CAPA
(corel x8)
Jackson do Pandeiro Rhythm King
2
| Setembro/Outubro/2017
ISSN: 2357-8335
CARTA AO LEITOR Uma pergunta que não quer calar: gringo gosta de forró? Quem tenta responder a essa profunda indagação é Érico Dutra Sátiro Fernandes, com uma das mais interessantes pesquisas que se fizeram em torno da matéria, revelando-nos o que foi produzido em CDs de forró, para divulgação exclusivamente no exterior. Você sabe para onde vai o direito? Os tempos modernos favorecem novos caminhos para a ciência jurídica, bem distantes daqueles que foram traçados por Cícero e pelos filósofos que se dedicaram a dar-nos um conhecimento primeiro das normas que se foram criando para disciplinar a vida em sociedade. As novas perspectivas jurídicas nos são mostradas por Gustavo Rabay Guerra em O direito do futuro e o futuro do direito. Ao acadêmico Ivan Lins coube receber, na Academia Brasileira de Letras, o paraibano Aurélio de Lira Tavares, doublê de militar e homem de letras, autor de mais de trinta livros, numerosos artigos em revista e jornais, além de importantes conferências, ensaios e discursos. Em seu discurso de saudação, transcrito nesta edição, Ivan Lins diz que os trabalhos do recipiendário constituem “uma obra construída com amor, seriedade e segurança”. Também nesta edição uma página de Coriolano de Medeiros, o saudoso fundador da Academia Paraibana de Letras, relembrando paisagens e figuras da antiga Capital Parahyba, antes de se chamar João Pessoa. Ainda um encontro meramente livresco, mas nem por isso falto de interesse, de Neide Medeiros Santos com Antônio Cândido, o genial crítico literário brasileiro, recentemente falecido. Outros temas são oferecidos ao caro leitor, mas deles deixamos de falar, para dar lugar a uma nota de alegria e contentamento, representada pelo registro do retorno à circulação do jornal CONTRAPONTO, tirado de circulação há algum tempo, por motivos que fogem à nossa alçada. O que é importante fazer nesta hora é, sem dúvida, saudar a volta de um jornal que há anos se faz presente na imprensa paraibana, seguindo uma linha editorial e noticiosa que se faz única e, sobretudo, fiel aos ideais de seu fundador e editor, o intemerato e intimorato jornalista JOÃO MANUEL DE CARVALHO, a quem parabenizamos, reconhecendo em sua pessoa um dos mais expressivos nomes do jornalismo paraibano.
SUMÁRIO
05
O EFEITO SURPRESA NA SÉTIMA ARTE Andrés von Dessauer
07
AS ENTRANHAS DE SUA MAJESTADE Conto de Cláudio José Lopes Rodrigues
08
EU ME CHAMO ARIANO Juca Pontes
09
OBRA CONSTRUÍDA COM AMOR, SERIEDADE E SEGURANÇA Ivan Lins
18
DO NORDESTE PARA O MUNDO Érico Dutra Sátiro Fernandes
21
O FUTURO DO DIREITO E O DIREITO DO FUTURO Gustavo Rabay Guerra
25
ENCONTROS COM ANTONIO CÂNDIDO: DEPOIMENTO E METACRÍTICA Neide Medeiros Santos
28
POESIA Cinco poemas de João Cabral De Melo Neto
29
NEM TUDO PASSA... Coriolano de Medeiros
32
POSSE DA NOVA DIRETORIA DA APCA Equipe GENIUS
33
A FESTA DAS NEVES EM PORTUGAL Oswaldo Meira Trigueiro
34
JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA Paulo Bonavides
Setembro/Outubro/2017 - Ano V Nº 27 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 99981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br Impresso nas oficinas gráficas de A União Superintendência de Imprensa e Editora CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
3
COLABORAM NESTE NÚMERO: 4
CLÁUDIO JOSÉ LOPES RODRIGUES [As entranhas de Sua Majestade] Bacharel em Direito. Professor da Universidade Federal da Paraíba, autor de diversas obras de caráter historiográfico, assim como de outras de natureza pedagógica. Ficionista. CORIOLANO DE MEDEIROS (In Memoriam) (Patos, 1875 – João Pessoa, 1974) [Nerm tudo passa...] Escritor, professor, historiador, ensaísta. Autor de vários livros, compreendendo romances, crônicas, relatos historiográficos, sobretudo relacionados com a Paraíba. Sua obra mais notável é, sem dúvida, o Dicionário Corográfico do Estado da Paraíba, valendo citar, também, a novela Manaíra, relato romanceado da conquista do sertão da Paraíba. ÉRICO DUTRA SÁTIRO FERNANDES [Forró pra gringo ouvir] Graduou-se em Direito pela UFPB. Pesquisador da música nordestina, mantenedor do blog RALABUCHO, festejado blog de música popular do Nordeste. Um dos artífices do Memorial Jackson do Pandeiro, em Alagoa Grande. GUSTAVO RABAY Guerra [O direito do futuro e o futuro do direito] Advogado, sócio-fundador do Rabay, Bastos & Palitot Advogados. Fundador do Bureau Corporativo, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Centro Universitário de João Pessoa (Unipê). Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista nas áreas de Direito Corporativo, Direito Digital e Compliance. IVAN LINS (In Memoriam) (Belo Horizonte, 1954 – Rio de Janeiro, 1975) [Obra construída com amor, seriedade e segurança] Jornalista, professor, pensador, ensaísta e conferencista. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras, em que ingressou em 1958, sucedendo a Afonso d´Escragnolle Taunay, sendo saudado pelo acadêmico Rodrigo Octávio Filho. A ele coube saudar o paraibano Aurélio de Lyra Tavares, com discurso que publicamos nesta edição.
| Setembro/Outubro/2017
ISSN: 2357-8335
JOÃO CABRAL DE MELO NETO (In Memoriam) (Recife, 1920 – Rio de Janeiro, 1999) [Cinco poemas] Poeta e diplomata. Um dos mais expressivos nomes da poesia brasileira. Ganhou o Prêmio Neustadt, considerado o Nobel Americano. Pertenceu à Academia Pernambucana de Letras e à Academia Brasileira de Letras. Em seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, foi saudado por José Américo de Almeida. JUCA PONTES (Eu me chamo Ariano) - Escritor, Poeta, Jornalista, Publicitário, Publeisher, Graphic Designer. Autor dos livros: Laçado corpo (1984), Ranhuras do corpo (1987) e o mais rescente Ciclo Vegetal (2013). NEIDE MEDEIROS SANTOS [Antonio Candido: depoimento e metacrítica] Foi professora de Teoria Literária da Universidade Federal de Alagoas e da Universidade Federal da Paraíba. Leitora Votante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Pertence à Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba, cuja patrona é Violeta Formiga. Escreveu , entre outros livros, “Era uma vez um menino chamado Augusto” (2014), “Autores e livros em contraponto” (2016), “Eudésia Vieira em quadrinhos” (2017). OSVALDO MEIRA TRIGUEIRO [As festas tradicionais e os diferentes processos de atualização] Professor Aposentado da Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Folkcomunicação. Autor de várias obras nas áreas do folclore e afins. PAULO BONAVIDES [José Américo de Almeida] Considerado o maior constitucionalista brasileiro vivo, com projeção internacional, Paulo Bonavides é também dedicado à literatura, autor de inúmeras resenhas literárias, divulgadas em jornais e revistas especializadas. Publicou livro de crônicas, intitulado O Tempo e os Homens. Atualmente, é Diretor da Revista Latinoamericana de Estudos Constitucionais.
CINEMA O EFEITO SURPRESA NA SÉTIMA ARTE Andrés von Dessauer (Especial para GENIUS)
O Oscar 2017 não só entrou para a história do cinema pela maior gafe da Academia, mas também pela inesquecível cara de surpresa do apresentador, o ator Warren Beathy, quando abriu o envelope do prêmio máximo e, incrédulo, passou, rapidamente, o mico para a atriz Faye Donaway, que, por sua vez, descuidada, anunciou o filme errado. O efeito surpresa, tão apreciado nas telas, conseguiu, desta vez, entrar, de penetra, na maior festa de celebração da 7ª Arte. Surpreender a platéia, ou, mais forte, passar uma rasteira no espectador, representa uma fórmula eficiente para levantar a bilheteria e resulta, muitas vezes, em um up-grading quanto à qualidade de um longa. Cineastas mais ousados conseguem, de forma muito sutil, infiltrar, para dentro do roteiro, indícios de uma virada radical que, para ter impacto, ocorre nos últimos minutos de projeção. Na literatura, o gênero de “short stories” usa esse método com grande sucesso, destacando-se, nesse sentido, as obras americanas. Entre inúmeros ‘filmes-rasteiras’, foram, aqui, escolhidas duas recentíssimas obras para a edição da Revista GENIUS, as quais, por coincidência, tratam de literatura: a argentina O CIDADÃO ILUSTRE (de Andrés Duprat, 2016) e a francesa M. & Mme Adelman (de Nicolas Bedos, 2017) as quais serão exibidas e comentadas na Fundação Casa José Américo, durante o ano 2018. Essas
e tantas outras películas levam, para as salas de cinema, as palavras de BOB MARLEY: “nossas vidas são definidas por momentos. Principalmente aqueles que nos pegam de surpresa” O CIDADÃO ILUSTRE – AMADO E ODIADO Novamente uma produção argentina brilha nas telas. Desta vez, com o argumento sobre a
‘aventura criativa’ de um escritor, que, apesar de ter ganho o troféu máximo da literatura, o Prêmio Nobel, entende ser este sua canonização terminal, ou seja, a lápide da sepultura em que jaz sua obra. Tão inusitado o início e o tema do O CIDADÃO ILUSTRE, dirigido pela dupla Gaston Duprat e Mariano Cohn (O HOMEM DO LADO), que a obra recebeu, em 2016, o GOYA pelo ‘Melhor Filme’, e, no mesmo ano, Oscar Martinez (RELATOS SELVAGENS e KÓBLIC), o protagonista, consagrou-se como ‘Melhor Ator’, no Festival de Veneza. O roteiro, ao caminhar na divisa entre comédia e drama, leva o escritor, após ter vivido 40 anos na Espanha, de volta para seu berço, Salas, um pacato povoado no interior da Argentina, o qual, em todo esse tempo, não evoluiu. A obra pode ser considerada um estudo satírico sobre como o amor pelo filho que retornou se transforma, rapidamente, em ódio. Base dessa decomposição é o sentimento de inveja pelo sucesso no exterior, a mentalidade provinciana que se orgulha da própria ignorância, os problemas não resolvidos de ciúmes do amigo de infância pela mesma mulher e conceitos antagônicos sobre a importância das artes plásticas e da função da cultura. Para qualquer pessoa que volta para o seu
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
5
lugar de origem, vale, possivelmente, tanto a afirmação “você pode ter deixado sua cidade, mas ela segue você”, como a opinião que um ato criminoso praticado por você pode-se reverter contra você. De forma metafórica, isso afirma o conto dos dois irmãos dito pelo escritor antes da chegada a Salas. Na mente dos “deixados para atrás”, o “crime” do romancista foi ter trocado o mofado vilarejo pelo exterior e, pior, ter voltado famoso. Apesar da recepção pomposa organizada pelo Prefeito oportunista, o vilarejo se “trancou” contra o dissidente. Os sinais de que a volta será problemática estão visíveis desde o pneu furado na viagem à casa dos pais, a qual está fechada. Destaca-se, nesses indícios, o fato de que seu último livro é usado para ascender fogo e serve como um substituto de papel higiênico. Tão distante o escritor da realidade, que sua entrevista, na TV local, cede espaço para um hilário comercial de bebida. Além disso, há a revolta dos habitantes por ele ter retratado as pessoas do vilarejo de forma irônica, nos seus livros, e, por não ter escrito “coisas lindas”. Não faltou no filme o elemento “surpresa, que é, geralmente, uma garantia de sucesso. Esse componente está atrelado no CIDADÃO ILUSTRE, a um tema mais complexo, ou seja, na questão se a realidade supera a ficção ou vice-versa. A estrutura da obra já traz a divergência em si, pois a realidade é representada pelo romancista que recebeu o Nobel, enquanto a ficção se concentra no personagem do livro. O elemento surpresa golpeia, corretamente, o espectador no fim. De uma forma mais profunda, é possível afirmar que um filme está para um diretor, assim como um livro está para um escritor, ou seja, no litígio “realidade x ficção”, filme e livro se assemelham, e, uma vez que existem só interpretações das realidades, não a realidade em si, cabe ao espectador/leitor escolher qual interpretação das realidades é mais aceitável. Não por acaso, foi mencionado o escritor Franz Kafka, com seu estilo simples e perturbador, transformando contos e romances em parábolas. Especialmente, o clima kafkiano da impossibilidade de aproximar-se de algum lugar é o que ocorre ao filho de Salas, o qual não consegue chegar a “casa”. Essa rara combinação de literatura com cinema faz O CIDADÃO ILUSTRE merecedor do Oscar de “Melhor Filme Estrangeiro”. O filme foi indicado, mas, de maneira injusta, não entrou na lista dos finalistas, no entanto, está sendo recomendado, no presente artigo, como obra imperdível da 7ª Arte. M. & MME ADELMAN PAIXÃO E DEPENDÊNCIA Mostrar as passagens do tempo nas expressões faciais dos atores não representa um problema intransponível ao staff de maquiagem quando da produção de um filme; já reduzir uma vida longa a duas horas de projeção é um desafio aos cineastas, aos roteiristas, aos editores etc. Mesmo assim, M. et Mme ADELMAN
6
| Setembro/Outubro/2017
(2017), a primeira obra do autor e roteirista Nicolas Bedos, que, atuou, anteriormente, em três longas (incl. A DATILÓGRAFA) e, em ADELMAN, também é protagonista, representa a prova de que a 7ª Arte consegue, dependendo dos recursos, resolver essa complicada questão. Dividir o tempo linear em capítulos, sempre de olhos nos articulados, é uma solução frequente e, neste longa, bem executada. O fio condutor – objeto da obra, uma máquina de escrever, já empregada, com sucesso, na recente película TRUMBO (Jay Roach, 2016) – abre a seqüência temporal da saga. Essa máquina conecta duas pessoas com aspirações literárias complementares e se transforma, no final, em computador, evidenciando a passagem do tempo. Além das atividades mencionadas, Bedos é, na vida real, criador de trilhas musicais, portanto, as partes auditivas, em harmonia com o roteiro cativante, fazem com que a estória do casal possa ser considerada uma das melhores películas da safra de 2017. O andar da carruagem na montanha russa da vida dos dois ganhou, assim, sustentação que poucos filmes conseguem. A edição merece aplausos, pois os cortes foram executados de forma cirúrgica, conectando, por exemplo, em sequências rápidas e de forma original, três mortes: de um cão, de uma ave e o suicídio da mãe/sogra Adelman. A linearidade do tempo, sempre em flashbacks, não desaba para o tédio, pois, além de outro fio condutor, o entrevistador, Bedos, introduziu vários ‘pulos de gato’ criando, assim, agilidade e leveza para a obra, não poupando situações hilárias. Nesse sentido, o psicólogo, nas sessões do M. Adelman, sempre muito paciente com as ladainhas do cliente, transforma-se, quando em estado terminal, em um indivíduo revolto. Isso, justamente, na parte trágica da película, podendo, assim, ser enquadrada como “comédia dramática”. Na opinião de alguns críticos trata-se, porém, de um filme formulaico. Para desfazer essa opinião, basta apontar que quase todas as películas seguem uma determinada fórmula,
ISSN: 2357-8335
até porque naquelas em que não existe um roteiro, o espectador se encontra diante um álbum de fotografias. No centro da ação, a determinação incondicional da Mme Adelman (ótima performance da atriz Doria Tillier), evidenciada na forma enérgica como apaga, duas vezes, o cigarro; nas suas chamadas incessantes para o autor dos livros, seu futuro marido, e na explícita afirmação “Eu preciso dele!”. Diante dos 45 anos de vida do casal, o espectador talvez possa concluir que, por bem ou por mal, um casamento só pode ser duradouro se existe algum grau de dependência entre as partes. Justamente, o fator de complementaridade faz um casal ser casal e se distinguir daquelas parcerias que só coexistem debaixo do mesmo teto. Como nenhuma relação está privada das fases em que as frustrações e as insatisfações derrubam um passado romântico, Bedos não se privou de mostrar esse vazio. ADELMAN é mais do que um retrato de uma longa vida em conjunto. A intenção do cineasta é passar uma rasteira no espectador e mostrar que tudo que os sentidos percebem, não necessariamente, é real. A platéia se encontra, desde o início, em uma cilada, ao deduzir que tudo é como aparenta ser. Algumas ótimas obras da cinematografia, conseguiram, justamente, dar uma virada nos últimos minutos, causando espanto e, com esse efeito, garantindo bilheterias. Se existisse a classificação “rasteira” para definir as produções cinematográficas, obras como o argentino O SEGREDO DOS SEUS OLHOS, o italiano YOUTH, o mexicano NÃO ACEITAMOS DEVOLUÇÕES e outras tantas, poderiam fazer parte dessa família. De fato, a inversão da pessoa autora dos livros, em ADELMAN, só ocorre no final. Cinema é, essencialmente, ilusão, e cineastas são ilusionistas por excelência, mas para uma pessoa atenta, a dica que algo está errado já é mostrada no cartaz, que inverte, no título, a posição de bons costumes, pois, na língua francesa, a abreviação Mme vem sempre na frente da abreviação M. . Inclusive, no cartaz, a imagem dela é mais importante e deixa-o ficar na sombra. Além disso, o nome Adelman é o nome da família dela. Existe até um indício mais sutil que algo está trocado: por falta do segundo ‘n’, o sobrenome é de origem judaica, não alemã. O nome ‘Adel’ significa, em alemão, ‘nobre’. Acontece que, para um judeu adquirir o título de nobreza, deve ter-se convertido previamente em cristão-novo. Isso não aconteceu com a família dela, portanto Bedos, propositalmente, ao usar esse sobrenome, um ‘judeu nobre’ que não existe indica que algo deve estar incorreto nesse filme. A ótima rasteira dupla no título perde força diante da fala da verdadeira autora, revelada só para o entrevistador, que ela não necessita eleitores, uma vez que, precisamente, ele, o marido, era o único leitor importante e, como ela finaliza, “não durmo com leitores”. Mesmo a dependência mútua de tantos anos não diminui, em nada, a extraordinária prova de amor da Mme Adelman à qual Bedos conseguiu dar projeção em seu primeiro filme. g
FICÇÃO AS ENTRANHAS DE SUA MAJESTADE Conto de Cláudio José Lopes Rodrigues
Veterinário recém-formado, estava eu em minha cidade natal, Nova Floresta, no Curimataú, de onde me ausentara durante todo o curso. Passaria uns dias por lá com a dupla intenção de espairecer e sondar a viabilidade de estabelecer-me profissionalmente. O Circo-Teatro Continental, em périplo pelo interior do Estado, vindo de Campina Grande, chegou a Nova Floresta após funções em Esperança, Remígio, Barra de Santa Rosa e Cuité. Era um circo pequeno, de periferia, mas bem administrado e com atrações convencionais. O elenco congregava, entre outros artistas, o trio de palhaços Bico Doce, Bacalhau e o anão Meio-Quilo; Vandinha, a moça de pernas grossas, num provocante saiote, se equilibrava na corda bamba ao som do Mambo Número 5 de Pérez Prado e fazia evoluções sobre uma escada posta nos ombros do polivalente Diogo de Fiori, que além de dono da empresa mambembe, era malabarista, violonista, trapezista, cantor, domador, mágico e protagonista dos dramas encenados. (Ele era o Jesus da Paixão de Cristo e o Gilberto Silva de O Ébrio – os dois maiores sucessos do repertório teatral). O circo estava desfalcado de uma de suas principais atrações. Sultão, o leão, que machucara o joelho e não podia entrar em cena. Era um felídeo jovem, de sete, oito anos, de urro tão potente quanto o do que aparecia na
abertura dos filmes da Metro Goldwyn Mayer. Metia medo, nomeadamente ao urrar, abrindo a boca gigantesca e pondo à mostra a potente dentadura, onde se destacavam as presas imensas e aterradoras. O próprio Diogo de Fiori foi me procurar rogando que eu cuidasse da fera, uma tarefa que eu nunca imaginara enfrentar. Depois de considerável hesitação, aceitei o feito sob a condição de contar com a ajuda do pessoal circense. A jaula foi posta sob uma mangueira e eu, do lado de fora, fiz uma sedação profunda no animal e amarrei a pata ferida no tronco, imobilizando-a. Anestesiada a fera, realizei a drenagem do abscesso e as demais providências numa posição inusitada, com o nariz a uns cinco centímetros do esfíncter anal do rei profundamente adormecido. A operação prosseguiu com facilidade. A anestesia, entretanto, não apenas apagara o leão mas agira também como um relaxante muscular. Eu já estava concluindo o procedimento quando sua majestade liberou uma silenciosa mas vigorosa lufada flatulenta bem no meu nariz. Fuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu – meio assobiado. Emitiu uma ventosidade daquelas que, segundo os flatólogos, são as de maior intensidade na escala da fetidez. Meu Deus! Que violência! Tombei de costas como atingido por um direto na ponta do
queixo desfechado por Mike Tayson nos seus melhores dias! Todos esqueceram Sultão e se voltaram, preocupados, para acudir o veterinário, sufocado, sem condições de respirar. Quando me lembro, ainda hoje fico repugnado! O fedor permaneceu por meses impregnado na minha memória olfativa. Outras reações ocorreram além dessa impregnação. Passei por várias nuances de cores. Vomitei intensamente, até a biles. Fiquei estrábico por três horas. Mas, virei o herói do circo, o doutor que salvou o leão! Fui contemplado com um ingresso permanente e uma cadeira cativa, na primeira fila, na ala destinada às autoridades, ao lado do juiz de direito, do promotor de Justiça, do vigário, do prefeito.... E meus méritos foram ressaltados durante todos os espetáculos do Circo Teatro Continental: – Rrrrrrrrrrrrrrrespeitável público temos o prazer e a honra de anunciar a presença na nossa plateia do doutor Francisco de Assis Azevedo, o benemérito que... Minha satisfação por tais distinções não neutralizou, entretanto, uma preocupação que me acompanhou por tempo considerável. Uma sequela de ordem psicológica fez-me acreditar que a proeza de Sultão abalou-me a sanidade mental, pois, por anos e anos, permaneceu-me a convicção de o leão, curado, ao entrar em cena, fitava-me, piscava um olho e emitia um risinho irônico para mim... g
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
7
HOMENAGEM EU ME CHAMO ARIANO Juca Pontes
Nasci e me rendi às cantarias e escadarias do Palácio da Redenção, bem às margens dos olhos de ouro que adormecem e amanhecem nas águas do Sanhauá. Onde também nasceram os brasões da cidade e do seu povo. Marcos sagrados do Varadouro, a permanecerem ali fincados, sob a sublime proteção da antiga colina de Filipeia de Nossa Senhora das Neves. Hoje, carrego comigo as insígnias da minha própria história. Nasci cidadão do mundo, sou árvore de boa cepa. Imortal, ao igual e querido João Grilo. Imortal, feito as nuvens e as palavras que me cercam. Com a morte do meu pai, João Suassuna, renasci nas águas do rio Capibaribe. Imensas nascentes, intensas vertentes que regem a sinfonia do azul a alcançar o mar de Pernambuco. Das belas ladeiras de Olinda até as velhas pontes que cortejam os limites da Rua da Aurora. Do marco zero a Taperoá, de Taperoá de volta ao Recife antigo. O caminho do meu rio espelha a leveza e espalha a clareza encontradas no desenho que dignifica e significa a largura do universo a reger a iluminada paisagem entre Casa Forte e Apipucos. As janelas da casa aforam imaculadas raízes da cultura popular. Tão reveladoras das artes do meu engenho, tanto abonadoras dos ventos do meu povo. Bem ao lado da amada Zélia, a companheira da vida inteira, ergui com ardor e amor, paciência e decência, a minha maior e mais familiar essência: meu lar de vida e obra, meu par predileto e perfeito. Agora me enxergo pela terna voz dos meus filhos, me espelho pelo meigo olhar dos filhos dos meus filhos, que cantam por esses cantos da memória os contos da minha história. “O homem nasceu para a imortalidade. A morte foi um acidente de percurso. Mas depois que eu me tornei pai e avô, descobri que a família é quase uma imortalidade, porque é uma continuidade”. Das árias do Direito sou herdeiro do braço direito que defende e depende, a todo custo e respeito, do povo ingênuo do
8
| Setembro/Outubro/2017
meu sertão caboclo. Das inúmeras pedras no caminho, me vesti na lâmina arquejada que esculpiu e grafou a pedra encantada do meu reino. Com tamanha alegria, faço das linhas da poesia os recortes do romance mais completo. Nos versos que completam esse universo de paixão e silêncio vou continuando nesse diapasão.”Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver.” Sigo e persigo o fardão azul dourado que me conduz por esse vasto céu aloprado, comungo com o cordão encarnado que me segue com esse fasto martelo agalopado: “O riso a cavalo, o galope do sonho”. Alimento elevada simpatia pelo doido e pelo mentiroso, por serem eles primos de todos os autores. Porque me ajudam a florejar a boa mentira, com o mote dos causos que vou contando rio adentro, que vou cortando mar afora. A pobreza e a riqueza, a inocência e a astúcia, o mito e a realidade, o coloquial e o armorial, a raiva e o humor, a indiferença e
ISSN: 2357-8335
a paixão, a razão e o coração são fronteiras que governam e imprimem os fantásticos itinerários desse destemido exercício literário. Da Onça Caetana a Dom Pedro Quaderna, do Diabo ao Cristo Negro, de Chicó à Mulher do Padeiro, de Padre João ao Sacristão, de Dina me Dói a Pedro Beato, do Palhaço a João Grilo, do Cangaceiro à Compadecida. São eles os vivos personagens que oferecem vida à minha obra de vida. O romance d’a pedra do reino, o auto da compadecida, o santo e a porca, a mulher vestida de sol e a farsa da boa preguiça são exemplos da larga prosa que permanecerá bem guardada pelo resto dos ventos do tempo. Canto as folhas ao vento e ao mesmo tempo encanto as cores do tempo com os fios da gravura, que desenham e iluminam o meu sonho armorial. Do erudito ao popular, amanhei meu lugar no chão da canção nordestina. Descendente dos verdadeiros reis que fundaram o império brasileiro, me apresento como Dom Ariano. Legítimo monarca da sagrada coroa do Brasil. Porque me chamo Ariano. Ariano Suassuna. g
PARAIBANOS NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
OBRA CONSTRUÍDA COM AMOR, SERIEDADE E SEGURANÇA(*) Ivan Lins
Autor de mais de trinta livros, numerosos artigos em revistas e jornais, além de importantes conferências, ensaios e discursos, foi como escritor que a Academia vos elegeu. É verdade que, tendo concluído, com brilhantismo, os diferentes cursos militares, destacando-vos, como oficial, em todos os postos da carreira até atingirdes o de ministro do Exército, diplomado em Engenharia e Direito, podíeis também, a justo título, ter sido eleito como indiscutível expoente de nossas Forças Armadas. Mais de uma vez tiveram elas representantes nesta Casa, a exemplo do que ocorre na Academia Francesa, à qual pertenceram, neste século, além do General Weygand, os marechais Lyautey, Franchet d’Esperey, Foch, Joffre, Pétain e Juin, que, como vós, também escreveram, sobre assuntos militares, livros que se tornaram fontes de consulta. Ao receber, há 21 anos, Aníbal Freire, observava João Neves da Fontoura ter-se encerrado, havia muito, o velho debate que, na Casa de Machado de Assis, opunha aos grandes expoentes da inteligência criadora, em quaisquer domínios da Cultura, os homens exclusivamente de letras.
