CAPA
(corel x8)
CINCO POEMAS DO CANCIONEIRO GAÚCHO
JOÃO SIMÕES LOPES NETO(*) A galinha morta
Sr. Zorrilho
Vou cantar a galinha morta: Por cima deste telhado Viva branco, viva negro, Viva tudo misturado!
A polca mancada
Onde vai, Sr. Zorrilho, Em tamanha galopada? - Vou m´embora p´ra cidade, Dançar a polca mancada,
Eu vi a galinha morta, Agora, no fogo fervendo... A galinha foi p´ra outro Eu fiquei chorando e vendo!
A mancada ´stá doente, Muito mal, para morrer; Não há frango nem galinha Para a mancada comer.
Não vá lá, Sr. Zorrilho Para não ser caçoado! Quem não sabe não se meta, - Menos sabe quem se apura
Minha galinha pintada... Ai! meu galo carijó... Morreu a minha galinha, Ficou o meu galo só.
A dita polca mancada Tem mau modo de falar: De dia corre c´oa, gente, De noite manda chamar.
Tenência, Sr. Zorrilho, Quem não sabe não se meta, Menos sabe quem se apura P´r´agarrar-me sem gambeta!
Minha galinha pintada... Ai! meu galo garnisé!... Morreu a minha galinha Fica o galo sem mulher...
A mancada está doente, Muito mal, para morrer; Na botica tem remédio P´ra mancada beber.
Veja lá, Sr. Zorrilho, Na cidade há seus perigos. - Não vive ninguém no mundo Sem ter os seus inimigos...
Minha galinha pintada, Com tão bonito sinal! Meu compadre me roubou Pelo fundo do quintal.
Quero-Mana Tão bela flor digo agora, Tão bela flor quero-mana. Que passarinho é aquele Que está na flor da banana, Co´o biquinho dá-lhe, dá-lhe, Co´as asinhas, quero-mana!
Minha galinha morta Bicho do mato comeu: Fui ao mato ver as penas, Dobradas penas me deu. A galinha e a mulher Não se deixam passear: A galinha o bicho come... A mulher dá que falar! Eu vi a galinha morta, A mesa já estava posta; Chega, chega, minha gente, A galinha é p´ra quem gosta! Minha galinha pintada, Pontas d´asas amarelas: Também serve de remédio P´ra quem tem dor de canelas...
Tão bela flor digo agora, Tão bela flor quero-mana. Quando eu ando neste fado, A própria sombra m´engana. Tão bela flor quero-mana, As barras do dia aí vêm. Os galos já estão cantando.
O pinheiro Quem tem pinheiros tem pinhas Quem tem pinhas tem pinhões, Quem tem amores tem zelos Quem tem zelos tem paixões. Quem tem pinheiro tem pinha Quem tem pinha tem pinhão, Do homem nasce a firmeza Da mulher a ingratidão. Oh! que pinheiro tão alto, Com tamanha galharada; Nunca vi moça solteira Com tamanha filharada... Oh! que pinheiro tão alto, Que por alto se envergou, Que menina tão ingrata, Que d´ingrata me deixou! (*) Transcritos da obra CANCIONEIRO GUASCA (1910)
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CARTA AO LEITOR
SUMÁRIO
Ainda hoje, decorridos mais de duzentos anos dos vários fatos ligados estreitamente à sua existência – nascimento, origens, filiação, acusações que sofreu etc. – permanecem atuais e incógnitos diferentes aspectos da vida de Branca Dias, que a fazem tornar uma figura mítica e lendária. Em torno deles e dela se derrama a longa pesquisa que os renomados historiadores Vanderley de Brito e Maria Ida Steinmüller empreenderam e cujos resultados os autores expõem no bem elaborado texto contido nas páginas desta edição de GENIUS que é oferecida aos seus leitores, correspondente ao segundo bimestre do corrente ano. O próprio título do trabalho já sugere e revela o cipoal de dificuldades que seus autores tiveram de enfrentar no sentido aclarar grande parte da vida da personagem cujas peripécias fizeram surgir um auto de grande ressonância na dramaturgia nacional, de autoria do famoso teatrólogo brasileiro Dias Gomes, intitulado O santo inquérito. Matéria igualmente de significativa importância é o estudo do Professor Túlio Velho Barreto, abordando o surgimento e a necessidade de preservação do futebol-arte, mediante análise de texto do sociólogo Gilberto Freyre, em que o renomado mestre de Apipucos envereda, pioneiramente, pela sociologia do futebol, lançando os fundamentos do futebol-arte. Mais uma vez, Augusto dos Anjos comparece às páginas de GENIUS, conduzido pela pena esclarecida de Ângela Bezerra de Castro que, em brilhante ensaio, surgido quando da comemoração do centenário de morte do poeta, esquadrinha os meandros da poesia augustiana, demonstrando a verdade do título que ela deu ao seu trabalho, aqui reproduzido: “Augusto para todos os séculos”. Um pequeno e despretensioso trabalho, de autoria de um amante da história sertaneja e da genealogia, Manoel Henriques da Silva (Né Marinho), que residiu por muito tempo em Patos e ali faleceu, deixando uma descendência numerosa, mostra-se da maior relevância para quem se interessa pela biografia do fundador da Academia Paraibana de Letras. Trata-se do opúsculo que GENIUS reproduz em seu inteiro teor: Ascendências Genealógicas do Professor Coriolano de Medeiros. Por fim, GENIUS estampa na capa da presente edição a Catedral de Nossa Senhora da Guia, da cidade de Patos, para com isso homenagear e marcar, embora modestamente, a passagem, no corrente ano, dos 60 anos da Diocese de Patos, criada aos 17 de janeiro de 1959, pela Bula Quandoquidem Deus, do Papa João XXIII, cujo sólio foi ocupado, inicialmente, por Dom Expedito Eduardo de Oliveira, natural de Pacatuba, Ceará, que tomou posse no dia de instalação da Diocese, 12 de julho de 1959, em solenidade presidida pelo Núncio Apostólico no Brasil, Dom Armando Lombardi. Dom Expedito faleceu em 1983, em pleno pastoreio, e a ele seguiram-se Dom Gerardo de Andrade Ponte (falecido), Dom Manuel Reis de Farias e Dom Eraldo Bispo da Silva, atual titular.
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CINCO POEMAS DO CANCIONEIRO GAÚCHO, João Simões Lopes Neto
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OS LIMITES DA LINGUAGEM NA AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO, SEGUNDO SANTO AGOSTINHO Renan Pires Maia e Carlos Bezerra de Lima Júnior
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CARLINHOS Um Conto de Ernani Sátyro
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GILBERTO FREYRE E O FUTEBOL-ARTE Túlio Velho Barreto
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UM PERNAMBUCANO DA PARAÍBA: FERNANDO COELHO José Octávio de Arruda Mello
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TESTEMUNHO PARA OS JOVENS José Nunes
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MITOS E VERDADES SOBRE BRANCA DIAS Vanderley de Brito e Ida Steinmüller
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ASCENDÊNCIAS GENEALÓGICAS DO PROFESSOR CORIOLANO DE MEDEIROS Manuel Henrique da Silva (Né Marinho)
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TRÊS ESTÓRIAS Leandro Gomes de Barros
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AUGUSTO PARA TODOS OS SÉCULOS Ângela Bezerra de Castro
Março/Abril/2019 - Ano VI Nº 36 Uma publicação de LAN EDIÇÃO E COMERCIO DE PERIÓDICOS LTDA. Diretor e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (SRTE-PB 0001980/PB) Diagramação e arte: João Damasceno (DRT-3902) Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefones: (83) 99981.2335 E-mail: flaviosatiro@uol.com.br Impresso nas oficinas gráficas de A União Superintendência de Imprensa e Editora CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO OU E-MAIL ACIMA
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COLABORAM NESTE NÚMERO: 4
ÂNGELA BEZERRA DE CASTRO [Augusto para todos os séculos]. Professora da Universidade Federal da Paraíba, escritora, crítica literária, membro da Academia Paraibana de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 31, cujo Patrono é Epitácio Pessoa. Escreveu, entre outros livros, Um certo modo de ler, Releitura de A Bagaceira, Um ponto no infinito contínuo.
LEANDRO GOMES DE BARROS (In Memoriam) (Paulista (PB), 1865 – Recife, 1918). [Três estórias de Leandro Gomes de Barros] Foi um dos primeiros ou, talvez, o primeiro cordelista do Brasil, considerado, por isso, na palavra de Carlos Drummond de Andrade, "o rei da poesia do sertão e do Brasil". Foi autor de centenas de estórias abordando os mais diversos temas, publicadas em folhetos que se venderam e se vendem, ainda hoje, nas feiras do Nordeste.
CARLOS BEZERRA DE LIMA JUNIOR [Os limites da linguagem na aquisição do conhecimento, segundo Santo Agostinho] Graduado e Mestre em Filosofia, pela Universidade Federal da Paraíba.
MANUEL HENRIQUE DA SILVA (NÉ MARINHO) (In Memoriam). [Ascendências genealógicas do Professor Coriolano de Medeiros] Proprietário rural em Patos. Não obstante exercer essa atividade profissional, sempre foi, até seu falecimento, um apaixonado pelos estudos e pesquisas históricos. Daí, o breve trabalho em torno das ascendências genealógicas de Coriolano de Medeiros, fundador da Academia Paraibana de Letras.
ERNANI SÁTYRO (In Memoriam) (Patos, 1911 – Brasília, 1986)[Carlinhos – (Conto)] Escritor, ensaísta, romancista, poeta, político. Foi Deputado Estadual, Deputado Federal, Prefeito da Capital, Governador do Estado, Ministro do STM. Membro da Academia Paraibana de Letras e da Academia Brasiliense de Letras.
JOÃO SIMÕES LOPES NETO (In Memoriam) (Pelotas, 1865 – Pelotas, 1916) Escritor sulista, um dos precursores do regionalismo, ao buscar valorizar em suas produções literárias a história, os costumes e as tradições da gente gaúcha.
JOSÉ NUNES [Testemunho para os jovens] Jornalista, escritor, historiador. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, onde ocupa a Cadeira nº 12, cujo patrono é o historiador Veiga Junior.
JOSÉ OCTÁVIO DE ARRUDA MELO [Um pernambucano da Paraíba: Fernando Coelho] Historiador de ofício, segundo se classifica, com doutorado em História Social pela USP, em 1992. Integrante do IHGB, IHGP, APL, API e Centro Internacional Celso Furtado. Professor aposentado da UFPB, UEPB e UNIPE. Autor de várias obras sobre a história da Paraíba.
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MARIA IDA STEINMÜLLER [Mitos e verdades sobre Branca Dias] Historiadora e Professora. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Campina Grande – Casa Elpídio de Almeida, entidade que se constitui guardiã da memória campinense. RENAN PIRES MAIA [Os limites da linguagem na aquisição do conhecimento, segundo Santo Agostinho] Graduado em Psicologia pela UFPB; Mestre em Filosofia, também pela UFPB. Professor da Faculdade Santíssima Trindade, em Nazaré da Mata, Pernambuco. TÚLIO VELHO BARRETO [Gilberto Freyre e o futebol-arte] Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, onde trabalha há alguns anos, tendo alí exercido diferentes funções ligadas à pesquisa social. Possui graduação em Ciências Sociais (1985) e mestrado em Ciência Política (1996), ambos pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor de Representação Classista Ou Representação sem Classe? e Na Trilha do Golpe: 1964 Revisitado.
VANDERLEY DE BRITO [Mitos e verdades sobre Branca Dias] Historiador com especialização em arqueologia, escritor, genealogista, roteirista para teatro e cinema, articulista e artista plástico. É autor, entre outros, dos livros A serra de Bodopitá, A pedra do Ingá, Arqueologia na Borborema e A passagem das Espinharas, este em parceria com Erik Brito.
FILOSOFIA OS LIMITES DA LINGUAGEM NA AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO, SEGUNDO SANTO AGOSTINHO Renan Pires Maia Carlos Bezerra de Lima Júnior RESUMO - O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise de como Santo Agostinho aborda, em seu De Magistro, a questão do limite da linguagem no processo de obtenção do conhecimento. Na obra em questão, que assume a forma de um diálogo, Agostinho desenvolve dialeticamente, com seu filho Adeodato, sua concepção sobre os sinais ou palavras, colocando-os como elementos que se referem a coisas (significados). Ao problematizar a questão do alcance da linguagem, o Santo Doutor tem como alvo não postular algo como uma filosofia da linguagem, mas fundamentar sua teoria do conhecimento de base neoplatônica, abordando o problema do ensino e do aprendizado e sua relação íntima com a comunicação. O ensino gira em torno da comunicação ou da linguagem, e esta, por seu turno, se mostra incapaz de transmitir um conhecimento real para além daquele que o sujeito já carrega em si interiormente, como o que obtém através de sua experiência sensível e guarda em sua memória. Mas, longe de cair numa espécie de empirismo, onde o sujeito apenas adquire conhecimento passivamente através da exterioridade – e as próprias palavras estão meramente no âmbito da sensibilidade, na medida em que são nomes, sons etc. que percutem nos ouvidos (cap. XI) – Santo Agostinho centra o processo de conhecer no ensino do “mestre interior” (cap. XII-XIV). A sensibilidade é colocada como algo relacionado ao exterior do homem. O homem que julga é o homem interior, ensinado diretamente pelo Verbo, que ilumina diretamente a alma racional em cada apreensão da Verdade. Não é, pois, o mestre exterior – o professor, no caso – aquele que ensina, como conclui no cap. XIV da obra, mas o mestre interior, que é Cristo.
Palavras-chave: Santo Agostinho. De magistro. Conhecimento.
concluded in the chapter XIV, but the interior master, that is Christ.
ABSTRACT- The current work has as objective to do an analysis of how Saint Augustine addresses, in his De Magistro, the issue of the limit of the language in the process of acquiring of knowledge. In the work in question, that assumes the form of a dialogue, Augustine develops dialectically, with his son Adeodato, his conception about the signs or words, establishing them as elements that refer to things (meanings). Problematizing the issue of the range of the language, the Saint Doctor has as goal not to postulate something like a philosophy of language, but to base his theory of knowledge of platonic basis, addressing the problem of the teaching and of learning and its intimate relation with the communication. The teaching focuses on communication or on language, and the language, in its turn, shows itself incapable of transmitting a real knowledge beyond that one the subject already carries inside himself, as the one that he obtains through his sensual experience and keeps in his memory. But, instead of falling in a type of empirism, for which the subject only acquires knowledge passively through exteriority – and the words themselves are merely in the realm of sensibility, once they are names, sounds etc. that percusses in the ears (chapter XI) – Saint Augustine focuses the process of knowing in the teaching of the “interior master” (chapters XII-XIV). The sensibility is putted as something related to the exteriority of man. The man that judges is the interior man, taught directly by the Word, that lights directly the rational soul in each apprehension of the Truth. It is not, finally, the exterior master – the teacher, in case – the one who teaches, as
Keywords: Saint Augustine. De magistro. Knowledge. INTRODUÇÃO O presente trabalho se propõe a fazer uma análise de como Santo Agostinho aborda a questão da linguagem em sua obra De magistro, seu alcance e suas limitações no processo de aquisição do conhecimento. Dito de modo mais simples: a questão de se a linguagem e a comunicação são capazes de fornecer, ou antes transmitir, o conhecimento, o que se relaciona diretamente com a relação ensino-aprendizagem e com o magistério, este já aludido no título De magistro, isto é, Do mestre. Mathews afirma que Uma boa maneira de abordar as opiniões positivas de Agostinho sobre o conhecimento e a iluminação é considerar o que ele tem a dizer sobre aquisição de linguagem. Algumas das suas opiniões positivas podem ser encontradas em seu diálogo inicial De magistro, a maioria dos quais é dedicado ao tema da linguagem e da aprendizagem (MATHEWS, 2006, p. 173). Tendo isto em mente, temos que a relevância de tal temática se sustenta, primeiramente, pelo fato de o problema da linguagem ser hoje um dos pontos fundamentais em torno do qual gira boa parte da filosofia contemporânea, muito embora Agostinho não esteja, ao abordar o assunto, chegando a formular uma filosofia da linguagem propriamente dita, em sentido contemporâneo, mas a justificar uma ISSN: 2357-8335
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teoria do conhecimento essencialmente cristã, pautada na iluminação interior e na graça, questionando, com isso, o alcance do conhecimento linguístico; em segundo lugar, pode-se, a partir da análise da temática e da obra em discussão pensar-se sobre as relações de ensino-aprendizagem e sobre a autonomia do sujeito no processo de aquisição do conhecimento, uma vez que a obra se coloca fundamentalmente como uma abordagem dos limites da transmissão do conhecimento na relação mestre-discípulo, defendendo que o saber se funda, em última instância, no interior do próprio discípulo, que é ensinado por um mestre interior, e não por nada que venha de fora ou transcendente ao sujeito. Dito isto, o presente artigo se subdividirá em duas partes, a primeira se propondo a expor a abordagem agostiniana da natureza da linguagem na aquisição do conhecimento; e a segunda se propondo a expor a visão de Agostinho do alcance e dos limites da linguagem na transmissão do saber e sua da doutrina do Mestre interior e da iluminação, que se funda na noção cristã de graça. A NATUREZA DA LINGUAGEM O problema do alcance da linguagem não se inicia exatamente com Santo Agostinho, mas já é problematizado antes, como podemos constatá-lo em Plotino ao tratar do princípio (arché) de todas as coisas, isto é, o Uno, que está acima de toda predicação, sendo chamado de “além do Ser” ou “Sobre-Ser” (PLOTINO, 2000, p. 55). Sobre o Uno, Plotino afirma que “não é possível conhecê-lo ou
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falar a respeito dele”. Ou mesmo antes, em Platão no Parmênides, que coloca o Uno como sendo susceptível de vários predicados contrários ou mesmo de nenhum deles (vide: PLATÃO, 2003, 137d-142a; 144b-155e). Sabe-se que o bispo de Hipona, assim como outros pensadores cristãos dos primeiros séculos, entre os quais Santo Ambrósio e Dionísio-Areopagita foram influenciados, direta ou indiretamente, pelo pensamento plotiniano e pelo neoplatonismo, conciliando-os com as doutrinas cristãs. No que diz respeito ao alcance do conhecimento linguístico, Santo Agostinho leva a questão mais longe ao problematizar não apenas se o princípio de que todas as coisas se originam (no caso, Deus) pode ser determinado predicativamente, mas se é possível que a linguagem possa fornecer um conhecimento em geral, qualquer que seja ele, incluindo aí o conhecimento mais perfeito, que seria o de Deus. É-nos evidente que uma tal problematização pode ser constatada em alguma medida já em Platão o qual, para todos os efeitos, também funda todo o verdadeiro conhecimento no interior do sujeito, o qual já o carrega dentro de si antes mesmo do nascimento, sendo o processo de aprendizagem uma reminiscência. No caso do Doctor Gratiae, todavia, não há espaço para algo como uma doutrina da transmigração das almas, como podemos ver em Platão, e, consequentemente, para a ideia de um conhecimento fundado na pré-existência da alma em relação ao corpo. Agostinho funda o processo de aquisição do saber na iluminação interior e na graça.
