ARTES PLÁSTICAS
O direito ao grafite Marcílio Toscano Franca Filho Inês Virgínia Prado Soares A nova gestão municipal de São Paulo completou há pouco o seu primeiro mês e, entre outras medidas, parece ter declarado guerra ao grafite. Essa “war on graffiti” – tristemente presente em tantos lugares hoje em dia – tem resultado em rápidas remoções, penalidades mais severas, aumento da vigilância e segregação das áreas grafitadas. A supressão de grafites que faziam parte da paisagem urbana da cidade de São Paulo, uma das tarefas da operação Cidade Linda, expôs não somente a difícil relação que esse tipo de arte mantém com o Poder Público, seja ele mecenas, regulador, incentivador, protetor, comprador ou censor, mas também a dificuldade dos governos de garantir e respeitar os direitos culturais. Entre o cinza das paredes e a perspectiva de tornar a cidade linda e limpa, há um desconforto de grande parte da população, que pressente, com razão, que as tintas carregadas nessa discussão não se harmonizam com um cenário citadino mais humano. Situado em um complexo cruzamento entre os sistemas comunicacionais escriturais (como letra) e os sistemas comunicacionais picturais (como traço), o grafite detém uma dignidade intelectual e estilística que o dota de amparo legal e proteção jurídica. Como movimento estético, o grafite – que não se confunde com o ato de pichar, conduta tipificada como crime por lei – começou a ganhar força a partir da década de 1970 e logo foi absorvido pelo mercado dito “mainstream” de arte. Não demorou para ser aplaudido por teóricos, críticos, curadores, museus, galerias, casas de leilão e por um público formado por passantes, flâneurs, turistas e moradores da cidade. Instituições do porte do Museu de Arte de São Paulo (MASP), do Brooklyn Museum (Nova York), do Amsterdam Museum (Holanda), das Bienais de Veneza e São Paulo e do Tate Modern (Londres) já
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FOTOS: DAVI FRANCA
abrigaram mostras sobre o tema. Essa valorização criou um paradoxo: originalmente concebido para ser algo anônimo, surpreendente, espontâneo, efêmero e marginal,
o grafite, os grafiteiros e, sobretudo, os seus apreciadores começaram a reivindicar estabilidade temporal e proteção jurí(Continua na página 20) dica para as obras.
CARTA AO LEITOR
SUMÁRIO
Quatro anos, igual a 4x365 ou 1460 dias, mais 1 dia do ano bissexto que atravessamos nesse período, tudo isso significa 1461 dias da caminhada de GENIUS, caminhada que esperamos se prolongue por um tempo muito maior, ao longo do qual possamos sustentar a bandeira dos nossos sonhos e das nossas esperanças, em defesa da glorificação, da manutenção e da preservação da cultura brasileira, nordestina e, sobretudo, paraibana. Glorificação, quando exultamos com os eventos que ocorrem no dia-a-dia de nossa vida cultural; manutenção, quando exaltamos a nossa tradição, notadamente, os fatos folclóricos que constituem a riqueza de nosso povo espalhada por todo o nosso território; preservação, quando em nossas páginas transcrevemos textos pretéritos de diferentes autores, sobrelevandose, dentre eles, os discursos que se inserem na seção com que há tempos vimos brindando os leitores, denominada Paraibanos na Academia Brasileira de Letras. Como nas edições anteriores, procuramos trazer para os leitores uma gama de colaborações de grande interesse para os que se dedicam à leitura de nossas páginas, versando as mais diversas temáticas, tais como, cinema, literatura, poesia, artes plásticas, ciência política, história municipal, memória. Para mencionar apenas os que foram objeto de chamada em nossa capa, destacaríamos os textos de Paulo Bonavides [Código de Processo Constitucional], Austregésilo de Athayde [Um tema literário e humano bastante complexo], Humberto Fonseca de Lucena [Uma visão histórica da evolução da administração judiciária em Araruna], Márcia de Albuquerque Alves [Violação do espaço de memória: o caso da Avenida Princesa Isabel, em João Pessoa]. Um destaque para O direito ao grafite, de Marcílio Franca e Inês Virgínia, uma análise séria e imparcial da questionável medida tomada pelo atual Prefeito de São Paulo, inutilizando dezenas de painéis grafíticos espalhados pelas ruas da capital paulista, sem critérios, sem consultas a órgãos culturais, sem direito de defesa, Enfim, uma medida digna de um “Trump tupiniquim”. Os textos de elevada qualidade e de excelente conteúdo que aqui se contêm repetem os que têm sido oferecidos em nossas edições anteriores. A cultura é o nosso mastro, O leitor é a nossa bandeira,
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ARCO-ÍRIS NA TELA Andrés von Dessauer
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POEMAS DO MESMO MOMENTO Ciro José Tavares
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JOHN LENON E EU Carlos Alberto Jales
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UMA VISÃO HISTÓRICA DA EVOLUÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA EM ARARUNA Humberto Fonseca de Lucena
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UM TEMA LITERÁRIO E HUMANO BASTANTE COMPLEXO Austregésilo de Athayde
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JOHN LENON E EU Equipe GENIUS
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MIGUEL SÁTYRO E SOUSA (1867-1934) Flávio Sátiro Fernandes
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CÓDIGO DE PROCESSO CONSTITUCIONAL
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EPOPEIA LUSA RETRATA ANACRONISMO ESCRAVOCRATA EM COLÔNIAS EUROPEIAS Tiago Eloy Zaidan
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JOSÉ XAVIER CORTEZ: LIVREIRO E EDITOR Neide Medeiros Santos
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VIOLAÇÃO DO ESPAÇO DE MEMÓRIA: O CASO DA AVENIDA PRINCESA ISABEL EM JOÃO PESSOA Márcia de Albuquerque Alves
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CINCO POEMAS DE OCTÁVIO DE SÁ LEITÃO (SÊNIOR)
Muito obrigado a todos e boa leitura.
Janeiro/Fevereiro/2017 - Ano V Nº 23 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 9981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br Impresso nas oficinas gráficas de A União Superintendência de Imprensa e Editora CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
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COLABORAM NESTE NÚMERO: 4
ANDRÈS VON DESSAUER [A produção cinematográfica argentina] Mestre em Economia e Ciência Política, pela Universidade de Munique, Alemanha. Comentarista conematográfico no triângulo Rio, São Paulo, Paraíba, sobre filmes “cults”. Articulista em vários periódicos brasileiros. AUSTREGÉSILO DE ATAHYDE (In Memoriam) (Caruaru. 1898 – Rio de Janeiro, 1993) [Um tema literário e humano bastante complexo] Professor, jornalista, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Membro da Academia Brasileira de Letras, da qual foi Presidente de 1959 a 1993. A ele coube receber na ABL o paraibano José Lins do Rego. CARLOS ALBERTO JALES [John Lenon e eu] Natural do Rio Grande do Norte, radicou-se na Paraíba, onde é Professor Doutor do Departamento de Fundamentação da Educação do Centro de Educação da UFPB. Escritor, poeta, ensaísta.
MÁRCIA DE ALBUQUERQUE ALVES [Violação do espaço de memória: o caso da Avenida Princesa Isabel em João Pessoa] Graduada em História pela UFPB. Mestra em História pela Universidade Federal da Paraíba. Pesquisadora. Coordenadora de Assuntos Históricos, Artísticos e Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba - Iphaep. MARCÍLIO TOSCANO FRANCA FILHO [O direito ao grafite] Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal), com pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu, em Florença (Itália), Procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba, Professor da Faculdade de Direito da UFPB e coautor do livro “Direito da Arte” (Ed. Atlas).
CIRO JOSÉ TAVARES [Poemas do mesmo momento] Natural do Rio Grande do Norte, bacharelou-se em 1964, pela Faculdade de Direito do Recife. Desde cedo dedicou-se às atividades literárias. Poeta e ensaísta. Em 1988, obteve o Prêmio Ladjane Bandeira de Poesia, patrocinado pelo Diário de Pernambuco e, em 2012, ganhou o Prêmio Edmir Domingues de Poesia, patrocinado pela Academia Pernambucana de Letras, além da consagração hors-concours, nos prêmios Jorge de Lima, da UBE e Jorge Fernandes, também da UBE. Reside em Brasília.
OCTÁVIO DE SÁ LEITÃO (SÊNIOR) (In Memoriam) (João Pessoa, 1890 – João Pessoa, 1949) [Cinco poemas] Nascido em João Pessoa, Octávio de São Leitão radicou-se em Catolé do Rocha, em virtude de sua nomeação para telegrafista naquela cidade, obtida em concurso público. Ali não se cingiu às atividades de funcionário público, dedicando-se também à literatura, à educação e à cultura. Foi um verdadeiro animador cultural, assinando jornais e revistas, que emprestava aos jovens. Dono de um aparelho de rádio, equipamento raríssimo na cidade, não o deixava guardado em casa, mas, ao contrário, ligava-o e colocava-o na janela de sua residência, para que todos os interessados pudessem ouvir as notícias da Europa, em torno da II Guerra Mundial. É o que dele nos conta o saudoso jornalista Raimundo Nonato Batista, em artigo inserido no livro Catolé do Rocha em muitas lentes.
FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES [Miguel Sátyro e Sousa (1867-1934)] Membro da Academia Paraibana de Letras e IHGP. Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Autor dos livros História Constitucional da Paraíba e História Constitucional dos Estados Brasileiros, este em parceria com o Professor Paulo Bonavides. Diretor da revista GENIUS. Romancista, poeta, historiador.
PAULO BONAVIDES [Código de Processo Constitucional] Professor Emérito da Faculdade de Direito do Ceará. Doutor Honoris Causa por diferentes Universidades estrangeiras. Autor de extensa bibliografia de direito constitucional. Autor da obra História Constitucional dos Estados Brasileiros, juntamente com o Professor Flávio Sátiro Fernandes.
HUMBERTO FONSECA DE LUCENA [Uma visão histórica da evolução da administração judiciária em Araruna] Historiador e pesquisador, pertence ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
NEIDE MEDEIROS SANTOS [José Xavier Cortez: Livreiro e editor] Escritora, pesquisadora, crítica literária, autora de várias obras atinentes ao tema literatura infantil.
INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES [O direito ao grafite] Procuradora Regional da República em São Paulo, Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao (do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).
TIAGO ELOY ZAIDAN [Epopeia lusa retrata anacronismo escravocrata em colônias européias] Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco; coautor do livro Mídia, movimentos sociais e direitos humanos (Organizado por Marco Mondaini, Editora Universitária da UFPE, 2013) e Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB).
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CINEMA
ARCO-ÍRIS NA TELA Andrés von Dessauer
Desde o primeiro curta-metragem gay, rodado em 1894, até hoje, a quantidade de filmes sobre homoafetividade surpreende. Obviamente, a evolução dessa temática é reflexo direto das mudanças sociais e isso, claro, é solo fértil para as mais diversificadas abordagens. Preconceitos, direitos, saúde, família, trabalho, estigmas são só alguns dos variados desdobramento que giram em volta desse tema central. E, como tudo na vida, a qualidade dessas obras também foi se aprimorando no transcorrer das décadas. Tanto é que, dentre centenas de longas de excelente qualidade pode-se citar: MORTE EM VENEZA, CONTRA CORRENTE, FILADELFIA, MILK, PRISCILLA, MÁ EDUCAÇÃO, O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN, CLUBE DE COMPRAS DALLAS, etc. Assim, em meio a tanta qualidade, a atual edição da Revista GENIUS abre espaço para CAFÉ DA MANHÃ EM PLUTÃO e Y LOVE YOU PHILLIP MORRIS, dois filmes de alta sensibilidade que, como o leitor perceberá nos artigos abaixo, merecem total atenção. CAFÉ DA MANHÃ EM PLUTÃO – Uma Fábula Moderna. Quando em 1930 o observatório Lowell, em Arizona (USA), descobriu um novo planeta no sistema solar choveram sugestões sobre sua denominação. Mas, a proposta vencedora veio de uma inglesinha de 11 anos que, impressionada com o deus romano das trevas, sugeriu o nome de Plutão para esse objeto escuro e gelado. É certo que em 2006 esse astro foi rebaixado à categoria de ‘planeta anão’ por ter apenas 1/5 da massa lunar. Porém, em que pese sua pequenez, Plutão possui características fascinantes como, por exemplo, o título de “planeta binário”, advindo do balé giratório proporcionado pela rotação simultânea entre esse astro e Caronte (uma de suas 5 luas). Além dessa bipolaridade, Plutão conta com uma das mais longas órbitas do sistema solar, já que leva 248 anos para completar seu trajeto em torno do Sol.
Tantas particularidades já justificaria a escolha de Neil Jordan, cineasta irlandês (“Entrevista com o Vampiro”, “A Companhia dos Lobos”) pela inserção do nome desse astro no título de sua comédia dramática “Café da Manhã em Plutão”. Entretanto, a impossibilidade de um café da manhã em Plutão, quando cotejada com as aspirações do personagem transexual, fruto da relação entre um paroquial e uma doméstica, evidencia a profundidade do título. E as metáforas não param por aí, já que, segundo a ciência, Plutão pode ter sido um lua ‘escapada’ da órbita de Netuno o que, mais uma vez, parece estar em sintonia com a fuga da figura principal de um medíocre vilarejo. Quando o perseguido iluminista Voltaire escreveu em 1759 “Candide”, conto subdividido em 30 capítulos, não poderia imaginar que 246 anos mais tarde, em 2005 (quase o mesmo tempo da órbita do Plutão!), um cineasta irlandês daria vida em 36 capítulos a um personagem bem similar à sua estória. Porém, resguardadas as devidas semelhanças vale frisar que Voltaire utilizou-se do mais
puro sarcasmo, em uma espécie de paródia às teorias do filósofo alemão Leibniz (‘Theodizee’, 1710) que em seu trabalho aduzia que Deus não podia ter construído um mundo melhor, restando aos homens apenas “cultivar o jardín”. Jordan substituiu a ironia amarga de Voltaire por uma obra estética-musical. Interpretado pelo versátil ator irlandês, Cillian Murphy o personagem ‘Kitten’ (= gatinho domesticado), passa estoicamente, por todos os percalços (ingenuidade-esperteza, desprendimento-ganância, delicadeza-violência, caridade-egoismo, amor-ódio, etc.) vividos por “Candide”. A atuação rendeu ao protagonista uma indicação ao Globo de Ouro, mas, o nome do ator só aumentou o rol dos injustiçados nesse festival. Sem perder sua identidade espiritual e sexual “Kitten” transita com desenvoltura entre os universos de Marte e Vênus (homem x mulher). E, nesse sentido, não parece acertado concluir que esse personagem esteja à procura de sua sexualidade, já que a mesma se encontra, visivelmente, definida desde sua infância. E a procura por sua mãe representa mero pano de fundo para relatar uma viagem na fronteira entre passado e o futuro que, no melhor estilo ontheroad de Jack Kerouac, ambiciona alcançar uma estrada interplanetária. Ambientada nos anos 70 a obra expressa uma cadência lírica ímpar e prova que, depen-
dendo das circunstâncias da vida, o ser humano pode ser tanto objeto quanto sujeito de suas
ações. Já de início percebe-se que essa moderna fábula é narrada por pássaros, estabelecendo uma alusão direta a Esopo que fazia com que animais falassem inconvenientes verdades, bem como ao Rei Salomão para quem os pássaros eram verdadeiros espiões. Do ponto de vista moral, próprio das fábulas, é possível depreender que tanto o deslumbramento do maravilhoso mundo de Leibniz quanto o sarcasmo exacerbado de Voltaire são posturas pouco recomendáveis na vida real. O que parece sublinhar a afirmação de Aristóteles, segundo o qual “a virtude se encontra no meio termo”. Janeiro/Fevereiro/2017 |
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“I LOVE YOU PHILLIP MORRIS” – Um Prisioneiro da Paixão Houve um tempo em que a astúcia e a ousadia dos golpistas, de tão originais, contavam com a admiração de alguns cidadãos. O maior fugitivo britânico, Ronald Biggs, assaltante do “Trem Pagador”, refugiado no Brasil, e não extraditado por ser genitor de um brasileiro, representa uma dessas celebridades. Exemplo dessa popularidade foi o episódio em que, ao embarcar na fragata inglesa “Danae”, ancorada na Baía da Guanabara, em 1977, Biggs ao invés de preso foi festejado, provocando a abertura de um inquérito parlamentar em Londres. Também merece destaque William Thompson, que, autor de vários “golpes praticados com abuso confiança,” ensejou, no século XVII, a origem da expressão “conman”, na atualidade, atrelada a um “ranking” internacional de confiabilidade. No Brasil cabe citar o caso de Marcelo Nascimento da Rocha, golpista (tema do filme VIPS, vivido pelo ator Wagner Moura - 2010) que colecionou em seu currículo mais de 16 identidades e, para desespero da mídia, incorporou diversas celebridades. Hoje, a realidade é outra. A esperteza virou regra e o que outrora era original ganhou contornos de habitual. Não há mais espaço para interpretações romanescas sobre os novos espertalhões, mercadores do poder que, de cândido só possuem os colarinhos. Alheia a isso, a cinematografia americana, lançou neste século, pelo menos, dois
trabalhos sobre renomados vigaristas: “Catch me ifyoucan”, comédia de Spielberg, sobre a vida de Frank Abgnale (retratado por Leonardo DiCapri) e “I Love You, Phlipp Morris”, comédia dramática, baseado na biografia de Steven Russel (interpretado por Jim Carrey).
Abgnale foi condenado a 40 anos de reclusão, mas não demorou muito para que o próprio FBI lhe propusesse um relaxamento de pena em troca de sua expertise na detecção de fraudes. Já Russel, após 4 fugas consecutivas, todas meticulosamente planejadas e aprazadas
para as sextas-feiras 13 (número significativo nos USA), não teve igual sorte e foi condenado a intransponíveis 140 anos de reclusão. A atuação Russel trouxe à luz a fragilidade do sistema carcerário local e expôs o Estado ao ridículo. Sob esse prisma, fica fácil entender a cólera institucional e a desproporcionalidade entre as referidas condenações. Contudo, as divergências entre essas duas figuras não param por ai, pois, se Abgnale buscava locupletar-se à custa de muita adrenalina, Russel estava loucamente apaixonado e, como ele mesmo enfatizava, tinha ‘um namorado para sustentar’. Como se seguissem a velocidade e sinuosidade de uma montanha russa, os diretores estreantes Glenn Ficara e John Requa, sem qualquer reserva, afrontam e acolhem clichês, tudo embalado por uma excelente trilha sonora. Jim Carrey interpreta um homem literalmente louco de paixão que, ao lado de Rodrigo Santoro (no papel de Jimmy) e Ewan McGregor (Phillip Morris), forma um trio de convincente interpretação. Uma combinação desastrosa entre tradutores desatentos e um distribuidor sem visão, resultou no título “O Golpista do Ano” (que ano?), levando ao cinema um público brasileiro acostumado a assistir filmes superficiais de Jim Carrey. O resultado, claro, se refletiu na bilheteria que, no Brasil, ao contrário dos EUA, se mostrou inexpressiva. Fato que não diminui em nada a qualidade dessa película cujo conteúdo não trata apenas da ala arco-íris, mas, dos diversos matizes da vida. g
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POESIA
POEMAS DO MESMO MOMENTO Ciro José Tavares
Quando, aos treze anos, iniciou sua excepcional trajetória literária, Victor Hugo, a exemplo dos seus compatriotas, era herdeiro da débâcle napoleônica. O momento crepuscular do exército imperial francês em Waterloo parece ter infiltrado mancha indelével no espírito do grande poeta, de tal maneira que, ao longo de sua vida os ecos da batalha acabaram repercutindo em muitos escritos, de forma enfática no conhecido Os Miseráveis e no longo poema L’expiation, cuja segunda parte é inteiramente dedicada ao fato. Provavelmente sua capacidade de criação cresceu quando invadido pela saudade da pátria, durante exílio na ilha de Jersey, cercada por ventos gelados e brumas vindos do Mar do Norte, através do Canal da Mancha. Sem dúvida que a atmosfera respirada nessa espécie de insônia que durou 20 anos, contribuiu para fazê-lo poeta da república, honrado ao ser acompanhado por um milhão de pessoas ao Panthéon, sua última morada. A estrutura do poema de Hugo, que desde 1827 rompera com regras e modelos clássicos, publicando seu célebre manifesto como prefácio da peça teatral Cromwell, tem o ritmo dos decassílabos tradicionais. “Waterloo ! Waterloo! Waterloo! Morne plaine! “(Hugo, p.180, 2002). Os versos estão permeados pelo exacerbado nacionalismo do autor, arrastando-nos ao interior de um cenário épico, onde a Europa, de um lado, e a França, de outro, decidem seus destinos. A visão sombria do local, a luta cada vez mais sangrenta misturada à tarde que mergulha no horizonte, a chuva ensopando o solo, dificultando o deslocamento das peças de artilharia e a presença dos atores principais do drama, desfilando pelo palco do teatro de operações.
