GENIUS 21

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Epitácio Pesoa O Brasileiríssimo

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CARTA AO LEITOR Sobressai entre as matérias divulgadas por GENIUS, nesta edição, a notícia do lançamento do livro póstumo do saudoso economista Ronald de Queiroz Fernandes, patoense de nascimento, um dos mais renomados estudiosos da ciência econômica entre nós, sempre referido como discípulo e próximo seguidor de Celso Furtado, notadamente, o Celso fundador da SUDENE e responsável pelo fortalecimento do órgão, em sua primeira fase. Trata-se de uma coletânea de trabalhos científicos versando em sua grande maioria sobre o Nordeste, que foi a preocupação maior de Ronald, no decorrer de sua vida profissional. O livro tem Prefácio, que GENIUS transcreve com orgulho nesta edição, do Professor Paulo Bonavides, outro patoense, radicado no Ceará, de cuja Faculdade de Direito é Professor Emérito. Ainda em homenagem a Ronald, transcrevemos a excelente análise que ele faz da personalidade política de Ibiapina, o santo missionário cuja beatificação corre, presentemente, no Vaticano. Um assunto que vem sendo motivo de controvérsia, polêmica e preocupação, nos meios políticos, religiosos e educacionais, é a chamada ideologia de gênero, motivo de recente manifestação do Papa Francisco, que não temeu condená-la, conforme a notícia que aqui damos de seu pronunciamento, secundado pelo do Cardeal africano Robert Sarah, atual Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos no Vaticano. O retorno do latim ao currículo dos nossos cursos secundários está sendo defendido, com muita razão, pelo Professor José Loureiro Lopes, que o faz com muita proficiência. É sobremodo conhecido o conceito de homicídio, como tipo penal constituído pelo ato de tirar a vida de um semelhante, seja homem ou mulher a vítima. Modernamente, porém, surgiu a figura delituosa do feminicídio, cuja tipificação já foi incorporada ao nosso direito criminal. Dele trata o trabalho de autoria da Professora Aline Passos. As horas amargas de intolerância e solidão, que cercaram os dias de João de Seixas Doria, político sergipano que pertenceu à União Democrática Nacional e foi cassado e perseguido pelo movimento militar de 1964, constituem motivo do excelente discurso da Professor Patrícia Sobral de Sousa, ao tomar posse na Academia Sergipana de Letras, na vaga deixada por aquele saudoso político. Outras matérias mais encontrará o leitor nas páginas desta edição de GENIUS, esperando-se que todos tirem bom proveito de sua leitura. NOTA: A última edição de GENIUS, trazendo como tema de capa o lançamento do livro A Fauna Ilustrada da Fazenda Tamanduá, saiu como número 17 de suas edições. Estranhará o leitor que esta edição seguinte venha a público como número 21, dando um pulo de quatro números. Isso se dá para corrigir um equívoco. É que, ao longo desse tempo, GENIUS teve quatro edições especiais, dedicadas a Pedro Gondim, Augusto dos Anjos, Epitácio Pessoa e José Lins do Rego, as quais não receberam numeração, ocasionando um descompasso na ordem de nossas edições e deixando de registrar corretamente o andamento de nossa caminhada. Alterando a numeração, fica corrigida a falha. Muito obrigado.

Setembro/Outubro/2016 - Ano IV Nº 21

SUMÁRIO

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VARILUX EM TRÊS TEMPOS Andrés von Dessauer

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O LATIM NA EDUCAÇÃO BÁSICA José Loureiro Lopes

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SEIXAS DÓRIA: AS HORAS AMARGAS DE INTOLERÂNCIA E SOLIDÃO Patrícia Sobral de Sousa

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RUMO À CAPITAL PARAIBANA Flávio Sátiro Fernandes

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AS AGRURAS DO HOMEM DO CAMPO NOS ESTADOS UNIDOS PÓS-1929 Tiago Eloy Zaidan

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CAMPINA GRANDE E O COMÍCIO DA PRAÇA DA BANDEIRA Samuel Duarte

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O FEMINICÍDIO NAS FRONTEIRAS DA AMÉRICA LATINA: UM CONSENSO? Aline Passos

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ARTE E MILITÂNCIA CULTURAL EM CHICO PEREIRA JR. José Octávio de Arruda Mello

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UMA PONTE SOBRE O ABISMO Equipe GENIUS

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IBIAPINA, O POLÍTICO Ronald de Queiroz Fernandes

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CINCO POEMAS DE VIOLETA FORMIGA TARCÍSIO BURITY, WILSON AQUINO, TOMÁS DE AQUINO — E OS 11 VOLUMES DA SUMMA THEOLOGICA (EM LATIM E PORTUGUÊS!) NAS ESTANTES DO DEGAS AQUI. Evandro da Nóbrega PAPA FRANCISCO DIZ QUE QUE A DOUTRINAÇÃO DAS CRIANÇAS COM A IDEOLOGIA DE GÊNERO É UMA MALDADE, ALÉM DE REPRESENTAR UMA COLONIZAÇÃO IDEOLÓGICA. Equipe GENIUS

Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br Impresso nas oficinas gráficas de A União Superintendência de Imprensa e Editora CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA

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COLABORAM NESTE NÚMERO: 4

ALINE PASSOS SANTANA [O feminicídio nas fronteiras da América Latina: um consenso?] Professora de Direito Penal e Criminologia na Faculdade Estácio de Sergipe (FASE). Pesquisadora no Nu-Sol. Doutoranda em Sociologia no PPGS-UFS (Contato: alinepjsantana@yahoo.com.br) ANDRÈS VON DESSAUER [Varilux em três tempos] Mestre em Economia e Ciência Política pela Universidade de Munique, Alemanha. Comentarista cinematográfico, no triângulo Rio, São Paulo, Paraíba, sobre filmes “cults”. Articulista em vários periódicos brasileiros. EVANDRO DA NÓBREGA [TARCÍSIO BURITY, WILSON AQUINO, TOMÁS DE AQUINO — E OS 11 VOLUMES DA SUMMA THEOLOGICA] Jornalista, escritor, historiador, pesquisador, poliglota. Publisher consagrado, responsável pela editoração de importantes obras da bibliografia paraibana, é membro do IHGP. FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES [Rumo à capital paraibana] Membro da Academia Paraibana de Letras e IHGP. Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Autor dos livros História Constitucional da Paraíba e História Constitucional dos Estados Brasileiros, este em parceria com o Professor Paulo Bonavides. Diretor da revista GENIUS. Romancista, poeta, historiador. JOSÉ LOUREIRO LOPES [O latim na educação básica] Ex-Reitor do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE). Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Ex-Secretário de Educação da Paraíba. Membro da Academia Paraibana de Letras. JOSÉ OCTÁVIO DE ARRUDA MELLO [Arte e militância cultural em Chico Pereira Junior] Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Ex-Professor do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE) e da Universidade Estadual da Paraíba. Membro da Academia Paraibana de Letras e do IHGP. Autor de diversas obras, dentre as quais A revolução estatizada. PAULO BONAVIDES [Prefácio ao livro Uma ponte sobre o abismo, de Ronald Queiroz] Professor Emérito da Faculdade de Direito do Ceará. Doutor Honoris Causa por diferentes

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Universidades estrangeiras. Autor de extensa bibliografia de direito constitucional. Autor da obra História Constitucional dos Estados Brasileiros, juntamente com o Professor Flávio Sátiro Fernandes. RONALD DE QUEIROZ FERNANDES (In Memoriam) (Patos, 1932 – João Pessoa, 2006) [Ibiapina, o político] Bacharel em Direito, requisitado pela Economia. Fez cursos na Fundação Getúlio Vargas e na School of Public Administration da Universidade de Denver, no Colorado, Estados Unidos, com estágio no setor de planejamento da Prefeitura de Los Angeles (LA/ EUA). Foi professor da Faculdade de Ciências Econômicas de João Pessoa e da Faculdade de Ciências Econômicas de Campina Grande. Ocupou diversos cargos públicos na administração estadual, depois de ter sido Secretário da Prefeitura de Patos, sua terra natal, e Vereador e Presidente da Câmara Municipal daquela cidade. Deputado estadual, teve seu mandato cassado por ato do poder militar. SAMUEL DUARTE (In Memoriam) (Alagoa Nova (PB), 1904 – Rio de Janeiro, 1979) [Campina Grande e o comício da Praça da Bandeira][O conflito de Campina Grande] Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Membro da Academia Paraibana de Letras e do IHGP. Historiador. TIAGO ELOY ZAIDAN [As agruras do homem do campo nos Estados Unidos pós-1929] Mestre em Comunicação Social pela Universidade Fedral de Pernambuco; coautor do livro Mídia, movimentos sociais e direitos humanos (Organizado por Marco Mondaini, /editora Universitária da UFPE, 2013) e Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). VIOLETA FORMIGA (In Memoriam) (Pombal, 1951 – João Pessoa, 1982) [Cinco poemas] Depois de cursar os estudos primários e secundários em sua terra natal, transferiu-se para João Pessoa, onde ingressou no curso de psicologia da Universidade Federal da Paraíba. Publicou o livro Contra cena. Após sua morte, amigos se reuniram e, depois de coligir poesias inéditas de Violeta, fizeram editar o livro Sensações.


CINEMA VARILUX EM TRÊS TEMPOS Andrés von Dessauer

Desde o primeiro Festival de Cinema, celebrado em Veneza, em 1932, esses eventos se multiplicaram mundo afora. E, hoje, apenas os oficiais, totalizam mais de 200 espraiados em 18 países. Só no Brasil é fácil contabilizar mais de 60 desses festivais. Embora nenhum possua relevância internacional (reflexo de país que prima pela quantidade em detrimento da qualidade). Aliás, se o assunto é quantidade, em segundo lugar, com projeção internacional bastante tímida, figura Portugal com seus mais de 30 eventos anuais. De forma oposta, os USA conta, no mesmo período, com apenas 6 dessas celebrações, já a Alemanha com, tão somente, 4 e Cuba o restringe a 1. A França, por sua vez, organiza aprox. 17 festivais dessa natureza. Dentre esses, por obvio, não se computa o VARILUX que, nascido da iniciativa privada, carrega consigo o objetivo subjacente de promover sua marca. Porém, não obstante esse foco comercial é impossível não reconhecer seu intento de propagar a cultura francesa. Pena que poucos foram os filmes da atual amostra que alcançaram esse objetivo. Contudo, já em sua 7ª edição o dito Festival dá mostras de que veio para ficar. E, por isso, os artigos, abaixo, trazem as impressões de suas três últimas edições (2014, 2015 e 2016 ), para que o leitor possa criar suas próprias expectativas sobre as futuras amostras. VARILUX - Varrendo luxo e lixo Em sua 5ª edição no Brasil o Festival VARILUX alcança 70 salas de cinema, distribuídas em 45 cidades e, contou com 16 filmes de gêneros diversos. Não obstante essas proporções, não há como negar que o dito festival francês vem decaindo de qualidade ano após ano, cedendo espaço para produções menos expressivas ou se afastando da busca pela inovação. Tanto é assim que, em um claro intento de resgatar a ‘nouvelle vague’ (‘nouvelle maladie’ para alguns), integra o rol desse evento, ‘OS INCOMPREENDIDOS’, primeira obra de François Truffaut exibida em 1959. Com essa fuga para passado, justificada sob a frágil qualificação de ‘homenagem’, é possível observar

que as lentes ‘multifocais’ do aludido festival encontram-se, aparentemente, embaçadas, tendo em conta seu objetivo original de divulgar as inovações do cinema francês. Assistir em 3 dias aos 16 filmes exibidos do festival e garimpar, com a ajuda de café e Coca-Cola, alguma preciosidade, foi uma tarefa que exigiu paciência e perseverança. E o resultado foi decepcionante. Nem mesmo o iraniano Asghar Farhadi, conseguiu mostrar com ‘O PASSADO’ - retratando uma ‘disputa familiar’ em território francês - a precisão dramática, presente em ‘A SEPARAÇÃO’. Com ‘UMA JUÍZA SEM JUÍZO’ a comédia de Albert Dupontel preenche o esperado requisito da originalidade, mas tem dificuldade de ritmo no que tange ao humor e, em vista disso, é superada pelos ‘GRANDES GAROTOS’ do diretor Anthony Marciano. A esperada biografia ‘YVES SAINT LAURENT’ de Jalil Lespert, também deixou a desejar, pois faz parecer que a vida deste ícone da ‘haute couture’ se limita aos desfiles e beijos tímidos ‘multifocais’. Talvez a única obra de espírito genuinamente francês seja a comédia relacionada à famosa ’Tour de France’, intitulada ‘LA GRANDE BOUCLE’ de Laurent Tuel. De fato, com um roteiro empolgante essa película consegue não só agradar aos adeptos do ciclismo, como também conta com ótimos cartões postais de várias regiões da França. E essa fusão de simplicidade, originalidade e marqueting fizeram com que esse trabalho rompesse o ciclo de notas baixas da mostra. Mas quem roubou a cena na 5 ª edição foram as cineastas presentes no festival. Os dois diretores com os quais tive contato em São Paulo esbanjaram simpatia e interesse em responder perguntas. O bem humorado Jean-Pierre Jeunet (‘O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN’) reagiu com espiritualidade a minha audácia em apontar os ‘goofs’ do seu recente filme ‘UMA VIAGEM EXTRAORDINÁRIA’. Vale dizer que na ‘cidade que nunca dorme’, Jeunet se prontificou a exibir e comentar, de forma inovadora, sua obra para uma platéia de aprox. 120 alunos entre 9 e 15 anos de idade. Isso porque, a película em questão,

trata sobre a pesquisa, a invenção e o ‘saber’ de um garoto. Por fim, pode-se dizer que a presente edição do Varilux varreu tanto luxo quanto lixo. Resta a esperança que na 6ª mostra, em 2015, as lentes estejam menos embaçadas e a que o processo de seleção volte a se direcionar ao que há de melhor na atual cinematografia de língua francesa. VARILUX – Quo vadis? Em sua sexta edição o festival VARILUX, versão 2015, como praxe, alcançou quase 50 cidades brasileiras, ocupando, aproximadamente, oitenta salas de projeção. Mas, se as lentes que dão nome a esse evento estavam embaçadas em 2014 (com apenas uma película –‘La Grande Bucle’- voltada à França), na atual temporada pode-se dizer que esse embaçamento persiste, já que só a comédia ‘Qu’est-cequ’on a fait au Bon Dieu?’ (‘Que mal fiz eu a Deus?’) poderia ser apontada como detentora de um argumento genuinamente francês. Com efeito, sem o menor pudor de flertar com o estilo pastelão, esse trabalho aborda de forma jocosa o atual espirito francês no que tange à problemática dos conflitos étnicos e da nova identidade nacional resultante da miscigenação. E todo esse movimento de mutação é captado do ponto de vista familiar, em um claro exemplo de que o público nada mais é que um reflexo condensado do privado. Além do filme acima, entre os dezesseis trabalhos só ‘La Tête Haute’ (‘De Cabeça Erguida’), e ‘Hipócrates’, merecem maior atenção, apesar de carecerem de características tipicamente francesas. O primeiro que, aliás, abriu o Festival de Cannes deste ano, conta com a boa performance de Catherine Deneuve ao incorporar uma juíza de Vara da Infância e Juventude. Mas, o show fica por conta do estreante Rod Paradot, no papel de delinquente mor. Já em Hipócrates (apesar de muito inferior ao filme franco canadense ‘Invasões Bárbaras’ - 2003), o espectador se depara não apenas com mais um roteiro sobre a tortuosa questão da eutanásia, como também testemunha os problemas administrativos de uma organização hospitalar. Setembro/outubro/2016 |

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Para o espectador avesso aos ‘blockbusters’, a mostra Varilux (empresa reconhecida por suas lentes antirreflexos) parece ter perseguido o mesmo atributo de seus produtos ao optar por uma coletânea de filmes pouco ou nada reflexivos. De fato, se estivéssemos diante de uma lista de indicados ao Troféu Framboesa’ (prêmio concedido aos piores trabalhos cinematográficos) dois filmes mereceriam destaque: ‘O Diário de uma Camareira’ e ‘O Preço da Fama’ que investe mais de meia hora no desterro/enterro de um caixão. Nesse mar de baixa qualidade, o espectador talvez encontre uma ilha no antigo filme do cineasta Philippe de Broca, ‘O Homem do Rio’ que, por ironia, também não mostra a França, mas, sim o Rio de Janeiro nos meados dos anos 60. Contudo, se a intenção era homenagear de Broca porque não optar pelo clássico ‘Le Roi de Coeur’ (‘Esse Mundo é dos Loucos’), uma das mais aclamadas obras da mesma década? Para o espectador de fim de semana, o festival até pode ser uma boa distração. Mas, para aquele mais voraz, que procura criatividade e qualidade a pergunta, até então sem resposta, é: ‘QUO VADIS, VARILUX ?’ VARILUX 2016 – À meia-luz Fundada em 1959 a marca VARILUX é, mundialmente, conhecida pela qualidade de

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suas lentes oftálmicas. Nos últimos anos o nome dessa mesma empresa também passou a evocar ‘cultura’ por ser patrocinadora do cinema francês através do Festival Varilux. Em sua 7ª edição o dito Festival alcançou no Brasil 52 cidades e, não deixa de ser uma espécie de abrigo para os espectadores que buscam mais que ‘blockbusters’. Pena que, o resultado deste ano não foi melhor que a baixa média dos anos anteriores. A amostra deste ano teve início com ‘CHOCOLAT’, obra que segundo o marketing trata-se de uma homenagem ao primeiro palhaço negro da arte circense na França. E, sob esse prisma, o trabalho até tem seu mérito. Mas, o fato é que, sua pouca graça cede, rapidamente, espaço ao constrangimento resultante das intermináveis interações em que o palhaço negro apanha do branco. Pode-se se concluir, por outro lado, que a escolha desse filme para a abertura do Festival seria uma forma de redenção considerando que Paris concentra uma das maiores colônias de emigrantes negros na Comunidade Europeia, provenientes das ex-colônias francesas no continente africano. Entretanto, se a ideia desse evento é disseminar a cultura francesa através do cinema, soa no mínimo estranho que o país organizador se coloque, propositadamente, em uma posição negativa, ao se debruçar sobre o racismo.

A exibição de ‘UM AMOR À ALTURA’ filme com roteiro, originalmente argentino, já rodado pelos ‘hermanos’, em 2014, com o título ‘CORAÇÃO DE LEÃO – o amor não tem tamanho’ também parece fulminar o propósito de trazer ao público produtos genuinamente franceses. De fato, apenas dois filmes (‘UM DOCE REFÚGIO’ e ‘UM BELO VERÃO’) cumprem essa expectativa apesar de não se aprofundar muito na substancial marca francesa que é a dicotomia cidade x campo. A primeira película cujo título em português é até mais adequado que o original se revela uma comédia rasa, porém, bastante delicada. Já a segunda trata da homo afetividade, tema recorrente em qualquer festival. Contudo, ao contrário das produções americanas como: ‘Clube de Compra Dallas’ ou, ‘Amor por Direito’, o cinema europeu, quando se trata de relacionamento homo afetivo, em geral, parece se atar cegamente ao erotismo. De tudo isso, tem-se que, apenas duas obras do total de dezesseis merecem destaque na atual edição desse Festival: a película ‘MARGUERITE’ que mistura, de forma original, elegância com vexame e, ‘AGNUS DEI’ um drama histórico que, em matéria de fé e questionamento religioso, é capaz de desbancar o polonês ‘IDA’ do altar (vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2015). g


ENSINO O LATIM NA EDUCAÇÃO BÁSICA José Loureiro Lopes (Especial para GENIUS)

Não é nostalgia. Não é saudosismo. Não é desejar aquilo que o fado português sugere, quando canta: “... oh, tempo, volta pra trás”! É ser atual, é ser moderno. Falar em fado, o Brasil também tem fado. Mas, aqui, o fado não é canção, é destino. “Esse projeto está fadado ao sucesso”; “aquela iniciativa está fadada ao insucesso”. O inglês também tem fado! Ali, ele é “fate”, destino. Destino, porém, em inglês, não seria “destiny”? Tudo isso é latim. Um idioma conhecido já no século VI antes de Cristo. Aí, encontramos “fatum”, substantivo neutro, que significa predição, vaticínio, profecia, oráculo. E o nosso idioma português vai referir “fatalidade”, como termo eloquente do “fatum” latino. E o inglês aditou “fate”, que, nesse idioma, é também “fatalidade”. O verbo latino “destinare” é a base do destiny, do destino. E é a raiz do “destinatio”, “destinatus”, e termos semelhantes. Pode-se, então, dizer que o português

e o inglês são línguas neo-latinas? Quanto ao português, sim. Quanto ao inglês, o que se tem como geralmente aceito é que cerca de 60% de seus vocábulos são provenientes do latim: “direction, information, administration, construction, interpretation, explanation, science, activity, natural, observartion, experiment, subject...”, e muitos outros. A força do latim na língua inglesa é explicitada de muitas formas, a exemplo da presença nas chamadas “catedrais da modernidade” (os shoppings centers de todo o mundo), nos aeroportos, nas estações ferroviárias e rodoviárias, nas aeronaves, enfim, nos ambientes públicos com grande circulação de pessoas, da palavra “EXIT”, saída. Pois, novamente, aqui, o latim nos ajuda: é a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo “EXIRE”, sair: éxeo, éxis, ÉXIT, éximus, exístis, exiérunt. Com a informática, veio o verbo “deletar”. É do inglês “delete”? De forma próxima, é possível que sim. Na raiz,

porém, está o verbo latino “delere”, que significa apagar, suprimir, destruir, fazer desaparecer. Esse termo ficou famoso na história do ocidente, com a expressão latina: “Carthago delenda est” (= Carthago deve ser destruída), comum à época das Guerras Púnicas, entre Roma e Carthago (hoje, Tunísia, norte da África). Informa-se que os Romanos chamavam de “Punici” (= púnicos) os habitantes de Carthago, porque eram, em sua maioria, fenícios (Punici = púnicos, fenícios). Com a vitória de Roma, deu-se grande expansão dos Latinos pelo Mediterrâneo, seguindo até a Península Ibérica, onde permaneceram por cerca de 300 anos (a. C.), exercendo, assim, forte influência sobre o idioma inglês. No mais, sabe-se que foi a grande influência do Cristianismo, representada pela Igreja Católica, que marcou a forte presença do latim no Ocidente, durante a Idade Média e no Renascimento. Essa presença vai dando lugar aos idiomas na-

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cionais, que se expandem com as Grandes Navegações e as guerras de conquista. Recentemente, publicados os resultados do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) pelo Ministério da Educação, foi divulgada a informação de que 52 mil candidatos haviam zerado a prova de língua portuguesa. É lamentável. Acredito, porém, que, figurando o latim como matéria obrigatória do curriculum da Educação Básica, jamais aconteceriam fatos dessa natureza. A propósito do tema, transcrevo tópicos do meu texto “Latim: uma língua atual”, prefácio da obra “Lições de Latim”, de autoria do meu conterrâneo Prof. Pe. João Gomes da Costa. Língua oficial da República de Roma e, posteriormente, do Império Romano, o latim adquire força com a conversão do Imperador Constantino ao cristianismo (séc. IV) e se torna, praticamente, universal, durante toda a Idade Média. Com efeito: as leis francesas são escritas em latim até o século XVI; no idioma do Lácio estão os tratados de músicas de Boécio, os livros de medicina, de veterinária, de culinária, de conservação de alimentos e, sobretudo, os tratados dos

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grandes teólogos da Igreja Católica e os textos religiosos. Estes últimos, é claro, recebendo significativa influência da tradução da Bíblia feita por São Jerônimo (347-420), do grego antigo e do hebraico para o latim, a conhecida Vulgata, ainda hoje o texto bíblico oficial da Igreja Católica Romana. E, no judaísmo, o latim está presente na Septuaginta. No Renascimento, o modelo sintético, lógico e de estilo para o desenvolvimento das línguas foi o latim. Dele derivam diretamente as chamadas línguas românicas: o francês, o espanhol, o italiano, o romeno, o galego, o provençal e o português. Esta última, nossa língua pátria, foi denominada pelo poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918) de “última flor do Lácio, inculta e bela”, em soneto dedicado à língua portuguesa, que ele tanto cultivou e cultuou. Até recentemente, não só os textos Litúrgicos (missa, sacramento, etc.), mas também as descrições da Zoologia e da Botânica eram todas em latim; os nomes científicos, todavia, ainda o são. Vê-se, pois, que de língua morta o latim não tem nada. Várias expressões latinas são usadas em Direito. Quem nunca

ouviu falar de habeas corpus, alibi, data venia, ex nunc, ex tunc, per capita, lato sensu, honoris causa, conditio sine qua non, a priori, a posteriori, alter ego, e tantas outras desse gênero? O latim é atual, e tem uma lógica disciplinada e disciplinadora. Termos como: deletar, estar in, fecundação in vitro são pura e simplesmente o latim de hoje e do amanhã. O P. S. que muitas vezes usamos ao final de uma carta nada mais é do que abreviação do post scriptum latino. Às vezes, o latim se confunde com nossa língua: idem, grosso modo, supra summum, et caetera, alter ego, causa mortis, in loco, status quo, e assim por diante. Até mesmo, o temido mosquito da dengue, o Aedes Aegypti, é referido em latim. Portanto, aprender ou não o latim não é a questão. Ele já convive conosco, pois é a alma da nossa língua. Finalmente, é de indagar-se: como um país, que é latino, não tem o latim em seu currículo? Proponho, portanto, a inclusão do latim no Currículo Mínimo da Educação Básica, a ser adotado no sistema educacional, como disciplina optativa. g


DISCURSO ACADÊMICO SEIXAS DÓRIA: AS HORAS AMARGAS DE INTOLERÂNCIA E SOLIDÃO Patrícia Sobral de Sousa

Amo a liberdade. Considero-a mesmo a maior graça que Deus deu ao homem, mas nem ela, nem nada, vale neste mundo a minha dignidade. (...) Não desejo conseguir a liberdade negociando-a. Desejo conquistá-la sem baixezas ou barganhas de qualquer ordem. O homem que abdica de seus direitos perde o respeito de seus concidadãos. E depois, eu mesmo me perguntaria: para que me poderia servir essa liberdade? Liberdade não se compra. Liberdade é um direito. E direito não se negocia. Quem negocia um direito, conspurca-o. Direito, defende-se! (Seixas Dória) “PORQUE SOU DO TAMANHO DO QUE VEJO E NÃO DO TAMANHO DA MINHA ALTURA” (Fernando Pessoa) TEMA DE ABERTURA: A PORTA SECRETA DA IMORTALIDADE SE ABRIU... ACEITEI O CONVITE, DERAM-ME A CHAVE. Caros Acadêmicos: É grande a honra que me conferis ao abrirdes a porta da imortalidade de tão nobre e elevada instituição, para me admitirdes no seio dos quarenta confrades, com vistas a cultivar a cultura, o desenvolvimento das letras em geral, colaborando para a elevação das artes e da história, pelo reconhecimento da capacidade criativa do homem, e da imaginação que habita a gênese do espírito humano, desde os tempos imemoriais. Aceitei o convite, lisonjeada e feliz. Tudo farei para corresponder às vossas expectativas. Neste momento, movida pela emoção e pelo respeito aos que se dedicam a desafiar esse caminho iluminado pelos mais puros e autênticos ideais humanos, aguço meu olhar.

