políticas mais avançadas, não só do Brasil, mas do Continente, ideário que sinalizava para a contestação dos poderes oligárquicos com suas conotações negativas tanto normativas quanto políticas e sociais. É de se notar o tônus mudancista de uma elite na qual militava José Américo a partir da observação, por exemplo, do que foi a Aliança Liberal, na qual ele atuou fortemente, enquanto tour-de-force, façanha ideológica, em prol de um novo Brasil. A Aliança Liberal defendia o voto feminino. Além disso, queria implantar a justiça trabalhista e não dispensava o caráter secreto do voto. Integrante da juventude que em 1930 pegou em armas na defesa de mudanças concretas desejadas por forças expressivas da nação, José Américo foi um liberal reformista que patrocinou como poucos a ética na política, quando tal discurso parecia uma improbabilidade, além de ter praticado a ética ao limite da ruptura com aliados. Egresso das fileiras civis do Tenentismo revolucionário, ao assumir, no liquidificador de vontades que foram os dias que sucederam a posse de Vargas em 1930, e então já no cargo de ministro de Viação e Obras públicas, abalroou pretensões de aliados ávidos por distribuir benesses entre protegidos. Houve o caso de um revolucionário que queria presentear seu motorista particular com a posse de um bem público. José Américo negou e argumentou questões de princípios, questões de Estado, alegou que não poderia abrir precedentes para tal clientelismo, e que só faria após um decreto presencial autorizando a doação de um quiosque para atividades comerciais. Cedeu, enfim. Mas só depois do decreto de Vargas. Há quase 80 anos, José Américo es-
candalizou até mesmo a elite da qual fazia parte ao lançar a campanha para presidente num espaço popular, à época chamado no Rio de Janeiro de favela, termo que ainda continua em voga em certos círculos. Suas frases ecoaram pelo Brasil: “Vamos fazer a política dos pobres, porque a dos ricos já está feita”, ou, a mais bombástica, “Eu sei onde está o dinheiro”. Daí a ser chamado de comunista foi um passo, comunismo que especialmente naquele ano estava sendo usado como justificativa para o golpe de Estado que cancelou as eleições marcadas para o ano seguinte, 1938, fechou o Congresso, censurou os meios de comunicação e que cancelou eleições diretas, que só voltariam a acontecer em 1945. E por causa de uma entrevista de José Américo que precipitou o fim do Estado Novo. Midiático, José Américo (1887-1980) vive atualmente um novo ciclo de ligação com o grande público, não só paraibano, mas nacional, através de duas obras de inequívoco valor histórico e cultural. Refiro-me aos lançamentos de “José Américo de Almeida em quadrinhos” (Patmos Editora, 2015), roteiro de Lourdinha Luna e ilustrações de Val Fonseca; e de “José Américo - Uma fotobiografia” (Ideia Editora, 2014), excelente ensaio das pesquisadoras Maria do Socorro Silva de Aragão, Neide Medeiros Santos e Ana Isabel de Sousa Leão Andrade que detalha a vida do romancista e ex-governador da Paraíba. O acervo fotográfico reunido é de uma amplitude à altura da expressividade do fotobiografado. Não fosse a mistificação do Plano Cohen, revelado em pronunciamento do general Góes Monteiro, durante o programa “A voz do Brasil” em setembro, farsa documental que indicava a existência de conspiração para derrubar Vargas, e José Américo, considerando que apenas três Estados não apoiavam sua candidatura, poderia ter assumido a Presidência. E a história do Brasil seria outra. Vale a pena imaginar o que teria acontecido. g
PESQUISA EM BUSCA DE POSSÍVEIS EDIÇÕES ESLAVAS DAS OBRAS DE JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA Evandro da Nóbrega (Especial para GENIUS)
Não vai adiantar Vocês dizerem ao degas aqui que A bagaceira somente foi (oficialmente) traduzida para o inglês, o espanhol e o esperanto. Continuaremos procurando por versões eslávicas deste e de outros livros de José Américo de Almeida (1887-1980), nos inumeráveis portais russos em particular e nos portais eslavos em geral, que, nuns e noutros casos, especializaram-se em livros — mesmo porque, naqueles pagos eslavófonos, versões piratas de obras ocidentais são tudo, menos absolutamente escassas... Além do mais, a pesquisa não pode ser concluída assim, de um dia para outro, sem mais aquela, haja vista que o mundo eslavo é ainda constituído de línguas como o búlgaro, o bielorrusso, o ucraniano, o tcheco, o esloveno e o eslovaco, o tchecoeslovaco, o sérvio, o croata, o servo-croata, o bósnio e o macedônio e o montenegrino, o polonês ou polaco, o silesiano, o pomerânio e o cashubiano, o sorbiano (inclusive o lusácio), o rússyn... Aprestando-nos para iniciar a pesquisa, procuramos ter à mão, o tempo todo, numa medida sensata, o valioso livro da professora, crítica literária e acadêmica Ângela Bezerra de Castro, Releitura de A bagaceira: uma aprendizagem de desaprender; e os trabalhos críticos do também acadêmico, professor e escritor Hildeberto Barbosa Filho sobre José Américo. DISTANTE DO “BOLCHEVISMO” Uma das razões pelas quais é muito difícil encontrar livros de José Américo em russo ou até mesmo a citação de seu nome em publicações eslavas é que, ao contrário, por exemplo, de seu colega escritor baiano Jorge Amado, ele, Zé, não era... comunista ou mesmo simpatizante, “companheiro de viagem”, socialista de ocasião, “inocente útil”. Bem ao contrário, José Américo, apesar de suas evidentes preocupações sociais, exibia orgulhosamente a postura de um democrata de quatro costados. Era provavelmente o mais antípoda de um modelo de “comunista”, dentre os po-
líticos em evidência nas décadas de 1920 em diante. Chegou a escrever na revista Era Nova [ano 1, nº 8, edição de 15 de julho de 1921] artigo intitulado “Cabeça e estômago”, abordando o tema do “bolchevismo” (como todo mundo dizia, então). Nesse escrito, entre outras considerações, afirmava que ninguém ainda lograra idéia exata da situação então existente na Rússia bolchevista. Por paradoxal que possa parecer, José Américo era também algo politicamente conservador, tanto que seus correligionários por vezes tinham a lhe criticar os entendimentos de quando em quando por ele mantidos com os “carcomidos”, vale dizer, Epitácio Pessoa e outras figuras “do passado”. DOIS CHARLES FRANCESES Nesse artigo, José Américo tentava conceituar e definir o novo sistema político-econômico vigente na Rússia pós-czarismo, citando, entre outros, para basear seus próprios argumentos, trechos retirados à obra Histoire des doctrines économiques, escrita por dois Charles: 1) o economista e historiador do pensamento econômico Charles Gide (1847– 1932), professor sucessivamente nas Universidades de Bordeaux, Montpellier, Paris (e, ainda depois, no célebre Collège de France), além de tio do escritor André Gide; à época em que escreve esse livro, com o colega Rist, Gide era exatamente professor de Economia Social na Faculdade de Direito da Universidade de Paris; e 2) Charles Rist (1874-1955), que lecionava Economia Politica em Faculdade homônima, só que na Universidade de Montpellier. EM FRANCÊS E EM INGLÊS Pode o degas aqui inserir tais informações simplesmente por dispor tanto da obra original, em francês, quanto de sua versão inglesa, a saber: a) Histoire des doctrines économiques depuis les physiocrates jusqu’à nos jours