O epílogo da estrofe é ao mesmo tempo emocionante e melancólico. Napoleão assiste o colapso de sua velha guarda, como se homens, tambores, cavalos, bandeiras, fossem um rio desviado para fora do seu curso, numa provação que confunde no regresso todos os seus remorsos. Ergue as mãos para o alto murmurando, “meus soldados mortos, meu império frágil como vidro”. “Est-ce le châtiment cette fois, Dieu sévère ? Alors parmi le cris, les rumeurs, le canon, Il entendit la voix que lui répondait: Non !”(Hugo, 2002, p.183). Além dos minutos heróicos do eclipse de Waterloo que fascinaram escritores e pintores, o próprio Napoleão Bonaparte e suas campanhas pelos campos de batalha da Europa parecem ter significado um leitmotiv para a arte do século XIX. Na música, por exemplo, a edição original da sinfonia nº 3 de Beethoven (Eroica) destaca o oferecimento “composta para celebrar a memória de um grande homem. Também Tchaikovsky na Abertura Solene 1812 registra o desastre das forças francesas nas estepes russas. O ocaso napoleônico não escapou à observação do talentoso e irrequieto George Gordon Byron. Ao atingir a maioridade e assumir sua cadeira na Câmara dos Lordes, Byron deixou a Inglaterra empreendendo uma grande viagem na companhia de Hobhouse, seu companheiro no Trinity College, Cambridge. .Seu poema mais conhecido, Peregrinações do jovem Haroldo, iniciado na Grécia descreve, ao longo de quatro cantos
e 186 estrofes, viagens e reflexões de um jovem que desiludido com a vida de prazeres e frivolidades busca distrações mais interessantes muito além das fronteiras do seu país. O minuto mundial de Waterloo vai surpreendê-lo em Bruxelas. A genialidade de Byron explode nas estrofes 21 e 22 do Canto III do Haroldo, quando pela leitura somos transportados para o interior do ambiente que reinava na capital belga. Por um instante parecemos carregados pelo tempo passado e repentinamente estamos “ouvindo a música da festa no meio da noite”. De alguma forma participamos da indiferença dos convivas, belas mulheres rodopiando ofegantes pelos salões nos braços de galantes cavalheiros, olhares enamorados, promessas de amor fixadas nos olhares dos amantes, até quando somos sacudidos por algo ensurdecedor que faz tremer a terra sob os pés, repicar os sinos e devolver a realidade. “Não ouviram? Não é um vento forte, nem o barulho das rodas de uma carruagem na calçada”. Eis que já ressoa o lúgubre aviso, repetindo-se como se trazido por nuvens, cada vez mais próximo, mais claro e mortal. Às armas! Que é o canhão a rugir o tiro inicial”. (Byron, 1986, p.110) – tradução do autor. A exemplo de Victor Hugo, Byron construiu seu poema em decassílabos: “There was a sound of revelry by night”, diferentemente dos seus contemporâneos Wordsworth, Keats e Coleridge que na produção de algumas de suas composições mais renomadas fizeram opção pelo verso branco, onde as frases longas ganham ritmo pelas pausas espontâneas, revestindo de beleza o pensamento lírico. g
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BYRON. THE OXFORD AUTHORS. Oxford New York. Oxford University Press, 1986; e HUGO, Victor. OEUVRES POÉTIQUES. Anthologie. Le Livre de Poche, classique, 2002. Janeiro/Fevereiro/2017 |
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DIVAGAÇÕES
John Lenon e eu Carlos Alberto Jales
Depois que comprei e paguei as compras no Mercado Público, ouvi uma voz que me chamava: - Doutor, quer que eu ajude a levar as sacolas no carro? O senhor me dá o que quiser. Ecoava em mim a retórica de Sociólogos, Pedagogos, Curadores da Infância e da Adolescência, Membros do Ministério Público: - Não deem esmolas, não incentivem a preguiça, não sejam paternalistas. Aquele pedaço de gente tinha no máximo 8 anos de idade: pequeno, muito magro, rosto desconsolado. Concordei: está bem, me ajude a levar as compras. O carro estava a uns 100 metros do mercado. Dei metade das sacolas a meu ajudante e no caminho fui puxando conversa. - Qual o seu nome? - John Lenon - Você sabe quem foi John Lenon? - Diz que foi um cantor - Você sabe onde ele nasceu? - Não, nunca me disseram. - E que idade tem você? - 11 anos. Me espantei, mas prossegui. - Estuda? - Não senhor, eu estudava, mas a Prefeitura começou a reformar a Escola e já faz dois anos que nós não tem aula. Aos meus ouvidos, o discurso dos Gestores chegava:
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“Construímos tantas escolas, reformamos outras, toda criança agora tem vaga garantida, não estuda quem não quer, a merenda não falta, a qualidade do ensino, o método Paulo Freire, combatemos a educação bancária... “ Continuei perguntando: - Você tem pai, John Lenon? - Minha mãe diz que ele foi embora caçar emprego noutro lugar e nunca mais voltou. Eu era novinho, não conheci ele não senhor. - E sua mãe, trabalha em que? - Trabalha na casa dos outros, é faxineira, lava roupa, faz muita coisa. - Você sabe a idade de sua mãe? - Parece que tem 25 ano. - E você tem irmãos? - Tenho três irmão e uma irmã fêmea - Mas seu pai não foi embora quando você era pequeno? - Foi doutor, mas minha mãe já teve três marido. Não quis perguntar se seus irmãos estudavam, o que faziam. Quis saber de coisas mais amenas. - Você gosta de futebol? - Gosto e torço pelo Flamengo. Uma vez, um marido de minha mãe me levou ao Almeidão para ver ele jogar contra o Botafogo daqui. - E qual o melhor jogador do Brasil? - Garrincha - Mas Garrincha já morreu faz tempo. Eu quero saber de um jogador de hoje...
- É o Imperador, diz que ele faz muito gol... John Lenon já estava cansado, eu não queria mais sofrer, mas uma pergunta martelava minha cabeça: “Que país é este?” E me lembrava que ninguém sabia a resposta, por mais que se discutisse em Simpósios, Seminários, Congressos, Convenções de Partidos. Sociólogos, Cientistas Políticos, Parlamentares, Economistas, Pastores, Educadores, Psicólogos, despistavam e marcavam o próximo encontro. John Lenon nãos sabia quem era o Presidente da República, nem Governador, nem Prefeito, nem nenhum nome de Vereador. Não sabia também o que era um Juiz, um Deputado. O menino que me acompanhava era um não-cidadão, um número perdido em estatísticas que não servem para nada. Chegamos ao carro. Acomodei as sacolas. Dei a Lenon o que achava que ele merecia. Ele não pedira esmola. Oferecera trabalho. Minha consciência estava apaziguada. Liguei o motor, dei partida, sintonizei uma rádio no aparelho de som. Por ironia, ou coincidência, ou por um aviso dos Deuses, a rádio tocava “Imagine”, a música mais famosa de John Lenon. Pelo retrovisor, vi o outro John Lenon, o meu, se afastando, talvez satisfeito com a migalha que lhe dera, talvez pensando em comprar alguma coisa para comer. No carro, a voz do Beatles cantando “Imagine” me feria como um punhal. João Pessoa, 27/07/09
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HISTÓRIA MUNICIPAL Uma visão histórica da evolução da administração judiciária em Araruna Humberto Fonseca de Lucena*
INTRODUÇÃO. A história de nossas cidades sempre teve seus temas preferidos. Não faltam olhares dos pesquisadores para temas relacionados ao surgimento da povoação, à criação da freguesia, à emancipação política, à administração municipal e a outros aspectos como educação, esportes, enfim, uma história social, política e religiosa. Mas há outro tema, outro aspecto de nosso passado menos conhecido e menos explorado pelos historiadores. É aquele que diz respeito à administração e evolução da vida judiciária, elemento extremamente rico e importante de nossa história. Muito raramente, para não dizer inexistentes, são os trabalhos de história municipal que dedicam mais do que três ou quatro páginas com esse tipo de estudo. Quase sempre se limitam a indicar a data da criação da comarca com uma relação de juízes que ali atuaram, ainda assim incompleta. Ao contrário, o poder executivo com seus prefeitos e o poder legislativo com os seus vereadores, intendentes ou conselheiros, têm merecido mais espaço e mais estudo. Quanto ao tema religioso nem se pode comparar. As paróquias sempre foram boas guardiãs de nossa memória dispondo em seus organizados arquivos de farto acervo de fontes primárias, tais como livros de Tombo, de assentamentos de batizados, de casamentos e óbitos, estes últimos até a época em que a Igreja era responsável pela administração dos cemitérios. Nos trabalhos que publiquei sobre a história de minha terra, fugi do jeito convencional de se apresentar uma história municipal. Optei por escrever uma história fragmentada, cujos temas foram escolhidos à medida que me foram parecendo mais interessantes e de mais fácil acesso à documentação. Nesse caminhar de mais de vinte anos direcionei as pesquisas para o enfoque do judiciário, mesmo sabendo que não era fácil fazer um levantamento de datas, nomes e
fatos mais importantes para a história da administração e evolução da vida judiciária em Araruna, das origens à contemporaneidade. Sabemos que a carência de elementos documentais antigos é drama comum com que se defrontam os pesquisadores ao se aventurar na garimpagem de dados para a história de nossas comunas, sejam quais forem os temas abordados. Mesmo quando existem esses dados estão escondidos ou dispersos em livros e papéis, muitas vezes já corroídos nas gavetas e prateleiras de nossos desorganizados arquivos. De qualquer maneira encontrei, li e anotei muita coisa que resultou no livro Araruna – de Distrito de Paz a Comarca, publicado em 2009, de onde extraímatéria para este texto. NASCEM AS INSTITUIÇÕES. O estudo da evolução de qualquer de nossas cidades sob o ponto de vista judiciário é indissolúvel de sua evolução político-administrativa. No caso de Araruna, é a partir das primeiras décadas de 1800 que podemos acompanhar sua evolução gradual ascendendo aos vários patamares da hierarquia político-administrativa: povoado, freguesia (esta referente à administração eclesiástica no tempo do Império), vila e cidade. Paralelamente a essa ascensão, o poder judiciário foi se estabelecendo como distrito de paz, termo judiciário e comarca. Embora o povoado de Araruna tenha existido a partir das primeiras décadas de 1800, somente a partir da criação da freguesia, em 1854,é que surgiu o Distrito de Paz. Na verdade, o Distrito de Pazde Araruna surgiu como consequência da Lei nº3, de 11 de outubro de 1841, que impunha: haverá tantos Distritos de Paz, quantas freguesias da província. As eleições, tanto para vereadores, quanto para juízes de paz, eram feitas em conjunto perante a mesma mesa eleitoral. Naquela época, essas eleições eram realizadas de quatro em quatro anos, no dia 7 de setembro, em
todas as paróquias do Império, nos lugares onde as Câmaras Municipais designassem. O Distrito de Araruna estava subordinado à Câmara Municipal de Bananeiras, sede do município. Em cada Distrito de Paz havia quatro juízes de paz, sendo declaradoscomo tais os quatro cidadãos que tivessem a maioria dos votos, segundo a ordem de votação. Os juízes eram eleitos pelo período de quatro anos. Cada um deles serviria no ano que lhe tocasse, de acordo com a colocação que tivesse na ordem de votação. Dessa forma, no primeiro ano serviria o juiz mais votado, no segundo ano aquele que obtivesse a segunda votação e assim por diante. Na época, não poderia haver essa eleição em paróquia que não tivesse sido provida canonicamente. Em Araruna, essa provisão só se deu em 1856, quando foi nomeado seu primeiro vigário o padre Pedro Barbosa Freire e eleitos os quatro primeiros juízes de paz. Sabemos que os juízes de paz eram magistrados sem formação específica, sem salários, eleitos pela população para desempenhar nas paróquias a função de juiz em casos menores, visando, sobretudo, conciliar litigantes. Com o tempo, essas atribuições foram se ampliando a ponto desses juízes de paz exercerem a um só tempo, além das funções conciliatórias, as judiciais, policiais e administrativas. Entre estas últimas estavam as de organizar e disciplinar as eleições paroquiais. Em nenhum momento, como se pensa, eles aparecem realizando casamento, pois, na época, só era considerado válido o matrimônio celebrado no ritual católico, em face do Direito Canônico vigente no Império. Pena que essa magistratura paroquial não tenha se comportado à altura de sua missão. Na maioria das vezes eram eleitos indivíduos sem habilidades e desprovidos de moralidade. Pelo fato de serem eleitos, os juízes de paz usufruíam amplos poderes de repressão, o que significa dizer que essa repressão Janeiro/Fevereiro/2017 |
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ficava por conta dos chefes políticos locais, considerando-se que não seria eleito para o cargo quem não tivesse o apoio dos referidos chefes. O caráter eletivo tornava o juiz de paz caudatário desses poderosos e instrumento de seus arbítrios e abusos. As vinculações dessas autoridades com a política local e o choque de atribuições judiciárias e policiais entre juízes de paz e delegados e subdelegados de polícia comprometiam a boa ação da justiça e deixava o povo à mercê dos dirigentes políticos do momento. Esta situação era agravada pelas constantes alternâncias de poder entre os partidos Liberal e Conservador durante todo o Império. Quando no poder, cada partido se apurava nos desmandos contra os adversários, os quais, por sua vez, quando tomavam as rédeas cobravam a conta com juros e correção, daí os excessos de ambos os lados. É difícil acreditar que um juiz de paz que tinha a incumbência de organizar e disciplinar as eleições paroquiais, morando a quilômetros da Comarca, pudesse impedir as arbitrariedades policiais ou desmandos eleitorais num distrito longínquo. A VILA E A CRIAÇÃO DO TERMO JUDICIÁRIO. Na organização administrativa da época, a sede do município tinha a prerrogativa de “vila”. Esta prerrogativa era a mais importante por implicar na autonomia administrativa com a necessária instalação do poder legislativo. Qualquer núcleo habitacional que obtivesse certa importância e desenvolvimento adquiria, ou por iniciativa do governo ou a pedido da população, emancipação politico-administrativa, tornando-se vila, ou seja, município emancipado de outro, do qual era desmembrado. Assim, em 10 de
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julho de 1876, Araruna tornou-se município emancipado política e administrativamente de Bananeiras. O Termo Judiciário de Araruna, por imposição da lei, deveria ter sido criado desde o momento da instalação da vila. No entanto, só foi criado em 1882. Isso se deu por conta da ausência de um número mínimo necessário de jurados apurados naquele município. Em 15 de abril de 1882, pelo fato de ter sido apurado no munícipio o número de 50 jurados, o presidente da Província, Alfredo da Gama e Mello, criou o Termo Judiciário de Araruna da Comarca de Bananeiras. Na época, a administração da justiça nos Termos Judiciários cabia aos juízes municipais. Desde 1841 estava definido o sistema judiciário, que permaneceu até o final do Império com pequenas modificações. Os juízes municipais eram nomeados entre bacharéis com um mínimo de um ano de prática forense para um período de quatro anos. Podiam ser promovidos a juiz de direito de uma comarca ou ser nomeado para outro quatriênio ou ser afastados, pois não tinham estabilidade. A garantia da vitaliciedade só beneficiava os juízes de direito, com exercício nas comarcas, mas não os juízes municipais, que serviam nos Termos Judiciários, nem obviamente os juízes de paz, de investidura eletiva. Havia também os suplentes de juiz municipal para atuar nos termos judiciários, escolhidos entre pessoas bem conceituadas. No caso de Araruna, ficou o município sem um juiz municipal letrado durante muitos anos. Na prática o que se observou, até o final do Século XIX, em Araruna, é que, na maior parte do tempo, quem de fato jurisdicionava eram os suplentes dos juízes municipais, muito mais dependentes dos políticos locais.
Vale lembrar que os juízes de paz continuavam atuando nos Termos Judiciários com atribuições próprias de sua função. Entre essas atribuições, aquelas pertinentes ao serviço eleitoral, que compreendiam a convocação dos eleitores para votar, a organização e nomeação das mesas e o processo eleitoral em si. Outra consequência da criação dos Termos Judiciários, diz respeito à criação dos tabelionatos. Na criação das vilas eram sempre estabelecidos dois tabelionatos, o Judicial e o de Notas, a este último cabia também o ofício de escrivão de órfãos. Era essa a situação em Araruna até o final do Império, em 1889, com a justiça entregue a juízes municipais suplentes e leigos, conjuntura que só se alterou no final do Século XIX. O advento da República pouco ou nada mudou na justiça de primeira instância e Araruna continuou por vários anos com suplentes de juiz municipal. Na Paraíba, com a promulgação da primeira Constituição Estadual, em 5 de agosto de 1891, Venâncio Neiva cuidou em dar cumprimento ao que nela vinha disposto na parte referente ao Poder Judiciário. Em 30 de setembro daquele ano, era assinado o Decreto nº 69, que deu organização judiciária ao Estado. Por este instrumento legal, estava criadaa Justiça de segunda instância na Paraíba com o surgimento do Tribunal de Apelação, com cinco desembargadores. No âmbito da primeira instância, o mesmo Decreto extinguia os Termos Judiciários e os cargos de juízes municipais. Estas inovações no Judiciário, porém, tiveram vida curta. O golpe de 23 de novembro que afastou o Marechal Deodoro da Fonseca da presidência da República atingiu a Paraíba. Com a posse de Álvaro Lopes Machado foi restabelecida a ordem constitucional e
uma nova Constituição foi promulgada. Em 15 de dezembro de 1892, a Lei nº 8 deu nova organização judiciária ao Estado, restabelecendo os Termos Judiciários e, consequentemente o cargo de Juiz Municipal. A mesma Lei dividia o Estado da Paraíba em doze comarcas, entre elas a comarca de Bananeiras, que compreendia, além do termo da sede, os termos de Araruna e Catolé, inclusive Pedra Lavrada. O Termo de Ararunapermaneceu com suplentes de juiz municipal até 1897, quando o Estado abriu crédito para prover Araruna de um Juiz Municipal letrado. Até a criação da Comarca, em 1940, passaram por Araruna nove juízes municipais.
A CRIAÇÃO DA COMARCA. O Decreto-Lei nº 39, de 10 de abril de 1940, que deu uma nova organização judiciária ao Estado da Paraíba, criou a Comarca de Araruna, de primeira entrância. Com a nova organização, o Estado da Paraíba ficou divido em 41 comarcas, número bem superior em relação às 12 comarcas da primeira organização judiciária do Estado, em 1892. Uma novidade na organização judiciária de 1940 era a extinção do cargo de Juiz Municipal. Outra inovação era de que as nomeações dos juízes de direito seriam feitas dentre candidatos classificados em concurso feitos pelo Tribunal de Apelação. Pela nova Lei, em cada Comarca existiriam três suplentes do referido juiz. Os suplentes poderiam ainda
ser leigos. Nos dias atuais não mais existe a figura do suplente de juiz. A nova Lei determinava que logo que os Juízes de Direito tomassem posse, o Juiz Municipal seria posto em disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço. Em 1966, a Comarca de Araruna foi elevada à categoria de segunda entrância. Na atualidade conta com duas Varas, a primeira com competência privativa de Juizado Especial Misto, Execuções Penais e Tribunal do Júri, cujo titular é a juíza Dra. Clara de Faria Queiroz; e, a segunda, de Registro Público, Família e Infância e Juventude, tem como titular o juiz Dr. Rúsio Lima de Melo, que acumula aquele cargo com o de Diretor do Fórum. g
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PARAIBANOS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
Um tema literário e humano bastante complexo(*) Austregésilo de Athayde Senhor José Lins do Rego, Sois um tema literário e humano bastante complexo, ao contrário do que me dissera o companheiro que comigo se congratulava, por me haver designado o Presidente da Academia Brasileira para saudar-vos nesta cerimônia de recepção. As vossas facilidades são enganosas aparências que se desfazem com a meditação da obra e do homem, assim como sucede com as paisagens distantes, muito simples nas grandes linhas da dimensão fotográfica, porém de perigoso e complicado acesso para os viajantes das montanhas, dos vales, das florestas e dos descampados, que de longe se confundem em lisuras verdes e plácidos caminhos. Há mais de vinte anos que ando convosco, como encantado leitor dos vossos romances e crônicas, revendo nas vossas as terras da minha infância, identificando personagens dos vossos livros com os que encheram os meus verdes anos, porque nós, meninos do Nordeste, nascidos no fim do século passado ou no começo deste, vimos as mesmas coisas, tivemos iguais sofrimentos, preocupações e sonhos. Eu poderia recompor a minha pequena vida no sertão cearense com os fatos da vossa vida e, apenas mudando o nome, muitos dos coroneis, dos padres, dos agregados de engenhos, dos moleques e outras figuras que enchem de tumulto e realidade as vossas páginas estão em minhas memórias. Digo-o em louvor de vossa fidelidade de ficcionista, do poder autêntico da Arte que praticais como nenhum outro daquela estranha região brasileira, ao mesmo tempo tão árida e tão fértil. Esses termos contraditórios, aridez e fertilidade, marcam o Nordeste, traçam a psicologia da gente, explicam fenômenos sociais e políticos, entram no entendimento da fisionomia física e espiritual da terra, onde tudo gira ao redor da chuva e da seca. Criamo-nos, todos, na grande e temerosa expectativa dos favores do céu, interrogando os horizontes se haverá ou não chuva para as abundâncias dos pródigos invernos, com o gado gordo, os roçados
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cheios de milho apendoando e as várzeas cobertas de melancia ou jerimum, ou a terra calcinada pela soalheira, vazia a perder de vista, sem outro verde além dos juazeiros, dos xique-xiques e dos mandacarus que matam a última fome dos animais e dos homens. A grande nota do regionalismo literário nordestino são as duas estiagens que de tempos em tempos se repetem e, às vezes, se prolongam anos seguidos. Então as misérias do povo e do solo inspiram romancistas e poetas. Cangaceiros e beatos também se misturam nesse regionalismo, como figuras obrigatórias da paisagem humana do Nordeste. Cantadores e repentistas têm nos primeiros os grandes assuntos de seus versos e os segundos, pelos milagres que operam, enchem de medo e esperança o coração do povo. Tem que haver seca em romance nordestino, nem faltará nele episódio de cangaço e história de homem santo e podeis ver como tudo é verdade lendo os escritores de mais nomeada, que vêm de Franklin Távora a Graciliano Ramos. A Fome, de Rodolfo Teófilo, D. Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, A Bagaceira, de José Américo de Almeida, O Quinze, de Rachel de Queiroz e Vidas Secas, do mais ilustre romancista alagoano. A seca desencadeia o destino, empobrece os ricos, obriga a emigrar, avilta os pobres, acarreta desonra, põe à prova os caracteres, aguça e deprava os instintos, porque ela traz consigo a fome que é sempre má conselheira. Como motivo sinfônico ou simples melodia acidental, a seca faz parte da literatura nordestina e é natural que assim seja, pois de outra forma o escritor não se identificaria com o meio, ficando estranho à grande e sempre espantosa realidade da vida da região. Vós, porém, Sr. José Lins do Rego, não sois um romancista das angústias da terra e da gente, quando batidas pela avareza das nuvens. As vossas histórias têm outra preferência. Falam dos canaviais, dos engenhos de grandes partidos, de senhores prósperos. Fixais tempos de fartura, banguês, engenhos e usinas trabalhando, para
alegria dos seus donos, as famílias ricas ou decadentes de um mundo social que se formou nas casas-grandes e na bagaceira, com toda a raça de tipos que encontrastes na vossa meninice tão atribulada pelas experiências precoces que se acumularam em vossa mente e das quais tendes extraído a seiva fecunda de tão notável obra literária. Não sois um escritor regionalista, no sentido das limitações que o regionalismo impõe, e já os críticos do vosso primeiro romance observavam a surpreendente universalidade do mundo ressuscitado pela vossa pena. Trabalhastes o Nordeste como Thomas Hardy o seu Condado de Wessex, ou como Thoreau os campos, as montanhas e as águas de sua cidade, os quais fez conhecer e amar por todos os americanos que leram, e como Thoreau podeis afirmar que nada se pode esperar de alguém que não considere a terra em que nasceu como a mais doce do mundo. Nem as sucessivas orfandades, nem as aperturas da asma, nem os contratempos de menino que não teve a devoção permanente e insubstituível dos pais, nada dessas aflições fez de vós um escritor pessimista. Nesse particular honrastes a herança do vosso avô, com o seu temperamento feliz, pouco inclinado às lamúrias e invectivas contra as inconstâncias da natureza. Não sois como aquele velho Sinhô Marinho, do Engenho Maraú, que “chorava mais do que carro de boi carregado”, só faltando soluçar nas queixas contra as lagartas, o açúcar ruim, o gado magro. Nunca fostes como aquele vosso parente “com vidro de aumento para as desgraças”, porque os vossos olhos relegam as miúdas contrariedades, tal como o vigoroso Senhor do Santa Rosa, com os seus óculos de aro de prata, refletindo na cara toda a satisfação do homem feliz. E para a sua felicidade bastava-lhe ver as suas canas acamadas nos partidos, o milho criando corpo, o feijão crescendo e o gado roliço. E se o tempo não corria à feição, e a cana não acamava, o milho não criava corpo, o feijão não crescia e o gado minguava de carne, nem por isso lhe acabava o contentamento, pois logo lhe vinha o consolo da esperança em dias melhores.
