Vozes da psicanálise Revista de Estudos Psicanalíticos da Sociedade de Psicanálise de Brasília Vol. 31(1/2) - 2013 | Vol. (321) - junho de 2014
alter Revista de Estudos Psicanalíticos da Sociedade de Psicanálise de Brasília Vol. 31(1/2) - 2013 | Vol. (321) - junho de 2014 ISSN 0100-1655 Editor
Carlos Cesar Marques Frausino
Coeditor
Carlos de Almeida Vieira
Conselho Editorial
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Sociedade de Psicanálise de Brasília Diretoria 2013-2014 Presidente
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Semestral ISSN 0100-1655 1. Psicanálise periódicos. Sociedade de Psicanálise de Brasília CDU: 159.964.2(3)
Sumário Editorial Carlos Cesar Marques Frausino
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Artigos de membros da Sociedade de Psicanálise de Brasília – SPB apresentados no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência
Cláudia Aparecida Carneiro
Medos e paixões nas relações societárias psicanalíticas Crisélia Sanromán Barral Chaves
Crise suicida – sofrimento narcísico e dificuldades nas relações de objeto Daniela Prieto e Marcelo Tavares
A psicanálise de criança na contemporaneidade
Maria Silvia Valladares, Liliana Dutra de Moraes Avidos e Suely Marise Pego
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Diálogos Entrevista com Paulo Cesar Sandler
Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos Almeida Vieira
Entrevista com Luiz Ruffato Mirian Estides Delgado
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Artigos A ruptura psicótica
Maria de Fátima Rebouças Malva
Uma solução engenhosa ao horror da castração – um apanhado sobre o fetichismo na obra freudiana Ronaldo Manzi Filho
O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan Elizabeth Cimenti
Imbricações entre sexualidade e cultura: um trajeto culturante da pulsão Veridiana Canezin Guimarães
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Sumário
Sobre o ressentimento e suas implicações na clínica Marina Abdalla de Souza Porto
Os primórdios do psíquico, a origem da mente na espécie humana e os fenômenos psicopatológicos Marisa Pelella Mélega
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Resenhas Elogio ao amor
Autor: Alain Badiou e Nicolas Truong Resenhado por: Alexandre da Costa Pantoja
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Todos os reis estão nus
Autor: Contardo Calligaris Resenhado por: Maria Lucia de Aragao Canalli 165
Orientações aos colaboradores
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alter | Revista de Estudos Psicanalíticos da SPB | Vol. 31 (1/2) - 2013 | Vol. 3 (1) - junho de 2014
Editorial Idealizada por Virgínia Leone Bicudo, a Revista Alter foi lançada em 1970 e, ao longo dos anos, tornou-se um periódico de referência para a comunidade psicanalítica brasileira, resultado do trabalho de gerações de psicanalistas de Brasília e de outras partes do país – editores, autores e todos os envolvidos na confecção da Revista. Ao longo das últimas décadas, a Alter caracterizou-se por uma política editorial pautada pela qualidade, rigor e criatividade, além de ser uma publicação plural e aberta ao diálogo com outras áreas do conhecimento. Características que pautaram a confecção deste número. O atual número destaca trabalhos de membros da Sociedade de Psicanálise de Brasília e do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo, apresentados no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em setembro de 2013. Nesta seção, Crisélia Sanromán Barral Chaves propõe uma reflexão acerca da dinâmica das sociedades psicanalíticas. Daniela Prieto e Marcelo Tavares investigam as contribuições da psicanálise na compreensão dos processos mentais envolvidos na crise suicida. Cláudia Aparecida Carneiro apresenta trabalho clínico – laureado com o prêmio Mário Martins, do Congresso – que se propõe a examinar o trânsito de estados de mente da analista e de sua paciente, que se dá entre a percepção de impressões sensoriais e a apreensão da realidade psíquica. Por fim, Maria Silvia R. de M. Valladares, Liliana Dutra de Moraes Avidos e Suely Marise Pego apresentam reflexões acerca da psicanálise de crianças. A seção Diálogos, mantendo-se na tradição da Alter e do legado freudiano de se refletir aspectos da dinâmica das sociedades e da cultura – utilizando o arcabouço teórico clinico psicanalítico com outras áreas do conhecimento – contém entrevistas com Paulo Cesar Sandler e Luiz Rufatto. Sandler é um conhecido psicanalista e profícuo escritor que se dedica, há anos, ao estudo da obra de W.R.Bion. No diálogo com Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira, discorre sobre sua vasta obra, aspectos da sua vida e sua relação com Bion e Virgínia Bicudo.
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Editorial
Rufatto é um jovem escritor mineiro e uma das principais vozes da literatura brasileira contemporânea. Nessa entrevista, com Mirian Delgado, aborda as preocupações sociais que guiam seu projeto literário e motivaram a sua contundente participação na Feira do Livro de Frankfurt de 2013. O pluralismo teórico e clinico ao se pensar os fenômenos psicanalíticos é a marca dos artigos da seção Artigos. Os trabalhos abordam sob diferentes prismas temas presentes no fazer e vivenciar a psicanálise. Boa leitura! Carlos Cesar Marques Frausino Editor
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artigos de membros da Sociedade de Psicanálise de Brasília apresentados no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise
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Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência1 Cláudia Aparecida Carneiro2
Resumo: Este trabalho clínico se propõe a examinar o trânsito de estados de mente da analista e de sua paciente, trânsito que se dá entre a percepção de impressões sensoriais e a apreensão da realidade psíquica, que só é possível por meio da experiência emocional vivenciada na relação analítica. Traz reflexões sobre a capacidade da dupla analítica de se mover entre o mundo sensorial e o não sensorial e de sofrer turbulência na situação de análise. Palavras-chave: realidade sensorial; realidade psíquica; sensorialidade; turbulência; experiência emocional.
Quando Freud retirou a consciência do centro da investigação analítica da experiência humana e redirecionou a atenção para a realidade psíquica – expressão criada por ele –, situou o foco de observação da psicanálise naquilo que escapa à experiência sensorial. Mas não desprezou a realidade das impressões sensoriais, concretas, como porta de entrada – de difícil passagem – para o mundo emocional. O encontro entre paciente e analista é sempre estimulado por fatos e impressões captáveis pelo aparelho sensorial do analista, e este não pode se libertar inteiramente do domínio do sensório, ainda que a experiência psicanalítica pertença ao domínio da realidade psíquica. Procuro examinar neste trabalho clínico o trânsito de estados de mente da analista e de sua paciente, trânsito que se dá entre o que é percebido e comunicado pelos sentidos e o que pode ser captado de uma realidade psíquica, indizível, e somente apreensível através da experiência emocional vivenciada na relação analítica. Chamo a atenção para o movimento dinâmico desses estados mentais experimentados pela dupla: de confusão, fragmentação e recorrência à sensorialidade diante da ameaça de intensa dor mental, e de maleabilidade e maior disponibilidade mental para tolerar momentos de turbulência. 1
Trabalho publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 47, n. 4, 80-88, 2013. Texto vencedor do Prêmio Mário Martins, conferido durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Campo Grande, MS, de 25 a 28 de setembro de 2013.
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Psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência
Freud propôs uma disciplina ao analista para que trabalhe em estado de atenção livre flutuante, a fim de manter uma disponibilidade mental que possibilite seguir o fluxo das associações livres (do paciente e as suas) e adentrar o espaço do não conhecido. O método criado por Freud foi definido por Bion como a capacidade para alcançar um estado mental “sem memória, sem desejo e sem ânsia de compreensão” e sem interferências sensoriais (Chuster et al., 2003). Dos diferentes vértices utilizados para observação de experiências emocionais, Bion tomou a experiência mística como modelo de abordagem da realidade psíquica – experiência que conduz à obscuridade da alma para que, no escuro, se possa alcançar um facho de luz (verdade).
O vértice místico Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exato da data dos falecimentos. (Mia Couto, 2012, p. 137)
A experiência mística da qual fala Bion é aqui lembrada como modelo para o trabalho ao qual o analista deve estar atento quando em contato com o mundo factual do paciente e o seu próprio. O trecho do conto de Mia Couto, ainda que adornado de elementos sensoriais e crença religiosa (“cruzes”, “adivinhação”), me vale para breves pensamentos sobre o “escuro” que nossos sentidos não podem experimentar. Bion (1970/2006) expõe no texto “Realidade sensorial e psíquica” formulações a respeito de O para se referir à realidade psíquica. O símbolo representa a realidade última, verdade absoluta, divindade, infinito, a coisa-em-si kantiana – termos empregados para indicar essa verdade que é “escuridão e ausência de forma”, que não pode ser “conhecida” mas pode “tornar-se”. As condições para se ter contato com a realidade última distanciam a mente de qualquer atividade de raciocínio e do sensório – sem memória e sem desejo – e a aproximam de experiência semelhante à dos místicos, cujo estado mental Bion denomina de ato de fé. Não a crença em certezas, mas a fé em possiblidades. “Evoluir para O” requer escuridão da alma – abster-se de memória e desejo, o tanto quanto possível, para viver a experiência de fé e vazio. Bion tomou a experiência mística de São João da Cruz (século XVI), descrita em “Subida do Monte Carmelo” e “Noite escura”3, como modelo para a experiência psicanalítica, vivida não sem turbulência. Em equivalência a esse estado de 3
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Cf. Obras completas de São João da Cruz (1984).
Cláudia Aparecida Carneiro
mente, de “qualidade dolorosa”, está a descrição de São João da Cruz: nela se expõe a necessidade de a alma renunciar aos sentidos para colocar-se na obscuridade e no vazio, a fim de procurar o divino. A privação das paixões e desejos é noite escura: na ausência de luz e dos objetos visíveis o homem se despojaria das coisas temporais e corporais (memória e desejo) para caminhar às escuras no sentido de alcançar verdade e luz. Freud recomendou ao analista “cegar-se artificialmente” para perceber luz na escuridão – vislumbrar a realidade psíquica. A este estado de mente São João da Cruz referiu-se como “noite da alma”: primeiro porque a renúncia ao desejo das coisas do mundo é noite para os sentidos; noite também no sentido de fé, pois a via para atingir a realidade última é tão escura quanto a noite; e, ainda, noite como o ponto pelo qual a alma busca Deus (O, nos termos de Bion). Ressalta Sandler (1997) que aquilo que o místico descreve como experiência mística abrange justamente o que há de mais caro à ciência: experiência e verdade.
Um vértice psicanalítico I Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. (Clarice Lispector, 1998, p. 14)
Apresentarei fragmentos de material clínico com o intuito de que as experiências emocionais vividas pela paciente e pela analista possam ser observadas de um vértice psicanalítico, tendo como foco de observação a dinâmica e a complexidade dos estados mentais em trânsito entre a realidade sensorial e a realidade psíquica, e os momentos de turbulência vividos pela dupla analítica. Essa experiência de análise também ilustra o trabalho de desenvolvimento da escuta analítica e de disponibilidade mental do analista que propicia, ao analisando, contato mais íntimo com seu mundo interno. Amélie procurou-me aos 24 anos, sob a tempestade de uma desilusão amorosa. Vivia um momento de muita confusão e ansiedade e minhas primeiras impressões foram de um contraste entre a forma com que ela se apresentava a mim e o conteúdo desta apresentação. As impressões sensoriais do analista são inevitáveis e, talvez por isso, úteis à observação. No primeiro contato, a voz de Amélie soou-me poesia. Expressava-se com uma delicadeza que não combinava com seu relato de experiências traumáticas. Parecia 11
Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência
conter sob a pele a violência anunciada nas palavras. “Eu me envolvo com homens que bebem muito e se drogam. É sempre barra pesada. Meus pais me obrigaram a fazer um segundo aborto, meu namorado ameaçou matá-los, tive que fugir, mas tudo que quero é voltar a vê-lo.” Perguntei-me se aquela moça bonita, de traços e gestos graciosos, ocultava uma loba sob a pele de cordeira. Começamos com três sessões semanais, passamos depois para quatro e trabalhamos juntas durante sete anos. Sua queixa inicial e recorrente era a compulsão alimentar. As repetidas frustrações decorrentes de seus investimentos amorosos eram compensadas em rituais noturnos em que comia até não aguentar mais. “Fico aliviada, mas depois vem o avesso e me sinto horrível.” Impossibilitada de tolerar dor psíquica, buscava prazeres imediatos para aliviar-se da sensação de “buraco oco” e “avesso”. A compulsão tem inequívoco caráter fisiológico, material. Diante da frustração, a tentativa de satisfazer-se alucinatoriamente fracassa. A paciente sinalizava intuir os mecanismos de autodestruição que entravam em ação na forma de atos compulsivos de efeito explosivo – tanto que usava o termo “detonar” para referir-se a tais atos. Os impulsos destrutivos do paciente podem representar ameaça de aniquilamento e levar a estados de desintegração, contra os quais ele se defende cindindo impulsos/ emoções. Ao evitar contato com a dor mental, o recurso à sensorialidade, por meio de processos de cisão (divisão), mantinha Amélie em um movimento oscilatório, entre a calma e o desespero. II O que te direi? Te direi os instantes. Exorbito-me e só então é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? Ai de mim, que tanto morro. (Clarice Lispector, 1998, p. 20)
Detonar tem significados de explodir, provocar explosão, devorar, disparar. A força pulsional dispara o ato; não há espaço psíquico para o pensar. Associo o termo ao efeitobomba de um acting. Amélie dizia-me que não podia parar para pensar e que a comida era a sua droga. O recurso para encobrir o sentimento de vazio e inanição era atualizado por outros expedientes do sensório – detonava com drogas, relacionamentos violentos, exposição a situações de risco –, dando concretude ao desespero e ódio de si mesma. A situação analítica permite aproximação cuidadosa à dor mental que o paciente tenta repelir, mas pode acionar mecanismos de resistência e fazer emergir com mais força os aspectos nocivos de seu psiquismo. Nos dois primeiros anos de análise era frequente Amélie chegar à sessão relatando como ficara “mal” depois de nosso último 12
Cláudia Aparecida Carneiro
encontro. “Essa raiva que sinto... Fiquei muito perdida e fiz burrada no fim de semana. Detonei. É difícil localizar as coisas dentro da gente.” Afirmava-lhe perceber que ela sentia não restar outra saída a não ser detonar a raiva, mas que esse era um campo minado: provocava explosão e implodia também. Com alguma frequência sentia-me inundada pelos fatos e experiências violentas que a paciente trazia para as sessões. Um excesso de elementos factuais de carga destrutiva fazia-me sentir impotente, limitada a ser recipiente de suas evacuações. Enchente carrega destroços. A força destruidora da correnteza (força pulsional) pode ser tal que leva o que encontra pela frente; se o caminho estiver livre (processo primário), os destroços serão arrastados até que passe a tempestade. Eu me sentia presa aos destroços (o mundo sensível, momentos de estado esquizoparanoide da analista), sendo levada pela correnteza. Situações como essa enredam o par analítico e dificultam ou impedem a transformação de elementos sensoriais em material a ser pensado e sonhado (elementos α). Como lidar com o mundo factual do paciente? Afirma Sandler (1988, p. 75), citando Bion, que o analista passe a lidar “rudemente” com dados e relatos factuais do paciente, e até a ignorá-los (cegar-se artificialmente), para criar um espaço onde o inconsciente possa emergir. Para Sandler, existe um perigo, pois: o analista também vive em um mundo factual e é continuamente convidado a se diluir neste mundo e a se perder neste mundo – do mesmo modo que o paciente já o fez. A dura luta pela vida às vezes produz um abismo quase intransponível entre o mundo factual e o mundo “emocional”. O analista não deveria “navegar” nestes mares que, a rigor, ele não navega mesmo, nem que queira, pois ele não vive nem observa os fenômenos relatados pelo paciente (p. 76).