E, como disse o poeta Fernando Pessoa, me sinto como uma criança que se surpreende a cada passo do caminho, percebendo coisas que antes já estavam ali, mas não tinham sido notadas. E vejo! Vejo, Senhores! não com os olhos do corpo, mas com os olhos que nadam nas profundezas da minh’alma apaixonada pelos tesouros imateriais guardados além dessa porta magnífica que por tão cara generosidade desse colegiado se abre para me receber. Neste instante, sinto que já começo a transcender a indigente solidão dos dias em que me fiz na coerência do meu olhar cerceado pelo tamanho do mundo que pude ver até então – distanciada desse convívio que me dá licença para abrir a porta. Posso dizer que o conteúdo dessa licença literária, já ilumina o lugar onde estava guardada a minha própria chave. Nela está inscrita o código que me permite decifrar mistérios e enigmas cotidianamente postos pela convivência humana. Estou cativada pela oportunidade de trilhar esse caminho novo, na direção desse horizonte que me parece ser feito apenas de auroras, todas prontas para brindar as horas profícuas de cada dia, construindo a obra que irá conquistar a chave-mestra. Assim, devo dizer, que desejo começar de forma suave, apreciando a beleza de cada momento, saboreando cada instante de aprendizagem e orientação que se tornarão fundamentais para a imortalidade do repertório literário que hoje assumo construir com alegria, zelo e dedicação, nesse percurso novo em que me preparo para apreender a verdade, o bom e o belo, contidos no movimento de contínua renovação da nossa existência. JUSTA REVERÊNCIA A JOÃO DE SEIXAS DÓRIA: ARTÍFICE DA LIBERDADE E DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS. “Apaga-me os olhos, ainda posso ver-te. Tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te.

E sem pés posso ainda ir para ti, E sem boca posso ainda invocar-te. Quebra-me os braços e posso apertar-te com o coração e com a mão, Tapa-me o coração, e o cérebro baterá, E se me deitares fogo ao cérebro, Hei de continuar a trazer-te no sangue” Rainer Maria Rilke. In “O livro das horas”. O dever me convida para o desafio de revelar o passado de um homem que deve ser justamente reverenciado por todos que se arriscam para olhar, por entre as fístulas do tempo, episódios históricos que marcaram a vida do povo brasileiro e que jamais poderão ser esquecidos. Com a chave-mestra abro mais uma porta e convicta da responsabilidade sem precedentes que assumo perante os nobres confrades e a sociedade sergipana, me pergunto: Como teria sido para Seixas Dória, a vivência primitiva da angústia e pesar de todas as horas amargas de intolerância e solidão experimentadas no âmago de uma realidade de forçada submissão que nos constrange e que desejamos esquecer? Enveredo pelos caminhos da pesquisa e da leitura orientada, e percorro no imaginário, momentos de choro, tristeza e solidão; mas também me alegro com outros elementos que chamam a minha atenção e se apresentam sob a essência desse homem capaz de acender lareiras em tempos de tenebrosa escuridão. Escuridão que jamais sombreou a verdade, mesmo porque ele só entendia a vida sob a lâmpada acesa da liberdade. Completamente cativada, me entrego à busca da substância humana, misteriosa e divina que sobrevive ao correr do tempo, iluminando sombras noturnas que já emergem em claridades e transparências reveladoras da história de Seixas Dória. Seixas Dória era um homem de pequena estatura, cujo porte físico nada tinha de extraordinário. No entanto, tornou-se, aos Setembro/outubro/2016 |

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nossos olhos, pleno de reconhecimento, um campeão olímpico, a corroborar a frase de Fernando Pessoa - “porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.” Seixas expressava a beleza de um homem verdadeiramente livre, senhor de si, coerente em suas intenções e decisões, responsável e preocupado com as questões políticas da sua época e da renovação das estruturas sociais e econômicas. SÍNTESE BIOGRÁFICA DE SEIXAS DÓRIA João de Seixas Dória nasceu em 23 de fevereiro de 1917, na cidade de Propriá (SE), filho de Antônio Lima Dória e Maria Seixas Dória. Iniciou os primeiros estudos em Propriá, com a professora Rosinha Pinheiro, destacando-se por sua inteligência e capacidade de aprender não só as lições da escola, sobretudo, como um menino altivo e perspicaz que já adivinhava a altivez do homem que se tornaria. Concluídos os estudos iniciais foi transferido para Salvador, como aluno dos cursos primário e ginasial, estudando no Colégio Antônio Vieira e Colégio Marista, onde fez o curso complementar. Ingressou, a seguir, na Faculdade de Direito da Bahia, transferindo-se depois, para a Faculdade de Direito de Niterói (RJ), onde concluiu o curso de Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais, na turma de 1943. Nesse período histórico, as nações vivenciavam uma época de mudanças e tensões, em face dos conflitos mundiais que ensejaram a eclosão da II Grande Guerra Mundial. Tempo em que Seixas Dória, com a sua brilhante e inesquecível oratória, conclamava o povo na campanha para que o Brasil se unisse aos países aliados contra o eixo nazi-fascista. Já advogado, instalou um escritório em Salvador (BA), tendo se afastado da militância advocatícia para ingressar na vida pública. Na gestão de Josafá Carlos Borges, na Prefeitura de Aracaju, assumiu a Secretaria Geral da Prefeitura, iniciando, simultaneamente, sua atividade jornalística na direção do Jornal Correio de Aracaju, cargo ocupado por quase dez anos. Elegeu-se Deputado Estadual Constituinte pela União Democrática Nacional (UDN), na legislatura de 1946-1950, atuando como líder da minoria na Assembleia Legislativa de Sergipe. Em 1953, apresenta os programas de rádio ‘Problemas em Debate’ e ‘Resenhas Políticas’, na recém-criada Rádio Liberdade. Foi eleito como Deputado Federal por duas legislaturas (1954 e 1958), destacando-se no cenário político nacional, contribuindo com as suas

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ideias para o soerguimento social e econômico do país, em consonância com as tão proclamadas Reformas de Base Ingressou na Academia Sergipana de Letras em 8 de junho de 1958. Foi eleito Governador de Sergipe em 1963, sendo deposto pelo golpe militar de 1964. Ficou preso em Salvador, sob a acusação de subversão, na ilha de Fernando de Noronha, juntamente com o então governador do Pernambuco, Miguel Arraes. No cárcere escreveu “Eu, réu sem crime”, um libelo monumental contra os seus opressores, uma obra que abrilhanta a literatura política brasileira. No período da redemocratização do País exerceu diversos cargos públicos, tais como: Assessor Especial da Presidência da República, na gestão do Presidente José Sarney; Gerente-Geral da Petrobrás em Sergipe e Secretário Estadual de Obras Públicas, no Governo de Antônio Carlos Valadares. Presidiu a Fundação Oviêdo Teixeira e marcou importantes contribuições sociais e culturais que repercutiram na sua vida púbica. Não posso deixar de, embora perfunctoriamente, fazer menção a dois pássaros anelados que foram responsáveis pela tecelagem do azul dos dias do inesquecível Seixas Dória: Sua mãe, Maria Seixas Dória, razão de ser da sua vida e Dona Mary, sua esposa inseparável, resultando dessa união, Ernane Seixas e Antônio Carlos Seixas, seus filhos, e ainda quatro netos. CONTRIBUIÇÃO LITERÁRIA Eu, réu sem crime (1965) e Recortes de uma jornada (2001). O livro Eu, réu sem crime, pode ser cotejado com o grande expoente da literatura brasileira que foi Graciliano Ramos, cujas histórias são convergentes, como se pode ler em Memórias do Cárcere. O livro de Seixas Dória constitui um manancial literário de grande valor acadêmico, cultural e político. Reune opiniões substanciosas e manifestos de alto nível, suscitando o debate de temas institucionais de valor histórico, como expressão das fortes convicções do autor, voltadas para o estudo dos grandes problemas nacionais da época, como a ausência de investimentos governamentais em vários setores produtivos da economia nacional, especialmente, na atividade agrícola. Seixas Dória soube, como ninguém, denunciar as injustiças cometidas contra os princípios constitucionais, contra os direitos individuais do cidadão e antevia o fracasso do golpe militar, acrescentando: “Estamos vivendo a hora mais breve e mais dramática de toda a história deste país. A crise, sem precedentes, atinge a todos os setores. Do

econômico-financeiro e político, ao social e moral”. O jornalista Hélio Fernandes publicou na Tribuna da Imprensa de 13 de julho de 1978 o seguinte comentário: Se alguém exerceu com mais dignidade, com mais lealdade, com mais sinceridade a vida pública, não esteve jamais acima de Seixas Dória. Pode ter igualado Seixas Dória, o que é um título de glória para qualquer um, superá-lo na devoção à coletividade, ninguém. Sobre o livro Recortes de uma Jornada, o Acadêmico Carlos Ayres Britto, destaca: Nas páginas que se seguem não há senão devotamento às causas do nacionalismo e da justiça social. Tudo sob o envoltório da pesquisa meticulosa, da reflexão maturada, da coragem pessoal e da escrita que se faz com naturalidade [...] nas quais harmoniosamente se combinam o destemor pessoal e a fina ironia, o compromisso popular e o recurso argumentativo a metáforas do mais forte poder figurativo. A vida de Seixas Dória foi profundamente rica em conteúdo político, alinhavada com fidelidade aos postulados democráticos. O PATRONO DA CADEIRA 32 PEDRO ANTÔNIO DE OLIVEIRA RIBEIRO Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro nasceu em Laranjeiras (SE), em 3 de setembro de 1851, filho de Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro e de D. Maria Benta Freitas de Oliveira Ribeiro. Fez o curso de humanidades no Colégio São João, em Salvador (BA). Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de Recife, turma de 1871. Foi Promotor Público em Laranjeiras, nomeado em 5 de setembro de 1872, e Juiz Municipal em Montes Claros (nomeado em 7 de abril de 1873) e em Cristina, ambas cidades de Minas Gerais. Redigiu, em 1872, o jornal O Conservador, em Aracaju. No Rio de Janeiro, exerceu a chefia de Polícia, tendo ainda ocupado o cargo de Procurador Geral do Estado de São Paulo e Ministro do Tribunal de Justiça do mesmo Estado, havendo sido eleito Presidente do referido tribunal. Em decreto de 5 de outubro de 1903, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal. Exerceu o cargo de Procurador-Geral da República, por nomeação em decreto de 21 de outubro de 1905, sendo exonerado, a pedido, em 6 de dezembro de 1909. Faleceu em 29 de junho de 1917, no Rio de Janeiro. PRODUÇÃO LITERÁRIA Discurso proferido por ocasião da aber-


tura do curso noturno da Sociedade de Montepio dos Artistas da cidade de Laranjeiras, a 21 de outubro de 1872, sendo publicado no Jornal de Aracaju no dia 26 do mesmo mês. Discursos proferidos na Assembléia Provincial de Sergipe em defesa do presidente da Província, o Dr. Antonio dos Passos Miranda, em 1875. Contestação e tréplica oferecidas em defesa dos direitos da União na ação de reivindicação movida pelo Estado do Amazonas, contra a União Federal, no ano de 1906, em que versa sobre o antigo Território do Acre. Seu invejável talento, em evidência desde os bancos escolares, robustecido no estudo das disciplinas jurídicas, assegurou-lhe na vida pública uma carreira rápida e brilhante. Nunca se desviou dos moldes do magistrado ilustrado, probo, de caráter altivo e independente. (Armindo Guaraná1) O FUNDADOR DA CADEIRA EDISON DE OLIVEIRA RIBEIRO Edison de Oliveira Ribeiro nasceu em Laranjeiras (SE), a 21 de agosto de 1897, filho de Demóstenes de Oliveira Ribeiro e D. Maria das Dores de Oliveira Ribeiro. Cursou humanidades no Atheneu Sergipense e no Ginásio São Salvador da Bahia. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito Bahia, em 8 de dezembro de 1918. Exerceu diversos cargos públicos: Foi o primeiro presidente eleito da OAB, em 1935; Foi sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, sendo orador oficial nos período de 1927 a 1929; Promotor Público em Aracaju; Procurador-Geral interino da 1 2

República e Procurador-Geral do Estado. Foi, também, Desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe e Corregedor-Geral de Justiça, além de ter funcionado como auditor da Justiça Militar. Dirigiu a Imprensa Oficial e o Correio de Aracaju, membro da Associação Sergipana de Imprensa e professor da Escola de Comércio “Conselheiro Orlando”. Destacou-se com obras de caráter social. Faleceu no Rio de Janeiro, em 4 de janeiro de 1957. PRODUÇÃO LITERÁRIA: Crônica social. A faceta, porém, mais viva de sua inteligência, se revelava no orador, cuja capacidade de improvisação era admirada. Louvada e proclamada por todos. A sua eloqüência, com os exageros e as fantasias tão ao gosto daqueles dias, chegava às vezes a beirar o patético e recebia sempre a consagração dos auditórios. (Seixas Dória2) Rendo homenagens ao FUNDADOR, Edison de Oliveira Ribeiro; ao PATRONO, Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro e ao ANTECESSOR da cadeira número 32 da Academia Sergipana de Letras, João de Seixas Dória, que permanecem vivos pelos seus relevantes serviços prestados ao macro universo cultural sergipano e pela nobreza de suas ações. Consagro essa pública reverência, fazendo minhas as palavras de Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. HOMENAGENS Expresso aqui meu penhorado agrade-

cimento aos pares deste Colendo Sodalício pelo apoio que recebi de todos. Ao eminente amigo, Luiz Antônio Barreto, uma das mais brilhantes inteligências deste Estado, que, antes de partir, deixou consubstanciada a sua incontida satisfação com os meus primeiros passos em demanda a esse Pretório Excelso da cultura sergipana. Agradeço e sinto-me uma pessoa altamente privilegiada, pois tive duas mães: Uma por natureza biológica e a outra por laços fidedignamente afetivos. Ao meu esposo Carlos Alberto Sobral de Souza, farol que ilumina diuturnamente minha caminhada e aos meus queridos filhos Romeu da Silva Neto e Carlos Alberto Sobral de Souza Filho, razão do meu existir. A todos os membros e estimados colegas da Corte de Contas deste Estado. Ao Magnífico Reitor Jouberto Uchôa de Mendonça e a Vice-reitora da Universidade Tiradentes, D. Amélia, dois incontestáveis pilares de sustentação da cultura e educação sergipanas. Registro e agradeço, também, as carinhosas presenças dos meus tios, primos, sobrinha, amigos, professores, colegas e alunos que aqui vieram prestigiar este momento de grande emoção para mim. Como diz o poeta: “Caminhante, não há caminho, o caminho é feito no andar” e foi caminhando por esta estrada que encontrei verdadeiros amigos e amigas que me acompanharam “pari passu” nessa jornada sonhada não só por mim, mas também, e, sobretudo, sonhada e almejada por todos eles. Às autoridades que vieram abrilhantar

GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro. Officinas da EMPREZA GRAPHICA EDITORA, 1925, pp. 241-242 (Edição do Estado de Sergipe). DÓRIA, João de Seixas. ”Discurso de Posse do Acadêmico João de Seixas Dória” (1958), in Revista da Academia Sergipana de Letras. Número 30, 1990, pp. 57-63.

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esta sessão solene de posse prestigiando não só a minha pessoa, mas, principalmente, o mundo cultural sergipano. Agradeço à acadêmica Dra. Luzia Maria Nascimento, pelos generosíssimos encômios a mim dirigidos, quando de sua apresentação à minha pessoa. Uma das mais fulgurantes presenças inseridas no contexto desta Casa, que, conjuntamente com o Presidente Dr. José Anderson Nascimento, promovem o espectral alargamento dos horizontes da cultura sergipana, por meio desta conceituada instituição cultural. Enfim, devo, antes da minha conclusão, agradecer aos que me confiaram os segredos da chave-mestra, livres de qualquer interesse que não seja o de compartilhar a sabedoria contida na palavra como forma insubstituível de expressão humana, revelação e transformação do mundo, palavra que há milênios ancora a vontade do homem de se fazer eterno. EM TODO FINAL A SEMENTE DE UM NOVO COMEÇO... Parodiando Guimarães Rosa, almejando

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que o melhor da vida esteja ao nosso alcance a cada passo do caminho, não se instituindo completamente na chegada ou na saída, mas a cada passo dessa estrada que se desenha com os traços das pequeninas marcas respeitosas, éticas e rigorosas, que vamos deixando, às vezes sem perceber, reinventando a geometria do que somos como filhos criados à imagem e semelhança de Deus. Portanto, sujeitos portadores de verdade e de possibilidade de evolução, à mercê da educação e da cultura que recebemos. Primeiro pelo exemplo da família, a quem devo tudo o que sou – caráter, moral, princípios de justiça, e em seguida às Instituições sociais, culturais e educativas que consolidam esse processo de formação por sensível, adequada e competente intervenção. Não tive a pretensão de durante este discurso atingir os cimos do Himalaia como atingem facilmente os imortais. Busquei, com as tintas do mais apurado sentimento humano, transmitir amor às minhas origens, às minhas raízes fincadas ao pé da serra da minha querida Itabaiana. Procurei pintar com as cores mais alegres o nosso pequeno

notável Estado de Sergipe, com o qual tanto me identifico pelo jeito de ser e até pela sergipanidade do sotaque. Lembrando Goethe quando disse: “Todas as coisas são metáforas”. Procurarei ser apenas quem sou e serei apenas, PATRÍCIA VERÔNICA. Com a devida vênia dos nobres pares deste Colendo Sodalício, encerro minhas palavras prestando uma oportuna homenagem ao insigne escritor Joaquim Maria Machado de Assis, escudando-me nas palavras da eminente escritora Nélida Piñon, quando disse em seu discurso por ocasião da passagem do centenário do falecimento de Machado de Assis, “[...] Considero este brasileiro como a minha pátria. A pátria que tenho no coração, a representação que elegi à guisa de bandeira. A pátria do país que almejo ter [...] a pátria de Machado de Assis, a pátria de Homero, a pátria de Dante, a Pátria de Camões, a Pátria de Cervantes, a Pátria de Shakespeare, de Mário Quintana e a Pátria do inesquecível Seixas Dória. Meu muito obrigada.

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BIOGRAFIA RUMO À CAPITAL PARAIBANA Flávio Sátiro Fernandes

Esboço de um capítulo do livro em preparo Ernani Sátyro – Uma biografia Terminado o que hoje se chama ensino de 1º grau, Ernani teria de deixar a terra natal e seguir rumo à Capital paraibana, a fim de prosseguir os estudos. A cidade natal já lhe proporcionara o que tinha de oferecer, relativamente aos primeiros ensinamentos. A criança que até então jamais se ausentara dos Patos iria se afastar do lar e, notadamente, dos cuidados de Dona Capitulina, rígida no modo de educar os filhos, sem, contudo, abrir mão do carinho, da devoção, da dedicação que emprestava aos filhos, Ernani e Avani, além dos dois outros do primeiro casamento (Tiburtino e Firmino), sem contar o enteado e as enteadas, advindos do primeiro matrimônio de Miguel Sátyro (Emília, Antônia e Clóvis). Viu-se, pois, o pequeno Ernani na contingência de deixar Patos e fixar-se em João Pessoa para continuação de sua educação. A viagem de Patos a João Pessoa se fazia, àquele tempo, em carros particulares, pois, ainda não havia ônibus de linha, para usar uma expressão muito em voga naquela época e região. Só alguns anos após, apareceriam os coletivos de transporte de passageiros, as chamadas “sopas”, interligando as cidades do sertão a Campina Grande. Em Campina Grande era possível tomar o trem para a Capital ou prosseguir de automóvel. A ida de Ernani para a capital ocorreu em 1924. Como as perspectivas de inverno eram muito precárias, Miguel Sátyro ainda quis adiar, apelando para um melhor inverno, pois, conforme relatou, certa vez, Ernani Sátyro, “fazendeiro, naquele tempo, por mais bens que ele tivesse, era de uma vida dura, como ainda hoje é. O homem do campo, no Nordeste, está sujeito sempre às intempéries na natureza, às variações climáticas: ou a seca, ou o inverno”1. Mas Dona Capitulina foi incisiva: “Não; ele vai 1 2

de qualquer modo; com seca ou com inverno, ele vai. Nós temos aqui umas reservazinhas...”2 E assim se fez... Emblematicamente, a data fixada para a partida foi o dia 19 de março ou, mais caracterizadamente, dia de São José, em quem os sertanejos depositam as últimas esperanças de um inverno que tarda, mas que há de vir por intercessão do Patriarca. Nesse dia, Ernani, antes de tomar o rumo da Capital foi à Igreja Matriz, assistir à missa, em louvor de São José, em companhia do Major Miguel e de Dona Capitulina. Mal terminava o ofício religioso, uma chuva forte desabou sobre o pequeno burgo das Espinharas. Foi preciso esperar que o aguaceiro amainasse para que pudessem partir, em busca da cidade da Parahyba, como então se chamava a capital paraibana. Viajariam em um veículo Ford de bigode, de propriedade de Dionísio Cunha, que o conduziria. Além do Chefe político local e seu filho, estavam entre os passageiros o Sr. Francisco Lustosa Cabral, comerciante local, mais conhecido por Xixi Cabral e seu filho Nelson Lustosa Cabral. Xixi Cabral era filho de Manuel Romualdo da Costa o famosíssimo Manduri, notável por suas piadas, chistes e críticas irônicas, nos quais engolfava todo mundo, inclusive o Major Miguel. Nelson Lustosa Cabral seria, tempos depois, bacharel em direito, auxiliar de governo e escritor. Pertenceu à Academia Paraibana de Letras, juntamente com seu irmão Wilson Lustosa Cabral. Em relação a Nelson, releva salientar que ele foi um dos passageiros que, milagrosamente, salvaram-se do naufrágio do avião Savoia Marchetti, em que viajava também o Ministro José Américo de Almeida e em que faleceram o Interventor Antenor Navarro, o Diretor da Inspetoria de Obras Contra as Secas, Engenheiro Lima Campos, e um radiotelegrafista da Marinha que prestava serviços a bordo do avião sinistrado.

À porta de casa, Dona Capitulina, chorava e, num misto de alegria e de saudade, despediu-se do filho, abraçando-o e fazendo-lhe as recomendações próprias das mães: que estudasse, que se comportasse bem, que fizesse suas orações. Major Miguel apressava as despedidas, pois ainda tinham de pegar Xixi e Nelson, e compensar o atraso ditado pela pesada chuva que caíra, trazendo alegrias e esperanças para os sertanejos. Naquele tempo, gastava-se quase um dia no percurso Patos-Campina, no qual se leva, hoje, pouco mais de duas horas. Assim, era mais de meio-dia quando o carro de Dionísio chegou a Joazeirinho e todos foram almoçar no Hotel de Simeão. Depois dali, retomaram a viagem, com destino a Campina Grande, aonde foram ter por volta das dezoito horas. Naquela cidade, em frente ao Hotel Pernambuco, também conhecido por Hotel de Nozinho, situado na rua das Areias, hoje João Pessoa, onde iriam ficar hospedados, Miguel Sátyro e o filho despediram-se dos demais companheiros de viagem que, no dia seguinte, prosseguiriam de automóvel, enquanto eles tomariam o trem, com o mesmo destino. A viagem de trem foi, sem dúvida, urdida por Miguel Sátyro para propiciar ao filho essa novidade, e foi uma das tantas maravilhas que se abriram para o menino que saía, pela primeira vez, dos acanhados limites de sua cidade, para admirar-se com tudo que fosse capaz de provocar-lhe deslumbramento. Sentado próximo à janela do vagão, o menino se comprazia em ver a paisagem verde que surgia aos seus olhos. A composição atravessava os canaviais e outras plantações, dando ao pequeno viajante oportunidade de contato com paisagens bem diferentes das visões áridas do sertão paraibano. A locomotiva adentrava as pequenas povoações, parava nas estações, onde pessoas se comprimiam, umas esperando o momento de subir aos vagões, outras que

Depoimento, CPDOC. Idem.

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acompanhavam parentes e amigos a embarcar no trem, outras, ainda, apenas curiosas de ver a movimentação álacre que se fazia na plataforma; alguns mais oferecendo à venda comidas diversas – tapioca, beiju, doces, queijo assado, bolos, milho assado, milho cozido e água. De repente, um silvo forte, anunciando a partida, determinava a pressa nas despedidas, nos abraços, nos acenos, nas manifestações de adeus, em meio ao resfolegar da máquina, a partir, vagarosamente, da estação. Nesse ritmo, a viagem foi ter fim, quase ao anoitecer, com o trem parando no destino final – Parahyba, onde todos desembarcaram. O Hotel Globo, onde se hospedariam, situava-se a poucos passos da estação, para

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onde Miguel Sátyro e Ernani marcharam. A bagagem foi conduzida por um carregador, profissional de que havia às dezenas, na área da estação. No dia seguinte, o menino continuou a se maravilhar com o que lhe era mostrado: o próprio Hotel Globo, em que estavam hospedados, o Palácio do Governo, que iria conhecer naquele dia, gelo, sorvete, o Parque Arruda Câmara, a estátua de Álvaro Machado, e, finalmente, o Colégio Diocesano Pio X. O Hotel Globo, para destacar sua importância, era como que uma sucursal do Palácio do Governo e da Assembleia Legislativa, ponto de encontro de autoridades do Executivo e do Legislativo. Antes de retornar aos Patos, Miguel

Sátiro, levando o filho, fez uma visita ao Presidente Solon de Lucena, que fora seu hóspede em 1921. O filho de Solon de Lucena, Severino Lucena, foi um grande prócer pessedista, nos anos 50 e seu neto Humberto Lucena foi, também, líder do pessedismo nacional, tendo galgado elevadas posições na política federal, chegando a presidir o Congresso Nacional, quando Senador. A visita a um chefe de governo, certamente, foi um dos inúmeros ingredientes que contribuíram para sedimentar no futuro Governador do Estado o gosto pela política. Ao fim de dois dias na Capital, Miguel Sátiro retornou aos Patos, depois de entregar o filho à direção do Colégio Pio X, onde ele iniciou uma importante fase de sua vida. g


LITERATURA ESTRANGEIRA AS AGRURAS DO HOMEM DO CAMPO NOS ESTADOS UNIDOS PÓS-1929 Tiago Eloy Zaidan

Em meados de 1939, o escritor norte-americano John Steinbeck (1902-1968) estava em apuros. Mal pôde comemorar o sucesso de seu livro, As vinhas da ira, lançado em março daquele ano. Na verdade, o livro era o motivo de sua preocupação. Perseguido por conservadores e censurado em várias paragens, inclusive em sua cidade natal, Salinas, na Califórnia, o autor teria escrito à sua editora, Elizabeth Ortiz, em julho do mesmo ano: “Os donos de terra e banqueiros estão criando calúnias muito ruins. (...). Estou apavorado com o desenrolar dessa maldita coisa. Está completamente fora de controle. Há um tipo de histeria crescendo em torno do livro que não é nada saudável”. O depoimento – trazido à luz pela jornalista Adriana Maximiliano, em matéria publicada em junho de 2012 pela revista Aventuras na História – revela ainda que Steinbeck esperava que o livro, e ele próprio, fossem logo esquecidos, o que lhe traria a paz de outrora. Estava completamente enganado. As vinhas da ira cristalizou-se como o seu maior sucesso. O livro foi adaptado para o cinema já no ano seguinte, dirigido por John Ford (1894-1973) e com Henry Fonda (1905-

1982) no papel do protagonista Tom. O filme foi agraciado com dois Oscar e o escritor recebeu o Pulitzer em 1940. A polêmica causada pelo livro certamente tem a ver com as denúncias, revestidas por um tratamento literário digno de um Nobel – literalmente, pois Steinbeck recebeu o prêmio em 1962, protagonizando um dos ápices da história da cultura estadunidense no século XX. Na obra, a situação de penúria dos pequenos agricultores norte-americanos pós-crise de 1929 é retratada em detalhes. São alguns dos elementos presentes: a expulsão dos camponeses das terras onde construíram as suas vidas, a ganância dos grandes proprietários rurais e dos bancos e a atuação de uma polícia autoritária, mais preocupada em conter qualquer rastro de indignação popular do que em servir aos cidadãos. Tom Joad, que havia sido preso por matar um homem durante um desentendimento, recebe a liberdade condicional, o que lhe possibilita voltar para a casa de sua família, em uma pequena propriedade arrendada. O que encontra, no entanto, nos confins do estado de Oklahoma é uma terra arrasada, consumida por um trator a mando do banco, o qual requer o sítio de volta.