E mostrava que a nossa Academia, assim como a Francesa, pela qual foi modelada, sempre se recusou a fazer distinções no dogma que Renan denominava a “unidade da glória”. O estilista da Vida de Jesus sustentava, na verdade, que o poeta, o orador, o filósofo, o sábio, o político, o homem que eminentemente representa a civilidade de uma Nação, todos são confrades, porque todos trabalham para uma obra comum – a de constituir uma sociedade grande e liberal, sendo, ademais, “Literatura tudo que se escreve com talento”. Sois um escritor nato e empunhais a pena, como quem respira, por irreprimível impulso, a fim de externar as manifestações de uma inteligência forte, cultivada em todos os ramos do saber e dotada de acentuadas aptidões literárias, não só na Prosa, mas até na Poesia, como, sem vaidade, declarastes na oração que acabais de proferir. Um de vossos sonetos foi por Gustavo Barroso, em 1926, publicado na Revista Fon fon e ainda recentemente, numa noite de grande calor, de volta de uma visita acadêmica, escrevestes “A sina do candidato”, onde assinalastes as agru-
ras do caminho da glória: ad astra, per aspera. Amigo de Adelmar Tavares, entregastes-vos também à composição de trovas, que vos transportavam ao vosso longínquo e querido Nordeste. De vossa autoria é a “Canção da Arma de Engenharia”, musicada e adotada em todo o Exército, a começar pelos cadetes da Academia Militar. Quaisquer que sejam, porém, as vossas aptidões literárias, sois, antes de mais nada, um general, e, nesta qualidade, realizais o que, segundo Múcio Leão, constitui o encanto da Academia: [...] o desencontro das sucessões num feliz acaso mediante o qual vemos a substituição de um grande romancista, como Machado de Assis, fazer-se com a escolha de um jurista; a de um filósofo embebido em Poesia, como Nabuco, fazer-se pela escolha de um guerreiro, e a de um poeta soberano, como Raimundo Correia, fazer-se pela escolha de um sábio, de um médico, de um sanitarista. E tal se dá, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, porque, na ponderação de Afrânio Peixoto, “a Academia Brasileira pretende ser o índice abreviado da Cultura nacional”.
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
9
A PARAÍBA Nascestes em 7 de novembro de 1905, na capital da indomável Paraíba, pequenina em área, mas imensa pela bravura e pelos homens que tem doado ao Brasil. Enumero apenas alguns: na guerra, Vidal de Negreiros; nas Artes, Pedro Américo; na Política, Aristides Lobo, o Barão de Lucena, o Senador Venâncio Neiva, o Presidente Epitácio Pessoa e seu intemerato sobrinho João Pessoa; no Jornalismo esse êmulo dos titãs da Renascença, abruptamente surgido no Brasil de nossos dias – Assis Chateaubriand – e um de seus melhores colaboradores, Teófilo de Andrade; e, finalmente, nas Letras, entre outros, os poetas Rodrigues de Carvalho, Augusto dos Anjos e Pereira da Silva, este último sucessor, nesta Casa, de Luís Carlos, além do romancista que, entre nós, inaugurou um novo ciclo: o da cana-de-açúcar, nosso eminente Confrade José Américo de Almeida, logo seguido pelo fecundo José Lins do Rego, que enriqueceu, no gênero, as nossas Letras com tantas obras-primas a um tempo líricas e fortes. Sois, assim, o quinto paraibano a ter assento na Academia Brasileira. Contastes, certa vez, como ocorreu vosso primeiro contato com Assis Chateaubriand. Fostes procurá-lo em nome do Clube Militar, a fim de esclarecer um incidente ali ocorrido com um de seus repórteres e estabeleceu-se o seguinte diálogo: “Você tem jeito de quem é da Paraíba, não é?” – disse-vos Assis Chateaubriand. “Sou, e mais do que você.” – “Como assim?”, voltou a perguntar-vos, e esclarecestes: “Porque nasci no Ponto de Cem Réis, na capital, e sei cantar o Hino da Paraíba e Você não sabe.” – “Chega!” – concluiu Chateaubriand e convidou-vos a colaborar em seu jornal. E de 1933 a 1935 aí publicastes, com o pseudônimo de Observador Militar, notáveis artigos, em alguns dos quais propugnastes pela criação do Ministério da Aeronáutica, conforme assinalou, por várias vezes, Assis Chateaubriand, e, mais recentemente, o Ministro Márcio de Souza e Mello. A FAMÍLIA Filho do Senador João de Lyra Tavares e de D. Rosa Amélia de Lyra Tavares, guardais, nos traços fisionômicos, vestígios de ascendência holandesa. Vosso pai, que só frequentou a escola primária, constitui pasmoso caso de autodidatismo: fez-se, por seu próprio esforço, professor de História de uma Escola Normal, e, na Câmara Alta de nossa Primeira República, sobressaiu-se como um de seus mais prestigiosos financistas.
10
| Setembro/Outubro/2017
Pródiga de ternura para com o marido e os filhos, vossa Mãe unia à bondade o estoicismo, conforme registrou, em comovente crônica, Rosalina Coelho Lisboa. Ao abraçá-la no velório de um filho, brutalmente assassinado em plena juventude, dela ouviu, entre lágrimas, as palavras: “Ainda mais infeliz é a mãe que tem um filho assassino.” Formais, com vossos irmãos, uma dinastia intelectual: Paulo, Roberto, João, Fernando, Carlos são apenas alguns dos seus componentes, e a fim de não faltar quem alcance o céu para todos, a ela pertencem ainda três freiras – Maria do Santíssimo Sacramento, Gertrudes e Maria Eleonora. Desfrutais o privilégio de ter a tranquilidade de vosso lar admiravelmente assegurada pela dedicação de vossa esposa – D. Isolina Abreu de Lyra Tavares, de duas encantadoras filhas e de um neto, que vos tem embelezado a existência, propiciando-vos a serenidade de que careceis para as absorventes tarefas de vossa carreira. E, assim – segundo vossas próprias palavras –, “fruís das graças essenciais que fazem a alegria da vida e lhe dão substância e sentido para que ela seja vivida na sua plenitude e na sua própria razão de ser”. Consagrando-vos exclusivamente à família, à Pátria e aos deveres profissionais e cívicos, encontrais tempo para manter em dia, de próprio punho, enorme correspondência e aprofundar vossa cultura, que se estende a vários domínios das Ciências e das Letras. A CARREIRA Aos onze anos entráveis para o Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde tivestes, como professor de Geometria, nosso Confrade Laudelino Freire. Concluístes o curso em 1922, tornando-vos praça em fevereiro de 1923, quando vos matriculastes na Escola Militar. Fostes declarado aspirante a oficial da Arma de Engenharia em dezembro de 1925, logo após haverdes completado vinte anos, recebendo nessa data, da Missão Militar Francesa, o Prêmio de Tática Geral. Promovido a segundo-tenente em janeiro de 1926 e a primeiro-tenente em janeiro do ano seguinte, vos diplomastes em Direito, em 1929, e, em Engenharia, em 1930, recebendo, em 1931, o Prêmio Rio Branco, conferido pela Congregação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Se eu devesse referir aqui todos os postos que ocupastes ao longo da vossa carreira, não disporia de tempo para fazer, nesta saudação, rápido apanhado de vossa extensa obra. Limito-me, pois, a dizer que, promovido,
ISSN: 2357-8335
por merecimento, a major e a tenente-coronel, fostes, em 1943, designado “Observador Militar”, junto ao Exército norte-americano, nas operações de invasão da África do Norte, onde assististes, em Medjez-El-Bab, à heroica odisseia do Exército francês. Nesse mesmo ano, concluístes o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército norte-americano, no Forte Leavenworth, em Kansas, e aí tivestes, como companheiros, morando juntos numa espécie de “república de estudantes”, os então Tenentes-Coronéis Humberto de Alencar Castelo Branco, Amauri Kruel e Teófilo Arruda. Em dezembro de 1945 fostes nomeado subchefe da Missão Militar Brasileira na Alemanha durante a ocupação daquele país. Promovido, por merecimento, em junho do ano seguinte, ao posto de coronel, passastes a chefiar aquela missão em 1948, permanecendo mais de quatro anos na pátria de Humboldt. Promovido a general de brigada em dezembro de 1955, assumistes a Chefia do Estado-Maior do I Exército de fevereiro de 1960 até setembro de 1961. Chegando, neste último ano, a general de divisão, comandastes a 2.ª Região Militar, sediada em São Paulo, de janeiro de 1962 a março de 1963. A partir de 1.º de outubro de 1964, vos coube o comando do IV Exército, e obtivestes, em 25 de novembro daquele ano, a promoção a general de exército. Desde 28 de setembro de 1966 comandastes a Escola Superior de Guerra, vindo a ser ministro do Exército em 15 de março de 1967. Nesta qualidade, participastes, em 1969, da Junta Governativa formada com o impedimento do Presidente Arthur da Costa e Silva, até ser empossado o Presidente Emílio Médici. Sois, assim, na verdadeira acepção do termo, um “general”, porque conheceis todas as particularidades do Exército, havendo passado por todos os postos da hierarquia militar a partir do de praça, e, por isto, possuís, como poucos, o que a Taine se afigurava a característica do espírito superior: a visão de conjunto. Não enumero as condecorações nacionais e estrangeiras que tendes recebido, porque, a meu ver, muito mais do que elas, valem os vossos livros que poucos são capazes de produzir na qualidade dos vossos. Em França, para onde partireis dentro em breve na qualidade de embaixador, representareis não só o nosso Governo, mais ainda, como integrante da Casa de Machado de Assis, a Cultura do Brasil. Cedo acordou vossa propensão para as Letras. Aos 12 anos, quando frequentáveis o segundo ano do Colégio Militar, puses-
tes a circular um jornal manuscrito de que éreis o diretor e um dos redatores. Alguns números desse jornal ainda hoje são guardados por vossos colegas Generais Betâmio Guimarães e Manoel Rodrigues de Carvalho Lisboa. Mais tarde fostes presidente da Sociedade Acadêmica, redator das revistas Aspiração e Escola Militar, e também da Revista Acadêmica, esta última publicada pela Confederação dos Estudantes. Em 1923, quando o Ministério do Exterior patrocinou a remessa, à Liga das Nações, de uma Mensagem dos Estudantes das Escolas Superiores do Brasil, a redação escolhida e adotada foi a vossa. Abrange a vossa obra, como disse, mais de trinta volumes, frutos de acurado estudo e longa experiência, vazados, no dizer de José Américo de Almeida, “num estilo notável pela precisão, pela clareza e pela síntese, sem ornamentos ociosos, guardando sempre um tom envolvente que atrai e persuade”. Típico de vossos livros é que, em consequência de vossa formação científica, sois muito sóbrio de palavras. E nisto seguis o conselho de Renan: “Sede tão pouco literato quanto possível, se quereis ser bom literato!” Como Machado de Assis, detestais o estilo derramado e conciliais a concisão com a transparência, parecendo inspirar-se a vossa maneira de escrever nos Comentários de César, que, no dizer de Cícero, agradam exatamente pela falta de atavios, “sendo naturais, simples e graciosos, despojados de qualquer ornato oratório, como um belo corpo sem
veste”: nudi enim sunt, recti et venusti, omni ornatu orationis, tamquam veste detracta. Não podendo apreciar aqui todos os vossos importantes trabalhos, restringir-me-ei a alguns. POR DEVER DO OFÍCIO Neste livro, publicado em fins do ano passado, ao deixardes o Ministério do Exército, estão reunidos discursos, conferências, aulas inaugurais, entrevistas, ordens do dia, contribuições para revistas militares e outros trabalhos ligados à vossa gestão naquele Ministério. Desse volume destaco a aula magna proferida na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército em março do ano passado, acerca das “Missões e Rumos do Exército”. Começais relembrando a opinião de Augusto Comte sobre a função social dos exércitos modernos. Em sua Dinâmica Social, escrita em 1841, aprecia, de fato, o filósofo a situação mundial decorrente da Revolução Francesa e mostra que, já então, assistia a humanidade a um fim de época. E, a este propósito, tece, sobre os exércitos modernos, ponderações que se transformaram em realidade. Ao contrário do que aconteceria com o clero teológico, seria possível – frisava o fundador da Sociologia – se adaptasse a organização militar à mentalidade científica que dia a dia tenderia a prevalecer, porque a precisão das cogitações militares, pela sua própria natureza, favorece o cultivo do espírito científico. Por outro lado, além da con-
tribuição educativa para o desenvolvimento intelectual e social das populações através do serviço militar, os exércitos apresentariam permanente utilidade em tempos de anarquia, como os que tumultuariamente se sucedem desde a Revolução Francesa. Na convulsão intelectual e moral, que cada vez mais assustadoramente se agrava, ao Exército – observava Comte – está reservado importante papel em consequência do instinto orgânico nele cultivado pela disciplina e hierarquia militares. Quando assistimos à perplexidade em que se debate hoje o Sumo Pontífice Paulo VI diante da crescente onda de insubordinação que tem chegado ao próprio clero católico, em parte atingido, de um lado, pelo espírito protestante, e de outro, pelas ideologias de fundo marxista, as considerações do filósofo revestem-se de oportunidade tangível e confirmam o que, em 1927, comentou, num jornal de Londres, o historiador Guglielmo Ferrero: Nas páginas maciças do grande positivista dorme um sono profundo, esperando, sem dúvida, a hora do despertar, uma visão histórica, que a nossa época nem refutou, nem aceitou, como se tivesse medo de descobrir, depois de sério exame, ser verdadeira. Que diz essa doutrina? Que durante os três últimos séculos o espírito ocidental não tem produzido, no campo social, senão teorias críticas: essas teorias deram origem a revoluções que, por sua vez, geraram teses mais audaciosas ainda, as quais engendrarão ou não tardarão a engendrar revoluções mais profundas. De uma doutrina à outra
ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA FLÁVIO SÁTIRO FERNANDES OAB Nº. 17.131/PB
Fone: (83) 99981-2335
Conselheiro Aposentado do Tribunal de Contas do Estado Professor Aposentado da Universidade Federal da Paraíba Especialista em Direito Administrativo ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
11
avança o Ocidente para uma anarquia argamassada de sofismas que tornam o problema da ordem e da autoridade quase insolúvel. Nas últimas páginas do Curso de Filosofia Positiva – concluiu Ferrero – encontram-se, sobre a sociedade moderna, certos passos que sempre me pareceram conter algumas das verdades mais penetrantes escritas em nossos tempos. Augusto Comte deu-se perfeitamente conta das devastações de toda ordem que a anarquia intelectual e moral, já existente em seu tempo, iria sucessivamente produzir, ameaçando subverter as instituições sociais mais sólidas – a família, a moral, as Letras, as Artes, a propriedade, a Educação, até se vir a duvidar do teorema de Don Juan, isto é, de formarem dois mais dois, quatro. Os escritores marxistas, sobretudo russos e franceses, investem contra o fundador da Sociologia por apresentar soluções sociais de caráter pacífico, por eles consideradas protelatórias do Comunismo, que desejam ver violentamente implantado no mais breve prazo. E fazem a Comte cerrada carga visto considerar ultrapassadas as guerras de conquista. A eles, todavia, responde Raymond Aron em recente livro: Seria fácil, e muitos não resistiram a essa tentação, fazer ironia a propósito das profecias de Augusto Comte. Na medida em que este proclamou haver passado o tempo das guerras europeias e das conquistas coloniais, evidentemente se enganou. Se, porém, o considerarmos, não como um profeta, mas como um conselheiro de príncipes e povos, ele foi mais sábio do que os acontecimentos. Não anunciou o futuro tal como ocorreu, mas tal como poderia ter ocorrido se a história se tivesse desenrolado de acordo com a sabedoria dos homens de boa vontade. No atinente às relações entre o trabalho e a guerra, ele empreendeu, com incontestável clarividência, a revolução que governantes e povos vêm penosamente admitindo hoje: as guerras entre sociedades industriais são, a um tempo, ruinosas e estéreis. Para que serve matar, dominar, pilhar? O ouro e a prata não são mais verdadeiras riquezas. Só é riqueza o trabalho racionalmente organizado. As guerras são, pois, anacrônicas, assim como as conquistas coloniais. Disto estais bem certo, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, porque tendo travado conhecimento com as concepções de Comte através de vosso convívio com Agliberto Xavier, de quem fostes discípulo de Astronomia, tendes consciência do imenso arsenal de ideias e teses científicas que elas encerram para a
12
| Setembro/Outubro/2017
defesa da família, do capital e de sua apropriação individual. Conciliando a ordem com o progresso, a Sociologia de Comte prova ser possível, sem violentos entrechoques, conseguir-se a melhoria das condições gerais da humanidade que propiciarão enfim a incorporação social do proletariado, sonho de filósofos e futurólogos, a partir de Tomás Morus e Campanella, e que se torna um anseio cada vez mais obsessivo das novas gerações em todo o mundo. Só então se porá termo a uma época de dissolução e decadência que muito se assemelha à do Império Romano em sua fase final. Tal como naquele tempo, jamais existiu, nas mãos de uns poucos, tamanha condensação de forças e riquezas, associada a tão grande ausência de preocupações sociais e morais. E, por isto, assistimos a novos festins de Trimalquião, onde homens, dominados pelas mais grosseiras inclinações, só aplicam o que lhes resta de inteligência em requintar o vício, como, no Baixo Império, os Caracalas e os Heliogábalos. EXÉRCITO E NAÇÃO Neste livro fazeis a história do Exército Brasileiro, desde a Colônia até os nossos dias, considerando haver sido ele, como precursor da organização civil, a base através da qual alcançamos e consolidamos as grandes conquistas que marcaram os rumos definitivos da nacionalidade. E adotais o ponto de vista de Alcindo Guanabara segundo o qual “se confunde, em nossa História, o soldado com o cidadão”. Em Caxias glorificais não só a figura do Chefe Militar e estrategista, mas ainda “a do cidadão, do estadista civil, porque não foi menor, nem na relevância, nem na significação para os destinos da Pátria, a obra que realizou, dentro do País, pela sua pacificação, pelo seu fortalecimento, pelo predomínio da lei e pelo acatamento de todos ao poder civil”. Mais adiante condenais “a falsa concepção de que deve o Exército tutelar ou substituir o poder civil”. Sua atuação, em vossas palavras, [...] tem de inspirar-se sempre no dever de assegurar o funcionamento livre e autêntico da autoridade civil legítima, dando-lhe o prestígio que lhe é indispensável e essencial no sistema democrático de Governo. Ele socorre e defende a Democracia quando se trata de garantir a sua sobrevivência, para recolher-se aos quartéis, obediente ao poder civil, quando entra em consonância com a vontade do povo. E acrescentais: É evidente que não cabe ao Exército pa-
ISSN: 2357-8335