Dissestes numa crônica de jornal que o que vale é o tempo morto que víeis bulindo como o corpo de Lázaro na tumba de pedra. Assim oferecestes ao crítico de vossa obra a grande deixa para a mais exata compreensão de vossos enigmas. O tempo que para outros morreu e fica sepulto, para vós nunca se perdeu e jamais andastes à sua procura. Apesar de breve, indo apenas até os doze anos de vossa idade, escorre nele toda a linfa criadora e nunca aqueles dias se apartaram de vossa imaginação. Durante eles convivestes, unha e carne, com os personagens, grandes e pequenos, que povoam os romances que, vós mesmo dissestes, compõem o ciclo da canade-açúcar. As lições modernas da Psicanálise informam quanto poder tem no adolescente e no homem maduro as impressões da infância. Elas enterram-se nas células profundas do inconsciente ou do subconsciente e ficam mandando soberanas no nosso destino. Não são mais os mortos que governam sempre e cada vez mais os vivos; é a criança que sempre e cada vez mais governa o adulto. Muitas das lembranças de vossa meninice deveriam produzir amargura; delas porém logo vos libertastes, pela forma da confissão pública, transferindo-as às páginas de livros, para que dentro de vós nada restasse de incômodas fixações e complexos obscuros. Em cada romance, a matéria inerte das recordações converte-se em formas vivas de realidade e Poesia, e ainda dos episódios mais crus, nos quais a natureza humana parece rebaixar-se às últimas malignidades do instinto, sabeis extrair um certo quê de purificação e ingenuidade, pela força de uma narrativa tão estreme de sentido espúrio que, lendo-vos, é como se ouvíssemos árduas palavras pela boca de quem as pronunciasse com inocência e candura. Pensou-se que após a publicação de
Fogo Morto, com o qual declaráveis encerrada a série das histórias ligadas às casas-grandes, aos engenhos e aos canaviais, estaria exausta a vossa imaginativa, como mina de filão esgotado. Pois não tardastes muito em mostrar a existência de outros veios, jorrando novas e mais vivas lembranças daqueles seis anos passados na casa-grande de vosso poderoso avô. As páginas que denominastes Meus Verdes Anos e que dedicastes a vosso neto José, para que lhe sirvam no futuro como uma lição de vida, aí estão pujantes, aprofundando-se no recôndito da consciência do menino, como os sertanejos cavam no leito dos rios secos fundas cacimbas para encontrar a água fugidia. Fora temerário, ainda agora, acreditar que está tudo dito. Os escritores de vossa qualidade não cessam o fluxo das transmutações do quotidiano em matéria perene, graças ao toque da Poesia que é neles um dom congênito. Proust achava que na transposição do mundo sensível para a realidade artística, o grande escritor devera ditar a sua maneira pessoal de ver as coisas e nunca submeter-se à visão comum. Ouso contrariar semelhante sentença, à luz dos vossos exemplos. A grandeza de vossa obra, que está atingindo a universalidade em traduções sucessivas nas línguas ilustres da terra, vem precisamente da maneira humilde com que nos transmitis das coisas e dos seres apenas a visão comum, o pensamento do pobre povo nordestino, as suas dores, os seus sentimentos, as suas esperanças e as suas ilusões. Não há o menor constrangimento de imposição de formas pessoais, sendo como sois um espelho de cristalino reflexo e jamais um combinador de ingredientes literários, destro no refinamento de impurezas e na destilação de raros perfumes. Assim recende das vossas páginas a eterna Poesia que uma vez definistes como sen-
do “a que se finca na terra e se alimenta de nossa própria carne e de nosso próprio sangue”. Uma Poesia hipostática, marcada pela mais íntima união do verbo com a natureza humana. Não desejava nesta saudação recorrer à Literatura Comparada, mas, por acaso, existia visão pessoal do autor em grandes artistas como Tolstói ou Tchékhov? e cito esses dois russos, porque sempre fui tentado a ver no sentido profundo de vossa obra tão humana algo de Guerra e Paz, de Ana Karenina e da Ressurreição e aquela maneira lenta, quotidiana, com que o grande contista e dramaturgo de O Cerejal narrou a decadência da sociedade russa. Muito ouvi falar a respeito da vossa vida de estudante no Recife, naquela mesma escola onde se formaram os bacharéis que repontam nos vossos romances. Nem sequer sabíeis bem onde eram as salas das aulas e a muitos dos professores só de nome conhecíeis. É melhor que vós mesmo narreis, perante esta assistência que hoje vos glorifica, como foi a vossa vida na Faculdade. O estudante José Lins do Rego era íntimo de todas as agitações da Escola, gritava pelos corredores, cantando em voz alta e desafinada árias de operetas da moda, botava apelidos e se fizera o terror em arruaças de rua e boêmia. Rapaz perdido, o aluno péssimo do Dr. Amazonas, bacharel de 1923, que não entrou no quadro de formatura porque consumiu em cerveja da Rua Santo Amaro as verbas do avô. Esse período descritivo de vossa mocidade turbulenta está num discurso que pretendíeis pronunciar na própria Faculdade de Direito, quando regressastes da Europa e que, por circunstâncias que não mencionastes, ao que parece, não foi nunca pronunciado. Nesse retrato não há nada mais daquele menino asmático, criado junto às saias das tias, com o mimo das negras do
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engenho e que ficava invejando de longe os outros meninos tomarem banho de rio, correrem no lombo dos cavalos em pêlo e pintarem as diabruras perigosas dos garotos do sertão. Esse ano de 1923 marcou caminhos novos de ascensão, conquista e glória em vossa vida. Foi o ano do encontro com Gilberto Freyre, quando, de volta de sua longa viagem aos Estados Unidos e à Inglaterra, onde preparara o espírito para a realização de sua obra científica e literária, o futuro autor de Casa-Grande & Senzala retomava contato com a juventude do seu tempo, no Recife. No prefácio de Região e Tradição vêm singelamente contados os passos dessa amizade que considerais tão fecunda para o vosso destino de escritor. Na verdade, depois do conhecimento com Gilberto Freyre, mudaram-se os rumos do estudante da Faculdade de Direito, ocupado então em escrever crônicas e contos, perdendose também, como não pudera deixar de acontecer na província, nos panfletos da política partidária. Abriram-se os vossos olhos para perceber que o vosso destino era outro. Começou a reconstrução de vossa personalidade, na base do encontro de um mundo até então ignorado e no qual penetrastes, com segurança, pelo braço do companheiro que retornava de Colúmbia e de Oxford, de prestigiosas universidades do outro lado da terra, pronto a realizar a mais completa pesquisa da alma pernambucana e a resolver os problemas da integração brasileira, que não voltara americanizado ou britânico, porém mais intensamente pernambucano e, por isso mesmo, mais vivamente brasileiro.
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Gilberto Freyre foi quem desvendou o vosso amor pela terra que dominava o vosso coração sem que ainda o houvésseis percebido. A nossa vida por esse tempo – está por vós escrito –, foi para mim admirável. Eu me fazia, construía a minha personalidade. Havia nessa época o movimento modernista de São Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse de uma outra geração. O rumor da Semana de Arte Moderna lhe parecia muito de movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha e nem da gritaria dos rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência. Esses ensinamentos tocavam a vossa alma e a casa do Carrapicho, onde Gilberto morava, era “como um refúgio que eu procurava com ansiedade e timidez”, como confessastes. Só por um milagre poderia ser tímido aquele moço cheio de violências e algazarra que acabava de sair da Faculdade de Direito. Comprometemo-nos, querido confrade, a agradar nestes nossos discursos mais ainda pela brevidade do que pela substância e assim não me demorarei em dizer tudo quanto Gilberto Freyre representou no descobrimento de vossas forças interiores, encaminhando-as à vossa verdadeira vocação de testemunhar nos romances dos bangüês, dos engenhos e das usinas de açúcar algumas das matrizes da nacionalidade que o sociólogo, vosso amigo e guia, interpretou como cientista, aparelhado como nenhum outro antes dele dos métodos mais modernos de investigação e análise.
A associação espiritual com Gilberto Freyre nunca se interrompeu. Os dois muito construíram, cada qual em seu terreno, seguindo linhas paralelas, ambos prodigiosamente líricos, animados pela mesma paixão da terra e do homem do Nordeste. Poderia buscar na Literatura de outros povos casos semelhantes de recíprocas e duradouras influências, mas chega fixar-se neste nosso exemplo brasileiro, tão fértil e cheio de beleza, de completa correspondência entre dois grandes espíritos para quem só a vida com as suas leis e sugestões comanda e dirige. No entanto, antes do canudo de bacharel e do rubi flamívomo, já não eram poucos nem pequenos os sinais de que entraríeis, rapidamente, nesse caminho de escritor que vos conduziu aos cimos gloriosos em que hoje achais o repouso: Über allen Gipfeln ist Ruh, como está dito no verso goethiano e é repetido aqui em alemão somente porque na língua original guarda a sua impressionante musicalidade. Quando morreu Lima Barreto, escrevestes em Recife um artigo consagrando o grande romancista de Isaías Caminha e Gonzaga de Sá. Já então se mostrava a vossa rebeldia às formas estratificadas da linguagem gramatical nesta sentença: “Os grandes escritores têm a sua língua; os medíocres a sua gramática.” É certo, meu caro José Lins do Rego, que sois um grande escritor que tem a sua língua e também a sua gramática. Na releitura que fiz de vossa obra, a fim de aparelhar-me para este desafeiçoado estudo, verifiquei com surpresa que não andais muito longe de ser um cultor da nossa língua, e tudo quanto se tem escrito e pro-
clamado a respeito das incorreções gramaticais de vossa prosa corre por conta de exagero, sendo a regra a escorreição, a medida, a obediênda aos cânones da gramática que atribuís apenas aos escritores medíocres. O que acontece e escandaliza é a vossa proximidade do povo, a consanguinidade com o povo, a apuração do sentido literal da linguagem popular, no que tem de mais viva e palpitante. Se, algumas vezes, adotais certos modos de expressão, ou deixais de dar aos pronomes a posição convencional dos chamados bons autores, não o fazeis para desautorar a gramática e sim porque quereis que o organismo vivo siga a evolução da vida e adquira nos trópicos, além da maciez e dos ritmos cantantes, também a liberdade que lhe está comunicando o poder plástico que nunca teve e melhor serve aos impulsos e criações do pensamento brasileiro. Eis um capítulo em que se poderia dissertar longamente, argumentando sem sofisma a vosso favor, para dizer que se esta Academia tem entre as suas finalidades mais instantes defender o nosso belo idioma, aqui estais muito bem, pois que em vossas páginas é falada a língua verdadeira, a que traduz melhor aquilo que realmente quereis dizer e não a língua dos sábios e dos puristas, com rebuscados parnasianismos, e léxico obsoleto. Se nos cumpre guardar a amada língua portuguesa, seria arriscar-nos a vê-la desaparecer depressa, admitir que nos livros seja uma coisa e na voz do povo outra, pois não é nas formas eruditas que o idioma se mantém vivo e sim pela criação incessante da alma popular. E tanto é esse o pensamento desta Academia, que no seu vocabulário figuram os brasileirismos na mesma digna posição de membros da família, e ainda mais que a grande revolução literária que se operou no Brasil com o advento do Modernismo, hoje consagrado pela presença dos seus mais gloriosos chefes nesta Casa, foi nas formas da linguagem que se tornou mais evidente, e todos nós escrevemos hoje com uma liberdade que nem imaginavam os mestres que aqui nos reuniram e são os deuses de nosso culto. E os de ontem e os de agora conservam-se, igualmente, fiéis à missão da Academia de guardar a língua nos valores substanciais de sua vida, sem impedir que evolua e assim se mantenha viva. Falando, certa vez, das literaturas, dissestes alguma coisa que deve se referir especialmente à língua: “As literaturas que querem sobreviver terão que ligar-se à terra. Terão que adotar as invenções e descobertas do irmão povo, se não se transformarão em pobres damas enfermiças, com
medo do sol, da chuva e da vida.” E noutra ocasião, completando este comentário, afirmastes sem nenhuma cerimônia: “Os puristas que vão àquelas batatas do personagem de Machado de Assis.” Sucede apenas que as batatas eram para o vencedor e não parece, meu caro confrade, que os puristas estejam vencendo na batalha de que sois tão valente soldado. Não pertenceis, evidentemente, a qualquer escola literária, no rigor das classificações, a meu ver um tanto arbitrárias, e não é acertado sobretudo pregar em vossos livros a etiqueta do Modernismo. Começastes a escrever romances quando a famosa e bulhenta escola havia transposto a fase de exacerbação, mas não vi o mais ligeiro traço que possa identificarvos como epígono da tumultuosa corrente. Creio que se não tivesse havido a Semana de Arte Moderna de São Paulo e tudo quanto se seguiu em Literatura e artes plásticas, haveríeis de escrever do mesmo jeito, com a mesma linguagem e os mesmos assuntos, na pura e simples maneira de expressão do Nordeste. Jamais observei em vossa técnica de romancista ou em vosso estilo, tão próprio como deve ser em sua correntia facilidade, pois como já li em Cocteau tout effort visible manque de style, jamais observei, repito, qualquer intenção de ser modernista, como propósito e escolha, à moda de tantos outros que foram modernistas somente para não ficar do lado de fora na procissão do dia e por falta de coragem para sustentar as suas convicções estéticas. Não há em vossos livros deformações, nem distorção da realidade, nem recursos artificiosos e menos ainda intento de escandalizar pelo uso de rudes termos, quando não sejam necessários, para caracterizar cenas, atitudes e temperamentos em suas genuínas manifestações. Dizeis as coisas como são, os fatos como se passaram, as pessoas como eram, com toda a naturalidade, sem prévia arrumação e menos ainda para que do entrecho possa sair o comprovamento de teses sociológicas ou de outra espécie. Os acontecimentos concatenam-se por si mesmos, presos no fio de sua intercadência, porque não foram inventados. Como nada inventastes, exceto a arte de dispor esse material, as figuras humanas, os seus pobres e falhos destinos, a vida do Nordeste no momento das fixações em vosso espírito, por um método que não é de embalsamamento, mas de pura e bela ressurreição. O menino José Lins do Rego, neto do Coronel José Paulino, poderoso senhor de engenho, nunca se ausentou do homem,
do jornalista, do escritor de romances, do pensador que também o sois e do soldado da liberdade, pois na luta pela liberdade vos encontrei sempre, constante e destemido, na dura fase da evolução social e política que estamos vivendo. As vossas maneiras estabanadas, a vaguidade de vossas conversas, os vossos solilóquios, interjeições e gritos de espanto, o hábito das andanças matinais e do estacionamento nas portas das livrarias, as vossas telefonadas fora de horas aos amigos e os vossos conhecidos e impressionantes mutismos e apreensões, isto de chegar e sair sem falar com os presentes, inteiramente alheado aos mandos do bomtom, o medo das doenças súbitas apesar da solidez vigorosa do vosso esplêndido organismo, tudo isso que dá a vossa marca personalíssima é nada menos do que a permanência da criança sertaneja no adulto perdido das capitais. Não tendes refolhos nem complicações problemáticas; os vossos personagens são lineares, unidimensionais, aparecem e somem como se corressem nas linhas de um trilho por uma planície. Exatamente como é a vida, quando não se metem os homens a interpretá-la: simples sucessão de fatos na rotina dos dias. Vistes, quando menino, a decadência de uma sociedade rural, a meia aristocracia dos senhores de engenho acabando, o fim do feudalismo nordestino vencido pela máquina com os cangaceiros que eram os seus cavalheiros andantes e os beatos, místicos da superstição, que é também um dos fios vitais das gerações. Tudo isso se agarrou em vosso espírito para fecundá-lo, e, chegada a hora do amadurecimento do escritor, transformastes as reminiscências em formas vivas. A vossa força de romancista está no soberbo poder da narração. Nada é de pano, de madeira, de borracha ou de matéria plástica nas multidões dos vossos romances. Senhores de engenho, avós, tias e primas, moleques, vaqueiros, negrinhas libidinosas, santos e bandidos, todos são de sangue e carne, têm músculos e ossos. Tudo vive no triunfo ou na mesquinhez, no orgulho ou na humilhação, na violência ou na serena bondade. Ninguém é como os personagens de Dickens, arbitrariamente escolhido para ser sempre mau ou para ser sempre bom. Contastes a vossa própria história de menino de engenho, de aluno de internato, cercado pela sarabanda do poviléu que representava a contingência humana na linha de um destino atormentado, desde muito cedo, pelas fraquezas do instinto, em seus mais rudes pendores. Janeiro/Fevereiro/2017 |
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Há quem se revolte com a áspera maneira pela qual contais as mais feias histórias de uma infância precocemente cosida pelo sofrimento e aguilhoada pelas revelações de uma exacerbada sexualidade. Assim é por não ter podido ser de outra maneira. Tal se mostrou a vossa natureza em sua força propulsora para a criação artística. De algo vos gabais com razão: da vossa teimosa fidelidade a vós mesmo. Certa vez dissestes: Nada me arreda de ligar a Arte à realidade e de arrancar das entranhas da terra a seiva dos meus romances e de minhas idéias. Gosto que me chamem de telúrico e muito me alegra que descubram em todas as minhas atividades literárias forças que dizem do puro instinto. Será destas fontes do instinto donde emanam as minhas únicas alegrias criadoras. E como criastes! É certo que nada tirastes do Nada e sim da vida, pois que toda verdadeira vida vem de outra vida e o próprio sopro divino na argila pressupunha uma criação anterior. Escrever é para vós uma necessidade incoercível e só escreveis porque, como queria Rainer Maria Rilke, tínheis de obedecer às forças indomináveis da vossa natureza. Quando vos chega essa espécie de crise, nada vos detém. As laudas seguemse às laudas, umas emendadas nas outras como rolos do papiro antigo, mostrando a continuidade vital do enredo, e se parais, noite alta, nesse labor, é para chamar pelo fio algum amigo que julgais de vigília, esperando as vossas ordens e comunicarlhe, como honrosa primícia, as peripécias em que se envolvem os duendes que restabeleceis na condição da vida. E invectivais o velho Zé Amaro, por
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haver batido na filha enferma: “Isso não é direito, seu Condé !” E cobris de elogios o Vitorino Papa-Rabo com a sua tabica vingadora. “É no duro, sabe? Papa-Rabo é homem até debaixo d’água.” Tudo entremeado de gargalhadas, de insultos, de nomes feios, vibrando o fio no silêncio da cidade deitada no sono. Esse tumulto de vida é implacável no vosso espírito. São manifestações insopitáveis, e se vos metesseis a contê-las, correríeis o risco de um ataque de apoplexia. Não é de vosso temperamento fecharse, porque a vossa natureza está voltada para a vida e só se exprime e realiza em termos de ação e de vida. Por isso amais as praças de esporte, acompanhais os grandes alaridos do triunfo do vosso clube, somais os vossos gritos e impropérios aos gritos das multidões decepcionadas, quando as suas cores não se impõem ao adversário. Tendes em pouco apreço as rodas literárias, as confidências intelectuais, o preciosismo das conversas de gabinetes e de salão. Quereis ar livre, clamor, e frêmito. Ides ao povo para sentir o que ele está pensando e querendo. Diariamente transmitis na imprensa, em jornal da manhã e em jornal da tarde, as histórias recolhidas nas conversas de lotação, nos ônibus e nos trens, os comentários da sabedoria popular, as notações da cidade viva. Construístes com os vossos romances do ciclo da cana-de-açúcar um monumento a uma era já quase extinta e em vossas crônicas guardais as palpitações do nosso estranho mundo, nas formas mais agudas do seu realismo angustioso. Fogo Morto é uma epopéia, à moda do
Cervantes, e Cangaceiros outra. O Moleque Ricardo contém no fecho três páginas que ninguém poderá esquecer pela sua grandiosidade à Dostoievski, quando o mestre Lucas pergunta, em seu desolamento, na dança sagrada do terreiro, o que fizeram os negros mandados para Fernando Noronha. “Que fizeram eles? Que fizeram eles? Ninguém sabe não.” Esse refrão repetido como o batuque no coro dos atabaques tem inflexões que descem na alma com uma ressonância fúnebre que não sai da memória. A extrema tristeza do povo humilde diante das injustiças inelutáveis. Querem as tradições que este discurso seja leve e aqui e ali assuma certo ar de apadrinhamento do veterano ao calouro que se aproxima, mal-ajeitado no fardão, e tímido diante do corpo de veneráveis doutos da Academia. Pelas vossas palavras, vi que vos assentastes na Cadeira 25 com a bonomia, segurança e senso de posse absoluta de quem não tivesse feito outra coisa na vida. Isso está certo. A Cadeira era vossa, vossa de pleno direito, visto que sois um dos maiores escritores brasileiros e esta Casa é dos escritores de sangue e alma como vós, Sr. José Lins do Rego. Em determinada hora de vossa existência, resolvestes-vos a percorrer terras estrangeiras, varando ares e mares para a aventura das viagens. Desde as ribas mediterrâneas até os fjords vizinhos do círculo polar, vistes as grandes coisas do mundo, vivestes nas terras de mais apurada civilização e de tudo destes conta em crônicas diárias, sem a monotonia da repetição dos viajantes da Cook, com esta vossa maneira particular de sentir grandezas e misérias, e narrá-las, singelamente, para encanto dos outros homens.