Tom reencontra a sua família e descobre os planos dos Joad de partirem rumo ao Oeste, mais precisamente em direção às plantações de algodão na Califórnia, onde, segundo panfletos distribuídos aos montes pelos fazendeiros, está sendo requerida grande quantidade de mão de obra para a colheita nas grandes plantações. A viagem, em uma caminhoneta velha, é torturante. Os dois membros mais idosos da família, os avós, não resistem e sucumbem durante a jornada. Na medida em que a família se aproxima da Califórnia, a esperança cede espaço para a angústia. Não raro, encontram viajantes miseráveis, como eles, retornando do oeste, sem perspectivas e com a frustração de uma investida fracassada. Antes mesmo de chegarem às orlas das grandes propriedades de algodão californianas, os Joad descobrem o que está por trás dos panfletos. Trata-se de uma estratégia para atrair a maior quantidade possível de mão de obra faminta e desamparada, com o claro propósito de favorecer os fazendeiros nas negociações salariais, em um contexto econômico de liberalismo feroz. g

ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES OAB Nº. 17.131/PB Fone: (83) 99981-2335

Especialista em Direito Administrativo Setembro/outubro/2016 |

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TEXTOS E DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA

CAMPINA GRANDE E O COMÍCIO DA PRAÇA DA BANDEIRA1 Samuel Duarte

O SR. SAMUEL DUARTE – Sr. Presidente, é com o mais legítimo sentimento de revolta, de indignação e de protesto que ocupo hoje a tribuna para denunciar um ato de selvageria, um brutal atentado ocorrido na cidade de Campina Grande, na noite de ontem, após o comício ali realizado, pelo Sr. José Pereira Lyra, secretário do presidente da República. Realizado o comício, correligionários nossos procuravam levar a efeito uma passeata, em atitude pacífica, quando a polícia aparecceu e utilizou suas armas contra o povo. Dessa selvageria, resultou a morte de três amigos nossos, saindo feridos onze, entre os quais o meu parente e amigo Sr. Jovino Sobreira, membro do Diretório do PSD daquela cidade e comerciante que ali goza da melhor reputação. O Sr. Lino Machado – Veja V.Exa. a gravidade desse atentado. Tem-se a impressão de que está sendo dirigido pelo alto funcionário, ou coisa que o valha, do gabinete do Sr. Eurico Gaspar Dutra. O Sr. Plínio Lemos – Pelo jeito é a reprodução do que se verificou no Largo da Carioca: a chacina de uma população indefesa. O SR. SAMUEL DUARTE – Sr. Presidente, quando os líderes da coligação paraibana realizaram, o mês passado, uma excursão por todo o estado, os Srs. José Américo e Ruy Carneiro, candidatos a governador do estado e a senador, percorrendo os principais municípios, dirigiram a campanha em moldes rigorosamente democráticos. Assim, a conduta de nossos amigos, sob a liderança daquelas eminentes figuras, não importou em provocação de natureza alguma. Apenas, na véspera da chegada do Sr. José Américo à cidade de Areia, houve um conflito provocado por nossos antagonistas. Agora, porém, uma alta autoridade da República, que utiliza na sua propaganda os meios oficiais... O Sr. Lino Machado – E os processos do Largo da Carioca. O SR. SAMUEL DUARTE – ... e emprePublicado no DCN, edição de 11 de julho de 1950, pág. 5300.

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sas de publicidade intimamente ligadas ao oficialismo, chega à cidade de Campina Grande e, já pelo apoio que recebe essa autoridade, já pelas ameaças anteriormente anunciadas por seus áulicos e amigos, não podia ser outro o ambiente capaz de favorecer atentados como o que estou denunciando. Mais uma vez faço um apelo ao Sr. Presidente da República... O Sr. Lino Machado – Responsável por todas essas carnificinas, o único talvez. O SR. SAMUEL DUARTE – ... no sentido de que faça descer sobre o espírito de seu secretário um conselho e uma advertência, a fim de coibir nos seus aliados da Paraíba a pratica de excessos dessa natureza, que depõem contra nossos foros de civilização. Nossa campanha no estado é inspirada em sentimentos muito altos, de respeito aos adversários. Em troca disso, que acontece, Sr. Presidente? Os fatos de Campina Grande são a primeira demonstração dos métodos que agradam ao Sr. Chefe da Casa Civil na propaganda de sua candidatura ao Senado Federal. Não me venham dizer que S.Exa. nada tem com as ocorrências. Bastaria a consideração do cargo que ocupa o Sr. Pereira Lyra: bastaria que os seus aliados sentissem da parte do Sr. Pereira Lyra e do oficialismo que o apoia uma atitude de isenção, de serenidade, de respeito às garantias do regime, para que a polícia se detivesse. Fosse outra a sua conduta e não seriam atingidos nos seus métodos e nas suas liberdades cidadãos pacíficos, que apenas cometem o delito de opinar num regime de livre opinião. O Sr. Lino Machado – Prática que vem desde o início deste governo – é, bom não esquecer. Foi isso mesmo que se viu no Largo da Carioca, quando o Sr. Pereira Lyra estava na chefia de polícia. O inquérito ainda está sendo esperado. Foi, então, assegurado a esta Casa, pelo mesmo líder que aí está, que teríamos conhecimento dos responsáveis por aquela carnificina. Até hoje, entretanto – quase cinco anos decorridos –, nada chegou a ocorrer.

O SR. SAMUEL DUARTE – Sr. Presidente, telegrama de um dos membros mais destacados do diretório do PSD municipal de Campina Grande dá notícias sumárias dos acontecimentos. Até agora, não recebemos maiores detalhes, porque o telégrafo se tem mantido silencioso a respeito do assunto, o que não deixa de causar estranheza, dado o espaço de tempo decorrido desde a hora das ocorrências. Não constitui, entretanto, surpresa para nós, que participamos da política paraibana, o que está acontecendo. A superioridade eleitoral é de nossa causa, da causa da coligação. Grande é a impopularidade de que desfruta o auxiliar do Sr. Presidente da República – o que é lamentável porque se trata de um conterrâneo que ocupou duas altas posições neste governo e teve oportunidade de grangear no estado um ambiente de simpatias, de solidariedade e de apoio. À última hora S.Exa. até se retirou das fileiras do nosso partido, porque fomentando uma dissidência, somente conseguiu a adesão de um chefe de diretório municipal. De 41 diretórios municipais só um acompanhou na sua aventura o Sr. Pereira Lyra. E, lançando-se nos braços do Sr. Argemiro de Figueiredo, que perdeu as eleições municipais no seu principal reduto, o município de Campina Grande, o mais importante do interior do país, não lhe resta agora senão o caminho da compressão e da violência para tentar arrebatar-nos uma vitória que nos está assegurada pela solidariedade da maioria do povo paraibano. Registrando esses tristes acontecimentos, Sr. Presidente, encareço mais uma vez a atenção das altas autoridades da República para o panorama, que se está desenrolando na Paraíba, para as cenas de selvageria e brutalidade, que a polícia do estado está praticando contra nossos correligionários. Dirijo, ao mesmo tempo, um apelo ao atual governador do estado, Sr. José Targino, de quem espero providências enérgicas, a fim de que sejam apuradas as responsabilidades dos crimes e rigorosamente punidos os culpados. g


TEXTOS E DOCUMENTOS QUE INTERESSAM À HISTÓRIA DA PARAÍBA

O CONFLITO DE CAMPINA2 Samuel Duarte

O SENHOR SAMUEL DUARTE (para uma comunicação) – Sr. Presidente, ainda repercutem no espírito público os tristes acontecimentos de que tem sido teatro a Paraíba, em face das violências criminosas praticadas contra a população inerme de Campina Grande e de outros atentados à liberdade dos cidadãos e aos direitos individuais. O Sr. Ernani Satyro – Permita V.Exa. um aparte. Os fatos da Paraíba serão suficientemente esclarecidos e a opinião pública brasileira verá então, esclarecida, ter sido o que se passa naquele estado provocado pela Coligação Democrática Paraibana, a que pertence V.Exa., coligação que temendo, como teme, o destino das urnas prepara toda sorte de perturbações para justificar a derrota que o povo livre e consciente da Paraíba lhe deverá inf ligir. Terei oportunidade de esclarecer suficientemente os fatos paraibanos, para que a nação brasileira veja com justiça e serenidade com quem está a razão. O SR. SAMUEL DUARTE – É irrisória a afirmativa do Sr. Deputado Ernani Satyro de ter havido provocação por parte dos elementos da coligação... O Sr. Ernani Satyro – Os fatos de Campina Grande, por exemplo, ocorridos no dia em que nós da Aliança Republicana realizávamos a nossa festa – por sinal a maior que já houve naquela cidade –, mostram, de modo suficiente, que não poderíamos ter interesse em promover perturbação de ordem, precisamente na data em que efetuávamos uma grande concentração cívica. Tal perturbação foi originada por uma passeata acintosa, realizada pela coligação, sem ordem da polícia, sem licença para comícios. O SR. SAMUEL DUARTE – Peço ao nobre deputado Ernani Satyro me permita continuar as considerações que vinha fazendo. O Sr. Ernani Satyro – Pedi permissão para apartear V.Exa. O SR. SAMUEL DUARTE – Consentirei nos apartes de V.Exa, mas depois de concluir o meu pensamento. Causa irrisão – repito – a afirmativa do nobre deputado Ernani Satyro, quando em todo noticiário, as informações das fontes mais O SR. SAMUEL DUARTE – Evoco, ainda, o apelo dirigido ao Sr. Ministro da Guerra por D. Anselmo Pietrulla, bispo de Campina Grande, para que essa alta autoridade militar

faça destacar ali elementos do Exército a fim de assegurar a ordem naquela cidade. O Sr. Ernani Satyro – Tenha V.Exa. a bondade de ler o documento, a fim de ver se ele afirma tratar-se de um ataque policial ou se foi um choque entre grupos exaltados de ambos os lados. O SR. SAMUEL DUARTE – Se a alta autoridade eclesiástica fez um apelo à Força Federal para que destaque em Campina Grande, é porque não existe confiança na polícia local e mais grave, nesta altura, é que o delegado de polícia, um oficial da Força Pública, ainda continue no seu posto, quando o primeiro dever do governo, pelo menos em satisfação à opinião pública estarrecida, seria afastar a autoridade suspeita, substituindo-a por elemento capaz de inspirar confiança ao povo. Sr. Presidente, ainda ressoam em nossos ouvidos os ecos dos tristes acontecimentos e chegam mensagens a respeito de violências noutros pontos do estado. O telegrama, que passo a ler, recebido pelo Sr. Ruy Carneiro, presidente da Comissão Executiva do PSD paraibano, é confirmado pelo deputado Tertuliano Brito e reza o seguinte: “Acabo de receber notícias Serra Branca... (Serra Branca é um distrito do município de São João do Cariri) ... de violências praticadas pela polícia contra nossos correligionários. Cidade cheia de capangas armados. Reina clima de terror. Acabo dirigir novo apelo governador, pedindo providências. Saudações Tertuliano Brito”. O outro despacho dá notícia da passagem pelo município de Pombal do que o signatário chama de “A caravana da morte”. O Sr. Ernani Satyro – “Caravana da morte” foi a que esteve em Areia. O SR. SAMUEL DUARTE – Quem diz é o signatário: Ruy Carneiro – R. Ouvidor 90. Comunico eminente conterrâneo Caravana da Morte pernoitou anteontem fazenda Osório Cabeludo, passando dia seguinte Pombal. Testemunham-se ali dentro automóvel, armas automáticas, bem como bolsa aberta, exibindo pacotes numerário. O Sr. Ernani Satyro – Isto é até irrisório, V.Exa. em vez de apontar um fato concreto, vem dizer que a caravana conduzia armas e pacotes. Caravana da morte foi a que passou em Patos, armada até de metralhadoras.

O Sr. Presidente – Atenção! Peço ao nobre deputado permita ao orador concluir suas considerações. O Sr. Ernani Satyro – A coligação está perturbando a ordem na Paraíba: não confia nos destinos das urnas e procura dar a impressão de um clima de insegurança no estado. A verdade deve ser anunciada a toda a nação brasileira. O SR. SAMUEL DUARTE – Consenti no aparte ao telegrama. O Sr. Presidente – Advirto ao nobre aparteador que a presidência tem muito prazer em lhe conceder a palavra, logo após o discurso do Sr. Deputado Samuel Duarte... O Sr. Ernani Satyro – Muito obrigado a V.Exa. O Sr. Presidente – ... por se tratar de questão de palpitante interesse para a política nordestina. O SR. SAMUEL DUARTE – Consenti no aparte ao telegrama que estou lendo. Continuarei, Sr. Presidente: Corre sangue, corre dinheiro. Componentes caravanas ostentavam acintosamente armas cinturas. Salve nossa estremecida Paraíba desta onda de cangaceiros e o nosso país das garras sangrentas deste bando selvagem – José Fernandes Vieira. Sr. Presidente, já tive oportunidade, desta tribuna, de fazer um apelo ao governador do Estado, traduzindo, nesse apelo, os sentimentos da população paraibana que aguarda providências enérgicas contra essa onda de violências criminosas. Ao mesmo tempo dirigi, em nome da minha bancada, apelo ao Sr. Presidente da República para que contenha o seu secretário nesta campanha, para que ele não estimule a prática de atentados à Constituição que nos rege: que tenha um pouco de consideração para com a sorte dos paraibanos ou os que limitam no campo oposto ao de S.Exa., pois bastou a presença do chefe da Casa Civil na Paraíba para que recrudecesse o ambiente de terror que está martirizando a minha terra. Estamos reunindo o dossiê de tudo que se relaciona com esses acontecimentos. Se as autoridades administrativas nos falharem com as garantias elementares que devem ser dispensadas aos nossos correligionários, bateremos às portas do Poder Judiciário, como último apelo, para que faça reinar o império da Constituição g no Estado da Paraíba.

Publicado no DCN, edição de 18 de julho de 1950, pág, 5514.

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CRIMINOLOGIA O FEMINICÍDIO NAS FRONTEIRAS DA AMÉRICA LATINA: UM CONSENSO? Aline Passos

RESUMO: O feminicídio nas fronteiras da América Latina: um consenso? A emergência do feminicídio como discurso consensual de governos, movimentos sociais e organismos internacionais de direitos humanos é confrontada com a expansão de outros fluxos de controle, a partir das procedências históricas da intensa produção de mortes de mulheres em Ciudad Juarez, no México. Foi realizada a análise documental da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o estado mexicano a uma série de sanções por feminicídio no caso conhecido como Campo Algodonero. O artigo questiona a “proteção às mulheres” como discurso justificante de novas criminalizações e procura expor uma estratégia política de expansão de controles que produzem reiteradas levas de aprisionamentos e extermínios. Palavras-chave: feminicídio, expansão de controles, consenso, direitos humanos. ABSTRACT: Femicide on the borders of Latin America: is that a consensus? The emergence of femicide as consensual discourse of governments, social movements and international human rights organizations are faced with the expansion of other control flows since the historical procedences of intense production of female deaths in Ciudad Juarez, Mexico. It was made a documental analysis of the veredict produced by the Inter-American Court of Human Rights which condemned the Mexican state to a series of sanctions for femicide in the case known as Campo Algodonero. The article questions the “protection of women” as justifying speech of new incriminations and seeks to expose a political strategy of expanding controls that produces repeated waves of imprisonments and killings. Keywords: femicide, expanding controls, consensus, human rights. “Em fins de setembro foi encontrado o corpo de uma menina de treze anos com cara

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de oriental, no morro Estrella. Como Mariza Hernandéz Silva e como a desconhecida da rodovia Santa Tereza-Cananea, seu peito direito tinha sido amputado e o mamilo esquerdo arrancado a mordidas. Vestia calça de brim da marca Lee, de boa qualidade, camiseta e um blusão vermelho. Era muito magra. Tinha sido violentada repetidas vezes e esfaqueada, e a causa da morte era a ruptura do hioide. O que mais surpreendeu os jornalistas, no entanto, é que ninguém reclamou ou reconheceu o cadáver. Como se a menina houvesse chegado a Santa Teresa e houvesse vivido ali de forma invisível até o assassino ou os assassinos a notarem e matarem” (2666, Roberto Bolaño) No dia 09 de março de 2015, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que introduziu no código penal brasileiro uma circunstância qualificadora do crime de homicídio que atende pela designação de feminicídio. A mera adição do sexo da vítima ao tipo penal inscrito no art. 121, para elevar os patamares de pena mínima e máxima, no entanto, pouco explicita o conjunto de práticas, discursos, instituições e sujeitos que compõem a nova estratégia punitiva. Do ponto de vista da imputação, a nova lei não conduz a qualquer alteração relevante, posto que seu objeto, em tese, já cabia na definição ampla e vaga da qualificadora do homicídio por “motivo torpe”, igualmente presente no art. 121, §2º, do código penal (Brasil, 2015). Portanto, parece ser somente no campo da análise histórico-política que a discussão adquire relevância. Neste sentido, o artigo que segue procura retomar algumas procedências do feminicídio a partir dos acontecimentos que envolveram a produção elevada e reiterada de mortes de mulheres em Juarez, cidade mexicana localizada na fronteira com os EUA, no início dos anos 1990, e que ensejaram a condenação do Estado mexicano na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2009. A sentença condenatória do caso “González y otras vs. México”, também conhecido

como caso Campo Algodonero, em referência ao local onde os corpos de oito mulheres foram encontrados com marcas de tortura e violência sexual, reuniu 22 pareceres técnicos de médicos, psicólogos, cientistas sociais e juristas, e sete declarações orais de testemunhas, entre parentes das vítimas, funcionários do Estado e uma especialista em Direito Penal. O documento também menciona a colaboração de diversas organizações mexicanas e internacionais de defesa dos direitos humanos e feministas, que apresentaram por escrito suas considerações sobre o caso (I/A COURT H.R., 2009: 5). Esta polifonia discursiva que agregou diversos sujeitos, enunciados e saberes tornou possível uma leitura sobre a produção de mortes de mulheres em Ciudad Juarez atribuída, em relação de causalidade, à identidade de gênero. Apesar de se tratar de questão contenciosa, um dos primeiros movimentos discursivos que emergem da análise da sentença é a convergência entre os litigantes sobre a designação feminicídio como forma de se referir à produção de mortes de mulheres. Os representantes disseram que “os homicídios e desaparecimentos de meninas e mulheres na Cidade de Juarez, são a máxima expressão da violência misógina”, razão pela qual alegaram que esta violência se conceitua como feminicídio. Segundo explicaram, ela consiste em “uma forma extrema de violência contra as mulheres; o assassinato de meninas e mulheres pelo único motivo de estarem em uma sociedade que as subordina”, o que tem implicação de “uma mistura de fatores culturais, econômicos e políticos”. Por essa razão, argumentaram que “para determinar se um homicídio de uma mulher é um feminicídio é preciso conhecer quem o comete, como o faz e em que contexto”. (...) De sua parte, o Estado, na audiência pública, utilizou a terminologia feminicídio ao fazer referência ao “fenômeno […] que pre-


valece em Juarez” (I/A COURT H.R., 2009: 41, tradução da autora). Em certa medida, esse primeiro movimento discursivo põe em destaque que a emergência do feminicídio como premissa consensual foi uma das condições de possibilidade para debater os termos e limites da responsabilidade do Estado mexicano pelas mortes em Juarez. Embora esta premissa, ao longo do documento, apareça sempre em termos de constatação e reconhecimento, agenciando debates orientados pela pergunta “o que fazer?”, é preciso desviar o olhar para entender a produção do consenso que agora informa a existência de um fenômeno social e criminológico chamado feminicídio. Esse desvio demanda, ao lado da análise sobre as disposições contidas na sentença da Corte Interamericana – o primeiro tribunal internacional a utilizar oficialmente o termo feminicídio – uma retomada da história dos acontecimentos que tornaram possível, em Ciudad Juarez, a emergência de uma estratégia favorável à dissipação de novos controles em nome da proteção das vidas e dos corpos das mulheres. 1. AS MULHERES DE JUAREZ: UMA HISTÓRIA SOBRE PUTAS E HIJAS A partir dos primeiros anos da década de 1990, começaram a se avolumar em Ciudad Juarez denúncias sobre centenas de corpos de mulheres mutilados, encontrados em meio ao lixo ou ao deserto, nos arredores da cidade. Os relatos e perícias posteriormente realizados dão conta da intensa tortura a que estes corpos foram submetidos, não raro com marcas de violência sexual. Localizada em região de fronteira com os EUA, Ciudad Juarez se tornou um local de intenso fluxo migratório após a chegada das indústrias maquiladoras1 sobretudo depois da celebração do NAFTA (North American Free Trade Agreement)2, que abriram milhares de postos de trabalho ocupados por um número cada vez maior de mulheres. As condições de remuneração e trabalho nessas indústrias já foram alvo de muitas análises produzidas por pesquisadores mexicanos e estrangeiros, quase sempre apontando para a precariedade de ambas (Kopinak, 2005; Carrillo y De La O, 2003; Coubès, 2011). Tantas outras pesquisas também apontam a região como local de intenso confronto entre forças militares e traficantes de drogas, cujo efeito mais abordado é a produção de mortes (Mercille, 2011; Smith, 2013).

A pesquisadora feminista Melissa Wright, da Universidade de Chicago, publicou em 2011 um artigo onde expôs as estratégias de denúncia e defesa dos familiares das vítimas de Juarez, agenciadas por discursos feministas de combate à chamada violência de gênero. Por violência de gênero a autora compreende a violência que atinge as mulheres pelo simples fato de serem mulheres (2011: 709). Wright relata que, no primeiro momento de publicização das mortes das mulheres de Juarez, as instâncias oficiais de controle do crime mobilizaram o discurso de que as vítimas eram mulheres “públicas”3 e se encontravam, pouco antes de desaparecerem ou serem mortas, em situações comprometedoras em relação à moral familiar local: estavam em bares, festas, encontros amorosos furtivos ou circulando pelas ruas da cidade em horários “inadequados” (2011: 711). Os familiares das mulheres costumavam retornar das delegacias de polícia sem qualquer perspectiva de realização de investigações sobre o paradeiro de suas filhas, esposas, irmãs. Tampouco, quando os corpos eram encontrados, havia sinalização de que o Estado procederia de outra forma. Como muitas das vítimas eram mulheres pobres empregadas nas maquiladoras, as famílias passaram a exigir dessas empresas medidas de prevenção ao crime, tais como o transporte entre as residências e os locais de trabalho. Neste sentido, também não obtiveram maiores êxitos. Enquanto o Estado investia no discurso de moralização do comportamento das mulheres, movimentos sociais como a Coordenação de Organizações Não Governamentais em Defesa da Mulher e as Mulheres de Preto, formadas por familiares de vítimas e feministas em geral, contra-atacaram as instituições oficiais afirmando que as mulheres mortas não eram “públicas”, mas trabalhadoras que se arriscavam a trabalhar fora de casa para ajudar financeiramente suas famílias. A partir de então, as desaparecidas e mortas de Juarez deixaram de ser referidas como mulheres, no discurso dos movimentos sociais, para serem identificadas apenas enquanto “hijas”, moças de família que nada fizeram para merecer as tragédias que se abateram sobre elas. A coalizão utilizou essa tática como um meio para lutar contra o discurso da mulher pública sem desmontá-lo por completo, mas rejeitando a ideia de que as buenas hijas

(boas filhas) não tivessem um lugar legítimo na esfera pública da cidade, em suas ruas e em suas fábricas (Wright, 2007). As vítimas estavam cumprindo seus deveres familiares trabalhando fora de casa para sustentar suas famílias. “Nós tínhamos que fazer algo quando eles simplesmente riram de nós por exigirmos investigações” (...) “Então nós apresentamos as vítimas para o público. Mostramos para que fossem consideradas seres humanos” (Wright, 2011: 715, tradução da autora). Essa estratégia sensibilizou e agitou protestos em solidariedade às mulheres de Juarez, no México e no exterior. Da mesma forma, os movimentos sociais obtiveram melhores relações com a institucionalidade, mobilizando promotores de justiça, criando um departamento especializado para trabalhar junto aos familiares das vítimas, e até mesmo pautando as eleições locais e federais, cujos candidatos já não podiam se esquivar de um posicionamento sobre as mortes em Juarez. Com o aparecimento de mais e mais corpos mutilados, o discurso em defesa das famílias atraiu também esforços das Nações Unidas, que designaram uma delegação para investigar as mortes no México. Da mesma forma, a Anistia Internacional produziu e lançou um documento sobre a incompetência e a indiferença do governo mexicano quanto aos procedimentos legais de apuração adotados (I/A COURT H.R., 2009: 6). Da somatória dessas intervenções emergiu mais uma estratégia discursiva sobre o feminicídio em Juarez. Tratou-se de demandar a responsabilidade do Estado sobre as mortes e desaparecimentos das mulheres. A impunidade dos agressores foi construída como conivência do Estado com a reiterada produção de mortes, de modo que se tornou bandeira dos movimentos antifeminicídio e impulsionou reformas do aparato policial (Sabet, 2010) e de justiça criminal4. Alguns pesquisadores apontam que, quando se trata de responsabilizar o Estado no México, as estratégias discursivas de Juarez são referência para vários movimentos sociais (Wriht, 2011: 708). Dessa forma, o Estado mexicano passa a ser demandado como o guardião das famílias mexicanas. Embora essa ligação entre Estado e família não seja nenhuma novidade em termos de discurso oficial, no caso do feminicídio essa relação assume a peculiaridade de ser também um discurso de direitos humanos e, especialmente, feminista.