A situação analítica, para propiciar um encontro de escuros, requer o trabalho de apreender não “o que a palavra diz, mas o que ela não diz” (Sandler, 1988, p. 81). Ou seja, pescar a entrelinha, na prosa de Clarice Lispector. III Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. (Clarice Lispector, 1998, p. 12)
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Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência
Situações de excessiva identificação projetiva reduzem as chances de livre associação. Nesse estado mental, o paciente tenta livrar-se das angústias, ou de parte delas, evacuando-as para fora – no caso, para o analista, que se torna o receptor desse processo. É também uma maneira de comunicar seu desespero. Como consequência, perde as partes boas de si e vive estados de esvaziamento da mente (Green, 1998/2000) e de ódio de si mesmo. Na impossibilidade de pensar, parte para a ação. Amélie enchia seu vazio de objetos idealizados, que vorazmente introjetava para em seguida expeli-los. Com ela, eu vivia estados de esvaziamento de minha capacidade de pensar. A resistência do par analítico ancorado no solo concreto da sensorialidade pode revelar um conluio inconsciente e favorecer uma estagnação do processo analítico. Entendo ser esta uma resistência à turbulência vivida na experiência emocional em direção ao pensamento, o qual não está dissociado da dor, sofrimento, prazer e êxtase, conforme propõe Green (1998/2000): tanto a dor como a experiência prazerosa são difíceis de serem toleradas. A resistência do analista pode determinar que o trabalho com o paciente siga adiante conversando sobre psicanálise, em vez de sendo psicanálise (Grinberg, 1981). Na transferência com a analista, Amélie se apresentava alternadamente como a boa menina que cuidava dos pais (e de mim), identificada com as histórias deles de desamor e abandono, ou a filha de “avesso horrível”, desprezada e abandonada. Esse movimento parecia trazer-lhe algum alívio. Enquanto “desprezada”, isentava-se de reparar seus objetos estragados e expelia parte de seu ódio à frustração; essa descarga pulsional desencadeava um sentimento de culpa e então surgia a boa moça que “adotava” os próprios pais. O estado mental de minha paciente era predominantemente o de alguém que não pode esperar, tolerar a frustração da falta de um seio provedor. Conjeturo um mundo interno em que a força de impulsos vorazes impossibilita a pessoa de introjetar um seio que lhe dê amor e compreensão. Temendo a própria violência (e a de seus objetos), ela se priva de alimento para a alma (amor e generosidade) e se agarra vorazmente a todos os “seios” que possam garantir satisfação material. Faminta de afeto, atira-se a uma busca insaciável por “comodidades materiais” (Bion, 1962/1980). Freud (1905/1987) já afirmara nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” que a intensidade e o destino dos impulsos sádico-orais são determinantes nas relações objetais perturbadoras na fase adulta. Sob o domínio do princípio de prazer, a pessoa não tem internalizado o objeto nutridor, fica sem alimento para seu gasto. Como drogas que são “substitutos empregados por aqueles que não podem esperar” (Bion, 1992/2000, p. 308), entendo que mentiras são substitutos para atenuar uma realidade psíquica não tolerada.
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Que tipo de mentira nos circundava? Por volta do quinto ano de análise, Amélie levou-me um livro intitulado Mentiras no divã. Disse-lhe: “Podemos suportar o fato de que a verdade é dolorosa?”. Fez uma pausa e me disse: “Acho que detonar é uma mentira que criei por achar que sou assim, inferior, feia. Uma mentira necessária.” Passou a explorar mais verdades sobre si mesma. “Crio uma falsa ideia sobre a ideia dos outros a meu respeito. Me agarro às pessoas, tenho medo de perdê-las, e depois as afasto para não sofrer o medo de não viver.” Caso possa se aproximar da verdade, o paciente se deparará com a dor de trocar o falso pelo verdadeiro. Nessa circunstância a relação analítica sofre transformações; novos significados surgem das experiências emocionais do par analítico. As sessões com Amélie abriram espaço para mais pausas. São momentos de silêncio cálido e doloroso; soam com profundidade. Na ausência e na dor pode-se crescer psiquicamente. IV Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas. (...) Atrás do pensamento não há palavras: é-se. (Clarice Lispector, 1998, p. 27)
O contato com verdades sobre si mesmo pode impor obstáculos à continuidade do processo. Nos esboços de elaboração da posição depressiva, um ponto crítico assinalado por Steiner (1987/1991) é o de que, na fantasia inconsciente, o indivíduo tem de encarar sua incapacidade de proteger o objeto quando se iniciam os estágios de luto. Nessas transições, segundo esse autor, a realidade psíquica do paciente inclui a percepção do “desastre interno criado por seu sadismo” (p. 331). Seu amor e desejo de reparar são insuficientes para preservar o objeto, e por isto deve permitir que este morra, a despeito de seu desespero e culpa. Se tal experiência não é enfrentada, o paciente pode recorrer a uma organização patológica narcísica de defesa contra as ansiedades das posições esquizoparanoide e depressiva (Steiner, 1987/1991). A pessoa acena para a elaboração de sentimentos de perda e de culpa, mas recua para um útero (refúgio psíquico). Penso na importância de o analista estar atento a essas oscilações e sentimentos ambivalentes do paciente. A tristeza que permeia instantes da posição depressiva, pela perda do objeto e pela agressividade dirigida a ele, difere da depressão, que leva a pessoa a castigar-se para se redimir da culpa persecutória. Frustração é via de expansão psíquica. Se não ocorre a satisfação esperada pelo psíquico sob domínio do princípio de prazer, a tentativa de satisfação pela alucinação 15
Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência
é abandonada. Ocorre uma alteração real nestas circunstâncias e passa a vigorar o princípio de realidade (Freud, 1911/2004). O contato com a realidade frustra e imprime a necessidade de abordar o novo. Penso que essa abordagem, na qual trabalha a psique, tende a equilibrar forças internas: o que é desprazer não alcança prazer e este é adiado ou modificado pelo útil. Em momentos de expansão psíquica Amélie podia decidir e experimentava a utilidade de dizer não ao excesso, ao repetitivo, às suas “drogas”. Eu assinalava como esses momentos eram expansivos – ela era capaz de dizer não sem enlouquecer. Aqui também reside um perigo, pois dizer não aos seus objetos implica uma renúncia dolorosa a uma parte de si mesmo. Entendo que o aspecto familiar das compulsões (assim o era com minha paciente) está relacionado ao desejo de nunca ter se separado psiquicamente do objeto original. Pode predominar a sensação de nulidade e de confusão entre separação e desamparo. Neste estado mental, a pessoa não experimenta intimidade consigo mesma, pois a condição para isto é estar separada e não fusionada com o objeto. No predomínio de identificação projetiva e introjetiva, self e objeto externo se confundem. Separar-se ou diferenciar-se é entrar em estado de inanição. Ressalta Bion (1962/1994) que o ponto crucial para o bebê (ou o paciente em análise) desenvolver um aparelho para pensar está na capacidade de tolerar a frustração do “seio ausente”. Se a incapacidade de tolerar frustração for premente, o que deveria ser pensamento serve para ser evacuado. Se o paciente vive momentos de tolerância à frustração (posição depressiva), ele pode modificá-la e diminuir o fosso entre a necessidade e a satisfação. Cria imagem mental e aproxima-se da realidade psíquica.
Algumas reflexões A situação analítica exposta remete a um funcionamento mental que se alterna entre estados de vazio, aplacados pela idealização e voracidade, e experiências de perda e falibilidade, aspectos da relação de livre movimento PS D postulada por Bion. A mente que não tolera frustração evacua os produtos de sua avidez e voracidade. Vive estados de vazio sem recursos que permitam alguma autonomia psíquica. O processo analítico abre frentes para incursões na posição depressiva. Nestas condições, o paciente pode experimentar um estado mental mais capacitado a suportar os efeitos da ação de forças demolidoras e tirar algum proveito dessas experiências. A oscilação PS D foi descrita por Bion (1963/2004) como habitual e predominante no estado de mente experimentado por um paciente em análise e ocorre também na dupla analítica. Proponho pensar no movimento PS D como uma função que busca equilíbrio e mantém a atividade psíquica entre sobrecarga e descarga, desintegração e integração, entre o evacuar e o pensar. O trânsito entre experiências sensoriais e 16
Cláudia Aparecida Carneiro
emocionais vivenciadas pelo par analítico parece atender a essa função e está de acordo com o movimento dinâmico da mente, exposto por Bion, que tem como pré-condição o interjogo entres as posições esquizoparanoide e depressiva. Bion descreve o processo de mudança (transformações) como um processo de desintegração e reintegração e supõe que a descoberta de um continente capaz de receber as angústias e necessidades do paciente (conteúdo) depende desta operação. O trabalho analítico com Amélie permitiu-me a experiência viva de percorrer com ela fronteiras entre o sensorial e o psíquico e sofrer momentos de turbulência nas sessões. Quanto à paciente, vivenciar culpa diante da agressividade dirigida a si e aos seus objetos possibilitou-lhe construir elos de integração psíquica e relacionamento com um objeto total, de amor e ódio, coexistindo em seu espaço psíquico. A predominância dos mecanismos primitivos do funcionamento mental da paciente e o movimento dinâmico da relação PS D atuando na dupla analítica apontam para a importância de o analista manter séria disciplina que propicie atenção livre flutuante, provendo a si um espaço mental disponível para diminuir o abismo entre o mundo factual e o emocional. A experiência analítica viva corrobora o enunciado por Bion de que a oscilação PS D tem a particularidade de um movimento helicoidal em que, a cada retorno à posição esquizoparanoide, avança-se com relação ao estado anterior em PS, caso o paciente possa processar o erro, a incerteza e a dúvida.
Realidad sensorial y la realidad psíquica: tránsito y turbulencia Resumen: En este trabajo se propone examinar el tránsito de los estados de la mente del analista y de su paciente, tránsito que tiene lugar entre la percepción de las impresiones sensoriales y la aprehensión de la realidad psíquica, que solo es posible a través de la experiencia emocional en la relación analítica. Reflexiona sobre la capacidad de la díada analítica para moverse entre el mundo sensorial y el mundo no sensorial y sufrir turbulencia en la situación del análisis. Palabras clave: realidad sensorial; la realidad psíquica; sensorialidad; turbulencia; experiencia emocional.
Sensory reality and psychic reality: transit and turbulence Abstract: This paper examines the transit of states of mind of the analyst and her patient, transit that occurs between the perception of sensory impressions and the apprehension of psychic reality, which is only possible through the emotional experience that occurs in the analytic relationship. It presents reflections on the capacity of the analytic pair to move between the sensory and non-sensory worlds and to suffer turbulence in the situation of analysis. Keywords: sensory reality; psychic reality; sensoriality; turbulence; emotional experience.
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Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência
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Claudia Aparecida Carneiro SHIS QI 09, Bloco E-2, Sala 309 71.625-009 Brasília/DF (61) 3248-3521 claudiacarneiro@hotmail.com © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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Medos e paixões nas relações societárias psicanalíticas1 Crisélia Sanromán Barral Chaves2,3
Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão sobre as dificuldades apresentadas nas relações interpessoais em uma sociedade de psicanálise, partindo do princípio que essas poderiam ser contaminadas pelos resíduos dos complexos infantis inconscientes. Aponta os riscos que esses resíduos representam às instituições psicanalíticas quando não devidamente elaborados. Palavras-chave: relações interpessoais; relações institucionais; conduta emocional.
Freud (1914/1976) assinala que a conduta emocional dos indivíduos para com aqueles que lhe são de extrema relevância à sua vida é estabelecida em uma idade precoce. Pode futuramente progredir, mas não poderá livrar-se da sua natureza e de determinadas qualidades. Assim, todos aqueles com quem o indivíduo venha a se relacionar tornam-se figuras substitutivas dos objetos das primeiras experiências emocionais: pais e irmãos. Partindo desse postulado, podemos inferir que os relacionamentos, por suas características intrínsecas que potencializam a reedição das experiências fraternais e parentais, têm maior probabilidade de despertar sentimentos inconscientes resultantes das relações primevas. Neste sentido, a formação do analista seria o palco perfeito para reproduzir os conflitos inconscientes infantis. Tanto a configuração da formação, quanto a natureza do processo analítico, à qual o analista deve se submeter, poderiam favorecer que as experiências emocionais da primeira infância se estendessem além do divã. Portanto, poderíamos supor que: o analista didata ocuparia o lugar do “pai/mãe”; os colegas de formação exerceriam a função de “irmãos”; os supervisores/professores de “tios”; e, assim, sucessivamente, servindo de tela às projeções inconscientes. Desse modo, colegas que possuíssem a mesma “mãe” ou “pai” analítico poderiam experimentar angústias infantis bastante semelhantes às vivenciadas na tenra infância em relação às supostas preferências parentais pelo irmão, despertando, então, os velhos sentimentos de rivalidade, inveja e 1
Trabalho apresentado no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise em 27 de setembro de 2013.
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Membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Meus agradecimentos ao colega José Viera Nepomuceno Filho por suas colaborações no presente trabalho.