Enfiastes as botas de sete léguas para ir mais depressa e mais longe, em tudo pondo esses vossos olhos alvissareiros, de modo a nada perder das paisagens e dos seres, conferindo a profusão de vossas reminiscências de leitura; mas por todos os lugares, fosse Paris ou Florença, Madri ou Estocolmo, nunca vos apartastes de vós mesmos, em nenhum momento vos tentou a idéia de parecer francês, britânico, italiano ou patrício de Hamlet. Em tudo percebestes coisas de apreciar e amar, nas evocações dos tempos antigos, ao lado das ruínas da Grécia e de Roma, mas tais coisas não afetavam a alma do nordestino, para quem Homero com os heróis ilustres que cantou não vale muito mais do que os cantadores de nênias nas portas das igrejas da Paraíba, pelo menos na força da inspiração poética. É bom beber vinhos famosos, contemplar correntes de água, a cujas margens a História se cansou de deixar as suas pegas; parar defronte da fachada das catedrais góticas em Paris, Chartres ou Colônia; admirar quadros, estátuas em museus de renome, extasiar-se diante de panoramas ricos em sugestões milenares. Nada disso porém mudou um átimo na alma do bom e grande José do Rego, com o qual ninguém pode, como ele mesmo costuma dizer e que, de retorno, era o mesmo despachado madurão de quem ouvi, certa feita, uma senhora comentar: “Não tem cara de escritor”; e eu lhe respondi: “A senhora diz isso, porque nunca viu Hemmingway.” Nem todos podem nascer com a cara de Byron. Ajuntando em livro as crônicas das andanças européias, acrescentastes-lhes As Nordestinas, ou sejam páginas com as quais quisestes equilibrar os entusiasmos da outra banda do mundo com as ternuras de vossa própria terra, pois outras terras podem ter maiores encantos, nenhuma, porém, como a várzea do Paraíba “no seu esplendor de Natureza”, a qual vos acudia à memória, quando navegáveis o Loire, “o rio dos vinhos que são bebidas dos deuses na primavera dos castelos de França”. Assim foi por todo canto e mesmo nessa Grécia que andastes palmilhando por último, e aqui daria tudo por saber das vossas reflexões diante da Acrópole, na qual muito longe da famosa oração renaniana, havereis, quem sabe, pensado nas matas do Itapuá, quando “a manhã de sol de inverno se alegra no colorido das flores que desabrocham nas capoeiras festivas”. Porque estamos certos, vós e eu, confrade ilustre, que não há nem nunca houve motivos mais suaves para églogas e bucólicas, ou ainda para anacreônticas e teocrí-
ticas, do que a mansuetude das campinas do Nordeste quando, no fim das tardes de inverno, as sombras sobem ao sopro das frescas virações atlânticas e o gado lerdo de gordura deixa o pasto em busca dos currais, tangido pelo longo aboio dos vaqueiros. São paisagens e momentos imorredouros na lembrança de quem uma vez os viu e sentiu, e em vossos livros os reviveis como ninguém, com esse poder pictórico que a vossa pena adquire quando traça aqueles quadros. Já mestre João Ribeiro, que logo revelou sensibilidade especial para a vossa Arte, falara duas vezes em pintura ao dar notícia alvissareira do Menino de Engenho. Falou de “pintura magistral e verdadeira”, referindo-se às descrições de vossas espantosas precocidades e depois sentenciou:“A pintura da enchente do rio é uma das mais belas que temos tido, assim como a do lobisomem, superstição vulgar em todo o Brasil.” Panorarnas de cheias e secas, manhãs e crepúsculos, ambientes da vida rural, serões de famílias, velórios e enterros pobres, a marcha do gado nas estradas, os aspectos das roças, a beleza dos canaviais no esplendor da safra, a fisionomia humana nas fainas dos engenhos, tudo isso sai literalmente pintado em vossas páginas e com tal força e genuína profundidade que se pode dizer de vós o que um crítico disse de Thomas Hardy: Possuís a redolência do solo. Encontrareis nesta nova casa-grande que vos acolhe, com tanta alegria, variados motivos de satisfação. Dizem de nós muita coisa falsa e geralmente escondem as boas razões que nos justificam. A Academia não é uma escola de aperfeiçoamento de escritores. É antes um regaço tranqüilo para aqueles que, nas labutas da pena, deram os melhores frutos. Aqui é um lugar de onde contemplamos a obra realizada, recebendo na imortalidade os precários galardões da fama e da glória. Dissestes em um dos vossos escritos que amais a convivência dos velhos; pois tendes agora uma luzida companhia de homens maiores de cinqüenta e, se alguns poucos se acham ainda abaixo dessa cota, asseguro-vos que neles se revelou mais cedo aquele espírito de aceitação, conformidade e placidez que caracteriza a velhice sensata. Aqui e ali, nos tempos das vossas rebeldias de rapaz, quando é muito o sangue nas guelras, fostes incomplacente com as academias e os acadêmicos, e até fizestes uma jura que a vida se encarregou de desmentir. Jura falaz, como as juras de amor. Essa culpa contra a lúcida matrona,
cujos favores se distribuem por igual a todas as escolas, a todas as tendências e a todos os temperamentos, com a condição apenas de que possuam a credencial das boas Letras, todos a tivemos em nossa história de escritores. É até bom chegarse aqui com um pouco de cinza na cabeça e envergando este fardão vistoso como se fosse também um burel de penitente. Os que menos prezavam a Academia, quando se inscrevem no estreito rol dos quarenta, costumam ser os que mais a amam e se comprazem em nossas serenas tertúlias, nas quais se cultiva a amabilidade, o sorriso, a cortesia, antecipando-se um pouco as vantagens da bem-aventurança. Todos somos, uns para os outros, mestres e amigos, e, às quintas-feiras, não é pequena a volúpia com que mutuamente nos distribuímos cálidos elogios, cada qual mais empenhado em observar as boas cores, o ar de saúde e a teimosa mocidade do companheiro, carregando nos adjetivos amoráveis com que nos forramos aqui de ilusões para enfrentar as cruezas dos restantes seis dias da semana. Somos assim mais do que uma companhia amável: somos urna família cujos membros cultivam a cordialidade como a sua virtude mais esmerada. Estou certo de que o homem vigoroso e rude, criado no massapé paraibano, tão representativo da terra e do povo do Nordeste, estimará em seus confrades as polidas maneiras, as atitudes mansas, as palavras medidas, o jeito precavido para não melindrar as susceptibilidades que entre imortais se encontram bem à flor da pele. Isso não significa que não tenhamos malícia, que a ironia não pertença aos anais da Casa, que não se cruzem floretes nos debates e que as naturezas não guardem os espinhos que trouxeram do berço. Tudo, porém, nos choques mais renhidos, se passará de forma estilizada, entre veludos, cristais e rendas finas, cada um com a sua caçoleta de perfumes, de modo que o ambiente quando mais se encrespe seja tão suavemente como a brisa, ao balançar, com leveza, as pétalas do jardim. Muito tendes escrito e confessado aos íntimos a respeito dos terrores pânicos que a morte vos infunde. Ela vos parece uma grande injustiça. Assim também era Tolstói. Nada quereis com a Deusa Silenciosa e menos ainda com aquele undiscovered country para o qual marchamos, com passo inexorável, cada segundo de nossa curta vida. Assim somos todos feitos, nesse movimento de incessante rebeldia à transformação da matéria que é a suprema lei e a mais visível da natureza. Para iludi-la criaram-se muitas fáJaneiro/Fevereiro/2017 |
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bulas e compuseram-se as esperanças de que o fim será apenas um instante de trânsito do doloroso efêmero para a felicidade eterna. As academias pertencem ao gênero desses recursos contra a ideia de que tudo desaparecerá e dão-nos o consolo de que teremos a sobrevivência, na mais longínqua lembrança da posteridade. Os livros bastariam para garantir-vos a perenidade de vossa presença na Literatura Brasileira, mas assentado nesta Poltrona que a ilustre Companhia vos destinou, ciente da grandeza dos vossos títulos, podereis contar com a imortalidade. Esta não é uma Casa que os séculos abalem, que os regimes políticos destruam, que possa perecer no conflito das paixões ensandecidas. Tão fortes são os seus alicerces que se houver, entre as surpresas do mundo, comoções capazes de abismá-los, tudo não passará de mero delíquio; logo virão outros belos espíritos reconstruí-los, reunindo os destroços em novo e mais sólido monumento. E logo também se reatará o diálogo que mantemos com os antepassados, para a reverência do culto que lhes é devido. Quando vencido o segundo milênio desta nossa era já houverdes resignadamente compreendido que é bom descansar para além dos páramos, muito mais idoso ainda do que o varão a quem substituís, os que vierem para esta vossa Cadeira celebrarão o vosso nome, pelos tempos dos tempos, como agora o fazemos com Jun-
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queira Freire, Flanklin Dória, Artur Orlando e Ataulfo de Paiva. Esta nossa Companhia regala-se nas comemorações e nada lhe é mais caro do que os ritos da solene recordação. O último a ocupar esta Poltrona 25, prezado confrade, com a pecha de intruso em cenáculos a que pertenceu sem diplomas suficientes, foi um leal servidor desta Casa e todos aqui queremos dar depoimento de seus préstimos. O que lhe faltou em títulos literários quis sempre suprir em devoção aos interesses da Companhia, fazendo o papel das abelhas que não participam dos vôos nupciais na primavera, que nunca enfrentam a glória das alturas ensolaradas, mas realizam o trabalho indispensável da colméia - nisso ele foi incansável. Confessamos a saudade que nos deixou e queremos honrar a memória de Ataulfo de Paiva nesta noite, que também a ele é dedicada, a este companheiro assíduo, incrivelmente veraz e fidedigno, espécie de irmão leigo da Ordem, que só deixou de freqüentar-nos quando vencido pela moléstia nos cimos dos seus noventa janeiros, e que, estou certo, dirigiu o seu derradeiro pensamento a esta Casa que lhe velou o sono final, entre as pompas que tanto amava e na desolação dos seus confrades que se não o tiveram como mestre, viram sempre nele um amigo indefectível. Sr. José Lins do Rego: trazeis ainda nas alparcatas de viajante a poeira da mais
famosa colina que os vossos olhos tanto contemplaram, nessa nova sedução de vosso espírito pela Grécia, que retardou de alguns meses a alegria da investidura desta noite. Sabeis, assim, que tudo passa, menos a Beleza, ainda mais duradoura do que a verdade. A erosão dos séculos, o ataque cego dos bárbaros, a displicência e o desencanto das gerações nada lograram contra a serenidade dos pórticos e das colunas dos templos em que se adoravam os deuses humanizados. Na variedade das raças e dos climas, na ruptura aparente dos mundos permanece sobranceiro o mesmo sonho de imortalidade que animou o pincel, o escopro e a palavra, o sonho dos ginásios, das academias, dos teatros e dos filósofos. O sonho sempre evanescente e sempre renovado de fixar a formosura do momento que passa. Fixá-lo na pedra, no bronze, na tela e na mais duradoura de todas as matérias, o sopro da palavra, na prosa e no verso. Entrai nesta nova Casa-Grande que doravante será para todo o sempre vossa. Aqui vivereis cercado da carinhosa assistência e da sincera admiração de 39 companheiros empenhados em prolongar as graças da vida sob a égide de Machado de Assis, o maior de quantos sonharam dentro dos umbrais da Academia. Discurso de recepção ao Acadêmico José Lins do Rego, na sessão festiva de 15 de dezembro de 1956.
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RELAÇÕES INTERNACIONAIS PARAIBANO É DESTAQUE EM MISSÕES NO EXTERIOR Equipe GENIUS O Procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba, Marcílio Toscano Franca Filho, integrará por dois anos – até 17 de dezembro de 2018, o Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL, o foro responsável por dirimir litígios e solucionar controvérsias entre os países membros do bloco – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Portador de respeitável currículo acadêmico, que inclui Pós-Doutorado na Itália e cursos em diversas universidades europeias, o professor Marcílio Franca exercerá suas funções, na condição de juiz suplente da Corte, ao lado, também, da Profa. Dra. Nádia de Araújo, a outra personalidade jurídica brasileira nomeada para o Tribunal, como titular. O procurador disse ter recebido a designação com “enorme alegria”, mas, ao mesmo tempo, “consciente da grande responsabilidade que é servir ao MERCOSUL e ao Brasil nesse posto”. Comentou ainda que sua expectativa é “honrar nossas melhores tradições, tendo como modelo e inspiração a conduta séria e competente do paraibano Epitácio Pessoa”, que, como se sabe, integrou a Comissão Internacional de Jurisconsultos Americanos; foi comissionado pelo Barão do Rio Branco para elaborar um Código de Direito Internacional Público; representou o Brasil na Conferência de Versalhes e integrou a Corte Permanente de Justiça Internacional. Quando foi criado, em 26 de março de 1991 – a partir da assinatura do Tratado de Assunção -, o MERCOSUL previa apenas, para solução de controvérsias, um sistema simplificado, caracterizado, basicamente, por negociações intergovernamentais diretas. Posteriormente, as nações evoluíram para o compromisso de um sistema definitivo. Fruto do ‘Protocolo de Olivos’, assinado em 18 de fevereiro de 2002, o Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL começou a funcionar quase dois anos depois – em 13 de agosto de 2004 -, já como um órgão jurisdicional destinado a garantir a correta interpretação, aplicação e cumprimento dos
Internacionalista Marcílio Toscano Franca Filho
instrumentos fundamentais do processo de integração dos países membros. Como tribunal de 2ª. instância, a corte tem competência para modificar laudos arbitrais de uma instância inferior ou tribunal ad hoc. É para esse foro de debates e decisões que o professor Marcílio Franca levará sua experiência jurídica internacional e seus conhecimentos acadêmicos de mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, Doutor pela Universidade de Coimbra (Portugal) e Pós-Doutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (Florença). Marcílio foi ainda aluno da Universidade Livre de Berlim (Alemanha), de estagiário-visitante do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (Luxemburgo), além de consultor jurídico (Legal Advisor) da Missão da ONU em Timor-Leste (Unotil) e do Banco Mundial (PFMCBP/Timor). Atualmente, além de Procurador, ele é Professor da Universidade Federal da Para-
íba e Presidente do Ramo Brasileiro da International Law Association (ILA Brasil). É membro da Associação Internacional de Direito Constitucional (IACL), da Sociedade Internacional de Direito Público (ICONS), do Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional (IHLADI) e da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Como se não bastassem a relevância de sua participação no Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL e sua participação, como conferencista, em diferentes encontros jurídicos e de relações internacionais, no Brasil e na Europa, cabe assinalar que o Procurador Marcílio Franca foi um dos dezenove especialistas em Direito Internacional, que elaboraram os termos uma declaração de celebração da paz mundial, diálogo entre as religiões e fim das guerras, durante uma conferência mundial promovida pelo World Alliance of Religions Peace Summit, realizado em Seoul, na Coréia do Sul. Janeiro/Fevereiro/2017 |
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O direito ao grafite (Continuação da página 2)
Mesmo não havendo muitos litígios sobre o direito ao grafite no Brasil, há sobre ele consistente proteção extraída da Constituição Federal, que destaca a necessidade de tutelar os valores cotidianos da cidade, a liberdade de manifestação artística, a participação dos cidadãos na vida cultural urbana, além de considerar como patrimônio cultural brasileiro os espaços destinados às manifestações artístico-culturais (artigos 182, 215, 216 e 225). E mais: tanto o “direito à paisagem” como o “direito à integridade da obra de arte”, ambos previstos em nossa legislação, também constituem fundamentos para a proteção do grafite, dos grafiteiros e dos cidadãos urbanos. Grafite é um bem cultural vocacionado à fruição coletiva e sua proteção encontra respaldo no próprio direito, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de todo homem participar livremente da vida cultural da comunidade e de fruir as artes. Esse direito cultural ao grafite contém dupla dimensão: o direito de grafitar e o direito de apreciar e fruir os grafites, implicando ambos no dever estatal de promoção da cultura e de oferta de políticas e serviços que garantam a fruição dos direitos culturais. E se a omissão nessa oferta é uma deficiência que precisa ser corrigida cotidianamente, a atuação do Estado “estético”, que opta por destruir obras de arte nos espaços públicos, é uma disfunção que precisa ser rechaçada. O argumento de que o grafite, por ser
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uma arte efêmera, pode e deve desaparecer, devendo ser “conservado” apenas por fotos e por imagens de cinema, não se sustenta. A arte começou nas paredes das cavernas e foi preciso proteger e conservar aquelas manifestações rupestres para melhor compreender a própria humanidade. Não parece legítimo privar as futuras gerações dos belos murais de Kobra, Nunca, Nina Pandolfo ou Os Gêmeos tanto quanto não seria justo privá-las da estátua que Alfredo Ceschiatti esculpiu de José Bonifácio de Andrada e Silva, localizada na Praça do Patriarca, no centro de São Paulo. E o que dizer da fachada de 55m de altura que, em 1984, Tomie Ohtake transformou em um enorme e colorido painel abstrato, na lateral do edifício Santa Mônica, na rua Xavier de Toledo? Não pode haver hierarquia entre essas manifestações artísticas. Há quem defenda substituir os grafites paulistanos por jardins verticais. Esses jardins são lindos, de fato! Mas a questão contemporânea da urbanidade comporta sempre mais de uma resposta e se o intuito é a humanização do cinza paulistano, uma das respostas possíveis passa também pela frase do sagaz geógrafo e urbanista alemão Karl Ganser: “Die Kunst ist der nächste Nachbar der Wildnis”! “A arte é o vizinho mais próximo da natureza” – diz num grande letreiro na entrada do Natur-Park Schöneberger Südgelände, em Berlim. O ideal seria aprendermos com os
tristes episódios de “guerra ao grafite”. Em 2007, por exemplo, um painel do britânico Banksy que parodiava uma cena de “Pulp Fiction”, de Tarantino, localizado ao lado da estação de Old Street, em Londres, foi apagado por funcionários do metrô, sob o argumento de que a pintura conferia uma atmosfera degradante ao local. Em 2014, na cidade inglesa de Clacton-o-Sea, um outro grafite de Banksy, com um grupo de pombos cinzentos com cartazes anti-imigração diante de um pássaro bonito e exótico, também foi apagado, desta vez por ser considerado racista. Também em 2014, um grafite de autoria de Francisco Rodrigues, o Nunca, na Av. 23 de Maio, já havia sido apagado pela prefeitura. No ano anterior, 2013, um mural da dupla Os Gêmeos nas imediações da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi apagado pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana. São Paulo tem uma vocação criativa, e uma boa maneira de valorizar esse perfil de inovação da cidade – justamente no ano em que são comemorados os 95 anos da Semana de Arte Moderna de 1922 – é prestigiar a sua singular indústria cultural, da qual o grafite faz parte ao lado da gastronomia, da literatura, do cinema, da música, do design, da moda... Ignorar a importância social, artística, econômica, turística, antropológica e urbanística que os grafites possuem é um erro grave. Em tempos de Cidade Linda, quanto antes acontecer o repúdio ao Estado censor ou “estético”, menor o prejuízo para a cidade – um território que é tela, museu, galeria, academia, escola de arte e atração turística para todos os que nela transitam. g
MEMÓRIA MIGUEL SÁTYRO E SOUSA (1867-1934) Flávio Sátiro Fernandes
Esboço de um capítulo do livro em preparo Ernani Sátiro – Uma biografia. Quem se dispuser a escrever sobre Ernani Sátiro, sua vida e sua obra, como estou a fazer, não pode deixar de rabiscar algumas linhas a respeito de seu genitor, Miguel Sátiro e Sousa, o Major ou Coronel Miguel Sátiro, como era conhecido em sua região. Major era o tratamento usado pelos mais próximos, um tratamento mais coloquial. Coronel era o tratamento dado por aqueles mais afastados, que levavam em conta ter, efetivamente, aquele líder a patente de Coronel da Guarda Nacional, conforme documento oficial expedido pela autoridade competente, existente e exposto na Fundação Ernani Sátyro, em Patos. Miguel Sátiro e Sousa, o segundo desse nome, nascido, acidentalmente, em 1867, no lugar Paulista, Município de Pombal, aonde sua mãe fora em visita a familiares ali residentes, era filho de Sizenando Sátiro e Sousa e Cândida Sátiro e Sousa. Foi ele, durante trinta anos, Chefe Político em Patos, tendo assumido essa posição em 1904, por designação do Presidente Álvaro Machado, permanecendo como tal até 1934, ano de seu falecimento, quando Ernani Sátiro o substituiu. Sua influência sócio-política era tanta que sua cidade passou a ser apelidada de “Patos do Major Miguel” ou, mais carinhosamente, “Patinhos do Major Miguel”. Foi um autodidata. Estudou sozinho. Dotado de grande inteligência, não tinha sequer o curso primário completo, mas era um autodidata. Tinha seus livros de direito e de literatura e tinha uma grande vocação jurídica
Inauguração da Praça Miguel Sátyro, em Patos, construída pela Prefeitura Municipal, nas comemorações do centenário de nascimento do antigo Chefe Político, no momento em que falava o Governador João Agripino Filho.