Já no primeiro capítulo da obra a qual nos propomos a discutir, o bispo de Hipona, em diálogo com seu filho Adeodato, lança a questão de qual seria a finalidade da linguagem. Pergunta Agostinho: “Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?” (AGOSTINHO, 1984, p. 291), ao que responde Adeodato: “Pelo que de momento me ocorre, ou ensinar ou aprender” (idem). Já de início, entretanto, algumas exceções parecem ser colocadas. Adeodato questiona se procuramos ensinar ou aprender algo quando cantamos ou rezamos. Ao cantar, responde Agostinho, não buscamos senão certa modulação do som (idem), e ao rezar, as palavras se fazem dispensáveis, uma vez que a verdadeira oração se daria no interior do homem, “no templo da mente e no íntimo do coração” (AGOSTINHO, ibidem, p. 292). O capítulo I termina com a conclusão de que Cristo, ao ensinar seus discípulos a rezar, não os ensinou meras palavras, mas aquilo que as palavras significam. Assim, as palavras são sinais que suscitam na mente as coisas que significam, guardadas na memória. No segundo capítulo insere-se então a distinção entre sinal/signo e significado. Toda palavra é um sinal. Mas pode um sinal não significar algo? Algumas exceções são consideradas, como a palavra nihil (nada). Sobre isso, comenta Mathews: O diálogo logo se move para uma consideração dos significados das palavras. As palavras, diz Agostinho, são sinais, e um sinal não pode ser um sinal, ele insiste, a menos que isso signifique algo. No entanto, não é fácil dizer o que, por exemplo, a conjunção “se” (si) significa, e muito menos o significado do pronome
“nada” (nihil). Diante da convicção de que “nada” é certamente um sinal e, portanto, significa algo, não nada, Agostinho sugere que o que “nada” significa é uma busca mal sucedida (2.3) (MATHEWS, op. cit., p. 173). O “nihil” não seria, portanto, uma palavra destituída de significado, posto que não deixa de significar “aquele estado da alma produzido quando não se vê a coisa, e, no entanto, descobre-se ou se pensa ter descoberto que a coisa não existe” (AGOSTINHO, op. cit., p. 293). Mas sempre que se pede para se explicar o que significam as palavras, usa-se outras palavras, nunca se chegando, assim, às coisas às quais elas significam. Sempre tendemos a explicar as palavras com outras palavras, em suma. O cap. III questiona, então, se é possível mostrar alguma coisa sem um emprego do sinal. Adeodato concede “que se possa fazer isso, mas só com aqueles nomes que significam corpos e quando estes corpos estejam presentes” (AGOSTINHO, ibidem, p. 295), isto é, quando fazemos gestos, como apontar o dedo, para indicar as coisas às quais queremos nos referir. Também não utilizamos palavras quando conversamos com algum surdo por meio de gestos. Todavia os gestos são ainda sinais. Se perguntássemos, por outro lado, o que é correr, e se pedisse que o explicasse sem o uso das palavras, alguém poderia mostra-lo com o ato mesmo. Todavia, esta forma de aprendizado ainda carrega muitas limitações, como aponta ainda Mathews: Este e outros exemplos no De magistro mostram que a aprendizagem ostensiva está cronicamente e inevitavelmente atormentada pela ambiguidade. Se estamos apontando para algo para mostrar o que significa “azul”, ou mostrando a alguém uma amostra da cor azul para ilustrar o que a palavra significa, qualquer esforço dado no ensino ostensivo está aberto a mal-entendidos. Como saber se o que está sendo apontado é a cor azul, um tom particular de azul, uma tonalidade, um objeto colorido, sua forma ou algo bem diferente? No caso de caminhar, o que está sendo demonstrado é caminhar, apressar-se, fugir, assumir tantos passos ou o quê? (MATHEWS, op. cit., p. 174). O capítulos IV questiona se os sinais podem ser mostrados com outros. Agostinho argumenta que as palavras escritas são sinais de palavras faladas, e que sinais como a palavra “nome”, significam outros sinais, nomes “como Rômulo, Roma, virtude rio e inúmeras outras coisas” (AGOSTINHO, op. cit., p. 297). Há, ainda, sinais
que significam a si mesmos, como a própria palavra “palavra”, em cujo gênero de coisas o qual significa ela mesma se inclui. A questão dos sinais que significam a si mesmos é abordada também no cap. VI, onde Agostinho argumenta que palavras são nomes e nomes são palavras, embora sejam distintos em gênero, tal como a “diferença que há entre cavalo e animal” (AGOSTINHO, ibidem, p. 299), sendo “palavra” (verbum) também o termo utilizado para designar não apenas nomes, mas também “aquela parte do discurso que se declina por tempos” (idem). O capítulo V considera a questão dos sinais recíprocos, isto é, que sinalizam uns aos outros, e o cap. VII fecha o primeiro momento fazendo uma síntese de tudo o que foi abordado anteriormente. O ALCANCE E AS LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM, A DOUTRINA DO MESTRE INTERIOR E DA ILUMINAÇÃO Depois de analisada a natureza dos sinais e o que são as palavras, e depois de Agostinho e Adeodato terem chegado ao consenso de que as palavras sempre significam algo, ou são significáveis, algumas significando coisas concretas, e outras, por seu turno, outros sinais, ambos passam à questão em torno da qual gira a obra, que é a de se os sinais são capazes de fornecer conhecimento. Nos capítulos VIII e IX o Doctor Gratiae levanta a questão de se devemos dirigir a mente às palavras ou às coisas que estas palavras significam, e se devemos preferir estas àquelas. Quando somos questionados sobre algo, considera Santo Agostinho, somos levados a pensar nas coisas significadas pelas palavras. Assim discute com Adeodato: Agostinho: (...) Observa, ao invés, com mais atenção, se na palavra “homo” (homem) a sílaba “ho” é outra coisa que não “ho” e a sílaba “mo” nada mais que “mo”. Adeodato: Não vejo, na verdade, nada mais. Agostinho: Observa ainda se, juntando estas duas sílabas, poder-se-á fazer um homem. Adeodato: De maneira alguma concederia isso, porque concordamos, com razão, que, depois de ter o sinal, a mente vai examinar o que este significa, e após o exame é que concede ou nega o que se diz. Mas aquelas duas sílabas, por soarem sem qualquer significado, se pronunciadas separadamente, ficou estabelecido que têm valor somente como som. Agostinho: Concordas, portanto, com convicção que não se deve responder às perguntas senão segundo as coisas significadas pelas palavras? (AGOSTINHO, ibidem, p. 310).
Quando se pergunta o que é nome, entretanto, entende-se a questão sob um sentido duplo: “‘homem’ é nome e animal: o primeiro (ser nome) se diz enquanto é sinal; o segundo (ser animal) enquanto indica a coisa significada” (ibidem, 311), isto é, homem enquanto animal, racional, mortal etc. Todavia, considera ainda o bispo de Hipona, “tudo o que existe devido a outra coisa, necessariamente tem valor menor que a coisa pela qual existe” (AGOSTINHO, ibidem, p. 312). Assim sendo, os significados possuiriam valor maior do que os sinais que os designam. Ambos os interlocutores não deixam de considerar, como sempre, exceções, como por exemplo, ao pensarmos na palavra lamaçal (“coenum”). Evidentemente, é preferível o sinal ao seu significado. Todavia, ainda assim, quando pronunciamos palavras cujo significado nos pode ser abjeto, não deixamos de querer exprimir um conteúdo que nos é mais caro do que os próprios sinais que utilizamos. “O conhecimento das coisas é mais precioso que os sinais das mesmas” (AGOSTINHO, ibidem, p. 313), embora consideremos a coisa conhecida (no caso, o lamaçal) melhor do que seu sinal. Tal consideração é expandida para formas de conhecimento mais relevantes. “Muito melhor que as palavras é, portanto, a doutrina”, o que inclui o conhecimento dos vícios e das virtudes (AGOSTINHO, ibidem, p. 314). Chegando à conclusão de que o conteúdo das palavras, isto é, o conhecimento que as palavras designam, é superior em valor a elas mesmas, Santo Agostinho passa à sua última consideração, a saber, a de se é possível às palavras transmitir conhecimento, e de que forma poderíamos conhecer. O cap. X inicia esta última seção perguntando se é possível ensinar algo sem sinais. Agostinho inicia fazendo uma distinção entre ensinar e significar (isto é, utilizar sinais). “Quem ensina o que é ensinar o faz usando sinais ou diversamente?” (AGOSTINHO, ibidem, p. 315), questiona, levando a uma negação da tese de que se é impossível ensinar sem sinais, uma vez que pode-se, por exemplo, ao se questionar o que é caçar, ou andar, ensinar o significado destas palavras realizando o próprio ato (AGOSTINHO, ibidem, 316-317), embora isso, como considerado anteriormente por Mathews, não deixe de envolver certas limitações. Agostinho lança, então, a reflexão de que há uma infinidade de coisas que são aprendidas por si mesmas, sem sinais, e que os simples sinais, nada podem ensinar se não tivermos o conhecimento prévio das coisas que eles significam. Assim ele diz: ISSN: 2357-8335
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Mas, se considerarmos isto com maior atenção, talvez não encontres nada que se possa aprender pelos seus próprios sinais. Com efeito, se me for apresentado um sinal e eu me encontrar na condição de não saber de que coisa é sinal, este nada poderá ensinar-me; se, ao contrário, já sei de que é sinal, que aprendo por meio dele? Assim, quando leio “Et saraballae eorum non sunt immutatae” (E as suas coifas não foram deterioradas), a palavra (coifas) não me mostra a coisa que significa. Pois se certos objetos que servem para cobrir a cabeça se chamam com este nome de “saraballae” (coifas), porventura, depois de ouvi-lo, aprendi o que é cabeça e o que é cobertura? Eu, ao contrário, já antes conhecia estas coisas, delas adquiri conhecimento sem que as ouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as com meus próprios olhos. Quando as duas sílabas com que dizemos “caput” (cabeça) repercurtiram pela primeira vez no meu ouvido, sabia tão pouco o que significavam como quando ouvi e li pela primeira vez “saraballae”. Porém, ouvindo muitas vezes dizer “caput” (cabeça) e notando e observando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela denotava aquela coisa que, por tê-la visto, a mim já era conhecidíssima (AGOSTINHO, ibidem, p. 317). A conclusão natural é então a de que não aprendemos pelas palavras, mas por elas apenas recordamos o que sabíamos (AGOSTINHO, ibidem, p. 318). Segundo Mathews poder-se-ia pensar que Agostinho está aqui abordando o ponto chato e óbvio de que uma definição de dicionário não é de ajuda para alguém que ignora os significados dos termos usados na definição da palavra. Mas isso não está certo. Suponha que sarabarae realmente significa “coberturas de cabeça”. Então o que a palavra significa é a cobertura de cabeça. Saber o que é a palavra, Agostinho nos diz, inclui saber o que isso significa, o que, ele supõe, inclui estar familiarizado com as coisas em si. Portanto, ser capaz de dar sinônimos para sarabarae será insuficiente para mostrar que se sabe o que a palavra significa e, portanto, de acordo com Agostinho, o que é. Além disso, apenas alguém que está familiarizado com as coisas significadas, os próprios sarabaraes, pode dizer-se conhecedor do que é a palavra (MATHEWS, op. cit., p. 174). Mesmo no caso de narrativas para nós
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antes desconhecidas, como na história de “três jovens que com sua fé e religião venceram o rei e as chamas” etc., todos os elementos, três jovens, rei, chamas etc., são já de antemão conhecidos de quem ouve pela primeira vez a narrativa, permitindo-o reconstruí-la e entendê-la, embora não se possa conhecer quem foram Ananias, Azarias e Misael (os três jovens de quem se fala) (AGOSTINHO, op. cit, p. 319). Todavia, ao contrário do que parece, Santo Agostinho também não está de alguma forma a defender uma espécie de empirismo, no qual aprendemos as coisas através dos sentidos e delas formamos nomes, como mais tarde postulará o nominalismo. A forma de conhecimento defendida pelo Santo Doutor é, antes, racional, interior, não dependente da exterioridade, exterioridade esta que inclui as próprias “palavras que repercutem exteriormente” (AGOSTINHO, ibidem, p. 318). Sobre isso, Costa comenta que para Agostinho, o que na Filosofia Moderna (no Empirismo) chamamos de conhecimento sensível, produzido pelos sentidos corpóreos, a rigor, não é conhecimento. O primeiro nível do conhecimento propriamente dito é a sensação, produzida pelo sentido interior – a alma. O corpo, apesar de necessário é apenas um instrumento. Assim sendo, Agostinho fala da existência de duas luzes no homem: uma corporal, própria dos sentidos externos, e outra espiritual, própria do sentido interno, ou da alma, que capacita a corporal a ver os objetos (COSTA, 2012, p. 28). E acrescenta ainda que Agostinho postula um terceiro sentido, que é o conhecimento racional, que teria um caráter superior por seu conteúdo ser universal, e não subjetivo, como o conteúdo dos conhecimentos provenientes dos sentidos interior e exterior (COSTA, ibidem, p. 29-30). Todas as coisas provenientes dos sentidos guardam sempre uma referência ao sujeito. Assim é com a vista, o gosto, os sons que se ouvem etc. Cada pessoa tem uma visão, um gosto, uma audição própria etc., em suma, experiências únicas com os objetos dos sentidos, formando um conhecimento não-universalizável, e portanto também não plenamente comunicável aos demais. A razão, por outro lado, teria como objeto aquilo que é universal, passível de ser conhecido por todos os sujeitos igualmente, não por ser comunicado, mas por cada um poder enxergá-lo dentro de si mesmo.
Mais adiante, no cap. XII do De magistro, tem-se a distinção entre as coisas que são percebidas pelo corpo e pela mente, isto é, as sensíveis e as inteligíveis, ou ainda, as carnais e as espirituais (AGOSTINHO, op. cit., p. 320). As coisas sensíveis são, como dissemos, subjetivas, isto é, coisas que levamos como “documentos só para nós” (idem). As inteligíveis, por outro lado, diz Agostinho, vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual é iluminado e de que frui o homem interior; mas também neste caso quem nos ouve conhece o que eu digo por sua própria contemplação e não através das minhas palavras, desde que ele também veja por si a mesma coisa com olhos interiores e simples. Por conseguinte, nem sequer a este, que vê coisas verdadeiras, ensino algo dizendo-lhe a verdade, porque aprende não pelas minhas palavras, mas pelas próprias coisas, que a ele interiormente revela Deus (AGOSTINHO, idem). Aqui entende-se que o espírito racional, interior ao homem, o qual é também chamado de “homem interior” (AGOSTINHO, ibidem, p. 319) não é algo aparte de Cristo, que é a “Sabedoria de Deus”, como diz a Bíblia (1Co 1:24). Assim diz Agostinho: No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consulta-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior, isto é: a virtude incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido pela sua própria boa ou má vontade (AGOSTINHO, op. cit., 319). Assim temos também aqui a defesa da visão agostiniana de que “in interiore homine habitat veritas”, isto é, a visão de que, assim como em Platão, o homem já carrega em si o conhecimento das coisas, sobretudo o conhecimento absoluto, de Deus, pelo qual tudo é conhecido, embora distinga-se de Platão no fato de que o conhecimento que o homem traz em si não é fruto de uma vida pré-corporal, mas da direta iluminação e graça divinas, imanente ao espírito racional, sendo Cristo mesmo sabedoria e razão divina, sendo equiparado pelo próprio Agostinho com o νοῦς (COSTA, op. cit., p. 23), fazendo eco à
Cristologia do λόγος, que postula que cada homem tem em si mesmo o Verbo divino (HÄGGLUND, 1981, p. 23). Esta iluminação interior é o que pode-se também chamar de graça, no contexto do Cristianismo, e Cristo, que ensina interiormente, seria o Mestre Interior. Cabe dizer que este Verbo (λόγος), ao ser equiparado com o νοῦς por Agostinho, é colocado como inteligível. Cristo se revela ao homem em seu interior, portanto, e através do conhecimento inteligível e racional, que apreende as verdades universais, não subjetivas ou referentes apenas ao sujeito. 3 Não se trata, contudo, de uma defesa de que Deus seria apreensível apenas pela razão. No que diz respeito às potências cognoscitivas do homem, a razão certamente é o que há nele de mais sublime eficaz, se dirigindo ao que é eterno e imutável. Mas Deus transcende até mesmo a razão, embora lhe seja também imanente, necessitando da revelação e da fé para ser plenamente conhecido. Os capítulos seguintes do De magistro vão apenas na direção de um desdobramento desta tese central. A comunicação não seria, nesse sentido, uma transmissão de conhecimento. Quando utilizamos palavras, falamos de coisas de cujo conhecimento já carregamos no espírito, e falamos para que outras pessoas suscitem em si as memórias que elas carregam dos significados das palavras que pronunciamos e para que suscitem em si mesmas as verdades por elas acessadas interiormente (tese explorada no cap. XII). As palavras seriam insuficientes inclusive para mostrar o pensamento de quem fala, como no caso, considerado no cap. XIII,
dos que ensinam mentiras acreditando serem suas mentiras verdades, ou mesmo dos mentirosos. O último capítulo encerra com uma nova defesa da tese de que Cristo é quem ensina interiormente ao homem, sendo, portanto, o Mestre Interior. Neste último capítulo, entra em questão a relação ensino-aprendizagem no âmbito da academia, tendo-se em mente as implicações das conclusões anteriormente tiradas. Assim considera o bispo de Hipona: fazendo eco à Cristologia do λόγος, que postula que cada homem tem em si mesmo o Verbo divino (HÄGGLUND, 1981, p. 23). Esta iluminação interior é o que pode-se também chamar de graça, no contexto do Cristianismo, e Cristo, que ensina interiormente, seria o Mestre Interior. Cabe dizer que este Verbo (λόγος), ao ser equiparado com o νοῦς por Agostinho, é colocado como inteligível. Cristo se revela ao homem em seu interior, portanto, e através do conhecimento inteligível e racional, que apreende as verdades universais, não subjetivas ou referentes apenas ao sujeito. Os capítulos seguintes do De magistro vão apenas na direção de um desdobramento desta tese central. A comunicação não seria, nesse sentido, uma transmissão de conhecimento. Quando utilizamos palavras, falamos de coisas de cujo conhecimento já carregamos no espírito, e falamos para que outras pessoas suscitem em si as memórias que elas carregam dos significados das palavras que pronunciamos e para que suscitem em si mesmas as verdades por elas acessadas interiormente (tese explorada no cap. XII). As palavras seriam insufi-
cientes inclusive para mostrar o pensamento de quem fala, como no caso, considerado no cap. XIII, dos que ensinam mentiras acreditando serem suas mentiras verdades, ou mesmo dos mentirosos. O último capítulo encerra com uma nova defesa da tese de que Cristo é quem ensina interiormente ao homem, sendo, portanto, o Mestre Interior. Neste último capítulo, entra em questão a relação ensino-aprendizagem no âmbito da academia, tendo-se em mente as implicações das conclusões anteriormente tiradas. Assim considera o bispo de Hipona: Mas quem é tão tolamente curioso que mande o seu filho à escola para que aprenda o pensa o mestre? Mas quando tivera explicado com as palavras todas as disciplinas que dizem professar, inclusive as que concernem à própria virtude e à sabedoria, então é que os discípulos vão considerar consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, contemplando segundo as suas forças a verdade interior. Então é que, finalmente, aprendem; e, quando dentro de si descobrirem que as coisas ditas são verdadeiras, louvam os mestres sem saber que elogiam mais homens doutrinados que doutos: se é que aqueles também sabem o que dizem. Erram, pois, os homens ao chamarem de mestres os que não o são, porque a maioria das vezes entre o tempo da audição e o tempo da cognição nenhum intervalo se interpõe; e porque, como depois da admoestação do professor, logo aprendem interiormente, julgam que aprenderam pelo mestre exterior, que nada mais faz do que admoestar. (...) o verdadeiro e único Mestre de todos está no céu. Mas o que depois haja nos céus, no-lo ensinará Aquele que tam-
Não se trata, contudo, de uma defesa de que Deus seria apreensível apenas pela razão. No que diz respeito às potências cognoscitivas do homem, a razão certamente é o que há nele de mais sublime eficaz, se dirigindo ao que é eterno e imutável. Mas Deus transcende até mesmo a razão, embora lhe seja também imanente, necessitando da revelação e da fé para ser plenamente conhecido.
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bém, por meio dos homens, nos admoesta com sinais, e exteriormente, a fim de que, voltados para Ele interiormente, sejamos instruídos (AGOSTINHO, op. cit, p. 323-324). O papel do professor não seria ensinar, de fato, numa perspectiva agostiniana, mas no máximo suscitar no aluno o conhecimento e a Verdade que habita dentro dele. Um conhecimento proveniente da exterioridade seria, nesse sentido, um conhecimento inferior, na medida em que é produto de objetos exteriores, relativos e efêmeros. O conhecimento interior tem a ver com o conhecimento de Deus e, portanto, com o conhecimento em sentido pleno, conhecimento da Verdade absoluta, da qual todas as verdades subordinadas provêm. Sobre isso, Fraile diz que A Santo Agostinho interessa, sobretudo, o conhecimento do homem e de Deus, mas pouco o do mundo sensível. O conhecimento de si mesmo é o princípio da sabedoria. Mas para isso é preciso apartar-se das coisas exteriores, fechar os olhos e os ouvidos e recolher-se na própria interioridade (FRAILE, 1986, p. 208). Também Gilson diz: Há no homem, portanto, algo que excede o homem. Já que é a verdade, esse algo é uma realidade puramente inteligível, necessária, imutável, eterna. É precisamente o que chamamos de Deus. As metáforas
mais variadas podem servir para designá-lo, mas todas têm, finalmente, o mesmo sentido. Ele é o sol inteligível, à luz do qual a razão vê a verdade, é o mestre interior, que responde de dentro à razão que o consulta. Como quer que se o chame, sempre se pretende designar essa realidade divina que é a vida da nossa vida, mais interior a nós mesmos do que nosso próprio interior. É por isso que todos os caminhos agostinianos para Deus seguem itinerários análogos, do exterior para o interior e do interior para o superior (GILSON, 1995, p. 147-148). O conhecimento mais perfeito não está, assim, dissociado de um auto-conhecimento, posto que é conhecimento das coisas interiores e que mesmo o que há de superior ao homem está no interior dele. Agostinho ecoa, deste modo, a máxima socrática “conhece-te a ti mesmo”, fazendo a consciência perfeita coincidir com uma autoconsciência, onde Deus é conhecido em sua plenitude e, consequentemente, também são conhecidas todas as coisas que dele dependem. CONCLUSÃO Dito isto, temos, em suma, que Santo Agostinho desenvolve no De magistro a questão da limitação da linguagem na transmissão do conhecimento, de modo que as palavras só se referem a conhecimentos que já carregamos conosco, e a questão de que a Verdade, em última instância, já reside no interior daquele que aprende, sendo
o processo de aprendizagem muito mais um voltar-se para si mesmo, um processo racional, em que o indivíduo é ensinado diretamente por Deus, que lhe é imanente, ainda que igualmente transcendente. Podemos pensar a partir disso em diferentes desdobramentos, que podem perpassar não só a teologia e a metafísica, mas também a epistemologia e até mesmo a pedagogia. No caso desta última, já que o De magistro aborda a relação entre mestre-discípulo e ensino-aprendizagem, temos que a função do mestre exterior (como os professores das escolas e universidades) jamais é a de ensinar, até pela impossibilidade do ensino através de palavras ou pelas limitações da aprendizagem através da sensibilidade. A função do mestre exterior, por assim dizer, seria muito mais a de suscitar no interior de cada um o conhecimento, que só é atingido por cada pessoa em particular, de modo autônomo, entendendo-se aqui autonomia como aquela independência de fatores externos, incluindo aí os próprios mestres e professores que pronunciam suas sentenças desde fora ao espírito do discípulo. A doutrina do Mestre Interior e da Iluminação não iria, por esta perspectiva, contra a noção de uma autonomia no processo de ensino-aprendizagem, posto que Cristo é, segundo a visão agostiniana, transcendente mas também imanente ao espírito racional, ensinando-o e instruindo-o desde dentro em cada vislumbre da Verdade. g
BIBLIOGRAFIA PELA ORDEM DAS REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. De Magistro (Os Pensadores). 3ªed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Bíblia de Jerusalém. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 2002. COSTA, M. R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. FRAILE, G. Historia de la filosofia II. Madrid: Biobloteca de Autores Cristianos, 1986. GILSON, E. A filosofia na idade média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. HÄGGLUND, B. História da teologia. Tradução de Mário L. Rehfeldt e Gládis Knak Rehfeldt. Porto Alegre, RS: Concórdia, 1981. MATHEWS, G. B. Knowledge and illumination. In: STUMP, E., KRETZMANN, N. The Cambridge companion to Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. PLATÃO. Parmênides. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. Tradução, apresentação e notas de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. PLOTINO. Tratados das Enéadas. Tradução, apresentação, introdução e notas de Américo Sommerman. São Paulo: Polar Editorial, 2000.