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Medos e paixões nas relações societárias psicanalíticas
ciúmes. Esse mesmo conflito repetir-se-ia em relação aos supervisores e professores. A natureza das vivências parentais do analisando (“filho”) poderia interferir nas atitudes emocionais desse em relação aos seus “pais” (analistas), variando da admiração e gratidão ao ressentimento e inveja. Assim como os sentimentos direcionados aos “irmãos”, submetidos aos restos dos complexos fraternos, poderiam variar de cumplicidade amorosa criativa à competitividade hostil. Usando ainda o modelo parental, os “pais” analíticos, assim como os “tios” poderiam ficar enredados nos seus antigos conflitos familiares. Aqueles dotados de experiências positivas com ímagos paternos tenderiam a estimular seus “filhos” ou “sobrinhos” a alcançarem a independência emocional e intelectual na convivência societária. Enquanto que aqueles cujas vivências emocionais com os representantes paternos foram sentidas como mais desastrosas tenderiam a subestimar, ressentirem-se e desaprovar as escolhas, opiniões e condutas de seus “filhos” ou “sobrinhos”. Neste universo de projeções entrecruzadas, as relações seriam dominadas por intensa angústia para aqueles submetidos aos conflitos inconscientes. Assim, as reuniões de cunho científico ou que tratassem de questões administrativas poderiam ser contaminadas por opiniões defendidas com sentimentos deslocados de benevolência excessiva ou de intolerância febril. As divergências não seriam percebidas como contribuições, mas como ameaças e provocações. As relações institucionais estariam dominadas por um clima de superficialidade e desconfiança, desencorajando seus membros a revelarem suas verdadeiras opiniões. Essa atmosfera emocional poderia paralisar o grupo, provocar deserção, comprometer o desenvolvimento científico, desmotivar a participação de alguns indivíduos, afetar o crescimento institucional dos seus membros ou promover cisões organizacionais irreparáveis. Wortis (1954), ao narrar suas experiências como analisando de Freud, afirma que esse tendia a rejeitar as explicações racionais e intelectuais das desavenças: “não são as diferenças científicas que mais importam: geralmente, é algum outro tipo de animosidade, inveja ou vingança, que dá impulso à inimizade. As diferenças científicas vêm depois” (Wortis, 1954, p. 163). Embora sejam conhecidas de todos nós as desavenças entre vários psicanalistas célebres, vale a pena rememorar alguns episódios de modo a subsidiar as ideias anteriormente expostas. Jones, em seus relatos sobre as dissensões entre Freud e seus colaboradores, justifica: “quaisquer complexos infantis não resolvidos podiam encontrar expressão na rivalidade e no ciúme pela sua predileção” (Jones, 1953a/1989, p. 139). Ele continua: “com o passar do tempo, a atmosfera tornava-se cada vez mais desagradável. Havia maledicências, observações cáusticas, brigas por prioridade em pequenas questões e assim por diante”. (Jones 1953a/1989, p. 139). Segundo Jones (1953a/1989), quando os sentimentos de rivalidade não mais podiam ser contidos, Adler foi quem provocou a primeira cisão no movimento psicanalítico. 20
Crisélia Sanromán Barral Chaves
Peter Gay, comentando as divergências entre Abraham e Jung assinala: “Freud, aconselhando a necessidade de paciência e cooperação, interpretou afavelmente a atitude um tanto fria de Abraham em relação a Jung como uma forma inofensiva, quase inevitável, de rivalidade entre irmãos”. (Gay, 1988, p.197). Em outra passagem, Gay reproduz um trecho da carta de Jung a Freud nos primórdios da relação: “que me permita desfrutar da sua amizade, não como entre iguais, mas como entre pai e filho” (Gay, 1988, p.195). Ainda em relação a Freud e Jung, o mesmo autor aponta que, anos mais tarde, no início da contenda entre os dois, um dos sonhos de Jung foi interpretado por Freud como desejo de destroná-lo. Gay relembra uma passagem da carta de Jung a Freud, no auge da discórdia, em que esse enfatiza seu desejo de autonomia: “paga-se mal a um mestre se se mantém apenas como discípulo” (Gay, 1988, p. 218). Na história da psicanálise não faltam, exemplos de relacionamentos conturbados entre psicanalistas ilustres e seus colaboradores, e entre analistas renomados e seus analisandos. Relações iniciadas com sincera admiração de ambas as partes seguidas de rompimentos violentos, repletos de ressentimentos e perseguições. Além dos exemplos citados acima, podemos evocar: Freud e Ferenczi, Freud e Rank, Klein e Heimann. No quesito rompimento dramático entre “pai” e “filho”, o episódio Freud e Ferenczi merece ser relatado. Com base em Jones (1953b/1989), Ferenczi era, sem dúvida, o “filho” predileto de Freud. As divergências entre eles surgiram quando aquele ampliou a técnica analítica a outras práticas pouco comuns à psicanálise: como a análise mútua e a “ternura materna” para com seus pacientes. A morte de Ferenczi provocou sentimentos contraditórios em Freud: “Um sentimento confuso, por um lado, o alívio por ele ter escapado da terrível deterioração – nas últimas semanas não conseguia nem andar nem falar e os delírios eram piores do que sabíamos – por outro lado, apenas agora a dor da perda dos tempos antigos, o que ele significou para nós, embora tivesse se distanciando de nós há anos” (Molnar, 2000, p. 212) . Em relação ao adoecimento e consequente morte precoce de Ferenczi, Freud conclui: “No centro estava a convicção de que eu não o amava o suficiente, não queria reconhecer seu trabalho e também que eu o havia analisado mal. Suas inovações técnicas estavam relacionadas com isso, ele queria me mostrar como deveríamos tratar os pacientes com amor a fim de ajudá-los” (Molnar, 2000, p. 212). Na condição de controvérsias entre “irmãs”, buscando ocupar o lugar da herdeira do pai da psicanálise, a mais famosa foi a de Anna Freud e Melanie Klein. Esse capítulo da psicanálise teve contribuições de diversos fatores: antigas rivalidades pessoais, fato de Anna ser a filha legítima de Freud, divergências teóricas e a difícil situação de Melanie Klein com sua filha Melitta Schmideberg, umas das suas críticas mais fervorosas, que se associou ao grupo de Anna Freud. Este momento de muita tensão foi marcado como uma séria ameaça de ruptura na Sociedade Psicanalítica Britânica (Steiner, 2002). 21
Medos e paixões nas relações societárias psicanalíticas
Para entendermos melhor como os resíduos dos complexos infantis podem seguir rumos incertos, recorro ao episódio Klein e Heimann, já citado. Heimann, além de ter sido analisanda de Melanie Klein, foi também uma das suas colaboradoras mais atuantes durante a década de 40 (Figueira 1994). Segundo esse autor, o rompimento desse importante relacionamento ocorreu quando, em 1949, Paula Heimann decidiu apresentar seu trabalho acerca da contratransferência sob os protestos e súplicas de Klein. Ainda sobre esse evento, Figueira aponta que, no trabalho de Heimann, não houve qualquer citação a respeito das colaborações teóricas da mestra e ex-analista. O que, segundo o autor, provavelmente, colaborou para a irritação de Klein, além do temor de que suas ideias fossem usadas para criar interpretações orientadas apenas na subjetividade do analista. “Com o rompimento, não só a relação profissional entre elas foi abalada; também seu convívio pessoal e social tornou-se difícil” (Figueira,1994, p.99). Heimann foi destituída do cargo que ocupava na Melanie Klein Trust Foundation, pela própria Klein, em 1955, afastada dos grupos de formação e, aos poucos, foi se desligando do grupo kleiniano – no qual seus analisandos não eram mais aceitos. Neste mesmo ano, Klein expõe seu conceito de inveja inata – em trabalho apresentado no Congresso de Genebra –, do qual Heimann discorda publicamente (Figueira, 1994). Ainda em relação à influência de Klein sobre seus ex-analisandos e colaboradores, é útil rever uma observação de Zimerman a respeito de Bion: “terá sido uma mera causalidade o fato de que o início dos trabalhos mais originais, despojados e criativos de Bion, na década de 60, tenha coincidido com o período que se seguiu logo após a morte de Melanie Klein?” (Zimerman, 2004, p.128). É necessário recordar que, desde os tempos mais remotos, a rivalidade entre irmãos, assim como a usurpação do poder paterno, com suas inevitáveis consequências, preocupam a humanidade. Duby (1995), historiador francês que relata os costumes sociopolíticos da idade medieval, assinala os cuidados adotados pelos senhores feudais buscando a conservação do patrimônio político e material: o título nobiliárquico e os bens materiais eram transferidos por direito ao filho primogênito; os demais filhos homens eram cuidados pelos tios maternos de forma a evitar futuras disputas familiares. Com a rivalidade entre irmãos controlada, o perigo de fragilização do feudo, devido às disputas pelo poder, era afastado. Suponho que o fato de irmãos serem criados em feudos separados dificultava a união entres eles, assegurando, assim, o pátrio poder. Nos requisitos equidade governamental e neutralização do individualismo, coube a Platão essa preocupação, de forma quase que pioneira: “Podes então dizer se, nas outras cidades, há governantes que tratam com seus colegas de governo a uns como amigos e, a outros como estranhos?” (Platão, Século IV a.c., p. 158). Na tentativa de solucionar essas questões, propõe que as crianças cresçam apartadas dos seus pais, de maneira que nenhum cidadão possa identificar nem sua descendência, nem sua ascendência. Assim, o filósofo supunha que, ao implantar tal ação, o comportamento afetivo dos cidadãos diante 22
Crisélia Sanromán Barral Chaves
do infortúnio ou da boa-venturança seria percebido por todos de forma semelhante: “nessa cidade mais do que em qualquer outra, todos em uníssono dirão, quando acontecer algo de bom ou de ou mau a um qualquer dentre eles, aquelas palavras que há momentos referíamos que ‘as minhas coisas vão bem’ ou que ‘as minhas coisas vão mal’” (Platão, Século IV a.c., p.159). De maneira utópica, Platão tentar solucionar as injustiças governamentais que surgem a partir das facilidades concedidas aos “conhecidos” e as dificuldades impostas aos “desconhecidos”. Sugere que o desconhecimento das origens familiares do indivíduo eliminaria qualquer imparcialidade nas suas ações e emoções. Ele supunha que essa proposta erradicaria o que há de humano no sujeito, na tentativa de criar um indivíduo aos moldes do Dr. Spock4. A partir da percepção exposta, fica clara a relevância das recomendações de Freud (1937/1976) sobre os cuidados do fim da análise. Ele salienta pontos primordiais referentes às questões aqui apresentadas: O risco dos resíduos da transferência negativa que não foram tratados durante a análise retornarem deslocados do objeto; a inviabilidade do analisando trazer todos os seus conflitos à transferência; e a impossibilidade do analista evocar todos os possíveis conflitos a partir da situação transferencial. Nesse contexto, as recomendações de Bion (1957/1994) referentes à importância na análise da parte psicótica da personalidade ganham inestimável importância na análise dita didática. A expansão da parte não psicótica da personalidade poderá acolher os conflitos resultantes dos restos infantis de modo que os mesmos possam ser pensados. Evitando, portanto, as projeções idealizadoras ou denegridoras que ofuscam a realidade e prejudicam a convivência societária suficientemente boa. Assim como a inevitabilidade de lidar-se com as diferenças individuais impostas pela percepção da realidade de cada um.
Fear and passion in psychoanalytic’s corporate relations Abstract: This paper proposes a reflection on the difficulties presented at the interpersonal relations in psychoanalytic society , assuming that these ones could be contaminated by residues of unconscious infantile complexes. Points out the risks that these residues represent to the psychoanalytic institutions when not properly conducted. Keywords: interpersonal relations; institutional relations; emotional conduct.
Miedos y pasiones en las relaciones societarias psicoanalíticas Resumen: Este trabajo propone una reflexión sobre las dificultades presentadas en las relaciones interpersonales en una sociedad de psicoanálisis, asumiendo que esas podrían estar contaminadas por residuos de complejos infantiles inconscientes. Señala los riesgos que esos residuos representan a las instituciones psicoanalíticas cuando no están debidamente elaborados. Palabras clave: relaciones interpersonales; relaciones institucionales; conducta emocional. 4
Personagem da série “Jornada nas Estrelas” que personaliza o raciocínio lógico sem qualquer contaminação da emoção.
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Medos e paixões nas relações societárias psicanalíticas
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Crisélia Sanromán Barral Chaves STN Bloco M, Sala 313 Ed. Centro Clínico Vital Brasil Asa Norte, 70.770-909 Brasília/DF (61) 3273-8763 criseliasanroman@gmail.com © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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Crise suicida – sofrimento narcísico e dificuldades nas relações de objeto1 Daniela Prieto e Marcelo Tavares2
Resumo: O presente artigo aborda as contribuições da psicanálise na compreensão dos processos mentais envolvidos na crise suicida e estabelece relações com as pesquisas atuais sobre fatores de risco e de proteção para suicídio. As fontes utilizadas foram as contribuições de Freud, Klein, Kernberg, Litman, Garma e Cassorla sobre o tema, além de outros autores. Busca-se sistematizar o conhecimento psicanalítico sobre o suicídio como forma de favorecer a compreensão do sofrimento das pessoas em crise suicida. O estudo do suicídio aponta uma diversidade de fatores em interação e uma complexa multideterminação. Conceitos como melancolia, narcisismo, masoquismo, Ideal-do-Eu e relações entre o eu e seus objetos são retomados para construir a compreensão do fenômeno. O predomínio de vivências depressivas associadas a experiências de fracasso e de perda de um objeto de amor é marcante e revela para a importância da problemática narcísica e das relações entre o Eu e seus objetos. Palavras-chave: suicídio; narcisismo; relações de objeto; depressão.
O presente artigo aborda as contribuições da psicanálise na compreensão dos processos mentais envolvidos na crise suicida e estabelece relações com as pesquisas atuais sobre fatores de risco e de proteção para suicídio. Os trabalhos de Freud, Klein, Kernberg, Litman, Garma e Cassorla sobre o tema, além de outros autores, são retomados, visando à reflexão crítica sobre o fenômeno. Busca-se sistematizar o conhecimento psicanalítico sobre o suicídio como forma de favorecer a compreensão da crise suicida.
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Trabalho apresentado no XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) “Ser contemporâneo: medo e paixão”, Campo Grande, 2013.
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Daniela Prieto é membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise de Brasília e doutora em psicologia clínica pela Universidade de Brasília (UnB). Marcelo Tavares é professor adjunto da Universidade de Brasília, onde coordena o Núcleo de Intervenção em Crise e Prevenção de Suicídio.