e uma grande vocação política. Em 1922, quando Artur Bernardes foi candidato a presidente da República, passou uma procuração para Miguel Sátyro, por orientação, certamente de Solon de Lucena, para que fosse um dos seus procuradores para as eleições que então se realizavam.1 Embora não fosse um latinista, tinha algumas tinturas de latim, conhecia alguns brocardos jurídicos latinos, o suficiente para fazer fita e uso nas defesas perante o Tribunal do Júri, como disse Ernani Sátiro2. Miguel Sátiro jamais foi Prefeito de Patos, mas era, como Chefe Político, quem indica-
va e mantinha no poder os Prefeitos que governaram a cidade durante todo aquele período, escolhidos entre pessoas do seu círculo de amizade e parentesco. Assim, governaram Patos, por aquela época, Sizenando Flórido de Sousa3, seu irmão (1904-1907); Sebastião Ferreira da Nóbrega4, cunhado (1907-1913); José Peregrino de Araújo Filho5, médico, concunhado de Miguel Sátiro (1913-1929); Firmino Ayres Leite6, enteado (1929-1930); Clóvis Sátiro e Sousa7, filho de Miguel Sátiro (1930-1931). Não sendo Prefeito de Patos, Miguel Sátyro foi, contudo, Deputado Estadual, cargo
Ernani Sátiro, Depoimento ao CPDOC. Idem, ib. 3 Sizenando Flórido de Sousa, além de Prefeito, foi membro e Presidente do Conselho Municipal, no início do Século XX, Professor primário, Tabelião Público. Casado em primeiras núpcias com Dinamérica Wanderley de Sousa, era irmão de Miguel Sátiro, pai de Dinamérico Wanderley de Sousa, Stoessel Wanderley de Sousa, Salvan Wanderley de Sousa, além de Judite e Kerma Wanderley. Casado, em segundas núpcias com Mariana Nóbrega de Sousa, foi pai de Maria da Conceição Nóbrega, casada com Bossuet Wanderley da Nóbrega. Além de Prefeito, foi membro e Presidente do Conselho Municipal, no início do Século XX, Professor primário, Tabelião Público. 4 Sebastião Ferreira da Nóbrega, também conhecido como Sebastiãozinho do Farias, numa referência ao sítio onde morava, era casado com uma irmã de Miguel Sátiro. 5 José Peregrino de Araújo Filho, concunhado de Miguel Sátiro, era casado com Maria Firmino de Araújo (Marica), irmã de D. Capitulina Ayres Sátiro e Sousa, esposa de Miguel Sátiro. Foram os pais de Severino Ayres de Araújo, médico; Hiram Ayres de Araújo, médico, radicado no Rio de Janeiro; Walter Ayres de Araújo, odontólogo; Osman Ayres de Araújo, médico; Firmino Ayres de Araújo, Brigadeiro da Aeronáutica, e, após reformado, Secretário de Segurança Pública do Estado da Paraíba, no Governo João Agripino. 6 Firmino Ayres Leite, enteado de Miguel Sátiro, filho de D. Capitulina e seu primeiro marido, o juiz Inocêncio Leite, era médico. Além de Prefeito de Patos foi Prefeito do Piancó, Município vizinho, de extensa área territorial. Foi durante muito tempo médico do acampamento do DNOCS, em Curemas. Escritor, era um exímio sonetista, produzindo peças de refinado lavor. 7 Clóvis Sátiro e Sousa, filho de Miguel Sátiro, advogado, dedicou-se mais à atividade agropecuária e acompanhou Ernani Sátiro em sua caminhada política, tendo sido Prefeito de Patos por cinco vezes. 1 2
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que exerceu durante três legislaturas, integrando na Assembleia Legislativa diferentes comissões permanentes. Miguel Sátiro era, também, servidor público estadual, exercendo o cargo de Administrador da Mesa de Rendas local, importante função da estrutura fiscal da administração estadual. O Presidente João Pessoa, pondo em prática seu louvável plano de reformulação administrativa, inclusive não mais permitindo que os chefes políticos acumulassem esta função com outra de relevância no aparelho estatal, como era a de administrador de Mesa de Rendas e tendo em vista, ainda, a impossibilidade de derrubar tais servidores, simplesmente, transferiu Miguel Sátiro da chefia daquela repartição em Patos para igual posto em Santa Rita. Miguel Sátiro não aceitou transferir-se para Santa Rita. Como já tinha tempo de serviço suficiente para aposentar-se, assim o fez. O ato presidencial, sem dúvida, desagradou o líder patoense e contrariou-o sobremodo, notadamente, por ter sido lavrado sem consulta ou, pelo menos, comunicação prévia ao interessado. Pouco tempo após, o chefe político foi acometido de um acidente vascular cerebral (AVC), que alguns atribuíram à contrariedade decorrente do ato do Presidente João Pessoa. Adepto da Aliança Liberal, tendo apoiado a chapa composta por Getúlio Vargas e João Pessoa, Miguel Sátiro apoiou incondicionalmente aquelas candidaturas e todo o programa partidário, não obstante o ato presidencial pelo qual foi destituído de sua função, em Patos, removido para Santa Rita. Com a vitória do movimento revolucionário de 30, como sói acontecer com as revoluções, que engolem os seus chefes e mentores, os ventos políticos, começaram a soprar contrariamente a Miguel Sátiro que, já alquebrado pelo acidente de saúde que sofrera, não mais se sentia em condições de continuar a pelejar. O último dos Prefeitos de Patos por ele indicado, seu filho Clóvis Sátiro, sentindo as adversidades que se lhe antepunham no exercício do cargo, representadas por medidas tomadas pelo chefe do poder estadual, resolveu solicitar exoneração do cargo, o que foi aceito de plano. Aos 21 de junho de 1934, agravando-se os males que o afetavam, Miguel Sátiro veio a falecer, com ele desaparecendo uma fase marcante da vida política de Patos, assinalada pela pacatez, pela harmonia, pela concórdia, que a fazia diferenciar de várias das comunas que lhe eram próximas, em que as desavenças, as discórdias, as contrariedades por que passavam os Chefes Políticos eram resolvidas à base do trabuco. Sem querer santificar Miguel Sátiro, visto que na chefia política praticava ele os vícios e os erros próprios do regime coronelista,
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sobretudo, o mandonismo, eis que mandava no Juiz, mandava no Promotor, mandava no Delegado, mandava no Prefeito, enfim, mandava em todas as gradas autoridades locais, o Chefe patoense, não obstante, dava uma nota de paz, de harmonia, de conciliação, relativamente aos conflitos que ocorriam em seus limites. Embora não detentor de conhecimentos profundos na matéria, Miguel Sátiro era um autodidata em direito, exercitando uma rabulagem na Comarca de Patos e vizinhas. Quando dois amigos se indispunham a respeito, por exemplo, de domínio de terras, patrocinava ele um procedimento conciliatório por meio do qual buscava dirimir o conflito e fazer voltar a harmonia entre os contendores. Quando a discórdia se instalava entre um correligionário e um opositor, o Chefe Político tomava as dores daquele e ia às portas da Justiça, defendendo-o, como autor ou réu. Jamais admitia o apelo às armas, à violência, ao desforço violento. E assim Patos ia vivendo dias de paz e harmonia. Atuava muito Miguel Sátiro na tribuna do júri, defendendo os seus amigos e correligionários, acusados da prática de crimes contra a vida. Assim, portanto, o traço marcante da chefia política de Miguel Sátyro foi, sem dúvida, o espírito de paz e concórdia com que dirigia os destinos políticos de seu Município. Há um pormenor bastante representativo da preocupação do Chefe Político das Espinharas com a paz e a harmonia de seu burgo, que cabe aqui revelar. Quando Ernani Sátiro iniciava-se na política, fazia-o através de discursos iracundos, desancando os seus adversários, notadamente o Prefeito da cidade, cujos atos político-administrativos o jovem político não perdia tempo em profligar. Miguel Sátiro, que não tinha o mesmo temperamento do filho, tentava colocar este em outro caminho. Aconselhava-o a deixar a violência verbal, que não levava a nada. Ernani Sátiro, porém, entendia que com sua linguagem “reagia contra a violência maior que era a violência da força que asfixiava a minha terra”. Miguel Sátiro, insistia, contudo: - Vá mais devagar, não use essa linguagem. Zé Prego, redeiro e filósofo, amigo do Major, vez por outra comparecia à sua casa, para um dedo de prosa, e, naquela ocasião, sentado a um canto da sala, ouvindo os conselhos do pai para o filho iniciante na política, falou: - Major, deixe o menino correr como ele sabe. Era assim o Major. Numa época em que o mandonismo costumava alicerçar-se na cabroeira armada, ele procurava legitimar seu poder através da justiça e de ações alicerçadas na lei. Assim é que, utilizando-se
de seus pequenos mas úteis conhecimentos jurídicos, atuava como rábula, no foro cível, no criminal e no eleitoral, defendendo os seus amigos e correligionários. Um testemunho insuspeito de seu comportamento nesse sentido foi dado pelo ex-Interventor paraibano Gratuliano Brito, que exerceu o cargo de Promotor de Justiça na Comarca de Patos: “Era eu Promotor nos Patos, por nomeação do Presidente João Suassuna, quando, certa vez, enfrentando o terrível sol do meio dia, saí de casa com destino ao Fórum, e no meio da rua me encontrei com o Segundo Escrivão da Comarca e Escrivão Eleitoral Manuel Fernandes, que, sobraçando um livro, tinteiro à mão e caneta atrás da orelha, me disse: “Dr., ia procurá-lo em casa para assinar a ata da eleição do Presidente do Estado”. Era a eleição do Ministro João Pessoa, escolhido sem oposição. Respondi: “Vamos aqui”, e no estabelecimento comercial de um amigo, sobre um saco de feijão, assinei a ata que estava perfeita, no fundo e na forma, pois o Chefe local, Coronel Miguel Sátyro, que tinha como principal assessor um funcionário da Mesa de Rendas e um dos homens de mais talentos que conheci - José Florentino Júnior - não costumava mandar que as atas fossem assinadas por eleitor falecido ou que já não residisse mais no Município. Quinze dias antes, começava ele a convocar discretamente, como era de seu feitio, os competentes do seu rebanho. E dizia: “Compadre, você precisa aparecer lá em casa para votar. Traga a comadre e mande os meninos para assinar a ata”. O Promotor Público, membro obrigatório, por sua função, da primeira mesa eleitora, não era eleitor, pois naquele tempo valia como sinal de distinção o não participar o cidadão dos supostos prélios eleitorais. Mas as assinaturas do eleitorado eram, nos Patos, autênticas e no dia do pleito as atas recebiam, apenas, o arremate legal.” (Gratuliano Brito, in “Gratuliano de Brito fala sobre João Pessoa”, O NORTE, Segundo Caderno, 15 de setembro de 1978). Quando das comemorações do centenário de seu nascimento, ocorridas nos Patos, quando se inaugurou uma praça com seu nome, as suas qualidades de chefe pacato e ordeiro ficaram bem evidenciadas nos depoimentos e testemunhos prestados, na ocasião, por figuras como José Américo de Almeida, Argemiro de Figueiredo, Fernando Nóbrega, Alcides Carneiro, Osvaldo Trigueiro, Pereira Lira, entre outros. José Américo de Almeida proclamou: Conheci tão bem Miguel Sátyro que posso evocar sua figura com a fidelidade de quem lhe sente a presença. Fui seu amigo e seu hóspede. Fora e dentro de casa era um padrão de
virtudes antigas. No tempo em que a política era, por assim dizer, feudal, singularizou-se ele, como chefe, por sua mansidão, sem nenhum resquício de mandonismo, sempre hábil e conciliador. A longa influência que exerceu em sua terra era fruto das boas maneiras e da dignidade pessoal. Merece ser consagrada sua memória como reflexo de uma vida exemplar. Dele disse Argemiro de Figueiredo: “Muitos dos outros chefes políticos arrimavam o seu prestígio no poder da violência e da ameaça. E não poucos mantinham em suas fazendas verdadeiros arsenais polidos e modernos para solução, à mão armada, dos problemas mais graves. Miguel Sátyro repudiava esse arbítrio. Não era formado. Mas, vivia às portas do Fórum, defendendo, ele próprio, as demandas cíveis e criminais que interessavam aos seus amigos. E o fazia sem ônus para eles.” Para Alcides Carneiro, “Miguel Sátyro, que por muitos anos foi chefe político em Patos, era um sertanejo diferente, um condutor de homens, que destacava, no bom sentido, do padrão consagrado pelo meio. Sem exibições de força e de coragem, tão do agrado dos sertanejos, Miguel Sátyro conquistou e consolidou seu prestígio, pessoal e político, usando a brandura e a habilidade.” Segundo Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello, “Miguel Sátyro distinguiu-se como líder nitidamente representativo da melhor política de seu tempo. Chefe natural e autêntico. Chefe natural e autêntico, não se destacou pelo estilo autoritário, que o meio e a época ainda comportavam. Notabilizou-se, diversamente, pela tolerância, prudência e sabedoria com que dirigiu, por tantos anos, a grande Comuna que, nesta data, comemora o centenário de seu nascimento”. O Ministro Fernando Nóbrega ressaltou: “Mesmo no sertão de hoje, tão diferente da época em que atuou, o nome do Coronel Miguel Sátyro permanece como o de um precursor do primado da lei e da concórdia contra as soluções do ódio e da violência. À época do centenário de nascimento de Miguel Sátyro, em 1967, o deputado Ernani Sátyro, filho do homenageado, era o líder do Governo Costa e Silva na Câmara dos Deputados e o evento foi assinalado, naquela Casa, com sessão especial, realizada a requerimento do líder da oposição, deputado Mário Covas, falando, na ocasião, o deputado Monsenhor Manuel Vieira. Costumava Miguel Sátiro dirigir-se aos eleitores, amigos e correligionários, por meio de cartas, manifestos, mensagens, redigidos por ele mesmo ou por amigos mais
dados às letras, distribuídos através de boletins e panfletos. Dentre esses amigos é de destacar José Florentino Júnior8, seu assessor na Mesa de Rendas e seu auxiliar nas campanhas políticas e no jornalismo. No jornalismo? – haverá de perguntar o leitor. No jornalismo, sim, pois Miguel Sátiro fundou e fez circular em Patos, nas décadas de 10 e 20 do vigésimo século, um periódico noticioso, intitulado JORNAL DO SERTÃO, através do qual comunicava-se com os seus correligionários e divulgava notícias relativas à política estadual e à política municipal. O jornal circulou em duas fases. Na primeira, foi dirigida por José Florentino Junior e, na segunda fase, por Clóvis Sátiro que, à época, era acadêmico de direito, aluno da Faculdade de Direito do Recife, por onde se graduou, em 1927. Era, ainda, Miguel Sátiro, um aficionado das artes, notadamente da música, motivo por que incentivava e mantinha, seja por si mesmo, seja através da Prefeitura, a cujo titular aconselhava, a existência de uma banda de música que alegrava as festas do lugar e assinalava as datas históricas que se comemoravam em Patos. A banda de música de Patos abrigou valores expressivos da arte musical, Dela participaram alguns membros da família Capiba, como Severino Capiba e seu filho, Lourenço Barbosa, o grande compositor pernambucano Capiba. Em época diferente, também integrou a banda de música patoense aquele que, tempos depois, emigrando para o sul do país, tornou-se o grande compositor e maestro de fama internacional, José Batista Siqueira. O maestro Siqueira, aliás, ofereceu uma de suas mais importantes obras – Sinfonia Nordestina, a Miguel Sátiro, numa demonstração de gratidão ao apoio que dele recebeu no início de sua carreira. Relacionava-se Miguel Sátyro com os demais chefes políticos que, ao se dirigirem para a Capital ou dela retornando, não deixavam de, chegando a Patos, visitar o Chefe Político das Espinharas, Ernani Sátyro conheceu a todos desde os seus dias de menino, vendo-os na sala de visitas de sua casa: José Pereira, José Queiroga, Felizardo Leite, José Gomes de Sá, Padre Aristides, Padre Sá, Silva Mariz, José Vicente, Sabino Rolim. “Toda essa gente eu vi e ouvi” – escreveu Ernani Sátyro em uma de suas páginas.9 A vocação de Ernani Sátyro para o Direito e a política foi estimulada e incentivada por seu pai, não só por levar o filho para as audiências e comícios políticos, mas também
e principalmente, por ensinar ele próprio, quando Ernani ainda não ingressara no curso jurídico, o manuseio e o conhecimento de autos judiciais, de natureza cível e criminal. Além disso, Miguel Sátyro inventava determinados processos, determinados crimes, inventava coisas e fazia com que o filho fizesse funcionar o seu raciocínio na defesa das teses lavantadas.10 Em uma de suas páginas, dá ainda Ernani Sátyro um depoimento de como, na fase em que ele e seu irmão Clóvis Sátyro, em momentos diferentes, começaram a advogar, ainda não formados, eram ensinados por Miguel Sátyro: “Pegando os autos e nos fazendo ler depoimento por depoimento, perícia por perícia, parecer por parecer, sentença por sentença”. Tendo ingressado na Faculdade de Direito e vindo a Patos em férias, Ernani Sátyro foi surpreendido com a seguinte determinação de seu pai: “Vai haver júri depois de amanhã e você vai defender o réu Bate-Sola”. O futuro Bacharel, com poucos dias de Faculdade, quase cai para trás, exclamando: “como é que eu vou defender um réu, se nunca vi um processo na minha vida”. Mas o velho Miguel Sátyro não aceitou o motivo para a recusa, afirmando: “Não tem importância. Faça uma introdução literária, uma peroração bem bonita, como você sabe fazer. E o processo, eu vou ensinar como é que se lida com ele”1. E por seguir as orientações do experiente rábula, o acadêmico Ernani Sátyro obteve sua primeira vitória como defensor, conseguindo a absolvição de “Bate-Sola”. Miguel Sátyro foi casado duas vezes. A primeira, com Maria Gomes de Sousa, filha do antigo Chefe político local, Capitão Manuel Gomes dos Santos, com quem teve três filhos: Emília, Antônia e Clóvis. Enviuvando, contraiu Miguel Sátyro segundas núpcias com D. Capitulina Ayres, filha do Coronel Firmino Ayres Albano da Costa, Chefe Político do Piancó, onde era também grande latifundiário. D. Capitulina era viúva do Juiz de Direito Inocêncio Leite, com quem tivera dois filhos, Firmino e Tiburtino. O primeiro foi médico, político escritor, sobretudo poeta. Do casamento de Miguel Sátyro e D. Capitulina advieram os filhos Ernani e Avani. Miguel Sátyro faleceu, como já dissemos, aos 21 de junho de 1934, ano que marcou igualmente a primeira eleição de Ernani Sátyro, a que Miguel Sátyro não assistiu, pois seu falecimento ocorreu antes do pleito que proporcionou o ingresso do filho na política, como membro da Assembleia Estadual Constituinte de 1935.
José Florentino Júnior, Servidor da Fazenda Estadual, amigo de Miguel Sátiro, fixou-se, posteriormente em João Pessoa. Era o pai de Luiz Carlos Florentino, que foi Superintendente do Banco do Brasil, na Paraíba e, também, Presidente do Banco do Estado da Paraíba S/A, de Rui Florentino e de Paulo Florentino. 9 Como se fossem memórias, pág. 163. 10 Idem, pág. 220. 8
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DIREITO CONSTITUCIONAL CÓDIGO DE PROCESSO CONSTITUCIONAL
AS BASES DOUTRINÁRIAS DO ANTEPROJETO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL COMISSÃO ESPECIAL DE JURISTAS PARA O CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSO CONSTITCIONAL A boa-nova do Código de Processo Constitucional, agora em fase de elaboração no Brasil reside, a nosso ver, na circunstância de que será ele obra duma geração de juristas do país que já têm em si o espírito da Constituição1. Tal ocorre por haver sido educada nas letras jurídicas do constitucionalismo normativo e principiológico da teoria material da Constituição; teoria subjacente ao Estado Social da Carta Republicana de 1988. Em verdade, a codificação pelo ângulo histórico compreende, a nosso ver, no Estado moderno duas distintas fases com suas respectivas ocorrências codificadoras. I A primeira fase abrange os velhos Códigos cujo protótipo, o Código de Napoleão, esteve para o Direito Civil em França assim como a Carta Magna de João Sem Terra esteve para o Direito Constitucional na Inglaterra. Com efeito, a primitiva corrente codifi-
cadora do Estado Moderno, pós-Revolução Francesa, inaugurou, desde o advento do Estado liberal, o primeiro período da codificação no continente europeu e na América Latina. Tal período começa ao início do século XIX e corresponde à época constitucional do predomínio do princípio da legalidade; uma criação jusfilosófica e positivista da razão pura, tendo por elemento e diretriz axiológica a crença profunda de que a ele se incorporava a legitimidade mesma, em dimensão perpétua, como fato, princípio e valor. Trata-se aí de uma legitimidade que baixava da esfera especulativa e metafísica do direito natural, onde se domiciliara na concepção racionalista da filosofia de Kant, para se transverter depois em direito positivo, por obra de seu ingresso na legislação civil dos codificadores. De tal sorte que trilhando esse caminho o positivismo da reação antihistoricista e antiescolástica, adversa à tradição e ao passado, cortava laços de filiação e começava a perder, com o apogeu da legalidade e dos
códigos, a lembrança que o prendia às suas antigas origens, ou seja, a uma das escolas do direito natural abraçada ao credo contratualista, racionalista, filosófico e revolucionário, que derrubara na França de Montesquieu as muralhas do “ancien regime”. Tal regime fora uma combinação de elementos, poderes e situações que a história viu prevalecer quando os monarcas do absolutismo, os soberanos do direito divino, fizeram gravitar ao redor de sua autoridade centralizadora, uma aristocracia de fidalgos submissos que traziam no caráter, no sangue e na alma a recordação e o legado sombrio duma sociedade medieval desagregada e desintegrada em fragmentos por dez séculos de ocaso e decadência do poder estatal. II Estabelecido historicamente esse campo de reflexão, verifica-se que o positivismo levou a cabo a unidade dos dois princípios cardeais de que acima se fez menção: legalidade e legitimidade.2
A nosso ver, na linguagem do direito, “espírito da Constituição” passa por sinônimo de legitimidade, em virtude do padrão de valores que incorpora e do sentido que inculca. A partir daí poder-se-á dizer, portanto, em boa doutrina, que a Constituição é a legitimidade e o Código a legalidade. O “espírito da Constituição”, ora empregado, se inspira no título da obra prima da literatura jurídica do século XVIII – aquela que fez a glória e a celebridade de Montesquieu e se chama “Do Espírito das Leis”. A Constituição também é lei. Em rigor, a lei das leis. Logo, falar de seu espírito, com a chancela do autor das “Cartas Persas”, afigura-se-nos de todo o ponto lícito. Somos de parecer que esse espírito vem coroar nas esferas do Direito e do Estado a soberania constitucional como a mais genuína expressão da vontade geral (“volonté générale”) concretizada. Síntese de legitimidade viva, jamais reflexo duma legalidade enferma, o espírito da Constituição é coluna de prevalência e conservação do Estado de Direito e diagrama do neoconstitucionalismo que impera em nossos dias como fórmula normativa dos princípios. Ao mesmo passo urge repreender o excesso de formalismo jurídico que conduz inumeráveis magistrados a se aterem com a cegueira da lei, com a literalidade da norma, com a privação do descortino social ao positivismo jurídico do século XIX. Asseveramos ainda que tais magistrados não compreendem que a Constituição é também luz que ilumina o caminho da justiça, da virtude republicana, da ética de quem governa povos e nações. E o é em sua medida teórica, positiva, substancial, material e normativa. Toda vez que essa luz falta ou se apaga no cérebro do juiz o direito abandona a norma e a norma, inadequada e imprópria, se manifesta injusta. O espírito da Constituição traduz, portanto, em grande parte, o respeito e reverência que a Lei Maior instila na cidadania com o vigor da doutrina, com as competências que legitimam o exercício da autoridade, com o valor dos preceitos, mas, sobretudo, com a aura de legitimidade que circunda a Carta Constitucional colocada no topo da hierarquia do sistema, e dotada da força suprema de sua normatividade. Tal espírito, em rigor, ajuda a selar no país uma aliança de apoio social e moral às instituições da república. Salvaguarda da democracia, ele é esteio axiológico do regime; proteção e garantia e segurança de direitos fundamentais. Com ele, ficam mais sólidas as bases do sistema, mais estável a governabilidade, mais forte o combate às crises, mais vivo o sentimento de adesão ao contrato social, corolário e fundamento da democracia, mais legítima a organização política do corpo social. Dirige pois esse espírito a nação para os fins que a cidadania espera, movendo os governantes a servirem à justiça e à liberdade com honradez e patriotismo. Ao mesmo passo, servindo à consciência jurídica imperante, o tempo diz sempre se já chegou a hora de tomar determinadas medidas e iniciativas – a elaboração de um código, por exemplo – para aperfeiçoar a ordem constitucional por onde os governantes e governados se regem no exercício de poderes e fruição de direitos. Tudo corre segundo a contextura dum sistema determinado a introduzir o equilíbrio e o ideal programático de justiça e liberdade no corpo das leis. Em razão disso, as relações humanas, perlustrando as vias de consenso e da concórdia devem contemplar sempre, hoje e amanhã, no espírito da Constituição, o horizonte da paz e da harmonia. Com efeito, nesse momento ímpar, o foro moral do cidadão não cerra as portas nem se extingue; e o ânimo de conservar ativa a cidadania tampouco arrefece. Para tanto concorrem deveras o espírito público de constitucionalidade, a oportunidade do código de processo constitucional, a densidade ética, a benquerença republicana, quais valores que governam e conscientizam a coletividade na edificação do legítimo Estado de Direito.