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FICÇÃO CARLINHOS Conto de Ernani Sátyro
Carlinhos era naquele tempo o meu melhor amigo. Parecia mesmo que nenhuma coisa haveria no mundo capaz de perturbar a nossa confiança recíproca. Se estávamos na época dos exames, meus pontos eram os seus pontos, meus livros os seus livros, meus conhecimentos... Bem, aqui tenho que me esclarecer melhor. Carlinhos era paupérrimo de inteligência. Por mais que se esforçasse, seu progresso intelectual era uma espécie de passada miúda, de quem dá a impressão de caminhar sempre e não sair nunca do lugar. Tive muitas provas de dedicação de Carlinhos e lhe dei outras tantas. Lembro-me de uma vez em que nos sentamos para a prova escrita de português. Eu havia preparado algumas descrições, que de tanto reler já trazia inteiras na memória. Nesse tempo eu tinha a mania da originalidade. Minhas descrições eram sempre de coisas extraordinárias. Se se tratava de um incêndio, eu tinha de arranjá-lo em um navio, em alto mar, com água em quantidade, mas sempre sem os meios de apanhá-la para dominar as chamas. Se era uma viagem que mandavam descrever, havia de aparecer um meio, de não se chegar ao fim, embora a chegada seja sempre a solução mais fácil. E precisamente para não chegar, eu e meus companheiros imaginários utilizávamos todos os veículos possíveis - cavalo, automóvel, canoa, o diabo. Como se vê, o que eu fazia era confundir complicação com originalidade. Mas não reparem nisto. Afinal o homem escreve é mesmo para mostrar as suas fraquezas. Que é só o que existe dentro de nós. É verdade que só hoje eu penso assim. Naquele tempo me considerava original mesmo, possuidor de um “estilo
nervoso”, coisa que não sabia o que era, mas achava bonita. Essa minha preocupação de originalidade levou certa vez um tio velho e desabusado a me dizer, repetindo aquela anedota do sujeito que foi se confessar: “Você não tem nada de original, o que você é, é besta”. Mas voltemos ao Carlinhos e ao nosso exame de português. Quando foi sorteado o ponto, o professor Lindolfo dirigiu-se lentamente para o quadro-negro e escreveu: “Descrição de um incêndio”. Carlinhos que ficara na carteira em frente à minha, virou-se para trás, mais
vermelho do que normalmente era, e, piscando os seus olhos pretos e apertados, disse com aflição: - Não preparei descrição de incêndio. Vou me levantar, porque sei que estou perdido. Minha resposta foi passar-lhe rapidamente a descrição que trazia no bolso, a tal do navio em alto mar, passeando, como um fantasma luminoso, dentro do insondável da noite. Carlinhos copiou tranqüilamente o trabalho, que lhe assegurou um grau 8 na escrita, enquanto eu puxava pela cabeça para arranjar o incêndio num verde canavial, provocado pelo atrito de duas pedras (Sempre as coisas difíceis.) Gemi, sofri, e mal consegui arrancar um 5, passando pelo “pau do canto”. Eis aí, portanto, uma das provas de minha amizade a Carlos Ferreira de Oliveira, que esse era o seu verdadeiro nome. Ele não tardou a pagar-me em dobro. Ao lado da pensão onde morávamos, existia um belo sítio, cheio de mangueiras, jaqueiras e outras árvores frutíferas. Só não havia cajueiros, e era uma pena. Nós tínhamos na pensão um passadio que seria exagero classificar de bom, mas também não se podia considerar dos piores. Providos de boa mesada, completávamos com extraordinários - doces, bolinhos, sorvetes - o que por vezes faltava na de dona Joaninha. É a tal história do fruto proibido. As mangas do velho Lourenço tinham um sabor diferente. O velho tinha uma perna de pau. Não podia nos pegar nunca, era o que imaginávamos. Mas bem que ele avisava: “Não façam isso. Quem me avisa meu amigo é” . E o perigo eram os cachorros do velho. Dois ou três, no máximo. Mas, ISSN: 2357-8335
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quando corriam atrás da gente, pareciam cem. Um dia... Sim, esse dia sempre chega, nas histórias da vida. Quando menos esperávamos, os cachorros já estavam em cima. Corremos como uns loucos. Carlinhos conseguira alcançar o muro e já estava salvo. Mas, para mim não havia salvação. Já sentia os dentes afiados dos cães penetrando em minhas carnes, rasgando minhas roupas e documentando meu crime. Parece até que a dor da imaginação é maior do que a outra, a dor de verdade. Num relâmpago, vi o rapaz precipitar-se do paredão e cair no meio dos cachorros, que já me alcançavam. Francamente, ainda hoje não sei explicar bem o que se deu. Parece que os animais ficaram surpresos com o gesto. Aquilo não era bravura conhecida nos invasores do pomar. Certo é que os cães recuaram alguns metros. Eu ficara sem ação, assim como os cachorros. Comparando bem, só Carlinhos, naquele momento inesquecível, era quem dominava tudo. Gritou para mim - “Vamos!”. Quando a matilha se refez e partiu novamente, nós já estávamos montados na muralha. Era, pois, assim, o meu amigo. Bravo, diante das situações mais sérias da vida. E frágil, uma criança, em face da mais leve solicitação da inteligência. Como se comportaria o nosso herói em frente às complicações do amor? Era o que eu sempre me perguntava e tanto desejava saber. Havia em frente à pensão uma lourinha que morava com a vovó Felismina, já quase caduca. A moça tinha o nome de Cecy. Todos os rapazes da pensão se vangloriavam de ter provado o mel de seus lábios. E diziam que eram doces como os de Iracema. Carlinhos era o único hóspede da Pensão Resnascença que não conseguira os favores de Cecy. Ela dizia que preferia morrer a gostar daquele “cara de carne fresca”. Por isso, talvez, ele dizia horrores da pobre menina. Exagerava histórias que todos nós sabíamos e que na verdade não passavam de ensaios do grande ato do amor. Cecy era volúvel e triste. Mudava de namorado com a mesma facilidade que têm as moças ricas de trocar de roupa, sem prejuízo da troca dos namorados. Também os rapazes se enfastiavam logo. Ela era uma dessas criaturas de coração raso, que esgotam logo a capacidade de compreensão e ternura. O pouco que podia dar do amor, dava logo, sem mistério nem resistência. Mas era só aquilo. Depois dos primeiros beijos, embora de açú-
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car, quase não tinha mais nada a oferecer. Se os lábios eram doces, também eram frios. E os namorados se acabavam depressa, sem recriminações nem saudades de ninguém. Quando olhava para a gente, já era sorrindo, mas um sorriso de flor que está murchando, antes de desabrochar de todo. Pobre Cecy. Há tempos que Carlinhos não falava dela. Também ninguém vira mais nenhum rapaz encostar na porta de dona Felismina. E os comentários foram cessando. Esgotara-se todo o nosso interesse pela lourinha, que também já esgotara a relação dos estudantes da Renascença. Namorara todos. Isso já foi dito, mas é bom repetir para retificar: todos, não. Carlos Ferreira de Oliveira e seu amigo Ernesto Alves de Sousa e Silva não eram homens para aquele comunismo. Eu e Carlinhos ficávamos por fora. E os tempos corriam. Num domingo, á hora do jantar, um companheiro de nome Salomão, estouvado e sem malícia, talvez até por falta de assunto, enquanto passava a terrina de sopa foi dizento em voz alta: - Vocês sabem da grande novidade? Carlinhos está namorando com Cecy. Todas as noites conversa com ela na Bica de Tambiá. Carlinhos levantou-se como um personagem de Dostoiewsky. Aberturou Salomão e levantou um garfo, como se lhe quisese furar os olhos. (Só agora, revivendo os fatos, é que me lembra que Cecy achava lindos os olhos de Salomão.) Eu estava do outro lado da mesa, os contendores fora do alcance de meu braço. A única coisa que podia fazer era gritar. E gritei, com toda a força da voz que Deus me deu: - Não faça isso, Carlinhos. Me atenda. Carlinhos obedeceu. E nessa mesma noite, no quarto onde dormíamos, ele narrou toda a história de seu amor. História curta e simples. Estava apaixonado. Verificara que Cecy era uma moça digna e terna. O que lhe faltara até então, fora uma alma que a compreendesse. Ele julgava ser essa alma. Não conversava com a moça na janela, para evitar comentários dos colegas. Tratava-se de uma coisa séria, e não admitia pilhéria nem brincadeira. Tinha a intenção de me comunicar o fato, no momento oportuno. Eu era seu maior amigo e me encarregaria de avisar ao pessoal da pensão. E concluiu: - Quando menos se espera, sai Salomão com aquela, na vista de todo mundo, para me ridicularizar. - Mas Carlinhos - objetei - Salomão é um rapaz sem maldade. Ele falou naturalmente. Não podia imaginar que você
se zangasse tanto. Também aquilo foi demais; você ia furando os olhos do colega. - Olhos de cabra morta, é o que tem aquele sem-vergonha. Quando olha para as pessoas, até parece que está querendo conquistá-las. Naquele instante meu pensamento vadio já andava longe. Eu estava pensando como o amigo conseguira enganar-me, saindo quase todas as noites, com a história de umas aulas de inglês. Saía de livro e caderno debaixo do braço, e eu afinal não sou adivinho. Só agora estava lendo, tudo, na cara do malandro. Mas voltei à realidade e disse, quase por dizer: - É isso mesmo, ele não teve intenção de ridicularizar você. Nem ele sabia que o seu namoro com Cecy fosse uma coisa tão séria. Carlinhos pulou no meio da sala: - Pois é muito sério. E vou deixar os estudos para me casar com ela. Tive um grande domínio sobre mim mesmo, desses que ainda hoje me surpreendem em certos momentos. E surpreendem precisamente pela contradição do temperamento, que tanto se exalta, noutras ocasiões, por coisas muito menores. Respondi calmamente que, quanto a deixar os estudos, talvez e até ele tivesse razão, pois a sua vocação não era decididamente para as letras. (Quis arrepnder-me das palavras, mas já estavam ditas. Mas, em relação ao casamento, não admitia aquilo nem de brincadeira. Era até uma ingratidão a seus pais.) Não pude ir adiante. O meu amigo me atalhou com firmeza: - Não diga mais nem uma palavra, Ernesto, Você é a única pessoa que podia dizeer o que já disse. Mas não abuse da amizade, porque eu rompo com você. Calei-me. Daí por diante só raramente voltava ao assunto, aparentando a maior indiferença, embora não tivesse desistido de demover o amigo de sua loucura. Tudo neste mundo depende da oportunidade. E essa oportunidade chegou. Pelo menos em parte, chegou. Carlinhos teve qualquer suspeita de Cecy. Com quem, ainda hoje não sei. Mas houve alguma desconfiança. Porque de outro modo ele não me teria acordado, numa noite em que acabava de conversar com a namorada, para fazer bruscamente esta pergunta: - Você diz que Cecy continua a mesma. E que se quisesse, ainda hoje namoraria com ela e faria o que quisesse. Ora, eu não tinha dito precisamente aquilo, mas confirmei com a cabeça, estremunhado, louco para voltar ao meu sono. E Carlinhos não me deixou dormir sem o compromisso de que tentaria,
logo no dia seguinte, conquistar Cecy. Ele necessitava dessa prova, para romper com ela ou dar o passo decisivo do casamento. No dia seguinte, quando ele me cobrou o cumprimento da palavra, só muito vagamente eu me lembrava da conversa anterior. Por esse tempo já gostava de ler o meu Cervantes. E fiz até brancadeira com o caso, lembrando o conto do Curioso Impertinente, que desejara pôr em prova a fidelidade da linda esposa, utilizando-se para isso dos bons ofícios de um amigo. O resultado fora aquele que se conhece. Nada, porém, demoveu Carlinhos. E tive de represntar o papel de Don Juan. A coisa foi muito mais fácil do que eu esperava. Sempre as surpresas da vida. Os lábios de Cecy nem doces eram mais. Deram-me a impressão - creiam sem exagero - de uma máquina de beijar. Faziam aquilo sem calor e sem vida. (Minha máquina de escrever tem muito mais alma, ajudando-me a descrever os beijos de Cecy, do que os lábios desta, tentando encontrar o amor.) Parece que ali a depravação só era do espírito. O corpo ficava indiferente. Não passamos do terceiro encontro. Eu já me sentia humilhado do triste papel. E dei a entender que não voltaria mais. Aí então veio a cena de pranto. Ela rogava que eu não dissesse nada a Carlinhos; que aqueles encontros comigo tinham sido a sua última loucura; que seria boa para o meu amigo, jurava. Confesso que saí confuso. “Dizer ou não dizer” - eis o dilema de Ernesto Alves de Sousa e Silva. Também Carlinhos não falava mais no caso. Parece que se arrependera da incumbência que me dera. E não me perguntava nada, ajudando desse modo a dignidade de minha consciência. E para dizer a verdade, na minha vida é
sempre assim. Eu nem preciso me preocupar muito. Lá um dia as próprias coisas chegam com a solução. Ia já pelo fim do ano. Fazíamos os últimos exercícios do Tiro de Guerra 166. No Colégio Pio X tudo eram preparativos para os exames. O pelotão arrastava a marcha, já bem pertinho do Engenho da Graça. O sol acabava de nascer. Eu pensando coisas de estudos - naquela manhã perdida, que bem podia ser aproveitada para decorar os pontos de latim, e Carlinhos pensando coisas de amor. De amor e traição. Seus olhos não negavam. O exercício nesse dia foi puxado. Já tínhamos conseguido do sargento permissão para tomar um banho no açude da Graça. E para surpresa nossa, o instrutor que levara o ano a negar as coisas mais simples, consentia naquele absurdo - invadir as águas límpidas do açude alheio. Os fuzis estavam ensarilhados debaixo da gameleira grande. Não haveria mais o banho. Um dos colegas que conversara com um trabalhador do engenho, viera avisar, correndo e gritando, que ninguém entrasse na água. O Arcebispo, dono do açude, mandar jogar dentro muitas cargas de vidro quebrado, para punir e evitar a anarquia dos banhistas que vinham da cidade. Não sabemos hoje se isto era verdade. Mas a lenda corria no tempo. Talvez até mesmo a astúcia do prelado heróico a tivesse espalhado para pôr termo à sem-vergonhice que a polícia não podia ou não queria acabar. Só sei que nós íamos regressar. - Então, Ernesto, você conseguiu alguma coisa? Eu nem me lembrava mais. Carlinhos disse o que era. Noutras circunstâncias talvez tivesse negado tudo. O dilema já desaparecera de minha imaginação. Mas
o diabo era aquela cara ridícula de apaixonado. E apaixonado por quem? - Fiz tudo quanto quis - respondi irritado. E voltei-me para arrumar meus apetrechos de guerra. - Ernesto, olhe a baioneta! Nem sei quem gritou. Instintivamente disparei na carreira. E senti que corriam atrás de mim. Ganhei logo alguma distância. Olhei para trás. Ele vinha espumando. Mas espumando de verdade. Defendi-me por trás de uns coqueiros e driblei Carlinhos. (Ele era fácil de driblar na carreira como de enganar no amor.) Voltei correndo para o lugar onde estava o sargento com o resto da turma. A perseguição não cessou. E os gritos e assovios se voltavam contra mim, como se eu, atacado pelas costas, fosse o verdadeiro covarde. Senti-me indeciso e medroso. Mas o instinto da vergonha reagiu. Voltei-me rápido, livrei-me da baioneta e me atraquei com o inimigo. Sim, naquele momento, já era o inimigo. Rolamos no chão algumas vezes. Quem sabe lá contar o tempo nessas horas? Finalmente consegui jogar Carlinhos dentro de uma poça de lama. Montei em cima e dominei-o completamente. Segurei-o bem pela abertura e disse: - “Seu” maluco, você brigando comigo sem necessidade! Não esquecdei mais nunca a cara do pobre rapaz. Era o trágico e cômico. E eu tinha de contemplá-la de frente. Ele olhou para mim e falou: - Ernesto, eu sou seu amigo. Isto não vale nada. Mas me diga a verdade: esta história de Cecy é mentira, não é? Sou incapaz de definir o que senti. Fui me levantando e dizendo: - Sim, Carlos, é mentira... g
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SOCIOLOGIA DO FUTEBOL GILBERTO FREYRE E O FUTEBOL-ARTE Túlio Velho Barreto
FUTEBOL Não deixe o futebol perder a dança Nem perca seu sorriso de criança Não deixe o futebol perder… Passe no peito, jogue de lado Dê um sorriso e não pise na bola Dê carreirinha, fique parado Olhe pra gente que é essa escola (Naná Vasconcelos, 2002) Agradeço a leitura criteriosa e os valiosos comentários dos professores Edson Nery da Fonseca e Jorge Siqueira e da colega Anatailde de Paula Crespo. No entanto, todos estão isentos de qualquer responsabilidade pelo texto e erros ainda existentes. Finalmente, agradeço a Jamille Cabral Pereira Barbosa, da Fundação Gilberto Freyre, pela cessão de fotocópias dos artigos de Gilberto Freyre publicados no Diário de Pernambuco e em O Cruzeiro. Recorrendo às idéias do historiador inglês Eric Hobsbawm sobre a “invenção das tradições”, o antropólogo Hermano Vianna mostra como o samba deixou de ser apenas uma manifestação cultural de um segmento (os negros – o que fazia, por isso mesmo, com que os sambeiros fossem marginalizados e perseguidos) para se transformar em
um dos símbolos da identidade cultural brasileira. As idéias de Hobsbawm, utilizadas por Vianna, podem ser resumidas assim: a aparente naturalidade que envolve a existência de tradições escamoteia a forma como elas foram realmente construídas e institucionalizadas, ou seja, o que parece sempre ter existido, ali estado, nada mais é do que o resultado de “práticas, de natureza ritual ou simbólica, [que] visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição”. Com relação ao samba, Vianna esmiúça como isso ocorreu no Brasil, na primeira metade do século passado; com relação ao futebol, parece-me, tal história ainda está por ser contada, apesar das grandes (e pequenas) contribuições já oferecidas, inclusive pelo olhar estrangeiro. Exemplos? Os estudos sobre o negro no futebol brasileiro do filósofo alemão Anatol Rosenfeld e do jornalista – e historiador autodidata – Mario Filho, ambos realizados nas décadas de 40 e 50 do século passado. Com efeito, além do samba, não parece haver dúvidas quanto à importância do futebol como outro traço característico de nossa identidade cultural. Gilberto Freyre, em especial, esforçou-se para demonstrar isso, contribuindo decisivamente para a “invenção” dessa tradição entre nós, conforme procurarei mostrar mais adiante. Ademais, ao praticamente conceder status de arte ao futebol brasileiro, ele findou por “inventar”, do ponto de vista sociológico, a própria idéia de futebol-arte. Mas nisso Freyre não esteve só. Muitos anos depois dele, e ainda
que de soslaio, o mirar de Hobsbawm sobre o tema é digno de referência. Ao analisar como diversas manifestações da cultura popular se espalharam pelo mundo, o historiador inglês pergunta (afirmando): “quem, tendo visto a seleção brasileira jogar em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?”. E dá algumas pistas acerca da popularização do futebol mundo afora: “esse jogo simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos, e que podia ser praticado em qualquer espaço aberto mais ou menos plano do tamanho exigido, abriu caminho no mundo inteiramente por seus próprios méritos, e, com o estabelecimento da Copa do Mundo em 1930 (conquistada pelo Uruguai), tornou-se genuinamente universal”. Hobsbawm refere-se também à importância da democratização do carnaval, ainda na década dos 20, para que o samba viesse a se transformar em um dos símbolos culturais do Brasil. Portanto, é significativo destacar que o futebol, tal e qual se conhece e se pratica hoje, diferentemente do samba, teve sua origem em uma elite branca e rica de país anglo-saxão, foi trazido para o Brasil por membros da elite local e por ela praticado, inicialmente de forma amadora. Após algum tempo, em especial a partir de sua popularização (profissionalização) entre os operários e negros, ou seja, de sua democratização, o futebol foi assumindo um caráter universal e se transformando em um de nossos símbolos culturais. Dito de outra forma, tanto o sam-
Não se trata, contudo, de uma defesa de que Deus seria apreensível apenas pela razão. No que diz respeito às potências cognoscitivas do homem, a razão certamente é o que há nele de mais sublime eficaz, se dirigindo ao que é eterno e imutável. Mas Deus transcende até mesmo a razão, embora lhe seja também imanente, necessitando da revelação e da fé para ser plenamente conhecido. 2 Hermano Vianna, O Mistério do Samba, Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Ed. UFRJ, 1995. 3 Eric Hobsbawm, “Introdução: A Invenção das Tradições”, in Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.), A Invenção das Tradições, São Paulo, Paz e Terra, s/d, p. 9. 4 Anatol Rosenfeld, Negro, Macumba e Futebol, São Paulo, Perspectiva, 1993. 5 Mario Filho, O Negro no Futebol Brasileiro, Irmãos Ponteggi, 1947. 6 A esse respeito, ver: Roberto DaMatta e outros, Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira, Pinakotheke, 1982. 7 Embora de outro ponto de vista, o jornalístico, Mario Filho, Nelson Rodrigues, José Lins do Rego, João Saldanha e Armando Nogueira também contribuíram para a consolidação da idéia de futebol-arte, o que pode ser conferido nas crônicas de Mario Filho publicadas em O Sapo da Ararubinha (São Paulo, Companhia das Letras, 1994); nas de Nelson Rodrigues, em À Sombra das Chuteiras Imortais (São Paulo, Companhia das Letras, 1993), A Pátria em Chuteiras (São Paulo, Companhia das Letras, 1994) e O Profeta Tricolor (São Paulo, Companhia das Letras, 2002); nas de Armando Nogueira, em especial as publicadas em Na Grande Área (Rio de Janeiro, Edições Bloch, 1966) e em Bola na Rede (Rio de Janeiro, José Olympio, 1974); e o livro de João Saldanha, Subterrâneos do Futebol (Rio de Janeiro, José Olympio, 1980), sobre sua experiência como treinador do Botafogo. 8 Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 196-7. 1
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ba dos negros, pobres e socialmente marginalizados pela elite branca e rica, como o futebol, a princípio um esporte dessa elite, fincaram raízes a partir da democratização do carnaval e da prática daquele esporte, respectivamente. Enfim, tais processos envolveram a vontade (e a necessidade) de construir a identidade cultural brasileira, isto é, a própria nacionalidade. Como e de que forma Gilberto Freyre contribuiu para isso é o objetivo deste breve ensaio (e não discutir suas idéias a respeito do tema). A CONTRIBUIÇÃO DE GILBERTO FREYRE PARA A “INVENÇÃO” DO FUTEBOL-ARTE De um modo geral, o esporte não tem sido estudado com freqüência pelos cientistas sociais, mas não só no Brasil. No entanto, isso não impediu que importantes autores se dedicassem e produzissem algumas obras seminais sobre ao tema. O holandês Johan Huizinga, por exemplo, procurou mostrar como o jogo é um fenômeno cultural; o francês Pierre Bourdieu se propôs a estabelecer elementos para uma sociologia do esporte; o alemão Norbert Elias, além de contribuir, ainda que indiretamente, para a institucionalização de estudos de pós-graduação nessa área em seu país, escreveu sobre o papel do esporte no processo civilizador; já o inglês Anthony Giddens fez sua tese de mestrado sobre esporte, apesar de ter sido essa sua única incursão pelo tema. No Brasil não é diferente, pois, a despeito de ser um dos traços mais característicos de nossa cultura, o interesse dos nossos intelectuais pelo futebol, como objeto de estudo, tem sido também bissexto. Pode-se dizer que o livro de Mario Filho, aqui já citado, foi um dos primeiros estudos relevantes sobre o tema, e, não por um acaso, seu prefácio coube a Gilberto Freyre, que, de certa
forma, foi pioneiro na abordagem do futebol nas ciências sociais. Na verdade, vê-se em Mario Filho, certamente, a influência de Freyre. De fato, ainda em 19/12/1929, sob pseudônimo, Freyre escreve artigo sobre o tema no jornal A Província, publicado em Pernambuco, comentando a violência de jovens em partidas de futebol no Rio de Janeiro. O título do artigo não poderia ser outro: “Fair Play”. Já em 17/6/1938, no artigo “Foot-ball Mulato”, publicado no Diario de Pernambuco, Freyre aborda a presença brasileira na Copa do Mundo daquele ano e observa que a razão de termos chegado pela primeira vez às semifinais foi “a coragem, que afinal tivéramos, de mandar à Europa um time fortemente afro-brasileiro”. E já interessado em caracterizar o estilo brasileiro de jogar o futebol, ele afirma: “o nosso estilo parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astú- cia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual. Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses […] ”. Assim, impressionado com os desempenhos de Domingos da Guia e Leônidas da Silva (artilheiro e craque da copa), Freyre começa a definir de tal maneira o estilo brasileiro que é possível perceber como a análise do futebol pode contribuir para a compreensão de nossa identidade cultural. Pois ele vai buscar nas raízes da cultura negra as razões de ser desse estilo. Anos depois, já em um estudo mais acadêmico, Freyre volta ao tema: “acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de futebol, e esse estilo é uma expressão a mais do nosso mulatismo ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança,
curvas ou em músicas, as técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto […] porque é um mulatismo o nosso […] inimigo do formalismo apolíneo sendo dionisíaco a seu jeito”. Em outro momento, enfatiza: “o modo caracteristicamente brasileiro de jogar o futebol” é o “influenciado pelo ânimo dionisíaco, dançarino, festivo de afro-negro que, no Brasil, pode-se dizer ter contrariado o ânimo apolíneo britânico”. Aqui, Freyre, assim como o filósofo alemão Nietzsche fez acerca da cultura grega (21), usa os opostos apolíneo e dionisíaco para definir distintos modos de jogar o futebol. Tal contraponto não é feito só nesse texto, mas em vários outros. Já em conferência proferida nos Estados Unidos, em 1944, ele lembra ter proposto pesquisa sobre o futebol e as diferentes danças carnavalescas existentes no Brasil. Em suas palavras: “ao lado do estudo sobre as danças sugeri também um outro em torno da maneira brasileira mais característica de jogar o futebol. O jogo brasileiro de futebol é como se fosse uma dança. Isso pela influência, certamente, dos brasileiros de sangue africano, ou que são marcadamente africanos na sua cultura: eles são os que tendem a reduzir tudo a dança – trabalho ou jogo –, tendência esta que, parece, se faz cada vez mais geral no Brasil, em vez de ficar somente característica de um grupo étnico ou regional”. Interessante observar, aqui, que Freyre chama a atenção, ainda em 1944, para o fato de que o referido estilo já é o estilo brasileiro e não apenas de um segmento. Ou seja, para ele, já está incorporado à identidade cultural do país. Daí, não devemos nos surpreender se alguém se referir, por exemplo, a Tostão, Falcão e Kaká (brilhantes jogadores de diferentes gerações) como jogadores dionisíacos, embora eles não deixem de ser essencialmente apolíneos. Certamente, não há nisso contradição alguma.