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Crise suicida – sofrimento narcísico e dificuldades nas relações de objeto
Contribuições de Sigmund Freud Freud aborda a temática do suicídio em diversos trabalhos e sua compreensão sofre reformulações ao longo de sua obra. Retomar os fios teóricos envolvidos na compreensão freudiana do suicídio torna necessário abordar temas como luto, melancolia, narcisismo, Ideal-do-Eu, Superego ou Supra-Eu, masoquismo e relações entre o Eu e os seus objetos. Freud (1910/1980) questiona-se sobre como seria possível subjugar a poderosa pulsão de vida e vislumbra duas hipóteses: isso poderia ocorrer com o “auxílio de uma libido desiludida”, ou o Eu poderia renunciar à sua autopreservação por “seus próprios motivos egoístas” (p. 218). Ele aborda as vivências da pessoa apaixonada e enfatiza que o indivíduo enamorado retira o interesse sobre sua própria pessoa e investe libidinalmente o objeto amoroso de forma intensa. Experimentar a reciprocidade do sentimento amoroso em relação ao parceiro aumenta o autoconceito, enquanto não ser amado pelo objeto de amor o reduz. A ruptura da relação de amor representa uma perda de parte de si, já que o objeto amoroso perdido estava intensamente investido pela libido, o que deixa o Eu desinvestido. O Eu fica fragilizado quando não recebe o retorno desse investimento. Instala-se em tal momento um intenso sofrimento narcísico que envolve o questionamento do Eu sobre seu próprio valor (Freud, 1914/2004). Quem ama já sacrificou, por assim dizer, uma parcela de seu narcisismo, e o único modo pelo qual o indivíduo agora pode substituí-la é sendo amado. Assim, em todas essas configurações, o autoconceito parece sempre estar relacionado com o componente narcísico da vida amorosa. (Freud, 1914/2004, p. 116)
Neste mesmo trabalho, Freud desenvolve o conceito de Ideal-do-Eu, que seria a fixação de um ideal a partir do qual o próprio Eu é avaliado. O Ideal-do-Eu tornase o substituto do narcisismo perdido na infância que não pôde ser retido em função da influência de terceiros e da formação do próprio julgamento crítico que pressionou a renúncia à perfeição narcisista. A satisfação libidinal torna-se então condicionada à realização desse ideal. Uma parte da autoestima é primária – resíduo do narcisismo infantil; outra parte decorre da onipotência que é corroborada pela experiência da realização do Ideal-do-Eu, enquanto uma terceira parte provém da satisfação da libido objetal. (Freud, 1914/2004, p.117)
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Daniela Prieto e Marcelo Tavares
Freud (1915/2004) destaca que a pulsão constitui-se em um representante psíquico dos estímulos provenientes do corpo e está na fronteira entre o psíquico e o somático, e nem a fuga é capaz de eliminá-la. O objeto da pulsão pode ser tanto o próprio corpo do indivíduo como algo externo a si. Freud retoma nesse trabalho o conceito de narcisismo e enfatiza que se trata de uma condição presente no início da vida mental em que o Eu está fortemente investido pelas pulsões e é capaz de obter satisfação através do autoerotismo. O prazer e o desprazer passam a depender das relações entre o Eu e o objeto quando a fase exclusivamente narcísica já foi superada pela objetal. Em relação às pulsões, Freud coloca que essas podem ter os seguintes destinos: a transformação em seu contrário, o redirecionamento contra a própria pessoa, o recalque e a sublimação. A transformação em seu contrário dá margem a dois processos distintos caracterizados pelo redirecionamento de uma pulsão da atividade para a passividade e pela inversão de seu conteúdo. O redirecionamento contra a própria pessoa pode ser entendido se pensarmos o masoquismo como sendo um retorno do sadismo sobre o próprio Eu, com a meta pulsional passando de ativa para passiva. Freud ressalta que as sensações de dor estão muito próximas da excitação sexual e se estabelecem como um contrapeso que torna aceitável pelo sujeito suportar o desprazer da dor. O estudo da melancolia é fundamental para a compreensão sobre o suicídio, já que os estados depressivos são apontados em muitos estudos como presentes na crise suicida (Prieto & Tavares, 2005). Freud (1915/1917/2006) compara a melancolia com os afetos envolvidos no processo de enlutamento e propõe que o luto constitui-se em uma reação à perda de um ente querido ou de ideais. A reação de luto é superada após certo lapso de tempo, apesar de envolver graves afastamentos de uma atitude normal para com a vida. O Eu devota-se ao luto, inibe e circunscreve-se, já que o mundo externo torna-se desinteressante por não evocar os ideais ou o objeto de amor perdido. Adotar um novo objeto de amor é insuportável durante o enlutamento, pois significaria substituí-lo. O teste de realidade aponta que o objeto de amor não mais existe, o que provoca uma intensa oposição frente à exigência de mudança de posição libidinal. Cada uma das lembranças do objeto perdido e expectativas em relação a ele são evocadas e investidas libidinalmente; o desligamento da libido só se realiza de forma gradual. As mesmas influências produzem melancolia ao invés de luto em algumas pessoas, o que levanta a suspeita de Freud de que os melancólicos possam ter uma disposição constitucional. As ocasiões que dão margem à instalação de um estado melancólico são desde a perda por morte até situações de ofensa, negligência e decepção, por meio das quais sentimentos opostos de amor e ódio se inseriram na relação com o objeto ou reforçaram uma ambivalência já presente. A melancolia caracteriza-se por um 27
Crise suicida – sofrimento narcísico e dificuldades nas relações de objeto
desânimo profundamente penoso, a interrupção do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade e uma depreciação de si mesmo que se expressa por autocensuras e insultos contra si. Esses indicadores também são encontrados no luto, com exceção da depreciação de si mesmo. A melancolia para Freud está de alguma forma relacionada à perda de um objeto retirada da consciência. O paciente pode estar consciente da perda que deu origem a seu estado de pesar, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que se perdeu com esse objeto amado. O amor que não pode ser renunciado – embora o próprio objeto de amor o seja – refugia-se na identificação narcisista, e o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento. A insatisfação em relação ao Eu constitui-se na característica mais marcante da melancolia. As autorrecriminações são recriminações feitas a um objeto amado, deslocadas para o Eu do paciente. A autotortura na melancolia possibilita uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas a um objeto que retornam ao próprio Eu. Os melancólicos vingam-se do objeto original pela via indireta da autopunição, evitando a expressão aberta de sua hostilidade. Esse sadismo é que soluciona para Freud o enigma da tendência ao suicídio. A análise da melancolia mostra que o Eu só pode matar-se se puder tratar a si mesmo como um objeto pelo retorno do investimento objetal, tornando-se capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade anteriormente relacionada a um objeto. Freud (1920/2006) volta a ressaltar que a perda do amor e o fracasso provocam um “dano permanente ao nosso sentimento-de-si na forma de uma cicatriz narcísica” (p.146) que está na base dos sentimentos intensos de inferioridade. O autor infere a existência da pulsão de morte a partir da observação da compulsão à repetição de atividades e experiências que trouxeram como principal resultado o desprazer e o sofrimento. Afirma que a pulsão de morte, que é fundamentalmente regressiva, caracteriza-se pela tendência a restabelecer um estado anterior. Freud (1920/1980) levanta a hipótese de que ninguém encontra: (...) energia mental necessária para matar-se, a menos que, em primeiro lugar, agindo assim, esteja ao mesmo tempo matando um objeto com quem se identificou e, em segundo lugar, voltando contra si próprio um desejo de morte antes dirigido contra outrem. (p. 202)
O autor ressalta que o Supra-Eu está hiperdimensionado na melancolia e ataca o Eu de forma sádica e impiedosa. Inicialmente, a pulsão agressiva predomina no SupraEu e posteriormente dirige-se ao Eu, podendo conduzi-lo à morte. Quanto mais o Eu controla a expressão de sua agressividade em relação ao mundo exterior, mais severo ele se torna em seu Ideal-do-Eu. Dessa forma, tende a voltar sua agressividade contra 28
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si, o que caracteriza um deslocamento da agressão, um redirecionamento das pulsões agressivas contra si mesmo. Freud ressalta ainda que um objeto sexual só é abandonado após a introjeção desse objeto no próprio Eu. Dessa forma, o Eu sofre uma modificação, decorrente da introjeção do objeto perdido. O Eu constitui-se em um precipitado dos investimentos recolhidos dos objetos dos quais precisou abdicar, contendo, assim, a história dessas escolhas objetais (Freud, 1923/2007). O tradutor das obras de Freud do alemão para o português, Luiz Hanns, propõe o termo über-ich como Supra-Eu, argumentando que o prefixo expressa a ideia de um Eu que paira acima de outro Eu, como em um posto de observação a partir de onde vigia o Eu. Freud (1924/2007) defende que as pulsões sexuais buscam neutralizar a ação das pulsões de morte no interior do indivíduo desviando-as, em sua maioria, para os objetos do mundo externo. A parte que se mantém no mundo interno fusiona-se à libido, toma o próprio corpo como objeto, o que caracteriza o masoquismo original. O masoquismo secundário produz-se pelo recolhimento no Eu da pulsão de destruição dirigida ao mundo externo e amplifica o masoquismo primário. Tal retorno das pulsões agressivas sobre o Eu ocorre frente à impossibilidade de dirigir boa parte dessas pulsões para o mundo externo decorrente da repressão cultural da expressão das pulsões agressivas. Freud destaca que o masoquismo pressupõe a fusão pulsional entre libido e agressão e ressalta que, “mesmo no processo de autodestruição do sujeito, não poderá faltar uma satisfação libidinal” (p. 115). Freud (1925 [1926] /1980) propõe ainda que as perdas de objeto experimentadas pelo Eu ao longo de seu desenvolvimento são vivenciadas como muito dolorosas, pois significam um estado de insatisfação das necessidades pulsionais, já que as quantidades de estímulo elevam-se a níveis desagradáveis sem que possam encontrar gratificação. A perda do objeto passa, então, a desencadear o medo. Freud (1930[1929]/1980) defende que tudo que se formou na vida psíquica é preservado de alguma maneira, podendo ser trazido de novo à luz em circunstâncias apropriadas, quando ocorre um processo regressivo. As pessoas esforçam-se para obter felicidade e, assim, permanecer. Contudo, o que decide o propósito da vida é o programa do princípio do prazer, sendo tal princípio que domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. A vida de fantasia, região na qual o desenvolvimento do senso de realidade se desenvolveu, permanece isenta do teste de realidade e mantémse de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo. Todo sofrimento caracteriza-se como sensações e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado. Freud ressalta que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desesperadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor.
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Contribuições de outros autores europeus Os estados depressivos estão no cerne da compreensão do suicídio para Klein (1935/1996). O melancólico sente crescer o ódio dentro de si e pode tentar preservar os objetos reais através do suicídio. O ato suicida assume uma dupla função para o Eu, constituindo-se tanto em uma forma de matar simbolicamente seus objetos maus, como também uma forma de preservar os objetos amados, internos e externos. As fantasias subjacentes ao suicídio buscam proteger os objetos bons interiorizados e a parte do Eu identificada com esses objetos e, ao mesmo tempo, objetivam a destruição dos objetos maus e do Id. O suicídio pode estar ligado também à fantasia de liberar o objeto externo, percebido como objeto bom, do Eu que é percebido como representando os objetos maus e o Id. A introjeção das figuras parentais é o alicerce para a constituição da própria consciência, segundo Klein (1937/1996). Uma pessoa não pode estar bem consigo mesma quando as figuras parentais introjetadas em sua mente inconsciente são predominantemente rígidas, pois a consciência fica caracterizada pela intolerância, predispondo a excessivas preocupações e à infelicidade. Instalam-se intensos conflitos internos, o que aumenta o estado de tensão, podendo levar a profundas perturbações mentais e até ao suicídio. O processo de luto para Klein vai implicar uma reativação da posição depressiva infantil e exigir um trabalho mental de restabelecimento e reintegração do mundo interno que se torna caótico frente à perda real de um objeto amado. Klein entende que a superação das adversidades impostas por acontecimentos infelizes, que geram muito sofrimento psíquico, exige um trabalho mental similar ao luto, ou seja, também reativa a posição depressiva. O Superego para Klein constitui-se em um mundo complexo de objetos interiorizados a partir da relação do sujeito com a realidade, envolvendo todas as pessoas com quem manteve contato, principalmente os pais. As características dessas pessoas são interiorizadas através dos processos de projeção e introjeção, considerando tanto as experiências reais do mundo externo como as fantasiadas. Esse complexo de objetos interiorizados, em conjunto com a organização estrutural do Eu, compõe o Superego e é sentido pelo sujeito como algo concreto dentro de si, constituindo os parâmetros a partir dos quais avalia a sua conduta e as suas experiências. A perda de um objeto de amor externo assume, muitas vezes, o papel de evento precipitador da crise suicida (Prieto & Tavares, 2005). Nesse sentido, é interessante o trabalho de Winnicott (1958/1990) quando destaca que a capacidade de estar só é um importante indicador de desenvolvimento emocional e propõe que esse recurso “depende da existência de um objeto bom na realidade psíquica do indivíduo” (p. 34). O sujeito desenvolve essa capacidade através da experiência de estar só na presença de outrem, ou seja, através da oportunidade de vivenciar uma maternagem ‘suficientemente boa’, em que a mãe atende às necessidades da criança identificando-se com ela. 30
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Uma imagem de si mesmo positiva é um importante fator de proteção para suicídio (Prieto, 2007). Lacan (1966/1998) vai propor que o interesse pelo Eu trata-se de uma paixão, chamada de amor próprio e ligada à imagem do corpo. A relação com essa imagem, constantemente representada pelo semelhante, é tão valiosa para o Eu que faz o sujeito ficar em intensa dependência da mesma. O bebê vê sua imagem no espelho e reconhece a si mesmo como semelhante ao outro. O Eu acaba por constituirse a partir da imagem de seu semelhante. O jogo do bebê em frente ao espelho se dá no campo do Outro, visto que, no momento do descobrimento de sua imagem no espelho, a criança se volta para autenticar sua percepção com aquele que a sustenta, suporta ou está ao seu lado. A formação do Eu Ideal está ligada à identificação especular, na qual o próprio Eu se funda. O narcisismo é essencialmente, como apontam Laplanche e Pontalis (1982/2001), “o amor pela imagem de si mesmo” (p. 287); o próprio Eu está investido libidinalmente. A relação de objeto para esses autores designa: o modo de relação do sujeito com seu mundo, relação que é o resultado complexo e total de uma determinada organização da personalidade, de uma apreensão mais ou menos fantasística dos objetos e de certos tipos privilegiados de defesas. (p. 443)
A relação de objeto está fundada ao nível fantasístico e traz a ideia de uma interrelação, em que o sujeito constitui os seus objetos e ao mesmo tempo estes moldam o seu funcionamento. As fantasias podem alterar a apreensão da realidade e influenciar as ações. O Eu enfrentará ao longo da vida as discrepâncias entre a sua própria imagem e sua realidade, visto que a imagem especular se trata de uma ficção (Laplanche & Pontalis, 1982/2001).