[pela Librairie de Ex-Société du Recueil Sirey, 22, rue Soufflot, Paris, 5e. arrondissement, L. Larose & L. Tenin, directeurs, 1913], “ouvrage couronné par l’Académie des Sciences Morales et Politiques”; e b) sua primeira tradução inglesa, que se chamou A history of economic doctrines from the time of the physiocrats to the present day. Tal edição britânica, legal e devidamente autorizada, saiu em 1915 pela editora D. C. Heath and Company (com sedes e filiais em Londres, Nova York, Boston, Chicago, Dallas, Atlanta e San Francisco). Resultou feita a partir da “segunda edição revisada e aumentada, de 1913”. Funcionou como tradutor o professor R. Richards, B.A., “lecturer in the University College of North Wales”. BAKHUNIN E KARL MARX Com toda probabilidade, José Américo leu esta obra de Gide-Rist não na edição inglesa, com 704 páginas, mas na edição francesa, de 816 páginas, ele que, a partir de uma certa época da vida e por muito tempo, era um dos mais cosmopolitas leitores do Nordeste e que importava seus livros estrangeiros diretamente de Paris. Uma parte das “Conclusions” do livro, sob o título de “Comment l’histoire des doctrines enseigne à éviter le dogmatisme”, a partir da página 754, interessou particularmente o leitor paraibano José Américo e teve duradoura influência em seu espírito e pensamento. É de nosso entendimento que pouco valeram a esse leitor as considerações dos dois Charles sobre a Rússia pós-czarismo, mesmo porque são elas bem reduzidas. O que mais deve ter valido a pena, para a cultura de José Américo, foram as densas análises que Gide e Rist empreendem do pensamento marxista e, igualmente, do anarquismo de Bakhunin — sabendo-se que, ao tempo da redação da obra francesa, as ideias anarquistas tinham ainda maior repercussão que as noveis formulações “maximalistas”, como também se dizia... Tanto é assim que, no Brasil da década Maio/Junho/2016 |
51
de 1920, as primeiras expulsões de estrangeiros instalados no Brasil (notadamente italianos) dirigiam-se aos anarco-sindicalistas, não aos comunistas. Ao cabo de QUATRO revoluções, desde a queda do último czar, o incipiente “comunismo” ainda bracejava para se firmar na também nascente União dos Sovietes, em permanente luta contra os russos brancos e as intervenções estrangeiras... BOLCHEVIQUES E MENCHEVIQUES Não é preciso dizer ao leitor bem informado que os termos “bolchevismo”, “bolchevista”, “bolchevique” etc derivam da palavra russa большинство [pronuncia-se bal’shýnstva], significando “maioria”, daí os integrantes da maioria chamarem-se “большевик” [bal’shyvýk” = “um da maioria”]. A maioria, no caso, era a facção majoritária do Partido Operário Social-Democrata Russo, auto-denominado de orientação “marxista” e que, desde o segundo congresso partidário, ocorrido em 1903, cindira-se em duas metades: os bolchevistas e os menchevistas (ou bolcheviques e mencheviques, de outro termo russo, меньшинство, myên’shinstva = minoria, de onde provém меньшевик = min’shivýk = membro da minoria). JOSÉ AMÉRICO EM INGLÊS Trash: a novel, a versão anglo-americana de A bagaceira, saiu pela editora Peter Owen Publishers Ltd., na Inglaterra, em 1978, em brochura e, também, com encadernação em capa-dura [hardcover]. Essa versão — realizada diretamente do português, não sem grandes dificuldades, por R. L. Scott-Buccleuch — faz parte da “Collection of Representative Works”, Série Brazil, das obras recomendadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura. Não deixa de ser altamente interessante verificar que existe um livro intitulado A Bagaceira: a começar pelo título, um desafio aos ingleses, de Margarida Autran [Editora de O Globo, Rio de Janeiro, 1978]. Como os ingleses quebraram a cabeça com as mil dificuldades para traduzir a prosa de José Américo para a língua lá deles! Vê-se, pelo livro de Margarida, que os desafios se impuseram a partir mesmo do título da obra: “What in hell is... bêy-ghêy-sý-rê?!” Bem, chegaram à conclusão de que deveria ser trash mesmo, “lixo”... “Cane-trash” seria uma solução melhor? Centenas de exemplares usados dessa versão inglesa, Trash, podem ser encontrados, à venda, nos mais diversos sites especializados, Internet afora, a preços que variam
52
| Maio/junho/2016
de cinco a vinte dólares, conforme o estado de conservação do volume e a localização de quem vende. Trata-se, como dizem os ofertantes, e com razão, de “an important Brazilian novel: love and revenge on a sugar cane plantation”. Numa tabela de 1 a 10, Trash é considerada uma obra “cinco estrelas” [“5-star rating”]. Vendem-se também online as várias edições em português, para não falar das versões em espanhol e esperanto. Diretamente da Nova Zelândia, um morador nos Estados Unidos pode adquirir um exemplar de Trash, de José Américo, pela bagatela de US$ 24.01, mais taxas postais orçadas em US$ 12.00. Só para fins de comparação: um exemplar usado da primeira edição americana de Menino de engenho [Plantation Boy], de José Lins do Rego, publicada em capa dura pela prestigiosa editora Knopf (Nova York, 1966), é vendido pelo preço médio de 25 dólares, mais 4,5 dólares de despesas nos Correios. JOSÉ AMÉRICO EM ESPERANTO Desde meados da década de 1980 que se tem uma obra de José Américo vertida para o esperanto, a “língua universal” idealizada pelo genial judeo-russo-polaco-lituano Lazar Zamenhoff. Nessa tradução esperantista, ficou sendo Bagasejo, neologismo sugerido em benefício do próprio léxico do esperanto pelo tradutor Geraldo Mattos [Coleção Fonto-Serio, Editora Fonto, Chapecó, Santa Catarina, 1985, 176 páginas]. Essa versão está citada na Concise Encyclopedia of the Original Literature of Esperanto, de Geoffrey Sutton [Editora Mondial, 2008, 728 páginas]. A mesma obra não poderia faltar à página da Vikipedio, a Wikipedia dos esperantistas, intitulada “Verkaĵoj de Brazilo en Esperanto”, nem à “Brazila literaturo Esperanto-movado en Brazilo” [http://adelsonsobrinho.blogspot.com.br], conforme postagem de Adelson Sobrinho em 2012. Não se pense que Geraldo Matos Gomes dos Santos (1931-2014), nascido em Teresópolis (RJ) e formado em línguas neo-latinas pela PUC do Paraná, tenha sido um anônimo ou desconhecido: ele deixou grande número de obras publicadas, tanto de sua própria lavra, como em traduções e versões para o esperanto. Era um filólogo brasileiro de certo renome, poeta esperantista e membro da Academia de Esperanto, que presidiu de 1998 a 2007. Além do mais, Mattos é autor de uma obra de fôlego, Estilística da língua portuguesa (Curitiba, 1969). E alguns de seus trabalhos foram traduzidos até mesmo para a língua... vietnamita!... Para isto valeu-se, obviamente, da rede de amizades formada ao redor do mundo pelos entusiastas do esperanto. Não devemos esquecer que nosso ge-
nial antropólogo campinense-universal José Elias Barbosa Borges — engenheiro, intelectual, linguista, tupinólogo, geógrafo, historiador e muita coisa mais — por muito tempo discutiu as etnias indígenas do Nordeste brasileiro com sábios da Academia de Ciências de Moscou usando o... esperanto como meio de comunicação por carta e/ou e-mail. Em tempo: na Argentina, saiu uma tradução, intitulada La bagacera, na versão de Estela dos Santos [Editora El Ateneo, Buenos Aires, 1978, 159 páginas]. Uma edição (sem data) da mesma obra surgiu em Lisboa, Portugal, pelas Edições Livros do Brasil. JORGE AMADO EM MUITAS LÍNGUAS Diferentemente de José Américo, o romancista, escritor, jornalista, cronista, fabulista, contista e político Jorge Amado (1912-2001) desde o início viu-se beneficiado por grande número de traduções, nas mais diversas línguas e, em particular, no Leste europeu. Das obras de Amado — Capitães da areia, Mar morto, Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e seus dois maridos, Tieta do Agreste etc etc etc - praticamente todas podem ser encontradas em russo, ucraniano e outras línguas eslavas enfocadas em nossa pesquisa. Informa a Wikipédia em português que esses idiomas são: albanês, alemão, árabe, armênio, azeri, búlgaro, catalão, chinês, coreano, croata, dinamarquês, eslovaco, esloveno, espanhol, esperanto, estoniano, finlandês, francês, galego, georgiano, grego, guarani, hebraico, holandês, húngaro, iídiche, inglês, islandês, italiano, japonês, letão, lituano, macedônio, moldávio, mongol, norueguês, persa, polonês, romeno, russo (também três em braille), sérvio, sueco, tailandês, tcheco, turco, turcomano, ucraniano e vietnamita. De José Américo, as obras que mais se candidataram a edições nesses idiomas bem distantes de seu português brasileiro e nordestino original são, naturalmente, salvo melhor juízo, os romances A bagaceira, O boqueirão e Coiteiros. Quando se coloca, porém, o nome de “José Américo (de Almeida)”, em russo, aparece aquele aviso cabuloso: “Ничего не найдено” [“Nada encontrado”]. Quanto a Jorge Amado, nenhuma surpresa, por se tratar de um de nossos escritores mais traduzidos no Estrangeiro. Dos 49 livros de Amado, raros serão os que não tenham sido vertidos para uma das acima citadas línguas eslávicas. Dá-se por favas contadas, por haver informações seguras sobre este item em particular, que suas obras já foram traduzidas para 49 idiomas, em 80 países, sem falar nas edições em braille e