8 Idem, ibidem. Embora não tratem especificamente desse processo, pode-se ter uma idéia de como ele ocorreu em Victor Andrade de Melo, “Futebol: que História É Essa?!”, in Paulo César R. Carrano (org.), Futebol: Paixão e Política, Rio de Janeiro, DPA, 2000; Waldenyr Caldas, O Pontapé Inicial. Memória do Futebol Brasileiro, São Paulo, Ibrasa, 1990; Simoni Lahud Guedes, O Brasil no Campo de Futebol. Estudos Antropológicos sobre os Significados do Futebol Brasileiro, Niterói, Eduff, 1988; Leonardo Affonso de Miranda Pereira, Footballmania. Uma História Social do Futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938; Ronaldo Helal, Passes e Impasses. Futebol e Cultura de Massa no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1997; Mario Filho, op. cit.; Cláudia Mattos, Cem Anos de Futebol, Rio de Janeiro, Rocco, 1997; e José Moraes dos Santos Neto, Visão do Jogo. Primórdios do Futebol no Brasil, São Paulo, Cosac & Naify, 2002. 11 Johan Huizinga, Homo Ludens, São Paulo, Perspectiva, 2000. 12 Ver Pierre Bourdieu, “Como É Possível Ser Esportivo?”, in Questões de Sociologia, São Paulo, Marco Zero,1983; e “Programa para uma Sociologia do Esporte”, in Coisas Ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990. 13 Ver Günther A.Pliz,“Sociologia do Esporte na Alemanha”,in Estudos Históricos,13(23),1999, pp.3-16. 14 Norbert Elias e Eric Dunning, Deporte y Ócio en el Proceso de la Civilización, México, Fondo de Cultura Económica, 1995. 15 Conforme Eric Dunning em: Norbert Elias e Eric Dunning, op. cit., p. 11. 1 16 Além dos trabalhos de Roberto DaMatta, o mais importante citado em nota anterior, há de se lembrar que a Fundação Getúlio Vargas dedicou um dos números de Estudos Históricos ao tema Esporte e Lazer, enquanto a Revista USP já trouxe um Dossiê Futebol em um de seus números. 17 Pelo menos em parte, o livro de Ronaldo Helal, Antonio Jorge de Soares e Hugo Lovisolo, A Invenção (do País) do Futebol. Mídia, Raça e Idolatria (Rio de Janeiro, Mauad, 2001), é uma tentativa bem sucedida de atualizar o debate em torno das idéias de Freyre e Mario Filho. Ali, há argumentos favoráveis e contrários àquelas idéias. 17 É relevante notar que, até a Copa do Mundo de 1938, o Brasil, apesar de ter alguns títulos regionais, na América do Sul, só havia jogado três vezes (obteve apenas uma vitória e foi derrotado duas vezes) na maior competição internacional de seleções (a única vitória foi contra a seleção da Bolívia; e as duas derrotas, contra selecionados europeus, Iugoslávia e Espanha). Acontece que havia disputas políticas entre Rio e São Paulo, e entre os partidários do amadorismo e do profissionalismo, o que impedia até de enviar seleções que incluíssem jogadores dos dois estados. Em 1930, apenas um jogador de São Paulo aceitou jogar na seleção; em 34, apenas quatro aceitaram. Só em 1938, o Brasil foi representado por uma seleção dos melhores jogadores de Rio e São Paulo, já os grandes centros futebolístico do país. Ver Teixeira Heizer, O Jogo Bruto das Copas do Mundo, edição revisada e atualizada, Rio de Janeiro, Mauad, 2001. 18 Ver, a esse respeito, o prefácio de Freyre em: Mario Filho, op. cit. 1 19 Gilberto Freyre, Sociologia, Rio de Janeiro, José Olympio, s/d, p. 432. 20 Citado em: José Carlos S. B. Meihy, “Para que Serve o Futebol?”, in José Carlos S. B. Meihy e José Sebastião Witter (orgs.), Futebol e Cultura. Coletânea de Estudos, São Paulo, Imprensa Oficial/Arquivo do Estado, 1982 21 Ver Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, São Paulo, Companhia das Letras, 1999. Ressalvo, no entanto, que Freyre se refere à antropóloga norteamericana Ruth Benedict que também emprega tais categorias em seus estudos (ver Gilberto Freyre, op. cit.). 9
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Na década seguinte, na revista O Cruzeiro (edição de 18/6/1955), Freyre resume, então, seu argumento: o estilo brasileiro é diferente do europeu e resulta da presença dos negros em nosso futebol, o que, longe de representar uma fraqueza, como muitos apregoavam, é a nossa maior virtude. Ademais, ele associa o estilo brasileiro “às reminiscências africanas, que o estariam tornando antes dionisíaco, isto é, expansivo, alegre, improvisador, ‘baiano’, […] que apolíneo”, bem como “à capoeiragem, que sendo jogo é também dança”, para, então, concluir: “que importam, […] tais fracassos, se estamos criando um bailado em que a mestiçagem brasileira de raças e de culturas encontra expressão sociológica ou satisfação estética?”. Dessa forma, Freyre defende o estilo brasileiro, apesar das derrotas de 1950 e 54, no Brasil e na Suíça, de maneira que faria tremer os novos mandarins do futebol, isto é, os dirigentes e treinadores apologistas da adoção entre nós de um certo futebol-de-resultados, quando a qualidade do futebol jogado devesse ser refém do resultado favorável alcançado, como se a busca por tais resultados – a despeito do que, apenas aparentemente, Freyre parece afirmar – , não fosse também o objetivo de quem defende ou pratica o futebol-arte. Ainda em O Cruzeiro (edição de 25/6/1955), mas noutro artigo, Freyre aborda a contraposição recorrente entre “individualismo” versus “cooperativistas” no futebol. Para ele, o estilo brasileiro é baseado no individualismo, o que, no entanto, não deve nos envergonhar, pois nisso estamos próximos ao padrão esportivo dos “gregos atenienses”, por exemplo. E vai mais além: “que significa ser um jogo predominantemente individualista no seu estilo? Pura anarquia? O inteiro sacrifício do grupo aos caprichos dos indivíduos?”. Decerto que não. Significa constante interação entre o esforço coletivo do grupo e as façanhas, as iniciativas, os próprios improvisos de indivíduos que, assim agindo, destacam-se como heróis, exibem-se como bailarinosmestres, acrescentam-se à rotina do jogo, não só em benefício próprio mas em benefício do grupo”. O que precisamos, sugere, é “conciliar esse individualismo com a disciplina […]”. Com efeito, esse parece ter sido o segredo de várias das vitórias alcançada pelo futebol
brasileiro em competições internacionais nos chamados “anos de ouro” (1958-70). Durante a Copa na Alemanha, em 1974, o Brasil já tricampeão mundial, Freyre publica mais dois artigos sobre futebol, agora no Diario de Pernambuco. No primeiro, “Futebol Desbrasileirado” (30/6/1974), de título bastante sugestivo, explicita sua aversão ao estilo adotado pela seleção – e que seria mantido nas copas de 1978, 90 e 94, o que o leva a perguntar: “Será que o futebol brasileiro de agora – o que se apresentou na Europa […] – já não é brasileiro mas um futebol sem características nacionais? Um futebol que não exprime o ânimo, o temperamento, a flama dionisíaca da gente do Brasil? Que é um arremedo do inglês mas do inglês de há vinte anos”. Então, referindo-se à “reanglicanização” do nosso futebol, conclui com outra indagação: “que acontece, caro Mestre Zagalo?”. No segundo, “A Propósito da Derrota do Time Brasileiro na Alemanha” (7/7/1974), comenta a derrota brasileira diante da Holanda, que levou muitos dirigentes e técnicos brasileiros a acreditar na superioridade racial e cultural dos europeus. De fato, como nos mostra Gílson Gil, as publicações da época trazem a resignação do trio Zagallo-Coutinho-Parreira (respectivamente, técnicos da seleção nas copas de 1974, 78 e 94, e Zagallo novamente em 98, mas todos membros da comissão técnica de 1970) diante do futebol-força (25). Não é à toa que, desde então, se discute sua adoção entre nós, embora muitos creditem as derrotas nas copas de 1974, 78 e 90 às tentativas de substituir o (agora) “arcaico” futebol-arte pelo (sempre) “moderno” futebol-força (ou, o que significa o mesmo, o futebol-de-resultados). Ainda nesse artigo, Freyre volta ao debate em torno do “individualismo” do jogador brasileiro em contraposição ao futebol “coletivizado” dos europeus, e novamente enfrenta tal mito. Em suas palavras: “[…] o falatório atual, no Brasil, contra o nosso muito brasileiro culto aos heróis nos desportos é de todo sem razão. Os próprios holandeses […] foi no que extremaram: no culto de um herói [certamente, Freyre se refere ao líder daquela seleção, a revolucionária laranja-mecânica, Johann Cruyjff]. Fez-se na Holanda uma mística em torno desse herói. Jogo matematizado, admita-se que
sim; mecanizado; coletivizado. Mas sem lhe faltar a singularidade, o personalismo, o culto de um herói”. A essa altura, poderíamos nos indagar qual seria, então, para Freyre, o jogador brasileiro que melhor representa a síntese das características próprias do nosso estilo de jogar o football association. Bem, o jornalista Lenivaldo Aragão, do Jornal do Commercio, de Pernambuco, fez essa pergunta, em 1983, e obteve uma resposta que vale a pena reproduzir aqui por inteiro: “Quem eu creio que foi um grande acrobata, o que é até um paradoxo, já que ele era quase aleijado, foi Garrincha. Você vê que Garrincha tinha momentos em que dançava mais do que Pelé. E dançava com as pernas tortas. Ele tinha lances de bailarino, eu acho que ainda não houve uma justa avaliação de Garrincha. Acho que é preciso que haja uma grande história do futebol brasileiro, escrita por alguém que saiba escrever literariamente, que entenda o jogo e que se informe sobre fatos históricos, sobretudo, sobre essa transição. Um jogo que começou elitista. Os rapazes ricos que iam à Europa trouxeram a novidade e só sabiam jogar imitando os ingleses, estes elitistas. Daí, o jogo, numa transição magnífica que honra o Brasil, passa a ser um jogo quase contrário ao jogo originalmente inglês. Passa a ser um jogo de grande mobilidade. O jogo inglês é quase parado, paradoxalmente. Viva tantas combinações, que é um jogo de cooperação. Quase não admite a competição, enquanto o futebol brasileiro é competitivo e é aberto, permitindo improvisações. Com essa transformação, o vitorioso, o grande vencedor foi o Brasil, foi o povo brasileiro. É um jogo popular. Tudo está bem contido no caráter, no temperamento, nas vocações do brasileiro” (27). Como se vê, apesar de tratar “apenas” do futebol em artigos, alguns de jornais e revistas, e em uma entrevista, Freyre desenvolve argumentos expostos em suas principais obras para dar sustentação a algumas de suas teses. Por exemplo, em Sobrados e Mucambos, de 1936, ele já afirmara “que os descendentes dos bailarinos da navalha e da faca como que se vêm sublimando nos bailarinos da bola, isto é, da bola de football […]”, e segue ali fazendo mais referência ao dionisíaco Lêonidas da Silva. Nesse sentido,
Gilberto Freyre, Interpretação do Brasil: Aspectos da Forma- ção Social Brasileira como Processo de Amalgamento de Raças e Culturas, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 182-4. Em suas memórias de torcedor, o inglês Nick Hornby afirma que ficou assombrado ao ver o Brasil jogar contra a Tchecoslováquia, na Copa do Mundo de 1970, no México, a primeira que pôde ser assistida ao vivo por quase todos os cantos do planeta, não só pela “qualidade do futebol” apresentado, mas “pelo jeito com que [os jogadores brasileiros] encaravam as firulas mais engenhosas e desconcertantes como se fossem tão funcionais e necessárias quanto um tiro de escanteio ou um lateral”. Tendo aquele time provocado, em todos, “uma espécie de ideal platônico” jamais superado (Febre de Bola, Rio de Janeiro, Rocco, 2000, pp. 36-7). 24 Em 1978, essa discussão reaparece, por exemplo, nos artigos de Jacob Klintowitz, “A Implantação de um Modelo Alienígena Exótico e Outras Questões Pertinentes: a Seleção Brasileira de Futebol – 1978”, e de Joel Rufino dos Santos, “Na CDB até Papagaio Bate Continência”, publicados em Encontros com a Civilização Brasileira, n. 5, 1978, pp. 99-129. 25 Gílson Gil, “O Drama do ‘Futebol-arte’: o Debate sobre a Seleção nos Anos 70”, in Revista Brasileira de Ciênciais Sociais, 9(25), São Paulo, Anpocs, 1994, pp. 100-9. 26 Gílson Gil, “O Drama do ‘Futebol-arte’: o Debate sobre a Seleção nos Anos 70”, in Revista Brasileira de Ciênciais Sociais, 9(25), São Paulo, Anpocs, 1994, pp. 100-9. 27 Aqui, é simbólico – e de seu ponto de vista justificável – que Freyre tenha escolhido Garrincha como síntese do nosso estilo de jogar o futebol. Ademais, é interessante observar que se trata de um descendente de índios fulniôs, de Pernambuco, de onde eram seus bisavós. Já seu avô casou-se com uma “filha de um negro escravo com outra índia”. Finalmente, antes de migrar para o Rio de Janeiro, o pai de Garrincha, Amaro, casou-se com uma “mulata magra e clara” (ver Ruy Castro, A Estrela Solitária: um Brasileiro Chamado Garrincha, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 7-16). 28 A citação é da edição desse livro incluída em Intérpretes do Brasil (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000, p. 1.253), publicado sob a coordenação, seleção de livros e prefácio de Silviano Santiago. Nas notas do autor à segunda edição de Ingleses no Brasil, originalmente publicada em 1948, também há referências ao “dionisíaco” futebol brasileiro, praticado pelos “dançarinos da bola”, em contraste ao “apolíneo” futebol anglo-saxão, e ao abrasileiramento do foot-ball association. 22 23
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vê-se que Freyre, tão remotamente, já apontava as características do estilo brasileiro de jogar futebol, que, só mais tarde, nos acostumamos a chamar de futebol-arte. FIM DE JOGO
(CONSIDERAÇÕES FINAIS)
No momento em que “a pátria em calções e chuteiras”, como queria Nelson Rodrigues, novamente exorciza o “complexo de vira-lata” do brasileiro e ratifica nossa condição de “reis do futebol”, conquistando, pela quinta vez, a Copa do Mundo, o país volta a discutir sobre se há ou não um estilo tipicamente brasileiro de jogar futebol e se tal estilo é ou não a razão maior de nossa supremacia nesse esporte. Da mesma forma, também se debruça sobre a possível relação entre tal estilo e o componente negro de nossa cultura. Muitos consideram essa tese datada (no que têm razão, mas aqui já não cabe mais – literalmente – discuti-la, até porque também não era o propósito deste ensaio). Entretanto, para citar um exemplo da atualidade da discussão, pode-se perguntar: o que esteve por trás do sucesso da seleção francesa (campeã do mundo em 1998, campeã da Europa em 2000 e primeira em todos os rankings de seleções até a última copa do mundo), senão seu caráter verdadeiramente multirracial/multicultural – e por isso tão contestada pelo líder da extrema direita francesa, que não a considera(va) uma representação daquele país? Apesar do recente
fracasso, o sucesso anterior do futebol francês, até então apenas coadjuvante em copas do mundo, não foi tomado por obra do acaso, mas o futebol jogado por aquele selecionado já foi tido (aqui e acolá) como eficiente e… espetacular – no sentido de espetáculo, de vistoso, de artístico. O mesmo pode-se dizer, agora, de um de seus principais algozes, o selecionado de Senegal. Em contrapartida, no que diz respeito aos brasileiros, talvez resida exatamente no abandono do nosso estilo de jogar, como o caracterizava Freyre, uma das razões para a relativa marginalização imposta aos jogadores mais criativos, espontâneos, dribladores, bem como para algumas das dificuldades encontradas por nossa seleção nas últimas eliminatórias sulamericanas. Tendência que, felizmente, pode ser abandonada, agora, com o resultado alcançado pela seleção brasileira na Ásia e as performances dos quatro “erres”. Pois, o que se viu ali foi, para surpresa de muitos – dentre os quais me incluo –, o retorno (pelo menos durante a Copa na Ásia) ao passado futebolístico brasileiro, ou seja, a (re)valorização da arte dos jogadores e do futebol brasileiros, enfim, dos nossos craques-artistas, cabendo ao treinador “apenas” dar aos jogadores um sentido de coletivo sempre pronto a oferecer aos indivíduos possibilidades de criar. Ou não foi isso que fez Luiz Felipe Scolari, o “Felipão”, ao conceder liberdade a Rivaldo, livrando-o do fardo de limitar-se apenas a um setor do campo (quer na
meia, quer no ataque), contradizendo todos os técnicos da seleção que já tinham trabalhado com ele até então? Mas, também, a Roberto Carlos, a Ronaldinho “Gaúcho” ou a Ronaldo, todos mais aptos em (e encarregados de) criar que mesmo destruir (por si sós, tais palavras já representam o que se quer, aqui, chamar a atenção). E, assim, em um futebol também globalizado, pasteurizado e homogeneizado os “erres” fizeram a necessária diferença. Assim, nossos dionísios dobraram, mais uma vez, os apolíneos anglosaxões. Nesse sentido, a partida diante da Inglaterra foi emblemática, não só por se tratar daquele país. Mas, em especial, pela jogada de Ronaldinho “Gaúcho” no gol de Rivaldo e o segundo, marcado por ele. Antes que o juiz dê o jogo por encerrado (e voltando ao “inventor” do futebolarte do ponto de vista sociológico), é necessário ainda uma última palavra dirigida aos meus pares acadêmicos: ao apontar a maneira como Gilberto Freyre tratou da influência da cultura negra sobre um esporte de origem anglosaxônica, tal e qual hoje se pratica e se acompanha mundo afora, espero ter deixado claro a importância que o tema deve assumir para os que querem interpretar e/ou compreender a cultura brasileira e o papel desempenhado por Freyre na construção teórica desse estilo de jogar o chamado “esporte bretão” no Brasil, sem que, para tanto, seja necessário qualquer forma de adesão às suas teses sobre as relações entre diferentes raças ou mesmo entre culturas distintas. g
Não esqueçamos dos estudos sobre a capoeira, em especial o de Heloísa Turini Bruhns, Futebol, Carnaval e Capoeira (São Paulo, Papirus, 2000), e aqueles que relacionam a maneira do brasileiro jogar futebol à própria capoeira. 30 Muitas são as referências às posições do líder da extrema direita francesa, Jean-Marie Le Pen, a esse respeito, desde a Copa do Mundo de 1998, disputada na França. Entretanto, para que se tenha uma idéia do que se afirma acima, basta ler a reportagem “Futebol – Jogo França Emigrante x Senegal Imigrante Desagrada a Líder Extremista”, que tem o subtítulo “Abertura do Mundial seria outra no mundo de Le Pen”, do jornalista Lúcio Ribeiro, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em 28/4/2002 (p. D2), em seu caderno Esporte. Na mesma linha vai o artigo “Com Le Pen, França não Teria Sele- ção”, de Zeca Marques, em que ele mostra que, dos titulares, apenas três são de origem francesa, e reproduz esse comentário de Le Pen, de 1998: “metade desses atletas não sabe nem cantar o hino nacional” (ver a página eletrônica http:// pele.uol.com.br/copa2002/ copa. asp? NoticiaId+45490). 31 O que se aponta diz respeito às quatro linhas, é claro, pois fora delas os problemas são ainda maiores e de outra natureza, não cabendo, aqui, discuti-los. A esse respeito pode-se ler Aldo Rebelo e Sílvio Torres, CBF-Nike (São Paulo, Casa Amarela, 2001), onde, conforme está estampado na própria capa do livro, os autores-deputados tratam das “investigações da CPI do Futebol da Câmara dos Deputados” que teve, com uma certa dose de otimismo, o objetivo de desvendar “o lado oculto dos grandes negócios da cartolagem” e “passar a limpo o futebol brasileiro”. Certamente, o primeiro objetivo foi alcançado; o segundo ainda está por ser colocado em prática. Outra valiosa leitura sobre o tema é o livro de Jaime Sautchuck, Os Descaminhos do Futebol (Brasília, Verano, 2001). 29