Contribuições de autores radicados nos Estados Unidos Litman (1970/1996) ressalta que a compreensão do suicídio proposta por Freud envolve a interação de vários fatores e caracteriza uma situação multideterminada e multidimensional. Destaca que sua própria experiência clínica está em conformidade com a visão de Freud sobre o suicídio e enfatiza que todos nós temos uma tendência suicida, mas essa é subjugada e controlada através de identificações saudáveis, dos mecanismos de defesa do Eu e de hábitos construtivos de viver e amar. O indivíduo pode ser forçado a uma crise suicida quando esses aspectos falham, deixando-o desamparado, desesperançado e susceptível a vivências de abandono. A falência dos mecanismos de defesas do Eu e o aumento da destrutividade estão na base da psicodinâmica do suicídio. Os mecanismos específicos envolvidos são: perda de objetos de amor; injúrias ao narcisismo; desinvestimento da maioria de seus objetos; a identificação com um 31
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suicida; afetos avassaladores de raiva, de culpa e de ansiedade ou uma combinação entre esses; extrema cisão do Eu e uma oposição de partes significativas de si. Litman destaca que Freud não deu ênfase ao papel da mãe em instalar na criança o desejo de viver. Acentua a relevância das vivências de abandono experimentadas pela criança que, posteriormente, apresenta o comportamento suicida como uma reação a um desejo inconsciente dos pais pela sua morte. Kernberg (1984/1995) propõe que os quadros depressivos graves, as personalidades com organizações borderline superpostas com um episódio depressivo e o narcisismo maligno, geralmente, estão associados ao fenômeno do suicídio. Os quadros depressivos graves para esse autor caracterizam-se por um Superego patológico, excessivamente agressivo e primitivo. Tal Superego leva a uma regulação da autoestima caracterizada pelas mudanças de humor generalizadas, em que predomina o humor depressivo severo. As deficiências na integração do Superego são sinalizadas pela predominância de sentimentos de inferioridade e vergonha, revelando a participação do Ideal-do-Eu. O Superego maduro, pelo contrário, caracteriza-se pela capacidade de modulação moderada do humor, pela possibilidade de experimentar sentimentos de culpa realistas e específicos e também pela autonomia. As relações de objeto para Kernberg envolvem as representações do sujeito sobre si mesmo e sobre outros significativos. A integração e a estabilidade da identidade estão intimamente relacionadas à qualidade dessas relações, da qual a estabilidade e a profundidade dos relacionamentos são indicadores. Qualidade essa que se manifesta pela cordialidade, dedicação, preocupação e tato com os outros. A empatia e a compreensão com os outros são indicadores importantes, além da capacidade de manter um relacionamento quando ele é invadido por conflitos e frustrações. Os pacientes com organização borderline de personalidade apresentam manifestações não específicas de fragilidade egóica como: falta de tolerância à ansiedade, dificuldades de controle de impulsos e pobreza de recursos sublimatórios. Os comportamentos suicidas em pacientes com transtorno da personalidade borderline para Kernberg geralmente emergem durante intensos ataques de cólera combinados ou não com surtos temporários de depressão. Tais comportamentos estão associados à tentativa de assumir ou reassumir o controle sobre o ambiente através da mobilização de sentimentos de culpa nos outros. Os eventos frequentemente relacionados com os comportamentos suicidas são rompimento com (o) parceiro sexual e forte oposição dos pais aos desejos do paciente, no caso dos mais jovens. O conceito de narcisismo maligno proposto por Kernberg refere-se a um tipo de personalidade narcisista em que o self grandioso sofreu uma “infiltração de agressão” (p. 219) e experimenta prazer em expressar a agressão para consigo ou para com os outros. O paciente com narcisismo maligno geralmente está alheio e afastado do envolvimento com outros. A expressão da agressividade é experimentada como confirmação de 32
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sua grandiosidade, promovendo o aumento de sua autoestima. Tal paciente vivencia uma experiência de triunfo sobre a dor e a morte satisfazendo suas pretensões de controle e superioridade. Os ataques de cólera e/ou depressão seguidos de tentativas de autodestruição ocorrem quando sua grandiosidade patológica é ameaçada provocando, dessa forma, um sentimento traumático de humilhação e derrota. Schneidman (1993/1996) defende que o suicídio é causado por uma dor psíquica percebida como intolerável, insuportável, associada à disforia, constrição perceptiva e a ideia de que a morte é preferível à vida. O limiar de resistência ao sofrimento é individual e define o quanto se pode suportar. O bloqueio ou a frustração de necessidades psicológicas que a pessoa avalia serem vitais para a continuidade da vida provoca essa dor psíquica intolerável, quando o suicídio passa a ser percebido como meio para reduzir a tensão. A dor psíquica refere-se a um dano sentido de forma intensa e inegável, associado à vergonha, culpa, humilhação, solidão, angústia e ao medo. O suicídio também pode ser compreendido como relacionado à ausência da felicidade, caracterizado por uma perda da alegria mágica da infância. A crise suicida para Maltsberger (2003) representa um fracasso narcísico e uma desintegração psíquica marcada pela flutuação altamente dolorosa e sem modulação dos afetos. A representação de si constitui-se em uma estrutura intrapsíquica importante para a manutenção do equilíbrio psíquico. O colapso dessa representação caracterizase como uma crise narcísica. A integração da representação de si é perdida, e aspectos de si e das representações de objeto tornam-se confusos. A representação do próprio corpo assume aspectos de representação de objeto. O teste de realidade pode ser perdido, e fantasias grandiosas e suicidas agem para salvar partes de si enquanto outras são eliminadas. Inundar-se de agressividade, a partir de um Superego muito crítico, pode levar à desorganização da representação de si mesmo. O material de sonhos de pacientes suicidas frequentemente reflete uma desorganização e fragmentação de si mesmo, com especial referência à imagem do próprio corpo. Os estados afetivos mais altamente associados com o suicídio são o desespero e um estado de angústia intenso associado a uma urgente necessidade de alívio.
Contribuições de autores latino-americanos Garma (1971) aponta cinco importantes motivações para o suicídio: identificação do suicida com um objeto libidinoso perdido; tentativa de recuperar tal objeto através da morte; realização de desejos agressivos em relação a determinados objetos através do autoextermínio; volta dos desejos agressivos contra o próprio self; internalização de agressões do exterior que intensificam as condutas sádicas do Superego, o que torna o Eu mais agressivo. Ressalta que todo indivíduo trata seus objetos do mesmo modo que trata 33
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a si mesmo e circunstâncias desfavoráveis reativam os efeitos prejudiciais de submissões infantis a objetos reais ou fantasiados, incrementa os comportamentos autodestrutivos, conduz a reações sádicas contra todo tipo de objetos e retorna ao sadismo contra o self. Brandão (1987/2005) discute o mito grego do caçador Narciso e da ninfa Eco e propõe que Narciso é um símbolo central de permanência em si mesmo. Eco, apaixonada, definha até a morte após ser rejeitada. Simboliza um processo regressivo e passivo em sua forma de sofrimento. Narciso e Eco estão em uma relação dialética e complementar, sobretudo de sujeito e objeto, de algo que permanece em si mesmo e de algo que permanece no outro. Eles se encontram, não se resolvem, separam-se e esse desencontro constitui-se na marca de uma tragédia. A descoberta de Narciso de ser ele mesmo seu objeto de amor o leva ao desespero e à morte, em função de uma reflexão patológica. Tal mito adverte sobre o perigo de aprofundar-se em demasia na linha narcísica da alma, o que pode levar ao solipsismo e também ao suicídio. O suicídio de Narciso foi motivado pela desilusão, pois que a imagem querida e amada, que surge no reflexo, não possui equivalência no mundo real e objetivo. Seu mito guarda esse ponto em comum com o de Édipo, pois ambos se arruinaram no momento em que o conhecimento os conscientizou acerca do objeto de seu amor. A mesma visão que o sábio Tirésias traz dissociada, pois a tem de dentro para fora, das trevas para a luz, por isso o seu dom de adivinhação e de profecia. Narciso nasce e morre junto à água, perdido em uma reflexão passional, fitando introvertidamente as profundidades, o que o leva à desilusão e à morte. Constitui-se em um símbolo de uma espécie de fascinação sem esperança, como um elo preso ao mundo da matéria e das aparências. Representa, dessa forma, a queda da alma na matéria, indicada, nessa visão, pela simbologia do espelho. Este é o lugar a partir do qual especulamos e colhemos o que somos e o que não somos. A relação do espelho com a matéria é frequentemente indicada pela metáfora da alma, olhando de cima, de seu estado puro, quando vislumbra um reflexo dela mesma na matéria e enamora-se de si mesma. Contudo, descendo para alcançar o objeto de seu amor, mergulha na matéria e torna-se prisioneira do cárcere do corpo. Cassorla (2004) ressalta que não existe uma teoria que possa explicar todos os casos e situações em que aparecem os comportamentos suicidas, sendo estes a expressão de múltiplos fatores em interação em um caso específico. O comportamento suicida aparece como resultante de aspectos constitucionais, da história de desenvolvimento, de circunstâncias sociais e de fantasias próprias sobre a morte e a pós-vida. O suicida é ambivalente entre o desejo de viver e de morrer e vivencia intenso conflito. O resultado de sua tentativa de autodestruição dependerá da intensidade de cada um desses desejos e de aspectos mais circunstanciais e fortuitos como o método utilizado para perpetrar a tentativa e a possibilidade de ser socorrido. O suicida busca livrar-se do seu sofrimento e, em suas fantasias, revela desejos de uma nova vida, de fundir-se com objetos perdidos, de encontrar-se com Deus, associados ainda a fantasias de vingança e 34
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de autopunição; ou um pedido de ajuda. As fantasias acima, permeadas por uma morte inimaginável, costumam ocorrer quando existe um sofrimento sentido como terrível, tanto emocionalmente como fisicamente. A tentativa de suicídio é muito frequente entre adolescentes e jovens, conforme apontado por Prieto e Tavares (2005). Cassorla (1984) enfatiza a importância de conflitos próprios dessa fase de vida como a explosão instintiva; a reativação das ligações edipianas, agora em um nível genital, despertando intensas angústias; a ambivalência entre manter-se dependente dos pais ou tornar-se independente dos mesmos; a perda da bissexualidade infantil em que se deve assumir um único sexo. A adolescência é um tempo que envolve o luto em função da perda do corpo, da identidade e do papel infantil, além de exigir a renúncia dos pais idealizados da infância. Todas essas perdas vivenciadas pelo adolescente o predispõem a experiências depressivas e a comportamentos atuadores que podem se expressar em uma tentativa de suicídio. Nogueira (1997) desenvolve um trabalho em que focaliza o sofrimento narcísico como aspecto central na problemática do suicídio. Este é entendido como “um pesar que é do Eu toda vez que, tendo de si a imagem ideal estilhaçada, vê-se deslocado ao lugar do desmerecimento e ou do desprezo” (p. 18). A clínica do suicídio para essa autora descobre o sujeito gravemente ferido no amor próprio. Ela enfatiza que o narcisismo dá-se na intersubjetividade: “Narcisa-se o sujeito a partir de fora, do olhar do outro, digamos, e essa exterioridade é correlata da alienação do Eu que se torna cativo do ideal que emana do outro” (p. 59). A reconstrução da história do sujeito é apontada por Nogueira como a estratégia para buscar a compreensão do sentido inconsciente que guarda o ato suicida. Prieto (2002) propõe como aspecto fundamental no entendimento da crise suicida as dificuldades nas relações de objeto e o sofrimento narcísico, entendido como conflitos de autoimagem. Os estudos de caso de pessoas que tentaram suicídio revelaram sujeitos com uma percepção desqualificada de si, expressa por sentimentos de inferioridade, desmerecimento e autoestima rebaixada. Tal sofrimento também é precipitado em personalidades marcadas por intensas fantasias de grandiosidade quando vivenciam situações em que essas fantasias são ameaçadas e questionadas, o que provoca sentimentos de humilhação e derrota e desencadeia fortes conflitos psíquicos. O sofrimento narcísico é compreendido como dificuldade do sujeito de experimentar amor pela representação de si em decorrência tanto de expectativas muito elevadas quanto por relações com o mundo que levam o sujeito a uma percepção desqualificada de si mesmo. Prieto (2007), em pesquisa sobre fatores de risco e de proteção para suicídio, aponta estados depressivos, autoimagem negativa, falta de recursos do Eu e instabilidade emocional como indicadores associados à crise suicida.
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Considerações finais A presente revisão aponta uma diversidade de fatores em interação e revela uma condição de multideterminação envolvida na crise suicida. O suicídio assume características e significados diversos dependendo das disposições pulsionais e da qualidade das relações de objeto do sujeito em sofrimento. O impedimento da expressão da pulsão agressiva no meio externo aumenta a canalização da mesma para o interior do sujeito e intensifica a rigidez e a severidade do Supra-Eu (ou Superego), que estabelece uma relação sádica com o próprio Eu. Tal conflito em relação à expressão das pulsões agressivas é próprio da crise suicida. O predomínio de uma vivência depressiva associada tanto a experiências de fracasso, como à perda de um objeto de amor por morte, separações, rompimentos e desilusões, mostra-se muito presente na crise suicida. O sujeito enamorado investe sua libido no objeto de amor e recebe um investimento libidinal através da reciprocidade. A ruptura da relação de amor representa uma perda de parte de si, já que o objeto amoroso perdido estava intensamente investido libidinalmente. O Eu não recebe o retorno desse investimento e fica fragilizado. Instala-se em tal momento um intenso sofrimento narcísico que envolve o questionamento do Eu sobre seu próprio valor. Os eventos apontados como geralmente associados à precipitação do comportamento suicida, como perdas do objeto de amor e fracasso frente aos próprios ideais, ressaltam a importância da problemática narcísica na compreensão do suicídio. Tais experiências intensificam ou desencadeiam conflitos de autoimagem, envolvendo o questionamento do valor do próprio Eu. O Ideal-do-Eu, substituto do narcisismo perdido na infância, faz elevadas exigências ao Eu que, por sua vez, não consegue atingir as expectativas ideais que lhe são impostas, experimentando o fracasso. O Supra-Eu primitivo e sádico pune o Eu por não ter atingido seus ideais, desencadeando vivências de culpa e autorrecriminação. O sujeito vivencia um conflito por estar aprisionado pelo olhar do outro, ou seja, intensamente dependente do valor que o outro lhe atribui.