pel de exceção no quadro de uma Democracia amadurecida, autêntica e estável. Ele se explica, apenas, como fenômeno transitório, pelas contingências próprias da formação da nacionalidade, resultante da natureza especial dos problemas peculiares à evolução política do Brasil. Encerrando vosso livro, escreveis: As Forças Armadas começam a fugir do seu papel e a perder a popularidade dele mesmo decorrente – fruto da tradição de renúncia e de devotamento ao serviço da Pátria – todas as vezes que, sem grave motivo determinante, de ordem nacional, reconhecido pelo consenso geral do povo, de cujo seio emanam e cujo trabalho as mantém, venham a imiscuir-se nas questões políticas, que não lhes são pertinentes. E não apenas elas fogem à sua missão constitucional, como a comprometem seriamente, quando a paixão política, muito própria das atividades da vida democrática, se infiltra no interior do quartel e perturba o clima de ordem, de disciplina e de trabalho, essencialmente profissional, que constitui, em última análise, o grande esteio da vitalidade e do equilíbrio da Instituição Militar. A propósito dos perigos da paixão partidária, ou seja da política de interesses exclusivamente carreiristas, podíeis ter citado os versos de Musset: La politique, hélas! – voilà notre misere Mes meilleurs ennemis me conseillent d’en faire Era tendo em vista essa espécie de política que Churchill estabeleceu a distinção – “o estadista preocupa-se com as futuras gerações, enquanto o político planeja as próximas eleições”. A ENGENHARIA MILITAR PORTUGUESA NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL De vosso pai, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e autor, entre outros trabalhos, de uma História Territorial da Paraíba, em dois volumes, herdastes o pendor para as pesquisas históricas e assim vos entregastes a investigar o que foi a obra dos engenheiros militares a serviço da Coroa Portuguesa no Brasil, construindo, não só fortalezas e redutos ao longo da orla marítima, em regiões interiores e nas longínquas fronteiras, mas ainda contribuindo valiosamente para a nossa construção civil e urbanística. À glorificação desses profissionais, consagrastes esplêndido volume – A Engenharia Militar Portuguesa na Construção do Brasil, editado em Lisboa sob os auspícios do Governo português. Em 1939 publicastes uma História da Arma de Engenharia do Brasil. Apreciando
este livro, o General Tasso Fragoso, nosso maior historiador militar, no conceito de quantos lhe conhecem a obra, vos sugeriu escrevêsseis um volume sobre os técnicos que, desde a Colônia, vieram ao Brasil e aqui executaram ou planejaram obras militares e civis. Aceitando o alvitre, vos consagrastes a penoso trabalho de pesquisa, coligindo e coordenando dados e documentos, e, ao invés de rápido ensaio, nos destes magnífico estudo, que, como ressalta o Marechal Décio Palmeiro de Escobar, “não só complementa a vossa obra anterior, como vem resgatar velha e grande dívida do Exército Brasileiro para com esses valorosos engenheiros, que auxiliaram Portugal a lançar ‘as bases eternas da atual Nação Brasileira’”. TERRITÓRIO NACIONAL: SOBERANIA E DOMÍNIO DO ESTADO Além de temas históricos e militares, vossa pena tem-se exercitado em outras esferas, porque, com desembaraço, incursionais ainda no campo do Direito. Território Nacional: Soberania e Domínio do Estado, editado em 1956, mostra as vossas aptidões como jurista, fazendo lembrar aqueles generais do Lácio, que não só comandaram legiões, mas contribuíram para construir o Direito romano. Em vosso livro, de clareza meridiana, discorreis sobre o domínio territorial do Estado, as ilhas oceânicas, o patrimônio da União, terrenos de marinha, terrenos de fortificações, e traçais a história da propriedade territorial do Brasil desde a Colônia até hoje. E fostes mais longe. Enfronhado no que há de mais recente sobre o tema, apreciais o Estado, como pessoa internacional, e, em decorrência, dissertais sobre o Território
Marítimo, o Território Aéreo e a Plataforma Continental, concluindo com uma exposição acerca das Nações Unidas e da Comissão de Direito Internacional. O ilustre Professor Ruy Cirne Lima, de quem tanto se orgulha o Rio Grande do Sul, visto juntar, às qualidades de homem de bem, profunda e variada cultura jurídica, teceu, a propósito deste livro, o seguinte comentário: “Sobre a história do território nacional, nenhum País tem um estudo tão completo, desde a sua origem, como este”. E Gilberto Amado, cioso, como ninguém, das autoridades em que alicerçava seus pareceres jurídicos, citou o vosso livro no episódio das lagostas. Há, contudo, nesse volume, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, um ponto ao qual me permitireis fazer restrições, seguindo velha e boa tradição desta Casa. É quando escreveis: O regime republicano foi, de início, muito negligente nos assuntos mais diretamente ligados à segurança nacional. O fenômeno pode ser atribuído a várias razões, entre as quais a mentalidade dominante no Exército, onde as ideias positivistas tinham adeptos fervorosos entre os seus líderes mais influentes. O Positivismo, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, tem tido curiosa sorte no Brasil – ninguém se lembra do bem que praticou, nem se esquece do mal que não fez... Contraditoriamente visado, ao mesmo tempo, pelos reacionários e pelos marxistas de diversos matizes, tem-se tornado aquele Bei de Túnis contra o qual investia Eça de Queirós sempre que lhe faltava matéria para as suas crônicas. Foi o Positivismo que exemplarmente assegurou, através das emendas de Demé-
trio Ribeiro e demais constituintes seus correligionários, a perfeita liberdade da Igreja, contra os dispositivos legalistas de Rui Barbosa que mantinham a legislação de mão-morta, expulsavam do Brasil a Companhia de Jesus e proibiam a fundação de novos conventos e ordens religiosas. E, entretanto, quando se fala em liberdade da Igreja, todos paradoxalmente a atribuem ao tradutor de O Papa e o Concílio... Estou certo de que, em nova edição, reconsiderareis esse passo de vosso livro, em primeiro lugar, porque os únicos ministros positivistas que teve a República, foram, no Governo Provisório, Demétrio Ribeiro durante menos de dois meses, e Benjamin Constant durante apenas um ano, a princípio, como ministro da Guerra, durante sete meses, e, por fim, como ministro da Instrução, durante cinco. Em segundo lugar, tomaram os positivistas clara posição em defesa de nossa segurança e soberania através do protesto que, em 1896, lançou Miguel Lemos, nos “Apedido” do Jornal do Commercio contra os Protocolos Italianos, que propiciariam a formação de quistos étnicos capazes de ameaçar a nossa unidade cultural e até a nossa independência política. Sob o ponto de vista, já não mais da legislação, mas da realidade concreta, quem concorreu mais para a integração do território nacional e a defesa de nossas fronteiras do que Rondon e seus colaboradores positivistas? É o que ressalta o General Tasso Fragoso: É certo que existiam no seio da Força Armada alguns discípulos confessos do Positivismo. Nunca, todavia, periclitou com isso a defesa nacional. Ao contrário,
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
13
procederam de modo que ninguém mais do que alguns deles deu maiores provas de amor ao País e soube morrer por ele. Escrevendo estas linhas, tenho em mente o General Rondon e sua obra nas fronteiras do Brasil. Quem mais do que ele e seus abnegados companheiros patenteou maior bravura na paz? Pois não é bravura afrontar o desconhecido, sofrer intempéries e morrer quase ignorado no sertão longínquo? Onde se cultivavam melhor os sentimentos elevados que animam os verdadeiros guerreiros – ali ou na faina pacífica e segura dos quartéis? Dezesseis oficiais lá ficaram para sempre, pagando com a vida a sua fé no porvir do Brasil. Aliás – continua Tasso Fragoso –, forçoso é reconhecer que qualquer doutrina capaz de desenvolver os mais nobres sentimentos da alma humana também é apta a preparar defensores da Pátria, quando deles haja mister. O Catolicismo também é contra a guerra, no entanto são numerosos os sacerdotes católicos que se bateram com denodo na guerra de 1914. Entre eles – acrescento eu – distinguiu-se o atual Deão do Sacro Colégio, Cardeal Tisserant, que, em abril de 1917, comandou, no Oriente Médio, um pelotão e participou da tomada de Gaza. Há, porém, mais, Sr. Aurélio de Lyra Tavares: vós mesmo citais um discurso proferido no Congresso em 21 de agosto de 1895, por destacado discípulo de Benjamin Constant, Serzedelo Corrêa, o qual, preocupado com a faixa de nossas fronteiras, sustentava que atribuir a essa faixa a extensão de sessenta quilômetros seria insuficiente para estabelecer um cordão estratégico satisfatório. Não tenho dúvida, pois, de que, em edi-
14
| Setembro/Outubro/2017
ções futuras, havereis de absolver o Positivismo de um pecado que não cometeu. O SOCIÓLOGO Vossa conferência – “A pesquisa social e a segurança da Democracia” – é uma análise da contribuição que, aos estudos de nossa vida política e administrativa, pode trazer esse importante ramo da Sociologia. Em Aspectos Políticos, Econômicos e Psicossociais da Região Nordeste abordais um dos problemas mais angustiantes da atual realidade brasileira. Com o conhecimento direto daquela região e de suas dificuldades, aprofundado quando desempenhastes o Comando do IV Exército, chamais a atenção para o agravamento “cada vez maior, da condição do homem, como ser social e fator predominante de progresso”. E, depois de apontar medidas tendentes à solução, acrescentais: Até mesmo na região úmida, onde mais se adensa a população, o trabalhador da atividade básica da economia do Nordeste, que é a agroindústria açucareira, não tem vida menos infeliz. Ele também chega a passar fome e até a morrer de fome, como nos comprovam episódios bem recentes. Por incompreensível mentalidade empresarial, é raro a indústria açucareira precaver-se, na aplicação dos lucros auferidos, com a poupança destinada a atender tanto aos reinvestimentos requeridos pela própria indústria, como a qualquer fundo de finalidade social, em proveito dos trabalhadores, nem mesmo para apoia-los nas situações críticas, apresentando-se essa imprevidência contrastante com o padrão de vida que usufrui o industrial.
ISSN: 2357-8335
E concluís que a questão social do Nordeste será resolvida “mais por medidas de ordem econômica, para remover as suas causas, do que por medidas de ordem militar para reprimir seus efeitos”. QUATRO ANOS NA ALEMANHA OCUPADA Neste livro registrais observações colhidas, a princípio como integrante, e, depois, como chefe da Missão Militar Brasileira enviada, em dezembro de 1945, a Berlim, atendendo ao convite dirigido pelo Conselho Aliado de Controle da Alemanha aos governos dos países que participaram, de forma ativa, da guerra contra aquele País. É um estudo em profundidade dos imensos problemas surgidos com a capitulação do regime de Hitler, tais como a sua desmilitarização, a sua desnazificação e a sua democratização, o problema dos deslocados e refugiados, os brasileiros na Alemanha, o Tribunal de Nuremberg, os criminosos e as reparações de guerra. A este propósito salientais como é mal recompensada a colaboração dos fracos aos fortes. Ao convocarem, em Paris, os países interessados nas reparações, os governos norte-americano, britânico e francês excluíram o Brasil, concluindo que os danos por ele sofridos podiam ser compensados com os bens alemães controlados pelo nosso Governo. Estabelecendo um prazo de apenas vinte dias para a apresentação do relacionamento e importância das reparações a que o Brasil tinha direito, o memorando do Governo norte-americano esclarecia que a situação do Brasil seria considerada em relação a toda a América, tratamento que, segundo ressaltais, “evidentemente não correspon-
dia ao grau de participação que tínhamos tido na guerra, nem era autorizado pelas decisões da Conferência do México, a respeito dos bens inimigos sob controle dos governos americanos”. Verificou o Brasil nessa oportunidade, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, quanta razão cabia a Washington ao advertir “ser uma loucura em uma nação esperar favores desinteressados de outra, não podendo haver maior erro do que aguardar favores de nação a nação ou contar com eles”. Cumpre, todavia, lembrar que, no caso das reparações, não pleiteava o Brasil “favores”, mas legítimo ressarcimento dos seus prejuízos ao participar diretamente da guerra contra Hitler. Observais que o Tribunal de Nuremberg representou [...] um passo importante e objetivo no sentido da condenação da guerra como meio de dirimir conflitos internacionais. Por outro lado, prevendo as proporções da catástrofe que constituiria uma nova guerra mundial no estágio atual da Ciência e da Técnica, as nações procuram agrupar-se em torno de programas que assegurem garantias recíprocas de estabilidade econômica, num mundo pacífico. É um ideal que implica, necessariamente, a abdicação de certos privilégios da soberania nacional, cujo conceito moderno – frisais – começa a tornar-se mais flexível para ajustar-se ao sentido de uma fórmula nova em que prevaleçam os altos desígnios da harmonia internacional sem ficarem comprometidos os interesses vitais e as tradições próprias de cada povo. Confirma-se, assim, o ideal que, desde Marco Aurélio, dia a dia se avoluma: o da subordinação do indivíduo à família, desta à Pátria e de todas as pátrias à Humanidade, “a pátria universal que reúne todos os habitantes do planeta humano”. Daí ser imprescindível a formação de um organismo internacional, pairando acima de todas as nações, constituído de homens de largo descortino social, capazes, pela sua autoridade intelectual e moral, de evitar novas conflagrações e realizar enfim a Liga Espiritual preconizada pelo Sumo Pontífice João XXIII e resumida no lema de Santo Agostinho: In necessariis unitas; in dubiis libertas; in omnibus charitas – “nas coisas necessárias a unidade; nas duvidosas a liberdade; em todas a caridade”. Há um aspecto de vossa permanência na Alemanha, a que não vos referis em vosso livro, mas foi pitorescamente registrado por Assis Chateaubriand em artigo intitulado “Acontece que ele é paraibano...” Esse
aspecto era a infalível presciência com que identificáveis os flagelados da fome: Acontece – comentava Chateaubriand – que o coronel Lyra é paraibano, e na Paraíba somos todos mais ou menos peritos em fome. Seca lá é como guerra aqui (na Europa). Deixa de chover, já se sabe: é miséria certa de alimentação. O coronel Lyra enxerga lindamente fome na barriga de alemão, porque a conhece na canela de paraibano. SEGURANÇA NACIONAL E PROBLEMAS ATUAIS Neste livro, que alcançou mais de uma edição e foi publicado, em espanhol, no Equador, desenvolveis temas como a “Guerra Revolucionária”, “Vulnerabilidade do Estado”, “Segurança do Estado Democrático”, “A Educação e a Cultura”, “O Papel das Forças Armadas”, “O Papel dos Transportes”, “A Imigração”, “O Dever Militar e a Luta Ideológica”. É, segundo declarais, um livro de esclarecimento, visando “à defesa e sobrevivência do Estado democrático ante as ameaças a que está sujeito no mundo de hoje, pelas próprias liberdades que lhe são essenciais, apresentando, por isto problemas novos e graves”. Em tudo quanto escreveis fugis da obscuridade e formulais vossas opiniões em plena luz, naquela nitidez que Vauvenargues dizia ser “o verniz dos mestres”. Mas, neste volume, pela relevância da matéria, requintastes vossa preocupação de ser claro. Num dos capítulos versais o conceito de liberdade de cátedra e mostrais mui acertadamente que não pode ser “usada como instrumento demolidor e subversivo”, já que o professor exerce o magistério por delegação do Estado. E aqui está o ponto nevrálgico da questão: qual o critério para determinar-se a partir de onde o ensino de certo professor deve ser considerado “instrumento demolidor e subversivo”? Porque esse critério depende do ponto de vista pessoal da autoridade que fiscaliza e superintende o ensino: o que para uns tem a característica nítida da subversão, para outros deixa de oferecê-la. Recordo-me de haver sido um professor, há alguns decênios, num dos Estados da União norte-americana, incriminado por ensinar a doutrina de Darwin, tida, naquele Estado, como subversiva dos princípios cristãos. E todos sabemos que o heliocentrismo foi considerado subversivo nos países católicos até ser liberado pela Congregação do Index, em 7 de setembro de 1822, contando, assim, nesses países, tantos anos de livre curso quantos possui o Brasil de Independência.
A dificuldade da solução dos problemas relacionados com a liberdade de cátedra decorre da confusão dos dois poderes – temporal e espiritual, exercidos cumulativamente pelo Governo em matéria de instrução, como sempre ocorreu entre nós, em França, Itália, Espanha, Portugal e países hispano-americanos. Quando, no Brasil, se fez a separação da Igreja relativamente ao Estado, os positivistas acharam que devia ter sido acompanhada da liberdade de ensino, por constituir este um outro ramo do poder teórico ou espiritual. Se, porém, o professor aceita ser um funcionário púbico e dispõe, durante o curso que ministra, de um auditório forçado de jovens em sua maioria ainda imaturos, é óbvio que não pode deixar de submeter-se à orientação doutrinária do Estado, tal como acontece com o clero católico em regime de união. Aludindo à liberdade estabelecida pela República, ponderavam os bispos do Brasil na Pastoral Coletiva de 1890: “Não mais se hão de ver ministros de Estado, que deviam ocupar-se só de negócios civis, sujeitando à aprovação do Governo os compêndios de Teologia por que se há de estudar nos seminários.” Os que, entre nós, sonham com a implantação do regime comunista e reclamam contra as restrições à liberdade absoluta de cátedra, se esquecem de que ela não existe, em grau nenhum, na Cortina de Ferro. Não só o ensino é aí orientado de acordo com a doutrina do Estado marxista, como também o são a Imprensa, a Literatura, as Artes, a Filosofia e a Ciência. E, por isto, o Pequeno Dicionário Filosófico Soviético é permanente distorção acerca de todos os filósofos que não possuem tendências comunistas. Basta dizer que Santo Agostinho, um dos cérebros mais fortes da Humanidade, é nele apresentado como “pregador fanático e militante do obscurantismo religioso”. De tal modo deturpa esse Dicionário que, no verbete consagrado a Comte, diz ter a Ciência, segundo ele, “por exclusivo objeto a descrição das sensações subjetivas do homem”. Não era possível maior falseamento em relação ao que seja a Ciência para Augusto Comte. Nos Estados Unidos, ao contrário, reina hoje a mais ampla liberdade de ensino. Ali, o valor de um diploma depende – no dizer de um educador – “não do selo oficial, mas do prestígio e integridade moral da escola que o expede. Os colégios não se assemelham a uma repartição pública, onde ninguém pode dar um passo sem preencher certas formalidades”.