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HISTÓRIA UM PERNAMBUCANO DA PARAÍBA: FERNANDO COELHO José Octávio de Arruda Mello (Especial para a revista GENIUS)
A conversa – por que não dizer? – fluiu bastante animada. Éramos uns seis ou oito cidadãos, entre os quais eu e o colega Jean Patrício, o pernambucano J.P. Araújo, da área de História do Direito, acompanhado do filho, igualmente atencioso, o vice-prefeito de Olinda, Arlindo Siqueira, uma senhora que não demorou muito e mais uns dois outros que não gravei. Embora respeitosos e em voz baixa, conversávamos sobre questões do Brasil, com relevo para o movimento de 64, e, principalmente, coisas de Pernambuco e da Paraíba. A certa altura, como viessem à baila as derrubadas dos presidentes Fernando Collor e Dilma Roussef, observei que os principais acontecimentos Judiciários desse tipo foram os impeachments de Carlos Luz e Café Filho, para assegurar a posse de Juscelino Kubitscheck, em 1955. Embora viabilizados pela firmeza legalista do ministro Teixeira Lott, como tema do esplêndido O Soldado Absoluto (2º Ed.2006), de Wagner William, esses acontecimentos, presentes ao Perfil Parlamentar do líder pessedista Vieira de Mello (volume 29 Câmara dos Deputados, 1985), valorizaram-se com os debates entre esse parlamentar e o udenista Afonso Arinos de Melo Franco. Como a questão descambou para o Direito Constitucional norteamericano do famoso caso Lutter Versus Boarden, cabia-me sempre consultar a Dra. Lêda Boechat, mestra no ofício. Quando o papo desbordou para Pernam-
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buco, Araújo ressaltou que o clube Auto Esporte do Recife não existe mais e que o antigo matadouro dos Peixinhos foi transformado em centro cultural. Não sei porque o complexo esportivo de Jiquiá, do time de futebol Tacaruna, veio à baila, até que o vice-prefeito de Olinda interveio para sustentar que, nessa cidade, a grande liderança política não foi Germano Coelho, eleito prefeito, mas o irmão Fernando, deputado Federal em 1974 e 78. A colocação, contrária a antiga tese do ex-deputado Eilzo Matos, foi coonestada por Jean Patrício para quem, em 78, os três mais votados no Grande Recife foram Fernando Lyra, Tales Ramalho e Fernando Coelho, o primeiro e o terceiro do MDB, e o segundo da Arena. Lembrei então que se Lyra contava com o Pecezão, de Paulo Cavalcanti e Marcos Cunha, Fernando congregava o antigo Partido Socialista de Osório Borba e Carmita Jungman, além de intelectuais independentes da Universidade. Pode parecer paradoxal, mas tudo isso sobreveio entre as oito e dez horas da manhã de 24 de abril na central de velórios São João Batista, ao pé do esquife do publicista Fernando Coelho que então velávamos. Hirto no caixão, recoberto de flores e coroas, Fernando estava a um passo mas constituía presença tão viva e inspiradora que a neta Clarissa, filha de Maria Arraes, não tardou em se juntar a nós para sentenciar: - Essa conversa está ótima e era exatamente dela que vovô gostaria de participar. De minha parte, vi a hora Coelho, como
o denominava Eilzo, levantar-se do caixão para intervir e comandar. Era exatamente assim que ele fazia na espaçosa sala do apartamento de Antônio Lyra, por ocasião das intermináveis reuniões do grupo José Honório Rodrigues. Lá estivéramos, além de ex-alunos de História do Direito, por mim lecionado no UNIPê, eu e Jean Patrício, como os mais assíduos, Renato César Carneiro, Fernando Duarte Lyra, Amir Gaudêncio, João Ribeiro Filho, Valdir Porfírio, Alberto Sales, Marcelo Melquíades, Otinaldo Lourenço e Yone, Eilzo Matos, Elza Régis e Evandro Nóbrega, como a fina flor do Grupo José Honório. Fernando, que rapidamente se incorporara à grei, apreciava a confraria, sobre a qual assim se pronunciou: Gosto desse grupo porque a gente não paga nada, não tem qualquer compromisso e, vez por outra, ainda vê o nome da gente no jornal. Assim, não fica mal dizer que de 2006 para cá, quando de sua divisão entre o Recife e João Pessoa, o GJHR gravitou em torno de Fernando Coelho cuja participação se estendeu a Campina Grande, para lançamento de livros, APL, nas homenagens a Ivandro Cunha Lima, cine-clube Mirabeau, no filme sobre Otinaldo, e ainda à OAB, UNIPÊ, Assembléia Legislativa, Livraria de Luiz, sebo de Heriberto, e Palácio da Redenção a que compareceu para instalação da Comissão da Verdade, como representante da congênere pernambucana. A base de tudo, porém era o apartamento
de Fernando Coelho onde os debates se sucediam. Que discutíamos lá? Extensa pauta que passava pela igreja de Dom Carlos Coelho e Dom Helder Câmara; papel do Estado na sociedade moderna; melhor maneira de atrair os estudantes em aula; impasses do neoliberalismo; História política do Nordeste; Geografia engajada de Manoel Corrêa e Caio Prado Júnior; Historiografia de Amaro Quintas (professor da maior parte dos intelectuais pernambucanos) e José Honório; Ciência política de Hélio Jaguaribe, Vamireh Chacon e Nelson Saldanha; Antropologia de Mauro Mota e Aécio Aquino: constitucionalismo de Bernardo Cabral e Seabra Fagundes; e as empostações doutrinárias dos principais partidos: PMDB de Ulysses Guimarães e Mário Covas, PSDB de Franco Montoro e Fernando Henrique, PSB de Osório Borba e Pinto Ferreira e PT de Hélio Bicudo e Lula da Silva. Profundamente heterodoxo, não aceitava o tchaterismo de Otinaldo e minha admiração por certo Ex-Presidente, por aproximar-se do Wellfare State dos trabalhistas britânicos e democracia cristã dos italianos de Aldo Moro. Em compensação, quando considerou Agamenon Magalhães e Miguel Arraes os principais políticos pernambucanos do século XX, rendeu-se a minha intervenção para complementar: -É, Manuel Borba pode entrar aí... Historiador de nomeada, Fernando Coelho sabia que, graças à aliança com as massas urbanas do professor Joaquim Pimenta, Borba pode ser colocado nas origens do irredentismo de Agamenon e pré-socialismo de Arraes.
Havia razões para que nos curvássemos às colocações de Fernando Coelho. Uma era sua condição de publicista rigorosamente do Nordeste. Nascido em Campina Grande, graças a tranferência de fiscal de Consumo do pai, urdida por Getúlio Vargas - outra constante de nossas conversas mudou-se para Pernambuco onde estudou e fez carreira. Aí, só não foi Governador, pois aluno do colégio Nóbrega e da Faculdade de Direito, de cuja turma de 1955 foi orador, advogado militante, professor da Universidade Católica, Procurador das Prefeituras de Pelópidas Silveira e Miguel Arraes, três vezes Secretário de Estado deste, tornou-se ainda Presidente Regional da OAB, líder dos PSB e (P) MDB, duas vezes deputado federal e vice líder de bancada do MDB, além de candidato a vice-governador na chapa de Marcos Freire, em 1982, e diretor do Banco do Nordeste. Terminou seus dias como Presidente da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara onde dois volumes do relatório final (2017), por ele coordenados, constituem importante fonte para o estudo da chamada vintena infame em um dos Estados de mais severa repressão. Contra esta, em outras de suas características, envidou todos os esforços, daí porque, sintomaticamente, faleceu a 23 de abril, no dia de São Jorge. Isso porque sempre lutou contra o chamado dragão da maldade de Glauber Rocha, da intolerância e do fanatismo. Homem, também, de grandes amizades, não as subordinava ao plano ideológico. Daí sua afeição a Marco Maciel, a quem chamava Marco Antônio, e também
ao colega de turma Sérgio Murilo Santa Cruz. Contra a candidatura municipal deste, todavia, levantou-se em 1985, quando o governador Roberto Magalhães inventou de rachar o MDB. Fernando Coelho, à semelhança de Arraes e Pelópidas, ficou com Jarbas Vasconcelos, embora, admirador desse, não o considerasse homem de esquerda - “nunca foi”. Esses conceitos, firmes e inabaláveis, chegavam a Fernando Coelho, por uma razão - sua consciência histórica. Por essa respondiam os trinta mil volumes de sua biblioteca e, mais que isso, a consistente obra de História e Historiografia que produziu. Compõem-na, além de pronuncionamentos do mais diverso tipo, seus livros mais densos – Direita, Volver - o Golpe de 64 em Pernambuco (2004, 2012) cuja segunda edição tive a honra de prefaciar, a OAB e o Regime Militar - 1964-1986 (2ª Ed.1999), Golpe de Estado, Ditadura e Guerra Fria (2010) e Tempo de Faculdade e outros tempos: a Faculdade de Direito do Recife, os bacharéis de 1955 e a Luta pela Liberdade (2vols. 2012). Todos esses livros revelam uma constante: a intransigente defesa dos direitos humanos, em face do arbítrio e das ditaduras. Em razão disso é que, com sua imperecível lembrança, a contribuição de Fernando Vasconcelos Coelho não desaparecerá de nossos corações. Tal o que se expressou nos dizeres da coroa de flores idealizada por Jean Patrício, para acompanhá-lo até a eternidade: “Saudades dos que fazem o Grupo José Honório Rodrigues”. g
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UMA BIOGRAFIA TESTEMUNHO PARA OS JOVENS José Nunes
Buscando demarcar a paisagem humana e cidadã de Ernani Sátyro, depois de remexer livros de sua autoria, observar análises literárias sobre sua obra de ficção e vasculhar textos a respeito da sua atuação parlamentar, escolhi duas passagens políticas que estão ligadas ao acervo de minha admiração, que são justamente quando ele, adolescente, estava junto ao pai na posse de João Suassuna em 1924, como presidente da Parahyba e quando, quatro anos depois, representava seu genitor na posse de João Pessoa, em solenidade também no Palácio da Redenção. Mas porque essas duas passagens e não outras aparentemente mais relevantes protagonizadas como ministro, governador e parlamentar, afinal foi um político que ocupou os mais destacados cargos na vida pública brasileira? Justificável minha escolha porque no gesto do seu pai em levá-lo para caminhar nas veredas da política, percebe-se que apontava o sol que mais tarde iluminaria os caminhos que o menino haveria de percorrer. E assim sucedeu, pois ele durante décadas caminhou, sempre se destacando e sendo testemunha de um largo período da história republicana. Todo esse arrodeio é para falar da satisfação de ler e guardar num recanto da
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biblioteca para eventuais consultas o livro ERNANI SÁTYRO – AMIGO VELHO, que o amigo e mestre Flávio Sátiro Fernandes publicou. É uma excelente fonte de pesquisa porque aborda uma longa fase da história política brasileira e paraibana, em particular. Falei dessa importância para Flávio que retribuiu com afetuoso agradecimento, como lhe é característico. O trabalho de garimpagem de Flávio Sátiro sobre Ernani o lemos com prazer. Ele teve o cuidado de evitar o excesso de adjetivação, o que é comum em obras quando se trata de biografia caseira, o que às vezes torna a leitura desagradável. Mas ele comportou-se como deve ser o historiador, sendo fiel às fontes de informações, ele mesmo uma dessas fontes porque com o tio teve convivência quase que diária. Por causa dessa fidelidade, produziu uma obra de intenso valor para o estudo da política paraibana, respaldado em quem protagonizou destacadas cenas no parlamento nacional. Ernani Sátyro foi uma voz acionada para solucionar crises políticas, tinha raízes na fase da redemocratização do país em 1945, e daí em diante tornou-se um destacado como bom representante da Paraíba no cenário nacional.
Também carregava o testemunho de quem presenciou cenas que marcaram o momento político nacional de 1930. Presenciando importantes fases da vida republicana durante mais de 50 anos, ele mesmo integrou o elenco de atores em momentos distintos e relevantes. Ficou conhecido pelo tratamento franqueado aos que dele se aproximavam, chamando-os de “amigo velho”, mas também se destacou nas paisagens da criação literária, como cronista, poeta e romancista. A meu ver, sua obra ainda precisa de estudos mais detalhados. Seus romances “Quadro Negro” e “Mariana” são livros que enriquecem a literatura nacional, mas as universidades estão ausentes do debate da sua obra literária. Flávio Sátyro não confirma, mas Ascendino Leite foi quem falou numa conversa conosco. O autor do Jornal Literário confidenciou que Ernani somente não foi candidato a uma vaga da Academia Brasileira de Letras porque, na ocasião, José Américo de Almeida colocou seu nome como postulante. Seja como político ou como escritor, Ernani Sátyro deixou-nos um testemunho. Um testemunho para os jovens políticos. g
HISTÓRIA MITOS E VERDADES SOBRE BRANCA DIAS Vanderley de Brito Ida Steinmüller (Especial para GENIUS)
Para introduzir o leitor no assunto, é necessário esclarecer que a Inquisição ou Santo Ofício, foi um tribunal eclesiástico instituído na Europa pela Igreja Católica, no começo do século XIII, e persistiu até o início do século XIX, para investigar, julgar e punir acusados de crimes contra a fé católica, pretensos hereges, blasfemos e feiticeiros. As penas eram duras, mas contrariamente ao que se pensa, apenas uma pequena fração do procedimento inquisitorial se concluía com a condenação à morte, a maioria dos processos resultava em cárcere, confisco de bens e retratação pública. A partir do século XV, grande parte desses processos se relacionava ao “crime” de judaísmo, que perseguia principalmente os chamados cristãos-novos, ou marranos, que era como se designavam os descendentes de judeus convertidos ao cristianismo como opção única para poderem continuar vivendo nos reinos católicos. Caso houvesse denúncias de cristãos-novos burlando a regra da conversão, ou seja, ativos secretamente nas práticas judaicas, esses eram levados aos tribunais do Santo Ofício. De modo geral, ao longo da história da Inquisição muitos foram punidos, acusados de se contraporem aos dogmas da Igreja Católica, a exemplo de Joana d’Arc, Giordano Bruno, Galileu Galilei e até o Padre Antônio Vieira. Todavia, no Brasil, um dos nomes mais relacionados a este período obscuro da História foi, sem dúvida, o da cristã-nova portuguesa Branca Dias que, por uma série de fatores, tornou-se personagem lendária na memória coletiva.
O Julgamento de Branca Dias, reconstituíção artística de Vanderley de Brito para Ilustrar o livro História Colonial da Parahyba (2016)
Branca Dias foi um nome que suscitou lendas, de modo que serviu de inspiração para que o guarda-livros, poeta e jornalista José Joaquim de Abreu escrevesse em 1903 um romance em prosa e verso intitulado “Livro de Branca”, que seria uma suposta biografia psicografada, onde afirma que Branca Dias era uma jovem donzela paraibana, filha de cristãos-novos, nascida em 1734, no Engenho Velho do Gramame, atual município de Alhandra, que foi denunciada por judaísmo na Paraíba, presa e remetida a Lisboa, onde foi condenada à morte na fogueira. Esta versão romancista gerada nos albores do século XX foi ganhando outros ares pitorescos por escritores e folcloristas posteriores, como Liberato Bitten-
court, Ademar Vital, Carlos Dias Fernandes, Pe. Nicodemos Neves, José Joffily, Miguel Real, Geraldo Joffily e até o poeta Carlos Drummond de Andrade, que glosou um poema para a personagem. De todo modo, a lenda de Branca Dias se sagrou definitivamente com foros de história real através do dramaturgo Dias Gomes em sua peça O Santo Inquérito, encenada pela primeira vez em 1966. Todavia, igualmente a todas as versões a ela posteriores, Dias Gomes apenas adaptou para o teatro a obra literária de José Joaquim de Abreu. Até os nomes dos personagens foram transpostos literalmente para sua adaptação: Branca, o Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, além do Visitador, o Notário e os guarISSN: 2357-8335
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das, devendo-se ressaltar que essa obra base determinante para a saga de Branca Dias é fictícia em todos seus aspectos. Na verdade, a Branca Dias histórica, desconhecida de todos, segundo o processo constante no Arquivo da Torre do Tombo, era cristã-nova nascida em Viana e moradora em Lisboa, filha de Antônio Afonso e Violante Dias, que era também cristã-nova. Branca era casada com o mercador Diogo Fernandes e foi presa em Portugal no ano de 1543 pela Inquisição, acusada de práticas de judaísmo sendo sentenciada em 02 de abril de 1544 a cumprir abjuração pública e dois anos de cárcere. No entanto, nem chegou a cumprir sua pena completa porque apresentou uma petição ao Santo Ofício em que pediu dispensa do tempo que lhe faltava cumprir, tendo sido a mesma concedida, talvez em razão de ter filhos pequenos para criar, e foi liberta sob as condições de usar o humilhante sambenito (hábito penitencial) e de não sair do Reino. Sendo o Brasil colônia de Portugal, em 1550 a neoconversa veio se exilar em Pernambuco com os filhos, no Engenho Camaragibe, onde já estava seu esposo Diogo Fernandes na condição de degredado. Há fortes indícios de que Branca Dias manteve clandestinamente na sua residência em Camaragibe uma esnoga, que era como se chamavam as sinagogas domiciliares em que os criptojudeus se reuniam para cerimônias e onde se “adorava a toura” (Torah). É importante frisar que, embora Branca Dias tenha sido realmente uma judaizante, no Brasil ela não foi submetida à Inquisição, pois quando o Santo Ofício veio pela primeira vez à colônia da América Portuguesa, em 1593, a criptojudia já era falecida. Portanto, a Branca Dias histórica não ardeu na fogueira da inquisição, provavelmente morreu octogenária e de causas naturais no Brasil. Segundo registros, após o falecimento de seu marido, a judia Branca Dias ainda permaneceu dez anos à frente do Engenho de Camaragibe, o qual em seguida vendeu, mudando-se com os filhos para Olinda, onde, na sua casa à Rua Palhaes, abre uma escola de prendas domésticas para meninas. Branca Dias faleceu por volta de 1588. De todo modo, mesmo já defunta, quando das visitas da Inquisição ocorridas no Brasil entre 1591 e 1595, sob a coordenação do Visitador Geral Licenciado Heitor Furtado de Mendoça, a judia de origem portuguesa ficou muito conhecida devido as
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denúncias de suas evidentes atividades judaizantes no Brasil e, por ter possuído uma escola para moças em Olinda, o visitador da Inquisição convocou várias de suas ex-alunas para depor sobre as práticas que se passavam na casa da antiga mestra. As denúncias revelaram indícios incontestáveis de que no Brasil realmente ela foi uma judia praticante, e como foi o primeiro e inconteste caso de cerimoniais judaicos verificado na Colônia, a história e o nome de Branca Dias ganharam forte repercussão na época. Nas denúncias, todas posteriores à sua morte, conforme o processo nº 5736 con-
Uma das 68 páginas do processo de Branca Dias constante no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa.