nas fitas de áudio gravadas igualmente para o uso de deficientes visuais. Já o livro Capitães de areia (versão russa em russo, Gheneraly peska ou Песчаные генералы, gravada em DVD) pode ser adquirido diretamente da empresa FilmuFabrika, em Riga, Letônia, ao preço médio de US$ 4.00), com frete de US$ 3.00. AMADO, COMUNISTA DE CARTEIRINHA Os primeiros contatos de Jorge Amado com os comunistas organizados num movimento ocorreram ainda quando cursava a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, na década de 1930. Como jornalista, pegou no dedo o pião das discussões ideológicas do Partidão e foi até eleito deputado federal, em 1945, pelo PCB. Deve-se ele a chamada Lei da Liberdade Religiosa. Viveu exílios em épocas diversas: na Argentina e no Uruguai (de 1941 a 1942); em Paris (de 1948 a 1950); e em Praga (de 1951 a 1952). Seus contatos, mundo afora, não deixavam dúvidas sobre suas preferências ideológicas: Pablo Neruda, Jorge Semprún, Pablo Picasso, Oscar Niemeyer, Vinícius de Moraes, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, grande número de escritores soviéticos, Luiz Carlos Barreto, Glauber Rocha et alii... Também participou, como membro correspondente, da Academia de Ciências e Letras da República Democrática da Alemanha, que integrava o bloco soviético, ao tempo em que a Alemanha ainda estava dividida entre essa RDA e a RFA (República Federal da Alemanha). Não à toa Jorge Amado recebeu o Prêmio Lênin da Paz em 1951, mesmo ano em que com ele também seriam agraciados as seguintes pessoas: * o poeta, escritor, historiador, arqueólogo e administrador governamental chinês Guō Mòruò [郭沫若], nascido em 1892, falecido em 1978 e também conhecido no Ocidente por Dingtang [鼎堂] ou Kuo Mo-jo, aquele político da província do Sichuan que, durante a Revolução Cultural maoísta, na China Continental, fez uma autocrítica ideológica tão profunda que chegou a se “rojar na lama”, para usar aqui suas próprias palavras); * a escritora, ativista social, militante política e feminista britânica Monica Felton (1906-1970), membro do Partido Trabalhista inglês; * o político liberal japonês Ikuo Oyama [Ōyama Ikuo (大山郁夫)], formado nos Estados Unidos; * o senador socialista e vitalício italiano Pietro Sandro Nenni (1891-1980), secretário nacional do Partido Socialista Italiano e figura central da Esquerda na Itália entre as décadas de 1920 e 1960;
* e a escritora judeo-alemã Anna (Netty) Reiling, de pseudônimo Anna Seghers (1900-1983), famosa por descrever em termos de experiência moral os eventos da Segunda Guerra Mundial. Mas o Jorge Amado, já bem idoso, tornou-se algo complacente ao emitir opiniões sobre os posicionamentos políticos e filosóficos dos conhecidos. Sobre o filósofo Olavo de Carvalho — que fora comunista mas que viria a se tornar cristão ferrenhamente de direita —, Jorge Amado chegou a dizer: “De reconhecida competência na área da filosofia, tem obtido grande sucesso tanto em suas pesquisas como no trato com seus alunos.” É declaração algo protocolar, no estilo daquelas que nos solicitam assim de repente e que emitimos também em cima da perna, sem muita substância e comprometimentos... Se Jorge Amado recomendou Olavo de Carvalho como filósofo, o filósofo Olavo de Carvalho recomendou pelo menos dois livros de Jorge Amado: Terras do Sem-Fim e Os velhos marinheiros. Mas, se vivo fosse, provavelmente Jorge Amado não iria querer hoje muita associação com o Olavo, odiado por toda a esquerdalhada nacional. TÍTULOS DE OBRAS DE AMADO EM RUSSO * O país do Carnaval [Страна карнавала]; * Cacau [Какао]; * Capitães da areia [Капитаны песка]; * Jubiabá [Жубиаба]; * Seara vermelha [Красные всходы]; * Terras do Sem-Fim [Бескрайние земли]; * São Jorge de Ilhéus [Сан Жоржи из Ильеуса]; * O Cavaleiro da Esperança [Рыцарь надежды]; * Gabriela, cravo e canela [Габриэла, гвоздика и корица — ou, como se transformou em prática usual nas versões russas, apenas Габриэла]; * Pastores da noite [Пастыри ночи]; * Dona Flor e seus dois maridos [Дона Флор и два ее мужа]; * Tenda dos milagres [Лавка чудес]; * Tieta do Agreste [Тиета из Агресте]; * Teresa Batista cansada de guerra [Тереза Батиста, уставшая воевать]; * Tocaia grande [Большая Токая]; * O sumiço da santa [Исчезновение святой]. FORA DA ENCICLOPÉDIA SOVIÉTICA Enquanto isto, o nome de José Américo, como verbete, não teve acolhida na Grande enciclopédia soviética [Большая Советская Энциклопедии = Bol’sháya soviyétskaya entsiklopypediya], o monumental empre-
endimento literário e editorial stalinista. Como não entrou na Bol’sháya, José Américo ficou também de fora da maior parte dos grandes dicionários enciclopédicos e outras obras de referência russas e eslavas em geral, com notáveis exceções, porém. Assim, não consta das edições mais recentes do Dicionário enciclopédico Brockhaus-Efron [Энциклопедический словарь Брокгауза и Евфрона [Entsiklopyéditcheskiy Slovár’ Brokgauza i Evfrona], disponível no URL http://www.vehi. net/brokgauz/; da Википедия [Wikipedia russa], a não ser nos verbetes mais gerais sobre a História da Literatura brasileira; do Grande dicionário enciclopédico [Большой энциклопедический словарь = Bol’shóy entsiklopyéditcheskiy slovár’]; e de um punhado de outras obras de igual jaez. Se o verbete “Almeida, José Américo de” não entrou em nenhuma edição russa da Bol’shaya Soviétskaya Entsiklopyédiya, não entraria igualmente na Great Soviet Encyclopedia, título recebido pela tradução inglesa dessa imensa obra editorial. A única versão inglesa de tal enciclopédia soviética foi, sim, vertida entre 1974 e 1983, em 31 volumes, a partir da terceira edição em caracteres cirílicos. Viu-se publicada pela prestigiosa editora Macmillan, em associação com editores moscovitas. A edição fez parte dos esforços em prol da détente então entre o Ocidente e o Leste europeu. JOSÉ AMÉRICO VERSUS JORGE AMADO Demo-nos conta, inicialmente, de que a string “José Américo de Almeida” deve ser colocada no Google e noutros motores de busca, inclusive os eslavos, em pelo menos cinco formatos: 1) Жозе Америко де Алмейда; 2) Жозе Америку де Алмейда; 3) Ж. Америко де Алмейда; 4) Жозе Америко; e 5) Жозе Америку ди Алмейда. As razões são óbvias: também lá, na Eurásia, há quem chame o escritor paraibano de “José Américo de Almeida”; outros preferem “Américo de Almeida” e por aí vai o fuzuê. A grafia 5), com “di” em lugar de “de”, é a preferida dos sites em ucraniano, língua irmã do russo como o espanhol o é do português. O degas aqui ainda não se topou com ninguém, no mundo eslavo, que o tratasse por “Zé Américo” — mas, claro, as buscar ainda não passaram da fase inicial... Num site como o Academic.Ru podem se encontrar praticamente todos os livros de Jorge Amado — mas, até agora, NENHUM de José Américo. Se Você acessa um portal russo de Literatura e livros em geral — como é o caso do LiveInternet, do Kniga.ru, do Bank.knig, do MirKnig, Booksbunker, CoolLib, ru.wikipedia.org, Cyclopaedia.net etc etc etc —, verá que existem pelo menos Maio/Junho/2016 |