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
15
A liberdade de cátedra, sem a supervisão do Estado, somente será possível quando o ensino dele se desprender e for custeado pelos que o ministram e o recebem. No Brasil tal situação constituirá, ainda por muito tempo, uma utopia, visto não termos milionários capazes de fundar e custear universidades, nem alunos que possam concorrer, com suas mensalidades, para sustentá-las, constituindo uma exceção extremamente honrosa a Universidade Gama Filho, construída pelo idealismo alicerçado na força de vontade de um só homem, mas que, como as demais, é obrigada a seguir os programas oficiais. Assim como em matéria de Religião, que pertence, essencialmente, ao foro íntimo de cada qual, ao Estado falece, perante o Positivismo, competência para decretar quais os princípios que devam ser ministrados na formação moral, intelectual e técnica dos cidadãos, cumprindo-lhe, apenas, a manutenção da ordem material. Os únicos ensinos que competem ao Estado, o mais intensamente possível, a fim de acabar com o analfabetismo, são o primário e o normal. O ORADOR Entre nós, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, ainda se lê muito pouco. Eis por que livros notáveis como os vossos – Além dos Temas da Caserna, Exército e Nação, A Engenharia Militar Portuguesa na Construção do Brasil, Território Nacional: Soberania e Domínio do Estado e tantos outros, somente têm chegado a leitores de escol. Publicados na Europa, constituiriam sucessos de livraria, visto ser aí grande o público interessado em assuntos sérios, como os de que tratais, obedecendo os vossos livros às três condições que, aos olhos de Aristóteles, fazem o mérito de uma obra: dizem tudo quanto é exigido pelo tema, só dizem o necessário e da maneira pela qual deve ser dito. Assim como os dos Generais Tasso Fragoso e Dionísio Cerqueira, do Comandante Eugênio de Castro, do Marechal Leitão de Carvalho e dos Marechais Lyautey, Foch, Juin e Joffre, vossos livros são hoje de consulta para os que têm de tratar das matérias que versam. Além de escritor, sois ainda um orador. E, por serdes eloquente, evitais a retórica, ou seja a fraseologia sem fundo, a qual faz com que certos discursos aplaudidíssimos ao serem ouvidos, se tornem detestáveis ao serem lidos, porque se patenteia então o vazio da ideia disfarçado sob a pompa das expressões. Fiel ao preceito de Renan, somente vos servis da palavra para o pensamento e deste para a verdade. Do que seja a vossa força como orador,
16
| Setembro/Outubro/2017
é testemunho a sessão do Senado Federal em que, convocado, em fevereiro de 1968, a requerimento do Senador Mário Martins, justificastes a mensagem do Presidente da República acerca dos efetivos militares. Fornecendo, com segurança, os informes que nessa ocasião vos foram solicitados, vos revelastes – no dizer do Senador Vasconcelos Torres – “um bom técnico da melhor oratória parlamentar”. Comparecendo ao Senado da República, onde vosso pai deixou um grande nome, vos conduzistes – no juízo do Senador Rui Carneiro com inteligência, ostentando profundos conhecimentos. Depois de ouvir-vos, declarou o líder da Oposição, Sr. Aurélio Viana: “O General Lyra Tavares é um civilista por excelência, sem qualquer tendência ou prurido militarista.” É que, acessível ao diálogo, mesmo quando participáveis da Junta Governativa, de vós não diria Favorinus o que ponderou a propósito do vaidoso Imperador Adriano: “É perigoso discutir com o senhor de trinta legiões.” Nem também Aristipo vos faria a pergunta que costumava dirigir a Dionísio de Siracusa: “Queres que me manifeste conforme às tuas opiniões, com sacrifício da verdade, ou, ao invés, que diga esta contrariando teus pontos de vista?” Em discurso de grande repercussão, proferido, de improviso, em 1967, no Paraguai, declarastes saberem os que lidam convosco em assuntos de ordem espiritual ser “compreensão” a palavra a que emprestais maior significado em face do mundo turbulento em que estamos vivendo. E esclarecestes: “O problema do homem, como o das nações, dos continentes e do mundo, tem o seu segredo nessa palavra cujo sentido talvez ainda não seja alcançado em toda a sua profundidade.” Concordais nisto com velho escoliasta de Virgílio segundo o qual “nos cansamos de tudo, menos de compreender”, porque a compreensão se entrelaça com o amor e este, de todos os sentimentos humanos, é o único que não se exaure. Daí a profunda sentença de Mme. de Staël: “Tudo compreender é tudo perdoar.” O PODER Prova de compreensão, além de desprendimento, destes, com os vossos companheiros de Junta Governativa, ao afastar o vosso nome de qualquer cogitação para suceder ao Marechal Arthur da Costa e Silva na Presidência da República. Figurais assim, com os vossos colegas, Almirante Augusto Rademaker e Marechal do Ar Márcio de Sousa e Mello, entre os raros
ISSN: 2357-8335
que têm sabido resistir à paixão do poder – a mais ardente a avassalar o coração humano, nas palavras de Tácito. “O poder”, observava Zweig, [...] é como a cabeça de Medusa: quem lhe viu o rosto, dele não mais pode desviar os olhos. Quem, uma só vez, provou a embriaguez do poder e do mando, não mais consegue dispensá-la, não renunciando à volúpia, quase sacrílega, de dirigir o destino de milhões de homens. Historiador e sociólogo, conhecendo a precariedade das grandezas humanas, em certas emergências haveria de repontar-vos ao espírito o episódio da prisão do antigo Regente do Império, Padre Diogo Antônio Feijó, pelo Barão de Caxias, ao ser por este, em 1842, debelado o movimento revolucionário liberal irrompido em Minas e São Paulo. Escrevendo ao comandante das forças vitoriosas, ponderou-lhe Feijó em 18 de junho daquele ano: Quem diria que em qualquer tempo o Sr. Luís Alves de Lima seria obrigado a combater o Padre Feijó. Tais são as coisas deste mundo!... Eu estaria em campo, com a minha espingarda, se não estivesse moribundo, mas faço o que posso... Lembra-me de procurar V. Exa. por este meio e propor-lhe uma acomodação honrosa a Sua Majestade e à Província... V. Exa. é humano, justo e generoso, e espero não duvidará em cooperar para o bem desta minha Pátria. Em resposta, fez-lhe ver Caxias ser impossível qualquer acordo. E, ao entrar em Sorocaba, dirigiu-se à casa onde se encontrava o antigo regente, e, dispensando-lhe toda consideração, disse-lhe: “Só o dever de soldado me impõe a dolorosa obrigação de vir prender o Sr. Senador Feijó. Quer V. Exa. dar algumas providências ou levar alguns objetos para o quartel-general, onde tudo falta?” “De nada preciso, apenas de uma esteira.” Trocadas estas frases, Feijó convidou Caxias a sentar-se e conversou sobre o passado. Entre outras coisas, perguntou-lhe se se recordava dos acontecimentos de 1831, e do ministro da Justiça que o nomeara major do Corpo de Permanentes, acrescentando: “O senhor é moço, aprenda no que está vendo o que são as vicissitudes do mundo. Naquele tempo eu dava acesso ao Sr. Lima e Silva, hoje vem ele prender o velho Feijó, já moribundo.” Também a vós, Sr. Aurélio de Lyra Tavares, possivelmente se vos depararam, no Ministério do Exército e na Junta Governativa, circunstâncias semelhantes à de Caxias naquele episódio, pois fostes compelido a
medidas que fundamente feriam vossa sensibilidade visto se relacionarem com antigos amigos e camaradas. ATUAÇÃO NO MINISTÉRIO E NA JUNTA GOVERNATIVA Ainda é muito cedo para se apreciar a vossa atuação como ministro e membro da Junta Governativa, porque, como frisastes, em 1966, em vosso discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: É precisamente do atual que o historiador deve afastar-se, retrocedendo no tempo, abstraindo-se do quadro que está vivendo no presente, para ver com isenção, com segurança e com fidelidade o fato histórico na pureza das fontes, na idoneidade dos depoimentos e nas circunstâncias do ambiente da época. O estudo da História nos leva a mergulhar no passado, ao contrário das outras ciências, em que examinamos os fenômenos olhando as circunstâncias materiais que os cercam, mas não necessariamente o século ou ano e o clima espiritual e político em que eles ocorreram. O historiador é, por isso mesmo – concluís –, escravo dessa espécie de servidão voluntária, além de nobre, que o força a sair do presente para poder estudar, livre e isento dos problemas e dos fatos atuais, que serão História apenas para os que vierem depois de nós, porque só eles terão serenidade, isenção e perspectiva para apreciá-los.
E assumistes então o compromisso de servir à História com fidelidade, mesmo porque, foram vossas palavras, “não vejo como seja possível servi-la de outra forma. É como se tem, pelo menos, a certeza de não desservi-la”. Só aos historiógrafos do futuro, diante das memórias que decerto havereis de escrever documentadamente, caberá, portanto, apreciar a vossa atuação política no Ministério do Exército e no Governo brasileiro a partir de março de 1967, e terão de considerar, como sempre o fazeis, não ser ninguém infalível, sendo inevitáveis os desacertos, sempre que temos de agir. Deles só Deus se livra, e, assim mesmo, ponderava, no século XIII, o rei astrônomo, Afonso X de Castela: “Se tivesse sido consultado pelo Criador ao fazer o mundo, haveria de dar-lhe bons conselhos a fim de evitar erros manifestos” – tão fácil é apontá-los e tão difícil não incidir neles! Asseguram os que vos conhecem de perto estardes sempre pronto a contribuir para a reparação de excessos e falhas decorrentes de período agitado, como não podia deixar de ser o que se seguiu à revolução de 1964. Se todos se enganam, só os homens superiores o reconhecem de boa mente, e vós, que sois historiador, sabeis ser uma das vantagens do estudo de vossa predileção mostrar aos grandes homens haverem eles tido êmulos no passado e que esses êmulos, por maiores que hajam sido, não se livraram da
falibilidade peculiar à nossa espécie e, tal como os heróis de Camões, “TODOS FORAM DE FRACA CARNE HUMANA.” O discurso em que vindes de estudar o patrono, o fundador e os ocupantes da Cadeira 20, e, especialmente, o vosso grande antecessor Múcio Leão, o qual, à sensibilidade de poeta e à agudeza de crítico associava a capacidade beneditina de trabalho com que levou a termo a História da Literatura Brasileira intitulada Autores e Livros, o vosso discurso, vazado no mais clássico estilo acadêmico, e, bem assim, o retrospecto que de vossa vida e de vossa obra intentei traçar provam que há muito vos aguardava, de pleno direito, uma Cadeira nesta Casa. E, ao eleger-vos, a Academia patenteou saber chamar ao seu convívio todos os valores intelectuais e culturais do Brasil, onde quer que se encontrem e qualquer que seja a atividade a que se consagrem. Desfrutai, pois, tranquilamente a imortalidade a que fazeis jus pela vossa vida e pela vossa obra, construída com amor, seriedade e segurança. Sede bem-vindo, Sr. Aurélio de Lyra Tavares! g (*) Discurso de saudação ao Acadêmico Aurélio de Lyra Tavares, na sessão solene de 2 de junho de 1970, da Academia Brasileira de Letras.
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
17
MÚSICA NORDESTINA DO NORDESTE PARA O MUNDO Érico Dutra Sátiro Fernandes
No final de 2016, uma lista de suas músicas preferidas para praticar atividades físicas, divulgada pelo ex-presidente dos EUA Barack Obama, tornou-se notícia no Brasil por uma inclusão inusitada: a faixa “Perro Loco”, da banda Forro in The Dark, grupo formado em Nova York no ano de 2002, por três brasileiros lá radicados, e que mistura ao forró elementos da música pop, como a adição de guitarras e saxofones. Será então que o nosso forró definitivamente se popularizou no exterior? Ainda não tanto, até porque “Perro Loco” não é exatamente uma canção de forró tradicional, porém, isso não quer dizer que o ritmo nordestino não tenha uma boa aceitação em terras estrangeiras. Muito pelo contrário, basta perceber o sucesso que os músicos do estilo conseguem ao realizar turnês em outros países, em especial na Europa. Além disso, assim como o Forro in The Dark, há outros grupos formados no exterior explorando o forró, a exemplo do Matuto, também nos Estados Unidos, e o Bel Air de Forro, na França, o que ajuda a difundir o gênero ao redor do mundo. A admiração do público e da crítica estrangeira é grande ao ponto de haver determinados discos de música nordestina que foram lançados exclusivamente no exterior, até mesmo de artistas consagrados no estilo. Sivuca, Oswaldinho, Dominguinhos, Camarão e João do Vale são exemplos de músicos brasileiros que tiveram álbuns lançados ou reeditados somente no exterior. Há algum tempo, não havia alternativa ao público brasileiro para escutar tais discos, senão comprá-los em outros continentes. Com o advento da internet, surgiu a oportunidade de importá-los através de lojas online ou “baixar” os arquivos por meio de sites de compartilhamento. Atualmente, embora ainda exista a possibilidade de adquiri-los em sites estrangeiros de cds, pode-se ouvir a maioria desses álbuns em plataformas de streaming como Spotity ou Deezer. O reconhecimento do público estrangeiro ao valor do forró não é novidade, mas a existência desses discos é mais uma mostra, em tempos de invasão do “breganejo” e dos “forrós de plástico” nas festas juninas, que a autêntica música nordestina nunca vai acabar. Confiram abaixo
18
| Setembro/Outubro/2017
alguns desses cds que foram lançados ou reeditados somente no exterior: Forró Novo – Oswaldinho (1997) – Com apresentações e participações em festivais em diversas partes do mundo, o acordeonista Oswaldinho, conhecido por explorar ritmos como jazz, rock, blues e até o erudito em seus discos, lançou na Alemanha, pelo selo Piranha´s, o seu disco mais nordestino da carreira, utilizando apenas sanfona, triângulo e zabumba. São 13 faixas instrumentais gravadas pelo filho do forrozeiro Pedro Sertanejo, mesclando canções de sua autoria com clássicos de Luiz Gonzaga e Dominguinhos, em um dos melhores álbuns de sua discografia. Accordeon do Brasil - Julinho do Acordeon (1992) – o acordeonista e maestro cearense João Aguiar Sampaio, o Julinho, falecido em 2008, é autor de canções como “De Juazeiro a Crato” (Julinho/Luiz Gonzaga), “Dengo maior” (Humberto Teixeira/Julinho) e “Carapeba” (Julinho/Luiz Bandeira), todas gravadas por Luiz Gonzaga, além de “Magoada” (Julinho/João do Vale), interpretada por Clara Nunes, e da instrumental “Baiãozinho bom” (Julinho/Evaldo Gouveia), uma de suas composições mais conhecidas. Exímio instrumentista, Julinho também se apresentou em vários países e gravou diversos LPs em sua carreira, além desse cd lançado na França, em 1992, pelo selo Kardum. No encarte, texto escrito pela francesa Dominique Dreyfus, biógrafa de Luiz Gonzaga. Camarão plays forró – Camarão (1998) – Reginaldo Alves Ferreira, o Camarão, falecido em 2015, recebeu em 2003 o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, o que demonstra a importância do sanfoneiro para a cultura do seu
ISSN: 2357-8335
Estado. Dono de um estilo próprio de tocar acordeon, o músico gravou em 1995, no Recife, as músicas do cd Camarão plays Forró, lançado somente na Europa, em 1998, pelo selo Nimbus, da Inglaterra. Com capa extraída de tela da artista plástica Isa Galindo, o cd, com interpretações no autêntico estilo pé de serra, traz ainda o também falecido Arlindo dos 8 Baixos em quatro faixas, além de contar com a participação da cantora Joana Angélica nos vocais. Brazil: Forró – Music for maids and taxi drivers (1990) – Apesar de ter uma versão lançada no Brasil, esse disco não poderia faltar na lista. Em 1981, o produtor e músico pernambucano Zé da Flauta gravou, em condições estruturais improvisadas e experimentais, duas fitas com músicas de Toinho de Alagoas e Duda da Passira, autênticos representantes do forró. Após vendê-las para a Visom Digital, recebeu o pedido de mais duas fitas, que foram gravadas com Heleno dos 8 Baixos e José Orlando, em 1982. Vários anos depois, os quatro discos foram compilados e lançados nos Estados Unidos e Europa com o título de “Brasil: Forró – Music for maids and taxi drivers”. O sucesso foi tão grande que, além de ter recebido um prêmio na Inglaterra de melhor capa de cd internacional, em 1990, pela xilogravura de Marcelo Soares, o disco foi indicado ao Grammy Awards na categoria traditional folk, em 1991. “Por causa de um disco de forró, estávamos na festa de premiação dando de cara com nomes como Natalie Cole, Keith Richards (Rolling Stones), Aerosmith, Billy Idol, Quincy Jones...”, relembra Zé da Flauta. O êxito da empreitada também acabou rendendo uma edição nacional do cd e um novo disco de forró: Pé de Serra Forró Band. Dance music from the countryside - Pé de Serra Forró Band (1992) – Com o sucesso do “Music for maids and taxi drivers”, Zé da
Flauta foi procurado por Tiago de Oliveira Pinto (brasileiro radicado na Alemanha), do Departamento Latino-Americano da Haus Der Kulturen Der Welt (Casa das Culturas do Mundo), de Berlim, para fazer um disco semelhante, a ser lançado na Alemanha. O produtor reuniu, então, Duda da Passira (acordeon), Heleno dos 8 Baixos (fole de 8 baixos), Tavares da Gaita (gaita, reco-reco), Raminho (zabumba, triângulo) e Quartinha (zabumba, triângulo) para formar o Pé de Serra Forró Band. “Eles (Casa das Culturas do Mundo) têm um estudo completo sobre o pífano e possuem todos os ritmos nordestinos escritos em partituras, coisas que nós não temos”, impressiona-se Zé da Flauta. As gravações foram feitas no Recife, em fevereiro de 1992, e o disco lançado na Alemanha pela própria Haus Der Kulturen Der Welt. O poeta do povo João do Vale (1965) - Autor de centenas de músicas, o cantor e compositor maranhense João Batista do Vale teve, no entanto, uma curta discografia. “O poeta do povo”, seu primeiro disco de carreira, foi lançado no Brasil em 1965, com boa aceitação do público e da imprensa especializada. “Nesse LP, João do Vale canta com muita convicção, muita naturalidade e fervor, um punhado de composições suas, acompanhado por um bom violão e ritmo”, enfatizou o crítico L. P. Braconnot¹, à época do lançamento. Apesar da qualidade, a obra nunca foi editada em cd no nosso país. Em 2014, no entanto, pelo selo Doxy Music, o LP ganhou uma reedição na Europa em que, junto com o bolachão, vem uma versão em compact-disc. Entre as faixas, clássicos como “Carcará” (João do Vale/José Cândido), “Pisa na fulô” (João do Vale/Ernesto Pires/Silveira Jr.), “A voz do povo” (João do Vale/Luiz Vieira” e “Peba na pimenta” (João do Vale/José Batista/Adelino Rivera). Domingo Menino Dominguinhos – Dominguinhos (1976) – Contando com um time de primeira ao seu lado, formado, entre outros, por Wagner Tiso (piano elétrico), Gilberto Gil (violão), Toninho Horta (guitarra), Moacyr Albuquerque
(baixo) e Jackson do Pandeiro e seus irmãos Tinda e Cícero (percussão), Dominguinhos gravou, em 1976, um dos grandes discos de sua brilhante carreira. Misturando jazz aos ritmos tradicionais da música nordestina, o acordeonista pernambucano imprimiu a sensibilidade marcante do seu instrumento em cada faixa do álbum, deixando-o mais com cara de mpb do que de forró. “Tem que tocar pra fora, com alegria, com prazer, senão, mando todo mundo embora. O Wagner Tiso e o Toninho Horta, acostumados a tocar com o Milton Nascimento, de vez em quando começavam a entortar, a fazer aquele som fechado, de lata velha. Mas aí, eu explicava que meu som é diferente, e como eles são flexíveis, compreendiam”, declarou um exigente Dominguinhos². A incorporação do jazz e outros elementos em sua música também gerou a incompreensão de alguns críticos, como o jornalista José Ramos Tinhorão, que, à época, teceu pesados comentários sobre o disco³. A edição em cd do disco permanece inédita no Brasil, tendo sido lançada somente no Japão, em 2015. No repertório, quase todas as faixas são de autoria do próprio Dominguinhos e de Anastácia, com exceção para “Gracioso”, do flautista Altamiro Carrilho. Samba Nouvelle Vague – Sivuca (1961/1962) – Embora este não seja um disco de forró, não poderia faltar na relação, principalmente pela importância do autor para a música nordestina. Foi durante o período em que residiu na França, que Severino Dias de Oliveira, o Sivuca, paraibano de Itabaiana, gravou os álbuns “Sivuca e os ritmos brasileiros de Silvio Silveira” (1961) e “Samba Nouvelle Vague” (1962), interpretando choros e diversas canções da bossa nova, como “Samba de uma nota só” (Newton Mendonça/Tom Jobim). Nas gravações, que também contaram com outros músicos, Sivuca foi o responsável, além do acordeon, pelos pianos, vocais, arranjos e guitarras (somente no disco de 1962). Em 2005, a Universal Music da França reuniu os dois álbuns em um único cd, com o mesmo título do LP de 1962. Foi disponibilizado na Europa e ainda é possível encontrá-lo com certa facilidade em lojas estrangeiras na internet.