Empresas de montagens de produtos a partir de peças produzidas em outros países. Os produtos finais são embalados e enviados do México para países importadores. São empresas atraídas pelas isenções ou descontos fiscais oferecidos pelo governo mexicano, como também pela flexibilização de encargos trabalhistas. 2 Acordo de livre comércio e regulamentação do mercado de trabalho e do meio ambiente entre os países da América do Norte, que acentuou a entrada das maquiladoras para operar em território mexicano. 3 Ciudad Juarez ficou conhecida na segunda metade do século XX por ser um local onde a prostituição não era confinada em zonas de tolerância, ao contrário, exercia-se publicamente pelas ruas da cidade, em suas praças e feiras. Com a migração dos anos 1970, as operárias que deixavam suas famílias em outras cidades ou em casa para trabalhar na indústria juntaram-se às prostitutas no imaginário local como mulheres públicas”. Nas palavras de Wright: “as que caminhavam pelas ruas a caminho do trabalho e as que caminhavam pelas ruas como parte do seu trabalho acrescentaram à cidade a fama de cidade de ‘mulheres públicas’” (2011: 713) 4 De acordo com o International Centre of Prison Studies (ICPS), da Universidade de Londres, o México atingiu em 2015 o 7º lugar em população carcerária do mundo (ICPS, 2015). 1

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A guinada que os movimentos sociais operaram em relação ao discurso da família e da responsabilidade do Estado foi certamente o que mobilizou as instituições oficiais e as organizações internacionais no sentido de intensificar as políticas de controle e punição. Tanto é assim que, no julgamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado mexicano admitiu sua responsabilidade parcial pelo que ele mesmo reconhecia como sendo um feminicídio em Juarez (I/A COURT H.R., 2009: 03). Além do reconhecimento sobre um fenômeno chamado feminicídio, outro uníssono ecoou na sentença da Corte, instaurando um aparente paradoxo. Segundo dados fornecidos pelo Estado mexicano, e não contestados nos autos, a chamada violência de gênero ocorre, sobretudo, em ambiente familiar (I/A COURT H.R., 2009: 39). Assim, ao mesmo tempo em que o Estado deve controlar e punir o feminicídio para a proteção da família, é sobre esta que recaem quase todas as acusações de produção dessas mortes, e é a elas que deve se endereçar a punição. Neste sentido, a chamada violência de gênero, que estaria no cerne da explicação causal do femincídio, emerge não apenas como uma estratégia discursiva de defesa dos movimentos sociais, mas como um discurso de Estado que fixa a família como local privilegiado de novos investimentos de controle em nome do combate à violência contra a mulher. Não por acaso, o artigo que foi acrescentado ao código penal mexicano, após as mobilizações antifeminicídio e a condenação na Corte, destaca o investimento criminal sobre as relações de afeto, confiança e conflitos familiares. Artigo 325. Comete o crime de feminicídio quem privar a vida de uma mulher por

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razões de gênero. Considera-se que existem razões de gênero quando ocorrer alguma das seguintes circunstâncias: I. A vítima apresentar sinais de violência sexual de qualquer tipo; II. À vítima tenham-se infligido lesões ou mutilações difamatórias ou degradantes, prévias ou posteriores à privação da vida, ou atos de necrofilia; III. Existam antecedentes ou dados de qualquer tipo de violência no âmbito familiar, laboral ou escolar, do autor do crime contra a vítima; IV. Existira entre o autor e a vítima uma relação sentimental, afetiva ou de confiança; V. Existam dados de ameaças relacionadas com o fato criminoso, perseguição ou lesões do autor do crime contra a vítima VI. A vítima tenha ficado incomunicável, qualquer que seja o tempo prévio à privação da vida; VII. O corpo da vítima seja exposto ou exibido em local público . Quem cometer o delito de feminicídio estará sujeito a penas entre quarenta a sessenta anos de prisão e quinhentos mil dias-multa (MÉXICO, 2015, tradução da autora). O consenso produzido em torno do feminicídio como fenômeno político, social e criminal se organizou a partir da família enquanto agente e objeto da produção de mortes de mulheres. Dentre as muitas problematizações possíveis, destaca-se aqui a escolha dos movimentos sociais pela preservação da moral sexual familiar na figura da hija ou moça da família. Ao responder desta forma às agências de controle institucional, os movimentos sociais antifeminicídio contribuíram para que se reafirmasse a dualidade entre a mulher casta e obediente e a

mulher “pública”, “da vida”, prostituída ou, simplesmente, puta. Essa dualidade moral, presente na organização do espaço urbano desde a passagem do século XIX para o século XX, foi analisada pela historiadora Margareth Rago: A invasão do espaço urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz um abrandamento das exigências morais, como atesta a permanência de antigos tabus como o da virgindade. Ao contrário, quanto mais ela escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho. Todo um discurso moralista e filantrópico acena para ela, de vários pontos do social, como o perigo da prostituição e da perdição diante do menor deslize (...) Vários procedimentos estratégicos masculinos, acordos tácitos, segredos não confessados tentam impedir sua livre circulação nos espaços públicos ou a assimilação de práticas que o imaginário burguês situou nas fronteiras entre a liberdade e a interdição (2014: 88-89). Um dos primeiros efeitos da atualização da dualidade moral entre a moça de família e a puta, em Ciudad Juarez, a partir das mortes e desaparecimentos em análise, foi o soterramento da história que poderia ser contada por meio dos acontecimentos e relações atravessados pelas experiências das mulheres nos espaços públicos da cidade. Fossem elas prostitutas ou forasteiras recém-chegadas, fossem mulheres que trabalhavam nas maquiladoras e assumiam uma rotina distinta da dona de casa; fossem jovens que percebiam nos primeiros parcos salários alguma autonomia sobre seu tempo


e seus corpos, sabe-se apenas que suas existências se tornaram insuportáveis. Quase nada, no entanto, pode ser dito sobre a emergência de novos costumes, escapes da moral familiar local ou deslocamentos das práticas sexuais, a partir do momento em que os movimentos sociais assumem um discurso que qualifica essas mulheres como moças de família, cuja principal característica, real ou imaginária, reside na obediência que não produz irrupções de práticas dissonantes da moral vigente. Essa estratégia de visibilidade e reparação das famílias das vítimas suplantou os questionamentos sobre as condições histórico-políticas daquelas mortes e sobre eventuais potências de liberdade presentes na circulação das mulheres de Juarez pelo espaço urbano. Para pavimentar o caminho de um consenso sobre o que passou a se chamar de feminicídio – que não é a produção elevada e reiterada de mortes de mulheres, mas a produção elevada e reiterada de mortes de moças de família –, foi preciso estancar e descartar os conflitos, singularidades, paixões e experiências de centenas de mulheres que tiveram não apenas suas vidas governadas pela moral sexual familiar, mas também suas mortes utilizadas para reforçá-la. Neste sentido, a inteligibilidade do consenso sobre o feminicídio deixou ainda uma constatação constrangedora para qualquer movimento social, de direitos humanos ou feminista. As mortes das mulheres públicas, das mulheres “da vida”, das mulheres putas, assim como informava a polícia diante das primeiras denúncias, são mortes que estão justificadas pela condição pessoal que se opõe à moça de família na dualidade moral vigente. Assim, o caminho para a afirmação do feminicídio foi também pavimentado sobre o reconhecimento de que as mortes das putas são o destino inevitável de um comportamento socialmente reprovado, em razão do qual não se levantam bandeiras ou palavras de ordem. 2. A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO Em vários momentos distintos, Michel Foucault analisou os investimentos sobre a família enquanto produção de governamentalidade, entendida, em linhas gerais, como as muitas maneiras pelas quais se exercita governar aos outros e a si próprio. No curso organizado sob o título Os anormais, Foucault mostra que a família burguesa, a partir do final do século XVIII, foi chamada a vigiar e controlar seus filhos e filhas para evitar as práticas de masturbação. Toda uma campanha entre médicos e especialistas contra essas práticas informava que os pais deveriam se tornar inseparáveis de seus filhos para, ao menor sinal de masturbação – essa grande causa de todos os tipos

de doenças futuras e, no limite, da própria morte –, intervirem sobre os corpos das crianças, impedindo-as de se tocarem. (...) pediu-se a essa família restrita que cuidasse do corpo da criança simplesmente porque a criança vivia e não devia morrer. O interesse político e econômico que se começa a descobrir na sobrevivência da criança é certamente um dos motivos pelos quais se quis substituir o aparelho frouxo, polimorfo e complexo da grande família relacional pelo aparelho limitado, intenso e constante da vigilância familiar (...) Os pais têm que cuidar dos filhos, os pais têm de tomar conta dos filhos, nos dois sentidos: impedir que morram e, claro, vigiá-los e, ao mesmo tempo, educá-los. A vida futura das crianças está nas mãos dos pais. O que o Estado pede aos pais, o que as novas formas ou novas relações de produção exigem é que a despesa, que é feita pela própria família, dos pais e dos filhos que acabam de nascer, não seja tornada inútil pela morte precoce dos filhos (Foucault, 2002: 322). O que o autor aponta, a partir destas afirmações, é que a família se torna neste momento “o princípio de determinação, de discriminação da sexualidade, e também o princípio de correção do anormal” (2002: 323). Sob pena de ver o filho definhar pela doença ou, mais adiante, pela delinquência, a família se tornou alvo de toda uma série de investimentos de governo que se apresentavam internamente, entre pais e filhos, e externamente, entre pais e um saber médico que os orientava a prevenir males futuros. Este movimento em direção à família nuclear burguesa é próprio da passagem de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar. Segundo Foucault, na primeira, o poder do soberano se exercia como um poder de fazer morrer e deixar viver, ao passo que, na sociedade disciplinar, a questão foi invertida, o investimento passou a ser de fazer viver e deixar morrer (2005: 292). Para o autor, a disciplina, um dos vetores de força dominantes dessa nova governamentalidade, tratou de se ocupar, prioritariamente, da produção de corpos dóceis e úteis necessários à própria constituição das forças do Estado (1999: 195). Entretanto, a passagem de uma disposição de forças da sociedade de soberania para a sociedade disciplinar não é uma evolução, nem uma etapa, no pensamento de Foucault. Alterada a correlação de forças, muitas continuidades podem ainda ser observadas. A família permaneceu como relação de soberania por excelência, espaço onde o poder dos pais se inscreve como poder de vida e de morte sobre seus filhos. A diferença, na sociedade disciplinar, é que esse poder familiar passa ser orientado para confluir em uma biopolítica, cujo investimento é sobre

uma multiplicidade de pessoas na medida em que estas conformam “uma massa global, afetada por processos de conjunto que são os próprios processos da vida, que são os processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (2005: 289), ou seja, uma população. Portanto, pode-se afirmar que, sem família, a governamentalidade própria da sociedade disciplinar, em suas duas séries de relações de poder – disciplina e biopolítica – simplesmente não seria possível. Foi no conjunto das próprias relações de poder características da sociedade disciplinar, no entanto, que Foucault começou a perceber, alguns anos depois de Os Anormais, um deslocamento importante dos investimentos em governamentalidade a partir da família. No curso Nascimento da Biopolítica, ao analisar certos aspectos do neoliberalismo estadunidense, Foucault destacou a teoria do capital humano como inteligibilidade econômica que começava a ser introduzida em campos até então não-econômicos. Essa teoria afirma que a força de trabalho deveria ser pensada não mais em termos quantitativos, como até então se fazia, mas de forma qualitativa, como uma força composta de competências que são a própria medida da renda a ser atribuída a essa força de trabalho. Em outras palavras, o trabalhador não é mais o empregado que recebe um salário pela quantidade de horas trabalhadas, mas é ele próprio, o conjunto das suas competências, uma competência-máquina ou capital humano, ao qual será atribuída uma renda (2008: 302). Essas competências, analisa Foucault, são constituídas de atributos genéticos, sem dúvida, mas sobretudo do investimento que se faz para formá-las ao longo da vida. Obviamente, esses investimentos começam na família. Sabe-se perfeitamente que o número de horas que uma mãe de família passa ao lado do filho, quando ele ainda está no berço, vai ser importantíssimo para a constituição de uma competência-máquina, ou se vocês quiserem para a constituição de um capital humano, e que a criança será muito mais adaptável se, efetivamente, seus pais ou sua mãe lhe consagraram tantas horas do que se lhe consagraram muito menos horas (...) Tempo passado, cuidados proporcionados, o nível de cultura dos pais (...), o conjunto dos estímulos culturais recebidos por uma criança: tudo isso vai constituir elementos capazes de formar um capital humano (2008: 316). No momento em que, como afirmou Gilles Deleuze, as sociedades disciplinares começavam a dar lugar a outro tipo de sociedade, cujo arranjo de forças sobrepõe o controle à disciplina (1992: 219), Foucault sinalizou para uma atualização da família Setembro/outubro/2016 |

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enquanto produtora de novas práticas de governo sobre a vida. Não seria demais, nessa grade de inteligibilidade neoliberal, afirmar que a constituição do capital humano está diretamente ligada à produção de criminalidade de maneira inversamente proporcional, ou seja, quanto mais capital humano, menos chance de um sujeito, entendido como sujeito econômico, produzir comportamentos desviantes. A seletividade do sistema de justiça criminal ganha assim um novo reforço, desde a suposta ontologia do crime até os condicionamentos da chamada prevenção geral. Enquanto se continua a apostar na busca pela etiologia criminal (causas mais ou menos profundas do crime), incrementa-se também uma série de controles contínuos sobre o cotidiano das pessoas – em especial, das crianças – sob a justificativa de reduzir a criminalidade. Esses dois movimentos do pensamento de Michel Foucault são importantes para compreender a maneira como a família assumiu posição central nos discursos sobre as mortes em Juarez. De um lado, o Estado pressionava as famílias a cuidarem melhor de suas mulheres para afastá-las do risco de extermínio em decorrência de comportamentos inadequados à moralidade sexual local. De outro lado, os próprios movimentos em defesa dos direitos das mulheres reivindicavam o investimento em educação moral que as famílias realizaram na formação de suas filhas para responsabilizar o Estado por sua omissão quanto à vida e à integridade física destas. O discurso de proteção da família, afirmado tanto pelo Estado quanto pelos movimentos sociais, mostrou como a fronteira jurídica que os dividiu perante a Corte Interamericana foi também o encontro de demandas por mais governo. Assim, a emergência do feminicídio como caracterização das mortes em Juarez, em alguma medida, reconciliou – pela afirmação da família e sua moral sexual – os movimentos sociais em defesa das mulheres e o governo local que, não por acaso, tem sob seu comando uma região considerada econômica e socialmente instável. 3. FLUXOS DE CONTROLE EM EXPANSÃO: FEMINICÍDIO E “GUERRA ÀS DROGAS” Segundo Wright, o discurso sobre feminicídio, que ganhou espaço a partir dos anos 1990 no México, atravessou esta década paralelo a outra questão problemática para o governo local: o “narcotráfico”. A partir da formação dos chamados cartéis de Juarez e Sinaloa, a disputa pelo controle do comércio ilegal de drogas produziu também muitas mortes, tanto em enfrentamentos de grupos

rivais de traficantes, quanto em enfrentamentos destes com as forças policiais da região. Em 2003, ressalta a autora, os corpos de 12 homens foram encontrados a poucos quilômetros de Campo Algodonero e, assim como as mulheres mortas encontradas dez anos antes, apresentavam marcas de inomináveis torturas (2011: 719). Mesmo sem analisar mais detidamente o discurso de “guerra às drogas”, é importante ressaltar que, nos anos 2000, os EUA ameaçaram o México com a possibilidade de considerá-lo um Estado falido em decorrência das altas taxas de produção de mortes nas fronteiras, supostamente resultantes do chamado tráfico de drogas. A designação de Estados falidos, como mostra Thiago Rodrigues (2009: 168), foi um discurso difundido por Francis Fukuyama para se referir aos Estados “fracos”, “sociedades fracassadas”, cujas instituições governam de maneira débil seus problemas domésticos, tornando-se, assim, um problema de segurança internacional a justificar intervenções militares, a exemplo do que aconteceu com o Afeganistão em 2001. A repercussão da ameaça estadunidense dentro e fora do México teve como efeito uma espetacular demonstração de força do governo central do país, com o envio de dezenas de tropas militares a várias cidades, sobretudo as que fazem fronteira com os EUA, dentre as quais Juarez. Wright afirma que, neste momento, a produção de mortes nessas regiões de fronteira ultrapassou os números da Revolução de 1910, frequentemente apontada como principal conflito armado da história do país (2011: 722). De volta à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, são incontáveis as referências a Ciudad Juarez como lugar extremamente violento, onde, além das péssimas condições de trabalho e remuneração, estão presentes grupos armados de traficantes e uma série de desordens a eles atribuídas. O próprio Estado mexicano afirmou que se trata de uma região de difícil controle, de precários serviços públicos, altos índices de evasão escolar, intensa circulação de armas, lavagem de dinheiro e crimes sexuais (I/A COURT H.R., 2009: 39). Emerge, portanto, do documento da Corte, uma relação entre o discurso sobre feminicídio e a demanda por mais governo na região. De alguma forma, a reparação e a proteção às mulheres se torna justificativa para a implementação de uma série de políticas de recrudescimento e ampliação de controles. Dentre as metas fixadas na sentença, aparecem, por exemplo, a padronização dos procedimentos de investigação policial, in-

cluindo a produção de prova técnica (pericial), bem como da atuação do judiciário, no sentido de se adequarem aos protocolos internacionais de segurança. É também imposição da Corte que se providencie a organização de bancos de dados que contenham informações das mulheres desparecidas ou mortas, inclusive dados genéticos e mostras celulares, desde que autorizadas pelas famílias das vítimas (I/A COURT H.R., 2009: 154-155). O conjunto das reformas exigidas pela sentença celebra, assim, uma incursão sobre as vidas das pessoas cujas dimensões são difíceis de mensurar. São controles ao nível da constituição biológica, da formação de relações familiares, de trabalho e de vizinhança. São reformas no aparelho de justiça criminal que teriam, certamente, dificuldades em agenciar o apoio de movimentos sociais de defesa dos direitos humanos ou feministas caso se justificassem pela “guerra às drogas”, mas que seriam (e foram) praticamente irrefutáveis quando se deslocou o problema para a “proteção às mulheres”. Exemplo disso aparece no Modelo de Protocolo Latino-Americano para Investigação de Mortes Violentas de Mulheres, um documento de 2014, elaborado pelo Escritório Regional para a América Central do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OACNUDH). Trata-se de um documento que deve orientar os procedimentos criminais, policiais e judiciais, quando se tratar de violência contra a mulher, nos países latino-americanos. Uma das principais referências do documento é a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o México. Dentre as definições que aparecem no protocolo, emerge a de femicídio5 passivo, que, em meio a outras práticas, envolve “as mortes vinculadas ao tráfico de seres humanos, ao tráfico de drogas, à proliferação de armas de pequeno porte, ao crime organizado e às atividades das quadrilhas e bandos criminosos” (OACNUDH, 2014: 19). Mais adiante, ao tratar dos procedimentos para a identificação dos agressores, o documento sugere que se investigue se “o/s suspeito/s pertence/m a alguma quadrilha, bando, estrutura ilegal, ou grupo armado à margem da lei. De que natureza?” (OACNUDH, 2014: 72). Nota-se, sem maiores dificuldades, a conexão imediata entre a emergência da criminalização do feminicídio, e procedimentos para sua apuração, e outros fluxos de controle que se potencializam em contato com o discurso de “proteção às mulheres”, como acontece com a “guerra às drogas” e o “combate ao crime organizado”.

O próprio documento estabelece uma distinção entre femicídio e feminicídio que seria, em relação ao segundo, a tolerância ou conivência do Estado com as mortes de mulheres em razão do sexo/gênero. No entanto, muitas vezes utiliza os termos como sinônimos. Para a finalidade deste artigo, a diferenciação não assume maior relevância.

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O problema que os movimentos sociais de direitos humanos ou feministas parecem não querer enfrentar é que as estratégias dos sistemas de justiça criminal quase nunca operam em uma única direção, e o discurso que justifica a ampliação desse controle deve, portanto, saber-se parte de uma disposição de forças favoráveis à expansão de outros extermínios. Quando se relaciona a produção de mortes de mulheres na América Latina com os confrontos pela divisão e gerenciamento do comércio ilegal de drogas, a militarização das cidades e o controle das fronteiras, são incontáveis as conexões que as reformas penais podem estabelecer para manter o funcionamento do próprio sistema de justiça em constante atualização. 4. FEMINICÍDIO: UMA ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA PARA A AMÉRICA LATINA Desde 2007, com a precursora Costa Rica, até a recente inovação legislativa brasileira, 16 países adotaram a criminalização do feminicídio. Este avanço não se dá na mesma proporção entre países de outros continentes e é fácil observar como quase todos os pronunciamentos internacionais sobre a questão se referem majoritária ou exclusivamente à América Latina. Assim, além de funcionar como tipo penal, autorização policial, mediadora de relações familiares, pauta organizadora de movimentos sociais, a noção de feminicídio ainda opera no âmbito das relações internacionais como um traço distintivo da periferia do sistema. De acordo com uma nota de 2012 da organização Small Arms Survey, mais da metade dos 25 países com as maiores taxas de feminicídio estão na região da América Latina e Caribe. Ao citar a mesma nota durante a 57ª sessão da Comissão do Status da Mulher (CSW57), a alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos Kyung-wha Kang apontou que, em 2011, 647 mulheres foram mortas em El Salvador, 375 em Guatemala, e que o feminicídio é considerado como a 2ª maior causa de mortes de mulheres em idade reprodutiva em Honduras. Ela adicionou que a taxa de impunidade para crimes de feminicídio é estimada em 77% em El Salvador e Honduras (UN-WOMEN, 2013, tradução da autora). A caracterização do feminicídio enquanto estratégia de segurança se deve, portanto, ao fato de que ele não opera apenas dentro do discurso de criminalização, embora apareça também como tipo penal. Além das questões já levantadas, ele aciona um investimento em capital humano que há décadas vem sendo demandado dos países latino-americanos: a educação para os direitos humanos. Dois dos últimos pontos da condenação do México na Corte Interamericana

se referem a programas de educação e capacitação neste sentido (I/A COURT H.R., 2009: 155-156). Passado o período histórico das ditaduras na América Latina, essa porção de continente é incessantemente convocada a incorporar pautas de direitos humanos como forma de reatualizar a lógica paternalista e autoritária segundo a qual é necessário punir para educar e educar para punir. Mais do que isso, quando se observa que esse investimento se dá por meio da demanda de grupos feministas, o que é chamado de violência de gênero ou, simplesmente, de opressão, neste contexto não passa da constatação de um “barbarismo intrínseco e não ocidental” (Butler, 2003: 20) que, não por acaso, faz parte do próprio imaginário sobre a periferia. Judith Butler criticou a presunção de uma dominação masculina que se manifesta em contextos locais distintos como “exemplos”, “ilustrações” ou “confirmações” de uma suposta base política universal ou estrutura hegemônica do patriarcado. Segundo a autora, essa concepção confirma um discurso sobre o “terceiro mundo” ou o “oriente” que é colonizador, na medida em que a opressão aparece como característica confirmadora da selvageria ou incivilidade das sociedades não-ocidentais. De alguma maneira, o discurso sobre feminicídio ratifica uma caricatura da América Latina como região de violências “primitivas”, de povos pouco instruídos e mal educados, de gente pobre e incapaz de governar a própria vida. É sobre esse contexto que os direitos humanos são chamados a traçar sua cruzada civilizatória, instituindo procedimentos de regulação e controle social justificados pela defesa dos mais precarizados, vulneráveis ou qualquer que seja a terminologia de “proteção” da vez. A emergência de uma agenda de direitos humanos, impulsionada pelas reivindicações feministas na América Latina, opera também pelo que Butler chamou de “urgência do feminismo em conferir um status universal ao patriarcado” como forma de construir uma “aparência de representatividade das reivindicações” (2003: 21). Para a autora, trata-se de um “atalho” em direção a uma universalidade fictícia que torna possível ao próprio feminismo falar em nome da “experiência comum” de “subjugação das mulheres”. Assim, a classificação de feminicídio que se atribuiu às mortes de milhares de mulheres na América Latina despreza as lutas locais e as singularidades das estratégias de resistência à moral sexual familiar, a não ser como “sintoma” de uma suposta opressão geral que recai sobre as mulheres de todo o mundo. Neste sentido, é importante não

esquecer que o feminicídio só se construiu como tal no discurso punitivo quando o próprio movimento negociou a representação das hijas de Juarez. Para que fosse possível emergir como prática de controle e segurança sobre o continente, o feminicídio eliminou do discurso até mesmo as potenciais resistências que a circulação de mulheres no espaço público pudesse produzir. É desse modo que a questão do feminicídio não se restringe ao recrudescimento punitivo e à ampliação de controles institucionais no âmbito dos Estados. Trata-se também de uma política de segurança internacional que reforça o lugar da América Latina enquanto periferia a ser pacificada. O que esse discurso produz é também um rearranjo de forças que inclui movimentos sociais e demandas de minorias, advindos da própria periferia, como agentes de controle que se conectam com a demanda internacional de segurança sobre o continente. 5. RUIR O CONSENSO: UM INCÔMODO VITAL A análise documental realizada sobre a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Campo Algodonero (González y otras vs. México) e o mapeamento de procedências histórico-políticas sobre a produção de mortes de mulheres em Ciudad Juarez não se esgotam nos pontos levantados neste artigo. Seu objetivo se encerra tão somente na problematização do consenso que se formou entre Estados, movimentos sociais, organizações internacionais e especialistas sobre o amplo processo de criminalização do feminicídio na América Latina. Essa problematização é tanto mais urgente quanto mais se pensa que a cada denúncia ou sessão de tribunal sobre feminicídio, correrá simultâneo um juízo moral sobre a vida de uma mulher que foi exterminada, atualizando exatamente as relações autoritárias que produzirão o extermínio de outras tantas mulheres – donas de casa, prostitutas, traficantes, companheiras de traficantes, turistas, operárias, usuárias de drogas, freiras, empregadas domésticas, universitárias. A busca por maneiras de interceptar a produção de mortes de mulheres na América Latina é vital para que se possam ampliar práticas de liberdade que se expandem pelas diferenças, inclusive de gênero. É vital além e aquém disso. Enquanto as representações domésticas e internacionais entram em consenso sobre a produção de governos, polícias e controles, a prostituição é confinada ao ressentimento pacificado como tolerância; prazeres permanecem sob a insígnia do abjeto; e o luto público segue reservado a algumas existências, reSetembro/outubro/2016 |

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legando outras tantas ao silêncio e ao esquecimento. Descartáveis. É precisamente porque os sistemas de justiça criminal, as criminalizações e os protocolos de segurança operam pela inteligibilidade que descarta inúmeras existências a favor de sua própria reprodução que é urgente suspender o discurso sobre feminicídio. Quando se opõe à inquestionável produção

elevada e reiterada de mortes de mulheres na América Latina práticas discursivas que se constituem pela seleção de sujeitos disponibilizados ao extermínio – pobres, putas, pretos, vagabundas, migrantes, vadios/as –, atualiza-se a moral da história como autorização para seu funcionamento e continuidade. É urgente que os movimentos e demais interlocutores deste debate, humanista e/ou

feminista, social e/ou acadêmico, encarem de frente os efeitos de suas próprias demandas contra a cômoda solicitude do sistema de justiça criminal em abraçá-las. Deslocar-se desse lugar comum pode ser a diferença entre o último suspiro e o respiro ofegante da batalha. Talvez por isso, fazer ruir o consenso acerca do feminicídio seja uma pequena pista sobre um incômodo vital... g

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SAUDAÇÃO ARTE E MILITÂNCIA CULTURAL EM CHICO PEREIRA JR. (*) José Octávio de Arruda Mello

O PRIMEIRO ENCONTRO A 26 de julho de 1955, Campina Grande registrou a inauguração do Estádio Municipal Plínio Lemos, com peleja entre o Treze local e o Esporte Clube Bahia, de Salvador. Recordo esse acontecimento porque, já repartido entre predileções políticas e esportivas, eu estava lá, integrando delegação da Associação dos Cronistas. Como interessado em política, prestei atenção ao comício em prol da candidatura presidencial Juarez Távora, que o prefeito organizou, com o concurso de dois parlamentares que me impressionaram – o bahiano Aliomar Baleiro e o paraibano-carioca Breno da Silveira, do Partido Socialista, que apoiava Távora. Como cronista esportivo, entrei em campo, ao final, para conversar com Isaltino, remanescente de meu time de botão de 1949. Recordo Breno não só pelo tom pragmático do discurso como pela condição de pai de um amigo comum – meu e de Chico – o arquiteto Cidno Silveira, benfeitor de Campina Grande, com a edificação do belo edifício da FIEP, saído de sua prancheta. De mais a mais, Breno era primo da mamanguapense Dinary Dália cujo marido, o capitão Urias de Carvalho Alencar, hospedou-se em sua casa de Jacarepaguá, quando partia para a Itália, como integrante da FEB, no Rio de Janeiro, em 1944. Impõe-se a referência porque Urias, cuja residência eu regularmente frequentava, em busca de informações sobre a Segunda Guerra Mundial, intercedeu a meu favor, nos dias tenebrosos da ditadura militar. Quer dizer, enquanto pretensos amigos procuravam complicar-me, Urias defendia-me, junto a instâncias vedadas aos civis. Devo-lhe, pois, preservação da carreira profissional. Décadas depois, tomei conhecimento

de que, menino de dez anos, Chico Pereira Júnior também se fazia presente ao Estádio Plínio Lemos. Conduzido pelo pai, o lendário Chico Pereira, da célula comunista do Café Estrela, complementada pelo sócio Chico Lima, e ainda Pereira Peba, Oliveiros Oliveira e Uziel do Vale, ele não esqueceu detalhe do acontecimento cuja praça de esportes comportava... curral de vaquejada... Como o estádio também albergava piscina para a qual não havia água, providenciaram viatura do Corpo de Bombeiros para o suprimento. O que Chico não lembra, mas está colocado no livro de Mário Vinicius sobre o Treze Futebol Clube, é que, como o curral de vaquejada impedisse a melhor localização do público, parte deste ficou tibungando na piscina, enquanto o jogo transcorria... DOIS DESTINOS PARALELOS Embora anônima, foi essa minha primeira convivência com o mais novo integrante da Academia Paraibana de Letras. E se também a relembro é porque, a partir daí, cumprimos destinos paralelos, até os encantos desta noite festiva. De minha parte, estudando em escola pública e atraído pela formação laica – o que me levou a Alberto Torres, José Honório Rorigues e Anísio Teixeira – percorri os escalões do jornalismo e ensino superior, fiel aos ditames da esquerda democrática, de socialismo com liberdade. Esta me sensibilizava, a partir dos cartazes com que me defrontava, a caminho da escola de Tércia Bonavides: “O mundo marcha para o socialismo. Para Presidente, João Mangabeira!” Isso foi em 1950. Algo mais novo, Chico foi conduzido pouco depois para o SENAI de Campina, que experimentava, sob a direção de Stênio Lopes, uma das fases mais operosas. O que o pai, pertencente ao estafe que disputava com