53
2 mil 850 endereços oferecendo leitura gratuita e/ou paga de textos os mais impressionantemente diversos, inclusive em termos de audiokniga, os livros (originais ou traduzidos) que podem ser “ouvidos”, pois gravados por utentes da língua russa. [Kniga é o termo russo para “livro”]. Encimando a página, um grande anúncio da União Internacional dos Escritores, oferecendo oportunidades para quem deseje participar de contestes literários mundo afora. Então, eis o busílis: o paraibano José Américo de Almeida nem é citado na Wikipedia russa, nem nas demais obras já referidas, ao passo que o baiano Jorge Amado é não apenas citado (e com destaque) em todos esses portentosos livros, portais, blogs e outros ciberentes ou ciberentidades, como seus livros pululam em todo o universo virtual eslavo, pedindo para serem baixados até mesmo gratuitamente (quando não, os preços são bem acessíveis), em edições de qualidade. Um dos livros mais conhecidos de Amado, Gabriela, cravo e canela, por exemplo, pode ser integralmente lido, em língua ucraniana, no URL http://coollib. com/b/313466/read. Tentamos explicar este “problema” a nosso modo. Em primeiro lugar, não obstante José Américo haver servido de modelo, pelo menos de início, para o quase-garoto Jorge Amado, que apenas se iniciava na vida literária (e de ter real importância como o inegável fundador do romance regionalista nordestino), o próprio Jorge se tornaria internacionalmente bem mais conhecido. Em termos numéricos, seus romances ultrapassaram de muito os publicadas pelo homem de letras de Areia (embora se possa dizer que coisas diferentes não devem ser comparadas). Em segundo lugar, e isto talvez seja o mais importante, Jorge Amado — que consta, com foto, como verbete da Bol’shaya Entsiklopyédiya, assinado pelo crítico, biógrafo e historiador literário I. A. Terteryan — logo assumiu abertamente o papel de um comunista visceralmente empenhado na propaganda do modo de vida soviético. Entregou-se de corpo e alma à atitude pós-front popular que, a partir da década de 1930, procurou e obteve apoios para a União Soviética que se firmava, apelando para argumentos antifascistas a que quase ninguém podia resistir... Não perderá tempo quem sobre isto consultar um livro de Nélson Cerqueira, A política do Partido Comunista e a questão do realismo em Jorge Amado [Edição da Casa de Jorge Amado, Salvador, 1988]. MUITO DEVEU A JOSÉ AMÉRICO Para que fique bem claro: Jorge Amado — considerado nos tempos soviéticos como escritor inteiramente cooptado pelo regime comunista russo — tem muito mais tradu-
54
| Maio/junho/2016
ções, noutras línguas, agora o russo, que o paraibano José Américo. Correspondentemente, também a Wikipedia — que mostra José Américo apenas nos idiomas português, catalão, alemão, inglês, espanhol, ido (simplificação do esperanto), italiano e turco — apresenta páginas sobre Amado nas seguintes línguas: espanhol, catalão, galego, francês, italiano, occitano, piemontês, romeno, inglês, alemão, holandês, árabe, asturiano, azeri (do Azerbaidjão), polonês, búlgaro, tcheco, dinamarquês, norueguês (as duas variedades modernas), esperanto, ido (simplificação do esperanto), estoniano, basco (euskara), farsi (persa moderno), finlandês, grego moderno, guarani (abanheém, avañe’ẽ), hebraico, armênio, japonês, chinês, sérvio-croata, esloveno, sueco, turco, ucraniano, casaque (do Casaquistão), coreano, latim, lígure, malgache, quéchua (quítchua ou runa simi) e vietnamita — além, naturalmente, do português. E, no entanto... Depois de País do Carnaval, Jorge Amado, sentindo-se estimulado pela crítica favorável (entre outros de Agripino Grieco e Medeiros de Albuquerque), entregara os originais de Rui Barbosa número 2 a Gastão Cruls, que pouco antes fundara a editora Ariel. Mas, ao ler A bagaceira, de José Américo; Menino de engenho, de José Lins do Rego; A torrente de ferro, de Aleksandr Serafimóvitch; e A cavalaria vermelha, de Isaac Bábel, Amado pediu os originais de volta ao mesmo Gastão Cruls que era também grande amigo de José Américo de Almeida, ao lado de Olívio Montenegro, Lúcia Miguel Pereira, Otávio Tarqüínio de Sousa, José Lins do Rego e muitos outros expoentes de nossa melhor Literatura — e escreveu Cacau. Como Jorge Amado disse: quase ipsis litteris: “Lendo A bagaceira, virei escritor brasileiro; lendo os autores russos, desejei ser ‘romancista proletário’ (sic). O “CAVALEIRO DA ESPERANÇA”... Jorge Amado também escreveu obras de nítida propaganda comunista, sendo o exemplo maior aquele exagero de apologética vermelha, O Cavaleiro da Esperança, espécie de biografia ideológica e romanceada (e praticamente toda inventada) de Luís Carlos Prestes (1898-1990), o revolucionário brasileiro diretamente ligado ao Comintern. Trata-se de libelo rigorosamente panfletário do começo ao fim, tratando-se, como ninguém pode negar, de obra dirigida intencionalmente para um objetivo político maniqueísta, qual seja o de defender com unhas e dentes o perseguido militante comunista que cometeu inúmeros erros de interpretação da realidade nacional, a ponto de ter levado às autoridades do Kremlin a falsa impressão de que o povo brasileiro
estava pronto para rebelar-se e protagonizar uma revolução ao estilo soviético em nossos trópicos. O levante puramente militar, a chamada “Intentona Comunista”, promovida por Prestes e seus poucos companheiros, em 1935, revelou-se um de seus mais completos fracassos, contribuindo para o endurecimento do regime varguista, a perseguição aos comunistas e a ascensão do integralismo dos galinhas-verdes... Para que se restabelecesse a verdade sobre tais períodos da vida nacional, foi preciso esperar pelo surgimento dos trabalhos de um jornalista investigativo e insuspeito como William Waack, com seu livro Camaradas: nos Arquivos de Moscou [Companhia das Letras, 1993], de um historiador como Daniel Aarão Reis, ele mesmo um comunista confesso, e sua biografia de Prestes [Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, Companhia das Letras, 2014]. Aarão Reis, nesta biografia, NEM MESMO chega a citar O Cavaleiro da Esperança, em nenhuma parte de seu ponderado livro, provavelmente porque tal obra deporia contra o próprio Prestes... A EXEMPLO DA LENDA DE OLGA Como ocorreria com a “biografia” de Olga Benario, a mulher de Prestes... Fica claro numa reportagem de Lia Hama [a partir do blog http://super.abril.com.br], “Olga Benário é uma invenção da propaganda comunista”: — Sabe aquela história da Olga Benario, a heroína revolucionária que lutava por uma causa nobre e que acabou morrendo de forma trágica em razão de seus ideais humanistas? Pois é, tudo bobagem. Olga nunca teve a importância que lhe foi dada no livro do jornalista Fernando Morais, cuja versão foi levada [...] às telas do cinema pelo diretor Jaime Monjardim e já arrancou lágrimas de centenas de milhares de pessoas em todo o país. “Na verdade” — prossegue a jornalista — “o mito romântico da revolucionária nasceu da propaganda comunista, que precisava criar exemplos de coragem e bravura entre os jovens da Alemanha na primeira metade do século 20. É o que afirmam movimentos anticomunistas, como o grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), e jornalistas insuspeitos como William Waack, que vasculhou os arquivos secretos da ex-União Soviética em busca de informações sobre o movimento comunista no Brasil [...] Olga só se tornou famosa no Brasil depois da publicação do livro de Fernando Morais, em 1985. Antes, ela praticamente só aparecia em notas de rodapé. Em O Cavaleiro da Esperança, de 1942, biografia escrita por Jorge Amado sobre Luís Carlos Prestes, ela ocupa apenas meia página. No álbum comemorativo dos 60 anos do Partido Comunista Brasileiro,