Richard Galliano au Brésil – Vários (2014) – Apesar do título, o cd nada mais é que a trilha sonora do documentário “Paraíba, meu amor”, do diretor suíço Bernard Robert-Charrue, que se apaixonou pelo forró ao conhecer o ritmo e produziu este filme sobre o gênero, direcionado ao público europeu e lançado em 2008. Nas gravações, o acordeonista francês Richard Galliano passeia, toca pela Paraíba e observa o som de nomes como Dominguinhos, Chico César, Pinto do Acordeon, Aleijadinho de Pombal e Os 3 do Nordeste. O repertório do disco, disponibilizado somente na Europa em 2014, em formato de cd duplo, é composto pelos áudios extraídos exatamente dos números musicais do filme. Forró Acústico – Accordéon du Nordeste du Brésil, volumes 1 e 2 – Vários (2007/2008) – Em 2006, o produtor belga Damien Chemin, então residente em Sergipe, idealizou um projeto de pesquisa de artistas do forró, principalmente naquele estado e em Alagoas, que resultou na coletânea “Forró Acústico – Accordéon du Nordeste du Brésil”, lançada em dois volumes pelo selo francês Cinq Planètes. As gravações, que foram realizadas nas próprias casas e bairros dos músicos, fora dos padrões convencionais de estúdio, traziam nomes pouco conhecidos em outras regiões como Olivan do Acordeon, Cachoeira, Bodocó e Batista do Acordeon, ao lado de músicos de maior destaque como os irmãos Mestrinho e Erivaldinho, filhos do também forrozeiro Erivaldo de Carira. Os discos circularam pela Europa e Japão, tiveram boas vendas e ganharam destaque na imprensa internacional, como a revista francesa Mondomix⁴. Forró do Baú – Cobra Verde (2009) – Admirado com o talento do sanfoneiro sergipano Soenildo Santos Mendonça, ou simplesmente Cobra Verde (também participante da
Braconnot, L. P. Coluna Discos, Tribuna da Imprensa, 25 de outubro de 1965. Souza, Tárik de. Coluna Acontece, Jornal do Brasil, 1º de agosto de 1976. 3. Tinhorão, J.R. “O sanfoneiro que subiu para cair”, Jornal do Brasil, 16 de agosto de 1976. 4. http://blogs.mondomix.com/accordeon.php/2010/09/25/forro-la-musique-des-cacheros-du-nordest. 5. Dreyfus, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. Editora 34, 1996, 1ª edição. 1. 2.
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
19
coletânea “Forró Acústico – Accordéon du Nordeste du Brésil”), o diretor do selo Cinq Planètes, Philippe Krümm, famoso na Europa pelo seu conhecimento sobre o acordeon, pediu que Damien Chemin produzisse um disco solo de Cobra Verde para seu selo. O cd foi gravado em Aracaju, em 2009, mas foi lançado na França e distribuído na Europa, EUA e Japão pela L’autre Distribution. Com embalagem caprichada, trazendo livreto com várias fotos em 28 páginas, o álbum apresenta cinco execuções instrumentais e diversos convidados nos vocais nas outras faixas, como o cantor, repentista e instrumentista Genovitor, a falecida cantora Clemilda e o baiano Adelmário Coelho, que interpreta “Carreiro Novo”, de Jacinto Silva. “Chamamos diversos artistas e amigos para participar do cd. Todos gostaram da idéia de participar do primeiro trabalho solo de
20
| Setembro/Outubro/2017
Cobra Verde, que é muito respeitado em Sergipe”, afirma Chemin. Bem recebido pela crítica europeia, o disco impulsionou o músico em uma pequena turnê pela França e Bélgica, além de participação em um festival de música popular na Argentina. A festa – Luiz Gonzaga (1981) – Lançado em abril de 1981 e recebido pela crítica com certa discrição, o 39º LP do Rei do Baião trouxe regravações clássicas como “Paraíba” (Humberto Teixeira/ Luiz Gonzaga) – canção criada inicialmente como um jingle para a campanha política de José Américo de Almeida, na Paraíba – e “Cacimba Nova” (José Marcolino), ao lado de outras músicas que, embora não tenham se tornado emblemáticas, deram brilho à
ISSN: 2357-8335
continuidade do consistente e autêntico repertório de Luiz Gonzaga. O álbum registra também diversos convidados especiais: Emilinha Borba, Gonzaguinha, Nelson Valença, Dominguinhos, Zé Marcolino e Milton Nascimento. Sobre este último, que participa da faixa “Luar do Sertão” (Catulo da Paixão Cearense), Gonzaga relatou: “O contato com Milton Nascimento foi simples. Nós nem ensaiamos, todo mundo sabe cantar essa música. Só tive cuidado em afinar com ele, porque ele tem uma extensão de voz muito grande(...). Ele é uma figura interessante, fala pouco, muito pouco”⁵. Embora o disco tenha sido disponibilizado neste ano em plataformas digitais, a edição em cd permanece inédita no Brasil, tendo sido lançada no Japão, em 1995, pela BMG Ariola. Raríssima, a mídia em compact-disc é oferecida atualmente pela bagatela de quase mil reais no site do Mercado Livre. g
DIREITO & INFORMÁTICA O FUTURO DO DIREITO E O DIREITO DO FUTURO Gustavo Rabay Guerra
Já caminhando para o fim de mais uma década, não há indivíduo ou lugar no mundo em relação ao qual a Internet não seja fator de dependência e de mudança – sobretudo, naqueles onde ela sequer existe e a população local luta pelo seu acesso. Talvez seja, atualmente, um dos mais disputados ativos globais. Pouco a pouco, a tecnologia passou a servir a tantas finalidades e assumiu irrefreável relevância, a ponto da conexão à rede ser reconhecida como direito fundamental. Trata-se de um meio para exercer a cidadania e profissões exclusivas ou não, e plano número um para novas oportunidades de negócio, ferramenta para educação e desenvolvimento humano, até a própria sobrevivência, quando pensamos em zonas de conflito. A Internet, no entanto, é apenas um dos campos em que a evolução tecnológica produz seminais transformações na sociedade global. Da indústria das comunicações às inovações nos setores de saúde, finanças, educação, mobilidade e hotelaria, os impactos em múltiplos setores econômicos cunhou um ciclo de mudança exponencial nas conexões entre fornecedores, produtores e o usuário/consumidor, frequentemente substituídos de forma revolucionária ou, como se prefere dizer, disruptiva. As revoluções pós-digitais, em uma visão mais simplista, radicam na imersão total de indivíduos à tecnologia, na qual os recursos se converterão em dados, serviços e aplicações acessíveis a todos, criando exponenciais possibilidades de conexão, sem limites, incluindo o uso crescente da robótica, da inteligência artificial, da nanotecnologia, da biotecnologia e outras inovações colossais. Segundo Steve Case, a primeira onda (1985-1999) chegou com a criação da internet, permitindo a conexão das pessoas com o mundo. A segunda (2000-2015) se deu com startups na área de buscas, redes soci-
ais e outras ferramentas baseadas na internet. Finalmente, a terceira onda (de 2016 em diante) se dirige a moldar uma realidade na qual estamos conectados em tempo integral, por meio de tudo, tomando a exponencialidade das mais variadas tecnologias na direção de profundas rupturas comportamentais e sensoriais. A Terceira Onda não será definida pela “Internet das Coisas”, isso é, pela possibilidade de conectar desde utensílios domésticos a carros, por meio de sinais eletrônicos; ela será definida pela Internet de Tudo. Ou seja, uma etapa assustadora da (r)evolução tecnológica na qual a rede digital será totalmente integrada em cada parte de nossas vidas, como nós aprendemos, tratamos da saúde e do meio ambiente, gerimos as nossas finanças, decidimos social e politicamente questões coletivas, trabalhamos e até mesmo o que comemos. Como a Terceira Onda ganha impulso, cada líder da indústria em todos os setores econômicos, corre o risco de sofrer com a avalanche disruptiva. Pense sobre o que está acontecendo no Vale do Silício ao longo das últimas décadas e imagine como será quando aplicarmos essa mesma cultura de inovação e o alcance da ambição em cada parte da nossa economia. Essa é a Terceira Onda e ela não está vindo - ela está aqui. Múltiplas transformações, uma única forma de Direito? Hubs, bitcoins, blockchain, cybersecurity, big data, algoritmos, machinelearning, web harvesting, economia de compartilhamento, open source, direito ao esquecimento, realidade virtual e misturada, smartcities, Internet das Coisas – são tantos paradigmas, modelos e expressões em profusão que se torna cada vez mais difícil permanecer atualizado diante de uma rede de novos sentidos e possibilidades, considerados popularmente como “game changing”, isto é, impactantes ao ponto de mudar a for-
ma como antes fazíamos as coisas. É o que aconteceu com hábitos de consumo de entretenimento, como filmes, músicas, livros e espetáculos culturais. Agora, ninguém consegue viver sem Netflix, Spotify, iTunes e a Amazon... Antes que o leitor tome ódio de tantos estrangeirismos e expressões de uso comercial, podemos dizer que serviços de transmissão de informações, serviços e conteúdos (as chamadas ferramentas de “streamings” ou transmissão em tempo real), se tornaram tão populares entre as novas gerações, que sequer entendem como cultuamos, durante tanto tempo, a aquisição individual de CD’s, DVD’s, livros, revistas e shows em mídia física no geral. Talvez escapem os discos de vinil, considerados “vintage”, ou clássicos, como se prefira, muito pouco se tratando da qualidade de graves e outros atributos sonoros que os sulcos do passado mantêm frente à digitalização da música. Falaremos adiante de alguns termos e conceitos acima referidos, no contexto de múltiplas transformações pela qual passa a sociedade. Só uma advertência: a velocidade é tamanha que, quando paramos para pensar e descrever o cenário atual, talvez, ele já não esteja mais up-to-date. O futuro chega sufocando com promessas belíssimas de impacto positivo na vida de todos. E tudo será melhor do jeito novo, acessível, compartilhado, distribuído. No entanto, o futuro de abundância e de infinitos recursos trarão obviamente, de reverso, inúmeros problemas, sobretudo em relação à segurança, à privacidade, à saúde e à economia, apenas ficar entre alguns campos. Algumas profissões e mercados inteiros, como se costuma dizer, simplesmente desaparecerão. E a coleta de dados, cada vez mais automatizada, levará a crer que, também, não haverá mais privacidade. Terrivelmente preocupante é o uso de ferramentas de mídias programáticas, que se
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
21
alimentam do famigerado “big data”, fenômeno no qual todas as informações processadas no meio digital podem ser armazenadas e posteriormente utilizadas para dirigir condutas (para o consumo, visão ideológica, posição política e preferências pessoais). E esse é apenas um dos incontáveis riscos do contexto de presença total do ser (no) digital. O real e o virtual já se confundem em ritmo insuperável. Monetização de perfis online, experiências ao vivo e a cores vividas por meio da rede, construção de valores e formas de interação automatizadas, constroem um passo frenético que aprisiona estilos de vida, determinando comportamentos, seja no campo pessoal como no profissional. A sociedade conectada tem problemas estruturais que se escondem na virtualidade, no efêmero, no apelo do consumo fácil e das nuances pouco temperadas da imersão digital. Com a velocidade em que as mudanças, padrões e novas ferramentas surgem, o Direito precisa reformatar suas formas de prevenção e controle, pois a tutela jurídica não consegue acompanhar o fluxo informacional gerado pela novas tecnologias. Direitos autorais, contratos online, crimes em meio digital, novos contextos da responsabilidade civil, entre outros temas, são apenas alguns exemplos da imensidão de desafios postos à comunidade jurídica nesse limiar de novas revoluções da humanidade. A tecnologia impactou os diversos sistemas existentes na sociedade e isto não foi diferente em relação ao ordenamento jurídico dos países. Com efeito, a internet é palco de diversas relações jurídicas, fruto de condutas lícitas e ilícitas. Assim, apesar da tecnologia ter gerado benefícios, criou-se nova fonte de conflitos de interesse, isto evidenciado em face dos crimes virtuais ou mesmo de práticas comerciais lesivas ao consumidor conectado. Acima do bem e do mal, os conflitos de interesse verificados em face do uso da internet muitas vezes são reflexos daqueles existentes na vida real, mas seus efeitos podem ser bem diferentes, como os dano causados a alguém que teve sua intimidade exposta em uma rede social. Disto, verifica-se a necessidade de busca por novos meios de pacificação dos litígios em uma sociedade globalizada e interconectada. Neste sentido, a própria tecnologia apresentou-se como mecanismo hábil para dar respostas céleres às demandas judiciais, o que se manifesta pela criação de aplicações de internet, a exemplo de sítios governamentais como os que hospedam plataformas de processo judicial eletrônico e o Escritório Digital, nova vertente de desenvolvimento
22
| Setembro/Outubro/2017
de produção advocatícia que se utiliza de recursos em rede. Conforme o art. 5o, VII, do Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 2014), entende-se por aplicação de internet o “conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. Assim, o sistema de peticionamento eletrônico oficial do Conselho Nacional de Justiça (“PJe”) pode ser entendido como espécie de aplicação de internet. No entanto, o fato de o sistema judicial ter sido virtualizado não quer dizer muito em relação à capacidade da esfera jurídica em lidar com a complexidade trazida pela ubiquidade tecnológica dos dias atuais. Quero dizer com isso que não há limites para as inovações que surgem dia após dia, sendo que elas ocorrem em todo e qualquer lugar, nas mais diversas sendas da experiência humana e com qualquer indivíduo. Todos serão afetados, em que pese o visível retardo do conhecimento em acompanhar esse cenário de profunda descontinuidade, de suspensão da tradição e, por vezes, de amplíssima renovação. O Direito, enquanto ramo de conhecimento e experiência prática, mantém-se analógico, anacrônico e, na maioria dos casos, sem propósito de co-determinação. As soluções antiquadas ou irrefletidas, para não dizer conservadoras, impedem o progresso de formas autênticas de proteção dos bens da vida, reclamando, assim, posturas diametralmente opostas ao que necessita a sociedade. Onde se espera adaptação, o Direito oferece regulação estanque e desatualizada – como é o caso do Uber e outras aplicações tecnológicas de transporte individual privado de passageiros, que enfrenta resistência de campos profissionais afetados e do próprio legislador, que insiste em tentar barrar a chegada dessa modalidade de serviços disruptiva e emancipatória, ainda que predominem opiniões favoráveis à existência do Uber, como já manifestado pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Justiça, órgãos encarregados de fiscalizar eventual transgressão às regras da livre concorrência no Brasil. O problema é que o clássico modelo de debater os interesses da coletividade e o processo de decisão jurídica que emergem, respectivamente, de órgãos legislativos e do Judiciário, dependem da conformação interpretativa entre o mundo legal e o político, na perspectiva tradicional de elaboração de normas gerais e aplicação aos casos individuais, sem a devida ponderação sobre as im-
ISSN: 2357-8335
plicações legais e sociais das novas tecnologias em uma visão globalizante, com níveis mínimos de conhecimento sedimentados. Fato é que o Direito não lida com a complexidade em toda sua extensão, criando proibição de implementos fundamentais à mudança do panorama social, em um contexto exponencial de mudança, prejudicando ou retardando adaptações necessárias a transformações inevitáveis. As tecnologias baseadas na confiança e na transparência de dados são exemplos dessa chave de conhecimento, com a utilização de moedas ou padrões de valor que começam a invadir o mundo virtual agora e que descolam da realidade até aqui vivida. Como exemplo, temos as aplicações baseadas no sistema de Blockchain, como o Bitcoine o Arcade City. Trata-se de um banco de dados distribuído que mantém registros públicos de transações permanente e à prova de violação. Vale dizer, em transações ou fornecimentos de conteúdo, serviços ou produtos, os dados registrados em cadeia não podem ser apagados ou alterados, assegurando a legitimidade das relações jurídicas, que passam por mecanismos de criptografia avançada e múltiplas vinculações de autenticidade. No entanto, a própria natureza dessa relação jurídica não é suficientemente compreendida por profissionais e teóricos do Direito, havendo grande discordância sobre a evolução da implementação desse modelo, sobretudo desde seu nascedouro, no âmbito financeiro (bitcoins, ou moeda virtual). O Arcade City, aplicação mais recente, é uma comunidade de provedores e consumidores “peer-to-peer” (“ponto-a-ponto) de compartilhamento de serviços, isto é, contratos inteligentes sem intermediários, que usa uma moeda nativa de troca baseada no modelo de Blockchain, a Ethereum. Os idealizadores do Arcade City pretendem que ele se torne um modelo de economia autossustentável totalmente descentralizada e que a gestão financeira seja entregue para a comunidade após os primeiros três anos de existência. Dentro dessa cadeia, o Arcade City pode oferecer quaisquer serviços, como dito acima (“Arcade City ispeer-to-peereverything” se lê na apresentação da página da comunidade). Inclusive transporte privado de passageiros. Você leu certo: o Uber é coisa do passado... O que eu “esqueci” de contar é que a ideia do AC surgiu em resposta à proibição da Uber e do congênere Lyft em Portsmouth, New Hampshire, Estados Unidos, no final de 2015. Em janeiro de 2016, mais de 600 motoristas se inscreveram na startup e o AC se espalhou por outras cidades dos EUA,
tudo em razão de menores custos operacionais e um modelo descentralizado, em que a aplicação tecnológica apenas serve para conectar parceiros de “carona”. A comunidade, além de transporte, poderá prover hospedagem (vide AirBnb e similares) e serviços de qualquer natureza. Que tal contratar um arquiteto ou um advogado e pagar na moeda virtual ou em sistemas de pontuação de fidelidade (“milhas aéreas”). Será possível voltarmos ao escambo, ou seja, a troca de bens e serviços sem uso de moeda? O futuro é sempre uma reconciliação com o passado. Haveria acordo também em termos de regulação jurídica? PERIGO REAL E IMEDIATO Algumas direções essenciais devem ser buscadas para permitir posturas menos radicais e recalcitrantes quanto às mudanças que se operam numa velocidade insuperável. Em primeiro lugar, não dá para puxar o freio de mão e deixar o carro rodar na pista, com riscos de capotamento e fatalismos metafóricos, como à época do tão propalado bug do milênio, que acabou se tornando inverídico. A primeira percepção que se deve ter em mente é a de que atravessamos uma etapa da humanidade na qual as revoluções ocorrem de forma vertiginosa porque a vida digital é necessariamente exponencial. Nenhum outro período da história enfrentou tantas descobertas e alterações comportamentais como essa em que a comunicação e, por conseguinte, a informação, trafegam sem fronteiras, enquanto modelos de negócios brotam livremente, prescindindo de custos elevados e são ofertados em praticamente qualquer lugar – é o fascinante mundo em rede, anunciado por ManuelCastels. A sociedade informacional cede espaço para a algorítmica, como nos diz Pierre Lèvy, no qual a revolução digital entrega procedimentos de cálculo automático de dados extraídos de redes sociais e qualquer outra fonte informacional, sob a forma de procedimentos de cálculo e correlações estatísticas que definam padrões comportamentais. Assim, no plano operacional, o uso do big data e das plataformas online, dentre outras formas de coleta e compartilhamento de dados,fornecerá informações que cada um precisa sobre todos, para aplicação automática em seus afazeres, sejam eles comerciais ou não, com grande risco no que toca à utilização de vigilância permanente dos cidadãos por governos e organizações privadas. As implicações, portanto, são de uma
gama profunda e que foge aos olhares mais atentos de juristas e cientistas políticos, pois se espraia no que toca às relações de poder, em diversos níveis da política; às questões territoriais, sobretudo no que toca à inclusão/exclusão social; às transformações do conhecimento, com a profusão de dados, de meras informações, e a retenção, por vias oblíquas, dos processos cognitivos de real valor, num paradoxo que leva à obliteração da sabedoria; e, por último, a um profundo abalo em relação ao mercado de trabalho, com desemprego estrutural causado pela automação, como adverte Bernard Stiegler. Levando-se em consideração a proliferação da inteligência artificial e da robótica no contexto de disrupção tecnológica conducente à automação radical, o lado positivo seria o surgimento do denominado “Quarto Setor”, constituído por uma sociedade colaborativa, como se fosse uma cooperativa gigante, caracterizada por bens e moedas comuns baseadas em tesouros próprios (à moda da plataforma blockchain, por exemplo), a inteligência coletiva territorializada, fontes de rendas mínimas e ecossistemas econômicos desconectados do sistema financeiro atual (florestas de startups financeiras, as chamadas fintechs)e, na ponta de toda a cadeia, a disrupção contínua da organização social do trabalho e dos modelos de emprego, profundamente marcados pela inovação e pela criatividade, mas com o severo desaparecimento de inúmeras funções laborais. Na área jurídica, sabemos que a ameaça é real e iminente. Quando Richard Susskind, autor do célebre “The Future oftheProfessions”, direcionou sua mira para os advogados com sua obra “Tomorrow’sLawyer”, em 2008, a pergunta sobre a substituição dos profissionais jurídicos por robôs ganhou força e causou desconforto profundo em seus muitos leitores. Em “The GreatDisruption: howMachineIntelligencewillTransformthe Role ofLawyers in theDelivery of Legal Services”, os professores John O. McGinnis e Russell Pearce afirmam que as máquinas estão chegando para promover a disrupção das carreiras legais e que a Ordem dos Advogados não vai conseguir lhes frear. Concluem que os experts e “superstars” da advocacia vão sobreviver, mas os assessores legais e os advogados contratados (“journeymen”) serão engolidos. O cerne da questão é que a tecnologia mudou tudo. E seu impacto absoluto e vertiginoso encontra no setor produtivo um mercado inclemente: a economia compartilhada e da Internet vêm refundando o comportamento de consumidores e provedores,