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Suicide crisis – narcissistic suffering and difficulties in objects relations Abstract: This article discusses the role of psychoanalysis in understanding the mental processes involved in suicidal crisis and establishes relationships with current researches about protective and risk factors for suicide. The sources used were the contributions on the subject of Freud, Klein, Kernberg, Litman, Garma and Cassorla and other authors. We seek to systematize psychoanalytic knowledge about suicide as a way to promote understanding of the suffering of people in suicidal crisis. The study of suicide points out a variety of interacting factors and a complex multidetermination. Concepts like melancholy, narcissism, masochism, Ego Ideal and relations between the self and its objects are taken to build an understanding of the phenomenon. The prevalence of depressive experiences associated with experiences of failure and loss of a love object is remarkable and reveals the importance of the narcissistic problematic and the relations between the self and its objects. Keywords: suicide; narcissism; object relations; depression.
Crisis suicida – sufrimiento narcisista y dificultades en las relaciones de objeto Resumen: El presente artículo aborda las contribuciones del psicoanálisis en la comprensión de los procesos mentales envueltos en la crisis suicida y establece relaciones con las investigaciones actuales sobre factores de riesgo y de protección contra el suicidio. Las fuentes utilizadas fueron las contribuciones, sobre el tema, de Freud, Klein, Kernberg, Litman, Garma y Cassorla, además de otros autores. Se busca sistematizar el conocimiento psicoanalítico sobre el suicidio como forma de favorecer la comprensión del sufrimiento de las personas en crisis suicida. El estudio del suicidio apunta una diversidad de factores en interacción y complejas múltiples determinaciones. Conceptos como melancolía, narcisismo, masoquismo, Ideal del Yo y relaciones entre el Yo y sus objetos son retomados para construir la comprensión del fenómeno. El predominio de vivencias depresivas asociadas a la experiencia de fracaso y de pérdida de un objeto de amor es factor decisivo y revela la importancia de la problemática narcisista y de las relaciones entre el Yo y sus objetos. Palabras clave: suicidio; narcisismo; relaciones de objeto; depresión.
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Daniela Prieto SEPS 714/914, Ed. Sabin Sala 404, Conj. D, n.41, 70.390-145 Brasília/DF (61) 8124-4462 daniela.yglesias@gmail.com Marcelo Tavares marsatavares@gmail.com
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alter | Revista de Estudos Psicanalíticos da SPB | Vol. 31 (1/2) - 2013 | Vol. 3 (1) - junho de 2014
A psicanálise de criança na contemporaneidade Maria Silvia R. de M. Valladares1 Liliana Dutra de Moraes Avidos2 e Suely Marise Pego3
Resumo: Após uma reflexão sobre a importância do texto Totem e Tabu, que completou 100 anos, sobre o estudo das neuroses infantis, as autoras discorrem sobre o Complexo de Édipo e o desamparo da criança na contemporaneidade, salientando a importância das atuais influências culturais sobre a família. Por fim, apresentam algumas clínicas que relatam o sofrimento de crianças no mundo contemporâneo, tumultuado e agressivo, e chamam a atenção para as paratransferências no trabalho psicanalítico infantil de hoje, permeado por interferências que exigem maior demanda do analista. Palavras-chave: complexo de Édipo; contemporaneidade; paratransferência; demanda do analista.
Há cem anos (1913), Freud, através do texto Totem e Tabu, introduz sua teoria do social e da cultura, levantando a hipótese da ocorrência de um crime cometido em comum, do qual a humanidade não pode jamais se libertar. Tal origem estaria ligada à existência de um pai primitivo cujos filhos se rebelaram em razão da exclusividade paterna em manter relações sexuais com as mulheres da horda primitiva, que seriam, presumivelmente, suas mães e irmãs. Os filhos revoltosos mataram-no e devoraramno num(em um) banquete totêmico, acreditando que desta forma adquiririam as qualidades de coragem e valentia do pai. Na hipótese freudiana, a refeição totêmica seria uma repetição e uma comemoração do ato memorável e criminoso, que se assemelha aos dois crimes de Édipo – a morte do pai e ao casamento com a mãe – ou seja, aos dois desejos primários que, recalcados, constituem o núcleo de todas as psiconeuroses. 1
Membro titular e analista de crianças e adolescentes da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
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Membro associado à Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Membro do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo e do curso de crianças e adolescentes da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Assim, o totemismo passa a ser a primeira instituição social, o começo da organização social, das restrições morais, da religião, entre outras, que converge para a formação do Complexo de Édipo. Na infância, segundo Freud, ocorre o retorno do totemismo, havendo uma grande semelhança entre as relações das crianças e dos homens primitivos com os animais (as fobias de animal, uma forma muito comum das neuroses infantis), que, segundo Freud, mostram um deslocamento, para os animais, do medo que a criança tem dos seus genitores. Seguindo em seus estudos e escritos, Freud, particularmente em O futuro de uma ilusão, (1927/1996), e em o Mal-estar na civilização, (1930/1996), relaciona o desamparo infantil como um dos fatores decisivos no desenvolvimento tanto do indivíduo quanto da civilização, sendo, segundo ele, um marco fundamental para o surgimento da religião, por ele considerada uma “ilusão”. É a impressão “terrificante” de desamparo na infância, em sua opinião, que desperta a necessidade de proteção através do amor: a libido segue os caminhos das necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram a satisfação. A mãe, portanto, que amamenta o bebê, torna-se o primeiro objeto amoroso e a sua proteção contra os perigos indefinidos que o ameaçam no mundo externo.
A contemporaneidade, o complexo de Édipo e o desamparo infantil Quando Freud se refere ao retorno do toteísmo na infância, ao Complexo de Édipo e ao sentimento universal do desamparo, não temos a menor dúvida de que esses aspectos são inatos, filogeneticamente determinados. Contudo, as influências culturais da atualidade são outras: a família tradicional mudou consideravelmente. Os meios de comunicação invadem os lares, com todo o tipo de informação. Os tablets, computadores e smartphones passam a ocupar um lugar de destaque, inclusive na vida das crianças. A violência nos rodeia e nos ameaça concretamente, mães e pais trabalham fora e os pequenos que nos procuram para análise demonstram sentir profundamente a falha dos objetos continentes, o grande vazio emocional que muitas vezes permeia o seu mundo interno nessa cultura do narcisismo. É verdade que, historicamente, somente a partir do século XVII é que a criança passou a ser valorizada, constituindo-se em objeto de interesse psicológico, através particularmente do interesse do pai da psicanálise, Sigmund Freud, que considerou a infância como condição fundamental do ser humano. A seguir, Melanie Klein começou a investigar e trabalhar com crianças muito pequenas e a observar, inclusive, o comportamento de bebês, o que lhe possibilitou dar uma contribuição inigualável para o progresso da psicanálise, em particular, para a 42
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psicanálise de crianças e adolescentes. Tantos outros nomes relevantes surgiram a partir daí no panorama psicanalítico, que nem poderíamos citar todos. Mas, o que sabemos, é que desde a mais tenra infância, desde o bebezinho, estruturam-se as bases da personalidade, através dos cuidados ambientais: da segurança, do carinho, da pele psíquica (Bick) dos pais e cuidadores. É a partir daí também que começam a ser introjetados pelo bebê os primeiros valores socioculturais, particularmente os da família.
A criança e sua família na clínica contemporânea Hoje não se pode mais falar de uma só família. A unidade familiar mãe-paifilho, tão valorizada pelas teorias psicanalíticas, cada vez mais cede lugar a famílias mononucleares ou à inclusão dos novos cônjuges dos pais separados, como também dos novos filhos. O casamento homossexual é uma realidade, sendo, inclusive aceita, em muitos países, a adoção de crianças por esses casais. E, como disse anteriormente, hoje pais e filhos vivem em uma sociedade globalizada, dominada pela invasão de imagens, pela televisão, internet, onde o espaço para a indagação e reflexão está cada vez menor e onde a febre do consumo tampona as faltas, a castração, a dor psíquica. A presença de patologias na família está relacionada com o grau em que os membros familiares são capazes de, efetivamente, manter internalizados os seus conflitos intrapsíquicos. Com isso, surge a necessidade individual de um dos componentes familiares externar conflitos na interação com seus pares, por não conseguirem mantêlos restritos a seu mundo interno. A partir da discriminação e identificação dos vínculos interpessoais em operação, cria-se em cada um dos membros da família uma identificação familiar. A organização psíquica refere-se às diferentes maneiras como o psiquismo humano pode se organizar face a um elemento interditor da cultura: a castração. Ao longo de sessões com a família, é possível investigar, através da observação do processo terapêutico, os meios pelos quais o objeto pode manifestar sua presença, localização e deslocamentos. O trabalho psicanalítico com crianças, na atualidade, acaba por trazer à tona uma reflexão sobre as regras de setting demandadas pelos precursores do trabalho psicanalítico com crianças. Dentre as recomendações, reside a de restringir o contato do analista com os pais do paciente para que o campo da dupla fique livre de contaminações que possam interferir no trabalho com a criança. Por que vem sendo tão difícil seguir estes preceitos de nossos precursores na clínica atual? 43
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As chamadas paratransferências já não se restringem aos pais da criança, mas se estendem aos avós, à escola, às babás, às fonoaudiólogas, aos psicopedagogos etc. Toda a constelação de pessoas que trabalha ou convive com o pequeno acabam por ser englobadas no que se pode chamar de novas paratransferências.
Ilustração clínica 1 (Liliana Dutra de Moaris Avidos) Pela manhã, ao chegar ao consultório recebo o recado de uma fonoaudióloga que trabalha com Marco, menino de seis anos que tem um importante atraso em seu desenvolvimento emocional. A profissional queria compartilhar comigo as angústias sentidas no trabalho com a criança, muito embora não nomeasse o sentimento. A colega, bastante experiente, confessa estar perdida no que diz respeito ao trato com Marco e com seus pais. A escola em que Marco estuda também já solicitou duas vezes a minha presença querendo compartilhar comigo os mesmos sentimentos: angústia e desamparo. O trabalho fica permeado por interferências que exigem maior demanda do analista. Elementos que anteriormente apareciam somente na transferência agora surgem de maneira concreta. Lembro-me de uma mãe que ainda esta semana me procurou muito aflita: Lauro se desestruturou no curso de línguas. A psicóloga do curso quer conversar com você. Quando sinalizei a esta mãe a necessidade de seu filho fazer três vezes por semana de análise, ela desata a chorar: “E eu? E os meus projetos como ficam?” Nesta hora me pergunto qual é o meu papel: sou analista do filho, no entanto, não pude deixar de ser sensível ao desespero da mãe e perguntei-lhe quais eram esses projetos que vinham sendo há tanto tempo adiados. Estou ciente de que as chances desta mãe procurar uma análise pessoal são remotas, porém, o meu papel no que diz respeito à demanda dos pais fica restrito. Venho constatando o quanto vem sendo cada vez menor o nível de angústia suportado pelas pessoas por não serem capazes de conter a si mesmas, seu desamparo e o dos filhos. O desamparo que os pais, colaterais e outros profissionais percebem na criança os remete à sua própria dor. Esses adultos, ao serem tocados no seu desamparo original, se desesperam e buscam uma solução rápida para aplacar sua angústia. A dor, como sabemos, é sempre urgente. A clínica contemporânea infantil parece estar recebendo nos consultórios filhos dos adultos contemporâneos: pessoas com tendências a atuações. Os adultos aos quais nos referimos parecem pouco preparados para lidar com frustração. Esses pais desejam que seus filhos idealizados cumpram com toda uma lista de requisitos para serem os melhores, pois “o mundo está muito competitivo”. O próprio 44
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narcisismo exige que esses filhos vençam. Os filhos, por sua vez, não conseguem “ser”. Vemos crianças com paradas no seu processo de desenvolvimento emocional e confusas no que diz respeito ao processo de individuação. Todas as mudanças sociais acabam por exigir do analista que trabalha com crianças uma maior capacidade de continência. O trabalho com essas crianças, filhas de pais fronteiriços, demandam de nós uma condição psíquica maior, que suporte mais angústia para trabalharmos também na fronteira, bombardeados assim como estes pequenos por uma constelação de profissionais bastante especializados. Todas as vivências com os personagens envolvidos no atendimento com a criança acabam sendo válidas, na medida em que tornamo-nos alvo das mesmas projeções das crianças. Ocupando posição equivalente à da criança nestas relações, experimentamos toda a confusão a que estão sujeitas no meio dos adultos, e isso pode nos capacitar a entender seu universo psíquico e estarmos juntos com ela em seu sofrimento. As relações acabam acontecendo mais no nível concreto do que no simbólico. Como podemos ver, a construção da subjetividade das crianças que ocupam a clínica contemporânea vem deparando-se com obstáculos nada fáceis de serem transpostos. A amostragem na qual nos baseamos não é pequena. São crianças que apresentam ataques de pânico abarcando grande parte de seus sintomas como: sudorese, sensações de asfixia, medo de morrer e outros. Sintomas que há alguns anos apareciam somente na adolescência. A maioria das crianças que aparecem nos consultórios vem constituindo seu self baseada em estruturas frágeis que encobrem papéis que devem desempenhar para atender às expectativas de adultos à sua volta. Supomos que as falhas nessas frágeis estruturas fazem com que o aparelho psíquico entre em colapso e são responsáveis por crises de angústia cada vez mais precoces.
Ilustração clínica 2 (Suely Marise Pego) G. veio para análise com 7 anos. Em entrevistas com os pais, eles relataram que o filho criava muitos problemas: grita e chora alto, é ansioso, “pavio curto”, chama a atenção todo o tempo e diz que ninguém lhe ama. Ao entrevistar G., percebi tratar-se de uma criança regredida emocionalmente, demonstrando um certo grau de agressão, ódio em alguns momentos, insatisfação e falta de confiança em seus contatos amorosos e sociais. Um detalhe que observei foi o fato de ele não pisar no chão com os pés inteiros e só andar na ponta dos pés (sem que tenha, segundo os pais, nenhum problema ortopédico ou neurológico).