em 1982, é citada somente em três linhas. Segundo Waack, o livro de Morais é baseado na biografia de Olga feita pela alemã Ruth Werner a pedido do Partido Comunista alemão, em 1962. “São trabalhos que não contam a realidade”, afirmou Waack à revista Época.” William Waack, em seu livro e em vários artigos e reportagens, tem mostrado que manuscritos do líder comunista Luiz Carlos Prestes, encontrados na Moscou pós-URSS, “evidenciam a influência soviética na Intentona Comunista, como ficou conhecida a tentativa de derrubar Getúlio Vargas do governo na década de 1930”. NA ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA Em compensação, a Encyclopaedia Britannica dedica a José Américo de Almeida verbete mais extenso que aquele reservado a outro Almeida escritor, o conhecido contista português e ensaísta político [José Valentim] Fialho de Almeida (1857-1911), do período realista-naturalista da Literatura lusitana. Outros Almeidas figurando ao lado de José Américo, na Britannica, são os já citados Francisco de Almeida (1450-1510), militar, explorador e primeiro vice-rei luso na Índia; Lourenço de Almeida (circa 14501508), navegador português responsável pela provável primeira expedição à ilha de Ceilão, hoje Sri Lanka, e um dos “varões assinalados” objeto da celebração camoniana em Os lusíadas; o escritor fluminense Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), autor das Memórias de um sargento de milícias — e que morreu bem jovem, em naufrágio nas costas brasileiras, quando cumpria tarefas para um jornal de sua terra.
JOSÉ AMÉRICO EM UCRANIANO José Américo e outros escritores brasileiros vão citados na Enciclopédia literária ucraniana [Українська Літературна Енциклопедія], publicação em cinco tomos e saída originalmente em Kiev, entre os anos de 1988 e 1995, estando disponível para consultas no URL http://litopys.org. ua [“ua” é a sigla da Ucrânia na Internet, como “br” é a do Brasil]. A Enciclopédia foi elaborada sob os auspícios do Instituto de Literatura “T. F. Shevtchenko” da Academia de Ciências da Ucrânia. Essa valiosa enciclopédia contém mais de 10 mil artigos assinados por escritores, críticos da Cultura, criticos literários, tradutores, bibliógrafos, folcloristas e outros especialistas em museologia, editoração, jornais, revistas, periódicos, antologias e tudo o mais. Além da Literatura ucraniana, são abordadas as Histórias literárias dos demais países, desde os seuss primórdios até a década de 1990. Aliás, nessa enciclopédia em língua ucraniana, o verbete sobre a Literatura brasileira é assinado por exatamente por Yu. V. Pokal’tchuk (ucraniano da gema, a julgar pelo sobrenome terminado em “tchuk”). O estudioso inclui o romance «Багасейра» [A bagaceira], de “Ж. Амеріку ді Алмейди”, estando aí o Алмейди em lugar de Алмейда por se tratar de um genitivo... Interessante é que o verbete dedica várias linhas à contribuição de imigrantes ucranianos para a Literatura brasileira, especialmente no Paraná (Curitiba em particular) e com o surgimento de jornais em sua língua materna. Esses escritores, inclusive José Américo, são citados também em livros como O romance brasileiro no século XX [Бразильский роман XX века], publicado
em 1965 e de autoria de I. A. Terterian, autor russo de origem armênia. Já o citado Yu. V. Pokal’tchuk é autor de um livro intitulado “Сучасна латиноамериканська проза” [História da ficção latino-americana], publicada em Kiev no ano de 1978. É preciso citar ainda uma obra coletiva, em russo, “История литератур Латинской Америки. От древнейших времен до начала Войны за независимость” [História da Literatura latino-americana, dos tempos coloniais ao início das guerras pela independência”], publicada por uma editora moscovita, em 1985. No entanto, vários outros Almeidas (muito famosos ou praticamente desconhecidos do grande público) encontram-se lá, em tais enciclopédias e dicionários enciclopédicos. UMA INEGÁVEL IMPORTÃNCIA As gerações mais novas podem não ter ainda compreendido o alcance da influência de A bagaceira, mas M. Cavalcanti Proença dá bem a medida do papel que este livro exerceu, ao sublinhar que a obra “era uma denúncia; e só o desmedido talento do romancista poderia ter conseguido fazê-lo, antes de tudo, um verdadeiro, um grande romance, que, na época, foi impacto violento na Literatura brasileira, ainda engatinhando nos caminhos do Modernismo”. Não tem menor valor, claro, o parecer de um João Guimãraes Rosa: “[...] José Américo de Almeida — que abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro”... Gilberto Freyre não ficaria atrás em seu reconhecimento de A bagaceira como um “livro renovador até da língua literária e, também, explosão de quem o escreveu, sensível a circunstâncias sociais; e exprimindo um desejo, no caso nada demagógico, de influir sobre o
Maio/Junho/2016 |
55
social; de denunciar desajustes socialmente dramáticos; e de assim fazer por sentir-se parte de um nós regionalmente brasileiro”. Ivan Bichara Sobreira resumiu tudo: “[A bagaceira é] obra que tem realmente uma importância extraordinária para a Literatura brasileira”. Mas a síntese dessas opiniões, em nosso modesto entender, ficou mesmo com o grande crítico da Cultura Otto Maria Carpeaux: “O número de referências bibliográficas não dá ideia suficiente do êxito e da importância de A bagaceira, romance que abriu nova fase na História literária do Brasil”. TRADUZIDO PARA O CINEMA A citação do nome de José Américo num grupo de discussão que aborda temas cinematográficos tem tudo a ver: em 1976, o diretor Paulo Tiago produziu o filme Soledade, com base no romance A bagaceira e musicado pelo pelo compositor, arranjador e maestro César Guerra-Peixe (1914-1993), tendo no elenco atrizes e atores como Rejane Medeiros, Ney Santana, Jofre Soares, Nélson Xavier e Maurício do Vale, além da participação especial de Maria Ribeiro e Carlos Kroeber. E, em 1982, o notável cineasta paraibano Vladimir Carvalho, que quase sempre atua no Sudeste, rodou o longa-metragem O homem de Areia, documentário sobre José Américo de Almeida. UMA TARDE SOBRENATURAL O destacado crítico paraibano Juarez da Gama Batista, um de nossos professores de Literatura Brasileira na antiga FAFI - Faculdade de Filosofia da UFPB (o outro, mais para o lado da Teoria Literária, foi seu primo, o insigne Virgínius da Gama e Melo) considerava este livro, O boqueirão, como a verdadeira obra-prima de José Américo: “Foi no Sertão que ele [José Américo] viu aquela ‘tarde sobrenatural’ de um dos seus melhores descritivos, de uma das suas melhores intuições de romancista — a ‘tarde sobrenatural’, de revérberos de sol jogando as nuvens pelo chão, que um dia o espantou, saindo de Pombal a caminho da sua comarca; a sugestão óptica que levou um toque do inimaginável da vida à sua obra-prima, a obra-prima esquecida da Literatura brasileira, O boqueirão.” [Juarez da Gama Batista, no ensaio “José Américo: a legenda e a vida”] O sempre correto Ivan Cavalcanti Proença assinalou que A bagaceira “é realmente um romance regionalista [...] É marco dentro do Modernismo brasileiro, de vez que, no campo da ficção, é com tal Regionalismo que os novos caminhos da Literatura, a partir de 1922, começam a firmar-se. A bagaceira é o primeiro deles, em 1928”. Enganam-se, no entanto, os que pensam ser este o PRIMEIRO livro (ou publicação) de José Américo.