sepultando formatos de negócios tradicionais. E vai mudar profundamente nos próximos ciclos. Nichos inteiros serão reinventados. E junto com eles, postos de trabalho se renovam ou desaparecem completamente. Tome-se a advocacia, por exemplo. Nas últimas décadas, talvez séculos, a metodologia de ensino e prática do Direito não evoluiu muito (para não dizer que não evoluiu nada). Poder-se-ia levantar objeções como a implantação do EAD (“ensino à distância”) e do PJe (processo judicial eletrônico). Mas isso contribuiu apenas para adaptações de plataformas comunicacionais, não representando inovações estruturais na educação e na produção/aplicação do Direito. Em outras palavras, no setor jurídico, o paradigma é o mesmo, assim como o ambiente forense, desde Ruy Barbosa. Na essência, mudou pouca coisa. Não precisa dizer que o perfil clássico não resistirá por muito tempo, apesar de inexistir qualquer sinal de repensar os métodos de formação profissional na área e na própria prática jurídica. Por outro lado, há indícios concretos de que a robótica e a inteligência artificial farão estragos suficiente a ponto de inviabilizar as sociedades de advogados em breve, muito breve. O relatório “Civilisation 2030: The near future for lawfirms”, de um grupo de consultores britânicos para lá de conservadores (JomatiConsultants), aponta para a substituição dos atores desse ramo profissional pelas novas tecnologias de trabalho automatizado, dentro de pouco mais de uma década. Os britânicos são mesmo conservadores. Arriscaria um palpite de que isso já ocorra nos próximos dois a três anos, torcendo para estar errado. Não sou tão otimista quanto Federico Pistano, autor do sensacional “Robots Will StealYourJob,ButThat’s Ok!”, um “guia de sobrevivência” para o colapso da economia, obra elogiadíssima pela comunidade científica, inclusive por Peter Diamandis, um dos expoentes da era digital e chairman da SingularityUniversity. Do mesmo modo, um panorama menos assustador pode ser visto na pesquisa coordenada pela The Law SocietyofEnglandandWales, no qual os serviços jurídicos tendem a resistir bravamente nas mãos de humanos, mas tendem a ser oferecidos cada vez mais em ambiente digital, ou seja, consultoria online, algo impensável em termos de regulação no Brasil, vide as proibições do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, também previstas no Código de Ética e Conduta da profissão. Menos assustador, mas preocupante. Todo mundo sabe que informação é a
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
23
nova moeda. E na área jurídica, diante de uma controvérsia, a tarefa básica do advogado é estruturar uma questão legal, interpretála e construir seus argumentos, ao passo em que a outra parte, fará o caminho inverso, na tentativa de desconstituir o argumento do postulante. O julgador, tem a interpretação final, passando por etapas cognitivas semelhantes para chegar ao final do processo decisional. Valores e técnicas podem ser muito subjetivas e há quem argumente que nenhuma inteligência artificial poderá superar a tarefa humana. O ovo da serpente radica em tarefas mais automatizadas, como, por exemplo, saber responder qual norma aplicar, que precedente judicial utilizar, quais as implicações cruzadas e relações adjacentes que uma atitude juridicamente relevante pode desencadear? Será que há diferenças entre profissionais e estudantes? Entre juízes e advogados? Entre seres humanos e máquinas? As possibilidades de automação dessas operações lógico-sistemáticas são evidentes, sobretudo em relação àquelas ferramentas de inteligência artificial (IA) que podem aprender e reaprender conteúdos mais diversos, com motores não somente de informação em si mas de reconstrução heurística dos procedimentos e métodos (aprendizagem automática ou “machinelearning”). O conhecimento e como ele é processado é o que importa. E nisso, a tecnologia corre a passos largos. A super máquina devoradora de processos já existe em um escritório nos Estados Unidos. Chamado de Ross, é um suporte de IA (ou “robô advogado”) desenvolvido pela NextLawLabs, a partir do Watson, expoente da computação cognitiva, criado pela IBM. Tanto o Ross quanto seu “pai” Watson, podem processar, em apenas um segundo, 500 gigabytes, o equivalente a um milhão de livros. A capacidade de armazenamento de dados do Ross é absurda: pode arquivar toda a legislação, precedentes judiciais, doutrina e dados extraídos de contratos ou brutamente coletados a partir de documentos avulsos. O machinelearningdo Ross é também poderosíssimo, com atualização permanente, 24 horas por dia, com a geração de relatórios e alertas sobre riscos envolvidos em uma determinada demanda judicial ou quanto à elaboração colaborativa de pareceres, peças doutrinárias e contratos. Vale lembrar que aplicações similares já são usados em instituições financeiras,
24
| Setembro/Outubro/2017
como o Coin do banco JPMorgan, que executa análise de contratos em segundos, quando seriam necessários a um advogado dispender 360 mil horas... Ainda se tem notícia da startup Lex Machina, que provê aplicação capaz de calcular o resultado de um processo judicial, antecipando a possível decisão do caso, a partir da análise de dezenas de milhares de precedentes relacionados a disputa de marcas e patentes. Certamente, ao admitirem “assessores digitais”, incumbindo-lhes de trabalhar com base em algoritmos preditivos e performar soluções legais inteligentes, as sociedades de advogados do futuro vão eliminar a necessidade de advogados e paralegais. E as empresas, independentemente do porte, poderão, muito em breve, contar com um departamento legal totalmente informatizado, reduzindo custos. O FUTURO DO DIREITO DIGITAL OU O DIREITO DO FUTURO? Diante desse ousado mundo novo, sem exageros, de qualquer ordem, é preciso pensar na profunda reinvenção do modo como se estuda e se pratica o Direito no Brasil e no mundo. Entretanto, o olhar para o cenário brasileiro é preocupante, por diversos fatores: expansão do número de faculdades em um mercado profissional que não acompanha a demanda por empregos; fim dos correspondentes legais face à virtualização dos processos judiciais; dificuldades estruturais de reforma dos textos legais; e engessamento da jurisprudência, voltada ao paradigma de proteção da propriedade, em mundo cada vez mais baseado no acesso, em detrimento da posse. O que deixa ainda mais evidente a dessincronia entre o mercado, as organizações sociais e o universo jurídico é o exemplo cotidiano do Direito Digital, ramo que concentra estudos sobre as mais diversas questões relacionadas à regulação jurídica da tecnologia, incluindo, mas não se limitando, a Internet. Uma rápida avaliação sobre o estado da jurisprudência especializada em relação à tecnologia, são frustrantes, seja em âmbito local, regional, nacional e internacional. Tome-se como exemplo, a questão da computação em nuvem, da criptografia e da proteção de dados pessoais no Brasil. Com a proliferação das aplicações de comunicação online (e-mail, WhatsApp, FacebookeTelegram, entre outros), cada vez mais níveis de proteção devem ser assegurados para preservar dados pessoais e
ISSN: 2357-8335
sensíveis. Por outro lado, diante da ocorrência de ilícitos, o Poder Judiciário detém a prerrogativa legal (por expressa disposição do Marco Civil da Internet), de determinar a quebra do sigilo de dados transmitidos e armazenados. No entanto, as empresas que fornecem esses serviços afirmam não dispor de recursos tecnológicos suficientes para divulgar os conteúdos objeto de investigação, sob o argumento de que os dados são criptografados. A questão sobre a inviolabilidade é objeto de profundo debate e o Supremo Tribunal Federal tem programado audiências públicas para discutir a questão. No mesmo sentido, a governança da Internet é um problema internacional, sobretudo em relação à proteção da liberdade de expressão e da neutralidade da rede, apenas para ficar nesses dois temas. Por tal razão, se torna extremamente vital construir e disseminar redes de estudo sobre o Direito Digital, pois ele pode vir a representar o futuro do próprio Direito, sobretudo, provendo investigações, em linguagem acessível, voltadas aos profissionais jurídicos dos mais diversos ramos (Direito do Trabalho, Direito da Propriedade Intelectual etc), aos desenvolvedores da área tecnológica, a órgãos públicos e ao público em geral. Por outro lado, deve-se buscar, por diversos mecanismos e canais, analisar o impacto dos novos modelos digitais e inovações tecnológicas no campo da propriedade intelectual, proteção de direitos autorais, marcas, patentes e softwares, além dos mercados de trabalho. De fundamental importância, ainda, em se tratando de Direito Digital, assegurar mecanismos de proteção da privacidade no contexto das revoluções pós-digitais, incluindo mídias programáticas e manipulação indevida de dados, com a apreciação adequada e debates ativos dos projetos de lei sobre proteção de dados pessoais e outras regulamentações que estejam na pauta do poder público, sugerindo as alterações indispensáveis. Outras questões também entrarão nessa pauta, tais como governança algorítmica, as cidades inteligentes, centros de operação, Internet das Coisas, Internet das Experiências e, por conseguinte, a interconexão ubíqua entre tecnologia e ser humano, que Raymond Kurzweil denominou “singularidade”. Em arremate, as possibilidades são infinitas e os profissionais jurídicos estão vários passos atrás. Chegou a hora de acelerar nessa corrida. g
LITERATURA ENCONTROS COM ANTONIO CÂNDIDO: DEPOIMENTO E METACRÍTICA Neide Medeiros Santos
Se não podemos ser criadores, sejamos ao menos observadores literários. (Antonio Cândido, In Brigada ligeira e outros escritos). Meus encontros com Antonio Cândido ocorreram sempre através de seus livros. Aprendi a admirar o Mestre lendo os textos de crítica literária, percucientes e esclarecedores. O primeiro que li foi “Ficção e Confissão: Ensaios sobre Graciliano Ramos”, consultado na biblioteca da FURNE, atual UEPB. Escrevia um trabalho de Literatura Brasileira para o curso de Letras, uma análise do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Encontrei aquele livro fininho perdido no meio das estantes, foi um achado. Não sei se a paixão por Graciliano Ramos surgiu da leitura de Antonio Cândido ou se nasceu com a leitura de Vidas Secas. O certo é que se enraizou e permanece até hoje. Terminado o curso de Letras, fiz Especialização em Linguística com a professora Maria do Socorro Aragão e escolhi para corpus da monografia outro livro de Graciliano, dessa vez a escolha recaiu em São Bernardo. A análise obedeceu a um viés estilístico. Por meio de gráficos estatísticos, procurei demonstrar a reiteração do processo de zoomorfização em São Bernardo. Luiz Costa Lima, em primoroso ensaio, analisou São Bernardo à luz da reificação. A reificação me conduziu à zoomorfização. Alguns anos se passaram e fui morar em Maceió, onde havia uma vaga de professor substituto na Universidade Federal de Alagoas para a disciplina Teoria Literária. Candidatei-me, apresentando a monografia desenvolvida no Curso de Especialização e fui prontamente aceita. Durante dois anos, ministrei Teoria Literária I, II e Crítica Literária e tive a oportunidade de conhecer outros livros de Antonio Cândido, como Literatura e Sociedade, Formação da Literatura Brasileira. Momentos decisivos. O ensaio “Os três alencares”, inserido em Formação da Literatura Brasileira: Momentos decisivos,
Antônio Cândido
foi lido e dissecado pelos alunos em trabalho de metacrítica. Como primeiro passo, a leitura dos romances de José de Alencar, depois a leitura do ensaio de Cândido. Nova mudança de residência, agora para o Recife, e surgiu a oportunidade de cursar o Mestrado em Teoria Literária. Durante o curso, conheci o professor Wendel Santos que havia sido aluno de Antonio Cândido na USP. As leituras recomendadas por Wendel Santos incluíam outros livros de crítica literária de Antonio Cândido. E vieram A Educação pela noite e outros ensaios, Ensayos y Comentarios. Neste último, se encontra o instigante texto “El derecho a la literatura”. Esses foram alguns dos livros indicados na bibliografia da disciplina Crítica Literária, não faltando, naturalmente Literatura e Sociedade. Para corpus da dissertação de mestrado, a escolha recaiu, mais uma vez, na prosa de Graciliano Ramos e analisamos os quatro romances do escritor alagoano. Os livros de Antonio Cândido muito ajudaram a compre-
ender o universo graciliânico. Lembro aqui o que disse, certa vez, Aurélio Buarque de Holanda: “cada uma das obras de Graciliano Ramos (é) um tipo diferente de romance”. Antonio Cândido havia feito análises dos quatro romances dentro de uma visão sociológica e literária. Era esse o caminho que eu também desejava trilhar. Não foi tarefa fácil, mas parece que agradou a comissão examinadora, constituída pelos professores: Leônidas Câmara, (orientador), Ariano Suassuna (examinador) e Alan Magalhães (examinador). METACRÍTICA: Além desse depoimento pessoal, tecerei considerações sobre livros e textos de Antonio Cândido. As referências serão das edições que tenho na minha estante. Começo pelo primeiro que li – Ficção e Confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos (Ed. 34, 1992). Os textos que compõem Ficção e Confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
25
foram publicados, inicialmente, no jornal “Diário de São Paulo”. Nessa época (1945), Antonio Cândido era “crítico titular” do referido jornal. Esta edição traz o acréscimo de dois outros ensaios “Os Bichos do Subterrâneo” (1959), “50 Anos do romance Caetés” (1984) e um artigo de jornal publicado em 1989 sobre Vidas Secas. O crítico assegura que Graciliano inicia sua produção literária partindo do ficcional para o confessional. O ficcional se apresenta nos romances Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas Secas. A confissão se evidencia nos livros Infância e Memórias do Cárcere. Nesta edição de 1992, foram incluídas duas ilustrações das capas dos livros Cahetés e Angústia, trabalho do artista plástico paraibano Tomás Santa Rosa que integrou o grupo de Graciliano em Maceió nos anos 1930. Nada escapa ao olhar arguto do crítico. A respeito da capa de Santa Rosa em Cahetés, ele considera o desenho como uma “leitura na medida em que sugere, não apenas o enredo, mas as ambiguidades do texto, vinculadas à ironia criadora de Graciliano Ramos, ironia esta que está na estrutura e é um dos maiores encantos do livro” (1992:94). Literatura e Sociedade (Companhia Editora Nacional, 1976) é um livro que define bem o pensamento crítico do autor. Logo no primeiro capítulo, “Crítica e Sociologia”, Antonio Cândido faz uma assertiva muito válida sobre o verdadeiro papel da crítica quando diz: “Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente” (1976:7). O que ele condenava na interpre-
26
| Setembro/Outubro/2017
tação do texto literário era o sociologismo crítico, a tendência de tudo explicar por meio de fatores sociais. Os outros ensaios que enfeixam a primeira parte trazem os títulos: “A literatura e a vida social” e “Estímulos da criação literária”. Os textos que integram a segunda parte estão assim especificados: “O Escritor e o público”, “Letras e ideias no período colonial”, “Literatura e cultura de 1900 a 1943”, “A literatura na evolução de uma comunidade” e “Estrutura literária e função histórica”. Em “O Escritor e o público”, o crítico estabelece distinções entre os fatores internos e externos da obra literária. Os internos costeiam as “zonas indefiníveis da criação”; os externos estão ligados aos fatores sociológicos, são secundários como explicação do texto literário. Outro fator importante desse ensaio é a tripartição sugerida sobre o processo da comunicação literária ao estabelecer o tripé: comunicante, no caso o artista; comunicado, o livro, e o comunicando, o leitor. De forma mais clara, autor, obra e público. É sobre esse triângulo que a literatura se realiza e chega ao leitor. A edição mais antiga que eu tinha de Formação da Literatura Brasileira. Momentos Decisivos ficou perdida em uma das mudanças, adquiri uma nova edição que traz o selo Ouro sobre Azul, 2006. É a 10ª. edição deste livro e foi revista pelo autor. Contém dezesseis capítulos e uma introdução de várias páginas. No prefácio da 1ª. edição, Antonio Cândido afirma que “um trabalho como este livro não tem início, pois representa uma vida de interesse pelo assunto”. Foi elaborado por etapas, com muitas pesquisas e levou seis anos para ser concluído (1945 a 1951). Atento à perspectiva históri-
ISSN: 2357-8335
ca, o autor procurou definir o valor e função das obras analisadas. Sua intenção era que o livro fosse lido e analisado por seu conteúdo e se ressentia da opinião de alguns críticos que ressaltaram aspectos negativos na introdução. Esta introdução apresenta fundamentos teóricos, mas não é a parte mais importante do livro, o objetivo maior, de acordo com Cândido, está centrado nas análises que foram feitas das obras dos escritores brasileiros. As críticas que mais o incomodaram se referiam a uma passagem na introdução da 1ª edição deste livro que segue: “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimação penosa da cultura europeia, procuravam estilizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam as observações que faziam – dos quais se formaram os nossos”. Nessa afirmativa ele não estava menosprezando a literatura brasileira, via apenas que, comparando com as grandes literaturas, a nossa ainda era pobre e fraca, mas reconhecia que merecia ser lida porque era a expressão do povo brasileiro. Cabe lembrar o que disse o poeta Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”.
Outro fato que muito constrangeu o crítico, ainda com relação a este livro, foi a publicação do texto de Haroldo de Campos – “O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira”. Campos criticava a exclusão de Gregório de Matos e do padre Antonio Vieira no livro em tela. Cândido justificava que o “barroco brasileiro” era um capítulo da literatura colonial portuguesa, portanto não integrava o sistema literário brasileiro, não representava os momentos decisivos da formação da nossa literatura. O reconhecimento do valor desta obra foi confirmado com o tempo. Formação da Literatura Brasileira. Momentos decisivos caminha pari-passu com Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. e Os Sertões, de Euclides da Cunha. São livros que devem ser lidos por todos que querem conhecer o Brasil, sua literatura e sua gente. Quem me apresentou o ensaio “O direito à literatura” foi Zina Bellodi, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP, campus de Araraquara. Quando se refere à literatura, o ensaísta a utiliza de maneira mais ampla possível – envolve todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático, incluindo a lenda, o folclore, o chiste, até as formas mais complexas e difíceis. Neste ensaio, que reúne saberes múltiplos, o crítico se revela um verdadeiro educador preocupado com as classes menos favorecidas economicamente. Como levar o conhecimento, a literatura, a quem não dispõe de meios financeiros?
São apresentados vários exemplos que podem viabilizar a concretização desse sonho. Antonio Cândido cita o caso de Mário de Andrade quando chefiou o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo (19351938). Remodelou a Biblioteca Municipal (que hoje leva o seu nome – Biblioteca Municipal Mário de Andrade), criou parques infantis nas periferias, bibliotecas ambulantes em furgões, discoteca pública e concertos em vários pontos da cidade. Todas essas atividades se destinavam ao povo. Outro exemplo apresentado para demonstrar a viabilização do conhecimento e o acesso aos bens culturais e literários é do escritor e pensador português Agostinho da Silva. Ele promovia, nos anos 1940, cursos noturnos para operários nos quais comentava textos filosóficos, como Platão. Resultado: conseguiu despertar o interesse dos operários e os textos foram assimilados por aqueles que pareciam indiferentes à filosofia e tinham pouca escolaridade. Maria Vitória Benevides narra um caso similar. Tempos atrás, foi aprovada em Milão uma lei que assegurava aos operários aprimoramento cultural em matérias escolhidas por eles próprios. Pensava-se que iriam escolher conhecimentos ligados à atividade laboral. Mas para surpresa de muitos, os operários preferiram em primeiro lugar aprender bem o italiano, conhecer melhor a literatura italiana. Em segundo lugar, queriam aprender violino. Este exemplo demonstra que certos julgamentos antecipados nem sempre retratam a verdade. O último parágrafo deste ensaio merece ser transcrito na íntegra. É uma verdadeira
lição do sentimento de igualdade que deve permear a sociedade ideal: [...] a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável. (grifamos) A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, organização empenhada na difusão da leitura e da literatura, no Boletim, “Notícias 07”, julho de 2017, dedica uma página a Antonio Cândido e afirma que as ideias e reflexões sobre a leitura literária, como direito, é bússola que norteia os princípios da FNLIJ e do Movimento por um Brasil Literário, na missão de ambos em promover e divulgar democraticamente a literatura. Antonio Cândido foi um escritor prolífero e de grande acuidade crítica. Como professor de Teoria Literária na USP, deixou discípulos que se encarregaram de difundir suas ideias. Davi Arrigucci, Wendel Santos, Zina Bellodi, Marisa Lajolo foram alunos presenciais de suas aulas, outros discípulos seguiram suas aulas à distância, lendo seus livros e assimilando os verdadeiros valores de uma crítica integral.
REFERÊNCIAS CÂNDIDO, Antonio. Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. __________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 5 ed. revista. São Paulo: Editora Nacional, 1976. _____________. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 10a. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. __________. Ensayos y Comentarios. Campinas, SP. Editora da UNICAMP: São Paulo: Fondo de Cultura de México, 1995. _________. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Paulista (UNESP), 1992. Notícias. Rio de Janeiro: Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. N.07, jul/2017.
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
27
POESIA CINCO POEMAS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
O luto no Sertão Pelo Sertão não se tem como não se viver sempre exaltado; lá o luto não é de vestir, é de nascer com, luto nato. Sobe de dentro, tinge a pele de um fosco fulo: é quase raça; tudo levado toda a vida e que a vida empoeira e desgasta. E mesmo o urubu que ali exerce, negro tão puro noutras praças, quando no Sertão, usa a batina negra-fouveiro, pardavasca.
Contam de Clarice Lispector Um dia, Clarice Lispector intercambiava com amigos dez mil anedotas de morte, e do que tem de sério e circo. Nisso, chegam outros amigos, vindos do último futebol, comentando o jogo, recontando-o, refazendo-o de gol a gol. Qaudo futebol esmorece, Abre a boca um silêncio enorme E ouve-se a voz de Clarice: Vamos voltar a falar de morte?
O Capibaribe e a leitura
A luz de Joaquim Cardozo
O Capibaribe no Recife de todos é o jornal mais livre.
Escrever de Joaquim Cardozo só pode quem conhece aquela luz Velásquez de onde nasceu e de que escreve.
Tem várias edições por dia, tantas quantas a maré decida. Na Jaqueira, o Capibaribe tinha uma edição do Recife. e tinha outra do interior (sempre quando a maré baixou). Se não lhe devo saber ler, devo-lhe fazer do ler ser, o imóvel ser para a leitura que nos faz mais enquanto dura, esse dar-se que a paciência de sua passada pachorrenta impõe a quem lhe lê a gazeta que ele dá a ler, letra a letra.