José Tombador, o controle do Sindicato da Construção Civil, desejava, era que o filho, a partir dos cursos práticos do SENAI, se convertesse em líder operário. No que, em parte, não errou. Operário das artes, operário também, Pereira tornou-se verdadeiro líder de sua categoria – a dos artistas plásticos. E se então novamente nos aproximamos, é porque, enquanto me voltei para a militância cultural do Grupo José Honório, Chico procedeu, identicamente, na cultura participante do segmento artístico. Aí, seu comportamento foi sempre o de um poderoso incentivador das artes e das letras. Junto aos cine clubes de Campina, no Museu de Artes da Rainha da Borborema, no NAC da Universidade Federal, que comportava setor literário dirigido pelo poeta Sérgio Castro Pinto, no Conselho Estadual de Cultura, no PMDB, e até hoje na UEPB. Esta tão bem renovada pela criatividade do Reitor Rangel Júnior, aqui presente. Dele Francisco Pereira Júnior faz-se indispensável Pró-Reitor de Cultura. ORGANICIDADE E ACADEMIA Diante de mais esta sintonia – não muito diferente daquela de 1955 – fico a me perguntar se não é essa a condição do verdadeiro intelectual e, por extensão, dos integrantes da Casa de Coriolano de Medeiros. Creio ter sido Antônio Gramsci quem melhor situou a problemática, ao conceituar esse tipo de produtor cultural. É o intelectual orgânico, do qual Chico Pereira se constitui em modelo perfeito e acabado. Por isso ele se encontra entre nós, ao lado de colegas da mesma estirpe. Ou seja, escritores que organizam à semelhança de Carlos Aranha, Damião Ramos, Ramalho Leite que, à frente de A União, assegurou preços mais baratos para os liSetembro/outubro/2016 |

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vros de integrantes da APL e IHGP, Elizabeth Marinheiro, Hildeberto Barbosa Filho, Luiz Nunes, ItapuanBotto, Flávio Satiro, no comando da modelar revista Genius, José Loureiro, Gonzaga Rodrigues, Marcos Cavalcante, Wills Leal, e, sobretudo, Maria do Socorro Aragão. Esta, nem bem chegava à entidade presidida pelo companheiro Damião Ramos, organizava seminário da melhor categoria sobre José Lins do Rego. A presença de Chico, a meu lado, nesse certame, reafirma sua postura de intelectual orgânico das artes plásticas. Nesse particular, coube-lhe aproximar-se de quem, a partir da pintura, mais batalhou pela cultura paraibana – Hermano José Guedes! São as duas marcantes categorias de pintores paraibanos. Os que impressionam pelo talento e a obra, como Flávio Tavares e Miguel dos Santos. E os que comovem pela mobilização, como Hermano Guedes e Chico Pereira. DE CAMPINA A JOÃO PESSOA Tecidas essas considerações, passo a discorrer sobre a obra do novo imortal e seu relacionamento comigo. Um pouco mais avançado que eu, o que, a certa altura, lhe valeu o apelido de “Chico Comuna”, CPJR. tornou-se pintor, pelos anos sessenta, e, como tal, um dos impulsionadores da cultura campinense. Sobre o cognome, cabe lembrar pitoresco episódio, relatado pelo futuro Reitor Berilo Borba. Este, lecionando em Campina Grande, foi interpelado pelo comandante da minúscula Guarnição Federal local, major Raiser, sobre as atividades subversivas de um tal Chico Comuna. Disfarçando, o professor respondeu que tal se devia à paixão desse pela Revolução Francesa que desembocou na Comuna de Paris. A emenda teria saído pior que o soneto se o major soubesse que a Comuna de 1871, analisada por Marx em uma de suas melhores brochuras, constituiu o modelo dos bolcheviques de Lenine para a implantação do Estado soviético. Voltando à cultura serrana, era com três intelectuais orgânicos – Edvaldo do Ó, Lopes de Andrade, Linaldo Cavalcante, e ainda os irmãos Pedrosa, um dos quais acaba de falecer, na Livraria desse nome – situados na cúpula, que Campina se abria a uma base jovem e generosa, receptiva às transformações que sacudiam o país. Chico Pereira era um deles, ao lado

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de Agnelo Amorim, Átila Almeida, Josué Sylvestre, Hermano José Bezerra Lima – para mim o mais diversificado de todos – José Neumanne Pinto, Rômulo Azevedo, Braulio Tavares, todos ecléticos como ele, e artistas Roberto Coura, Eládio Barbosa, Anacleto Eloi e o velho Antônio Labas. Como nas expressões de Ednaldo do Egito, a distância de Campina a João Pessoa era maior que a desta a Hollywood, os criadores das duas principais cidades paraibanas pouco se comunicavam. De João Pessoa, apenas compareciam a Campina Grande, Raul Córdula Filho, cujos livros auspiciam estas notas, Pontes da Silva e Wills Leal, que trabalhavam lá. O movimento inverso era ainda menor porque, entrincheirados no planalto, os intelectuais campinenses raramente desciam ao litoral. Ao lado de Amaury Vasconcelos e Elizabeth Marinheiro, Chico Pereira assim procedia. Temos, portanto, no ocupante da cadeira quinze da APL figura que sempre ultrapassou as próprias fronteiras. Recusando-se ao isolamento, seu primeiro livro – Feira de Campina Grande: um Museu Vivo da Cultura Popular e do Folclore Nordestino (1978) – envereda por essa linha, visto como a “harmoniosa confusão de sons, cheiros e cores”, sobre que se detém, transcendia os limites espaciais para alcançar o Nordeste, de Alagoas ao Piauí. Por essa época, já estabelecido na capital, para onde o convocavam os experimentos de Domenico Lazarini e as motivações tropicalistas do amigo Raul Córdula, Chico Pereira crismava seu maior feito que consistiu na inauguração, com Raul Córdula e sob a liderança de Edvaldo do Ó, do Museu de Campina Grande. Inaugurado em 1967, o Museu de Arte Assis Chateaubriand, do qual Chico foi o segundo diretor, sucedendo a Raul, situou-se no centro de extraordinária efervescência criadora. Tal foi reconhecido por quantos se detiveram sobre a evolução cultural de Campina Grande e da Paraíba. REVISÃO DAS ARTES E SÍNTESE DA PARAÍBA Dessa dinâmica, Chico Pereira não foi apenas protagonista. Intérprete dela, ofereceu-nos, com o inseparável Raul Córdula Filho, em Os Anos 60 – Revisão das Artes Plásticas na Paraíba, estudo da melhor categoria. Datada de 1978, trata-se de aborda-

gem propedêutica no sentido de que preparou os autores para voos mais largos. Se, com ele, Raul prefigurou a precisão culturalizante de Memórias do Olhar (2009), onde várias passagens da Revisão reaparecem ao pé da letra, foi com base nessa produção que Chico Pereira se elevou às culminâncias da mais completa análise sobre a Paraíba dos últimos quarenta anos. Com efeito, não se pode, modernamente, compreender a terrinha, em todos os planos de sua afirmação criadora, sem a leitura de Paraíba, Memória Cultural (2011). Não é à toa que o autor levou quinze anos para essa construção, viabilizada pela participação do grande editor de livros didáticos José Neiva, aqui presente. Não há dúvida que Memória Cultural está para nossos dias como A Paraíba e seus Problemas de José Américo (1923), para os anos vinte. Com abrangência talvez maior. Tanto é assim que, quando, em outubro de 2009, saudava a colega que aqui se empossava, solicitei o preparo de obra do gênero. Vejo, com satisfação, que meu apelo foi atendido. Essa a razão por que o livro máster de CPJ enfileira-se entre nossas melhores produções, a saber, o documentário Aruanda, de Linduarte Noronha; o antropológico Lendas e Superstições, de Adhemar Vidal; os dois tomos de Cinema na Paraíba, Cinema da Paraíba, de Wills Leal; Dicionário das Artes Visuais na Paraíba, de Diógenes Chaves; História Constitucional da Paraíba¸ de Flávio Satyro; Cinquentenário da Orquestra Sinfônica, de Domingos Ribeiro; p livro álbum Parahyba de Giovanni Seabra; o Plano de Ação João Pessoa Sustentável, do Prefeito Luciano Cartaxo; os ensaios de Jackson Carvalho sobre Camus e Malraux; os do colega Abelardinho Jurema sobre o pai Abelardo Jurema; a figuração Velha Fazenda, Velhos Costumes, de Stênio Lopes; as abordagens do Grupo José Honório Rodrigues acerca da Revolução de 30, e, finalmente, as crônicas de Gonzaga Rodrigues, Josinaldo Malaquias e Carlos Romero. São essas as criações que se assemelham a Paraíba, Memória Cultural, de Chico Pereira. CHICO VERSUS OCTÁVIO Para concluir, não posso deixar de lado o que recebi de Chico Pereira, no Conselho Estadual de Cultura.


Vice Presidente Executivo deste, durante duas gestões, Pereira não só presidiu, com Gonzaga Rodrigues como editor, a Biblioteca Paraibana, iniciada na gestão Sebastião Vieira, que urge ser retomada, como extraiu dez números da revista Paraíba Cultural como o mais completo repositório anual de nossa cultura. Com essa publicação ocorreu algo sintomático: quando mudanças na administração estadual implicaram na usurpação de nossos mandatos. a revista praticamente desapareceu... No exercício do CEC coube a Chico a mais importante iniciativa de nossa cultura. Refiro-me à transferência do acervo do imenso Simeão Leal para a Paraíba, obtida junto à viúva deste. No caso, Dona Eloá atendeu a recomendação do marido para que encaminhasse a preciosa documentação para a Paraíba, onde se encontra, tendo em vista a amizade de Simeão para com Chico. De mim, aproveitei o tempo que passei

no Conselho, em diferentes períodos, para aprender Filosofia da Cultura com Vanildo Brito, Folclore com Oswaldo Meira, Direito com o saudoso Sindulfo Santiago, e cantoria popular com o incomparável Oliveira de Panelas, presente a este recinto. Nenhum, porém, como Chico Pereira. Enciclopédico e dotado da rara capacidade de ouvir, explicou-me o sentido da pintura do italiano Morandi, de quem eu adquirira vistosos álbuns no México. Demonstrou que o Centro Histórico de João Pessoa não mais reside no Varadouro, mas em Bancários, Mangabeira, Bessa, Tambaú. Apoiou a presença, para conferências, no Fórum Universitário, da figura consular de Mário Barata, quando este aqui compareceu, a convite do Reitor da Cultura Antônio Sobrinho. Enfim, identificado com a renovação do Estado brasileiro 1994/2002, reciclou o esquerdismo dos anos cinquenta, revelando que não mais cabia o estatismo corporativo de outrora, por se impor econo-

mia receptiva às sugestões do mercado. Era com ele a new left (nova esquerda), dos italiano Norberto Bobbio, brasileiro Fernando Henrique Cardoso e chilena Michelle Bachalett, que aportava à Paraíba. Aprendi, igualmente, que a prática de quem hoje chega à Academia se rege por pequenos gestos. Um deles, ao atender telefonema: - Pronto! É essa presteza que hoje proclamamos. Estamos prontos – Francisco Pereira Júnior, presente! – para acolher a contribuição de quem se incorpora a esta Academia de Letras para aprofundar seu concurso à cultura da Paraíba, do Nordeste e do Brasil. Isso sob a inspiração da esposa e companheira Fátima Pereira. Muito obrigado!

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(*) Exposição procedida a 12 de agosto de 2016, na Academia Paraibana de Letras, em saudação ao novo Acadêmico Francisco Pereira Júnior.

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EVENTO CULTURAL UMA PONTE SOBRE O ABISMO Equipe GENIUS

Um significativo acontecimento cultural teve lugar em João Pessoa e, repetidamente, em Patos, terra natal do autor, com o lançamento do livro Uma ponte sobre o abismo, do saudoso professor Ronald de Queiroz Fernandes, grande estudioso dos problemas econômicos relacionados ao Nordeste brasileiro. Em João Pessoa, com o auditório do SEBRAE repleto de professores universitários, economistas, membros de academias literárias, jornalistas e escritores, foi lançado o livro, que reúne artigos e trabalhos científicos de quem foi em vida um dos mais próximos colaboradores do economista Celso Furtado. Nascido em 5 de agosto de 1932, em Patos, Ronald era filho de Octávio Fernandes, telegrafista do antigo DCT - Departamento dos Correios e Telégrafos e de Eudócia de Queiroz Fernandes, professora primária da mais elevada reputação pedagógica. Ronald fez os estudos primários com sua mãe e com sua tia, Nelita Queiroz, também professora primária de grande conceito nas Espinharas. Ambas foram mestras de renomados membros da sociedade local, gozando de merecido conceito profissional na região. Uma vez concluído aquele ensino, ingressou Ronald no Ginásio Diocesano de Patos, dirigido pelo conhecido educador Monsenhor Manuel Vieira. Após os estudos ginasiais, matriculou-se no Liceu Paraibano, na Capital do Estado, para, em seguida, transferir-se para o Recife, a fim de cursar a Faculdade de Direito, por onde se graduou. Antes, porém, e de envolta com aqueles estudos, exerceu no período 1951/1955, o cargo de Secretário Geral da Prefeitura Municipal de Patos, na gestão de Darcílio Wanderley da Nóbrega, cabendo-lhe o papel de mentor administrativo daquele período, conduzido de modo tal que ensejou àquela comuna ser escolhida, em concurso realizado pela revista O CRUZEIRO, órgão dos Diários Associados, como um dos dez Municípios brasileiros de maior progresso. Ainda naquela quadra de sua vida, participou de

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EM JOÃO PESSOA


curso de especialização em administração pública, ministrado na Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. Ao fim daquele mandato municipal, elegeu-se vereador à Câmara Municipal de Patos, exercendo a Presidência daquela Casa legislativa. No período em que foi legislador local, freqüentou curso de Administração Municipal, no IBAM, Rio de Janeiro, que o capacitou a ingressar na Scholl of Public Administration, na Universidade de Denver, no Colorado, Estados Unidos, estagiando, depois, no Setor de Planejamento da Prefeitura de Los Angels, também naquele país. O exercício dessas múltiplas atividades fizeram-no atrasar sua diplomação em direito, o que só se fez em 1957. Radicando-se em João Pessoa, foi, sucessivamente, nomeado, pelo Governador Pedro Gondim, Diretor Geral do Departamento do Serviço Público, Chefe da Casa Civil, Secretário Executivo do Conselho Estadual do Desenvolvimento, representante do Governo do Estado no Conselho Deliberativo da SUDENE, órgão dirigido por Celso Furtado. Datam daí suas ligações com o renomado economista brasileiro. Professor universitário, lecionou Introdução à Economia, na Faculdade de Ciências Econômicas de João Pessoa e Desenvolvimento Econômico, na Faculdade de Ciências Econômicas de Campina Grande. Em 1966, obteve

um mandato de Deputado Estadual, que lhe foi, contudo, usurpado pelo poder militar, em 1969. Com a redemocratização, voltou a ocupar diferentes cargos públicos, nos Governos Antônio Mariz e José Maranhão, em cujo exercício manteve sempre vivos seus elevados conceitos de honestidade, correção, descortino administrativo, encimados com uma auréola de sabedoria, alicerçada nas lições hauridas de sua veneranda mãe. Ronald faleceu aos 25 de outubro de 2006, sendo sepultado em João Pessoa. Uma ponte sobre o abismo contém 484 páginas, com mais de cem estudos, versando,

entre outros assuntos, sobre desenvolvimento econômico, reforma agrária, Nordeste, pobreza, desemprego, desertificação, federalismo, transposição de água, agricultura orgânica, artesanato, agropecuária, jornalismo. Derrama, ainda, o autor suas observações sobre algumas figuras humanas de seu convívio particular ou profissional, tais como, Celso Furtado, Antônio Mariz, Octacílio Nóbrega de Queiroz, Eudócia Queiroz e outros. Na ocasião do lançamento, um vídeo foi projetado, com fotos relembrando diversas passagens da vida de Ronald, desde a infância até pouco tempo antes de sua morte. Durante o lançamento de Uma ponte sobre o abismo, usaram da palavra o engenheiro Carlos Pereira de Carvalho e Silva, o economista Heitor Cabral, o médico José Juvêncio de Almeida Filho, além de duas filhas do autor. Em Patos, na noite de 17 de setembro, a mesma cena se repetiu, no Auditório da Fundação Ernani Sátyro, sob a presidência da Professora Maria do Socorro Lacerda, dirigente da FUNES. Na oportunidade, as palavras de apresentação do livro foram proferidas por Mariana Queiroz, filha de Ronald, seguindo-se ao seu pronunciamento a projeção do vídeo e um recital da Camerata de Cordas daquela instituição, formada por jovens integrantes da sua Orquestra Sinfônica. Uma ponte sobre o abismo tem Prefácio do Professor Paulo Bonavides, cujo teor reproduzimos nesta edição. Também nesta edição reproduzimos um dos artigos da coletânea recentemente lançada, versando o mencionado artigo sobre a figura legendária do missionário Ibiapina, cuja beatificação se acha em curso no Vaticano. Na mesma ocasião foi aberta ao público a Biblioteca que pertenceu à extinta FUNDEC, com sede em João Pessoa, cujo acervo foi doado à FUNES pelos seus instituidores, Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes e Eliane Dutra Fernandes, tendo os presentes visitado a sala onde estão abrigados os cerca de seis mil títulos, incluindo livros e periódicos. Setembro/outubro/2016 |

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EM PATOS

PREFÁCIO

Paulo Bonavides Esta Coletânea de artigos, desdobrada em seis capítulos, reúne as melhores páginas do saudoso economista paraibano Ronald Queiroz. Seus amigos, ao encetarem a presente publicação, rendem justa e merecida homenagem àquele que foi no Brasil um dos mais dedicados e prestimosos colaboradores de Celso Furtado desde os tempos da fundação da SUDENE. Com efeito, representava Ronald o governo da Paraíba no órgão regional de desenvolvimento onde acompanhou de perto o trabalho do insigne economista para traçar e executar o plano de redenção da economia nordestina. Estabeleceram-se então, entre ambos, laços de amizade que se estreitaram e perduraram durante longos anos em que, desfigurados, rompidos e atropelados os nobres fins constitucionais daquele organismo, padeceu Celso Furtado, ao lado de Juscelino Kubitschek, João Goulart e tantos outros desterrados do período ditatório, as amarguras do exílio, as provações da expatriação política, a injustiça da perseguição mesquinha. Aqui, neste livro, desfilam, numa caudal de análises percucientes, inumeráveis temas demonstrativos da propensão espiritual do Autor em solver problemas humanos numa linha sempre aberta e progressista, inspirada em certa forma de socialismo cristão, a que Ronald invariavelmente se afeiçoara desde os primórdios de sua formação como adepto da democracia e das causas populares. Na maturação do escritor, o publicista ultrapassa o economista, porquanto naquele latejam a vida e a realidade na sua dimensão política, ou seja, pulsam as instituições; ao passo que neste o “homo economicus” fala com a frieza do número, da quantidade, da estatística. Ronald é mais publicista que economista; não tendo sido jamais um tecnocrata arrogante, olímpico, indiferente às angústias, aos desesperos, aos sofrimentos das classes esmagadas e oprimidas. O livro coloca esse sertanejo das Espinharas numa tela de atualidade temática que consente ao leitor visualizar a figura do escritor inclinado a versar e debater problemas de profundo interesse contemporâneo. Na sinopse da obra já é dado perceber que ele projeta e concentra suas reflexões sobre o homem, sobre as categorias sociais, sobre o Nordeste, sobre a administração pública. Exara conceitos objetivos e a seguir

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mergulha na crença, na subjetividade; e o faz com energia e convicção de um pensador iluminado de fé e humanismo, e que se não abate perante a tragédia de nosso tempo. O derradeiro capítulo é texto de sensibilidade, consagrado àquelas pessoas que, tendo viajado já para a eternidade, deixaram no ânimo do autor, na memória da alma, no sulco da saudade o sentimento da gratidão. Desde Eudócia, “mãe e mestra” a Antonio Mariz, Dom Hélder e Otacílio Nóbrega de Queiroz, a saber, o governador probo e desditoso de sorte, o cristão piedoso e compassivo, o amigo fraterno e solidário, respectivamente, Ronald Queiroz, filho de uma geração cultural do velho Liceu paraibano teve, como vimos, por Mestre mais abalizado de seus estudos econômicos e sociais o ínclito Celso Furtado, ao redor do qual gravitaram na época do curso liceal nomes saudosos, que eu também conheci, expressões humanas de um socialismo da fraternidade, figuras perdidas já nas sombras do passado, personalidades extintas que as gerações coevas não chegaram a conhecer porque, com o passar do tempo, tudo passa, como dizia, numa reflexão melancólica, o célebre Padre Vieira. Tanto quanto Ronald admirei por igual, mas à distância, ao cursar o secular Liceu cearense, aquela intelectualidade estudantil da Paraíba, bastante avançada, protagonista de uma rebelião ideológica. Hoje, toda ela adormecida na eternidade. Incluia, entre outros, Celso Furtado, Cleanto Paiva Leite, Otacílio da Nóbrega Queiroz, Hildebrando Torres Espínola e Aníbal Fernandes Bonavides; estes dois últimos cedo trasladados ao Ceará, onde mantiveram acesa a chama do idealismo de esquerda que nunca fez trégua ao egoísmo, à injustiça, à maldade social , à cobiça dos estamentos dominantes. Para bem compreendermos a conexão de pensamento de Ronald Queiroz e Celso Furtado, esposando ao cabo de suas carreiras a causa do Nordeste em sua projeção federativa, faz-se mister assinalar que está em marcha desde muito a formação de uma consciência nordestina. Seu centro de gravidade é a regionalização; elemento complexo à margem do qual já medraram distintas variantes de regionalismo, tais como, em sequência histórica ilustrativa, o regionalismo literário de José Lins do Rego e José Américo de Almeida, o regionalismo econômico de Celso Furtado e, por derradeiro, o regionalismo político, que temos professado desde a segunda metade do século XX com a tese do federalismo das Regiões. Esses regionalismos em rigor não se excluem; ao revés, confluem para compor

uma certa unidade de fins e valores, que se alcançaria materialmente quando tomarem um teor institucional e espiritualmente quando forjarem a consciência nordestina, base maior de sua legitimação. É nessa direção que devemos caminhar, com o propósito de ultimar a regeneração federativa de nossa comunhão de entes autônomos. Afigura-se-nos ser ele no caso brasileiro a chave para estabelecer a legitimidade da nossa federação ao termo de sua evolução constitucional. Em derradeira análise, a perspectiva porvindoura da república federativa da nação mostra o regionalismo por solução não apenas de um problema de dimensões menores, de ordem local, senão também doutro, mais dificultoso, mais profundo, mais complexo, que acaba sendo o da nação no seu conjunto, na sua interação, na sua totalidade: a nação-continente, a nação da geografia federal, a nação de um sistema unicamente possível se não transgredir, nem reprimir, nem dissolver laços, valores, interesses e aspirações de cunho manifestamente regional cuja preservação se tornou imperativo à sobrevivência nacional num porvir que já não se acha tão afastado, tão distante, tão remoto. Como bem se percebe, o ponto central das reflexões contidas nesta obra revela o contributo do Autor à solução da questão nordestina, alargando, sustentando e advogando com sólidos argumentos uma política econômica de desenvolvimento do Nordeste, vazada grandemente no modelo proposto e propugnado por Celso Furtado ao criar e fundar a SUDENE. Neste livro de Ronald bem como noutro de Celso – “O Longo Amanhecer” – fica bem patenteado que os dois não desamparam a vertente política do regionalismo. Ambos se movem em direção ao estabelecimento de sua dimensão federativa, sem a qual frágil será a capacidade do órgão desenvolvimentista, no caso, a SUDENE, para debelar e embargar a contra-revolução social em marcha, obra da aliança de neoliberais e globalizadores, que nunca deram importância ao elemento regional. Aliás, nunca o encararam como um dos grandes componentes da crise que há flagelado o sistema, em distintas épocas de vigência republicana das instituições. Preconizamos, portanto, a leitura atenta de cinco itens do Capítulo II: o item 5 sobre economia e direito no desenvolvimento regional; o 6 relativo a uma Entrevista do Autor concedida ao jornal “O Norte” de João Pessoa e o 12, que se bate por um federalismo das regiões, a velha tese da nossa predileção.

Tais itens não só definem a posição do economista Ronald no que toca à problemática do Nordeste, mediante o aditamento do regionalismo político, senão que referem também o firme ponto de apoio dado por Celso Furtado à causa regional em sua consistência federativa. Isto se deduz, com manifesta clareza, de um tópico do sobredito Capítulo em que Ronald Queiroz escreve: “Em um de seus livros mais recentes ao conceber as linhas gerais de sua nova concepção de liberalismo, Furtado afirma: “Os pequenos Estados não alcançam a densidade mínima de recursos requerida para prestar adequadamente muitos desses serviços”. O federalismo regional que Celso Furtado defende seria mesmo a implantação de “uma esfera regional de poder”. E remata o Autor deste livro: “O jurista e constitucionalista Paulo Bonavides, outro paraibano de ampla projeção mundial e que pensou, junto com Celso Furtado, Aloísio Campos, Paulo Lôpo Saraiva e alguns acólitos, na inclusão no texto constitucional de 1988, da Região como instância autônoma de poder , terminou seu discurso na Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, onde recebeu, a 30 de novembro último, a medalha Epitácio Pessoa, com o seguinte desabafo: “O Nordeste das secas e dos socorros públicos de Epitácio Pessoa, o Nordeste do desenvolvimento econômico e social de Celso Furtado, o Nordeste da questão agrária, das Ligas Camponesas e do MST, o Nordeste do federalismo regional e das autonomias, esse Nordeste está morto. Assasinaram-no. Vamos fazer-lhe a ressurreição.” Ouçamos o clamor dos varões e profetas do povo. Este misticismo é imortal na alma da gente nordestina.” Esta obra, que me coube a honra e distinção de prefaciar, é retrato pois da contemporaneidade nordestina na dor, no sofrimento, na angústia; mas também é portadora da mensagem da ressurreição que breve há-de acontecer. A forte esperança de que a ressurreição ocorra nunca desertou o coração do povo nordestino. Suas vistas se estendem ao porvir, vislumbrando na prosperidade do país a promessa da redenção social com o advento de um Estado da cidadania fraterna, da justiça e da democracia participativa. Livro, portanto, que merece ser lido, meditado, aplaudido. Esta publicação rende, por conseguinte, homenagem póstuma que não poderia faltar ao economista mais fiel na amizade, nas idéias e na propagação do pensamento de Celso Furtado, fiel a tudo quanto o grande paraibano representou na luta pela emancipação do povo brasileiro. g Setembro/outubro/2016 |

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MEMÓRIA IBIAPINA, O POLÍTICO1 Ronald de Queiroz Fernandes

Vejo com grande interesse e curiosidade esta iniciativa da Diocese de Guarabira e do Unipê, Centro Universitário de João Pessoa, de retomar, em alto nível, a discussão sobre aquele que, no desempenho de uma obra evangelizadora de surpreendente originalidade, mereceu o cognome com que o distinguiu seu mais famoso biógrafo: “O Apóstolo do Nordeste”. Penso que não se cuida apenas de comemorar os duzentos anos de um homem relembrado como um herói de denodados gestos que se demoram entre o mito e a realidade. Nem tampouco de atrelar ao evento bi-secular a juventude do Unipê, aos 35 anos de existência como instituto autônomo de nível superior ou a recente criação, há 25 anos, da Diocese de Guarabira. Identifico no gesto dos condutores, Dom Antonio Muniz de um lado e, de outro, o Reitor José Loureiro Lopes, a decisão de inaugurar, no âmbito universitário, os estudos e pesquisas, em equipes integradas, sobre o tempo e o personagem pouco compreendido e por muitos esquecido, que tanto se esforçou por consolidar as raízes de uma cultura cristã que se estruturou ao longo de acerbos conflitos por muitas gerações. O processo de canonização do Padre José Antonio de Maria Ibiapina vai ser enriquecido com o vigoroso suporte dos estudos integrados que, nesta Universidade, terão lugar. Mas não seria esse o único objetivo. Aprofundar o conhecimento da realidade do Nordeste, à época em que viveu o Padre Mestre, é também tentar explicar o que somos hoje e o que podemos vir a ser. Suas obras só aparentemente foram esquecidas. Não vêm por acaso, ou mesmo por oportunismo na exploração da memória cultural como atrativo às novas gerações perplexas da pós-modernidade. Segundo registram as crônicas das Casas de Caridade que ele fundou e manteve enquanto viveu, Ibiapina certa vez profetizou que a instituição nunca acabaria, mesmo que caísse em

ruínas, pois destas renasceriam quando aquele que ele identificava profeticamente como novo enviado de Deus promovesse sua restauração, corrigindo os erros do primeiro instituidor. Conforme deixa entender o devir histórico que nos aponta para um mundo diferente, esse agente reformador e reconstrutor deverá ser um ente plural, numa fase histórica em que os homens-síntese como foi Ibiapina não terão mais o privilégio de reunir todo o seu tempo na moldura de um exemplo de vida reformador. Ao curso deste breve ensaio teremos oportunidade de tentar enfatizar que, na condição de homem-síntese, Ibiapina não somente consolida em uma só pessoa os valores mais nobres que transitam no seu tempo, mas projeta-se a uma perenidade que ressurge atualmente, com o passar dos séculos, como sinal de tempos novos. Hoje compreendo em que sentido ele afirmava: “Tenho simpatia pelas ruínas de Cartago, de Palmira, do Egito e outras. Meu espírito se impressiona e me convida a meditar sobre os destinos da humanidade e a marcha sapientíssima com que Deus leva o homem ao fim para que foi criado. O presente e os sucessos ordinários da vida não me impressionam: Sou um homem do passado e do futuro”. Ora, a visão abrangente que Ibiapina alcançou sobre o que ocorria no seu mundo teria de ocupar todos os momentos da vida social: o político, o jurídico, o parlamentar, o organizacional, o administrativo. Para chegar ao conhecimento desses valores e de sua utilização como geradores de uma nova sociedade, ele fez todo um longo percurso existencial que o levou, de decepção em decepção, à escolha da vida religiosa e, dentro desta, à pregação reformadora de corações e consciências para edificação de um novo homem. A fim de entender como Ibiapina formou sua personalidade e a visão ético-política que sempre o inspirou na vida, é

preciso lembrar alguns aspectos da inserção que ele teve no mundo, dentro de um quadro de ampla e exclusiva dominação político-clerical e de estratificação de interesses, no bojo do qual o catolicismo, seus ministros, presbíteros, preceptores, constituía a única via de formação política e intelectual. O tempo de seu pai, Miguel, de seu irmão Alexandre, caminho de sua aprendizagem e compreensão do mundo, era uma congérie imensa de padres políticos, padres proprietários, padres intelectuais, filhos de padres, netos de padres. A Igreja e o Estado se confundiam no seio do Poder. A hegemonia do catolicismo na formação cultural do Nordeste, desde a colônia até meados do século XIX, é analisada cientificamente pela professora Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, que se apoiou no modelo de Gramsci de interpretação das situações histórico-estruturais. O catolicismo foi a amálgama que sedimentou em um bloco monolítico, todas as instâncias da vida. A partir do modelo gramsciano, a Igreja Católica foi a superestrutura que permeou o bloco histórico na colônia e nas primeiras décadas da independência, hegemonicamente, até a chegada das idéias positivistas e da maçonaria. Celso Mariz discute essa fase crítica onde o exemplo de Ibiapina passou a fulgir heroicamente como um fanal de luminosidade ofuscante sobre um meio avassalado de falhas e perjúrios dentro da classe a que pertencia. Celso foi um brilhante ensaísta como foram outros que abordaram essa marca religiosa identificadora do alvorecer de nossa cultura. O ensaio tem algumas vantagens como introdução à pesquisa científica, hoje mais do que tudo acadêmica. Permite que, corajosamente, o ensaísta use a intuição, o humor, a verve, a especulação e outras pistas desprendidas do rigor da pesquisa normatizada. Cheguei a conhece-lo pessoalmente. Grande estimulador das

Última palestra proferida por Ronald Queiroz, em agosto de 2006, no Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ, reproduzida no livro Uma ponte sobre o abismo (págs. 442/451) do qual a transcrevemos.