56
| Maio/junho/2016
Ele lançara, em 1921, o opúsculo Poetas da abolição, resultante de uma conferência que pronunciara no mesmo ano; e, em 1922, lançara suas Reflexões de uma cabra, ironizada pelo escritor Gustavo Barroso, que, bem depois, receberia o troco de Zé, via outro opúsculo, Reflexões de um bode... JOSÉ AMÉRICO E JOSÉ LINS DO REGO O próprio José Américo era modesto, talvez não surpreendentemente, na forma como interpretava a importância de sua própria contribuição para a autêntica revolução verificada na estética regionalista. De fato, seu romance A Bagaceira, de 1928, constituiu-se sem dúvida em inegável marco inicial da Literatura nordestina, mas, em termos da modernização da linguagem literária propriamente dita, ainda se devia aguardar a contribuição de figuras como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz ***. Nenhum deles jamais negou a precedência, a importância, o significado da contribuição de José Américo. De outra parte, ainda viria, do Sul, o contributo (também regionalista, sim) de um Érico Veríssimo. Poder-se-ia dizer que José Américo, pioneiramente, fez avançar o Modernismo, abrindo as portas do Regionalismo nordestino, mas ainda com laivos dos movimentos estéticos anteriores, inclusive a influência europeia, e que os demais regionalistas, os que o sucederam, alargaram consideravelmente tais portas. No dizer de Alceu Amoroso Lima, José Américo, como regionalista pioneiro, foi “o iniciador de uma nova fase do Modernismo brasileiro” — devendo-se acrescentar a isto que os demais regionalistas, surgidos por ele e depois dele, complementaram magistralmente o trabalho de aproximar ainda mais a arte literária da realidade do povo e do país que este habita. E é Gilberto Freyre quem o diz: “De José Lins do Rego, sei que foi influenciado, em sua formação literária, por José Américo de Almeida e quase nada — antes de me conhecer — por José de Alencar. José Américo de Almeida deu ao autor de Fogo morto o pendor para a Literatura preocupada com o social — com o dramaticamente social. A princípio, ele próprio panfletário, polêmico, veemente no seu modo de ser jornalista político, José Américo de Almeida comunicou de tal modo essa tendência ao então adolescente José Lins do Rego” - que, reinterpretando as palavras do próprio Gilberto Freyre, teria transformado José Lins num novo e talvez maior Mário Rodrigues, “se tivesse se fixado no jornalismo”... — Que afastou José Lins do Jornalismo veementemente panfletário no setor político? Creio que, por um lado, o próprio fato de José Américo de Almeida ter perdido,
com os encargos jurídicos crescentemente importantes que foi assumindo, o ardor polêmico dos dias em que se bateu por grupo político de sua particular afeição: atitude que o levou a ter, por antagonista, um Carlos Dias Fernandes, já autor do nada insignificante A renegada mas de todo entregue ao Jornalismo de província. JOSÉ AMÉRICO E JOAQUIM INOJOSA É bem conhecido o episódio com o “pombo-correio” do Modernismo (e do perrepismo) Joaquim Inojosa, que, depois de receber de José Américo um exemplar dessa conferência sobre os poetas abolicionistas, escreveu no jornal oficial do Estado da Paraíba, A União, edição de 20 de setembro de 1921, manifestando sua admiração pela cultura e inteligência de José Américo, mas, ao mesmo tempo, exercendo sua crítica ao escrito do autor. O jornal, por esse tempo, era dirigido pelo irrequieto Carlos Dias Fernandes. E, por falar em Inojosa, torna-se até compreensível, para nós, à luz do que hoje se sabe, que se haja tentado ofuscar o papel de José Américo como pioneiro de uma nova concepção regionalista do romance brasileiro. Joaquim Inojosa, por sinal, contactou José Américo (sozinho ou, uma vez, em 1966, no Rio de Janeiro, em companhia do escritor Ivan Bichara Sobreira) para esclarecer esse ponto: se A bagaceira devia algo aos congressos regionalistas capitaneados por Gilberto Freyre... Terá sido este ponto suficientemente superado, para o leitor comum? Inojosa foi um que, seja como estudante de Direito, em Recife, seja bem depois, já no Sudeste, como observador de várias décadas, sempre manifestou irrestrita admiração pelo espírito de José Américo e por sua influência, como um dos mais destacados autores dos movimentos literários de cunho social, em verdade um mestre entre tantas estrelas. Em nosso acanhado entender, porém, não se pode negar que somente POUCO DEPOIS da publicação de A bagaceira, em 1928, é que Gilberto Freyre lançou com grande repercussão o “Manifesto Regionalista”. Claro, porém, que as atividades do Centro respectivo já se desenvolviam havia alguns anos, no Recife. Também neste particular, para não falar de outros, é da maior pertinência ler um trabalho intitulado “O movimento modernista em Pernambuco: a correspondênia entre Joaquim Inojosa e José Américo de Almeida (1966-1968), de autoria de Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira, da USP, publicado em Imburana, revista do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses da UFRN (julho-dezembro de 2012, disponível na Internet).