Verão de Sevilha Verão, o centro de Sevilha se cobre de toldos de lona, para que a água luz Sevilha seja mais amável nas pontas. e nele possa o sevilhano coado o sol cru, ter a sombra onde conversar de flamenco, de olivais, de touros, donas, e encontra a atmosfera de pátio, o fresco interior de concha, todo o aconchego e acolhimento das praças fêmeas e recônditas. Comigo tenho agora o abrigo, a sombra fresca dessas lonas: eu os reencontrei, esses toldos, nos lençóis que hoje nos enfronham.
28
| Setembro/Outubro/2017
ISSN: 2357-8335
A luz que das várzeas da Várzea onde nasceu, redonda, vem até o ex-Cais de Santa Rita que viveu: luz redoma. luz espaço, luz que se veste, leve com uma rede, e clara, até quando preside o cemitério e a sede.
UMA PÁGINA DE... CORIOLANO NEM TUDO PASSA...(*) Coriolano de Medeiros É dos tempos atuais O custo da vida, progressivamente excessivo (mesmo porque a máquina, barateando a mão de obra, não dirime a carestia do artefato), faz ouvir-se a cada instante o indiscutível chavão – outrora tudo era barato! Era. Um par de botinas do afamado fabricante inglês Bostock custava dezesseis mil reis; a cachemira não excedia de cinco mil reis, o metro, custando dois mil reis o de cassineta ou gazineta, imitação daquele tecido. Então, os completos de brim branco distinguiam os noivos ou recém-casados. Brins de algodão vestiam ou usavam no trabalho caixeiros de armazéns e merceeiros. Os merceeiros... como se revelavam gentis com a freguesia! As crianças que lhes davam preferência nas compras recebiam uma bolacha Quebra-quilo ou um biscoito de araruta; os homens escolhiam entre um cigarro Apolo e um gole de misturada. Os que, pontualmente, saldavam cadernos de fiado, podiam contar, vez por outra, com uma garrafa de vinho verde para o almoço. Tudo a preço ínfimo: açúcar branco a duzentos reis o quilograma; bacalhau, arroz, açúcar mulatinho, de seis vinténs a meia pataca; o charque argentino, da melhor qualidade, não excedia de oito dobrões de quarenta reis. O retalho de carne verde se iniciava a pataca, baixava a doze vinténs e, depois da segunda arrobação, descia a dois tostões, a meia pataca. Dez reis, vintém, meio tostão, tostão, meia pataca, pataca, cruzado e selo, eis a nomenclatura monetária popular da época, e daí o cálculo mental: Pataca e meia Tostão, três vinténs, Selo cruzado, Quatorze vinténs? O custo de outros gêneros rigorosamente necessários afinava pela cravelha da mocidade. Não obstante, os humildes dos tempos idos também clamavam contra o valor das mercadorias, contra as dificuldades da vida. Realmente: se um ovo não excedia de vinte reis, se uma posta de xareu era comprada
por dois vinténs; se uma cuia de boa farinha de mandioca se obtinha por meia pataca, a maioria dos habitantes nem sempre possuía vinte reis para comprar o ovo, dois vinténs para haver a posta de xareu, meia pataca para aquisição da rarinha! Claríssimo: a modicidade de preços nos dias do passado decorria da falta de numerário e do forçado retraimento dos consumidores. Nem por isso deixavam de multiplicar-se as mercearias e tavernas no Tambiá. É que então, inutilmente, se procurava na Capital um estabelecimento destinado a servir café, doces e bebidas. Assim, no interior das tavernas, havia o reservado para os que, a certa hora do dia ou da noite, não dispensava um lunch de sardinha de Nantes e vinho de pasto ou um gole de - tabapara – de mistura com frutas ácidas. Aos três, aos quatro, ali se reuniam, confortavam o estômago, depinicavam um tanto na vida do próximo e se aprofundavam nas novidades políticas, o prato preferido e suculento das palestras provincianas. A política partidária dava assunto de afeição a muitos habitantes do Tambiá, principalmente aos arrimados em cargos públicos. Discutiam, na tonalidade dos segredos, as eleições futuras, demissões futuras, as nomeações futuras, sobretudo estas, pois a cartilha partidária preceituava enquadrar-se nas Obras de Misericórdia a destituição em massa de adversários para se colocarem amigos e se conseguirem eleitores. Não eram os últimos avultados em número, pois somente indivíduos de boa renda e, pelo menos, alfabetizados podiam incluir-se entre os componentes de um colégio eleitoral. Daí o mérito, a importância de um qualificado, no regime monárquico, acrescendo-lhe mais o direito de solicitar uma patente da Guarda Nacional. Afirmava-se, e comprovava-se, que liberal não tragava conservador e toda população da Província se dividia, defrontando-se em atitude hostil. No bairro, entretanto, a cordialidade se positivava virtude na roda de famílias educadas. Isto, porém, não removia o susto, a comoção, o aborrecimento
quando, alta noite, o espocar de foguetes e os acordes da banda musical, festivamente percorrendo as ruas principais, anunciavam o tombo de um partido. Despertavam... uns, antegozando os proventos do cargo a ocupar; outros, pensando acabrunhados nos tempos difíceis que teriam de vencer. Empregados da Província se vexavam na expectativa de uma exoneração, os do País imaginavam transferência para as regiões afastadas e insalubres do Pará, Amazonas ou Mato Grosso. Firmavam-se na esperança de um dia, voltando seu partido ao poder, serem incluídos nas compensações se não os reintegrassem nos lugares de que fossem destituídos. E não se iludiam. Até a mestrança da música da Polícia, no domínio conservador, cabia a Florentino Ramalho; na ascensão dos liberais a batuta passava ao maestro Placido Cezar. De fora, nomeação espontânea da Coroa, vinham poucos funcionários: o Presidente da Província, o Chefe de Polícia, membros da magistratura, chefes de determinadas repartições. Os outros cargos se preenchiam consoante indicação dos chefes locais. Concluído meu curso primário na aula de Antônio Ribeiro Guimarães, matriculei-me no colégio dirigido pelo português Manoel Fortunato do Couto Aguiar, doutorado em filosofia na Universidade de Coimbra. Ao lisboeta Fernando Severino de Tavares coube a vice-diretoria do estabelecimento que, sob o patrocínio de altos comerciantes da praça, se instalou na rua da Areia, transferindo-se mais tarde para a chácara do Barão de Mamanguape, no sopé da ladeira de São Francisco. Esse, o primeiro colégio na capital paraibana que montou um teatrinho destinado a festas escolares, tendo de fechá-lo ante a repulsa de pais de alunos, fazendo sentir à diretoria “terem filhos ali para se instruírem, para se educarem e não para serem cômicos”. O doutor Aguiar, cavalheiro perfeito e mestre valioso, deu provas de sincero interesse pelo desenvolvimento da terra que o acolhera. Com a República, nomearam-no professor da colônia de Puchi e, extinto o estabelecimento, se passou a Pernambuco, onde faleceu.
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
29
Como habitante da rua da Bica, se incluiu Izaías Pinto de Brito, emigrado de Gurienzinho, Veio ocupar pequeno sítio encravado na propriedade de seu contraparente Rogers, trazendo mulher e filhos. Dentre estes, Alfeu, míope e feio, improvisava versos; Virgílio, de uns quatorze anos, mereceu a atenção de jornais, de homens cultos e das primeiras autoridades da Província. Lá de sua modesta casinha, foi arrancá-lo o doutor Aguiar, levando-o aonde pôde, pedindo para o adolescente o amparo, a proteção, o estímulo de que era digno. É que o rapaz apresentava um trabalho incomum a crianças. Num retângulo de madeira, aproximadamente de oitenta centímetros por quarenta, movimentava uma bolandeira, um rodete ou caitetu, uma bomba fingindo elevar água ao depósito, uma engrenagem para extrair caldo de cana, um pilão, um motor a lenha, tudo em miniatura, tudo minúsculo porém de regular acabamento. O poleame se arranjava em linha de carretel número vinte. Toda a maquinária se acionava por um veio desmontável, funcionando tudo em conjunto ou somente a secção que se desejava. Referiu Izaías que, durante três anos, em Gurienzinho, aproveitava o menino as horas de folga para, a canivete, ir confeccionando em madeiras as pecinhas de seu engenho, guardando-as numa sacola de algodãozinho. Um dia adquiriu a tábua e, com surpresa de todos de casa, realizou a montagem do que chamava seu brinquedo. O jovem recolheu muitos elogios e concordaram muitos se devia dispensar todo auxílio àquela promessa de mecânico, talvez de futuro inventor, filho de família distinta arruinada pela seca. Por fim a solução: empregaram o rapaz nas oficinas da Conde d´Eu, no engenho dos Reis, percebendo a diária corrida de quinhentos reis! Saía de casa às cinco horas e meia, levando parcíssima refeição: café numa garrafa comum,
30
| Setembro/Outubro/2017
carne assada e farinha numa lata. Voltava ao escurecer. Pelo menos ali aprendeu, e nele se especializou, o ofício de serralheiro. Transferiu-se mais tarde para o Rio, colocou-se bem, mandou buscar os pais e os irmãos e... mais nada conheço a seu respeito. Por esse tempo subiu o partido conservador, chefiado na Paraíba pelo Comendador Silvino Elvídio Carneiro da Cunham depois elevado ao baronato sob o título de sua propriedade, então chamada Abiá. A propósito, houve discussão na imprensa local, prevalecendo o Abihay ou Abiaí. Entretanto, na época em que se discutia o topônimo, cantava-se na Paraíba um coco, cujo estribilho era: “Ou Abiá ou Timbaúba Ou vela branca de carnaúba”. O gabinete João Alfredo nomeou Presidente da Paraíba um filho do Ministro, o doutor Pedro Correia, a quem não atribuíam tino administrativo. Os próprios conservadores diziam-no desinteressado de suas funções, residindo, quase , em Recife. - É uma criançola! Afirmavam os velhos políticos de Também. Realmente, parecia estar nos primeiros anos de sua juventude. Vi-o passar algumas vezes a cavalo, rua à fora, disputando carreiras com o Barão ou com o doutor Paulo Lacerda. Os velhos diziam o caso fora dos limites da compostura, mas o meninos o aplaudiam, lastimando cada um não ser homem, nem possuir um cavalo para cor4er, em parelhas, da praça Mãe dos homens até à praia de Tambaú. Um grande acontecimento veio surpreender os paraibanos: a abolição do cativeiro. No bairro, porém, raras família possuíam escravos; assim, a Lei Áurea, ali, nem causou fortes dissabores nem grandes alegrias. Em 1888 já possuía a Capital sua esta-
ISSN: 2357-8335
ção telegráfica, mas, aos agentes do governo, chegava as notícias da Corte, por vezes, bem retardadas. Para informar o povo, havia a Gazeta da Paraíba, dirigida pelo Dr. Eugênio Toscano, sendo, na Província, o primeiro jornal que contratou serviço telegráfico. A Gazeta recebeu e publicou a notícia sensacional na edição de 14 de Maio; o governo paraibano somente no dia seguinte pôde cogitar de festas em regozijo. De parceria com a mocidade estudiosa, organizou uma passeata noturna, uma importante marche aux flambeaux, partindo da frente do palácio presidencial. Da sacada, falou o doutor Paulo Lacerda, diretor e proprietário de um periódico conservador. Observe-se: também contava o partido chefiado pelo Barão do Abiahy, o Jornal da Parahyba, sob a direção do aludido chefe, e O Conservador, fundado por Caetano Filgueiras. Por falecimento deste, passou a empresa ao domínio do Cônego Meira. A facção adversa imprimia o Liberal Paraibano, orientado pelo doutor Gama e Melo, e um outro periódico, O Despertador. Afirmava-se que o primeiro distrito e o segundo mantinham a preeminência do partido conservador; no terceiro e no quarto era intangível a vitória dos liberais, chefiado pelo doutor Paulo Primo. Excetuando-se A Gazeta, de publicação diária, os demais eram hebdomadários, mas o primeiro quotidiano da Província foi o Diário da Parahyba, de pequeno formato, composto e impresso em tipografia própria, na rua da Viração. Aranha, sacristão do convento de Santo Antônio, encarregava-se de levá-lo às residências dos assinantes, em troca da mensalidade de um mil reis, nos primeiros dias de sua publicação. Com o tempo, o jornal debilitou-se, não apresentando aos seus leitores mais de página e meia de transcrições e editoriais. Todo o restante se fartava de anúncios, salientando especialidades farmacêuticas.
O alfaiate Sampaio, boêmio e borracho, encontrando-se certa manhã com o distribuidor, pediu-lhe: - Vende-me um Diário!... Aranha entregou-lhe um exemplar. Sampaio abriu-o, deitou olhar demorado a todas as páginas e inquiriu: - Quanto custa? - Dois vinténs. O incorrigível boêmio saca do bolso um vintém, rasga o jornal, dividindo-o em duas folhas, entrega com o vintém a dos anúncios, dizendo naquele tom arrastado dos alcoólatras: - Toma lá,.. Aranha, eu quero somente a metade... Seja encerrado o longo parênteses. Voltemos à passeata. Outros oradores surgiram após o doutor Lacerda, e um deles foi João Batista da Mota, preto baiano, hercúleo e beberrão, trajando sempre chapéu de pelo, sobrecasaca de cheviot e calças brancas. Não tinha profissão conhecida, mas empunhava a vara de juiz de quase todas as confrarias de pardos e pretos da cidade. Discursou em nome de sua raça, sendo aplaudido calorosamente. No Liceu fizeram-se ouvir vários estudantes. Discursos na rua da Baixa, no sobrado esquina da rua da Misericórdia. Deteve-se o grande préstito defronte do sobrado da Chefatura da Polícia e João Batista, solene e preto, entusiasmado e suarento, sem esquecer uma virgula, repetiu as palavras que proferira em Palácio! Prosseguiu a passeata. Muitos fogos pelo ar, muitos oradores pelas varandas. Na rua da Areia, pela terceira vez, recitou João Batista sua arenga. Ao terminar, recebeu as homenagens de formidável concerto de gritos e assovios! Meses depois, pelas três horas da tarde, voltando das aulas, encontrei avultada comitiva de políticos. À frente, ladeado por pessoa de destaque, marchava um rapaz moreno, de fisionomia simpática, abundante barba negra, metido num fardão, espadim à cinta, chapéu bicorne, mãos enluvadas. Dirigiu-se ao Paço Municipal. Era o doutor Gama Rosa, crismado aqui pela alcunha Lagartixa Barbada. Ia juramentar-se no cargo de Presidente da Província. - Veio de encomenda para derrotar o Silvino nas eleições gerais... Traz carta branca do Ouro Preto e muito dinheiro para comprar votos... propalavam, à sorrelfa, os liberais de Tambiá. E não mentiam.
Sob pretexto de amparar flagelados pela seca reinante, distribuiu o poder central à Tesouraria de Fazenda na Paraíba boa soma em dinheiro, especialmente os cobiçados patacões de dois mil reis, que salientavam numa das faces a efígie de D. Pedro II. Então espantou, floresceu, frutificou a árvore do tribofe, expressão popular sintetizando as múltiplas falcatruas realizadas com os dinheiros do País. Os tribofes aproveitavam somente os amigos da situação. Em pouco tempo estava esgotada a verba e, no dia seguinte, ao do pleito eleitoral, suspenderam todos os serviços públicos, derramando-se clamorosamente nas ruas da Capital centenas de famintos. Mais tarde evidenciaram as juntas apuradoras a ausência de maioria absoluta, nas eleições; o Juiz de Direito Trindade, conservador, marcou o segundo escrutínio. Às vésperas do novo pleito, o Presidente da Província afastou da Capital a todos os funcionários públicos filiados ao partido adverso, mandando-os em comissão ao interior, culminando as providências sentinelas de soldados de linha postados em torno das secções eleitorais, impedindo que se exercesse o direito do voto. Não houve escrutínio mas se registraram várias prisões, inclusive a do herói do Paraguai, o Capitão reformado Afonso Maranhão, que envergou a farda, apôs-lhe as condecorações e, claudicando, quase arrastando a perna, investiu e forçou a entrada do Paço Municipal! Tinha esse inválido da Pátria muito brio, porém escassos recursos de vida, mantendo, para auxiliar o quanto lhe produzia a reforma uma estribaria na rua do Cisco, destinada a recolher alimárias de recouveiros, ao preço de duzentos reis cada uma, sem forragem. Tal abrigo era conhecido sob a denominação popular de Academia do Capitão Afonso, onde, diziam os satíricos, se formavam estudantes que não prezavam os livros e ostentadores de falsa erudição. No começo de 1889 fui residir na Estrada do Macaco, atual avenida Pedro II. Estrada propriamente não era, mas estreito caminho marginado por várias choupanas e pelas habitações do guarda livros Vicente Guarapirá, do professor Mandu, de um mecânico irmão do Padre Azevedo, do oficial do exército Alferes Manrique, e do pedreiro arquiteto João Colarinho. Da vivenda deste e do lado oposto distendia-se até as marchas do Jaguaribe cerrada floresta onde, ao cair da tarde, gorgorejavam araquãs e trocás e, em noites de plenilúnio, gargalhavam mães-da-lua com outros pássaros noturnos, consertando singular orquestração até se reco-
lherem às cavidades das árvores, tangidas pelo rubor alvissareiro do amanhecer. Dali me transportava diariamente ao colégio. Em novembro fiz exame de português, que talvez nem valesse os quatrocentos reis de estampilhas, única despesa indispensável à inscrição. Mas nem por ser tão módica a instrução pública, verdadeiramente gratuita, a percentagem causava desapontamento ao governo e aos paraibanos instruídos. Cinco ou seis dias depois da minha aprovação no Liceu, ruiu a Monarquia e o total de democratas existentes na Província se calculava pelos oito votos dados ao republicano Albino Meira, poucos meses antes, quando pleiteou uma cadeira na representação nacional! A mudança de regime exultou os conservadores, na suposição de que seriam chamados a colaborar com os situacionistas. Enganaram-se, tiveram de purificar-se no banho lustral das adesões e esperar... Passaram os anos. As transformações se multiplicaram, mas o Tambiá que se foi, vez por outra, se projeta nítido, detalhado, completo na tela ampla da minha recordação. Sinto-me, vejo-me como outrora; nas manhãs de sol, descendo a Bica, insinuando-me entre aguadeiros e banhistas, disputando um lugar sob o jorro dágua cariciosa; de tarde, descendo ao portão, espiando grupo de crianças em passeio. Ouço ainda, numa ressonância de saudade, menino sobraçando bandejas de rebuçados e beijus, condutores de peixes, cargueiros de lenha, crioulas e mulatas de chale ao ombro, tabuleiros à cabeça, cadenciando os passos com o estalar das chinelas, todos harmonizando em modulações distintas do pregão do que vendiam. Acompanhando nesse olhar retrospectivo a figura mirrada de Bibiu, a braçadas largas subindo a lâmpada do nicho de N. S. Mãe dos Homens, em seguida chegando-se ao campanário e tangendo fortemente, pausadamente, singularmente tocantes e sonoras, as seis badaladas do Ângelus! Diferente é o Tambiá de agora: ruas pavimentadas, cortadas a bondes, cruzadas de automóveis, servidas de luz elétrica; desapareceu-lhe a maioria das casas medíocres; outros são quase todos os seus habitantes. Tudo mudou, tudo, exceto a água de sua fonte, que permanece abundante, cristalina e fresca! Nem tudo passa sobre a terra! Poço, 21 de janeiro de 1941. Extraído do livro O TAMBIÁ DA MINHA INFÂNCIA, João Pessoa, 1994, A União Editora, págs. 101/110. (*)
ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
31
FESTA NA ACADEMIA POSSE DA NOVA DIRETORIA DA APCA Equipe GENIUS
Com a presença dos acadêmicos César Emanoel, Clerton Franca, Edmilson Azevedo, Francisco de Assis Marques, Geraldo Rosa, Hérder Henriques. Jimmy Léllis, Luciana Rabay, Luciane Albuquerque, Lúcio Mariano, Maria da Conceição Monteiro, Mário Tourinho, Ozanira Maia, Rosa Gondim, Suellen Fabres, Tereza Êvany, Vanildo Pessoa e Wallace Mendes. teve lugar, a 21 de setembro, no Auditório do SESI, na praia de Cabo Branco, a sessão solene de posse da nova Diretoria da Academia Paraibana de Ciências da Administração (APCA), entidade cultural que reúne os administradores profissionais em volta de objetivos e interesses culturais.
A NOVA DIRETORIA
Tomara posse naquela oportunidade os seguintes associados:
Membros da Academia Paraibana de Ciências da Administração presente à posse da nova Diretoria da entidade.
Mário Tourinho – Presidente Luciana Rabay – Vice-presidente Linton Barros – Diretor Administrativo César Emanoel – Diretor Financeiro Também foram empossados os novos membros do Conselho Fiscal da entidade, como titulares, os administradores Edmilson Azevedo, Luciane Albuquerque e Nilda Leone e, como suplentes os administradores Lúcio Mariano, Wallace Mendes e Geraldo Rosa. HOMENAGEM Na oportunidade foi prestada uma homenagem por todos os acadêmicos presentes aos que até o dia 21, e por dois mandatos, dirigiram os destinos da Academia, a saber: administradores Lúcio Mariano, Wallace Mendes e Geraldo Rosa. A cada um deles foi entregue uma lembrança contendo fotografia dos mesmos e uma dedicatória de reconhecimento ao profícuo trabalho desempenhado durante os respectivos mandatos. À solenidade de posse estiveram presentes convidados e familiares dos empossandos, sendo de notar-se o congraçamento que assinalou todo o desenrolar do evento.