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Por um certo prisma, os codificadores de ancestralidade racionalista consumaram, em última análise, uma espécie de absorção ou anexação da legitimidade por uma legalidade triunfante.3 A conjunção histórica dos dois princípios, se assim é possível expressar, significou uma das novidades jurídicas mais importantes das duas primeiras décadas do século XIX. Tanto na doutrina quanto na práxis buscavam os positivistas passar a certidão de adequação – tocante à forma e à substância do direito legislado ao direito da realidade; aquele que não se acha na literatura jurídica dos compêndios, mas deita primeiro raízes profundas na positividade social. III Com efeito, na época do fluxo codificador, as bases axiológicas da organização es-
tatal haviam sido trasladadas das culminâncias especulativas e metafísicas da abstração para a realidade e a concretude normativa dos preceitos legais. Por obra disso, a ascensão fática e valorativa da regra sobre o princípio, abonada pela Velha Hermenêutica, parecia decretar com os Códigos a inferioridade normativa das Constituições programáticas; por esse nome denominadas em razão do seu baixo nível de juridicidade. Em geral, a morada segura e ostentosa do jurídico não era então a Constituição, mas o Código. Não raro, pertinente à aplicação e interpretação de normas jurídicas, valia mais uma regra de direito positivo que um princípio de direito natural. No entanto, já não imperava ao termo do século XX o culto positivista da legalidade, dantes tão fervoroso, tão exagerado, tão distorcido4.
O humanismo social, os progressos da civilização, a relevância e evidência dos valores, quer na doutrina, quer na vida do Direito, haviam concorrido bastantemente para arrefecer e abrogar a influência avassaladora dos teóricos da corrente positivista. IV Em verdade, os Códigos, ao final da primeira fase, mal sobreviviam, parcialmente desatualizados e carentes de reforma. Davam eles sinal de fraqueza e de baixa qualidade da produção legislativa, o que constituía um traço bem característico do declínio e crepúsculo da era liberal. 5 Contudo, a força do jusprivatismo romanista ainda atuava influente ao longo da primeira fase de codificação do Estado moderno. Instaurada no continente a idade dos códigos, os valores de legitimidade transmiti-
Em dimensão axiológica, urge assinalar que a doutrina da legitimidade prepondera sobre a da legalidade, ou seja, sobre aquela a que o positivismo se afeiçoou. A legitimidade é o princípio, a legalidade é a regra; a legitimidade, na ordem espiritual, é valor maior, a legalidade valor menor; a legitimidade é Sócrates advogando a consciência livre na tragédia da cicuta; a legalidade é Hegel escrevendo a filosofia do absolutismo por fazer do Estado uma divindade com a dialética da ideia. Rompida a unidade conceitual dos dois princípios, estabelecida pelo positivismo, restaurou-se a dualidade histórica, com a prevalência da legitimidade. A partir daí, poder-se-á dizer que a legitimidade está para a legalidade assim como a Constituição para a lei, a justiça para o direito, o princípio para a regra, o direito natural para o direito positivo, a democracia direta para a democracia representativa, a separação de poderes para o poder central. A nosso ver, debaixo dessa divisa fica a inspiração doutrinária do Anteprojeto do Código de Processo Constitucional, lavrado na madrugada do século XXI, século que testemunha a grande revolução em marcha para universalizar os direito humanos fundamentais, a democracia, a paz e a liberdade; revolução que restará perene na memória das futuras gerações. As revoluções definem épocas em que a sociedade se transforma, sobe degraus na escalada do progresso, da civilização, da cultura. Vistas por esse ângulo, as revoluções dão saltos qualitativos na história da humanidade, abençoadas dos povos e das nações que elas libertam. Alves Mendes, príncipe da eloquência portuguesa, escreveu que um grande escritor chamou à revolução, a condensação dos tempos, e outro chamou-lhe a jurisprudência de Deus. Noutro lugar da mesma oração, disse o egrégio tribuno: “a revolução (...) produz-se em virtude das leis da mecânica social, tão providenciais e positivas como as leis da mecânica celeste. (...) Forja-se no laboratório do espírito como o relâmpago no laboratório do universo.” (Alves Mendes, Discursos Inéditos e Dispersos, Volume I, Lisboa, págs. 37 e 38). A revolução é a legitimidade mesma quando a civilização dá um passo à frente. Mas a evolução é, por igual, legitimidade ao escrever, associada à paz, a crônica dos séculos, o livro dos progressos da humanidade, fazendo a estabilidade dos regimes e estabelecendo as leis sociais de emancipação. Como se vê, a legitimidade também se adquire. E se adquire gradativamente, paulatinamente por obra duma caminhada lenta de consenso mediante incorporação de valores e salvaguarda de princípios, que são por sem dúvida o cimento da ordem constitucional. Ordem reforçada com o tempo, com a educação do povo, com o exercício das franquias públicas e civis, com o respeito das garantias constitucionais, com o tirocínio da liberdade. A legitimidade perdida se restaura também graças à observância de princípios e direitos fundamentais. Essa observância é a única forma de pôr termo à crise estampada na desorganização moral e espiritual da sociedade e do Estado. A legitimidade, colocada eventualmente em falsa peanha de imparcialidade ideológica, como se fora possível por essa via neutralizá-la, sempre se fez de valores e crenças e sempre incorporou nas suas dobras e interstícios elementos extraídos da tradição, da cultura e dos costumes. Mas tal neutralidade pertinente a valores é hipocrisia social, impostura duma doutrina decadente, representativa dum positivismo cujo tempo ideológico já passou. É por esse prisma crítico que o século XXI encara o problema da legitimidade, com adequação dos códigos e das Constituições ao mundo novo criado por uma nova era em que o drama da humanidade possa ser atenuado tocante às dificuldades de concretizar e universalizar a justiça, a paz, a liberdade e os direitos fundamentais. 3 Com efeito, Lei e Código lograram normatividade culminante na gestão da sociedade individualista, mecanicista e liberal, e começaram a perder parte da força normativa, à míngua de reforma e atualização, ou por olvidarem valores e abdicarem princípios gravados no preâmbulo e nas cláusulas da Lei Fundamental. A Constituição, esta sim, é e será sempre a cabeça dos sistemas e da revitalização dos Códigos; jamais a quimera programática dos primeiros constituintes da época liberal dos séculos XIX e XX. 4 A queda do culto legalista na ciência do direito segue de perto o declínio da influência que a escola clássica do positivismo exerceu sobre o Direito na Europa continental. A esse respeito, veja-se artigo de nossa autoria intitulado “A Despolitização da Legitimidade”, estampado na revista O Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, depois reeditado na Alemanha pela publicação jurídica “Der Staat (Zeitschrift für Staatslehre Öffentliches Recht und Verfassungsgeschichte, Herausgegeben von Ernst Wolfgang Böckenförde, 35. Band 1996 Heft 4. Duncker Humblot, Berlin) numa tradução de Friedrich Müller, constitucionalista, filósofo do direito e ex.catedrático da Universidade de Heidelberg, onde foi Decano da Faculdade de Direito (1979). O mesmo ensaio apareceu também em versão italiana intitulada “La Depolitizzazione della Legittimità”, publicado pela Universidade de Lecce, na Itália, sob o patrocínio do Professor Michelle Carducci, coordenador da coleção de traduções daquela instituição. A tradução é da Professora Anna Sílvia Bruno. Aliás, toda a reflexão acerca da mudança referida no artigo aqui citado se cifra portanto numa locução do vocabulário político em que se condensa e retrata um dos fenômenos mais relevantes do nosso tempo: a despolitização da legitimidade. Operada pelo positivismo, essa despolitização determinou o eclipse normativo das Constituições por mais de um século, até ao advento do neoconstitucionalismo coevo quando este inaugurou uma nova era na doutrina do Direito e do Estado. 5 As leis da liberdade moderna que inauguram a era liberal nas relações civis começam com os códigos que a concretizam, inspirados das Constituições que as legitimam. E avançam e se robustecem em nosso tempo com a força normativa que a doutrina da Nova Hermenêutica lhes reconhece, a jurisprudência de tribunais consagra e as Constituições já prescrevem. Aquelas leis guiam e assinalam a primeira fase do movimento codificador, do século XX. Promulgadas numa atmosfera de pensamento livre, sua evolução chega aos nossos dias com a trégua de positivistas e jusnaturalistas, conforme deixamos entrever em prefácio à edição portuguesa da obra “Constituição e Direitos Fundamentais”, de Raul Gustavo Ferreyra, catedrático da Universidade de Buenos Aires. Escrevemos então: “Cessado o confronto direito positivo versus direito natural, o semblante jurídico da contemporaneidade é este: para alguns, o advento do pós positivismo, que dá o balanço de suas rejeições e define as novas posições no raio de sua abrangência; para outros, a era do neopositivismo, do positivismo principiológico, que há de perpetuar as conquistas da liberdade. Para aqueles já não cabe falar em positivismo, locução inculcadora de pretéritos erros e dissídios nas esferas da doutrina, mas para estes – os positivistas da principiologia – a expressão continua a ter mérito e cabimento, porquanto conservá-la significa colocar sempre à vista a objetividade, a realidade, a concreta existencialidade do direito, que é vida e não abstração, que é ciência e não devaneio, que é norma e não programa, que é princípio e não apenas regra. Dantes a Velha Hermenêutica das leis e dos Códigos, nos tratados de direito, na jurisprudência dos tribunais, na cátedra das academias; doravante, porém, com o envelhecimento do positivismo, a Nova Hermenêutica domiciliada e rejuvenescida nos princípios da Constituição; dantes o direito positivo posto em regras compunha toda a legalidade do sistema; agora, esse mesmo direito positivo ancorado em princípios exprime a culminância da juridicidade constitucional; há pouco, um século de estagnação liberal no direito fecha a era do jusprivatismo romanista; a seguir o neopositivismo perpassa a teoria do direito e da constituição, impulsiona a normatividade, e esta toma mais força, mais relevo, mais espaço até alcançar as altitudes hegemônicas da era principiológica. A partir daí se faz definitiva a visão publicística do direito, que prepondera sobre aquela meramente jusprivatista. De modo que desde a Nova Hermenêutica, a profundeza normativa dos princípios da Constituição esparge luz, e espanca, com a reflexão social, a escuridade jusprivatista do passado. Já não há lugar para magistrados recalcitrantes em sua pretensão obstinada de perpetuar o direito, não raro divorciado da realidade, e de se conservarem refratários à mudança dos tempos que desterram o magistrado “boca da lei” de Montesquieu, a que já nos reportamos em outros lugares destas Bases. A densidade normativa dos princípios constitucionalizou todos os ramos do direito; fez a idade das Constituições suceder à dos códigos e rasgar horizontes a uma sólida compreensão sistêmica do Direito, qual conjunto integralizante e estruturante de normas e valores.” Em resumo, hoje os Códigos - nomeadamente o Código de Processo Constitucional- não se circunscrevem tão somente a trasladar para seus textos a mecânica normativa das regras, mas por igual a dinâmica axiológica dos princípios e dos direitos fundamentais. A garantia destes é de extrema relevância na codificação processual, objeto destas Bases. Isto porque não basta declarar direitos sem efetivamente dar-lhes os mecanismos constitucionais de proteção e eficácia. Assim se contribui para o espírito contemporâneo dos códigos e das sistematizações codificadoras. Sob a égide das constituições o direito que ali jaz há de percorrer os caminhos da história, e lograr, em comunhão universal, paz e justiça para povos e nações. 2
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dos ao positivismo pela doutrina jusnaturalista do século XVIII cedo ficaram ocultos e desfigurados numa singular versão: primeiro, despolitizados; depois neutralizados; por derradeiro, incorporados aos códigos apenas como sombra do direito positivo. Mas antes a História mesma já os havia festejado por espelho duma legitimidade que consagrara o lema da Revolução, a saber, o triângulo humano do pensamento francês que fez a cruzada do século XVIII: liberdade, igualdade e fraternidade; germe das doutrinas revolucionárias da soberania: soberania nacional e soberania popular. Pensamento, outrossim, por seu sentido de universalidade, propulsor do contrato social nas Constituições. Em verdade, desse contrato emergiram dimensões doutrinárias e fundamentos, que não podem cair no esquecimento dos publicistas da democracia porquanto servem de plataforma e inspiração ao constitucionalismo da liberdade, desenvolvido e legislado por obra e força da consciência contemporânea, fomentadora dos direitos humanos. Consciência por igual de publicistas que nas batalhas da Constituição se batem por uma sociedade mais justa, mais humana, mais livre, mais aberta, mais igualitária. Dessa legitimidade diligenciam os autores da iniciativa codificadora se acercar no Brasil, a fim de sustentá-la por credo e emblema duma concepção republicana e social, em contraste com outra, monárquica e privatista, cultivada no auge da época liberal, que amparava, com freqüência, um individualismo de classe, perpassado de egocentrismo, arrogância, exclusão e ódio. V Os códigos desse individualismo decadente se tornaram com a evolução social, segundo visão crítica da história, a rubrica jurídica da imobilidade, do “statu quo”, às vezes até do atraso, da frieza, da estagnação das leis. Imagem da distorção, promanaram eles porém duma fonte pura de legitimidade, que fora direito natural nas Constituições e depois direito positivo nas leis promulgadas. Mas essa legitimidade acabou despoli-
tizada, neutralizada, acorrentada e anexada ao legalismo da razão, e só teve importância para o positivismo unicamente como expressão de unidade ou identidade com o princípio da legalidade. Este último, acompanhando a vida do direito, refletindo a organização política da sociedade e presidindo as relações jurídicas do ordenamento, se fizera símbolo e ideia-força do jusprivatismo imperante na época em que o positivismo codificou o direito privado, reforçou a segurança, despolitizou a legitimidade e estabeleceu, por algum tempo, a superioridade aparente e efêmera dos códigos sobre as constituições. VI Em seguida, mediante a junção dos dois princípios – legalidade e legitimidade – formou-se a coluna vertebral e axiológica de sustentação do positivismo que floresceu nos códigos do direito continental europeu. Em nosso tempo, esse positivismo, posto que desfalecido, inda sobrevive à revolução social e normativa dos princípios, ora em curso. Tal revolução procede duma nova teoria material da Constituição e do Direito, substancialmente principiológica e axiológica. Paraninfou a mudança que pôs termo à neutralização silenciosa da legitimidade, tantas vezes já referida aqui como construção de juristas do positivismo. Neutralização unicamente percebida quando uma das formulações daquela teoria material colocou os princípios no ápice da normatividade jurídica. E com isso fundou a Nova Hermenêutica.6 Os princípios entram na elaboração dos Códigos porque são o espelho da doutrina que os rege. Vale, por conseguinte, transcrever de obra de nossa autoria excertos ilustrativos dessa assertiva. Senão, vejamos: “A segunda fase da teorização dos princípios vem a ser juspositivista, com os princípios entrando já nos Códigos como fonte normativa subsidiária ou, segundo Gordillo Cañas, como “válvula de segurança”, que garante o reinado absoluto da lei.”
(...) De antiga fonte subsidiária de terceiro grau nos Códigos, os princípios gerais, desde as derradeiras Constituições da segunda metade do século XX, se tornaram fonte primária de normatividade, corporificando do mesmo passo na ordem jurídica os valores supremos ao redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e competências de uma sociedade constitucional. Os princípios são, por conseguinte, enquanto valores, a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada. (...) As Constituições fazem no século XX o que os Códigos fizeram no século XIX: uma espécie de positivação do Direito Natural, não pela via racionalizadora da lei, enquanto expressão da vontade geral, mas por meio dos princípios gerais, incorporados na ordem jurídica constitucional, onde logram valoração normativa suprema, ou seja, adquirem a qualidade de instância juspublicística primária, sede de toda a legitimidade do poder. Isto, por ser tal instância a mais consensual de todas as intermediações doutrinárias entre o Estado e a Sociedade. (...) É na idade do pós-positivismo que tanto a doutrina do Direito Natural como a do velho positivismo ortodoxo vêm abaixo sofrendo golpes profundos e crítica lacerante, provenientes de uma reação intelectual implacável, capitaneada sobretudo por Dworkin, jurista de Harvard. Sua obra tem valiosamente contribuído para traçar e caracterizar o ângulo novo da normatividade definitiva reconhecida aos princípios. (...) A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboraram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico, normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais” (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 30ª edição, atualizada, São Paulo, págs. 267 e seguintes).
A partir do novo campo interpretativo criado pela Nova Hermenêutica poder-se-á escrever, com plena convicção e apoio na realidade, que faz também a lei quem a interpreta e aplica. Com efeito, isso pode acontecer em alguns ensejos e sistemas quando a corte constitucional cria o direito na operação hermenêutica. Ocorrendo tal hipótese, o tribunal exerce papel legislatório de exceção e levanta a voz como supremo guardião do regime e das instituições. A vida sempre revoga as leis que não acompanham as transformações da sociedade. Não se pode, por exemplo, deprimir a importância capital da nova hermenêutica se quisermos bem compreender a natureza e a evolução do Direito, que na doutrina deixou de ser desde muito uma pugna do direito natural com o direito positivo; um duelo de muitos séculos que já perdeu a razão de ser. Tinha, portanto, razão o decano da Faculdade de Direito de Harvard, o egrégio sociólogo e jurista Roscoe Pound, cujas aulas de Direito comparado frequentei em Cambridge nos Estados Unidos durante o ano acadêmico de 1944-1945, quando disse que “ a vida é um processo de mudança, e a lei que há de governá-la deve mudar com ela”. Tais palavras não as ouvi em sala de aula, mas as li em artigo estampado numa obra em homenagem a Hans Kelsen. A reflexão de Pound afigura-se-nos de suma pertinência por patentear como a sociologia do direito ministra a lição que nos faz bem compreender a revolução silenciosa por onde se opera a metamorfose das instituições políticas em sua caminhada rumo à consolidação da democracia e do Estado de Direito. Em virtude dessa força tão atuante e tão dinâmica que é a vida, se infere que a codificação das leis do processo constitucional obedecem também a uma doutrina do direito, da realidade, e do progresso social, que não pode ser no século XXI idêntica ou do mesmo rosto, teor e estilo daquela que no século XIX a geração de civilistas encabeçados pelo jurisconsulto Portalis insculpiu na letra do código de Napoleão. Eis no original a frase de Roscoe Pound: “Life is a process of change and the law that would govern it must change with it” ( Roscoe Pound, Law in the Atomic Age in Law State and Internacional Legal Order, Essays in Honor of Hans Kelsen, Knoxville, 1964, pág 246).
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VII Atravessada, porém, a primeira fase, adveio a segunda, a qual estamos a percorrer em meio à elaboração de novos Códigos e reforma dos antigos. E assim se há procedido debaixo do influxo dum publicismo jurídico renovador que, no domínio da reflexão teórica propugna a superioridade dos valores, na práxis concretiza a normatividade da Lei Maior, na doutrina impetra a hegemonia dos princípios, nas cláusulas da Constituição garante a observância dos direitos fundamentais. Disso proveio enfim o forte influxo jusconstitucional sobre todas as matérias do Direito, em substituição da primazia jusprivatista do passado. VIII O retrospecto sumário dessa evolução codificadora do Estado Moderno mostra, de conseguinte, o direito natural nos aparelhando dois graves e distintos momentos axiológicos, de notável efeito e ação sobre a ideologia do Direito e sua respectiva legislação, a saber, sobre ideias e preceitos que o tempo colocaria depois no corpo das leis sistematizadas e consolidadas para comporem a unidade orgânica dos códigos. O primeiro momento axiológico foi portanto aquele que o direito positivo, derivado do direito natural (o da razão) gerou com a codificação e o direito escrito. Daí se originou a consagração do princípio da legalidade, cuja presença dominante é atestada pela dogmática jurídica do penúltimo século. Foi também o momento em que o mesmo direito natural, professado em cátedras universitárias, tomou a denominação de Filosofia do Direito. Algo semelhante ocorreu com o direito positivo quando este no século passado viu a Ciência do Direito em determinado período de sua evolução engendrar a Teoria do Direito. IX O segundo grande momento axiológico do direito natural, respeitante à marcha da codificação tem data mais recente. Ocorre na aurora do século XXI desde que esse direito, sem percepção de sua existência pela doutrina contemporânea, se tornou, apesar disso, a nosso ver, a fonte cardeal e primaz da nova legitimidade por onde se destrona a velha legalidade vazada na letra dos Códigos7.
Doravante se levanta assim uma legitimidade, fadada a ser o braço normativo da ordem principiológica, cuja suserania já se estende a todas as províncias e ramos do direito. Trata-se de ordem de valores, de manifesta ascendência, proclamada e reconhecida em tempos correntes; ordem que surpreende, clareia, garante e guia a progressão democrática da justiça, da liberdade e dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rompe as barreiras hermenêuticas do positivismo clássico. Não negamos que esse positivismo, antigo esteio dos Códigos do Estado liberal erigiu no passado monumentos legislativos, que marcaram indelével a idade privatista do Estado Moderno nas regiões do Direito. Mas professamos que o neoconstitucionalismo, desde a Nova Hermenêutica, sobre levar o espírito da Constituição aos Códigos, emprestou às regras formuladas pelos sistematizadores estatura normativa inferior àquela conferida aos princípios. Disso deriva a força maior de juridicidade atribuída à base principiológica, ministrando-lhe em definitivo a prevalência sobre o corpo da legislação ordinária tanto nas regras, quanto na doutrina, na vida do direito e na obra dos codificadores. Em suma, vale este axioma: o direito natural promulgou Constituições e o direito positivo códigos. Ultimamente, faz-se mister assinalar, Constituições emergem dotadas de princípios e valores cuja dimensão normativa e hermenêutica, conforme já se disse, tem reflexos de legitimidade e garantia sobre a lei codificada. Além disso, a consciência jurídica do século se reforça com o humanismo de cinco gerações de direitos fundamentais que a doutrina desenvolveu e a jurisprudência dos tribunais um dia há-de consagrá-los por inteiro. X O Código de Processo Constitucional Brasileiro surgirá, de conseguinte, na segunda idade da codificação. Há de figurar qual repositório duma legislação mais avançada e aperfeiçoada que a do passado em fazer efetivas as garantias processuais da Constituição. De sorte que suas formas, suas técnicas, seu campo de ação processual hão de ser deveras úteis ao juiz constitucional a fim de levar a efeito com precisão, propriedade, diligência e equilíbrio, a prestação jurisdicional do direito codificado.