SÃO OS DO NORTE QUE VÊM!... Depois da obra pioneira e seminal de José Américo é que viriam Amando Fontes (Os corumbas), Rachel de Queiroz (O quinze), José Lins do Rego e o ciclo da cana-de-açúcar e do cangaço, Graciliano Ramos (Vidas secas e São Bernardo), Jorge Amado e, mais tarde, “baixando a região e o cenário”, Mário Palmério, José Cândido de Carvalho, Guimarães Rosa, Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis [...] E, afinal, há que se lembrar: neste tipo de Literatura, as origens vêm de longe, daquele Sertanismo Romântico e, portanto, não é coincidência que se encontrem, impulsionados por uma consciência de Literatura nacional, as temáticas do Sertão do Romantismo e do Nordeste pós-1922. Por sinal, o mui insuspeito Tristão de Ataíde considerava José Américo “um modelo autêntico de democrata”, como deixou dito em seu discurso de recepção ao colega paraibano na Academia Brasileira de Letras. No melhor estilo “São os do Norte que vêm!” (na expressão cunhada por Tobias Barreto, carnavalizada por Manuel Bandeira e bem depois reaproveitada por Ariano Suassuna), o crítico Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima) saudou A bagaceira de modo exemplar, com seu artigo “Uma revelação”, ainda em 1928, na Imprensa carioca: “Temos um grande romancista novo. Não sei se velho ou novo de idade. Sei apenas que autor de um livro sensacional [...] Eu afirmo sem hesitar: este livrinho de um desconhecido pode ser colocado, com vantagem, ao lado dos maiores romances brasileiros. Pois não é apenas um grande livro nosso: é um grande livro humano”... Todos gostamos de estudar esses temas a fundo — mas, às vezes, dá um desânimo quase intransponível, ao ver que, em determinados sites e/ou portais online, dizem-se barbaridades como: * José Américo nasceu na cidade de “Areia Branca”; * ou que a cidade interiorana que se revoltou, na Paraíba, sob o comando do “coronel” José Pereira Lima, foi “São José de Princesa”, quando se sabe que a cidade hoje com esta designação era um povoado integrante da verdadeira Princesa (depois Princesa Isabel), que se declarou território livre e independente do domínio estatal da Paraíba... MAIS FÁCIL ACHAR UM UNICÓRNIO A certa altura do andar da carruagem, em nossa encucação de “achar Zé Américo em russo ou em qualquer outra língua eslava”, e como estava ficando mais fácil encontrar um unicórnio azul na Lagoa Parque Solon de Lucena, Centro de João Pessoa, apelamos para nossa grande amiga Milu Duarte (Милу Дуарте), professora e intelectual mineira que leciona português, inglês e russo em Belo Horizonte e que, de tão eslavófila militante
(por intermédio de seus blogs, portais e demais sites), está de quanto em vez viajando com o marido para a Rússia, país cuja cultura sempre admirou. Desta forma, dispõe de uma grande rede de amigos em pontos-chave da antiga URSS. Ainda assim, a Milu, depois de cascavilhar para lá e para cá, concordou conosco quanto às dificuldades em “achar Zé Américo no Leste europeu”. Num primeiro momento, ela mandou-nos dizer: — Menino Druzz! Que coisa mais difícil esta de encontrar livros do grande José Américo de Almeida traduzidos para idiomas eslavos! Pedi ajuda a vários amigos, mas, até agora, poucos me responderam, todos sempre alegando nada terem. A maioria dos russos com quem contatei desconhece o autor citado e qualquer de suas obras. Eu também, pessoalmente, estou procurando nos sites que conheço, mas, até agora, nada. Encontro, sim, muitas referências a ele e, quando vou ver, me direcionam para sites brasileiros. De todo modo, continuo esperando as respostas de outros amigos, ao tempo em que igualmente continuo em minha própria busca. Большое спасибо, Милу Дуарте! [Muito obrigado, Milu Duarte!] Num segundo momento, a Dra. Milu escreveu para a livraria moscovita em que adquire seus livros livros do Leste europeu, “mas eles também desconhecem alguma edição russa de livros de José Américo de Almeida”. E prossegue nossa boa amiga belzontina: “Por enquanto, nada. Achei um artigo sobre ele e continuo na busca. Meus amigos, idem. O artigo com que me topei, caso lhe interesse, é o seguinte: http://cheloveknauka.com/brazilskaya-literatura-xx-veka-problema-stanovleniya-natsionalnoy-traditsii: “Бразильская литература XX века: проблема становления национальной традиции автореферат и диссертация на тему Литература народов стран зарубежья (с указанием конкретной литературы)”, no link cheloveknauka.com [Este título pode ser traduzido como “A Literatura brasileira do século XX: o problema da formação da tradição nacional e uma dissertação sobre a Literatura dos povos de países estrangeiros (com a indicação da Literatura em questão)”. Mas adianta ainda a competente professora Milu Duarte, que já me presenteou, ao longo da vida, com muitos tesouros da língua russa: — Meu caro Evandro da Nóbrega, O artigo que te enviei não é todo dedicado ao José Americo; apenas um trecho a ele se refere. De outra parte, pelo que estou percebendo, o livro pode ter sido traduzido como “Отбросы” [Otbrossy], que seria “bagaceira” no sentido de “lixo”, “entulho”, “bobagem”, “futilidade”... Você tem certeza de que o titulo de A bagaceira em russo é “Багасейра” mesmo? Realmente, estou
muito triste. Meus amigos não encontraram nada. Um deles foi à Universidade Lomonosov verificar in loco, na biblioteca, e nada encontrou. Ele também indagou a alunos do curso de português, na dita Universidade, se eles conhecem o autor, mas nada. Eu, da minha parte, também não achei nadica. Desculpa, Evandro. Adoraria te ajudar, mas, desta vez, não esteve a meu alcance. Continuo procurando, mas já desiludida... Não há o que desculpar, cara Milu Duarte! Você fez o possível! Além do mais, com suas indicações, consegui materiais altamente interessantes, que podem muito bem render vários outros artigos, a propósito de José Américo — ou não. E, quanto àquele artigo que Você apontou acima, ele é justamente o mesmo de que trato ao longo deste ensaio, como poderá constatar — só que o mesmo artigo, disseminado em diferentes endereços da Internet russa, recebe títulos diferentes em diferentes websites — embora sempre mantenha a referência à “Бразильская литература XX века” / “Literatura brasileira do Século XX”... Ainda uma última coisa: foi nesse mesmo artigo que li a sugestão de que A bagaceira teve, tem ou teria a versão russa “Багасейра”, como “O boqueirão” seria vertido como “Яма”, no sentido de “buraco”, “poço profundo”, “depressão no terreno” etc. Veja que, em inglês, “bagaceira” pode ser “trash” (“lixo”) ou “cane-trash” = “lixo da cana”, “bagaço da cana”, “resíduos da cana-de-açúcar”; mas, em espanhol e esperanto, ficou sendo respectivamente “bagacera” e “bagasejo”... Ademais, lemos na obra Пять недель в Южной Америке [“Cinco semanas na América do Sul”], publicado em 1949 pelo cientista, botânico e geógrafo russo Leonid Yefimovitch Rodin [Леонид Ефимович Родин, 1907-1990] e hoje com várias edições, tiradas ao longo desses anos, que: “Крупный бразильский писатель Америко де Альмейда в романе «Багасейра» эпиграфом поместил одну фразу, которой с глубокой художественной лаконичностью оценил бедственное положение народа своей страны: «Есть большее несчастье, чем умереть от голода в пустыне, — это не иметь пищи в обетованной земле». Traduzindo livremente do original russo: “Um dos maiores escritores brasileiros, José Américo de Almeida colocou como epígrafe de seu famoso romance A bagaceira uma frase marcante, que, com intensa brevidade artística descreveu a situação do povo de seu país: “Há desgraça maior que morrer de fome no deserto — é não ter o que comer na Terra prometida, na terra de Canaã”... [Evandro da Nóbrega g druzzevandro@gmail.com]. Maio/Junho/2016 |