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vocações literárias, acompanhava nossos passos com o interesse carinhoso de um verdadeiro iniciador. Seus livros mais conhecidos, “Ibiapina, um Apóstolo do Nordeste” e “História Econômica da Paraíba” tiveram repercussão no Nordeste. Outros ensaístas reportaram-se ao Padre Mestre, dentre estes: Gilberto Freire, Câmara Cascudo, Aderbal Jurema. Todos eles usando, com maior ou menor maestria, a literatura e os estudos sociais, foram enfáticos na alusão ao nome de Ibiapina como o de um nume instigador de um saber ético-religioso diferenciado dos troncos formadores dos lugares comuns da tradição conservadora. Com muita verve, impregnada de tolerância e simpatia, Celso Mariz menciona as estirpes cultivadas pela infidelidade dos clérigos, inclusive a de seus admirados parentes do município de Souza. Exemplifica: “O vigário Marques, em Souza, criou e educou os filhos numa paz consagrada, em igualdade de condições com as melhores famílias do lugar. Dois fizeram cursos científicos e alcançaram destacadas situações na clínica, no foro e na política. Um deles foi o bondoso e popular médico dr. Silva Mariz, representante do Estado em três legislaturas na Câmara da República. No Ceará, uma descendência brilhante de padres prolíficos inclui desde Martiniano de Alencar, pai do grande romancista José de Alencar, ao humilde pároco José Bevilaqua, pai do grande jurisconsulto”. Com muito humor, comenta Celso Mariz: “Deus não pode ter sido insensível às vantagens indiretas dessas vitórias da tentação”. Com efeito, aquele mundo onde viveram os pais de Ibiapina era um mundo pouco inteligível aos olhos do observador atual, uma invasão colonizadora de sesmeiros ociosos, preocupados em

exercer o poder em seus vastos domínios protegidos por milícias armadas que cometiam ou acobertavam crimes praticando outros. Esses senhores eram convictos de que a aliança persistente entre o clero e o estado embrionário selavam um pacto indivisível e persistente. Entretanto, como vanguarda cultural desse mundo em gestação, a Igreja abriu espaço também para as idéias renovadoras do liberalismo que passavam a ser cultivadas. O pai e o irmão primogênito de Ibiapina incorporaram essa visão iluminada e iluminista que mais tarde iria repercutir profundamente no caráter deste. Francisco Miguel Pereira, pai de Ibiapina, foi desses revolucionários que escolheram o caminho irretratável do heroísmo. Conseguiu sobreviver à Revolução de 1817, cognominada a Revolução dos Padres, pois de sua liderança participaram mais de 60 padres. A educação de Miguel foi dada por sacerdotes. Seu primogênito, Alexandre, seguiu seus passos. Se de 1817 conseguiram escapar, o destino de ambos seria diferente em 1824, na Confederação do Equador. Nesse conflito foram presos e condenados. Miguel foi fuzilado e Alexandre condenado ao degredo em Fernando Noronha onde, mais tarde, seria cruelmente assassinado. O episódio deixou uma marca indelével na consciência de Ibiapina, contribuindo para exaltar-lhe, não apenas a sede de justiça que se fixara em sua consciência e visão ético-ontológica, como também para fomentar suas primeiras tentativas de antecipar esses valores na construção da sociedade política onde viria a militar, como juiz, como parlamentar, como advogado, como professor, como padre e, finalmente, como missionário. Após a tragédia que arrastou ao sacrifício o pai e o irmão aprofundou-se

o perfil do “menino introspectivo e circunspecto” segundo relatam seus biógrafos. Nunca se desligou de sua terra e de seu povo. A vida metropolitana jamais o fascinou pois não poderia esquecer o sofrimento de sua gente. Ibiapina sempre mostrou vocação para o sacerdócio. Ao mesmo tempo sentiu evoluir em seu espírito o desejo de tornar-se defensor dos injustiçados. Daí seu pendor pelo estudo do Direito. Foi na cidade de Icó, a esse tempo um próspero aglomerado urbano no Ceará, que encontrou seus primeiros e autênticos preceptores. Segundo seus biógrafos, ali recebeu a melhor educação escolar, uma completa iniciação cristã e o mais sólido amadurecimento pessoal. Comenta-se ter sido por influência da fundação do hospital de caridade do Icó que Ibiapina começou a construir em sua mente a idéia de seus futuros hospitais de caridade. Mas seus estudos preparatórios prosseguiram no Ceará e com mestres afamados que nele sempre reconheceram uma inteligência de exceção. Na pequena vila de Jardim, no sul da Província, sob a orientação de um famoso latinista, dominou a língua em 2 anos. Dizem que por trás dessa dedicação já despontava uma grande atração para o sacerdócio. Nem apenas isso, mas esse gosto pelo cultivo das letras latinas, ajudava-o a fomentar, na direção de seus grandes objetivos, a atração pelo Judiciário e pelo Parlamento. Os primeiros dezessete anos da vida de Ibiapina pertencem ao sertão do Ceará, um cenário animado quase sempre pelos sucessivos eventos religiosos. O seminário de Olinda, onde ele viria a estudar, foi fundado em 1800 por um bispo português nomeado para Pernambuco. O seminário deveria instruir a mocidade para a Diocese e preparar ministros dignos do serviço

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da Igreja e do Estado. Era mantido pelo poder civil, os professores funcionários públicos e o governo podia ter ingerência no regime da instituição. Foi o Seminário de Olinda que promoveu a Revolução de 1817 que sucumbiu com a ocupação do Recife pelas forças imperiais. O período de permanência de Ibiapina no Seminário foi curto e interrompido. Em 1823 retirase do Seminário e vai residir no Convento da Madre de Deus, voltando a Olinda somente em 1928. No dia 11 de agosto de 1827 foram criados os cursos Jurídicos de Olinda e São Paulo. O propósito seria proclamar uma segunda independência do Brasil dentro da concepção iluminista do Império das Luzes. Com a ajuda de amigos torna-se Bacharel em 1832. Nesse tempo surge uma nova classe na estrutura das elites dirigentes do País. Os bacharéis ocupariam o espaço dos clérigos na tomada de decisões. Após a conclusão do curso Ibiapina é logo comunicado de que seu nome fora enviado ao Ministério do Império com proposta de nomeação para professor de Direito Natural unanimemente aprovada pelos lentes da Faculdade em data de 10 de outubro de 1832. O Presidente da Província do Ceará propõe apresentar seu nome como candidato a Deputado Geral pelo Partido Liberal em 1833. O Presidente conhecia bem de perto a história de Ibiapina. Também candidato, elegem-se ambos. Antes de comentar o alcance político da visão de Ibiapina, preciso fazer referência a um episódio que parece ter influenciado seu nobre espírito sem que o afetasse na decisão ulterior de assumir o compromisso eclesiástico. Quando veio ao Ceará, logo depois de formado, Ibiapina demorou-se em sua terra por alguns

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meses de férias. Ao visitar a viúva de Tristão Gonçalves de Alencar, que fora, como seu pai, chacinado pela repressão aos confederados, foi recebido carinhosamente e ficou enternecido com sua tristeza e recolhimento. Voltando a freqüentar a casa encontrou graça na filha de Tristão, Carolina Clarence, por quem se apaixonou e propôs noivado que foi aceito. Comprometeu-se a voltar para o casamento logo após a posse na cátedra de Direito, em Olinda. Quando voltou ao Ceará, depois do evento, encontrou a cidade de Fortaleza sob uma onda de jocosa maledicência que teria, provavelmente, a intenção de toldar sua reputação. O fato é que Carolina Clarence, durante sua ausência, casou-se precipitadamente com um parente próximo com quem mantinha, desde antes, um namoro clandestino. Segundo um de seus biógrafos, Ibiapina suportou a injúria mantendo “silêncio obsequioso” sobre o fato, porém nunca mais voltou a falar em casamento. Dizse que, de certa forma o episódio concorreu para fortalecer sua vocação para dedicar-se ao serviço de Deus. Os que pretenderem acompanhar em detalhe seu itinerário político terão no livro do Cônego Sadoc, também cearense, uma cronologia histórica detalhada. Destaco apenas alguns tópicos que ficarão mais claros quando forem examinados aqui, a intervalos, junto com o papel de jurista que exerceu, quase simultaneamente, com o mandato parlamentar. Gostaria apenas de assinalar alguns aspectos importantes que pretendo resumir para atualizar a história e o personagem desse longo enredo de uma vida exemplar. Como político, foi um liberal moderado que só deixaria o discreto trabalho das comissões quando o impusesse a

defesa das justas causas do povo. Essa postura moderada foi considerada por alguns uma ingratidão face à memória do pai que lhe cobraria uma atitude política mais ousada. Acompanhou prudentemente, todavia, a crise do regime Feijó com a Igreja. Votou pela temporariedade da regência. Integrou a comissão que elaborou o projeto do Ato Adicional à Constituição de 1824. Quando se tratou de lidar com movimentos sediciosos, defendeu a atribuição ao Judiciário da competência para julgar responsabilidades, assegurada a ampla defesa dos acusados. O fato mais contundente de sua carreira parlamentar foi a proposta de sua iniciativa exigindo a substituição do Ministro da Fazenda, o cearense Manuel do Nascimento Costa e Silva, em virtude da prática de atos de improbidade no exercício do cargo. Na luta, adotou tal veemência que obteve a substituição do Ministro. Realizava assim sua convicção de que as autoridades prevaricadoras devem ser punidas. Aos 31 anos de idade, com um futuro promissor a sua espera, desistiu de continuar na vida pública. Penso que aqui posso encerrar esse breve discurso biográfico de Ibiapina enquanto político. Tudo quanto foi dito, entretanto, somente confirma a coerência e a fidelidade aos princípios de justiça que pervadiu sua existência sempre em busca do aperfeiçoamento. Essa busca demarcou seu papel missionário. Nenhuma avaliação da personalidade de Ibiapina pode ser obtida a partir do exame isolado de qualquer antecedente que tiver influenciado sua definitiva conversão. Houvesse ele assentido em permanecer como professor excelente de Direito e influente membro do alto clero arquidiocesano, após tornar-se padre, seu esforço


POESIA Cinco Poemas de Violeta Formiga

Viver e Sonhar

Tarô

Do amor decorre o sonho de se querer ter, de acreditar na possibilidade de ser, de se libertar (só o homem livre é capaz de amar)..

Dizem as cartas, falam os astros, estava escrito: Antes do ser, o verbo. Decifra-me os mistérios e eu te darei então a milenar resposta que procuras, por entre séculos.

Sem amor todo sonho torna-se inócuo e vazio não mais do que um sonho que se sonha por sonhar.

(Do livro Contra Cena, Edições Macunaíma, 1982)

(Do livro Contra Cena, Edições Macunaíma, 1982)

No Tribunal da Inquisição Dissociada da vida inócua e vazia, erguem-se agora ao vento as cinzas lentas e frias de quem, em um só tempo foi liberdade e silêncio. Gerava pensamentos sinistros gerava palavras sem nexos, gerava gritos que se escondiam nas grades de sua armadura de ferro feita de verdades. Não; não eram aquelas as palavras nem foram aqueles os gestos. Mas por que tantos incestos? Vestes e olhares se dissiparam na fogueira da inquisição. Porém suas idéias tornaram-se mais sólidas, o universos mais finito com as chamas.

Definição

Necessidade

O poema é espelho que reflete o tempo. É arma que se usa na conjectura da questão. É força maior onde a vida prossegue viva na sua totalidade. É caminho percorrido em rostos esmagados na impostura dos fatos. É plenitude traçada congruente de inquietações. É tempo operário ofício de construção.

Preciso escrever um poema comovente consciente, profundo como as águas do mar nas suas ondas agitadas. Preciso escrever alguma coisa infinita de estrelas, de astros a vagarem na noite, dando ideia de longitude de distância metafísica. Preciso escrever um poema tranqüilo como o vento que se joga nas flores do campo e borboletas a dançar. Preciso escrever alguma coisa marcante como o nascer do sol de raios intensos, vivos, agressivos.

(Do livro SENSAÇÕES, 1983, Edição Póstuma)

(Do livro SENSAÇÕES, 1983, Edição Póstuma)

(Do livro SENSAÇÕES, 1983, Edição Póstuma) Setembro/outubro/2016 |

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teria sido vão. Foi a notícia da epidemia de cólera que grassava na província do Ceará que o atraiu para o outro lado da realidade que estava inscrito imperecivelmente em sua memória profunda. A compaixão por aquela gente incendiou sua fé, aguçou sua genialidade que desvendaria o novo mundo do amor aos pobres, da devoção à causa da mulher nordestina, a qual abraçou definitivamente desde quando ofertou sua vida à Virgem da Conceição e mudou seu nome para José Antonio de Maria Ibiapina. Permitam-me que agora submeta ao exame dos estudiosos que aqui se reúnem algumas idéias e sugestões ensejadas pela leitura atenta dos historiadores e ensaístas que acompanharam, direta ou indiretamente, o itinerário real do Padre Mestre ou seu surpreendente imaginário em busca de ajudar os que sofrem a mitigar suas dores, levantando o ânimo dos pobres e encorajando as mulheres a assumirem seu espaço ao mesmo tempo que lhes ensejava educação e respeitoso reconhecimento. As caminhadas de Ibiapina significam também uma disposição de desvelar a verdade escondida por trás dos mistérios da existência. É sugestivo observar como a caminhada ilumina o espírito. Mesmo sem ter certeza onde chegar, caminhar é uma busca incessante por uma verdade que se esconde no mistério. Os antigos profetas estavam sempre a caminho. Os precursores da dialética advertiam da impossibilidade de, numa segunda travessia, encontrarem-se no mesmo lugar o mesmo homem e o mesmo rio. Os peregrinos medievais caminhavam orando, repetindo o mesmo simples mantra e, ao termo das grandes peregrinações, viam-se de jeito diferente a si próprios e ao mundo. Provável que todos se remetessem à promessa de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O certo é que percorrer caminhos era uma forma de perseguir a verdade. Dom José Maria Pires, que trocou o báculo pelo cajado e a pompa pela pobreza, anunciou, certa vez, a consigna: Neste caminho eu vou! Para onde (?), nenhum discurso poderá responder. Já os poetas conseguem desvendá-lo com uma simplicidade que ultrapassa qualquer discurso filosófico, como o fez Antonio Machado: “Caminhante são teus rastros/ o caminho e nada mais;/ caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. / Ao andar faz-se o caminho, e ao olhar-se para trás/ vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar. /Caminhante, não há caminho,/somente sulcos no mar”. O que mais me impressiona nestes

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roteiros - na aparência incongruentes -, de Ibiapina e em tudo quanto, ao longo deles, se criou é sua surpreendente atualidade. Atualidade política manifesta na precedência que começa a atribuir aos pobres do mundo e que se constituía na massa crítica de suas intervenções. Atualidade social e antropológica quando confere ao gênero feminino o viés precursor de todas as grandes mudanças. Atualidade pedagógica no momento em que inaugura com as Casas de Caridade instituições voltadas para a educação integral da mulher na vida em comum para o trabalho útil, o artesanato, as especialidades produtivas adequadas ao seu papel social naquele momento, o convívio com a natureza e todos os elementos que conferem dignidade à missão reprodutora no âmbito da família e da sociedade. A norma final que fez inserir no Regimento Interno das Casas de Caridade preceitua: “Na Casa de Caridade se passa como na casa do pobre, se muito bom tem, muito bom se come. É assim que passa o pobre e como pobre devemos viver nessas casas para apreciarmos os frutos da santa pobreza”.Eis o grande desafio da modernidade: Poderá haver uma instituição rica para cuidar dos pobres? Pergunto eu. O que se pode esperar dessa reciprocidade é que os pobres, como acontece hoje, venham a contribuir para o enriquecimento dessas instituições. E no seio delas se perpetue a lógica da acumulação privada de alguns poucos privilegiados. Fritjof Capra, criador e fundador do Centro de Alfabetização Ecológica, em Berkeley, na Califórnia, descobriu em seus estudos e experiências que plantar uma horta como recurso para o preparo de refeições na escola é um projeto perfeito para experimentar o pensamento sistêmico. Não é coincidência que o cultivo de vegetais e a preparação de alimentos a partir dos produtos cultivados tenham sido incorporados à prática religiosa de muitas tradições espirituais. Eis uma sugestão para a retomada das Casas de Caridade em uma versão atual, restabelecendo-as, mas dando-lhes o sentido de instrumentos eficazes de uma educação de crianças e adolescentes na perspectiva pedagógica de um mundo pós-moderno e globalizado. A alfabetização ecológica, instituída na Califórnia, tem analogia com a remota experiência das Casas de Caridade do Padre Ibiapina, as quais, segundo sua profecia, deverão renascer das ruínas ao serem reformuladas por seus restauradores. Ibiapina protagonizava a política como uma pedagogia das reformas. Nesse desiderato, suas idéias fins não re-

sumem toda sua obra. Os meios de que lançou mão também recuperam a atualidade como instrumentos para superação da pobreza. Os mutirões com que mobilizava toda uma população para sanear o meio com obras emergenciais contra a cólera, permitiam construir um cemitério para acolher os corpos insepultos, ou um açude para abastecimento local em uma semana, ou uma casa de caridade em um mês, são hoje extensivamente postos em prática em países como a China para lograr a conclusão de obras em prazos recordes. Na China, onde hoje a mão-de-obra voluntária é convocada para atender a demandas de infra-estrutura urbana, obras como hospitais e outros equipamentos são edificadas e acabadas em prazos também contados por semanas. Tudo isso vem confirmar sua genialidade profética. Os santos são gênios e o povo muito cedo começa a cultuá-los. O Nordeste brasileiro acolhe reverentemente diversos santos não canônicos. O primeiro deles continua sendo Ibiapina e já demora seu longo processo de reconhecimento canônico pela Igreja, ele que viu muito além de seu tempo. O mundo hoje desperta para uma formidável escalada do conhecimento. Aquilo que o Padre-Mestre entreviu no dealbar do iluminismo é, nos dias atuais, pelo menos para quem está atento à superação das fronteiras das ciências positivas, uma trivialidade. Há pelo menos uma década, interações surpreendentes estreitam as fronteiras entre ciências. Poucos dias atrás a revista científica Nature noticiava que um sociólogo conseguiu enganar físicos do campo das ondas gravitacionais fazendo-se passar por um deles. O que interessava ao sociólogo, e ficou finalmente comprovado, era demonstrar que um não praticante pode adquirir capacidade de interagir discursivamente com especialistas, “mesmo não sendo capaz de conduzir os experimentos que alicerçam tal conhecimento”. É o que se tem denominado de “especialização interativa”. Quem poderá assegurar que tal fenômeno não se estenda também à revelação da verdade no campo da antropologia filosófica ou da própria escatologia? É uma mera especulação cuja resposta é um convite à reflexão dos teólogos. Minha indagação é se tudo isso não teria coincidido com a antevisão de Ibiapina do que seria verdadeiramente reconhecido nos dias de hoje. Nossa conclusão é a de que se impõe, para atualizar os roteiros de Ibiapina, que eles conduzam ao novo cenário educativo que pode ser concebido com a participação da Universidade e a liderança consistente da Igreja. g


BIBLIOFILIA TARCÍSIO BURITY, WILSON AQUINO, TOMÁS DE AQUINO — E OS 11 VOLUMES DA SUMMA THEOLOGICA (EM LATIM E PORTUGUÊS!) NAS ESTANTES DO DEGAS AQUI. Evandro da Nóbrega

Especial para GENIUS

Tempo houve em que o grande paraibano Tarcísio de Miranda Burity, um de nossos maiores intelectuais, namorou intensamente a coleção de livros vista na ilustração inicial deste artiguete. O caso foi como a seguir se conta. Burity era amicíssimo (e o foi a vida toda) do advogado, promotor de Justiça, escritor, articulista e professor universitário Wilson Aquino de Macedo, ex-procurador do Tribunal de Contas do Estado. Burity e Wilson estudaram juntos para o Vestibular de Direito, submeteram-se juntos a concursos públicos (em que figuraram nos primeiros lugares) e frequentavam-se quase diariamente. Entre os gostos que compartilhavam, encontrava-se a admiração por um dos grandes Doutores da Igreja, provavelmente o maior deles, Tomás de Aquino. Admiração mais que justa e compreensível. Afinal, Thomas Aquinatis — frade dominicano da Ordem dos Predicantes, teólogo, filósofo, jurista, lógico, físico, metafísico, professor, teórico nos campos da Ética, da Política, da Psicologia, da Epistemologia e muitas coisas mais — é ainda hoje uma das personalidades mais estudadas da História Universal. EM LATIM E PORTUGUÊS Na década de 1980 (ainda no primeiro Governo Burity), o Dr. Wilson Aquino, depois de muito visitar livrarias Brasil afora, teve a sorte de adquirir essa coleção já à época rareando no mercado editorial: os 11 volumes, no original latino e em tradução portuguesa, na consagrada tradução de Alexandre Corrêa, da celebérrima Summa theologiae de Tomás de Aquino, saída sob o título de Suma teológica [Segunda edição, Editora EST/Sulina/UCS, Porto Alegre, 1980]. Esta edição tem outro diferencial: olhando simultaneamente para as duas páginas, a da esquerda e a da direita (isto é, as páginas pares e ímpares), Você vê o original latino nas duas colunas internas, ao passo que as colunas externas exibem a tradução em português. Burity tentou comprar a mesma coleção,

em tudo quanto foi livreiro de suas relações, e não o conseguiu: a obra esgotara-se rápida e definitivamente. E quem dispunha dela, em suas estantes, não estava nem um pouco interessado em se desfazer da preciosidade. Afinal, não é todo dia que aparece uma edição da Summa com os textos latino e português lado a lado... UMA LEITURA CUIDADOSA Tempos depois (e bem encabulado, a seu estilo), Burity consultou o amigo: não tencionava, por acaso, vender, isto é, ceder estes 11 preciosos volumes, tão logo encerrasse a leitura deles? Não importava o preço... O Dr. Wilson, para atender a um amigo assim do peito, não faria a menor questão, já não se diz de vendê-la, mas, sim, de doá-la de bom grado — especialmente em se tratando de companheiro de estudo cuja amizade firmara-se ainda na escola secundária... Mas o fato é que o Dr. Wilson, meticuloso, ainda vinha não apenas LENDO, mas lendo e ANOTANDO itens de seu maior interesse, nessa magnum opus tomista. Ainda se achava distante de concluir tal leitura, deliberadamente tão lenta quanto o andar da mula que transportou por boa parte da Europa o corpanzil do religioso de sobrenome idêntico... Sem conclusões apressadas, diga-se que o Dr. Wilson Aquino nenhum parentesco tem com Tomás de Aquino. Calha apenas de o sobrenome deles (em verdade, um topônimo que virou antropônimo) provir diretamente do condado italiano de Aquino (Aquinum, em latim). Tomás nasceu no castelo de Roccasecca, de seu pai, Landulfo de Aquino (da pequena nobreza), nesse condado, situado mais para o Sul, então no Reino da Sicília e hoje na região do Lácio, entre as cidades de Nápoles e Roma. Em Aquino também nascera, bem antes, o notável poeta satírico Juvenal (circa 60-140 AD) — isto é, o sem-papas-na-língua Decimus Junius Juvenalis que nos legou 16 longas e imperdíveis sátiras sobre a corruptíssima sociedade romana de seu tempo.