tra Branca Dias, constante nos arquivos da Torre do Tombo, algumas de suas conhecidas e alunas relatam que, na sexta-feira à tarde, ela mandava lavar e esfregar o sobrado e trocava a roupa de cama em preparação para o sábado, quando não trabalhava e, pela manhã, “se vestia com camisa lavada e apertava a cabeça com seu toucado lavado”, vestia os filhos com o melhor vestido que tinham, jantava “mais cedo que nos outros dias e chamava acima do sobrado as ditas suas filhas e todos iam então jantar com ela, sempre uma iguaria que nunca comiam”. Nessa primeira visitação se buscaram os descendentes de Branca Dias e uma filha dela, Brites Fernandes, que era retardada, foi a primeira vítima presa em Olinda em 25 de agosto de 1595 e enviada para
Lisboa, onde deu entrada nos cárceres da Inquisição. Nos autos, é descrita como “débil mental e aleijada”, tendo começado a confessar suas “culpas” em 03 de dezembro de 1597, submetida à “câmara de tormento”. Em 31 de dezembro de 1598, foi sentenciada a “ir ao Auto de Fé, abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais, além de confisco de bens”. Em consequência de seus depoimentos, outros filhos e netos de Diogo Fernandes e Branca Dias também foram processados na época, mas nenhum sofreu pena máxima. De qualquer modo, a fama do caso cresceu com o tempo, pois, como já observava Rodolpho Garcia, “de todos os cristãos-novos de Pernambuco, nenhuns foram mais acusados perante a mesa do Santo Oficio do que Branca Dias, seu marido Diogo Fernandes e suas filhas por cerimônias judaicas”. A tendência de transformar fatos em lendas é inerente da humanidade, mas, muitas vezes, é difícil identificar os parâmetros que conduziram à lenda, pois geralmente o mito está relacionado a uma série de fatores. Não temos como ser enfáticos, mas acreditamos que a lenda de Branca Dias começou a ser urdida no imaginário popular a partir do século XVIII, quando a Inquisição voltou a atuar no Brasil. Logicamente, quando os inquisidores retomaram o exercício para dar seguimento aos trabalhos interrompidos do Santo Ofício no Nordeste do Brasil, por causa da invasão holandesa, analisaram a documentação da primeira visita, onde encontraram o caso de Branca Dias e resolveram que este processo seria o ponto de partida para a nova investigação, desse modo, novamente procuraram os descendentes, ou aqueles de algum modo supostamente ligados a judaizante e os submeteram a interrogatórios. Neste contexto também circulou o rumor de que os ossos de Branca Dias teriam sido exumados e levados de Pernambuco para serem queimados em auto-de-fé a mando do Santo Ofício. É possível que isso tenha ocorrido, pois não era incomum a Inquisição proceder a essas penalizações póstumas, mas mesmo que fosse apenas um rumor, por si só, esse imaginário já demonstra que o nome de Branca Dias havia voltado à baila com toda força após quase cem anos da primeira visitação. Certamente, sob a influência das narrativas aterrorizantes relativas às bizarras atrocidades da Inquisição, o nome de
Branca Dias foi conservado na memória como símbolo do terror antissemita, pois a partir do século XVIII até o século XIX, quando a Inquisição se fez muito presente no Brasil, qualquer um que tivesse a mínima ou mesmo suposta ligação com o nome de Branca Dias deveria ser investigado. Naturalmente seu caso despertou fábulas que foram ganhando novos elementos imaginativos, tendo virado senso comum que o nome do Riacho do Prata, no subúrbio de Dois Irmãos, no Recife, se deveria ao fato de que, quando da chegada da Inquisição, Branca teria lançado nele suas joias. Com base nesse lendário em torno de seu nome, em 1879 foi publicado o drama histórico intitulado “Branca Dias de Apipucos”, escrito por Joana Maria de Freitas Gamboa, ambientando a saga da cristã-nova como uma Joana d’Arc nordestina no contexto da Guerra dos Mascates, ocorrida entre 1710 e 1711 em Pernambuco. Porém sabemos que a mesma já era falecida há mais de cem anos antes dessa revolução, ou seja, perdurava na consciência coletiva a Branca Dias mitológica, pois a personagem histórica se perdera na bruma do tempo, estava oculta entre os empilhados de processos amarelecidos do Tribunal da Santa Inquisição. De qualquer modo, até então, portanto, a figura de Branca Dias estava relacionada apenas ao Recife, onde viveu por anos, e também a Olinda onde faleceu, e não se sabe ao certo o que conduziu a saga de Branca Dias para a Província da Paraíba. Certo é que já em meados do século XIX o mito da judia já figurava transposto para a Paraíba, pois Irenêo Joffily escreveu em artigo no jornal A União em 1901 dizendo que: “há quarenta anos, quando fazia o meu curso de preparatórios na cidade do Recife, ouvia frequentemente entre os colegas, e em reuniões familiares, pronunciar o nome Branca Dias, célebre paraibana de raça judia e vítima da Inquisição. A Paraíba é a terra de Branca Dias, os paraibanos descendem de judeus, não comem toucinhos, etc., dizia-se geralmente nessas ocasiões, pilheriando com os filhos desta terra”. Mas vale salientar que mais de vinte anos antes desta menção de Irenêo Joffily, o também paraibano Maximiano Lo-
pes Machado já havia publicado crônicas sobre a fama de Branca Dias pertencer a uma família importante da Paraíba e ter sido executada em Lisboa. Machado certamente agora irá se revirar no túmulo, mas devemos dizer que ele era dado ao imaginativo típico do positivismo novecentista e seus registros não são inteiramente dignos de crédito histórico, de
1978, cena da peça "O Santo Inquérito", de Das Gomes, com Regina Duarte, no papel de Branca Dias.
modo que acreditamos que foi ele quem forjou o mito da Branca Dias paraibana. Observem como Machado, autor da História Provincial da Parahyba, se refere quando trata sobre o fato (para ele inconveniente) de não haver o nome de Branca Dias na lista dos investigados pela Inquisição no Nordeste brasileiro: “Se não desapareceu com as listas, é bem provável que á este arbítrio se deva a omissão do nome da formosa e gentil donzella Branca Dias, que a tradição de mais de um século refere como sendo arrebatada aos desoito annos de edade do regaço materno para ser arremeçada aos carceres negros dos Estáus em Lisboa. Não lhe valeram formosura, innocencia, família, lagrimas, nem a consternação d´estranhos, para desapparecer, depois do supplicio da corda, na fogueira expurgatoria da Inquisição, como as duas infelizes relaxadas em carne, Guiomar Nunes e Isabel Henriques! Quaes seriam as culpas de Branca
Dias naquellae dade de innocencia e de amor? Não se sabe, porque os processos da justiça eram feitos de conformidade com a sentença que se pretendia dar”. 1 É fácil observar que todos os elementos da Branca Dias que se acha nos textos ficcionais e românticos posteriores estão listados neste parágrafo de Machado: “donzela”, “formosa”, “gentil”, cheia de “inocência” e “amor”. Maximiano Machado nasceu na Paraíba, mas foi criado no Recife, foi um jovem idealista e romântico que publicou seu primeiro livro (A História da Revolução Praieira) aos 30 anos, em 1851, rebelião em que participou ardorosamente das batalhas de campo, mas sua obra História da Província da Parahyba, embora tenha sido publicada em 1912 (bem depois sua morte), já estava escrita em 1887 e vinha sendo comentada nos meios intelectuais pernambucanos. Machado gostava de enaltecer a Paraíba, sua terra natal, e é provável que quando garoto tenha ouvido no Recife alguma versão do mito de Branca Dias e ao estudar a presença da inquisição no Nordeste, não encontrando o nome de Branca Dias nos autos, mas encontrando duas outras paraibanas remeteu a lenda para a Paraíba, mesmo sem apresentar qualquer documento. De fato, o historiador Irineu Ferreira Pinto, outro paraibano que passou cinco meses pesquisando arquivos na Torre do Tombo, em Lisboa, registra apenas uma pessoa condenada à fogueira da Capitania da Paraíba, que foi a cristã-nova Guiomar Nunes, de 37 anos, casada com Francisco Pereira, filha de Pernambuco e moradora no Engenho Santo André, nessa capitania, acusada e condenada por “convicta negativa e pertinaz”, tendo sido queimada em Lisboa em outubro de 1731 pelo Tribunal do Santo Ofício. A lista levantada na Torre do Tombo também aponta outra judaizante na Paraíba, Isabel Henriques, uma cristã-nova solteira, de 41 anos, natural de Portugal, que morava no Engenho Velho do Gramame, também na Paraíba, e foi condenada a cárcere e hábito penitencial perpétuo, e não relaxada em carne, como quis Machado. Cremos que foi daí que o mito da Branca Dias paraibana começou, pois, como não houve nenhum caso de mulher sentenciada em Pernambuco, nem tampouco há registro
Foi mantida a grafia original.
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de uma Branca Dias na lista dos judaizantes dessa capitania, estas duas condenadas da Paraíba serviram de esteio para estabelecer a lenda da Branca Dias paraibana. Observe-se que a Isabel Henriques morava exatamente no engenho onde o romance de José Joaquim de Abreu, publicado em 1903, tomou para estabelecer a morada de Branca Dias. O folclorista pernambucano Francisco Augusto Pereira da Costa diz a Irenêo Joffily que o auto-de-fé de Branca Dias estava registrado em quadro no convento franciscano da Paraíba. A esse respeito também, em princípios do século XX o historiador Liberato Bittencourt, diz que no final do século XVIII um frei de nome Joaquim de Santa Júlia pintou um grande quadro de madeira retratando Branca Dias na fogueira e que a obra esteve colocada na sala da portaria do dito convento, até que o bispo da Parahyba (antigo nome da atual cidade de João Pessoa) mandou serrá-lo para que a madeira fosse empregada nos degraus da escada ali construída. Convenientemente, é muito difícil apurar essa história, de certo é folclórica também, mas talvez daí veio a inspiração a José Joaquim de Abreu para que seu personagem Augusto Coutinho, o suposto noivo da “formosa donzela” Branca Dias, tivesse sido torturado e morto nos “negros subterrâneos do convento de São Francisco”. Sob a pretensão de estar escrevendo uma biografia psicografada da Branca Dias, o romance de José Joaquim de Abreu é enfático e detalhista em tudo, de modo que sua ficção parece descrever fatos reais. Vejam um trecho dessa obra, puIdem
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blicada pela Ltp. e Lith a vapor, na cidade da Parahyba em1903: “Historicamente quem foi Branca Dias? Uma victima da Inquisição. O poder jesuítico arrancou-a aos seos, à sua pátria riqueza, e lançou-a nos carceres do Sancto-officio, em Lisboa, e, de tão lugubre erastulo, às chamas da fogueira! 20 de Março de 1760, 6 horas da tarde”.2 Na crueza dos fatos, o certo é que a verdadeira Branca Dias em nada se assemelha à personagem lendária pintada por José Joaquim de Abreu nem nenhum daqueles romancistas que o seguiram. Não era uma “donzella de desoito annos de edade”, pois quando veio de Portugal para o Brasil já tinha sete filhos e no Brasil, segundo depoimento oferecido em 1584 por Maria Lopes: “a ditta Branca Dias diziam que paria cada anno e algumãs vezes dous de hum parto”. Não foi queimada pela Inquisição porque quando a Inquisição chegou ao Brasil pela primeira vez ela já havia morrido de causas naturais; não nasceu em 1734 porque seu caso no Brasil foi analisado em princípios do século XVII; não morava na Paraíba, mas sim em Camaragibe e Olinda, e nem tampouco era inocente sobre as possíveis consequências de suas práticas de judaísmo, pois já havia cumprido pena por essas práticas em Portugal. Portanto, a Branca Dias lendária foi uma criação do imaginário popular urdida a partir do século XVIII em Pernambuco por causa de seu nome figurar como representativo elemento de busca do Santo Ofício, e o mito foi ganhando novos adereços decorativos, como é comum aos mi-
tos, que foi absorvido no campo artístico como apelativo romântico e moral. Todavia, é fato que desde tempos bem anteriores ao cristianismo que os semitas sofrem perseguições e discriminação no mundo. Tudo começou quando foram escravizados pelos egípcios no século XIII a. C., em seguida por Nabucodonosor, em 598 a. C., com a destruição e saque do templo de Jerusalém e a deportação do povo israelita para a Babilônia. Depois, em 70 d.C., os romanos destruíram Jerusalém e se deu a diáspora dos judeus pela Europa, onde durante toda a Idade Média e Renascença a Inquisição massacrou o povo de Abraão. Em seguida, no século XX, se deu o massacre antissemita dos nazistas, quando estima-se que seis milhões de judeus foram exterminados nos campos de concentração. Até hoje os judeus sofrem ataques de intolerância por palestinos e árabes na faixa de Gaza e na França, que tem a maior comunidade judaica da Europa, com cerca de 550 mil pessoas, além de sofrerem constantes insultos públicos, como ocorrido recentemente no cemitério judaico de Quatzenheim, situado no leste da França, que teve inúmeras lápides pichadas com suásticas. Nesse cenário perene de intolerância e barbárie contra os seguidores de Moisés, a verdadeira Branca Dias, embora não seja a jovem inocente e donzela exaltada na poética romântica, foi uma verdadeira heroína e exemplo de intrepidez por preservar a cultura judaica numa época de graves preconceitos e atrocidades contra os judeus no mundo católico, de modo que seu rabinato feminino no Brasil simboliza a resistência milenar da cultura judaica. g
GENEALOGIA ASCENDÊNCIAS GENEALÓGICAS DO PROFESSOR CORIOLANO DE MEDEIROS Manuel Henrique da Silva (Né Marinho)
CAPÍTULO I O português Pedro Ferreira Neves, conhecido por Pedro Velho, viúvo, morador em Mamanguape (Paraíba), veio para Santa Luzia, na primeira metade do século XVIII, a convite de seu filho Geraldo Ferreira Neves Sobrinho, detentor de grande fortuna que herdara de seu tio Geraldo Ferreira Neves, por força de um testamento que o mesmo lhe fizera, instituindo-o seu único e universal herdeiro, situando-o no lugar “Cacimba da Velha” Aí, em combate contra os indígenas, Pedro Ferreira Neves recebeu um ferimento, do qual foi tratado por um índio e sua família, seus aliados. Restabelecido que fosse, por uma gratidão ou porque se apaixonara, Pedro Ferreira Neves casou-se com uma filha do homem que o tratara, a qual na pia batismal recebeu o nome de Custódia e passou assinar-se por Custódia de Amorim Valcaçar, tendo deste casamento nascido uma filha que se chamou Antônia de Morais, que se casou com o português Manuel Fernandes Freire, uma das principais pessoas do Vale do Sabugi, tendo nascido deste último casamento dez (10) filhos, sendo três (3), homens e sete (7) mulheres, as tradicionais sete irmãs da Cacimba da Velha. OS DEZ FILHOS FORAM: I - José Fernandes, que se casou com uma moça da família Freitas, de São Miguel de Jucurutu, Estado do Rio Grande do Norte, cuja descendência formou a família Fernandes de Freitas, de Malta (Pombal). II – Cosme Fernandes, que se casou com Sebastiana Dias de Araújo, irmã de Estevam Dias de Araújo, cuja descendência ocupou o lugar “Cacimbinhas” e parte de Várzea, no município de Santa Luzia, neste Estado da Paraíba. III – Manuel Fernandes, não se casou, portanto, não deixou descendência. IV – Joana Batista, que se casou com o português José Tavares da Costa. A descendência desse casal originou parte da família de Várzea, no município de Santa Luzia e partes de Desterro e Barra
de Pau-a-pique, no Estado do Rio Grande do Norte. V – Antônia de Morais Filha, que se casou com o português Sebastião de Medeiros Rocha, a contragosto deste, que se dizia nobre, mas não pôde resistir à imposição de um poderoso membro da família Ferreira Valcaçar. Deste casal originou-se a família de São Domingos, Cacimba da Velha e grande parte do Seridó. VI – Apolônia Barbosa, que se casou com o português Rodrigues de Medeiros Rocha, irmão do precedente, cuja descendência originou a família de São Roque e grande parte do Seridó, no Rio Grande do Norte. VII – Margarida Freire, que se casou com José Camelo Ferreira, cuja descendência originou a família de Cordeiro, nos municípios de Caicó e São João do Seridó, Estado do Rio Grande do Norte, de quem descende o deputado Francisco Souto. VIII – Catarina Freire, que se casou com o seu tio Geraldo Ferreira Neves Sobrinho, que já se encontrava em acentuada decadência econômica; a descendência desse casal se irradiou para Teixeira, Cabeça do Boi e Pocinhos. IX – Maria da Conceição Valcaçar, que se casou com Cosme Gomes de Oliveira, cuja descendência ocupou o lugar Poço Redondo, no município de Santa Luzia, irradiando-se, depois, para as Espinharas, município de Patos e para Gravatá, no Estado de Pernambuco. X – Ana de Amorim Valcaçar, que morreu solteira, sem deixar descendência. CAPÍTULO II Sebastião de Medeiros Rocha, filho do Alferes Manuel de Matos e de sua esposa D. Maria de Medeiros Pimentel, todos da família Medeiros, da Ilha de São Miguel, em Portugal, casou-se, - como ficou dito – em Santa Luzia, com Antônia de Morais Filha e deles nasceu Sebastião de Medeiros Rocha Júnior, que se casou, a primeira vez, com Maria Leocádia da Conceição. Deles nasceu Manuel Antônio de Medeiros (mais conhecido por Manuel Antônio Gancho, em virtude de um defeito que tinha em um
dedo de um dos pés), que se casou duas vezes, a primeira com Inácia e a segunda com Córdula, ambas filhas de João de Morais Rocha, natural do Cariri Velho, e de sua esposa D. Antônia de Morais Neta. De Manuel Antônio de Medeiros e uma de suas esposas nasceu Francisco Herculano de Medeiros, primeiro tabelião público de Patos, que se casou com Maria Joana da Silva. Deles nasceu Aquilino Coriolano de Medeiros, que se casou com Joana Maria da Conceição, pais de João Rodrigues Coriolano de Medeiros (Professor Coriolano de Medeiros) que se casou com Eulina de Medeiros Rolim, viúva do Dr. Joaquim Rolim, havendo desse casal um filho, Romualdo Rolim, alto funcionário do Estado, há pouco tempo aposentado. CAPÍTULO III Cosme Soares de Brito casou-se na Bahia com Madalena de Castro e foram os pais de Maria da Conceição Mendonça , que se casou com o português Tomás de Araújo Pereira que veio da Paraíba no começo do século XVIII e se localizou na fazenda São Pedro, município de Acari, Estado do Rio Grande do Norte. Do português Tomás de Araújo Pereira e sua primeira esposa D. Maria da Conceição Mendonça, nasceu Ana de Araújo Pereira, que se casou com Antônio Paes de Bulhões, de Ipojuca, Pernambuco, filho de Manuel Vieira da Costa e D. Maria Paes de Bulhões. De Antônio Paes de Bulhões e sua esposa Dona Ana de Araújo Pereira, nasceu Maria Leocádia da Conceição, que se casou com Sebastião de Medeiros Rocha (Junior); deles nasceu Manuel Antônio de Medeiros, que se casou duas vezes, a primeira com Inácia e a segunda com Córdula; dele e uma de suas esposas nasceu Francisco Herculano de Medeiros, que se casou com Maria Joana da Silva; deles nasceu Aquilino Coriolano de Medeiros, que se casou com Joana Maria da Conceição; deles nasceu o professor Coriolano de Medeiros. CAPÍTULO IV Os irmãos comandante José Raimundo VieiISSN: 2357-8335
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ra da Silva, casado com D. Clemência Alves de Melo, Cosme Vieira da Silva, casado com sua prima D. Josefa da Silva, e João Alves Vieira da Silva, casado com a índia Cosma de Freitas, naturais do Icó, Estado do Ceará, vieram para a ribeira das Espinharas em era não conhecida, os dois primeiros como administradores das terras e vaqueiros das fazendas de gado do Barão de Aquiraz, que depois as compraram com todos os seus pertences: terras, benfeitorias, rebanhos e acessórios necessários às suas manutenções, sendo que o comandante José Raimundo ficou com as terras e fazendas de gado da Lagoa, tudo neste município de Patos. João Alves Vieira da Silva estabeleceu-se com fazendas de gado no lugar Bom Jesus ignorado se como vaqueiro ou proprietário, também neste município. De Cosme Vieira da Silva e sua esposa, Dona Josefa Vieira da Silva, nasceu Maria Joana da Silva, que se casou com o Professor Francisco Herculano de Medeiros; deles nasceu Aquilino Coriolano de Medeiros, que se casou com Joana Maria da Conceição; deles nasceu o Professor Coriolano de Medeiros. CAPÍTULO V Ascendência materna do Professor Coriolano de Medeiros Francisco José da Silva casou-se com Antônia, conhecida por Dodô; deles nasceu Helena, que se casou com José de Oliveira Ledo; deles nasceu Joana Maria da Conceição, que se casou com Manuel Rodrigues; deles nasceu Joana Maria da Conceição, que se casou com Aquilino Coriolano de Medeiros; deles nasceu João Rodrigues Coriolano de Medeiros (Professor Coriolano de Medeiros) que se casou com Eulina de Medeiros Rolim. CAPÍTULO VI Biografia e história João Rodrigues Coriolano de Medeiros (Coriolano de Medeiros) nasceu terça-feira, trinta de novembro de mil oitocentos e setenta e cinco (1875) (ano de forte inverno), no lugar Várzea das Ovelhas, que fica entre as fazendas Santo Estevam e Cipó, tudo neste município de Patos, filho legítimo de Aquilino Coriolano de Medeiros e sua esposa Dona Joana Maria da Conceição. Quando o guri estava com dois anos, apenas, seus pais emigraram forçados pela famigerada seca de setenta e sete (77), indo pairar na província da Paraíba, hoje cidade de João Pessoa, capital do Estado. Pouco tempo depois da chegada dessa família àquela província, o seu chefe Aquilino Coriolano de Medeiros adoeceu de sezão, do que veio a falecer, tendo a sua viúva, Dona Joana Maria da Conceição, contraído segundas núpcias com o Sr. Vitorino da Silva Coelho Maia, a quem diz Coriolano tudo dever. Quando Coriolano atingiu a idade escolar, ingressou numa escola particular dirigida pelo professor Antônio Ribeiro Guimarães, onde faz o curso primário. Em seguida, matriculou-se no Lyceu
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Parahybano, onde também diplomou-se no ano de mil oitocentos e noventa e hum (1891). No ano seguinte (1892) rumou para Recife onde matriculou-se na Faculdade de Direito, não tendo porém se bacharelado, ficando no terceiro (3º) ano de Direito. Deixando os estudos em Recife, cuidando então de fazer pela vida, primeiramente no comércio, depois conseguiu um emprego com o Mons. Valfredo Leal, ao tempo, governador do Estado. Foi professor, caixeiro viajante, jornalista, membro da Academia Paraibana de Letras e ainda autor de várias obras importantes, entre elas o Dicionário Corográfico da Paraíba, o romance Manaíra e o livro denominado Sampaio, além do drama Tesouro da cega, O Barracão, Tambiá de minha infância e Mestres que se foram, a revista Felipeia e Passando a festa. CAPÍTULO VII Conto a história que segue porque de um certo modo ela interessa ao presente trabalho, como veremos em seu curso. O português José Simões dos Santos foi encontrado em território do Piauí, no tempo colonial, na adolescência, vagante, pelo comprador de bois Sebastião de Medeiros Rocha (25) o qual, reconhecendo nele uma certa aptidão para o traquejo de gado, o convidou para acompanhá-lo, no que ele acedeu. Chegando o boiadeiro com o menino em sua fazenda, denominada Cachoeira, município de Santa Luzia do Sabugi, do Estado da Paraíba, a qual fica ao norte da cidade, umas duas léguas, mais ou menos, pelo rio Quipauá abaixo, aí acabou de criá-lo. Quando o português José Simões chegou à idade adulta, morre a esposa de Sebastião de Medeiros Rocha (Junior), D. Maria Leocádia da Conceição, filha de Antônio Paes de Bulhões e sua esposa, D. Ana de Araújo Pereira, tendo o viúvo contraído segundo casamento com Viturina Freire, filha de Cosme Fernandes Freire, irmão das sete (7) irmãs da Cacimba da Velha e de sua esposa, D. Sebastiana Dias de Araújo, irmã do português Estevam Dias de Araújo. Quando ela (Viturina) deu à luz o primeiro filho, sua irmã Joana Batista de Araújo, conhecida por Joana Curta ou Joana Cotó, mulher baixa, louca e meio andeja, veio tratá-la durante o resguardo, quando se enamorou do português José Simões. Chegando isto ao conhecimento das camaradas de Joana Curta, elas criticaram-na, dizendo: como é que você vai casar-se com um rapaz que não tem uma calça? Ela respondeu: “isto é o menos, quando eu chegar em casa, fio um pouco de algodão crioulo que deixei lá e mando tecê-lo no Barbosa de Baixo e quando o pano vier eu farei uma calça para ele e nós casaremos”. E foi o que efetivamente se deu; tiveram a sua morada no sítio do pai adotivo de José Simões, ainda existindo nela vestígios de sua casa, como sejam: pedaços de tijolos, de telhas e de cacos de pratos de louça inglesa e tiveram numerosa família composta de dez (10) filhos, sendo cinco (5) homens e cinco (5) mulheres, os quais foram:
Antônio Simões dos Santos, que foi casado com Antônia Alves, filha de Joaquim Alves, do Cabaço.José Simões dos Santos Filho, que foi casado com Ana de Morais, filha de João de Morais Rocha, natural do Cariri Velho e de sua esposa, D. Antônia de Morais Neta, Manuel Simões dos Santos, que se casou com Joana Simões, filha do velho Maniné, de São Roque. Caetano Simões dos Santos, que se casou com Antônia Bezerra do Sacramento, filha do português Miguel Bezerra da Ressurreição e sua terceira (3ª) esposa D. Maria Bezerra Cabral de Carvalho. Francisco Simões dos Santos, que é ignorado se casou ou não e se deixou família. Quem souber informar alguma coisa a este respeito pode criticar. Adriana Simões dos Santos, que se casou com Antônio Dias de Araújo, filho de Estevam Dias de Araújo e sua esposa Apolônia Gomes Dias de Araújo. Francisca Simões dos Santos que se casou com Sebastião Dias de Araújo, filho igualmente de Estevam Dias de Araújo e sua esposa Apolônia Gomes Dias de Araújo. Tereza Simões dos Santos, que foi casada com Inácio Alves Carneiro, filho de Domingos Alves Carneiro e sua esposa D. Isabel Ferreira da Silva, esta filha de Manuel Alves da Nóbrega e sua esposa D. Maria José de Medeiros (Babanca). Ana Tereza Simões dos Santos, que foi casada com Alexandre Manuel, do Poço Redondo. Maria Simões dos Santos ou Maria Joaquina Prazeres, que foi casada com João Damaceno Rocha, filho de Sebastião de Medeiros Rocha (Junior) e sua segunda esposa D. Viturina Frere, portanto, irmão de Manuel Antônio de Medeiros (Manuel Antônio Gancho), por parte de pai. Veja-se se a história que acabo de contar interessa a este trabalho ou não. Quero ser criticado. Patos, 27 de junho de 1965. NOTA – O nome Cacimba da Velha originou-se do seguinte fato: existia nesse lugar uma grande mata onde o gado chucro se subtraía a investidas dos vaqueiros. Na segunda seca do século XVIII escasseou logo a forragem e as aguadas minguaram de modo que os gados foram dizimados restando nesse lugar, apenas, uma vaca brava que descia às dez horas à baixada do Quipauá dessedentar-se numa cacimba, única fonte daquelas paragens; essa cacimba já estava bem funda pois o lençol dágua baixava vertiginosamente em virtude da longa estiagem, e a vaca brava, já velha e enfraquecida, desceu à aguada e caiu prostrada. Esse fato banal deu origem ao nome de Cacimba da Vaca Velha, nome que depois foi simplificado para Cacimba da Velha. Mas não há dúvida quanto à autenticidade daquele primitivo nome pois existem documentos de terra que se referem ao sítio Cacimba da Vaca Velha, possuindo o Cel. Josué de Loreto um desses documentos. g
A HORA E A VEZ DO CORDEL TRÊS ESTÓRIAS DE LEANDRO GOMES DE BARROS I – UMA VIAGEM AO CÉU Uma vez eu era pobre Vivia sempre atrasado Botei um negócio bom Porém vendi-o fiado Um dia até emprestei O livro do apurado
Bebeu obra de três contas Ficou muito satisfeita Disse: aguardente de cana Imaculada direita Isso é o que eu chamo bebida Esta aqui ninguém enjeita
São Pedro aí perguntou: O mundo lá como vai? Eu aí disse: meu santo Lá filho rouba de pai Está se vendo que o mundo Por cima do povo cai
Dei a balança de esmola E fiz lenha do balcão Desmanchei as prateleiras Fiz delas um marquezão Porém roubaram-me da cama Fiquei dormindo no chão.