Representará o Código, por conseguinte, notável adiantamento no emprego dos meios instrumentais do processo, constantes do sistema constitucional. Confrontada com a conjuntura, é de advertir que a república brasileira corre o risco de mergulhar numa crise de profundeza institucional. Urge, portanto, em circunstância tão delicada para o normal funcionamento do sistema, que o novo Código regulamente, bem sucedido, aquelas ações protetoras da liberdade, da Constituição e dos direitos fundamentais. Desse modo, fará ele muito por garantir a estabilidade do regime, a segurança jurídica da sociedade, o exorcismo dos fantasmas da crise, a dissipação de nuvens que, desde muito, se acumulam condensando as incertezas do futuro. XI Disse Nelson Saldanha que “os Códigos sempre surgem na desembocadura de uma crise”8 . Em se tratando do Brasil, a hora de fazer este Código é por igual a hora de conclamar povo e cidadania a defenderem sua Constituição e seu Estado de Direito, sujeitos a naufragarem no desastre da crise moral, econômica e social que ora açoita o país e abala a forma representativa de governo. A mesma crise também lavra com variável intensidade, tamanho e força no espaço geopolítico da América Latina. De maneira que, a esta altura, sem mais caminhos a seguir, afigura-se-nos a Constituição - dado o respeito que ela ainda imprime, pela singularidade e memória do seu papel nas refregas constitucionais do Estado moderno, qual bíblia política de propagação das ideias de alforria - a única salvaguarda do regime, das instituições, da governabilidade e da saúde pluralista de nossa organização de governo e Estado. XII Ontem, conforme vimos, os Códigos em sua ambiência histórica do século XIX reorganizavam a sociedade sob a pauta normativa de direito que a liberdade garantia e a razão, supostamente eterna, faria valer. Era a crença dos codificadores. Mas ao ensejo da segunda fase, o Brasil, garantida a governabilidade e lograda a paz social, reunirá condições razoáveis de levar a cabo a travessia das turbulências, arrostar as tempestades, enfim, manter íntegra e in-
O direito positivo, que entrou na composição dos Códigos, examinados nas suas bases, não logra desfazer elos de linhagem, de procedência e filiação, jacentes naqueles fundamentos jusnaturalistas acima retratados. Com efeito, eles configuram, em seu percurso de séculos o influxo deslembrado, oculto e adormecido, exercitado sobre distintas formas de positivismo jurídico, vinculado a diferentes fases de evolução da doutrina do direito natural. 8 Nelson Saldanha, “Pequeno Dicionário da Teoria do Direito e Filosofia Política”, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987, pág. 39. 7
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tangível, desde as bases, a reconstitucionalização democrática de 1988. XIII Considerando assim a Constituição pedestal de legitimidade, a Ordem dos Advogados do Brasil perfilhou a iniciativa pioneira de elaborar um anteprojeto de Código de Processo Constitucional como contribuição à garantia das instituições, dos direitos fundamentais e do país constitucional. Com o novo estatuto processual oxigenando e reforçando a presença do advogado nas lides em defesa da Constituição, a OAB escreverá mais um capítulo e introduzirá mais uma data nos fastos de sua tradição e nos anais de sua vida, em proveito da concórdia constitucional, da liberdade, da democracia, da república e da cidadania social9. Pelas razões atrás expostas, o Código no espírito e no texto corresponderá à era constitucional das Cartas abertas, das leis sociais, do pluralismo, das mobilizações populares, das cidadanias participantes, das forças cívicas empenhadas em cimentar e perpetuar a democracia nas bases do sistema. Cartas abertas são, a nosso ver, as cartas políticas da pureza republicana, do bem comum, da boa convivência, da harmonia dos estamentos sociais, do livre tráfego das correntes de pensamento e opinião10. Cartas, em verdade, respeitadas e observadas, regeneradoras da democracia, defensoras das liberdades públicas; Cartas que fazem a palavra livre ecoar na voz pública, aquecer o coração do povo, vibrar na tribuna dos parlamentos, circular nas redes de comunicação, contrastar com a servidão e o silêncio ominoso e totalitário das ditaduras opressoras e ignóbeis.
A Constituição do Brasil, promulgada após interregno ditatório de duas décadas, enquadra-se nessa categoria de Cartas de abertura política e de comunhão pluralista. XIV A seguir, urge assinalar a missão do núcleo de advogados da OAB encarregados de elaborar a proposta de um Código de Processo Constitucional. Ao escrever as páginas de seu Anteprojeto, já havia o vaticínio de que a OAB o faria movida duma indefectível fé no direito, duma profunda crença na liberdade, dum rigoroso espírito de constitucionalidade. Este é por igual espírito de justiça, de zelo, de fibra, de virtude e tenacidade, que tão somente a alma dos patriotas constitucionais costuma exarar como documento e registo e prova de sua inquebrantável fidelidade à causa constitucional. Com efeito, desse mesmo espírito de constitucionalidade compartilha fervorosamente a Comissão da Ordem dos Advogados do Brasil ao empenhar-se, como se empenhou na apresentação de uma proposta de Código, inspirada daquela doutrina já exposta que, ao alvorecer do novo século, fez a Ciência da Constituição tanto progredir. XV Por conclusão, breve terá o Brasil o Código que lhe faltava, que ora impetra, que já existe no Peru, em Costa Rica e na Bolívia: o Código de Processo Constitucional. O cometimento peruano, histórico e precursor, partiu de eminentes constitucionalistas, entre os quais Domingo Garcia Belaunde, um dos fundadores
do Instituto Iberoamericano de Direito Constitucional. O Brasil – nunca é demais asseverar! precisa desse Código a fim de ultimar com as garantias constitucionais e processuais devidamente sistematizadas, a tarefa bem sucedida e estabilizadora da restauração constitucional de 198811. Trata-se enfim de fortalecer uma Constituição de muita afinidade com a doutrina do Estado social, doutrina construtora de sólido edifício normativo que o Império e a República dantes jamais viram igual. Criando o Estado da cidadania, deu a Lei Maior sequência a uma ação e projeto de justiça social cujas origens remontam à quadra ideológica da Revolução de 1930. A Ordem dos Advogados do Brasil cumpre mais uma vez o papel que a advocacia brasileira, tão valorizada pelo Anteprojeto lhe atribuiu de cooperar grandemente para o respeito, a preservação e a consolidação da Lei Fundamental, isto é, do regime, da república e do Estado de Direito; Estado, ad aeternitatem, apanágio da vocação constitucional de um povo que, além de aspirar a democracia, ama a liberdade e preza a Justiça. Demais disso, nunca esquecer que o princípio é a vida do direito e a regra sua letra normativa na positividade dos Códigos e das Constituições. Em suma, a doutrina do Código de Processo Constitucional será a mesma da Constituição: os princípios sobre as regras e não as regras sobre os princípios. Fortaleza, setembro de 2015. PAULO BONAVIDES - Presidente da Comissão Especial de Juristas para o Código Brasileiro de Processo Constitucional. g
A 17 de abril de 2009 num discurso de agradecimento proferido em Lima na Universidade Maior de San Marcus, Decana das Américas, durante ato solene de outorga das insígnias de Professor Distinguido daquela instituição, assinalamos que entre os avanços democráticos proporcionados pelo espírito criativo e pela imaginação poderosa do constituinte de 1988 avultava o advento, na ordem constitucional, duma nova cidadania: a cidadania social. Com efeito, essa cidadania significava em realidade importante passo dirigido à reconstitucionalização dos poderes da soberania e à restauração do espírito republicano na consciência da nacionalidade. E acrescentamos: Foi por esse caminho que rompemos enfim com aquela imagem da sociedade virgem, neutral, estática, imóvel, rodeada de barreiras às intervenções do Estado e que, professando o arcaísmo teórico da neutralidade e da separação, rememorava as oscilantes fases constitucionais do antigo Estado Liberal; Estado que todavia gravara no bronze da revolução e na fórmula do contrato social os primeiros progressos da liberdade moderna, ao mesmo passo que inaugurava a era dos Códigos e das Constituições. Desde o advento da idade principiológica, desserve a sociedade a figura do constitucionalista neutro. Afogado, de todo, na teoria pura e na metodologia do formalismo, do dedutivismo, da subsunção, fica ele na tarefa interpretativa de costas voltadas para a circunjacência social onde se insere a pré-compreensão de sua própria vida e da vida de seus semelhantes. Não pode, por conseguinte, manter-se tão indiferente aos valores que vinculam a ética ao Estado de Direito e à dignidade da pessoa humana. 10 Há necessidade de manter o regime sob a égide pluralista duma Constituição aberta, porquanto um dos caminhos para alcançar a estabilidade e segurança das instituições democráticas no Estado de Direito contemporâneo é o da simbiose dos direitos fundamentais com os princípios cardeais da Lei Maior. 11 O Código de Processo Constitucional vai nascer pois do ânimo renovador que vivifica o publicismo e a justiça no século XXI, porquanto une a dignidade e a garantia dos direitos humanos fundamentais em sua objetividade à democracia e ao novo Estado de Direito, obra dos emancipadores sociais, sob o pálio da jurisdição constitucional. 9
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RESENHA LITERÁRIA EPOPEIA LUSA RETRATA ANACRONISMO ESCRAVOCRATA EM COLÔNIAS EUROPEIAS Tiago Eloy Zaidan
Luís Bernardo Valença leva uma vida confortável e cheia de prazeres na cosmopolita Lisboa do início do século XX. Bons amigos, bons vinhos, cafés e uma coleção de conquistas amorosas. Aufere sua renda de uma firma de navios de carga e de passageiros de sua propriedade. Diariamente, Luís Bernardo acorre ao seu escritório para administrar a companhia, que, a bem da verdade, não lhe traz dores de cabeça. Esta é a vida amena – no tocante a trabalho e preocupações – e cheia de prazeres do protagonista do romance Equador, do escritor português Miguel Souza Tavares. Até que Luís é convocado a uma reunião com o Rei de Portugal, D. Carlos. Sua Majestade, então fustigado por republicanos assanhados, que propugnam o fim da monarquia, recebe o abonado súdito no Paço de Vila Viçosa. Aqui, Luís Bernardo tem um dia agradável ao lado de nobres e participa, com desenvoltura, de conversas que vão de amenidades a relações internacionais. A política externa é, aliás, o motivo da convocação real. E pega o protagonista de veneta. A Inglaterra insiste que Portugal mantém trabalhadores em situação análoga à escravidão em suas colônias na África. Especialmente nas ilhas equatorianas de São Tomé e Príncipe. Diante das
negativas da diplomacia portuguesa, a Inglaterra se vê na iminência de enviar um agente a São Tomé e Príncipe para averiguar in loco a situação dos trabalhadores africanos naquela colônia lusa. A preocupação inglesa tem motivações antes econômicas que humanitárias. Para os britânicos, o eventual trabalho escravo nas colônias lusas fere acordos entre os dois países e consiste em uma concorrência desleal à indústria inglesa, que remunera a sua mão de obra. A despeito disso, os portugueses veem sérios indícios de que a própria Inglaterra emprega mão de obra em condições desgraçadas em suas colônias. Em todo caso, diante da ameaça, por parte da Inglaterra, de brecar as importações da colônia lusa ao largo da costa africana, caso constate trabalho escravo, a coroa portuguesa resolve investir o progressista Luís Bernardo no cargo de governador de São Tomé e Príncipe, com vistas a mediar a visita de inspeção do cônsul inglês àquela colônia. Apesar de pensar seriamente em recusar o convite, Luís Bernardo se sente constrangido de dizer não ao rei. Desta forma, o perfeito cavalheiro, depois de desfazer-se de seu negócio de navios, translada-se para os trópicos, a fim de ter com os grandes roceiros das ilhas e tentar maquiar ao máximo a situação da mão de obra daquelas paragens ante os olhos ingleses.
A bordo do navio Zaire, ao chegar à capital de São Tomé e Príncipe, o novo governador fotografa com os olhos a frugal cidade: “[...] sobre a esquerda o Palácio do Governo, a mais visível e imponente construção, dominando uma larga praça que parecia ser o lugar mais amplo de toda a cidade, já quase no seu extremo. Na avenida principal, em frente, as palmeiras oscilavam com o vento e eram elas que, antes de mais nada, recordavam ao recém-chegado que estava em África, se bem que no alto mar e em plena linha do Equador. Mas, ao fundo, os telhados das casas, de telha lusitana e de duas águas, diziam-lhe que aquela era terra portuguesa e, no meio da apreensão que o consumia, Luís Bernardo comoveu-se com essa visão e sentiu-se estranhamente em terra familiar”. O leitor verá que, para o cosmopolita lisboeta, será menos difícil se adaptar às intempéries do Equador, com sua umidade, mosquitos e calor, do que convencer os anacrônicos roceiros a fazerem qualquer concessão a seus trabalhadores, a maior parte oriunda de outra colônia portuguesa na África. A gigantesca e promissora Angola. Essa narrativa está contida no livro Equador, de autoria do escritor e jornalista português Miguel de Souza Tavares. g g
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BIOGRAFIA JOSÉ XAVIER CORTEZ: LIVREIRO E EDITOR Neide Medeiros Santos*
Os rios que eu encontro vão seguindo comigo. Rios são de pouca água em que a água está por um fio. Cortados no verão que faz secar todos os rios. (João Cabral de Melo Neto) O livreiro e editor José Xavier Cortez nasceu em 1936, no Sítio Santa Rita. O sítio fica situado no município de Currais Novos (RN), cidade que integra a região do Seridó. Os rios que banham essa região são temporários, com pouca água e o leito fica seco no verão. Apresentam semelhanças com os rios pernambucanos bem descritos no poema de João Cabral de Melo Neto. José Xavier Cortez é o mais velho dos dezessete irmãos do casal Mizael Gomes e Alice Cortez Gomes. Sete morreram na primeira infância, criaram-se dez. Até os dezessete anos morou com os pais, trabalhando na agricultura e no garimpo dos rios. Teve uma vida árdua e de muito trabalho. Morando em um sítio, foi alfabetizado em uma escola rural. Para cursar o primeiro ciclo do ensino básico, caminhava nove quilômetros diariamente. Na adolescência, desejou ser caminhoneiro, queria viajar, conhecer outros mundos, ir além do acanhado sítio onde morava. Encantou-se com a música de Luiz Gonzaga e pensou em ser sanfoneiro. A admiração depois se voltou para a figura dos professores e despertou um profundo desejo de ser professor. Todos esses sonhos pareciam muito distantes para o jovem de família numerosa e pobre. Terminou o curso primário no grupo escolar Capitão-Mor Galvão, em Currais Novos. Com a aquiescência dos pais, foi morar em Natal, na casa de um tio. Do período em Natal, sobreviveu de “bicos”, vendendo frutas com um balaio na cabeça. Era a época dos famosos “pregões matinais”. Cerca de um ano e meio depois se transfe-
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riu para o Recife e ingressou na EAMPE (Escola de Aprendizes de Marinheiros de Pernambuco). Saiu da Escola de Aprendizes de Marinheiro do Recife e embarcou em um navio de guerra, em março de 1956, para o Rio de Janeiro. No Rio, completou o segundo grau, atual ensino médio, e dedicou-se ao ofício de marinheiro por nove anos. Na marinha, fez curso de especialização em máquinas e começou a exercer a atividade de mecânico na praça de máquinas dos navios. Os marinheiros e cabos eram tratados com desprezo por grande parte dos oficiais superiores. Ganhavam muito pouco e sofriam humilhações e “abusos psicológicos”. No início da década de 1960, foi fundada a AMFNB (Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil). Cortez engajou-se nesse movimento e começou a sua luta por justiça social e reivindicação de direitos. Veio o golpe militar de 1964 e esse movimento passou a ser visto com receio pelos militares. O cabo Anselmo se infiltrou na Associação e delatou os companheiros, entre eles estava José Cortez. No meio de uma reunião da AMFNB, o Exército invadiu a assembleia dos associados e prendeu todos os presentes, inclusive Cortez, que foi enquadrado como “subversivo”. Cortez respondeu a um inquérito Policial Militar (IPM) que durou nove meses. Em dezembro de 1964, foi expulso da Marinha por insubordinação. Sua experiência profissional compreendia vida como agricultor e aprendiz de marinheiro. Não desejava retornar ao sítio Santa Rita, o Rio também se tornou inviável. Sem muita opção, resolveu ir para São Paulo, terra que acolhia bem os nordestinos. Em São Paulo, a vida também não foi fácil. Trabalhou no estacionamento de carros e muitas vezes ajudou a empurrar automóveis que ficavam cobertos pelas águas da chuva, as famosas “águas de março”, águas de verão. Aprendeu a manobrar os carros e tirou carteira de motorista. Resolveu fazer
um cursinho preparatório para o vestibular e adquiriu o hábito de ler. Foi aprovado no vestibular da PUC - SP e cursou Economia. A PUC era um reduto de resistência à ditadura. O elenco de professores incluía intelectuais de grande prestígio que combatiam a ditadura militar. Quando estava na universidade, conseguiu um emprego na CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo), atual CEASA. O salário era um pouco melhor, mas insuficiente para sustentar a família. Estava casado com Potira e tinha filhos pequenos. Foi morar perto da PUC. Ao lado do local onde morava, havia uma editora que publicava muitos títulos direcionados ao curso de Economia. Viu uma boa oportunidade de ganhar um dinheirinho extra vendendo livros aos colegas do curso. Ganhava um percentual sobre os exemplares comercializados. O amor aos livros e à leitura levou-o a dedicar-se à venda de livros de modo definitivo. A fama de livreiro foi ganhando força dentro da PUC - SP e começou a ser procurado não só por alunos que queriam adquirir livros, mas por professores. Tornou-se uma referência no mercado livreiro, associou-se a um colega de curso e criou a livraria “Cortez&Moraes”. Passado algum tempo, a sociedade foi desfeita e Cortez criou a sua própria livraria. Mais tarde, estruturou uma editora e surgiu a Cortez. Editora. Um dos primeiros livros editados pela nova editora foi “Metodologia do Trabalho Científico”, do professor da PUC - SP, Antônio Joaquim Severino, um dos grandes nomes da educação brasileira. Esse livro tornou-se o carro chefe da recém-fundada Cortez Editora em janeiro de 1980. Progressivamente a Editora aumentou seu catálogo publicando obras de outros segmentos das Ciências Humanas. Cortez Editora tornou-se a casa editorial de autores como Paulo Freire, Florestan Fernandes. Maurício Tragtenberg e muitos outros. Ao lado dos livros da área de Ciências
Sociais, a editora tem um mercado forte na literatura infantil. Vários livros dedicados ao público infantojuvenil ganharam prêmios nacionais, entre eles “Uma história tecida em seda” (Cortez, 2007), texto e ilustrações de Lúcia Hiratsuka. Ainda, na área dos infantis e paradidáticos, destaco o trabalho feito pela Cortez sobre as capitais brasileiras, com textos escritos por escritores consagrados de cada Estado e ilustrados por artistas locais. O texto sobre a cidade de João Pessoa, com o título “João Pessoa – onde o sol nasce primeiro”, foi escrito pelo historiador José Octávio de Arruda Mello e contou com belas ilustrações do arquiteto e artista plástico Sóter Carreiro. A experiência no ramo livreiro proporcionou histórias curiosas que revelam a índole do livreiro/editor. Certa vez, em uma festa, um rapaz se gabou de haver roubado livros na Livraria Cortez quando era estudante na PUC - SP. Ao saber da história, Cortez teve essa reação: “limitou-se a sorrir e em fazer votos de que aqueles títulos afanados tivessem sido úteis”. Pediu ao rapaz que procurasse formar alunos que tivessem apreço ao livro e ao conhecimento. Outra vez, foi assaltado na sua livraria e feito refém juntamente com outros funcionários. Percebeu que um dos assaltantes era nordestino como ele. Conversando com este assaltante, ofereceu-lhe um presente: deu-lhe os dezoito primeiros livros recém-lançados da linha infantojuvenil, novo segmento da Editora Cortez. Não perdeu a oportunidade de aconselhá-lo: “Garoto, espero sinceramente que estes li-
vros ajudem seus filhos a não terem uma vida como a sua.” A respeito do livro “Histórias tecidas em seda”, tenho também uma história para contar. Em 2008, compareci à Feira de Livros Infantis no Rio de Janeiro e tive a oportunidade de conhecer Lúcia Hiratusuka, vencedora do Melhor Livro para Crianças do Ano (FNLIJ, junho de 2008). Convidei-a para participar da Feira Japonesa de João Pessoa que seria realizada no Espaço Cultural naquele mesmo ano (agosto de 2008). A Associação Japonesa da Paraíba não dispunha de dinheiro para bancar a vinda de escritora. Falei com o Sr.. Cortez que me disse: “Compre a passagem da escritora com seu dinheiro. Espero que a venda dos livros cubra o preço da passagem, assim você terá seu dinheiro de volta”. Fui aos jornais, televisão, fiz a divulgação do livro da escritora, proclamei a excelência de sua prosa poética. Tudo ocorreu como havia previsto. O livro vendeu muito bem na Feira Japonesa e não tive prejuízo. O editor cumpriu a promessa. Lúcia ficou hospedada no meu apartamento e levei-a para conhecer o bairro do Varadouro. Ficou encantada com a riqueza do patrimônio histórico do local, tirou foto de uma janela abandonada pela ação do tempo. Mais tarde reproduzi essa janela em uma pequena tela e figurou no álbum “Janelas do Mundo” ( 2010). Assim é o livreiro e editor José Xavier Cortez, um homem simples, amável, demasiadamente humano. Cultiva livros com o mesmo carinho que devotava às terras do Sítio Santa Rita, no Seridó do Rio Grande
do Norte. José Xavier Cortez é hoje um livreiro e editor bem sucedido. Seu lema de vida é este: “A leitura me levou a ser o que sou hoje”. Já recebeu inúmeras homenagens e foi objeto de livros que falam sobre sua vida e sua luta em prol da educação e do livro no Brasil. Duas biografias já foram publicadas sobre a vida de José Cortez: “Cortez: a saga de um sonhador”, finalista do Prêmio Jabuti em 2012, de Teresa Sales e Goimar Dantas e “Como um rio - o percurso do menino Cortez”, destinado ao público infantil, de Silmara Rascalha, ilustrações de Lisie De Lucca. O professor Marcos Cezar de Freitas, da UNIFESP, integrante do Conselho Editorial de Educação da Cortez e Filipe Mendonça, colaborador da Cortez Editora, organizaram um livro - memorial para comemorar os 80 anos de quem muito lutou para realizar seus sonhos – “Cortez em seus 80 anos”. Este livro é o melhor atestado de que o estudo e a leitura são coisas preciosas, podem levar muito além do horizonte sonhado. Na entrevista concedida ao professor Marcos Cezar e a Filipi Mendonça, Cortez relembra sua trajetória em prol do livro e da leitura com muito orgulho. Sente-se realizado por tudo que conquistou, principalmente com o que fez para tornar a sociedade brasileira mais justa e mais consciente através da divulgação do livro. g * Neide Medeiros Santos. Escritora, pesquisadora, autora das biografias: “Epitácio Pessoa em quadrinhos” ( Ed. Patmos, 2015), “Vidal de Negreiros em quadrinhos” ( Patmos, 2016) e “Autores e livros em contraponto” ( Ed. Mídia Gráfica e Editora, 2016).