Nosso bom e cultíssimo amigo Burity, depois de todas aquelas conhecidas peripécias e infortúnios não buscados em duas marcantes administrações à frente da Paraíba, veio a falecer sem poder contemplar em sua library particular os 11 volumes pelos quais tanto ansiara. E logo ele, que conhecia bem o latim e tinha interesse pessoal no estudo do Doctor Angelicus... Fora aplicado seminarista, tendo apenas largado a batina porque (isto alegam as más-línguas!) certa feita teve um estalo de Vieira e intuiu que, naquela pisada, jamais chegaria a Papa... UMA DÁDIVA INESPERADA Não termina aí história dessa coleção da Summa theologiae. Recentemente, o degas aqui teve a felicidade de editar, a convite, o volume de memórias do mesmo Dr. Wilson Aquino, que se intitulou O sonho de um homem: a história de uma vida [Ideia Editora, João Pessoa, 2016]. Também a pedido dele fomos o autor da Nota Editorial desta obra; e, ainda, quis o Autor que a apresentássemos, ao vivo, quando do lançamento dela, na sede da Fundação Casa de José Américo. O Dr. Wilson também discursou, colocando o Editor da obra lá nos cornos da Lua. Mas, não satisfeito com tantas cortesias, nos telefonara: — Meu caro, não sabe aquela minha coleção de são Tomás de Aquino? — Sei, perfeitamente. Magnífica! Insuperável!... Mas, o que houve com ela? — pudemos repostar, transmitindo alguma inquietação. — Terminei de ler o último volume! — Sério? Concluiu a leitura do décimo-primeiro volume?! — Isto mesmo! Não é fantástico? Não é de se comemorar? — Sem dúvida! — articulamos — O Sr. está de parabéns!... — Mas Você, meu caro, não sabe da melhor! — era ainda o Dr. Wilson. — Não, não sei... — ripostamos, intrigado. — Pois vou dizer: resolvi lhe dar de preSetembro/outubro/2016 |

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sente todos esses 11 volume da Summa do Doctor Communis! Não caímos de costas porque já estávamos deitados na velha tipoia fubazenta, ooops, numa rede de dormir, bem fornida e bem armada. Mas... aquilo não seria uma brincadeira? A parte de sangue cariri que a esmagadora maioria dos Nóbregas herdou da matriarca indígena Babanca manifestou novamente sua eterna desconfiança: esmola grande, o cego desconfia... Tencionava o Dr. Wilson, REALMENTE, nos doar um dos mais coruscantes tesouros de sua rica biblioteca? Não seria alguma pegadinha que ele estaria armando, com a ajuda de nosso dileto primo, o Dr. Márcio Roberto Soares Ferreira, tão amigo dele quanto o saudoso Dr. Burity?! — Dr. Wilson, não ouvi direito... O Sr. vem de afirmar que me está presenteando com a coleção tomística que o Dr. Tarcísio tanto admirava?! — Isto mesmo, meu caro! E venha buscá-la agora mesmo, que já a amarrei em vários pacotes. Traga alguém para ajudá-lo com o peso da Cultura!... Não perdemos tempo: no interregno que Você leva para pronunciar dimetilamino­ fenildime­tilpi­razolona, fomos lá, ao superapartamento do casal Dr. Wilson Aquino-pianista Therezinha Avellar de Aquino, com um filho, o Dr. Mitslav de Luna Nóbrega, e transportamos para nosso modesto apê-biblioteca uma dádiva com a qual jamais sonháramos!... EDIÇÕES DA SUMMA Desd’aí, que mal nos pilhamos portas aquém com aquele autêntico gazofilácio, tratamos de comparar a novel coleção com as edições da Summa já constantes de nossos alfarrábios. Sim, porque dispúnhamos, em nossas estantes virtuais, de edições da Summa theologiae em latim, inglês, italiano, francês e espanhol — mas nenhuma assim bilíngue, em latim/português. Uma das mais antigas, em nossos modestos acervos, é a edição da Summa publicada em 1912, pelos dominicanos, com o Suplemento compilado provavelmente pelo frei Rainaldo [Reginaldus ou Reginald] di Piperno (também “di Priverno”, circa 1230-circa 1290), teólogo dominicano e superamigo do compatriota Tomás. Sobre esse Suplemento, relembre-se de que Aquino faleceu sem concluir a terceira e última parte da Summa theologiae — e seus discípulos se encarregaram de acrescentar esse volume suplementar aos muitos tomos já existentes. Guardamos ainda uma edição “parisiense” das obras completas de Tomás de Aquino, em mais de 30 volumes, sob o título de Doctoris Angelici Divi Thomae Aquinatis (...) Opera Omnia, Parisiis, “apud Ludovi-

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cum Vivès, Bibliopolam Editorem, Via Vulgo dicta Delambre, 13, MDCCCLXXII”, isto é, de 1872. Mas, como se informa na imprenta, a impressão foi feita na “Imprimerie Pierre Larousse, Rue Notre-Dame-des-Champs, 49, Paris”... Uma edição somente em espanhol, de que também dispomos, em cinco tomos de fins da década de 1980, é a Suma de Teología, “edición dirigida por los Regentes de Estudios de las Provincias Dominicanas en España”, com apresentação de Damián Byrne, O. P., “maestro-general de la Ordem de Predicadores”, além de uma introdução e um Prólogo à Summa, respectivamente por Gregorio Celada Luengo, O. P., e Alberto Escallada Tuero, O. P. [O. P., nem precisa dizer, denota a “Ordem (dominicana) dos Predicantes” ou Predicadores, em castelhano]. Outra edição (parcial) de que dispomos, da mesma forma que Você também pode dispor, copiando-a da Rede Mundial de Computadores, em códice digitalizado: Prima pars secunde partis Summe Theologie beati Thome de Aquino, edição publicada em Nápoles ainda no ano de 1484. DE “NOSSO” PAPA LEÃO XIII Um livro muitíssimo útil, para quem deseja conhecer realmente a Summa, é o volume intitulado The Cambridge Companion to Aquinas, com edição conjunta de Norman Kretzmann e Eleonore Stump e publicação pela Cambridge University Press, pela primeira vez, em 1993 e com reedições até 1999. É edição saída em Londres, pela editora Burns Oates & Washbourne, com 462 páginas. Há edições da Summa Theologica que se transformaram em autênticas raridades. Um exemplo: a edição feita em 1471 por Peter Schöffer. Outro exemplo: a edição de 1485, em tradução dos padres da Província Dominicana Inglesa, publicada para a Santa Sé pelos impressores Irmãos Benzinger. Dispõe o degas aqui, igualmente, da preciosíssima edição mandada fazer e publicar, em 16 soberbos volumes, pelo Papa Leão XIII, a Opera omnia, iussu impensaque Leonis XIII. P. M. edita — vale dizer, a “Obra completa, ordenada pelo (e editada às expensas do) Sumo Pontífice Leão XIII”, sabendo-se que a abreviatura “P. M.” significa exatamente “Pontifex Maximus”. Sendo termo ligado ao verbo latino iubeo, iussi, iussum (o mesmo que “ordenar”, “comandar”, “dizer a alguém para fazer” etc), a forma iussu, no ablativo, significa “por ordem de”, “sob o comando de”. E impensa, por seu turno, quer dizer “expensas”. A publicação dessa magnífica coleção, saída em 1882, deveu-se à Romae Typographia Polyglotta [Tipografia Poliglota de Roma]. E, como se sabe, o Papa Leão XIII foi quem

nomeou o primeiro bispo/arcebispo da Paraíba, com jurisdição sobre o Rio Grande do Norte, Dom Adaucto Aurélio de Miranda Henriques. NO INSTITUTO HISTÓRICO É bem verdade que Você hoje em dia pode adquirir uma coleção completa da Summa theologiae, em latim e inglês, na megalivraria on line Amazon, ao preço de uns US$ 210,00, mais despesas de correio. No entanto, esta edição em 11 volumes, que nos foi presenteada pelo Dr. Wilson Aquino, é de valor inestimável: não pode ser vendida, nem trocada, nem mesmo dada — a não ser quando o degas aqui se for desta para a melhor, devendo toda a obra ficar para sempre consignada ao IHGP (Instituto Histórico e Geográfico Paraibano), que tenho a maior honra em integrar e que se constitui na mais importante e mais antiga Casa da Memória e da Cultura da Paraíba em atividade contínua (isto há exatos 111 anos).. De todo modo, vemos hoje, na Estante Virtual, da Internet, aqueles mesmíssimos 11 volumes, usados, vendidos a preços que variam entre R$ 1,6 mil e 2,9 mil. Ou talvez Você queira comprar o volume único intitulado (em inglês) A Summa of the Summa, que é justamente isto que Você está pensando: um sumário da Summa theologiae de Tomás de Aquino, em brochura (e não com capa dura) para quem não tem paciência para ler os muitos volumes originais. É de autoria de Peter Kreeft e saiu (em inglês) pela editora Ignatius Press, em 1990 [ISBN 0-89870-300-X]. Custa apenas US$ 20,34, mais despesas de correio. Uma obra que Você pode baixar de graça da Internet é a de Reginald Garrigou-Lagrange (1877-1964), O. P., intitulada Reality: A Synthesis of Thomistic Thought [2012, 434 páginas]. Em português, entre muitos outros trabalhos, temos Da Política à Ética: o itinerário de santo Tomás de Aquino, de José Jivaldo Lima (Porto Alegre, 2005). Entre as várias edições da Summa, em inglês, existe uma de The Aquinas Institute, saída em 2012, com volumes de capa dura [hardcover] e nada menos que 5 mil 256 páginas. Até o primeiro dia de novembro de 2016, a Editora Loyola [www.livrarialoyola. com.br] vende a coleção completa da Suma teológica, em português (nove volumes), ao preço promocional de R$ 903,91 (antes era R$ 1.291,30), com envio em até cinco dias úteis, mais o frete. O pagamento pode ser feito no cartão de crédito, em até seis vezes sem juros. PERSONALIDADES NA SUMMA A Summa theologiae foi escrita entre 1265 e 1274, ano da morte do autor, nascido entre fins de 1225 e inícios de 1226.


A Suma é não apenas uma obra clássica da História da Filosofia, mas também um dos livros mais influentes na Literatura ocidental. Foi intenção de Aquino, ao escrevê-la, ensinar os principais pontos da fé cristã, não aos doutos, mas aos principiantes, aos estudantes de Teologia, aos seminaristas e leigos que desejassem respostas para temas candentes na educação religiosa. Em seu original latino, a Summa estende-se por cerca de 3,5 mil páginas. Mas apenas cinco delas são dedicadas a uma das mais famosas passagens de Aquino: aquela em que ele se refere às quinque viae, os “cinco caminhos”, os cinco argumentos com os quais pretende provar a existência de Deus. Quando estudamos Tomás de Aquino e outros filósofos medievais, isto não quer dizer necessariamente que os tenhamos como guias de nossa eventual fé. Significa apenas que procuramos nos esclarecer sobre uma época importante no evolver das gentes. Temos, então, a oportunidade de entrar em contato não apenas com o pensamento de Aquino, como também de outros luminares desse tempo e de tempos mais remotos, fossem cristãos ou judeus, muçulmanos ou pagãos: Platão (Aflatún, em árabe clássico e moderno); Aristóteles (Aristutalis, em árabe clássico e moderno); Cícero; ibn ‘Arabi (1165-1240), filósofo e místico árabe nascido em Múrcia, Andaluzia, Espanha; ibn Khaldun (1332-1406), historiador, filósofo, precursor da Filosofia da História, jurista, professor de Direito, nascido em Túnis (de família espanhola) e escrevendo em árabe, bem como autor da célebre obra Mukáddimah [“Prolegômenos”], introdução à sua Kitab al-ibar (“História universal”); Isaac Israel (ou Israeli), médico e filósofo nascido na Tunísia por volta de 851 e falecido aproximadamente em 950, depois de atuar no Cairo; Saadia Gaon ou ben Josef al-Fayyum, influente filósofo, dicionarista e tradutor de origem judaica, escrevendo em árabe e hebraico; Shlomo ibn Gabirol (ou Avicebron), nascido por volta de 1020, poeta (em árabe) e filósofo neoplatônico de origem judaica (escrevendo em hebraico); nasceu por volta de 1020, em Málaga, Espanha, sob dominação muçulmana, e faleceu aproximadamente em 1070; Tomás de Aquino conheceu suas ideias e as combateu... Mas a lista dos nomes de interesse não para por aí. Temos ainda Moisés ben Maimônides (Moses ben Maimon ou Rambam, 1135-1204), também conhecido por Mestre (Rabiy, em hebraico), médico, filósofo, comerciante, escritor influente e teólogo espanhol de origem judaica e orientação aristotélica, nascido em Córdoba, mas fugido com a família para o Marrocos; autor da obra célebre O guia dos perplexos [Moreh nebukhim, em hebraico]; Abraham Abulafia (1240-

1290), filósofo espanhol neoplatônico, nascido em Saragoça e de origem judaica; Filo (ou Filão) de Alexandria, conhecido em grego como Philon e, em hebraico, como Yedidiah Ha-Cohen e, ainda, como Filo Judeu; filósofo helenístico judeu nascido por volta do ano de 25 antes da Era Comum e falecido aproximadamente em 50 AD, tendo vivido em Alexandria, ao tempo da província romana do Egito; Plotino (latim Plotinus, grego Plotínos; nascido por volta de 204/5 e falecido em 270 AD; filósofo de expressão grega, discípulo de Ammmonius Saccas e muito influente entre cristãos, gnósticos, islâmicos, místicos e outras correntes; autor de Enéadas, foi neoplatônico sem o saber (porque o termo apenas seria inventado pelos historiadores no século XIX); Isaac Abravanel (1437-1505), sobrenome judeu também grafado como Abrabanel, Abarbanel etc (o dono do SBT, Sílvio Santos, é da família), filósofo espanhol de origem judaica; Leão Abravanel (ou Leão, o Hebreu), filho de Isaac Abravanel; Algazali (au grand complet, Abu Hamid al-Gazel, 1058-1111), filósofo, jurista e teólogo de expressão árabe, nascido no Oriente do Irã (Gazal), com atuação também em Bagdá, Nisabur, Damasco, Jerusalém, Alexandria, Tus etc... Vamos ficando por aqui, que os nomes dessas celebridades d’outrora dão para encher vários cartapácios!... LENDO TOMÁS DE AQUINO Para bem ler a Summa, Você precisa saber como Aquino se refere a autoridades que sobre ele exerceram influência. Como explicita a edição inglesa da Wikipedia, “o Filósofo” é Aristóteles; “o Comentador” é o filósofo árabe Averróis [ibn Rushd]; “o Mestre” é seu professor Pedro Lombardo; “o Teólogo” vem a ser Agostinho de Hipona; “o Perito Legal” (Jurisperitus, em latim) é o jurista romano Ulpiano, autor/compilador das Pandectas; “Dionísio” é o Pseudo-Dionísio (ou Dionísio Areopagita); “Avicenna” é o nome latino do filósofo árabe ibn Sina; “Algazel” outro não é senão o teólogo islâmico al-Ghazali; e o “Rabi Moses” é o rabino e grande sábio judeu Moisés Maimônides. Ainda sobre o filósofo e teólogo de expressão grega, cujo nome a História não guardou, mas que ficou conhecido como “o Pseudo-Dionísio”: ficou assim designado porque produzia suas obras sob o nome de “Dionísio Aeropagita”, em alusão àquele personagem convertido ao Cristianismo por Paulo, o apóstolo antes chamado Saulo, quando, por volta do ano de 50, pronunciou seu discurso no Areópago de Atenas; o Pseudo-Dionísio (que talvez fosse um bispo na Síria) floresceu entre 485 e 535. Não é aqui o local de biografar Aquino, nem apresentar sua bibliografia, que toma

várias páginas do Oxford Companion e de sites especializados na Internet. A propósito, se Você procurar no Google por “Thomas Aquinas” (em inglês), o automático de busca automatizado levará exatos 0,38 segundos para encontrar aproximadamente nada menos que 5 milhões 770 mil resultados... Experimente com “Tommaso d’Aquino” (em italiano) e obterá cerca de 538 mil resultados. Em francês (Thomas d’Aquin), 530 mil. Em alemão (Thomas von Aquin), 414 mil. E assim continuará obtendo milhares de resultados se procurar por Tomás de Aquino em holandês e africânder (Thomas van Aquino); em árabe (‫ = ينيوكألا اموت‬tuma al’akwini); em russo (Фома Аквинский = Fomá Akvínskiy); em português e espanhol (Tomás de Aquino); em chinês (托马斯·阿奎 那 = tuōmǎsī ākuínà); em sueco (Thomas av Aquino); em japonês (トマス アクィナス = tomasu aku-inasu); em occitano (Tomàs d’Aquin); em coreano (토마스 아퀴나스 = tomaseu akwinaseu); em basco (Tomas Akinokoa) — e assim por diante, num total de mais de 120 línguas. AQUINO E O... BIG-BANG! E, agora, Vocês vão mesmo se surpreender. O especialista William Carroll, da Faculdade de Teologia e Religião da Universidade de Oxford, escreveu excelente artigo relacionando Tomás de Aquino à Cosmologia do... Big-Bang. O Dr. Carroll pesquisa, entre outros temas, a recepção da ciência aristotélica pelo Islamismo, pelo Judaísmo e pelo Cristianismo medievais, bem como o desenvolvimento da doutrina da Criação ex-nihilo e a apropriação das discussões medievais sobre a Criação e as Ciências Naturais pela Ciência contemporânea. Publicou vários trabalhos importantes na área, como: * Aquinas on Creation (Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, Toronto, 1997), em coautaoria com Steven E. Baldner; * La Creación y las Ciencias Naturales: Actualidad de Santo Tomás de Aquino (Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago, 2003); * Creation and Science (CTS, Londres, 2011); * o artigo “At the Mercy of Chance? Evolution and the Catholic Tradition”, entre as páginas 179 e 204 do número 177:2 da Revue des questions scientifiques (2006); * outro artigo, “Divine Agency, Contemporary Physics, and the Autonomy of Nature”, entre as páginas 582-602 do número 49:4 do periódico The Heythrop Journal (2008); * o capítulo “Thomas Aquinas on Science, Sacra Doctrina, and Creation”, no volume 1 do livro Nature and Scripture in the Abrahamic Religions to 1700, editado por Jitse M. van der Meer e Scott Mandelbrote (Editora Brill, Leiden, 2009); etc etc etc. Setembro/outubro/2016 |

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NUM MAR DE ESPECULAÇÕES... Mas eis uma das principais afirmativas do Dr. William Carroll sobre “Thomas Aquinas and Big Bang Cosmology”, título de um de seus artigos mais recentes (pode ser lido on line e baixado para seu computador, mas aqui damos a tradução de um trecho): “Com muita frequência as discussões em torno das implicações teológicas e filosóficas da Cosmologia do Big-Bang, na medida em que esta Cosmologia tem sido refinada, padecem da ignorância da História da Ciência e, com respeito às teorias que alegam envolver a origem do Universo, estas recentes discussões revelam também uma ignorância das análises sofisticadas das Ciências Naturais e da Criação que tiveram lugar na Idade Média. A recepção da Ciência aristotélica nos círculos intelectuais muçulmanos, judaicos e cristãos dos tempos medievais nos fornecem uma oportunidade para ampla discussão das relações entre a Teologia e as Ciências Naturais [...] O entendimento da Criação por Tomás de Aquino (e, em particular, a distinção que faz entre Teologia, Metafísica e Filosofia Natural) pode continuar a servir como âncora para a inteligibilidade do atual oceano das teorias especulativas. Pareceu a muitos dos contemporâneos de Tomás de Aquino que havia uma incompatibilidade fundamental entre a alegação da antiga Física de que nada pode vir do nada absoluto e a afirmação da fé cristã de que Deus produziu tudo a partir do nada. Além do mais, para os antigos, desde que algo deve vir de algo, deve haver sempre algo, isto é, o Universo tem que ser eterno. A despeito das alegações de alguns teóricos contemporâneos de que, propriamente falando, podemos obter algo do nada, aquelas teorias do Big-Bang que empregam insights da Física de partículas relativas às flutuações do vácuo são consistentes que o velho principio de que você não pode obter algo do nada. O ‘vácuo’ da moderna Física de partículas, cuja ‘flutuação’ supostamente faz com que nosso Universo exista, não é absolutamente nada. É somente ‘nenhuma coisa’ como nosso presente Universo, mas é ainda algo. Como então ‘ele’ pode flutuar? Então, temos que reconhecer que, com frequência, o ‘nada’ discutido pelos cosmólogos contemporâneos não é absolutamente nada. Yet, it is this latter sense of nothing which is crucial to the traditional doctrine of creation out of nothing. No entanto, é este último sentido de nada que se tornou crucial para a doutrina tradicional da Criação a partir do nada.” [Fim da tradução do trecho] AQUINO E A... TEORIA DO CAOS! E asseguramos à gentil leitora, ao atento

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leitor: recebemos há algum tempo alentado artigo (também em inglês) citando extensamente Tomás de Aquino a propósito da... Teoria do Caos! O escrito intitula-se “Saint Thomas Aquinas Meets Chaos Theory: A Paper by Frater Choronzon, first presented to Philos-o-Forum at Eccleston House, on Monday 8th, July, 1991”. Dependendo do que disser o autor dessa nova produção, poderemos ou não abordar o tema num dos próximos artigos para esta excelente revista literária brasileira, a GENIUS, tão superiormente dirigida pelo Editor Flávio Sátiro Fernandes. CONAN DOYLE & COLERIDGE Sir Arthur Conan Doyle, genial autor das histórias de Sherlock Holmes, escreveu em 1889 um romance, The White Company, fazendo uma leitura pessoal dos tempos medievais... Para tanto, leu mais de uma centena de livros sobre a Idade Média, especialmente da época de Eduardo III e da Guerra dos Cem Anos. Terminada a redação do livro, confessou: “foi a mais completa, satisfatória e ambiciosa coisa que jamais fiz”. Num livro desses, não poderia faltar uma alusão a Tomás de Aquino, não é mesmo? E lá vai ela: “No, father, it hath been slight enough. Yet, thanks to our good chancellor, I am not wholly unlettered. I have read Ockham, Bradwardine, and other of the schoolmen, together with the learned Duns Scotus and the book of the holy Aquinas”... [Publicação em brochura da CreateSpace Independent Publishing Platform, 2016, 268 páginas]. Um homem de Letras como Samuel Taylor Coleridge, que, em meio a tantas concepções desencontradas dos tempos modernos, sempre manteve visão clara da realidade, não poderia deixar de ser leitor de Tomás de Aquino — “in the old Latin version”, como diz na Biographia Literaria, de título igualmente alatinado. Pois estão lá suas observações em torno dos comentários do religioso sobre a Parva Naturalia de Aristóteles. E não faltam, ainda, as alusões ao “holy Aquinas” nos volumes 1, 2 e 4 de seus mui eruditos Coleridge’s Literary Remains... (Não lemos os demais volumes, apenas os três aqui citados). Dante Alighieri recebeu tanta influência de Tomás de Aquino que já se chegou a classificar sua Divina Comédia como “a Summa theologiae em versos”. O grande poeta inglês John Milton (1608-1674) — autor, entre outras obras, do magnífico Paradise Lost — confessava: sua admiração por outro grande vate britânico, Edmund Spenser (1552/31599), advinha de ele considerar este “um professor melhor que Tomás de Aquino”... Spenser é autor, entre outras obras, da alegoria fantástica The Faerie Queene.

EINSTEIN, CARL SAGAN... Num livro de 2002, sob o título de Fakhr al-Dīn al-Rāzī and Thomas Aquinas on the question of the eternity of the world [Brill Publishers, ISBN 90-04-12480-2], seu autor, o escritor de origem turca Muammer İskenderoğlu, já se referia ao protagonismo de Aquino nas antigas discussões em torno de um Universo sem termo no continuum temporal. Ah, faltou dizer que o Aquinate também meditou por muito tempo (mas bem menos que Einstein!) sobre os problemas do... Tempo. Então, não me venham dizer, please, que o rotundo frade italiano não deve ser estudado no mundo de hoje... Ora, se até o cientista Carl Sagan, num livro de ficção científica, Contact [Pocket Books, 1997, 448 páginas], não se peja de citar Aquino e sua Summa (I, 51, 2): “Os anjos precisam tomar um corpo, não por causa de si mesmos, mas em atenção a nós outros”... Mas Sagan não o cita apenas neste livro, senão em vários outros: * às páginas 37 e 155 da obra The varieties of scientific experience. A Personal View of the Search for God [The Penguin Press, Nova York, 2006]; * à página 204 do livro Billions and billions: Thoughts on Life and Death at the Brink of the Millennium [Ballantine Books, Nova York, 1997], a propósito do aborto... UMBERTO ECO E AQUINO Tomás de Aquino, nascido no remotíssimo ano de 1225 e falecido em 1274 ainda é autor que se leia? Claro que sim. Quer dizer, Você pode rigorosamente passar a vida inteira sem nem mesmo ouvir falar nesse santo da Igreja Católica Apostólica Romana (mas que é também respeitado por outras denominações religiosas). Mas, se quiser se considerar, REALMENTE, um intelectual de formação mais ou menos completa, deve dedicar algum tempo ao conhecimento, ao menos, da biografia mais ou menos extensa do Aquinates. Para dar um só exemplo de como prossegue influindo o legado do Doctor Angelicus: um dos mais ilustrados scholars da modernidade, Umberto Eco, dedicou sua tese de Doutoramento ao frade patrício: — Quando apresentei minha tese doutoral sobre a Estética de Tomás de Aquino — tema mui controverso, já que, por essa época, os estudiosos acreditavam não haver reflexões estéticas no imenso corpus de sua obra —, um dos examinadores me acusou de uma espécie de “falácia narrativa”. Disse que um estudioso maduro, quando se põe a investigar algo, avança à base de provas e erros, propondo e rechaçando diferentes hipóteses, mas que, ao final desse processo, supor-se-ia que tais dúvidas estariam resolvidas e o pesquisador deveria apresentar apenas as con-


clusões. Pelo contrário, disse ele, eu apresentava a história de minhas indagações como se fosse uma novela de detetives. A objeção me chegou de forma amável; e dito examinador me sugeriu a ideia fundamental de que todo achado no transcurso da pesquisa deve ser “narrado” desta forma. Todo livro científico deve ser uma espécie de história policial, o relato da busca de algum Santo Graal. E creio que isso é o que tenho feito desde então em todas as minhas obras acadêmicas. [Eco, Umberto, Confessions of a Young Novelist. Harvard College, 2011]. STEPHEN HAWKING E AQUINO Um dos maiores físicos da atualidade, Stephen Hawking, sucessor de Einstein, cita repetidamente Tomás de Aquino no livro The Grand Design, que escreveu com seu colega Leonard Mlodinow [Bantam Books / Random House, Nova York, 2010]. De outra parte, o sistema de pensamento de Aquino é criticado, de um ponto de vista científico, nos seguintes quatro volumes (I, III, IV e VI) da Coleção “Motion Moutain: The Adventure of Physics”, do professor Christoph Schiller e dedicada ao ensino da Física a jovens cientistas: * Volume I - Fall, Flow and Heat [Edição 27.06, disponível on line como .pdf gratuito, com vídeos downloadáveis no URL www.motionmountain.net]; * Volume III - Light, Charges and Brains [idem, ibidem]; * Volume IV - The Quantum of Change [idem, ibidem]; neste livro, o autor faz uma brincadeira entre o “princípio da exclusão do férmion” e o “princípio da exclusão do anjo”, numa referência à célebre resposta dada por Tomás de Aquino à questão 52 da Primeira Parte da Summa theologiae: apenas um anjo de cada vez pode dançar na cabeça de um alfinete... Volume VI - The Strand Model - A Speculation on Unification [idem, ibidem]. PAPINI E TOMÁS DE AQUINO Quando Umberto Eco realizou uma daquelas “entrevistas imaginárias” para o jornal italiano Corriere della Sera, quem foi que ele escolheu como o “entrevistado” da vez? Claro: Tommaso d’Aquino... Saiu numa edição especial, Note Bompiani, Milano 2005. E, depois, veio a Edizione Speciale per il Corriere della Sera [Milano, 2010; página 22, com nota biobibliográfica do Autor - Collana “Le interviste immaginarie”]. Por falar em Corriere della Sera, certa vez esse diário italiano fez uma previsão: um dos novos livros do escritor Giovanni Papini seguramente iria ser excomungado e colocado no Index librorum prohibitorum da Igreja Católica. Não era por menos: na nova obra, o desbocado anticlerical Papini considerava

santo Tomás de Aquino como protettore e presidiatore [protetor e defensor] de “todo o exército da ralé prepotente de nossa época”. Dizia, em seu italiano desabusado (não tema: a tradução vai logo a seguir!), arranjando “ótimas” companhias para o Doutor Angélico: “Tutti i posapiani dello spirito, tutti i pirronisti da tre un quattrino, i cacas­ tec­chi delle cattedre e dell’academia, i trepidi cretini imbottiti di pregiudiziali, tutti i casosi, i sofistici, i cinici, i pidocchi della scienza e i vuotacessi degli scienziati, infine tutti i lucignoli gelosi del sole, tutti i paperi che non ammettono i voli dei falchi, hanno scelto a protettore e presidiatore Tommaso.” [TRADUÇÃO LIVRE: “Todos os posudos figurões do espírito, todos os pirrônicos ou céticos que não valem um centavo, os pusilânimes das cátedras e da Academia, os bolorentos e ansiosos cretinos embebidos de preconceitos, todos os sofistas cheios de dedos e de nove-horas, os cínicos, os piolhos da Ciência e os limpadores de latrinas dos cientistas — em definitivo, todos os vagalumes fartos do Sol, todos os bobos que não admitem voos de falcão escolheram Tomás de Aquino como seu protetor e defensor”...] TENHA A SUMMA DE GRAÇA No segundo volume da Catholic Encyclopedia [Robert Appleton Company, Nova York, 1907, mas também disponível on line], William Turner nos explica que Tomás de Aquino usou o Grande comentário do filósofo árabe Averróis como modelo para seus próprios escritos, inclusive a Summa theologiae, sendo aparentemente o primeiro escolástico a adotar tal estilo de exposição das matérias. Se Você quiser encontrar gratuitamente o texto latino completo da Summa theologiae na Internet e em formato .html, procure este string no Google: “Corpus Thomisticum: Sancti Thomae de Aquino Summa Theologiæ”. A organização religiosa NewAdvent. org oferece, também gratuitamente e em hipertexto, uma tradução inglesa da Summa. Tudo ficará mais fácil se Você for para a Wikipedia em inglês e procurar os dois artigos principais: “Thomas Aquinas’ e “Summa Theologiae”. Aí vai deparar rico material, inclusive listas de palavras traduzidas (glossários), concordâncias e textos acessíveis em .txt, .pdf, .doc, .html etc. O portal SacredTexts também disponibiliza uma tradução inglesa da principal obra de Aquino — mas não é a única, em absoluto! Você também pode OUVIR a Summa traduzida em inglês, graças aos arquivos LibriVox de domínio público. O Project Gutenberg já está com a Primeira Parte traduzida, também para o inglês. E há novas traduções sendo providenciadas. EM OPOSIÇÃO A AQUINO