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Em seguida, em uma sessão tempos depois, ele, inicialmente, faz um calendário e marca todos os aniversários dos membros da família, com cores diferentes. Depois, afasta a família de bonecos, constrói uma bomba com um papel em branco e, com um pavio de barbantes, explode, a princípio, os pais e, depois, os irmãos (uma irmã de 9 meses e um irmão mais velho que ele). Ao conversar com ele sobre os seus sentimentos a respeito da família, ele me diz que eles não sabem conversar e por isso merecem um castigo de 3 mil anos e ainda afirma que a mãe dele é uma alienígena. Após examinar essa e outras sessões em supervisão, percebi que ele vê a mãe como uma ditadora, que usa sempre com ele de autoritarismo, não conversa, só dita as normas, não leva em consideração o que ele pensa e sente. Ao fazer um calendário, ele está transmitindo à analista que cada um da família, inclusive ele, tem o seu aniversário, o seu espaço e que são diferentes uns dos outros (cores diferentes). Ele não é um fantoche, quer ser ouvido e participar das decisões. É um revolucionário-mirim. Apresentarei agora, resumidamente, A., de 3 anos, que, segundo os pais, é muito ansiosa e briga com todos os amiguinhos no maternal. Dormiu no quarto dos pais até os 11 meses, tem pesadelos e medo do escuro. Em casa, conversa pouco, só quer ficar vendo TV, usando o tablet e conversando com a babá no Facebook. Os pais trabalham em tempo integral e só tem contato maior com ela nos finais de semana. Por três vezes, recentemente, eles tiveram que levar a filha durante a madrugada ao pronto-socorro, pois ela “perdeu o fôlego”. Isso piorou depois do nascimento do irmão, ou melhor, desde a gravidez da mãe. No contato comigo, percebo uma criança extremamente ansiosa, fala rápido, é voraz, um verdadeiro “furacão”. Mas também é muito sociável, buscando contenção exageradamente. No seu brincar, percebo que ela se sente excluída, roubada do contato com os pais. Defende-se da angústia de morte e de outras ameaças internas através de defesas maníacas e se identifica nos desenhos com figuras como, por exemplo, um palhaço, ou uma menininha solitária. E esses sentimentos são projetados contratransferencialmente em mim, ficando em um estado de desamparo, fragmentada na minha capacidade de compreensão e de reverie.
Considerações finais Acreditamos que problemas como esses relatados, de sofrimento infantil, sempre existiram e fazem parte da literatura psicanalítica. Contudo, as mudanças contemporâneas ocorridas na família, no papel ativo da mulher no campo do trabalho, 46
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entre outras causas, mudaram o enfoque do nosso trabalho, e temos que nos preparar melhor para lidar com toda essa invasão externa, com conflitos parentais, com um mundo globalizado, muitas vezes cruel, que tenta nos afastar do contato com o nosso psiquismo, o nosso mundo interno, aumentando também o nosso desamparo. Temos nos preocupado cada vez mais com a prevenção, particularmente no tocante ao atendimento de gestantes, de mães e seus bebês e de crianças pequenas. Não podemos mudar a realidade, contudo, alguma coisa podemos fazer e estamos fazendo, trabalhando, pensando e atuando em um campo muito rico, qual seja a busca do SER no lugar do TER.
Child’s psychoanalysis in the contemporaneity Abstract: After reflecting about the importance of the text Totem and Taboo, which has completed 100 years - a study on children neurosis-, the authors speak about Oedipus complex and the destitution suffered by the children nowadays, accentuating the importance of cultural influence over the family. Finally, they expose some clinics that show the suffering of children in the tumultuous and aggressive contemporary world and call attention to the paratransferences in children’s psychoanalytical work, permeated by interferences that mean a major demand to the analyst. Keywords: Oedipus complex; contemporaneity; paratransferences; demand to the analyst.
La psychoanalysis infantil en la contemporaneidad Resumen: Después de una reflexión sobre la importancia del texto Tótem y Tabú, que ha completado 100 años, sobre el estudio de las neurosis infantiles, las autoras discuten sobre el complejo de Edipo y el desamparo del niño en la contemporaneidad, resaltando la importancia de las influencias culturales actuales sobre la familia. Finalmente, presentan algunos ejemplos clínicos que relatan el sufrimiento de niños en el mundo contemporáneo, tumultuado y agresivo, y llaman la atención para las paratransferencias en el trabajo psicoanalítico infantil de hoy, permeado por interferencias que exigen mayor demanda del analista. Palabras clave: complejo de Edipo; contemporaneidad; paratransferencia; demanda del analista.
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Referências Meltzer, D.(1994). O Claustrum: una investigación sobre los fenómenos claustrofóbicos. Buenos Aires: Spatia. Bick, E. (1991) A experiência da pele em relações arcaicas. In Spillius, E.B. (Ed.) Melanie Klein hoje (vol. 1, p.194 – 198). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967). Bion, W. R. (1991) Uma Teoria do Pensar. Spillius, E.B. (Ed.) Melanie Klein hoje (vol. 1, p.185 – 193). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1961). Ferro, A. (1997). Na sala de análise. Rio de Janeiro: Imago. Ferro, A. (2008). Técnica e criatividade: O trabalho analítico. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1996). Totem e tabu e outros trabalhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, p. 13-163). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913). ______ (1996). Mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 21, p. 67-148). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930 [1929]).
Maria Silvia R. de Moraes Valladares SHIS QI 09, Conj. 04 Casa 01, Lago Sul 71.625-009 Brasília/DF (61) 3248-0681 mariasilviavalladares@gmail.com
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Entrevista com Paulo Cesar Sandler1 Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira2 com colaboração de Carlos Cesar Marques Frausino3
Esta entrevista foi concedida pelo psicanalista Paulo Cesar Sandler em novembro de 2013 e parcialmente publicada no Jornal Associação Livre (Ano II, Edição III, dezembro de 2013), da Sociedade de Psicanálise de Brasília, sob o título “O homem como ele é”. Aqui, Alter apresenta a íntegra da entrevista. Agradecemos a disponibilidade imensurável de Paulo Cesar Sandler em nos revelar, nesta conversa, o homem, filho, neto, marido e pai, o psicanalista e médico psiquiatra, o tradutor de Bion, o pensador, o escritor e jornalista, o amigo, tal como ele é. De início, convidamos Paulo a falar de sua formação e o que o conduziu ao campo da psicanálise e além dela, produzindo vasta obra como os sete volumes de A apreensão da realidade psíquica. Tal como ele é, responde-nos permeando um fascinante relato das origens de sua família e de sua infância com reflexões, a seu estilo, sobre o tempo, leitura, elites, guerra, verdade, amor. Enfim, formação analítica, relação com Bion, Virgínia Bicudo, sua obra, e mais. Sugerimos que o leitor, citando Sandler, “se entregue” à leitura!
Paulo Cesar Sandler: Agradeço pela oportunidade e espero que minhas respostas
possam ser úteis a alguém... pois tenho um tipo de receio, meio parecido com aquele descrito nas “aventuras” de um personagem imaginário, “Asterix, o gaulês”, criado por uma dupla de cartunistas franceses, Uderzo e Goscinny. Asterix e seu pequeno grupo imaginário de “gauleses indômitos” mais temiam era que o céu caísse sobre sua(s) cabeça(s).
1
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
2
Cláudia Carneiro - Membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasilia (SPB). Carlos Almeida Vieira - Membro titular e analista didata da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB), membro titular da Sociedade de Psicanalise do Recife (SPR) e com funções didáticas no Núcleo Psicanalítico de Aracaju (NPA).
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Carlos Cesar Marques Frausino - Membro do Instituto de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise de Brasília e Editor da Alter.
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Entrevista com Paulo Cesar Sandler
TEMPO temo que meu trabalho resulte em perda de tempo para pacientes e leitores Parafraseando esta história em quadrinhos: o que mais temo é que meu trabalho resulte em perda de tempo para eventuais pacientes e leitores. Tempo: único bem não renovável, quase insustentável por imaterialidade, embora eterno enquanto dure, em eterna combustão, onde o comburente somos nós mesmos. Por trabalho, entendo o que tentei e ainda tento fazer em casa; no consultório, há 40 nos; no Instituto de Psicanálise da SBPSP, há 15 anos; e há dois anos, no Hospital de Reabilitação Física da Faculdade de Medicina da USP. E nas minhas tentativas em compartilhar algo desses trabalhos, através da escrita. Creio que adquiri este temor depois de trabalhar no hospital psiquiátrico dirigido pelo Dr. Mario Yahn. Admitia jovens estudantes em seu hospital; observando seu enorme entusiasmo pela psicanálise e ausência de espírito crítico relativo ao que achavam que era psicanálise, alertou: “Vocês vão ficar três, quatro anos com os pacientes e depois vão descobrir que os fizeram perder seu tempo”. Coincidiu com o fato de ter ouvido anedotas na escola médica: “Neuróticos erigem castelos no ar; psicóticos habitam neles; psiquiatras cobram o aluguel”. Ou, “cirurgião é uma pessoa acordada que trata de uma pessoa dormindo; anestesista é uma pessoa semi-dormindo que trata de uma pessoa dormindo; psicanalista é uma pessoa dormindo tratando de uma pessoa acordada”. Liguei tudo isso para construir meu temor: não queria saber de nada com uma psiquiatria e uma psicanálise desse tipo. Muito tempo depois, percebi que a última anedota, caso pudesse ser modificada, substituindo “sono” por “sonho”, continha uma verdade sobre conteúdos manifestos e latentes e a capacidade do analista de poder sonhar, mas, do modo que estava, compôs meu temor, emulado do ensinamento de um dos primeiros analistas no Brasil. Temor persistente. Aqui e agora... o espaço-tempo das associações livres. Uma das essências de psicanálise, nutrida pela percepção sobre a irreversibilidade e “irrenovabilidade” do tempo, delineada por Freud várias vezes. Entendo que um psicanalista não pode ser “grileiro” das fugas fantásticas imaginárias no passado, nem no futuro dos nossos pacientes. Analogamente àquela paciência necessária para submeter-se a uma psicanálise, diz-se que, para se tentar escrever, paciência é necessária. Pelo menos [que seja] idêntica à dos leitores. Daí, o nome “paciente”. Igualmente se poderia chamar analistas de pacientes. Penso que a psicanálise é filha da medicina; alguns filhos ultrapassam os pais; sua possibilidade de maior alcance parece-me residir na demanda de que todo psicanalista sempre seja paciente! Dificilmente, iria se requerer que todo médico sofresse as doenças de seus pacientes, o que, em um caso extremo, exterminaria a atividade médica. Em psicanálise, parte-se do princípio empiricamente verificável de 52
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que a neurose e a psicose são universais: democráticas, poderíamos dizer. Por outro lado, médicos que sofrem de doenças, caso sobrevivam, costumam dizer que saíram da experiência sendo “mais médicos”; que, “agora, compreendem o que os pacientes lhes diziam”. Então, uso a palavra “paciente” em seu duplo sentido. Até o ponto que pude investigar, paciente é um daqueles poucos nomes que permanecem adequados à sua origem etimológica funcional4.
PRAZER-REALIDADE entrega à leitura difere de subserviência às leituras Entregas à leitura solicita considerável paciência de eventuais leitores. Entrega pode parecer uma palavra inadequada, mas, como alguns termos em português, seu campo semântico admite muitas interpretações, ou seja, cabe muita coisa, atos e eventos que podem ser descritos por essa palavra. Posso fazer uma analogia de Entrega com o termo Hábito ou adicção. Cabem neles muitos atos e eventos, em amplo espectro - indo da utilidade (como hábitos de higiene) até à inutilidade (como uso indiscriminado e extemporâneo de drogas psicotrópicas, luz solar ou álcool). Vou aplicar o mesmo espectro para Entrega: creio que os atos e eventos úteis implicam entrega, sob o princípio da realidade. Os inúteis, em sua maioria, implicam subserviência ao princípio do prazerdesprazer. Para mim, subserviência difere de entrega em muitos aspectos; sendo o primeiro, a falta de liberdade na subserviência (ou submissão), que pode ser feita em casos extremos de ameaça à sobrevivência, e o segundo, a presença predominante de responsabilidade pessoal e reconhecimento de necessidade. Para muitos, entrega à leitura corresponde a reconhecer uma necessidade. Enfatizo ainda outra discriminação: “Entrega à leitura” difere, como água de óleo, de “subserviência às leituras”. Com isto, tento acrescentar um fator prevalente no nosso momento histórico, chamado pós-modernismo. Existem leitores subservientes ao desejo, ao princípio do prazer-desprazer, e leitores submissos ao princípio da realidade. Os primeiros fazem “leituras”. Os últimos tentam alcançar “leitura”. Não se limitam a “leituras individuais”, bandeira do pós-modernismo, que nega a detecção de invariâncias transcendentes, mas que legalizam a verdade absoluta, que se transforma em “propriedade do leitor”. Os leitores minimamente pacientes a que me refiro não são estes. São aqueles que, como observou John Ruskin , não procuram provar seus próprios significados com pedaços escolhidos do texto, nem encontrar seus próprios sentidos já bem conhecidos, no texto. São aqueles aos quais Robert Browning também se referiu, os que não procuram textos como “substitutos do charuto para o homem desocupado”. Há leitores que consideram que o livro é “só dele”, e que “só ele, unicamente, consegue ler o livro, na sua interpretação”. O 4
Creio que alguma leitura atenta das obras de arqueologia filológica de Giambattista, Vico e Friedrich Nietzsche pode formar uma contribuição minimamente boa para a delimitação da área que pretendo descrever neste momento.
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Entrevista com Paulo Cesar Sandler
mesmo ocorre com autores – Bion escreveu em Uma Memória do Futuro que a pessoa que tiver seu nome impresso na lombada do livro, como autor, pode achar que o livro é “dela”. Quando o artesanato de encadernações gravadas sobre o couro eram apreciadas, muitos leitores colocavam seu próprio nome sobre os livros, além do título e do autor. O caminho que um escrito toma na mente dos leitores é desconhecido. Para uso absolutamente privado – caso de estados delirantes e masturbatórios, por exemplo – pode ser ao bel-prazer do leitor, que vira autor de uma obra que não é sua. Para uso público – Bion alertou em Cogitações que uma obra científica precisa ser publicada, ou, no seu linguajar prudentemente hifenado, submetida a uma pública-ação. Acho que pode se acrescentar que uma obra artística também precisa ser publicada. Nesses dois casos, creio que há uma necessidade absoluta: reconhecimento de transcendências – “pensamento sem pensador” – é algo possível tanto para autores como leitores, que se reconhecerão sem nunca terem se conhecido pessoalmente. Pode ser que minha referência sobre histórias em quadrinhos – um gênero de artesanato literário geralmente considerado “inferior” pela intelligentsia, como a literatura policial – soe estranha. Ou deslocada; ou extemporânea. Ou não, se for considerada como um tipo de mito pessoal meu que expressa duas capacidades: liberdade e receio. Já que estou tentando falar em tentativas de não se envolver em perdas de tempo - muito diferente de “se ganhar tempo”, perspectiva que me parece submissa ao ciclo de avidez-inveja, talvez seja útil examinar alguns modos que me parecem ser perda de tempo.