32
| Setembro/Outubro/2017
A Diretoria recentemente empossada
Nada menos do que 19 dos 28 acadêmicos que a integram, compareceram à assembleia geral extraordinária que correspondeu à solenidade de posse dos novos membros
ISSN: 2357-8335
do Conselho Diretor e do Conselho Fiscal da APCA – Academia Paraibana de Ciência da Administração, realizada em data de 21 de setembro recente. g
RELIGIOSIDADE A FESTA DAS NEVES EM PORTUGAL Oswaldo Meira Trigueiro Em agosto, no dia cinco, acontece uma das mais importantes festas em homenagem a Nossa Senha das Neves, em Portugal, na localidade denominada de Largo das Neves, um espaço de convergência das freguesias de Villa Punhe, Mujães e Barrosela, denominado também, de Triângulo das Neves pertencente ao Distrito e a Diocese de Viana do Castelo. A cidade de Viana do Castelo, localizada no norte de Portugal, fica a cerca de 70 quilômetros do Porto e 390 de Lisboa, é rica em patrimônio cultural material e imaterial. Mas é a romaria de Nossa Senhora d’Agonia, sem dúvida nenhuma, a maior e mais importante festa popular da região, que se realiza na segunda quinzena de agosto no Conselho de Viana do Castelo. Essa Festa das Neves tornou-se popular a partir de 1634 quando se espalharam por Portugal as capelas em devoção ao culto mariano. Conforme a tradição oral a Festa das Neves foi criada como pagamento de promessas do um imigrante português, João Pires Ramalho, retornado do Brasil e como fundador da Casa da Torre das Neves funda também uma capela em devoção a Santa Maria das Neves. A capela passou por períodos de decadência até ser reconstruída pela piedade barroca e a partir de 1657 as missas semanais e as romarias no dia 5 de agosto eram frequentadas por devotos de várias localidades da região polarizada por Viana do Castelo, principalmente das três freguesias, Villa Punhe, Mujães e Barrosela. O historiador português Alberto Abreu, no seu livro sobre Auto da Floripes na Festa das Neves diz: “Em 1859 refere o Almanach de lembranças luso-brasileiras que a romaria atraía “centenares de romeiros de todos os arredores”. A atracção popular tinha uma motivação acrescida na concessão de indulgências. Com efeito, o papa Pio IX concedeu à capela de Nossa Senhora das Neves o privilégio de altar, que concedia uma indulgência plenária aplicável ao defunto por cuja alma fosse celebrada uma
missa no altar principal desta capela. Mas foi já no início do século XX que a capela foi refeita, em 1907, e inaugurada a reconstrução em 1908” (ABREU, 2001, p. 21). No início do século XX a Festa das Neves toma um caráter religioso e profano com novenário, procissão, romarias, manifestações folclóricas e quermesses com os tradicionais comes de bebes. Uma das atrações da festa é a encenação do Auto da Floripes, aguardada com grande expectativa pela população do Lugar das Neves e seus entornos. O AUTO DA FLORIPES Nas festas religiosas e profanas em Portugal podemos observar importantes manifestações tradicionais que têm as suas origens na Idade Média e entre tantas outras tradições que persistem são as várias versões das batalhas entre cristãos e mouros comandadas pelo imperador Carlos Magno. As inúmeras representações dos feitos de Carlos Magno são narradas nos folguedos, nas danças, nas músicas, na literatura e no teatro popular português e aqui no Brasil chegaram nas caravelas e continuam presentes nas nossas tradições culturais. O Auto da Floripes é uma narrativa teatral popular do ciclo carolíngio, espetáculo que conta a história das batalhas entre cristãos e mouros encenadas por populares no Largo das Neves durante a Festa de Nossa Senhora das Neves. A encenação, a estrutura e os diálogos do espetáculo desenvolve-se, há centenas de anos, com o mesmo objetivo, contar a história da derrota dos mouros pelos Doze Pares de França comandados pelo Imperador Carlos Magno. O Auto da Floripes é uma criação popular e encenada há centenas de anos pelo povo das três freguesias vianenses. Como quase toda a manifestação da cultura popular, aqui e ali, o Auto da Floripes passa por processos de atualizações introduzindo novos elementos ao espetáculo. Alberto Abreu, sobre as inovações na encenação do Auto da Floripes, citando Cláudio Basto, transcreve: “Em 1933,
porém, os soldados cristãos envergavam fardas brancas, trazidas por um brasileiro dum carnaval carioca”. Mas, segundo Abreu a inovação não pegou e os fardamentos dos soldados cristãos voltaram à moda tradicional. Mesmo assim, no decorrer do tempo, outras inovações são introduzidas nas indumentárias e no texto, conforme a dinâmica cultual. O Auto da Floripes narra a história da derrota dos mouros pelos cristão, do bem contra o mal, de amor e ódio, com as cores predominantes do vermelho, do azul, do amarelo e do cinza nas indumentárias e cada uma tem o seu simbolismo para diferenciar os cristãos dos mouros. Carlos Magno, Ferrabrás, Roldão, Balaão, Oliveiros, Floripes, Soldados cristãos e mouros, Brutamontes e outros atores do povo, que vivem com entusiasmo cada personagem do espetáculo carinhosamente assistido pela população de Villa Punhe, Mujães e Barrosela e outras localidades que se concentram no Largo das Neves no 5 de agosto, dia da Festa da Neves em Portugal. (Acesse aqui o vídeo do Auto da Floripes). Nossa Senhora das Neves também é a padroeira de João Pessoa, a capital do Estado da Paraíba, celebrada no dia 5 de agosto há mais de 432 anos e cada vez mais desprestigiada pelas autoridades e parte da sociedade local, mesmo sendo uma das mais antigas festas religiosas e profanas do Brasil. Por onde ando, especialmente fora do Brasil, vejo o ressurgimento das festas religiosas e profanas em homenagem aos padroeiros e padroeiras das cidades. A tradicional Festa das Neves em João Pessoa continua enraizada na nossa memória e na tradição cultural não só dos pessoenses mas dos paraibanos. Precisamos de um João Pires Ramalho que ao retornar do Brasil para a sua terra Portugal incentivou a piedade popular de Nossa Senhora das Neves em Viana do Castelo. Agradeço aos amigos estudiosos do folclore português Alberto Abreu e Alberto Rego pelas informações sobre a Festa das Neves e o Auto da Floripes.
REFERÊNCIAS ABREU, Alberto A. O Auto da Floripes no imaginário minhoto. Viana do Castelo\Portugal: Câmara Municipal, 2001. Memoria Media. Registro Integral doAuto da Floripes em 2016. Vídeo disponível no You Tube <https://www.youtube.com/watch?v=guJwUzQwnoU > Acesso em 2 ago. de 2017. ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
33
RESENHA MEMORIALÍSTICA JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA1 Paulo Bonavides
As memórias de José Américo de Almeida, aguardadas com tanta ansiedade, tiveram já iniciada sua publicação com o “O ANO DO NEGO”, saído dos prelos da “Gráfica Record Editora”. Em alguns Estados do Nordeste existem homens de uma representatividade simbólica. Em Pernambuco, Gilberto Freyre; no Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo; no Ceará, Jáder de Carvalho sucedendo a Thomaz Pompeu, e na Paraíba, inquestionavelmente, o Sr. José Américo de Almeida, que à sombra dos coqueirais da Praia de Tambaú personifica meio século de história, repartida entre a província e a metrópole federal, entre as letras e a política, com dominante influxo em ambas as esferas, onde deixou cair sempre o acento de superioridade de suas contribuições. Com A BAGACEIRA, inaugura ele o ciclo do romance social no Nordeste e emancipa a velha prosa brasileira, dandolhe um sopro de renovação que abala as escolas literárias, do mesmo passo que revela a potencialidade criadora do gênio nacional. De temas meramente regionais, extrai certos traços de universalidade, mediante os quais o homem e a terra, comunicando-se pelo diálogo do desespero, patenteiam sua dimensão trágica numa sociedade de fome e infortúnio. Administrador, levanta a parede de inumeráveis açudes públicos e faz das obras contra as secas um programa precursor da futura política de redenção econômica do Nordeste. Político, candidata-se à Presidência da República ostentando uma plataforma de governo que surpreende já pela nota de progresso e reformismo e anuncia melhores dias para o Brasil. A ditadura barra-lhe o acesso ao poder supremo, mas a desforra vem oito anos depois em célebre entrevista ao “Correio da Manhã”, derretendo em menos de 25 horas as algemas que faziam cativos os pulsos dos jornalistas livres. Reconcilia-se com Vargas ao termo do segundo governo constitucional do estadista gaucho, quando volve à pasta da Viação, após transitar pelo Governo da Paraíba e pelo Senado da República. Encerra afinal sua carreira política no recolhimento literário às
areias da praia querida, onde já se plantou como um monumento vivo da história paraibana e um pedaço incandescente da política de liberdade e progresso do nosso povo, tomando dimensão verdadeiramente nacional. Suas memórias políticas, de último aparecidas, espargem luz sobre acontecimentos decisivos, desenrolados na Paraíba, principal foco do movimento revolucionário da Aliança Liberal. Quem conhece a índole ardente e combativa do Sr. José América, a sua natureza sempre polêmica, o fio de lâmina de seu verbo aforismático, apôsto na frase dura e cortante, ao ler-lhe as presentes memórias se encanta diante da serenidade daquelas reminiscências, daquela suave ironia do escritor. São juízos sóbrios reconstituindo perfis de homens e acontecimentos, que historiadores agressivos, servidos de passional emotividade, haviam deploravelmente desfigurado. Confesso que de um camiliano como o Sr. José Américo de Almeida, ator assíduo em trinta anos de tragédia política e social na existência brasileira, um depoimento como esse do “Ano do Nego” me comove pelo que ali se me depara de exemplar imparcialidade. Não são os ódios do memorialista que viveu entre paixões dificilmente adormecidas pelo tempo, mas o interesse maior e superior do cronista que deseja ser fiel à exposição dos fatos e abrangê-los todos num quadro destinado a perpetuação histórica. Quadro que pela veracidade não fique sujeito a impugnações fáceis. José Pereira, de Princesa, não é coronel cangaceiro dos ódios oficiais da campanha de 1930, sublevando os sertões com desmedidas ambições de mando; os Dantas são quase omitidos no cenário daquela tragédia ou mansamente referidos sem o preconcebimento de acusações libelistas; o General Lavanére Wanderley imolado na resistência de sangue durante o assalto ao quartel legalista sai das páginas isentas do escritor com o porte de uma dignidade rara, que é a coroa do seu martírio e tomba, como ele efetivamente tombou em nome da causa legal e de princípios inerentes ao seu caráter e formação. O mesmo se pode dizer de Álvaro de
Nota do Autor. Quase meio século já transcorreu sobre este artigo, estampado em 1969 no jornal O Povo de Fortaleza. Estamos a reproduzi-lo na Paraíba como testemunho de admiração ao insigne memorialista, romancista e homem público que foi José Américo de Almeida.
1
34
| Setembro/Outubro/2017
ISSN: 2357-8335
Carvalho, a quem coube durante a fase intensamente pré-revolucionária a investidura do poder, sucedendo a João Pessoa, o herói morto pelas balas do fanatismo. Esse Álvaro de Carvalho de quem José Américo foi Secretário de Segurança, acabou deposto, após viver o drama de consciência que lhe não consentiu na hora da opção suprema definir-se pela causa da Revolução. Mas o seu retrato, feito agora pelo memorialista de 30, nos comunica forte impressão de simpatia, por transparecer nesse homem singularmente desambicioso e moralmente puro uma individualidade das mais raras da história paraibana. Morreu pobre e obscuro, mas honrado, lecionando nos educandários paulistas. O “Ano do Nego” é de leitura corrente e o Autor corrobora à beira dos oitenta anos de sua idade o talento de frase que fez de sua prosa uma das mais ricas, amenas e sedutoras da literatura brasileira. No entanto esse livro é tão somente o fragmento das “Memórias” e estas se estenderão por vários volumes, um dos quais necessariamente há de trazer a crítica social do escritor da “Bagaceira” a todo o drama do homem nordestino cuja índole ele retratou literariamente em lugares de sabor clássico, mas ainda não representou nas largas dimensões sociológicas como lhe cumpre fazê-lo. Ninguém, tanto quanto ele elevado às eminentes alturas do poder, viveu através da observação e tirocínio de governo as mais prementes necessidades sociais e econômicas das populações nordestinas flageladas pelo subdesenvolvimento secular. José Américo sociólogo deverá suceder pois no decurso desse extenso depoimento a José Américo historiador. José Américo memorialista – e por que não dizer? – José Américo poeta, visto que em algumas partes do “Ano do Nego” há orações inteiras que são obra de arte, poesia em prosa, excertos dignos de irem diretamente para as antologias, como a “ História de um Beijo”, episódio relativo ao General Juarez Tavora. Se amanhã não encontrarmos porém essa face social na obra do escritor, suas “Memórias” ficarão incompletas, omissas, inacabadas. g
COLABORADORES
A. J. Pereira da Silva (In Memoriam) – 9, 11 Abelardo Jurema Filho – 5, 11 Adalberto Targino - 25 Adylla Rocha Rabello – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Afonso Arinos (In Memoriam) – 12 Ailton Elisiário - 25 Alceu Amoroso Lima (In Memoriam) – 15 Alcides Carneiro (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Aldo Di Cillo Pagotto (D.) – 8 Aldo Lopes Dinucci – 9 Alessandra Torres – 9 Alexandre de Luna Freire – 1 Aline Passos - 21 Aluísio de Azevedo (In Memoriam) – 13 Aníbal Freire (In Memoriam) - 24 Álvaro Cardoso Gomes – 5 Américo Falcão (In Memoriam) – 9 Ana Isabel Sousa Leão Andrade – 15 André Agra Gomes de Lira – 1 Andrès Von Dessauer – 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 21, 22, 23, 24, 25, 26 Ângela Bezerra de Castro – 1, 11, 25, 26 Ângela Maria Rubel Fanini – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Anna Maria Lyra e César – 6 Anníbal Bonavides (In Memoriam) – 8 Antônio Mariano de Lima – 4 Ariano Suassuna (In Memoriam) – 14 Assis Chateaubriand (In Memoriam) – 12 Astênio César Fernandes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 8 Augusto dos Anjos (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Aurélio de Lyra Tavares (In Memoriam) – 13 Austregésilo de Atahyde (In Memoriam) - 23 Berilo Ramos Borba – 3 Boaz Vasconcelos Lopes – 7 Camila Frésca – 5 Carlos Alberto de Azevedo– 4, 6, 11 Carlos Alberto Jales – 2, 12, 14, 16, 23, 25 Carlos Lacerda (In Memoriam) – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Carlos Meira Trigueiro – 2, 5 Carlos Pessoa de Aquino – 5 Celso Furtado - 16 Chico Pereira - 16 Chico Viana – 1, 2, 4, 6, – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 10, 13, 14, 22, 24 Ciro José Tavares – 1, 23 Cláudio José Lopes Rodrigues – 5, 6 Cláudio Pedrosa Nunes – 7 Cristiano Ramos – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Cristovam Buarque – 10 Damião Ramos Cavalcanti – 1, 11 Deusdedit de Vasconcelos Leitão - 24 Diego José Fernandes – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Diógenes da Cunha Lima – 6 Durval Ferreira – 7 Eça de Queiroz (In Memoriam) – 14 Eduardo Portella - 26 Eilzo Nogueira Matos – 1, 4, 7, 13 Eliane de Alcântara Teixeira - 6 Eliane Dutra Fernandes – 8, 14 Elizabeth Marinheiro – 12 Emmanoel Rocha Carvalho – 12 Érico Dutra Sátiro Fernandes - 1, 9 Erika Derquiane Cavalcante - 24 Ernani Sátyro (In Memoriam) –EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 7, EE/Epitácio Pessoa/ Maio/2015, 11, 15, 16 Esdras Gueiros (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Eudes Rocha - 3 Evaldo Gonçalves de Queiroz - EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 8 Evandro da Nóbrega- 2, 4, 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 11, 14, 15, 21 Everaldo Dantas da Nóbrega – 13 Everardo Luna (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Ezequiel Abásolo - 8 Fábio Franzini – 7 Fabrício Santos da Costa – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Fernando Gomes (D.) (In Memoriam) - 25 Firmino Ayres Leite (In Memoriam) - 4 Flamarion Tavares Leite – 8 Flávio Sátiro Fernandes – 1, 2, 4, 6, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 16, 21, 22, 23, 26 Flávio Tavares – 3 Francisco de Assis Cunha Metri (Chicão de Bodocongó) - 2 Francisco Gil Messias – 2, 5, 14 Gerardo Rabello – 11 Giovanna Meire Polarini – 7 Glória das Neves Dutra Escarião – 2 Gonzaga Rodrigues – 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 11 Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins – 4, 8 Hamilton Nogueira (In Memoriam) – EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Hélio Zenaide – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Hildeberto Barbosa Filho – 11, EE José Lins do Rego/Novembro/2015 Humberto Fonseca de Lucena - 23 Humberto Melo – 16 Ida Maria Steinmuller - 24 Inês Virgínia Prado Soares - 23 Iranilson Buriti de Oliveira – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Itapuan Botto Targino – 3
João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (In Memoriam) – 4 Joaquim de Assis Ferreira (Con.) (In Memoriam) – 6 Joaquim Osterne Carneiro – 2, 4, 7, 9, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 11, 14, 25 José Américo de Almeida (In Memoriam) – 3, 10, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 15 José Jackson Carneiro de Carvalho – 1 José Leite Guerra – 6 José Lins do Rego (In Memoriam) – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 José Loureiro Lopes – 16, 21 José Mário da Silva Branco – 11, 13 José Nunes – 16, 25 José Octávio de Arruda Melo – 1, 3, 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 9, 13, 15, 21, 24, 25, 26 José Romero Araújo Cardoso – 2, 3, 10, 11 José Romildo de Sousa – 16 José Sarney – 15 Josemir Camilo de Melo – 11 Josinaldo Gomes da Silva – 5, 10 Juarez Farias – 5 Juca Pontes – 7, 11 Lima Barreto (In Memoriam) – 26 Linaldo Guedes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Lourdinha Luna – EE/Pedro Moreno Gondim/2014, 7, 13, 15 Lucas Santos Jatobá – 14 Luiz Augusto da Franca Crispim (In Memoriam) – 13 Luiz Fernandes da Silva- 6 Machado de Assis (In Memoriam) – 9 Manoel Batista de Medeiros – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Manuel Bandeira (In Memoriam) – 26 Manuel José de Lima (Caixa Dágua) (In Memoriam) – 13 Marcelo Deda (In Memoriam) – 4 Márcia de Albuquerque Alves - 23 Marcílio Toscano Franca Filho - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 23 Marcos Cavalcanti de Albuquerque – 1 Marcus Vilaça - 25 Margarida Cantarelli - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Maria das Neves Alcântara de Pontes – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Maria do Socorro Silva de Aragão – 3, 10, 15 Maria José Teixeira Lopes Gomes – 5, 8 Maria Olívia Garcia R. Arruda – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Marinalva Freire da Silva – 3, 9 Mário Glauco Di Lascio – 2 Mário Tourinho – 13 Martha Mª Falcão de Carvalho e M. Santana - 22 Martinho Moreira Franco – 11 Matheus de Medeiros Lacerda - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Mercedes Cavalcanti (Pepita) – 4, 26 Milton Marques Júnior – 4 Moema de Mello e Silva Soares – 3 Neide Medeiros Santos – 3, 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, EE/José Lins do Rego/ Novembro/2015, 15, 23 Nelson Coelho – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Neno Rabello – 11 Neroaldo Pontes de Azevedo – 2 Octacílio Nóbrega de Queiroz (In Memoriam) - 6, 15 Octávio de Sá Leitão (Sênior) (In Memoriam) - 23 Octávio de Sá Leitão Filho (In Memoriam) – 16 Osvaldo Meira Trigueiro – 2, 5, 6, 7, 9, 10, 13, 25 Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Melo (In Memoriam) – EE/Epitácio da Silva Pessoa/ Maio/2015 Otaviana Maroja Jalles - 14 Otávio Sitônio Pinto – 7 Patrícia Sobral de Sousa - 21 Paulo Bonavides – 1, 4, 5, 9, 10, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 12, 14, 15, 16, 22,23, 25 Pedro Moreno Gondim (In Memoriam) – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Peregrino Júnior (In Memoriam) - 22 Raimundo Nonato Batista (In Memoriam) – 3 Raúl Gustavo Ferreyra – 5 Raul de Goes (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Raul Machado (In Memoriam) – 4 Regina Célia Gonçalves – 22 Regina Lyra - 24 Renato César Carneiro – 3,6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014,7,9 Ricardo Rabinovich Berkmann – 5 Roberto Rabello – 11 Roberto Victor Pereira Ribeiro – 26 Ronal de Queiroz Fernandes (In Memoriam) - 21 Rostand Medeiros – 12 Ruy de Vasconcelos Leitão – 16 Samuel Duarte (In Memoriam) – 21 Sérgio de Castro Pinto - 22 Severino Ramalho Leite – 4, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 13, 15, 16 Socorro de Fátima Patrício Vilar – 10 Tarcísio Pereira - 26 Thanya Maria Pires Brandão – 4 Tiago Eloy Zaidan – 11, 13, 21, 23 Vanessa Lopes Ribeiro – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Verucci Domingos de Almeida – 5, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Vicente de Carvalho – 16 Violeta Formiga (In Memoriam) - 21 Virgínius da Gama e Melo (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Waldir dos Santos Lima – EE/Pedro Moreno Gondim/Novembro/2014 Walter Galvão – 3, 9, 15 Wills Leal – 2, 7 EE=Edição Especial ISSN: 2357-833
Setembro/Outubro/2017 |
35
CONTRA CAPA (corel x8)
36
| Setembro/Outubro/2017
ISSN: 2357-8335