Perguntei: alma quem és? Disse ela: tua amiga Vim te dizer que te mude Aqui não dá nem intriga Quer ir para o céu comigo? Lá é que se bota barriga
Eu ainda levava um resto Da gostosa imaculada Dei a ele e ele disse: Aguardente raciada E aí me disse: entre Aqui não lhe falta nada
Estava pensando na vida Como havia de passar Não tinha mais um vintém Nem jeito pra trabalhar O marinheiro da venda Não queria mais fiar
E lá subi com a alma Num automóvel de vento Então a alma me mostrava Todo aquele movimento As maravilhas mais lindas Que existem no firmamento
Arrastou uma cadeira E mandou eu me sentar Chamou um criado dele Disse: cuide em se arrumar Vá lá dentro e diga a ama Que bote um grande jantar
Pus a mão sobre a cabeça Fiquei pensando na vida Quando do lado do céu Chegou uma alma perdida Perguntou: era o senhor Que aí vendia bebida?
Passamos no purgatório Tinha um pedreiro caiando Mais adiante no inferno Tinha um diabo cantando E a alma de um ateu Presa num tronco apanhando
Quando acabei de jantar O santo me convidou Disse: vamos lá na horta Fui lá, ele me mostrou Coisas que admiravam E tudo me embelezou
Eu disse que era eu mesmo E que a venda estava quebrada Mas se queria um pouquinho Ainda tinha guardada Obra de uns três garrafões De aguardente imaculada
Afinal cheguei no céu A alma bateu na porta Com pouco chegou S. Pedro Que andava pela horta Perguntou-lhe: essa pessoa Inda é viva ou já é morta?
Vi na horta de São Pedro Arvoredos bem criados Tinha pés de plantações Que estavam carregados Pés de libras esterlinas Que já estavam deitados
Me disse a alma: eu aceito E lhe agradeço eternamente Moro no céu porém lá Inda não entra aguardente S. Pedro inda plantou cana Porém perdeu a semente
Então a alma respondeu: É viva, estava no mundo Não tinha de que viver Está feito um vagabundo lá quem não for bem sábio passa fome e vive imundo
Vi cerca de queijo e prata Na lagoa da coalhada Atoleiros de manteiga Mata de carne guisada Riacho de vinho do porto Só não tinha imaculada
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Pratas de quinhentos reis Eles já chamam caipora Botavam trabalhadores Para jogar tudo fora Esses níqueis de cruzados Já nascem de hora em hora
Bote cangalha num raio E a sela num trovão Veja se arranja um corisco Para ele levar na mão Porque daqui para a terra Existe muito ladrão
Bem dizia meu avô Sogra nem depois de morta Fede a carniça do corpo A língua da alma corta Não diz assim quem não viu Uma sogra em sua porta
Então São Pedro me disse Quero fazer-lhe um presente Quando você for embora Quero dar-lhe uma semente Você vai mesmo escolher Aquela mais excelente
Eu desci do céu alegre Comigo não foi ninguém Passei pelo purgatório Ouvi um barulho muito além Era a velha minha sogra Que dizia: eu vou também
Eu vinha com isso tudo Que o santo tinha me dado Mas minha sogra apanhou O diabo descuidado Fiquei pior do que estava Perdi o que tinha achado
Deu-me dez pés de dinheiro Alguns querendo botar Filhos de queijo do reino Já querendo safrejar Uns caroços de brilhante Pra eu na terra plantar
Eu lhe disse: minha sogra Eu não a posso conduzir Ela me disse: eu lhe mostro Porque razão hei de ir E se não for apago o raio Quero ver você seguir
E quando cheguei em casa A mulher quase me come Ainda pegou um cacete E me chamou tanto nome Disse que eu casei com ela Para matá-la de fome
Galhos de libras esterlinas Deu-me cento e vinte pés Deu-me um saco de semente De cédulas de cem mil reis Deu-me maniva de prata E diamante umas dez
Nisso o raio se apagou Desmantelou-se o trovão O corisco que trazia Escapuliu-me da mão E tudo quanto eu trazia Caiu desta vez no chão
Se não fosse minha sogra Eu hoje estava arrumado Mas ela no purgatório Achou tudo descuidado Abriu a porta e danou-se Veio deixar-me encaiporado
Aí chamou Santa Bárbara Esta veio com atenção S. Pedro aí disse a ela: Eu quero uma arrumação Este moço quer voltar Arranje-lhe uma condução
Aí a velha voltou Rogando praga e uivando Quando entrou no purgatório Foi-se mordendo e babando Dizendo tudo de mim Lançando fogo e falando
Nunca mais voltei ao céu Para falar com São Pedro E inda mesmo que possa Não vou porque tenho medo Posso encontrar minha sogra E vai de novo outro enredo.
II – O TESTAMENTO DO CACHORRO O dinheiro neste mundo Não há força que o debande Nem perigo que o enfrente Nem senhoria que o mande Tudo está abaixo dele Só ele ali é o grande
Porque só mesmo o dinheiro Tem maior utilidade É o farol que mais brilha ‘ Perante a sociedade O código dali é ele A lei é sua vontade.
Ainda que vá a júri Compra logo atenuante Dá um unto nos jurados Se livra no mesmo instante Tem um juiz a favor Jurados e assim por diante.
Ele impera sobre um trono Cercado por ambição O chalerismo a seus pés Sempre está de prontidão Perguntando-lhe com cuidado - O que lhe falta, patrão?
O homem tendo dinheiro Mata até o próprio pai A justiça fecha os olhos A polícia lá não vai. Passam-se cinco ou seis meses Vai indo o processo cai.
Essas questões muito sérias Que vão para o tribunal, Ali exige os papeis Que levem prova legal, Cédulas de quinhentos fachos É o papel principal.
No dinheiro tem se visto Nobreza desconhecida Meios que ganham questão Ainda estando perdida Honra por meio da infâmia Glória mal adquirida.
Compra cinco testemunhas Que depõem a seu favor Aluga dois escrivãos E compra o procurador, Faz dois doutores de prata Pronto o homem, meu senhor.
Dinheiro faz eloquência A quem nunca teve estudo, Imprime coragem ao fraco, Dá animação a tudo, Vence batalha sem arma, Faz vez de lança e escudo.
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Aonde não há dinheiros Todo trabalho é perdido, Toda questão esmorece, Todo negócio é falido, Todo cálculo sai errado, Todo debate é vencido.
Mim quer enterrar cachorro! Disse o vigário: oh! Inglês Você pensa que isto aqui É o país de vocês? Disse o Inglês: Oh! Cachorra Gasta tudo desta vez.
O meu informante disse-me Que o caso tinha se dado E eu julguei que isso fosse Um cachorro desgraçado, Ele lembrou-se de mim? Não o faço desprezado!
Pois o homem sem dinheiro É como um velho demente, Um gato que não tem unha, Cobra que não tem um dente, Cachorro que não tem faro, Cavalo magro e doente.
Ele antes de morrer Um testamento aprontou Só quatro contos de reis Para o vigário deixou. Antes do inglês findar O vigário suspirou.
O vigário entregou-lhe Os dois contículos de reis O bispo disse é melhor do que diversos fieis E disse: provera Deus Que assim lá morresse uns dez.
Porque perante o dinheiro Tudo ali se torna mole, Porque não há objeto Que sobre os seus pés não role, Bote dinheiro no morto Que a ossada dele bole.
Coitado! Disse o vigário, De que morreu esse pobre? Que animal inteligente! Que sentimento tão nobre! Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre.
E se não fosse o dinheiro? A questão ficava feia Desenterrava o cachorro O vigário ia pra cadeia Mas como o cobre correu Ficou qual letras na areia.
O bacharel por dinheiro Só macaco por banana Ou gato por guabiru, Ou um guaxinim por cana Só sagui pela resina Ou bode por gitirana.
Leve-o para o cemitério Que vou o encomendar Isto é, traga o dinheiro Antes dele se enterrar, Estes sufrágios fiados É factível não salvar.
Judas era um homem santo Pregava a religião Era discípulo de Cristo Tinha toda direção Porém por 30 dinheiros Dispensou a salvação.
A moça tendo dinheiro Sendo feia como a morte Caracteriza-se, enfeita-se, Sempre melhora de sorte, Mais de mil aventureiros A desejam por consorte.
E lá chegou o cachorro O dinheiro foi na frente, Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente.
O dinheiro só não pode Privar do dono morrer, Parar o vento no ar E proibir de chover O resto se torna fácil Para o dinheiro fazer.
Porque o dinheiro na terra É capa que tudo encobre, Cubra um cachorro com ouro Que ele tem que ficar nobre, É superior ao dono Se acaso o dono for pobre.
Mandaram dar parte ao bispo Que o vigário tinha feito O enterro do cachorro Que não era de direito O bispo aí falou muito Mostrou-se mal satisfeito.
O sacerdote no templo Inda estando no sermão Chega um ateu na igreja E traga-lhe meio milhão Que ele vai encontrá-lo Bota-o na palma da mão.
Eu já vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse século passado Viu enterrar um cachorro Com honras de potentado.
Mandou chamar o vigário. Pronto, o vigário chegou Ás ordens, sua excelência... O bispo lhe perguntou: Então que cachorro foi, Que seu vigário enterrou?
Havendo muito dinheiro Casa-se irmã com irmão, O bispo dispensa um quarto Vai ao papa outro quinhão O vigário dá-lhe o unto E porque não casam então?
Um inglês tinha um cachorro De uma grande estimação Morreu o dito cachorro E o inglês disse então: Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhão.
Foi um cachorro importante Animal de inteligência Ele antes de morrer Deixou a vossa excelência Dois contos de reis em ouro Se errei, tenha paciência.
Foi ao vigário e lhe disse: Morreu cachorra de mim E urubu do Brasil Não poderá dar-lhe fim... - Cachorro deixou dinheiro? Perguntou o vigário assim.
Não foi erro, Sr. Vigário, Você é um bom pastor Desculpe eu incomodá-lo a culpa é do portador um cachorro como este já vê que é merecedor.
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III – O CASAMENTO DO SAPO Nos tempos do carrancismo, Tempo em que os bichos falavam, Como hoje vivem os homens, Eles também transitavam Havia muitas questões Casos fundos que se davam.
- Acho! Respondeu o sapo, A sapa é bem arranjada, Filha de um homem distinto Um belíssimo camarada, Ela e o pai aceitando, Se faz, eu não digo nada.
A mulher do caldeireiro Ajudando a vestir a noiva, Dona Jia e outras damas Estavam dançando quadrilha, O Caldeireiro gritava: A festa brilha ou não brilha?
Na cidade da Caipora Perto de Tábua Lascada, Município de Rabugem, Freguesia de São Nada, Rua de Não Sei se Há, Esquina da Sorte Minguada.
O visconde Cururu Deu parte ao caldeireiro, Esse com gosto aceitou Quase recusa primeiro, Mas depois se resolveu Contrataram pra janeiro.
Estava o cunhado do noivo Tocando em um rabecão, O Sapo Sunga-Nenem, Discorria em um violão O Cururu no piano, A Jia no botijão.
Morava nesse chalé Um sapo velho caldeireiro Tinha uma grande família, Um filho ainda solteiro O velho era arrumado E o filho tinha dinheiro.
Disse o sapo caldeireiro: - É preciso eu preparar Um vestido muito fino Para a filha se casar Eu quero dar um banquete Para ninguém censurar.
Já o altar estava armado, Estava a noiva se aprontando, Os copeiros pondo a mesa, Perus e porcos se assando, Quando de súbito viram Três cobras virem chegando.
A filha caçula dele Sapa também arrumada, Filha daquele lugar, Por todo mundo estimada Por amor muito a seu pai, Não estava ainda casada.
Compro vestido de seda, Espartilho e capela, Guarda-sol, luvas, sapatos, Tudo que agradasse a ele, E disse que convidasse Todas as amigas dela.
Dessas três recém-chegadas, Foi um Jararacussu Dirigiu-se ao gabinete Do visconde Cururu Olhem o desgosto no gosto! Quem quis mais comer peru?
O visconde Cururu Barão de Cuia Quebrada, Morava em Vila Nojenta Rua da Esfarrapada, Travessa do Alagadiço Na casa número nada.
Tinham tratado o casamento Para doze de janeiro, Em dezembro choveu muito, Que quase enche o barreiro, Resolveram o casamento Visto haver esse aguaceiro.
Uma as cobras de campo Foi ao major Caldeireiro Não respondeu a patente Nem se importou com dinheiro A noiva e os convidados Ganharam logo o barreiro.
O visconde tinha um filho Um rapaz também solteiro Não era lá desses ricos Mas também tinha dinheiro, Engraçou-se da sapinha A filha do caldeireiro.
Reuniram-se as famílias, E deram logo andamento, Saiu de Vila Nojenta Um grande acompanhamento, Sapos de todas as classes Que vinham ao casamento.
A outra ficou por fora Como quem fica de espia, Saiu beirando o barreiro Pôde agarrar Dona Jia, Já viram que festa essa, Sem graça, sem poesia?
A viscondessa Dona Jia Conheceu que o filho amava A sapinha caldeireira Com vergonha não falava Respeitava muito ao pai Por isso nada tratava.
O visconde Cururu, Metido em um casacão, O noivo todo de preto Trazia um bom correntão, Um pince-nez de cristal Em cada dedo um anelão.
A noiva pôde evadir-se, O noivo também fugiu, Dos convidados só um Com vida se escapuliu A mãe do noivo danou-se Nem o noivo mais a viu.
Disse a Jia ao Cururu: Seu filho quer se casar, Mas tem-lhe muito respeito Acanhou-se em lhe falar, Venho consultar você Acha bom se ela aceitar?
Deram começo ao banquete, O caldeireiro tocava, O Sapo Boi era o noivo, Junto da noiva berrava, O visconde Cururu Um violão afinava.
Festa de sapo em barreiro, Bicho de ruma em vasculho, Herança de filhos pobres, Milho em lugar de gorgulho, É como coco de negro, Vem se acabar em barulho...