Quando se estuda a Filosofia Medieval (ou, melhor, as Filosofias Medievais, aí incluídos os pensadores árabes, judeus e de outra extração que influíram no pensamento europeu), o Aquinates desponta como o maior expoente da Alta Escolástica. Especialmente por conta de sua multiabrangente Summa theologiae, o portentoso sistema tomístico ainda hoje influencia os campos da Filosofia, Teologia, Metafísica, Ética e Filosofia Moral, Religião, Psicologia, Ciências Sociais em geral, Política etc etc etc. Não se pode considerar intelectual completo quem não se aplicar, pelo menos por algum tempo, ao conhecimento, mesmo perfunctório, da vasta construção filosófica empreendida pelo Doctor Angelicus com a precípua finalidade de — por intermédio de proposições lógicas, inteligíveis pelo pensamento racional — contemplar toda a vida espiritual, moral e teológica do ecúmeno católico de sua época, para isto tentando conciliar a contribuição de “santos pagãos” do gênero Aristóteles, Platão, Sócrates, Buda, Confúcio e outros. Estudar Tomás de Aquino, mesmo que não em profundidade, obriga-nos a conhecer um leque maior de filósofos: os demais portentos europeus ou não que o influenciaram, que a ele se opuseram, que foram por ele influenciados, que de uma forma ou outra participaram daquele amplo painel criativo que foram a Escolástica e a Patrística. No elenco dos filósofos que se opuseram às ideias de Tomás de Aquino, contam-se sumidades como o teólogo inglês Duns Scot, cognominado “o Doutor Sutil”, um dos mais brilhantes intérpretes da filosofia escolástica, como defensor do chamado “realismo”. Entre outras coisas, o Doutor da Igreja que fundou o Tomismo e escreveu uma espécie de enciclopédia filosófica do Cristianismo, a Summa theologiae, definia o primado da inteligência sobre a vontade, ao que se opunha Duns Scot. Combateram Aquino, entre outros, figuras como Durand ou Durandus de Saint-Pourçain (circa 1275-circa 1334), dominicano, teólogo e filósofo francês; e Lorenzo Valla (circa 1407-1457), humanista, educador e retórico italiano, que, entre outras coisas, provou pela análise textual que a chamada “Doação de Constantino” não passava de uma falsificação. Outro Tomás italiano, Tommaso Campanella, cita Aquino, em sua Cidade do Sol, a propósito do entendimento tomista de que a geração de novos indivíduos por um casal não subentende a preservação do indivíduo, mas da espécie. Por tudo isto, quem talvez mais vibrou com este presente (a coleção de Tomás de Aquino que ganhamos do Dr. Wilson Aquino) foi um de nossos filhos, o megaleitor e filósofo Vladymir Mariz-Nóbrega, que, nos estudos medievais, dedica Setembro/outubro/2016 |

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particular interesse a Alberto Magno, Pedro Abelardo, Anselmo de Cantuária, Bernardo de Claraval, Tomás de Aquino, Nicole d’Oresme e, tendendo para tempos mais recentes, Baruch Spinoza. ALGUMAS OBRAS DE AQUINO É impressionante a lista das obras legadas pela pertinácia intelectual de Tomás de Aquino, destacando-se, entre muitas outros relevantes, as abaixo elencadas: * Summa contra gentiles * Contra errores Graecorum * Quinque viae * Tratado de Direito * Quaestiones disputatae * De Dominnis nomibus * Liber de causis * etc etc etc, para não falar nos volumes de hinos, poemas, salmos, preces... A pedido do Papa Urbano IV, Tomás de Aquino compôs todo o ofício do Santo Sacramento: hinos, orações, textos em prosa, poemas, responsórios etc. Para isso, escolheu passagens das Escrituras Sagradas e dos Padres da Igreja que o antecederam. Desta forma é que o fiéis de hoje conhecem peças que passaram a integrar umbelicalmente os ritos católicos, a exemplo do Tantum ergo e de Lauda, Sion. É o que nos informa o diário Die Flucht aus der Zeit [Editora Duncker & Humblot, Munique, 1927], de Hugo Ball (1886-1927), poeta e escritor alemão, uma das principais figuras do movimento dadaísta. Não conhecemos edição portuguesa ou brasileira desse diário de Ball, mas, sim, uma versão em espanhol, La huída del tiempo, em tradução de Roberto Bravo de la Varga [editora Acantailado - Quaderns Crema, S.A., Barcelona, 2005], com Prólogo de Paul Auster e Apresentação de Hermann Hesse [copyright da

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Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main]. Nesse seu diário, Die Flucht aus der Zeit [“A fuga do tempo”], Ball lembra que “o maior filósofo da Igreja, Tomás de Aquino, é também seu maior poeta”. De fato, diz ele, “todos os maiores poetas do mundo são tanto mais elevados em concepção, simbologia, metáforas e arte, quanto mais são filósofos e intelectuais de alto porte mental: neles se cumpre uma lei segura e absoluta; em sua palavra, chegam à culminância da forma, do intelecto, da personalidade literária, poética, existencial; enfim, ninguém pode ser grande poeta se carece de relevância como intelectual; não se concebe um importante filósofo que seja um homem seco, inexpressivo, insignificante”. AQUINO E O LIBERALISMO Sobre Aristóteles, tornaram-se famosos e mui influentes os Comentários que o Aquinate fez aos principais livros do Estagirita, vale dizer, aos tratados sobre Física, Metafísica, Ética, Política e outros campos em que aplicou seu poderoso intelecto. Tudo isso à parte, interessante é observar que foi a partir da potentíssima organização mental de Tomás de Aquino — e ao fim e ao cabo do concurso “de numerosos intermediários”, ao longo do tempo — que o filósofo empirista e médico inglês John Locke (16321704), um dos mais influentes pensadores do Iluminismo e conhecido como “o Pai do Liberalismo”, derivou muitos dos princípios que, em sua formulação, transformaram-se em dogmas liberais, como não deixou de notar Kenneth Minogue, na percuciente obra The Liberal Mind [Liberty Fund, Indianápolis, 2000; edição original: editora Methuen, Londres, 1963]. E aproveite-se, aqui, para recomendar: o de Minogue é livro que os inacreditáveis “intelectuais” tupiniquins,

apoiadores de populismos, deveriam ler urgente e atentamente, para o bem do Brasil. Tomás de Aquino foi o maior e mais destacado filósofo da Alta Idade Média. Marcou nítida separação e distinção entre Filosofia e Teologia, disciplinas que, até então, praticamente não se distinguiam uma da outra. Como sabe qualquer garota leitora de O mundo de Sofia, o imperdível livro de Jostein Gaarder (a exemplo de nossa primeira neta, Ana Sofia Duarte Cavalcanti de Albuquerque Mariz-Nóbrega, ora com 11 anos, mas emérita biblióvora!), “Tomás de Aquino cristianizou Aristóteles, da mesma forma como santo Agostinho cristianizara Platão, no início da Idade Média”. Aqui, o leitor, a exemplo da personagem Sofia, de Gaarder, haverá de perguntar: — Mas, como? Tornar cristão filósofos que viveram muitas centenas de anos antes de Jesus Cristo?! — De certa maneira, sim. Mas, quando falamos da “cristianização” dos grandes filósofos gregos, queremos dizer que foram interpretados e explicados de tal maneira que não se considerassem uma ameaça à doutrina cristã, que dominava todo o pensamento, na Idade Média. Por exemplo, de Tomás de Aquino se diz que “pegou o touro pelos chifres” (ou “pegou o boi à unha”), porque tomou a si a tarefa de unir a filosofia de Aristóteles e o Cristianismo: “dizemos que criou a grande síntese entre a Fé e o Saber; e o fez, precisamente, entrando na filosofia aristotélica e usando suas mesmas palavras [...] Imaginou que não tinha que haver uma contradição [insuperável] entre o que nos diz a Filosofia ou a Razão e o que nos revela a Fé [cristã]. Muitas vezes, o Cristianismo e a Filosofia nos dizem a mesma coisa; portanto, podemos, com a ajuda da Razão,


chegar às mesmas verdades que nos conta a Bíblia”, segundo pensava Tomás de Aquino.” [Jostein Gaarder, O mundo de Sofia: Romance da História da Filosofia; tradução direta do norueguês: Leonardo Pinto Silva; 4ª reimpressão; editora: Companhia das Letras, 2012]. Pelo longo texto acima citado, tem-se um vislumbre da sofisticação do pensamento de Tomás de Aquino, em comparação com outros luminares da Igreja que o antecederam ou que foram contemporâneos seus. Grosso modo, pode-se dizer que, quando Aquino começou a lecionar em Paris, o que predominava era a tendência da Filosofia neoplatônica — e, quando de lá saiu, essa “moda” havia sido substituída pela tendência aristotélico-cristã, por influência dos autores árabes, mas, também, os de expressão hebraica. E quem mais atuou, e com maior eficácia, para que Aristóteles se visse “cristianizado” outro não foi senão o próprio Aquino. Na grande brincadeira que é todo o texto de Elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam, o autor diverte-se com Tomás, classificando-o de “aristotélico fanático”... TRADUTORES, SALVADORES Como Aristóteles chegou a Tomás de Aquino (ou, por outra, como Tomás de Aquino chegou a Aristóteles?). Vamos por partes... Diz-se, normalmente: Tradutores, traidores... Mas, no caso da Cultura grega, ela foi salva pelos tradutores que, atuando na Síria, no Império Bizantino e no mundo árabe, verteram para línguas orientais os tesouros literários da Grécia, depois retraduzidos para o latim, o hebraico e outras línguas ocidentais. A coisa funcionou assim: sábios árabes da Idade Média traduziam para sua língua (o

árabe ou, mais propriamente, de início, para a língua síria ou siríaco) obras de grandes filósofos gregos, salvando tais livros do desaparecimento, esquecimento etc. Desde os tempos da dominação persa na área, a língua síria vinha servindo a propósitos administrativos em toda essa região. Em Edessa, então área de dominação persa, estabeleceu-se entre os anos de 431 e 489 a famosa Escola Nestoriana, que intensificou as traduções do grego para o sírio, possibilitando que tais obras posteriormente fossem transcritas em árabe. Muito ajudou, para tudo isso, o fato de a Síria haver sido a rota inicial da expansão árabe/muçulmana. As obras em questão (de Filosofia, Medicina, Lógica, Matemática, Física, Política et alia) foram depois traduzidas para o latim, para o hebraico e até mesmo retraduzidas para o grego, de modo que o pensamento clássico pôde influir sobremaneira no despertar de outros grandes filósofos da Idade Média (inclusive entre os árabes!) e do Renascimento. O primeiro dos estudiosos árabes a empenhar-se em tais traduções foi o sábio árabe al-Kindi (au grand complet, Abu Yusuf ibn Ishaq, nascido em Kafa, Sul da Arábia, por volta de 796 e falecido no ano de 873), filósofo racionalista de expressão árabe. O mais aristotélico dos autores árabes, foi, ao lado de al-Farabi, um dos dois primeiros filósofos de extração arábica. Ele se viu encarregado pelo próprio califa de traduzir para o árabe os principais trabalhos de sábios gregos, à frente Aristóteles. Para isto, claro, al-Kindi e outros tradutores tinham que conhecer o grego. Mas podia ocorrer também de a tradução ser realizada de forma indireta, isto é, a partir do siríaco, vale dizer, a língua síria, que se desenvolveu do aramaico. Essa língua síria era

também semítica (como o árabe, o hebraico, o aramaico etc), mas o árabe ainda não era a língua falada no que hoje é o território da Síria. Em siríaco, surgiu rica literatura, com destacados escritores e inspirados poetas. Como todos Vocês estão cansados de saber, o profeta Muhammad primeiro lançou-se à conquista dos corações e mentes dos habitantes de sua própria Península Arábica. O califa Abu-Bakr, que o sucedeu, avançou sobre a Síria, pertencente ao Império Bizantino — e já em 632 tomava a capital dos sírios, Damasco. As conquistas muçulmanas foram-se sucedendo, no Oriente Médio e fora dele, com grande rapidez. Caiu inclusive o império visigodo da Península Ibérica. Felizmente para o restante da Europa, o rei dos francos, Carolus Martel, num esforço titânico, logrou contê-los, já em 732, quando os seguidores de Alá e seu Profeta avançavam pelo território hoje pertencente à França. A tradução de obras gregas (do grego mesmo ou já em língua síria) para o árabe não era uma tarefa fácil, por esse tempo: al-Kindi viu-se perseguido por fanáticos muçulmanos, por estar traduzindo heresias para a língua do Corão... Como mudara o governo, o novo califa também investiu contra o sábio, tomando-lhe a rica biblioteca, com preciosos manuscritos (depois, al-Kindi teria de volta esses seus tesouros lítero-científicos). E isto nos lembra que todos os grandes filósofos árabes foram bastante incomodados por esses fanáticos muçulmanos radicais e fundamentalistas, que sempre viam qualquer Filosofia com desconfiança, já que poderiam ser perigosas para suas concepções teocráticas... Essas traduções para o árabe ocorreram de início (e sobretudo) nos governos de Harun al-Rashid e Almun (813-833), entre

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outros dirigentes muçulmanos. Depois, na Europa, as versões das obras ocorriam do árabe e do hebraico para o latim e, finalmente, do próprio grego para o latim — e, bem posteriormente, para as línguas nacionais, neolatinas ou não (italiano, francês, espanhol, português, mais inglês, alemão, holandês etc). Em Toledo, que fora capital, na Espanha, de um reino muçulmano, criou-se depois da reconquista uma escola de tradutores do árabe para o latim. Às vezes, essas traduções criavam problemas aparentemente insolúveis. Vejamos um deles. Por conveniência do interessado, algumas obras importantes, de caráter neoplatônico, viram-se curiosamente atribuídas a Aristóteles... mas eram trabalhos não do Estagirita, senão contribuições originais de autores realmente neoplatônicos. Foi o caso, por exemplo, de uma Teologia de Aristóteles, que não era dele, não, mas um resumo da obra Enneadas, do filósofo cristão Plotino (circa 204/5-270 AD). A percuciência de Tomás de Aquino, no entanto, não se deixa enganar, quando, no século XII, comenta a obra Liber de causis, ele a credita a seu autor verdadeiro, Proclo (Proclus Lycaeus, 412485 AD, filósofo neoplatônico grego muito influente). E, ao estudarmos essas Filosofias da Idade Média, não percamos nunca de vista que as concepções dos neoplatônicos árabes e/ou muçulmanos é bem diversa dos neoplatônicos europeus e/ou cristãos. Então, também neste sentido histórico-linguístico-filosófico, pode dizer-se que Aristóteles primeiro foi “islamizado” pelos árabes e, depois, “cristianizado” por Tomás de Aquino... Assim, por intermédio das línguas siríaca e árabe, bem como da preservação da cultura grega pelos sábios bizantinos, foi possível recuperar, durante a Idade Média e a Renascença, toda a riqueza da contri-

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buição da Grécia antiga e das civilizações a ela associadas. Portanto, se alguém lhe disser que a “Idade Média foi a Idade das Trevas”, a única certeza, aí, é que esse alguém está nas trevas da ignorância... UM MOSTEIRO-PLACENTA No livro Desert Father: A Journey in the Wilderness with Saint Anthony [Editora Shambhala Publications, 2013], o notável escritor James Cowan tem, sobre isto, interessante passagem (traduzo para Vocês, do original inglês): “Dos quatro mosteiros preservados na região [Nota do Redator: o Wadi al-Natrun, leito seco de rio, a meio caminho entre o Cairo e Alexandria, na Província de al-Buhaira, Egito], aquele que eu mais queria visitar era o de Suryani, por causa de sua venerável ligação com a escola de tradutores de Edessa. O mosteiro é um ponto-chave na longa e sinuosa rota pela qual o antigo conhecimento dos gregos alcançou as escolas filosóficas de Córdoba, Toledo, Salerno e Montpellier. A Igreja Síria deu origem a uma autêntica escola de tradutores, dos quais os maiores foram Sérgio de Resaina (falecido em 536) e Jacó de Edessa (morto por volta de 708). Sob a direção deles, todo o corpus de tratados de Filosofia, Matemática, Medicina e Gramática, por Aristóteles, Euclides, Arquimedes, Ptolomeu, Hipócrates e Galeno viu-se traduzido em siríaco e, subsequentemente, em árabe. Ainda depois, em século XIII, tudo isso foi traduzido em latim. Em certo tempo, [o mosteiro de] Suryani guardava o mais antigo livro do mundo, um manuscrito oriundo de Edessa em 411 AD. Suryani também abrigou fragmentos de uma Bíblia na língua siríaca, produzida em Dyarbakir, no ano de 464, bem como as obras de Afraates [N.

do R.: Aphrahat, Aphraates etc, cristão de expressão siríaca nascido por volta do ano de 280 e falecido aproximadamente em 345, tendo atuado em área da Assíria sob o domínio do Assuristão sassânida], dito ‘o sábio persa’, escritas em Damasco dez anos antes. Por causa de sua posição isolada no deserto egípcio, distante das frequentes agitações políticas do Oriente Médio, o mosteiro terminou por se transformar num repositório isolado de todo o conhecimento e pensamento daqueles pensadores monásticos da Mesopotâmia. Suryani é, portanto, um daqueles locais-placenta da História da Humanidade: permitiu a transmissão do oxigênio das ideias, através das fronteiras linguísticas, a um mundo mais vasto”... Residente em Queensland, Austrália (bem perto, hélas!, de onde mora nossa dileta prima Lisavieta Andrade com o marido Michael O’Dea-Jones, em Brisbane), o escritor James Cowan, que escreveu isto aí em cima, é autor de mais de 20 livros, inclusive o best-seller A Mapmaker’s Dream, premiado com a Medalha de Ouro da Sociedade Australiana de Literatura. Uma última palavra sobre tudo isto: o mundo teve ainda outra sorte adicional: a civilização bizantina pôde assegurar que não houvesse descontinuidade entre a cultura da Antiguidade e a da Idade Média, graças às silenciosas e incessantes atividades de tradução dos textos antigos que também lá se realizavam, para não falar de Toledo, Bagdá e outros centros de irradiação cultural. Se o Império Germânico-Romano do Ocidente levou adiante o esplendor da cultura latina, o Império do Oriente ou Bizantino fez o mesmo à cultura de língua grega. [Evandro da Nóbrega <druzzevandro@gmail.com g


EDUCAÇÃO PAPA FRANCISCO DIZ QUE QUE A DOUTRINAÇÃO DAS CRIANÇAS COM A IDEOLOGIA DE GÊNERO É UMA MALDADE, ALÉM DE REPRESENTAR UMA COLONIZAÇÃO IDEOLÓGICA. Equipe GENIUS O Papa Francisco disse, na coletiva de imprensa que ofereceu aos jornalistas a bordo do avião em que regressou a Roma vindo da Geórgia e do Azerbaijão, que a doutrinação das crianças com a ideologia de gênero é uma maldade. O Santo Padre respondeu a uma pergunta sobre as suas afirmações na Geórgia, no sábado, 1º de outubro, quando disse que “uma grande inimiga, uma ameaça contra o matrimônio é a teoria de gênero”. A este respeito, o Papa recordou o que lhe disse um pai de família na França sobre algo que aconteceu quando comia com sua família. Disse o Sumo Pontífice: “Antes de tudo, acompanhei na minha vida de sacerdote, de bispo e até de Papa, pessoas com tendência e também com prática homossexual. Eu as acompanhei e aproximei do Senhor. Alguns não podiam, mas acompanhei e nunca abandonei ninguém, que isto fique claro. As pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. Quando uma pessoa tem essa condição e chega diante de Jesus, o Senhor não lhe dirá: Vai embora porque você é homossexual! Não! Eu me referi sobre a maldade que se faz hoje com a doutrinação da teoria de gênero. Um pai francês me contou que falava na mesa com os filhos – católicos eles e a esposa, católicos não tão comprometidos, mas católicos – e perguntou ao menino de 10 anos: ‘O que quer ser quando crescer?’ ‘Uma menina’. O pai notou que o livro da escola ensinava a teoria de gênero e isso vai contra as coisas naturais. Uma coisa é a pessoa ter essa tendência, essa opção, e também quem muda de sexo. Outra coisa é ensinar nas escolas esta linha para mudar a mentalidade. Além de considerar isso uma maldade, o Papa Francisco chamou tal prática de “colonização ideológica”. Tal assertiva foi feita em outra oportu-

Bohumil Petrik (ACI Prensa)

Papa Francisco

nidade, durante o encontro que teve com os bispos da Polônia, no dia 27 de julho, na Catedral de Santo Estanislau e São Venceslau, durante a sua viagem para participar da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Cracóvia 2016, e cujo conteúdo foi divulgado em 2 de agosto pela Santa Sé. O Papa Francisco criticou que nas escolas se ensine às crianças a ideologia de gênero, uma das “colonizações ideológicas” que se difundem através de livros financiados por certas instituições e inclusive por “países muito influentes”. Em outro momento, ao responder algumas perguntas dos bispos, o Pontífice aproveitou para denunciar novamente as colonizações ideológicas, entre elas a ideologia

de gênero e sua difusão nas escolas. “Queria concluir com este aspecto, porque por trás estão as ideologias. Na Europa, na América, na América Latina, na África, em alguns países da Ásia, há verdadeiras colonizações ideológicas. E uma destas – digo claramente com nome e sobrenome – é a ideologia de gênero!”. “Hoje ensinam às crianças – às crianças! –, que estão na escola: que cada um pode escolher o seu sexo. E por que ensinam isto? Porque os livros são das pessoas e instituições que lhes dão dinheiro. São as colonizações ideológicas, sustentadas também por países muito influentes. Isto é terrível”, alertou. Nesse sentido, recordou que uma vez, Setembro/outubro/2016 |

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“conversando com Bento XVI, que está bem e tem um pensamento claro, ele me disse: ‘Santidade, esta é a época do pecado contra Deus criador’. É inteligente! Deus criou o homem e a mulher, Deus criou o mundo assim, assim, assim… e nós fazemos o contrário” – encerrou o Papa. Por sua vez, o Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos no Vaticano, Cardeal Robert Sarah, afirmou que a ideologia de gênero é “demoníaca” e um “impulso mortal” que ataca as famílias. Assim o indicou o Cardeal africano em sua intervenção no tradicional ‘National Catholic Prayer Breakfast’, em Washington (Estados Unidos), no qual se reuniram diversos líderes do país para tratar de vários temas de grande relevância. Em sua exposição, o Cardeal disse que em nenhum lugar a perseguição religiosa é “mais clara que na ameaça das sociedades contra as famílias através da uma demoníaca ideologia de gênero, um impulso mortal que se experimenta em um mundo no qual extirpa cada vez mais Deus através da colonização ideológica” denunciada em distintas ocasiões pelo Papa Francisco. O Prefeito disse ainda que defender a família é uma tarefa fundamental na sociedade atual: “Não é uma guerra ideológica. Trata-se na verdade de defender-nos a nós mesmos, os nossos filhos e as gerações futuras ante uma ideologia demoníaca (a ideologia de gênero), a qual afirma que as crianças não necessitam mães e pais. Ela nega a natureza humana e quer extirpar Deus de gerações inteiras”. “A ruptura das relações fundamentais na vida da pessoa – por meio da separação, do divórcio ou das imposições distorcidas da família como a convivência e as uniões do mesmo sexo – é uma ferida profunda que fecha o coração ao amor que se entrega até a morte e que leva ao cinismo e à desesperança”. Estas situações, continuou o Cardeal, “prejudicam as crianças pequenas ao deixá-las com uma dúvida existencial profunda sobre o amor. São um escândalo e um obstáculo, que faz com que os mais vulneráveis não acreditem em tal amor, e um peso, que esmaga e que pode impedir que

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Sabrina Fusco (ACI Prensa)

Cardeal Robert Sarah

se abram ao poder de cura do Evangelho”. Em meio a tudo isto, disse o Cardeal africano, a Igreja e o Papa Francisco tentam combater a globalização da indiferença. “Por esta razão o Santo Padre, aberta e vigorosamente, defende o ensinamento da Igreja sobre a anticoncepção, o aborto, a homossexualidade, as tecnologias reprodutivas, a educação das crianças e muitos outros”, indicou o Cardeal. Atualmente, continuou o Cardeal Sarah, “a violência contra os cristãos não é somente física” como a que sofrem os fiéis do Oriente Médio nas mãos do Estado Islâmico, “mas também política, ideológica e cultural”. “Esta forma de perseguição religiosa é tão ou mais prejudicial, mas é mais escondida. Não destrói fisicamente, mas espiritualmente”, precisou. Por isso, o Cardeal disse que atualmente e “em nome da ‘tolerância’ os ensinamentos da Igreja sobre o matrimônio, a sexualidade e a pessoa humana estão sendo desmanteladas” e criticou a legalização das uniões de mesmo sexo, o mandato abortista da administração Obama e as leis que permitem o acesso aos banheiros de acordo com a chamada “identidade de gênero”.

Em seguida, o Cardeal se dirigiu aos participantes do ‘National Catholic Prayer Breakfast’ ressaltando que chegou aos Estados Unidos para “encorajá-los a ser proféticos, fiéis e sobretudo a fim de que rezem”. “Estas três sugestões – prosseguiu – demonstram que a batalha pela alma da América e a alma do mundo é basicamente espiritual. Mostram que a batalha briga primeiro com nossa própria conversão a Deus a cada dia”. É importante para esta missão, continuou, um grande discernimento a respeito de como “em suas vidas, em seus lares, em seus locais de trabalho, em sua nação, Deus está sendo reduzido, eclipsado e liquidado”. O Cardeal Sarah foi ordenado sacerdote em 1969 e foi consagrado bispo em 1979, tornando-se o bispo mais jovem do mundo. Em 2001, foi convocado a Roma pelo Papa João Paulo II para servir como Secretário da Evangelização dos Povos. Bento XVI o escolheu como presidente do Pontifício Conselho Cor Unum em 2010 e em 2014 o Papa Francisco o nomeou Presidente do dicastério vaticano que é responsável pela liturgia. g


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