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MEMÓRIA VIOLAÇÃO DO ESPAÇO DE MEMÓRIA: O CASO DA AVENIDA PRINCESA ISABEL EM JOÃO PESSOA Márcia de Albuquerque Alves1
A atual cidade de João Pessoa foi fundada em 05 de agosto de 1585 à margem do Rio Sanhauá, batizada inicialmente de Nossa Senhora das Neves em homenagem à santa do dia. Após diversas tentativas em expedições mal sucedidas, a Capitania da Paraíba foi criada para assegurar a posse efetiva dessas terras, que até então se mantinham exploradas por franceses, aliados às tribos indígenas locais, medida aquela que possibilitou sua conquista pelos portugueses. Surgida às margens do Rio Sanhauá, local de acesso para as embarcações que ali chegavam, a cidade foi se estruturando. No alto da colina, foi edificada uma capela, posteriormente elevada à condição de igreja matriz, definindo então a estrutura inicial entre cidade alta – o lugar da matriz - e a cidade baixa, à margem do rio, área também denominada de Varadouro. Na cidade alta inicialmente foi aberta a Rua Nova, a qual tinha início à porta da igreja matriz, sendo ali edificadas a Casa de Câmara e Cadeia. De importância singular para a formação do núcleo urbano e para a colonização da capitania foi a implantação das ordens religiosas na cidade que chegaram na seguinte sequência: os padres da Companhia de Jesus, os franciscanos, a irmandade da Santa Casa de Misericórdia, os frades da Ordem de São Bento e os carmelitas, que edificaram suas igrejas e mosteiros, todos próximos à igreja matriz. Fazendo a ligação entre o Varadouro e a cidade alta nasceu a ladeira de São Francisco. Desta forma, a cidade foi ganhando formato. Na cidade alta, além da Rua Nova, surgiu a Rua Direita. É válido destacar que havia algumas vias transversais, tais como a Rua da Misericórdia e a Travessa do Carmo, cujo trajeto estava associado à posição assumida pelos edifícios religiosos na malha urbana. Estes logradouros constam entre os primeiros a compor a organização
urbana da cidade, que, a partir de 1588, passou a se chamar Filipéia de Nossa Senhora das Neves, em homenagem ao rei de Espanha e Portugal. Por ser a Paraíba a terceira capitania em ordem de grandeza e importância econômica na colônia, atraiu os invasores holandeses que, em 1634, após fracassadas investidas, ganharam o domínio sobre ela. objetivando se apropriar do comércio açucareiro. Desta forma, Filipéia teve seu nome alterado para Frederica em honra de Frederico Henrique, Príncipe de Orange. Estes invasores se apoderaram do convento de São Francisco, fortificando-o para dar abrigo ao governador e às tropas. Seus investimentos se limitaram à recuperação das estruturas necessárias à economia açucareira, como os engenhos, enquanto fizeram muito pouco pela melhoria da cidade. Com a expulsão dos Holandeses, a cidade passa a se chamar Cidade da Parahyba, passando por um longo processo de recuperação diante do quadro de precária situação econômica em que se encontrava. No entanto, no início do século XVIII a cidade ganhou alguns novos edifícios, como a construção da nova Casa da Pólvora edificada na Ladeira de São Francisco, e um rico patrimônio edificado pela Igreja. Porém, apesar da escassez de recursos que a capitania enfrentava, as ordens religiosas conseguiram erguer conventos que marcaram presença por suas dimensões e igrejas que exibem até os dias atuais, um requinte arquitetônico e artístico que nos possibilitam visitar o passado por meio deste patrimônio histórico. Em Janeiro de 1755, por ordem da coroa portuguesa, a Capitania da Paraíba passou a ser anexa à de Pernambuco, necessitando da autorização da Junta da Fazenda de Pernambuco para execução de qualquer obra, o que conduziu a Paraíba à inércia até meados de 1799, quando a mesma foi declarada liberta de Pernambuco. Estava por vir um período
de relativa prosperidade, com um aumento considerável de habitantes na cidade da Paraíba. Alguns melhoramentos pertinentes ao processo de modernização dos centros urbanos, ocorrido no século XIX, começaram a chegar à cidade. Em 1829, foi implantada a primeira iluminação pública. Em 1836, foi criado o Liceu Paraibano, o primeiro estabelecimento de ensino secundário da Paraíba. Neste mesmo ano, teve início a reconstrução da ponte do Rio Sanhauá, cuja existência remontava a 1831. Na segunda metade do século XIX, o incremento da lavoura algodoeira proporcionou novas perspectivas à economia paraibana, e a riqueza produzida pelo algodão se refletiu num crescente processo de melhoramentos urbanos. Começava, também, o crescimento da cidade seguindo os eixos definidores dos futuros bairros de Trincheiras e Tambiá. Diversos edifícios vieram registrar esta fase de prosperidade e modernização da Paraíba na segunda metade do século XIX, alguns expressando, também, as mudanças de hábito da sociedade da época, a exemplo do prédio da Escola Normal, concluído em 1886, e do Teatro Santa Roza, inaugurado em 1889. Entre os melhoramentos advindos com a riqueza do algodão, o mais notável foi a ferrovia que começou a ser implantada em 1880. Outro símbolo de modernidade foi a chegada do serviço de bondes movidos à tração animal, instalado na capital no ano de 1896, favorecendo a consolidação da ocupação dos bairros de Tambiá e Trincheiras. O poder público também fez algumas intervenções modernizantes no meio urbano. Na cidade baixa, o Largo da Gameleira, porta de entrada da cidade, foi arborizado e calçado, passando a ter a denominação de Praça Álvaro Machado. Na cidade alta, obras foram iniciadas, em 1879, para transformar o Campo do Comendador Felizardo em um Jardim Público, sendo gradeado e arborizado com palmeiras imperiais, tendo um co-
Mestra em História pela Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual da Paraíba. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ensino de História da Linha: Ensino de História e Saberes Históricos da UFPB coordenado pela Profa. Dra. Vilma de Lurdes Barbosa. Pós-Graduada Lato Sensu em História da Paraíba pela FNSL – Faculdade Nossa Senhora de Lourdes, representada na Paraíba pelo CINTEP-PB – Centro Integrado de Tecnologia e Pesquisa. Graduada em História pela UFPB. Coordenadora de Assuntos Históricos, Artísticos e Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba - Iphaep. Professora de Fundamento Sócio-Antropológico e Trabalho de Conclusão de Curso no Curso de Ciências Contábeis do Instituto de Educação Superior da Paraíba - IESP.
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reto em torno do qual se reunia a população que vivia uma época de transformações nos hábitos de convívio social. Nas primeiras décadas do século XX, o poder público promoveu intervenções voltadas para a melhoria da infra-estrutura urbana, como a implantação dos serviços de abastecimento de água, iluminação e transportes públicos fazendo uso de energia elétrica, calçamento de ruas, entre outros. Neste sentido, entre os anos de 1908 e 1912, no governo de João Machado, ocorreu a abertura da avenida João Machado, o calçamento de ruas nos bairros de Trincheiras e Tambiá. Neste período, praças foram modernizadas e ruas foram abertas, alargadas, alinhadas, calçadas, além de receberem arborização e iluminação elétrica. A abertura da Avenida Epitácio Pessoa foi iniciada e as duas vertentes de crescimento da cidade – Trincheiras e Tambiá – se tornaram mais próximas através da abertura da Avenida Maximiano de Figueiredo. A conclusão das obras de urbanização do Parque Solon de Lucena, em 1937, possibilitou a abertura ou maior ocupação das avenidas Getúlio Vargas, Coremas, Duarte da Silveira e Maximiano de Figueiredo. Algumas ruas do Varadouro, como a Maciel Pinheiro, concentravam, até meados do século XX, o melhor comércio grossista e varejista da capital paraibana. Entre a Rua Beaurepaire Rohan e o Sanhauá, o número de prédios comerciais prevalecia, em maioria esmagadora. Na cidade alta, o comércio fino se espalhava pela Rua Duque de Caxias e adjacências, onde estavam magazines, bons armazéns de alimentos, casas de lanches e sorveterias. Desta forma, é imprescindível destacar que desde o processo de conquista, ainda no século XVI até o final do século XIX, a população negra se fez presente constituindo com sua influência um patrimônio singular na sociedade paraibana. Os povos negros escravizados foram fundamentais na construção desta cidade, tal como destaca Galliza (1979, p.23-27), A escravidão foi o sustentáculo da economia paraibana, sobretudo nos tempos coloniais. A colonização da Paraíba teve início com a agricultura da cana de açúcar, que, por muito tempo, representou sua principal força econômica. Mas foi o braço escravo que possibilitou o seu desenvolvimento. Assim, podemos perceber que o cenário relatado nas páginas anteriores possuiu como personagens principais, as populações negras que construíram de maneira direta e indireta a memória histórica da Paraíba. De acordo com Galliza (1979) e Rocha (2009), o número de habitantes negros na Paraíba foi relativamente impactante, aumentando
consideravelmente, o que nos condiciona a refletir sobre a população negra e mestiça de que ainda descendemos nesta cidade. Segundo Brito (2015, p. 72), Os negros da Paraíba eram oriundos especialmente de Angola a Cabo Verde, os primeiros eram chamados de negros da Guiné e eram utilizados principalmente para os serviços domésticos, enquanto os últimos, por serem mais robustos e mais adaptados aos serviços da lavoura, serviam aos plantios e custavam mais caro. Os preços dos escravos variavam de acordo com o sexo, porte físico, idade, tribo de origem e estado de conservação. Os negros trabalhavam dia e noite cumprindo uma jornada de trabalho desumana sob a fiscalização de um feitor de chicote em punho. Viviam em senzalas, onde ficavam presos quando não estavam trabalhando, em péssimas condições de higiene, e sua alimentação consistia em carne seca e farinha. Rigorosos eram os castigos pelas faltas cometidas, desde o açoite com relho de couro cru, mutilações, e até o tronco, onde eram presos pelos tornozelos dias a fio. As mulheres também sofriam muito com a escravidão, embora os senhores de engenho utilizassem esta mão-de-obra principalmente para trabalhos domésticos. cozinheiras, arrumadeiras e até mesmo ama de leite. Na opinião de Galliza (1979, p.164209), As primeiras manifestações emancipacionistas ocorreram na década de 1860. Fatores de ordem externa e interna concorreram para o enfraquecimento da escravidão brasileira. (...) Ao raiar o ano de 1888 os escravos existentes na Paraíba orçavam em 9.040 o que representava uma diminuição de 19.146 cativos desde 1852. Para Alves (2016), a população negra no Brasil busca desde a abolição em 1888, a liberdade e a visibilidade na sociedade que a “trata pejorativamente”. Parte das populações negras da sociedade luta por um tempo em que a cor da sua pele não mais simbolize sua existência como “imperfeição”, marcas produzidas no processo de escravidão que durou mais de três séculos neste país. De acordo com Pinsky (2006), a escravidão sujeitava um homem ao outro, até sua vontade estava de acordo com a autoridade do seu dono. O negro, escravizado no Brasil, era considerado peça dentro de um sistema violento que transformou seres humanos em objetos. Precisamos observar que dos 431 anos de existência desta cidade, quase três séculos foram vividos sob escravidão, e parte considerável da nossa geração descende do povo negro, se reconhecem e se intitulam como tal, mediante o Instituto de Igualda-
de Racial que destaca no Art. 1º, item IV, população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga; (grifo nosso) Ou seja, temos uma população paraibana essencialmente negra que construiu/ constrói um patrimônio histórico rico em diversidade, pontuadas de influência e heranças culturais que devem ser respeitadas valorizando a nossa ancestralidade (ALVES, 2016). Partindo desta perspectiva, na intenção de destacarmos a importância da homenageada, pontuamos a importância da Princesa Isabel, de acordo com Barman (2005, p. 16), Os historiadores raramente mencionam D. Isabel, como a filha de D. Pedro II. Quando eventualmente se referem a ela, é por duas realizações: em 1871, a princesa sancionou a Lei do Ventre Livre, assegurando a extinção paulatina da escravidão no país; em 1888, teve um destacado papel na supressão imediata da escravidão. Os abolicionistas não tardaram a intitulá-la a Redentora, e o epíteto perdurou. Na qualidade de redentora, D. Isabel continua a ser um verdadeiro ícone na cultura popular. (...) Durante quase quarenta anos (18511889), foi a herdeira do trono. Em três ocasiões, entre 1871 e 1888, que somam três anos e meio, governou o país durante a ausência do pai, que estava no exterior. Na qualidade de regente, exerceu o considerável poder que a constituição de 1824 conferia ao monarca.(...) Os historiadores concordam que o caráter e os atos de D. Isabel foram fatores que muito contribuíram para a substituição do regime imperial pelo republicano em 15 de novembro de 1889. Mesmo numa perspectiva mais ampla, também é considerável a importância da princesa Isabel. Ela é uma das nove - e apenas nove - mulheres, em todo o mundo, que ocuparam o posto de autoridade suprema de seus países no século XIX. (....) Como podemos observar, a Princesa Isabel representa um ícone para a história do Brasil, visto que ao sancionar a Lei Áurea, a mesma condicionou de alguma forma “liberdade” ao povo negro. É válido destacar que a referida lei não aboliu todos os grilhões e nem garantiu liberdade de fatores ideológicos que ainda escravizam a população negra, que até os dias atuais batalha para ter espaços garantidos em um sistema de igualdade dentro de uma sociedade ainda racista. No entanto, não podemos deixar de identificá-la como uma personagem significativa para o reconhecimento da composição étnica da sociedade brasileira, e consequentemente, paraibana. Janeiro/Fevereiro/2017 |
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SOBRE A MUDANÇA DE NOMENCLATURA DA AVENIDA PRINCESA ISABEL Conforme Bloch (2001, p.54-55) Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, os artefatos ou as máquinas, por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Ou seja, a história é composta por ações, transformações e permanências do homem através dos ponteiros invisíveis da temporalidade. A passagem da vida na terra, do nascimento à morte, narra o espetáculo das atividades humanas, o objeto mais fascinante e intrigante da história. Nesta perspectiva, ao compartilhar sonhos, medos, prazeres e frustrações, os homens estabelecem as vivências sociais, consequentemente, constroem uma memória edificada. Os patrimônios material e imaterial contemplam uma infinidade de edificações, espaços, ensinamentos, modos de viver e tradições. A história da humanidade se relaciona intrinsecamente aos espaços de sociabilidade, dando a estes um valor afetivo e memorial. Assim, a identidade e o sentimento de pertença são construídos ao longo do tempo nos mais diversos espaços sociais. Neste sentido, o Art. 216 da Constituição Federal de 1988, destaca que Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (grifos nossos)
O patrimônio cultural brasileiro é composto por elementos de natureza material ou imaterial, portadores de referência à identidade e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Desta forma, os espaços urbanos são por excelência guardiões de memórias dos povos que os constituíram. Por meio da identidade individual e coletiva, estes espaços garantem a nossa continuidade, a permanência de nossas histórias e a certeza da eternidade por meio das gerações futuras. Portanto, compreendemos a Avenida Princesa Isabel como um lugar de registros memoriais e a mudança do seu nome sem consulta prévia à população local e aos órgãos de Patrimônio, tais como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba - Iphaep, no qual a referida Avenida está inserida na área de proteção rigorosa e de entorno, para além de demais órgãos de competência, provoca uma violação para com a identidade dos que nesta cidade habitam, tornando-se uma agressão à memória urbana, social e coletiva paraibana. A rua é uma extensão da casa, da vida e da sociedade. Esta Avenida em particular, ainda possui nesta nomenclatura vestígios de uma história familiar, visto que a Avenida Princesa Isabel cruza as Avenidas Dom Pedro I, fazendo referência ao seu avô, e, Dom Pedro II fazendo menção ao seu pai, ou seja, o nome da Princesa Isabel tem um sentido em estar exatamente neste lugar. Conforme Coutinho (2001), a Avenida Princesa Isabel recebeu o referido nome em homenagem a Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Gonzaga de Bragança, nascida no Rio de Janeiro em 29 de julho de 1846, filha de Dom Pedro II e de Dona Tereza Cristina. Era casada com Luiz Felipe Maria Fernando Gastão de Orleans, Conde d’Eu. Em sua regência, em 1888 (quando da viagem de seu pai ao exterior), sancionou a Lei Áurea, abolindo o sistema de escravidão negra no Brasil, no dia 13 de maio. Exilada do Brasil em 1889, faleceu em Paris em 1921, impedida de voltar ao Brasil como era seu desejo. Os restos mortais
estão sepultados na Catedral de Petrópolis. Esta sofreu o mais longo exílio que registra a nossa história. Nos livros mais clássicos não consta a data exata no qual este logradouro foi batizado, o que nos indica uma forte suposição de que a mesma possui este nome há várias décadas. Neste sentido, o Iphaep, enquanto órgão de proteção patrimonial, foi informado, pela população inquieta, que mudaram parte do nome desta rua, uma das mais tradicionais de João Pessoa, ou seja, parte da Avenida Princesa Isabel se tornou Avenida Doutor Leonardo Lívio Ângelo Paulino - uma homenagem póstuma a um servidor de carreira do quadro permanente do Tribunal Regional Eleitoral-PB, morto devido a um acidade ocorrido na Avenida Epitácio Pessoa, no dia 11 de janeiro de 2015. Segundo a Lei nº 13.154 de 20 de dezembro de 2015, sancionada pelo Prefeito Municipal, o novo nome começa nas proximidades do TRE. CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo deste pressuposto, entendemos que a referida avenida é um espaço de memória de moradores/transeuntes de João Pessoa, não apenas dos que habitam/comercializam/trabalham na mesma. A mudança ocorrida constitui uma ação de violação à memória histórica do Brasil e da Paraíba, visto que a homenageada simboliza um ícone singular para a História do povo negro brasileiro/paraibano. A ação também viola a questão patrimonial, visto que a mesma está inserida em uma área de proteção do Iphaep que não foi consultado quanto a propositura de mudança da nomenclatura da avenida em questão. Destacamos também, que em momento algum depreciamos ou diminuímos a importância do referido homenageado, o doutor Leonardo Lívio Ângelo Paulino, mas enfatizamos que o mesmo pode e deve ter seu nome em outro logradouro ainda sem denominação. Por fim, consideramos que a referida ação é irregular e ilegítima ferindo a história da sociedade paraibana, registrada na memória edificada da malha urbana. g
REFERÊNCIAS ALVES, Márcia de Albuquerque. Uma década da Lei 10.639/2003 nos cursos de História das Instituições Públicas de Ensino Superior na Paraíba: formação, pesquisa e ensino. Dissertação. João Pessoa, 2016. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Tradução Vera Ribeiro. Revisão de tradução Fernando Rosa Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 304 p. BARMAN, Roderick. Princesa Isabel do Brasil: gênero e poder no século XIX. Tradução de Luiz Antônio Oliveira Araújo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O Ofício de historiador. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 14 Dez. 2016. BRITO, Erik. História Colonial da Parahyba. Campina Grande: Cópias & Papéis, 2015. GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da Escravidão na Paraíba 1850-1888. Editora Universitária: João Pessoa, PB, 1979. PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São Paulo: Editora UNESP, 2009. RODRIGUEZ, Walfredo. Roteiro Sentimental de uma cidade. 2ª ed. Editora a União: João Pessoa, 1994.
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POESIA CINCO POEMAS DE OCTÁVIO DE SÁ LEITÃO (SÊNIOR)(*)
Saudades de Minha Mãe
Pedrosa Junior Ao dr. Pedro Pedrosa
À minha bôa irmã Carmen Leitão de S. Carvalho Saudades de Mamãe, eu sinto agora Dentro do coração me devorando! Minh´alma vive sempre soluçando, É a lembrança que dentro della mora! Uma tristeza eterna me apavora, Inquieta, no meu corpo cincundando! - Desprezado do Amor e caminhando Vou sózinho seguindo estrada em fóra! Se transformando em prantos fortes vão Os meus prazeres de uma fonte calma Habitar em meu pobre coração! Oh! minha Mãe, creatura minha, exangue: - Não desprezes os versos de minh´alma, Que são estrophes feitas de meu sangue!
“A vida não é mais do que um deserto” Clareado pela luz da fantasia! Elle tinha uma vida de harmonia! Quanto dói se viver no mundo incerto! Aqui descrevo a minha nostalgia Num soneto de lágrimas coberto. Foi bondoso e feliz. Morreu bem perto De seus Paes. Oh! tristissima agonia! A morte é negra como a noite escura; É negra e falsa como a vejo agora: - Inimiga do lar e da ventura! Morreu. E o meu pesar eterno, vae Unir-se nas regiões da bella Aurora Com os soluços eternos de seu Pae!
Cego
Resignação Inspirado no “EU” de Augusto dos Anjos
A Synesio Guimarães
12 Versos A Genésio Gambarra Sonhei que era feliz! Oh! Gozo infindo. Foi um sonho repleto de alegria. Vi teu semblante alvíssimo surgindo, Surgindo alegre ao despontar do dia! Acordei. O silêncio era profundo Como o sepulchro e o verdadeiro amor... Eu tive uma illusão, que, neste mundo, De tanto padecer morreu de dor! Minh´alma é como o mar: vive a gemer. - E tu não crês, ó filha, em meu penar? Ah! Quanta gente chora sem soffrer E quanta gente soffre sem chorar!
Cego. Alta noite. O mar soluça ao longe. Ouço apenas os cantos das sereias E o sangue accêso em minhas próprias veias Corre. Andorinhas passam sem eu vel-as. Chamo-as e nada... Oh! grande dôr infinda! Abraço-me na sombra da tristeza E sinto uma saudade com certeza Do céo, do mar, da luz e das estrellas! - Oh! vida assim cruel, oh! vida ingrata: Para que tú não foges do meu Ser? Não quero mais amar, nem mais soffrer. Eu quero é ver o mundo, é o meu desejo! Preciso ter a luz que eu tão bemdigo. Sim, amor, quero ver-te e não consigo Porque sou cego, amor, e não te vejo!
Ao dr. Aprigio dos Anjos Eu tenho convicção de ser cardíaco E, sentindo o ar faltar-me com aspereza, Melhoro deste mal e, com certeza, É porque gosto de ether e de ammoniaco! Hereditariamente hypocondriaco. Minha consciencia, é pois, u´a vela accêsa, Morrendo em consequencia da fraqueza Como morre a memória de um maníaco! Meu coração não soffre os desenganos... Na futura caveira e nos meus ossos Faltarão as riquezas e o meu nome! Mas depois de passados muitos annos Os vermes, não achando os meus destroços, Logicamente morrerão de fome!
Na transcrição destes poemas foram mantidas rigidamente a grafia e a prosódia consignadas no livro SIGNOS, publicado em 1915.
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