57
COLABORADORES A. J. Pereira da Silva (In Memoriam) – Nº 9, Nº 11 Abelardo Jurema Filho – Nº 5, Nº 11 Adylla Rocha Rabello – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Afonso Arinos (In Memoriam) – Nº 12 Alceu Amoroso Lima (In Memoriam) – Nº 15 Alcides Carneiro (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Aldo Di Cillo Pagotto – Nº 8 Aldo Lopes Dinucci – Nº 9 Alessandra Torres – Nº 9 Alexandre de Luna Freire – Nº 1 Ângela Maria Rubel Fanini – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Aluísio de Azevedo (In Memoriam) – Nº 13 Álvaro Cardoso Gomes – Nº 5 Américo Falcão (In Memoriam) – Nº 9 Ana Isabel Sousa Leão Andrade – Nº 15 André Agra Gomes de Lira – Nº 1 Andrès Von Dessauer – Nº 7, Nº 8, Nº 9, Nº 10, Nº 11, Nº 12, Nº 13, Nº 14 Ângela Bezerra de Castro– Nº 1, Nº 11 Anna Maria Lyra e César – Nº 6 Anníbal Bonavides (In Memoriam) – Nº 8 Antônio Mariano de Lima – Nº 4 Ariano Suassuna (In Memoriam) – Nº 14 Assis Chateaubriand (In Memoriam) – Nº 12 Astênio César Fernandes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 8 Augusto dos Anjos (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Aurélio de Lyra Tavares (In Memoriam) – Nº 13 Berilo Ramos Borba – Nº 3 Boaz Vasconcelos Lopes – Nº 7 Camila Frésca – Nº 5 Carlos Alberto de Azevedo– Nº 4, Nº 6, Nº 11 Carlos Alberto Jales – Nº 2, Nº 12, Nº 14 Carlos Lacerda (In Memoriam) – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Carlos Meira Trigueiro – Nº 2, Nº 5 Carlos Pessoa de Aquino – Nº 5 Chico Viana – Nº 1, Nº 2, Nº 4, Nº 6, – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 10, Nº 13, Nº 14 Ciro José Tavares – Nº 1 Cláudio José Lopes Rodrigues – Nº 5, Nº 6 Cláudio Pedrosa Nunes – Nº 7 Cristiano Ramos – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Cristovam Buarque – Nº 10 Damião Ramos Cavalcanti – Nº 1, Nº 11 Diego José Fernandes – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Diógenes da Cunha Lima – Nº 6 Durval Ferreira – Nº 7 Eça de Queiroz (In Memoriam) – Nº 14 Eilzo Nogueira Matos – Nº 1, Nº 4, Nº 7, Nº 13 Eliane de Alcântara Teixeira - Nº 6 Eliane Dutra Fernandes – Nº 8, Nº 14 Elizabeth Marinheiro – Nº 12 Emmanoel Rocha Carvalho – Nº 12 Érico Dutra Sátiro Fernandes - Nº 1, Nº 9 Ernani Sátyro (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 7, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, Nº 11, Nº 15 Esdras Gueiros (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Eudes Rocha - Nº 3 Evaldo Gonçalves de Queiroz - EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Nº 8 Evandro da Nóbrega- Nº 2, Nº 4, Nº 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, Nº 11, Nº 14, Nº 15 Everaldo Dantas da Nóbrega – Nº 13 Everardo Luna (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Ezequiel Abásolo - Nº 8 Fábio Franzini – Nº 7 Fabrício Santos da Costa – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Firmino Ayres Leite (In Memoriam) - Nº 4 Flamarion Tavares Leite – Nº 8 Flávio Sátiro Fernandes – Nº 1, Nº 2, Nº 4, Nº 6, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, Nº 7, Nº 8, Nº 9, Nº 10, Nº 11, Nº 13, Nº 14 Flávio Tavares – Nº 3 Francisco de Assis Cunha Metri (Chicão de Bodocongó) - Nº 2 Francisco Gil Messias – Nº 2, Nº 5, Nº 14 Gerardo Rabello – Nº 11 Giovanna Meire Polarini – Nº 7 Glória das Neves Dutra Escarião – Nº 2 Gonzaga Rodrigues – Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Nº 11 Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins – Nº 4, Nº 8 Hamilton Nogueira (In Memoriam) – EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Hélio Zenaide – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Hildeberto Barbosa Filho – Nº 11, EE José Lins do Rego/Novembro/2015
58
| Maio/junho/2016
Iranilson Buriti de Oliveira – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Itapuan Botto Targino – Nº 3 João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (In Memoriam) – Nº 4 Joaquim de Assis Ferreira (Con.) (In Memoriam) – Nº 6 Joaquim Osterne Carneiro – Nº 2, Nº 4, Nº 7, Nº 9, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, Nº 11, Nº 14 José Américo de Almeida (In Memoriam) – Nº 3, Nº 10, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, Nº 15 José Jackson Carneiro de Carvalho – Nº 1 José Leite Guerra – Nº 6 José Lins do Rego (In Memoriam) – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 José Loureiro Lopes – Nº 14 José Mário da Silva Branco – Nº 11, Nº 13 José Octávio de Arruda Melo – Nº 1, Nº 3, Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Nº 9, Nº 13, Nº 15 José Romero Araújo Cardoso – Nº 2, Nº 3, Nº 10, Nº 11 José Romildo de Sousa – Nº 14 José Sarney – nº 15 Josemir Camilo de Melo – Nº 11 Josinaldo Gomes da Silva – Nº 5, Nº 10 Juarez Farias – Nº 5 Juca Pontes – Nº 7, Nº 11 Linaldo Guedes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Lourdinha Luna – EE/Pedro Moreno Gondim/2014, Nº 7, Nº 13, Nº 15 Lucas Santos Jatobá – Nº 14 Luiz Augusto da Franca Crispim (In Memoriam) – Nº 13 Luiz Fernandes da Silva- Nº 6 Machado de Assis (In Memoriam) – Nº 9 Manoel Batista de Medeiros – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Manuel José de Lima (Caixa Dágua) – Nº 13 Marcelo Deda (In Memoriam) – Nº 4 Marcílio Toscano Franca Filho - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Marcos Cavalcanti de Albuquerque – Nº 1 Margarida Cantarelli - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Maria das Neves Alcântara de Pontes – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Maria do Socorro Silva de Aragão – Nº 3, Nº 10, Nº 15 Maria José Teixeira Lopes Gomes – Nº 5, Nº 8 Maria Olívia Garcia R. Arruda – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Marinalva Freire da Silva – Nº 3, Nº 9 Mário Glauco Di Lascio – Nº 2 Mário Tourinho – Nº 13 Martinho Moreira Franco – Nº 11 Matheus de Medeiros Lacerda - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Mercedes Cavalcanti (Pepita) – Nº 4 Milton Marques Júnior – Nº 4 Moema de Mello e Silva Soares – Nº 3 Neide Medeiros Santos – Nº 3, Nº 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, EE/José Lins do Rego/ Novembro/2015, Nº 15 Nelson Coelho – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Neno Rabello – Nº 11 Neroaldo Pontes de Azevedo – Nº 2 Octacílio Nóbrega de Queiroz (In Memoriam) - Nº 6, nº 15 Oswaldo Meira Trigueiro – Nº 2, Nº 5, Nº 6, Nº 7, Nº 9, Nº 10, Nº 13 Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Melo (In Memoriam) – EE/Epitácio da Silva Pessoa/ Maio/2015 Otaviana Maroja Jalles - Nº 14 Otávio Sitônio Pinto – Nº 7 Paulo Bonavides – Nº 1, Nº 4, Nº 5, Nº 9, Nº 10, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, Nº 12, Nº 14, Nº 15 Pedro Moreno Gondim (In Memoriam) – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Raimundo Nonato Batista (In Memoriam) – Nº 3 Raúl Gustavo Ferreyra – Nº 5 Raul de Goes (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Raul Machado (In Memoriam) – Nº 4 Renato César Carneiro – Nº 3,Nº 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014,Nº 7,Nº 9 Ricardo Rabinovich Berkmann – Nº 5 Roberto Rabello – Nº 11 Rostand Medeiros – Nº 12 Severino Ramalho Leite – Nº 4, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, Nº 13, Nº 15 Socorro de Fátima Patrício Vilar – Nº 10 Thanya Maria Pires Brandão – Nº 4 Tiago Eloy Zaidan – Nº 11, Nº 13 Vanessa Lopes Ribeiro – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Verucci Domingos de Almeida – Nº 5, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Virgínius da Gama e Melo (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Waldir dos Santos Lima – EE/Pedro Moreno Gondim/Novembro/2014 Walter Galvão – Nº 3, Nº 9, Nº 15 Wills Leal – Nº 2, Nº 7 EE=Edição Especial
Maio/Junho/2016 |
59