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LITERATURA AUGUSTO PARA TODOS OS SÉCULOS Ângela Bezerra de Castro
O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é “o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,/ cumprindo-se a antevisão do eu, na certeza com que se irmana ao Tamarindo: “Depois da morte, inda teremos filhos!” Fugindo à tradição editorial, que se fixou no EU e outras poesias, a BibliotecaMário de Andrade preferiu o EU original, seleção e edição do autor, lançado no Rio de Janeiro em 1912. Essa escolha confere um significado bem particular à publicação e à homenagem que representa. Fixando-se na primeira e única edição contemporânea do poeta, traz Augusto por ele mesmo. Redivivo. Numa apropriação e livre tradução dos versos de Walt Whitman, pode-se repetir que “este não é apenas um livro. Quem toca nele, toca no homem.” Pois a configuração doEU condensa o sentido maior da existência de Augusto, sendo de toda propriedade afirmar que o poeta se impôs o sacrifício extremo para salvar do estreito horizonte provinciano sua criação original e antecipadora de concepções modernas. Tinha a exata consciência de que, sem chegar ao eixo onde se concentrava o prestígio da visibilidade cultural do país, seus poemas dificilmente conquistariam a repercussão a que estavam predestinados. Sem condições financeiras favoráveis, sem renda certa que lhe garantisse a subsistência, lançou-se ao desconhecido para uma luta obstinada. Deixou a Paraíba e foi morar no Rio de Janeiro, determinado a sobreviver com a precária remuneração
obtida pelas aulas particulares que ministrava. Em Notas Biográficas para a 30ª edição do EU, Francisco de Assis Barbosa registra que o poeta “residiu em dez casas de diferentes bairros, quase sempre em quartos de pensão”, durante os anos de permanência no Rio, entre outubro de 1910 e julho de 1914. O escritor José Oiticica, vindo de Minas, compartilhou com Augusto dos Anjos essa fase que classificou de “horrível”, de “penúria”. E revela: “o que mais o amargurava era a injustiça social em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados, iludir os honestos, os sonhadores, os retos de entendimento e de coração. Essa revolta íntima o levava a descrer do mundo, a ver em tudo podridão física e moral”. Parece natural a presunção de que o organismo frágil se debilitou nesse processo de desgaste físico e emocional. De tal forma que Augusto, já instalado em Leopoldina como diretor do grupo escolar Ribeiro Junqueira, não resistiu a uma pneumonia, deixando a vida com apenas 30 anos, em 12 de novembro de 1914. Nunca mais voltou à Paraíba. Nem mesmo os seus restos mortais. E um documento firmado em cartório pelos filhos Guilherme e Glória proíbe que isso possa acontecer. Os filhos ratificam a decisão altiva do poeta ante a mediocridade burocrática que negou ao erudito professor, Augusto dos Anjos, uma licença para viajar ao Rio, onde trataria da publicação do EU. A morte do poeta paraibano teve pouca repercussão na imprensa. Destaque
para o artigo de José Américo de Almeida, no trigésimo dia, e para o ensaio de Antônio Torres, no qual se insere o tocante perfil que define Augusto como um idealista “na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo”. A crítica, desorientada pelo choque, pelo desconhecido que a poesia do EU representava, oscilou inicialmente entre a aceitação e a recusa dos recursos de expressão que caracterizavam a criação lírica sem precedentes. De modo que o livro pelo qual o poeta sacrificou a própria vida permaneceu algum tempo numa espécie de limbo, incompreendido. Nem os modernistas ensimesmados alcançaram a poesia predeterminada “Para cantar de preferência o horrível”. Do observatório em que estavam situados, não perceberam que, em 1912, comparada a “um paralelepípedo quebrado”: a lua de Augusto é uma lua nova
uma lua cheia de modernidade a lua de Augusto é uma pedrada
emolavobrásmartins dos guimarãesbilac (Sérgio de Castro Pinto)
Em 1920, o jornalista paraibano Órris Soares, contemporâneo e amigo de AuISSN: 2357-8335
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gusto, toma a iniciativa de organizar e prefaciar a segunda edição do EU. Acrescentou novos poemas, selecionados sobretudo entre os escritos após a primeira edição, e colocou o subtítulo (obra completa). Sem dúvida, o mais marcante de Órris Soares em relação à poesia de Augusto foi o gesto. A iniciativa de publicá-la, quando o poeta já não existia e parecia tão esquecido quanto seu livro único. Implícita, nesse gesto, a capacidade de compreender, antecipadamente, que, sem se filiar a nenhuma escola, o EU, em “seu individualíssimo sentir”representava “riqueza e glória das letras brasileiras”.É o que se lê no prefácio histórico, entre outras assertivas acolhidas pela crítica contemporânea. A ética da “obrigação intelectual da verdade” motivou esta publicação póstuma, “como uma sagrada dívida” que Órris se impôs. Ele era movido por valores dessa ordem, segundo o testemunho de Carlos Drummond de Andrade que considerava o amigo Órris “um dos homens mais livres, mais conscientes e mais fieis à inteligência”. Numa perspectiva semelhante, o grande Houaiss também reconheceu “a suma importância da segunda edição feita por amor e devoção”, como um instante decisivo na História do EU. Essa publicação paraibana despertou o interesse da Livraria Castilho, responsável pela terceira edição, em 1928, com o título EU e outras poesias, que se tornou definitivo.Foi tal o fenômeno da recepção que os jornais da época chegaram a registrar 5500 exemplares vendidos em menos de dois meses ou “3000
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volumes escoados em 15 dias”. A partir de então, o sucesso de público não abandonaria jamais a poesia de Augusto dos Anjos. Equiparando-se o poeta aos mais populares do Brasil, recitado de cor pelos admiradores dos mais diferentes níveis culturais. Assim, as edições se sucederam através de selos consagrados: Livraria Castilho, Bedeschi, Livraria São José, Companhia Editora Nacional, José Olympio, Ática, Paz e Terra, Civilização Brasileira, Nova Aguilar, Bertrand Brasil, Martins Fontes, etc. O grande número de publicações e a pluralidade de editoras que as representam corresponderam ao crescente interesse do público pela poesia de Augusto dos Anjos.Mas este fenômeno, que tem na recepção um dado positivo, também deu margem a que muitas gralhas ou alterações gráficas passassem a interferir nos originais do poeta. Somente a partir da 29º edição, comemorativa do cinquentenário de lançamento, o texto do EU começa a receber a atenção especializada. O filólogo Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa foram os pioneiros que se dedicaram à correção dos erros acumulados em meio século de publicações. No entanto, foi a 30º edição, com a nota editorial de Houaiss que atingiu a confiabilidade reclamada para o texto poético de Augusto dos Anjos. Em 1977, Zeni Campos Reis acrescenta, com absoluta segurança, novo cuidado ao estabelecimento do texto. Publica Augusto dos Anjos: poesia e prosa, ampliando, com sua pesquisa exaustiva e competente, informações sobre a obra do
poeta do EU, tornando-se fonte de consulta indispensável para os estudiosos. Enfim, em 1994, com a publicação da Obra Completa de Augusto dos Anjos pela Nova Aguilar, temos a mais ampliada edição, depurada dos antigos e persistentes erros. A organização, fixação do texto e notas, sob o critério de Alexei Bueno, impõem às próximas iniciativas uma responsabilidade maior em relação à fidedignidade do texto de Augusto e à coerência das leituras críticas. Diante do EU a morte se desfigura, perde sua força dominante. Resume-se a um episódio, um traço biográfico, uma data. Nada mais.E já não sabemos dizer se é homem ou mito este singularíssimo poeta que, tendo testemunhado menos de duas décadas do século XX, foi por ele consagrado como criador de uma linguagem, de um ritmo, de uma concepção poética que surpreendeu a Literatura Brasileira e a ela se acrescentou como renovação e sinalização de outras formas de sentir, compreender e dizer. Se, do ponto de vista do processo mimético, é verdade, como entende o mestre Eduardo Portella, que o poeta “só é poeta quando converte imaginariamente o horizonte, quanto morre na vida da obra”, também não é menos verdadeiro que, do ponto de vista da continuidade histórica, o poeta se perpetua na obra, como o criador na criatura, como o homem particular no universal. O poeta continua na obra, não no equivocado entendimento de que esta seja a sua biografia em versos, ou a mera confissão de particularidades sentimentais. Continua porque na obra está a
sua compreensão do mundo, a sua forma escolhida de participação no projeto humano, a complexidade do seu tempo transubstanciada na linguagem que corporifica o gesto inaugural da expressão lírica. A Biblioteca Mário de Andrade ergue um monumento ao poeta, tornando acessível o livro de Augusto no formato que se fez uma preciosidade bibliográfica. Um monumento vivo, o EU, na plenitude do reconhecimento. Constituindo um fenômeno editorial sem termos de comparação. Mantendo uma popularidade que levou o autor a ser eleito o paraibano do século XX, por uma diversidade de admiradores que é “transcendentalíssimo mistério”. Acumulando em sua trajetória uma elevada compreensão crítica que destaca a obra de Augusto dos Anjos “como a mais patética indagação já feita, na poesia brasileira, acerca da existência do mundo e do sentido da vida humana”. Com a ressalva de que “jamais, antes dele, essa indagação se fizera em tal nível de urgência existencial e de expressão estética”. É a conclusão do poeta Ferreira Gullar, em sua leitura plena de descobertas e elucidações. “Salvo pelo povo” e consagrado pela crítica, há muito o lugar do poeta do EU está definido com propriedade, no quadro da Literatura Brasileira. O mestre Eduar-
do Portella explicita que Augusto “se localiza numa peculiar encruzilhada do pós e do pré, entre elaborações retardatariamente românticas, parnasianas, simbolistas, a essa altura debilitadas, e esboços ou manifestações discursivos, prenúncios do modernismo. O EU se projeta como avatar de radicalização da modernidade. Ele desidealizou o conceito do gosto para dessacralizara linguagem e, com isto, verbalizar despreconceituosamente a experiência humana. A precoce, e não raro prematura, desestetização corresponde ao programa de descarte do sublime.” O ensaio do professor João Adolfo Hansen, escrito especialmente para esta edição do EU, integra-se à tradição da crítica que ilumina o texto do poeta. Retoma importantes aspectos sobre os quais fixa precisos fundamentos. Chega a elencar as múltiplas razões dos estudiosos que o antecederam e reconheceram a poesia ou “a boa poesia”, no realismo mágico da linguagem criada por Augusto. Um estudo erudito e atual que valoriza de modo superlativo a homenagem da biblioteca Mário de Andrade ao poeta do EU. A Leitura do Monólogo de uma sombra, como “a profissão de fé poético-científica do autor”, é original e prepara o leitor para absorver a tradução da teoria do conhecimento implícita na obra
de Augusto dos Anjos, integrada poeticamente pela representação metafórica. A marca original de conciliar o gosto popular e o erudito não se apagará da poesia de Augusto. Ela continuará encantando o povo e desafiando os críticos. O poeta já é febre entre os internautas, com milhares de vídeos e páginas de acesso. Enquanto a crítica universitária, à luz de diversos postulados teóricos, projeta cada vez mais a sombra incandescente do EU.Vale registrar a tese O Evangelho da Podridão, em que o professor Chico Viana analisa a tematização da culpa como elemento estruturante da poesia de Augusto. E mais uma hipótese se acrescenta como justificativa para a popularidade do EU. Além do estranhamento e da estrepitosa musicalidade da linguagem, a possibilidade da catarse para a civilização da culpa. A construção fantástica de palavras misteriosas, estranhas ou íntimas demais, que transita sem limite entre a realidade, a fantasia, o sonho, a loucura e os tempos imemoriais, expandindo-se em ásperos sons, agônicos e dissonantes, fascina e haverá de atrair sempre um público de características culturais extremamente diversificadas. É o homem universal vencendo o homem particular, cumprindo-se o credo existencial do poeta. g
BIBLIOGRAFIA PELA ORDEM DAS REFERÊNCIAS PORTELLA, Eduardo. Confluências, Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1983. CASTRO PINTO, Sérgio. A flor do gol. Escrituras. São Paulo, 2014. ANJOS, Augusto dos. EU. Livraria São José. 30ª edição. Rio de Janeiro, 1964. VIANA, Chico. O evangelho da podridão. Editora Universitária – UFPB. João Pessoa, 1994. ANJOS , Augusto dos. Obra completa. Nova Aguillar. Rio de Janeiro, 1994.
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COLABORADORES A. J. Pereira da Silva (In Memoriam) – 9, 11, 32 Abelardo Jurema Filho – 5, 11 Adalberto Paranhos - 34 Adalberto Targino – 25 Adelmar Tavares - 32 Adylla Rocha Rabello – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Afonso Arinos (In Memoriam) – 12 Afonso Arinos de Melo Franco (In Memoriam) - 30 Ailton Elisiário – 25, 29, 30, 35 Alceu Amoroso Lima (In Memoriam) – 15 Alcides Carneiro (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 32 Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Aldo Di Cillo Pagotto (D.) – 8 Aldo Lopes Dinucci – 9 Alessandra Torres – 9 Alexandre de Luna Freire – 1 Aline Passos - 21 Aluísio de Azevedo (In Memoriam) – 13 Aníbal Freire (In Memoriam) - 24 Álvaro Cardoso Gomes – 5 Américo Falcão (In Memoriam) – 9 Ana Isabel Sousa Leão Andrade – 15 André Agra Gomes de Lira – 1 André Lucena - 32 Andrès Von Dessauer – 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 21, 22, 23, 24, 25,26, 27, 29, 30, 32, 33 Ângela Bezerra de Castro – 1, 11, 25, 29, 32 Ângela Cassia Costaldello - 32 Ângela Maria Rubel Fanini – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Anna Maria Lyra e César – 6 Anníbal Bonavides (In Memoriam) – 8 Anton Tchecov (In Memoriam) - 30 Antônio Mariano de Lima – 4 Antônio Parreiras (In Memoriam) - 28 Ariano Suassuna (In Memoriam) – 14 Arthur Vivacqua Correa Mayer - 35 Assis Chateaubriand (In Memoriam) – 12 Astênio César Fernandes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 8 Augusto dos Anjos (In Memoriam) – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Aurélio de Lyra Tavares (In Memoriam) – 13 Austregésilo de Atahyde (In Memoriam) – 23 Auxiliadora Borba - 33 Bartyra Soares - 29 Berilo Ramos Borba – 3 Bertholdo Sátyro e Sousa - 34 Boaz Vasconcelos Lopes – 7 Camila Frésca – 5 Carlos Alberto de Azevedo– 4, 6, 11 Carlos Alberto Jales – 2, 12, 14, 16, 23, 25 Carlos Lacerda (In Memoriam) – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Carlos Meira Trigueiro – 2, 5, 35 Carlos Pessoa de Aquino – 5 Celso Furtado - 16 Coriolano de Medeiros (In Memoriam) – 27 Chico Pereira - 16 Chico Viana – 1, 2, 4, 6, – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 10, 13, 14, 22, 24, 33 Ciro José Tavares – 1, 23 Cláudia Luna - 28 Cláudio José Lopes Rodrigues – 5, 6, 27 Cláudio Pedrosa Nunes – 7 Cleanto Gomes Pereira - 33 Cristiano Ramos – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Cristovam Buarque – 10 Damião Ramos Cavalcanti – 1, 11 Deusdedit de Vasconcelos Leitão - 24 Diego José Fernandes – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Diógenes da Cunha Lima – 6 Durval Ferreira – 7 Eça de Queiroz (In Memoriam) – 14 Eilzo Nogueira Matos – 1, 4, 7, 13 Eliane de Alcântara Teixeira - 6 Eliane Dutra Fernandes – 8, 14 Eliete de Queiroz Gurjão - 28 Elizabeth Marinheiro – 12 Emmanoel Rocha Carvalho – 12 Érico Dutra Sátiro Fernandes - 1, 9, 27 Erika Derquiane Cavalcante - 24 Ernani Sátyro (In Memoriam) –EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 7, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 11, 15, 16, 31, 35 Esdras Gueiros (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Eudes Rocha - 3 Evaldo Gonçalves de Queiroz - EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 8, 31, 34 Evandro da Nóbrega- 2, 4, 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 11, 14, 15, 21, 31 Everaldo Dantas da Nóbrega – 13 Everardo Luna (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Ezequiel Abásolo - 8 Fábio Franzini – 7 Fábio Túlio Filgueiras Nogueira - 30 Fabrício Santos da Costa – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Felizardo de Moura Jansen - 29 Fernando Gomes (D.) (In Memoriam) - 25 Firmino Ayres Leite (In Memoriam) - 4 Flamarion Tavares Leite – 8 Flávio Sátiro Fernandes – 1, 2, 4, 6, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 16, 21, 22, 23, 26, 28, 31, 33, 34 Flávio Tavares – 3 Francisco Bley - 32 Francisco de Assis Cunha Metri (Chicão de Bodocongó) - 2 Francisco Gil Messias – 2, 5, 14, 34 Gerardo Rabello – 11 Gustavo Rabay Guerra – 27 Giovanna Meire Polarini – 7 Glória das Neves Dutra Escarião – 2 Gonzaga Rodrigues – 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 11, 31, 33, 34 Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins – 4, 8 Hamilton Nogueira (In Memoriam) – EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Hélio Jaguaribe - 33 Hélio Zenaide – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Hildeberto Barbosa Filho – 11, EE José Lins do Rego/Novembro/2015, 31 Humberto Fonseca de Lucena - 23 Humberto Melo – 16 Ida Maria Steinmuller – 24, 32, 33 Igor Halter Andrade – 30 Inês Virgínia Prado Soares - 23
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Iranilson Buriti de Oliveira – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Itapuan Botto Targino – 3 Ivan Bichara Sobreira - 31 Ivan Colangelo Salomão - 34 João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (In Memoriam) – 4 João Cabral de Melo Neto (In Memoriam) – 27, 29 João Lelis de Luna Freire - 30 Joaquim de Assis Ferreira (Con.) (In Memoriam) – 6 Joaquim do Amor Divino Caneca - 28 Joaquim Osterne Carneiro – 2, 4, 7, 9, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 11, 14, 25, 32, 33 Jonathan França Ribeiro – 30 José Américo de Almeida (In Memoriam) – 3, 10, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 15 José Honório Rodrigues (In Memoriam) - 28 José Jackson Carneiro de Carvalho – 1 José Leite Guerra – 6 José Lins do Rego (In Memoriam) – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 José Loureiro Lopes – 16, 21 José Mário da Silva Branco – 11, 13 José Nunes – 16, 25 José Octávio de Arruda Melo – 1, 3, 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 9, 13, 15, 21, 24, 25, 28, 30, 31, 32, 33, 34 José Romero Araújo Cardoso – 2, 3, 10, 11 José Romildo de Sousa – 16 José Sarney – 15 Josemir Camilo de Melo – 11, 28 Josinaldo Gomes da Silva – 5, 10 Juarez Farias – 5 Juca Pontes – 7, 11, 27 Krishnamurti Goes dos Anjos – 29 Ivan Lins – 27 Linaldo Guedes – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Lourdinha Luna – EE/Pedro Moreno Gondim/2014, 7, 13, 15, 29 Lucas Santos Jatobá – 14 Luiz Augusto da Franca Crispim (In Memoriam) – 13 Luiz Fernandes da Silva- 6 Machado de Assis (In Memoriam) – 9 Manoel Batista de Medeiros – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Manuel José de Lima (Caixa Dágua) (In Memoriam) – 13 Marcelo Conrado – 30 Marcelo Deda (In Memoriam) – 4 Márcia de Albuquerque Alves - 23 Márcio Ferreira de Sousa - 35 Marcílio Toscano Franca Filho - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 23 Marcos Cavalcanti de Albuquerque – 1 Marcus Vilaça - 25 Margarida Cantarelli - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Maria das Neves Alcântara de Pontes – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Maria do Socorro Silva de Aragão – 3, 10, 15 Maria José Teixeira Lopes Gomes – 5, 8 Maria Olívia Garcia R. Arruda – EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Mariane Bigio - 28 Marinalva Freire da Silva – 3, 9 Mário Glauco Di Lascio – 2 Mário Tourinho – 13, 34 Martha Mª Falcão de Carvalho e M. Santana - 22 Martinho Moreira Franco – 11, 35 Matheus de Medeiros Lacerda - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Mercedes Cavalcanti (Pepita) – 4 Milton Marques Júnior – 4, 33 Moema de Mello e Silva Soares – 3 Neide Medeiros Santos – 3, 6, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, EE/José Lins do Rego/ Novembro/2015, 15, 23, 27, 32 Nelson Coelho – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Neno Rabello – 11 Neroaldo Pontes de Azevedo – 2 Octacílio Nóbrega de Queiroz (In Memoriam) - 6, 15 Octávio de Sá Leitão (Sênior) (In Memoriam) - 23 Octávio de Sá Leitão Filho (In Memoriam) – 16 Osvaldo Meira Trigueiro – 2, 5, 6, 7, 9, 10, 13, 25, 27, 30, 32 Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Melo (In Memoriam) – EE/Epitácio da Silva Pessoa/ Maio/2015 Otaviana Maroja Jalles - 14 Otávio Sitônio Pinto – 7 Patrícia Sobral de Sousa - 21 Paulo Bonavides – 1, 4, 5, 9, 10, EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015, 12, 14, 15, 16, 22,23, 25, 27 Pedro Moreno Gondim (In Memoriam) – EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014 Peregrino Júnior (In Memoriam) - 22 Raimundo Nonato Batista (In Memoriam) – 3 Raúl Gustavo Ferreyra – 5 Raul de Goes (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Raul Machado (In Memoriam) – 4 Regina Célia Gonçalves – 22 Regina Lyra - 24 Renan Pires Maia – 35, Renato César Carneiro – 3, 6, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014,7,9 Ricardo Vieira Coutinho – 31 Ricardo Rabinovich Berkmann – 5 Roberto Rabello – 11 Ronald de Queiroz Fernandes (In Memoriam) – 21 Ronaldo Cunha Lima (In Memoriam) – 35 Rossini Correa - 35 Rostand Medeiros – 12 Ruy de Vasconcelos Leitão – 16 Samuel Duarte (In Memoriam) – 21 Sebastião Aires de Queiroz - 33 Sérgio de Castro Pinto – 22 Serioja R. C. Mariano – 28 Severino Alves de Sousa - 28 Severino Ramalho Leite – 4, EE/Pedro Moreno Gondim/Maio/2014, 13, 15, 16, 29 Socorro de Fátima Patrício Vilar – 10 Thanya Maria Pires Brandão – 4 Thiago Andrade Macedo – 30 Tiago Eloy Zaidan – 11, 13, 21, 23, 29 Thomas Bruno Oliveira - 34 Vamireh Chacon - 28 Vanderley de Brito – 32, Vanessa Lopes Ribeiro – EE/José Lins do Rego/Novembro/2015 Verucci Domingos de Almeida – 5, EE/Augusto dos Anjos/Novembro/2014 Vicente de Carvalho – 16 Violeta Formiga (In Memoriam) - 21 Virgínius da Gama e Melo (In Memoriam) - EE/Epitácio Pessoa/Maio/2015 Waldir dos Santos Lima – EE/Pedro Moreno Gondim/Novembro/2014 Walter Galvão – 3, 9, 15 Wandecy Medeiros - 30 William Costa - 33 Wills Leal – 2, 7
DEZ FRASES QUE... NÃO SÃO DE EFEITO... MAS QUE PODEM TER EFEITO... “SE VOCÊ CANSAR, APRENDA A DESCANSAR, NÃO A DESISTIR”.
UM DESEJO NÃO MUDA NADA, MAS UMA DECISÃO MUDA TUDO.
“NÃO É PRECISO QUE TENHAS UM TALENTO ESPECIAL, BASTA SERES APAIXONADAMENTE CURIOSO”
VÁ DO JEITO QUE PUDER, MAS NÃO DEIXE DE IR.
PARA TORNAR SONHOS REALIDADE, COMECE ONDE ESTIVER USE O QUE TIVER FAÇA O QUE PUDER.
“NINGUÉM, ALÉM DE VOCÊ, ESTÁ NO CONTROLE DE SUA FELICIDADE. PORTANTO, AJUSTE AS VELAS E CORRIJA O RUMO”. MARCIO KÜHHNE
“SER ODIADO POR MULTIDÕES DE IGNORANTES É O PREÇO DE NÃO SER UM DELES”. OLAVO DE CARVALHO
FAÇA DOS SEUS SONHOS UM OBJETIVO.
CADA FRACASSO NOS ENSINA ALGO QUE PRECISAMOS APRENDER.
VENCEDOR NÃO É AQUELE QUE SEMPRE VENCE, MAS AQUELE QUE NUNCA DESISTE DA LUTA.
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CONTRA- CAPA (corel x8)
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