ELITES foi neste leito concreto que se forjou a denominação fantasiosa de esquerda e direita Creio que conflitos guerreiros – onde a primeira vítima é a verdade, e a segunda vítima é todo mundo envolvido na guerra – expressam inestimável, infinita perda de tempo no finito cruento e bestial que determinam. Exemplo notavelmente persistente, ainda em evolução, e marcado, como toda guerra, por involuções, parece ter ocorrido desde os pródromos da assim chamada Revolução Francesa. Emergiu um grupo onde a vinculação entre os integrantes se fez por aquilo que Durkheim chamou, dois séculos depois, de solidariedade mecânica. Autodenominado “esquerda”, acreditava-se critico de uma desigualdade social, apregoando liberdade, fraternidade e igualdade. Apregoar, como demonstra a psicanálise, pode expressar resistência a efetuar, e fala-se o contrário do que se faz; para muitos, apenas falar equivale, em alucinose, a fazer. Demasiadamente humano, cedo, muito cedo, reeditou a 54
Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
nova elite ‘inegualitária’, qualitativa, mas não quantitativamente diversa da elite anterior, a qual chamava-se “nobre”, por julgar-se superior a tudo e a todos, única e eterna, e nem se preocupou em criar novo nome; arrastada pela oposição guerreira, acabou sendo intitulada “direita”, já que nunca iria se misturar com o que considerava ser “gentinha”. Elites mantêm esse hábito guerreiro: especialistas em clivagens cada vez mais diminutas, seu intuito final é a propriedade da verdade única e absoluta, chamada na matemática de postulado e na sociologia, de ideologia. Coisa que não admite senso crítico. Elites que criaram suas intelligentsias, antes mesmo de se inventar este nome, para qualificar parcela ainda mais rarefeita deste grupo autoelitizado já rarefeito - aquela parte que se crê altamente pensante. Imaginam-se crème de la crème destas mesmas elites. Diferentes na aparência externa – Freud denominou-a “conteúdo manifesto” –, mantêm, de modo desconhecido para si mesmas, a mesma invariância, subjacente às aparências externas. Estes dois partidos aparentemente opostos, em disputa pelo lado do rei – pois foi neste leito concreto que se forjou a denominação fantasiosa de “esquerda” e “direita” – em compulsivo, eterno retorno a ataques visando à extinção do indivíduo: outra invariância que subjaz as formas externas diversas. Ambos partidos se veem a si mesmos e se apresentam como defensores maiores dos “direitos individuais”, sempre terminam desrespeitando-os, até à extinção. Psicanálise demonstra que manifestações abertas de “amor” encerram “ódio” em igual proporção; aquilo que permanece inconsciente assume o timão, prevalece. Ambas intelligentsias consideraram a criação de Uderzo e Goscinny como sendo representante “do outro lado”. Ambas muniram-se de argumentos racionais, postura mental que Freud chamou de “racionalização”; Bion, ancorado em Freud, Hume e Kant, demonstrou que toda lógica é psicológica. As considerações racionalizadoras da “esquerda” e da “direita” sobre Asterix usualmente alcançam o (ou degeneram para) domínio de acusações, tanto positivas (por exaltações), como negativas (por imprecações). Os que se sentem “esquerda” acusam Asterix de revolucionário, anticapitalista, antinazista e/ou antiamericano, nacionalista, reacionário, fascista, gaullista ou precursor de Le Pen. Os que se sentem “direita” acusam-no de revolucionário, anticapitalista, antinazista e/ou antiamericano, nacionalista, realista, representação moderna de De Gaulle. Acusações estas algo estremecidas após a inauguração de um parque de diversões Asterix inspirado em Disneyworld.
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GUERRAS dentre elas, as fratricidas parecem ser as mais exterminantes Acusações – conteúdo manifesto – trocam de lugar; sua invariância subjacente, ou seja, o fato de serem acusações, permanece. Como observou Whitehead, guerras, como a levada a cabo entre Galileo e a Inquisição, ocorrem quando pessoas ou grupos têm a mesma opinião falsa, sob formas diferentes, e ficam inconscientes a respeito da falsidade de sua opinião e de que a diferença é apenas formal. A Inquisição afirmava que o centro do Universo era a Terra; Galileo, que era o Sol. Os dois recaíram na mentira: o Universo não tem centro. Esta observação foi trazida aos psicanalistas por Money-Kyrle. O “nacionalismo” atribuível a estes gauleses imaginários é metáfora cultural sobre a possibilidade – também obstáculos – para expressão e usufruto de liberdade individual; para que as pessoas possam tornar-se elas mesmas, em ambientes que combinam tanto nutrientes, como sérias hostilidades à tal liberdade individual. Se as segundas são mais numerosas do que as primeiras, é algo que cada pessoa ou povo pode apreciar por si mesmo. Liberdade que pode ser obtida apenas às custas da não subserviência ao princípio do prazer-desprazer – como demonstrou Freud, precisando de pelo menos quatro décadas para perceber isso. Princípio gerador, como demonstrou Klein, do ciclo autodestrutivo de avidez-inveja, já delineado poeticamente por místicos, profetas e literatos como Shakespeare, Goethe, Diderot, entre tantos outros. Dentre as guerras, as fratricidas parecem ser as mais exterminantes. Mais conhecidas, hoje em dia, pelo nome de “dissidências”, em associações ou clubes (esportivos, científicos, artísticos). Uma delas pode ser vista no movimento que se iniciou, historicamente, com as descobertas de Freud, chamado por ele de “movimento psicanalítico”. Esta guerra ainda mais inconsequente do que as guerras reais, as de pilhagem com armas de fogo ou biológicas, ocorrem, do ponto de vista da psicologia profunda, como se dizia na época de Freud, por efeito de fantasias de superioridade: quando uma “expansão” – como a contribuição de Bion sobre a obra de Freud e de Klein, ou a de Klein e Winnicott sobre a obra de Freud – é utilizada como “substituição do melhor”, que tenta extinguir o “pior”. Sendo “o pior”, a obra anterior. Em muitos países, “o pior” tem sido Freud – que, para uma legião, talvez crescente, sequer psicanalista foi. Alguns institutos recomendam que não se leia a obra dele – como o fez a Igreja Católica, Judaica, Stalinista e Nazista na época em que ele estava vivo! Cedo, muito cedo – especialmente após a morte de Freud –, os clubes ou associações de psicanalistas (ou pretendentes a serem) submergiram em “-anos” e “-istas”, os entronizadores de ídolos. Cada um, sentindo-se superior a todos os outros: freudianos, adlerianos, junguianos, kleinianos, winnicottianos, lacanianos, bionianos, kohutianos, rogerianos, morenianos, heideggerianos...ad infinitvm. Ídolos devidamente 56
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falecidos – nunca poderão resmungar, se revoltar ou desaprovar a ‘idolização’ efetuada pelas elites apostólicas. Repetem compulsivamente (de modo consciente, como técnica de arregimentação política, ou não; no movimento psicanalítico, por falhas na análise pessoal, dita “didática”) o eterno retorno compulsivo, e por isto servil, ao princípio do prazer-desprazer. Com tudo isso, estou tentando responder à pergunta feita pela Cláudia e pelo Carlos, com algo que, gostaria, fosse consistente, sobre minha formação psicanalítica. Indivisível da formação que me foi dada pela oportunidade de receber vida, muito antes do que eu possa me recordar. E que, creio, influenciou-me, ou tornou necessidade imperiosa que eu, décadas depois, tentasse escrever a série sobre A Apreensão da Realidade Psíquica. Por que você escreveu isso? Não sei. Afinal, alguns deixaram subentendido: por que você perpetrou isso?
ORIGEM alguns chegaram à Áustria, onde o nome Sandler indica um andarilho, aquele que veste sandálias Venho de uma família de migrantes originária de uma região que nunca foi estado político: Bessarábia, uma região do tamanho de Alagoas - creio que esta associação veio porque estou pensando no Carlos Vieira à medida que vou respondendo. Entre o Rio Danúbio e o Rio Dniester, compreende parte do que se chamava Valáquia, um corredor multiétnico que abrigou muitos invasores: sármatas, cimerianos, celtas, romanos, gregos, godos, ostrogodos, rumenos, poloneses, magiares e turcos. Alguns deles, dominados pelo Império Otomano, chegaram à Áustria, onde o nome Sandler indica um andarilho, aquele que veste sandálias. Meu Avô materno, Salomão, nasceu em aldeia primitiva e segregada, incendiada várias vezes, chamada Iedenitza (ou Yedenetz), naquilo que, então, se chamava Rússia. Comercializava cavalos. Aquele que um dia seria meu Avô paterno, Luiz, nascido em uma cidade maior, Bar, colocava ferraduras nas patas desses mesmos cavalos – o que selou sua amizade na adolescência: Luiz era primo-irmão da esposa de Salomão, Sara. Farto de violências sociais e assassínio institucionalizado, instrumentado por miséria econômica e preconceito – o último pogrom havia sido em 1903 –, Salomão achou que poderia vir para um lugar em que pessoas dispostas a trabalhar seriam livres... Deixou sua família – a esposa, Sara, e dois menininhos – “no Rússia”. Salomão aportou em Santos em 1909, logo “subindo” para São Paulo.
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Entrevista com Paulo Cesar Sandler
Enquanto Salomão, meu futuro Avô materno, “ganhava a vida” no Brasil, Luiz, meu futuro Avô paterno, foi convocado pelo exército czarista. Aos 20 anos, foi servir no front oriental. Até seu falecimento, não conseguiria mais dormir em paz. De olhos entreabertos, sonhava com companheiros mortos na trincheira, onde “nada de novo (a não ser morticínio) ocorria”, conforme dizia um livro que seu filho levou para casa 20 anos depois. Desmobilizado bruscamente em função da vitória da revolução comunista, descobriu que sua casa havia desaparecido e que a prima Sara havia perdido os filhos. O que era o azar de um, podia ser transformado em sorte do outro. Bion, que também lutara nesta mesma guerra, em outro front, chamou isso de “transformações”. O ferreiro Luiz acabou sendo o maior responsável para que os planos do comerciante Salomão pudessem ser, finalmente, bem-sucedidos. Sua formação militar inopinada permitiu-o encaminhar sua prima-irmã Sara ao Brasil. Em janeiro de 1919, Sara reencontrou Salomão, depois de uma espera mútua de dez anos. Luiz – depois de encaminhar pelo menos vinte primos e três irmãs por várias fronteiras –enfrentava problemas insolúveis em Iedenitza. Sua numerosa família não queria sequer pensar em vir para um país onde, ouviram falar, havia cobras e índios nas ruas. Uma irmã e dois irmãos migraram para a França e experimentaram incomparável desenvolvimento financeiro. Três irmãos foram para “não sei mais aonde: África, América, talvez Canadá”. Luiz foi o único que resolveu vir para onde a prima e o amigo já estavam. Meus avós foram totalmente gratos ao país que os acolheu e lhes deu oportunidade de sobrevivência digna, até sua morte. Fizeram questão de “esquecer o passado” e insistiam em só falar português, “meio macarrônico”, como eles diziam entre sorrisos e uma certa vergonha. Salomão e Sara, apesar da severa perda, tiveram três filhas no Brasil; Luiz e Rosa, um casal. Toda a educação dessas cinco crianças, que cresceram juntas, foi feita em colégios brasileiros. Meu Avô paterno conheceu alguma fartura financeira e era amigo de muitos migrantes que ficaram famosos, pelo fato de ter fundado algumas instituições. Sempre que aparecia outro migrante russo, oferecia um pacote de roupas usadas, para que iniciassem seu trabalho, sem cobrar nada por isso. Muitos anos depois, conheci pessoas que foram ajudadas por ele dessa forma. Entre essas pessoas, vários primos de sua irmã, que perdera o marido, e que também vieram com suas esposas por intermédio das artes e manhas do antigo ferreiro Luiz. Eles moraram em sua casa por um bom tempo. Um dos sobrinhos de Salomão, depois jornalista muito famoso, principalmente no segundo governo Vargas, começou a se alfabetizar quando morava por lá. Salomão, analfabeto, colocava isso como condição de ajuda: um tipo de bolsafamília ancestral sem intenções políticas.
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O PAI Luiz o chamou de Jayme, o que, no dialeto iídiche, simbolizava ‘vida’ O filho mais velho de Luiz, meu futuro Pai, nasceu em 1920. Luiz o chamou de Jayme, o que, no dialeto iídiche (no caso, mistura de alemão com palavras ucranianas) falado por Luiz, simbolizava “vida”. Luiz e Jayme mantiveram contato epistolar esporádico com os poucos irmãos e sobrinhos, agora franceses, até a década de 30. Se eram poucos, minguaram muito. Em 1946, Jayme descobriu que quase todos, menos dois, foram parar em Auschwitz. Os primos que ficaram na região do Dniester desapareceram naquele corredor bombardeado e incendiado, que sacrificou pelo menos 10 milhões de almas, nas idas e vindas dos exércitos russo e nazista. Cresci sabendo que éramos os únicos Sandler em São Paulo. Fez parte de minha formação o fato meramente casual de provir desta família de migrantes, cujo comportamento incluía, acima de tudo, ajuda mútua. Tive casa e comida, coisa que faltou a meus avós e a meu Pai, no final de sua adolescência. A despeito das condições financeiras, meu Pai formou-se em medicina, no Rio de Janeiro. Para não passar fome, alistou-se no corpo de oficiais da reserva. Convocado para a campanha da FEB na Itália, foi parar no hospital antes disso, ferido à bala de fuzil em exercícios de guerra. Ginecologista, especializou-se em fertilização. Algo que o fez retornar a um interesse de seus tempos de estudante: psicanálise. Sete anos depois (1952), iniciou formação analítica na primeira turma de psicanalistas de São Paulo formados sob critérios de uma IPA ...hum...ainda criteriosa. Meu Pai mostrou-me que medicina, Freud, Shakespeare, Goethe, Beethoven e a língua inglesa existiam. A não ser medicina, aprendeu tudo isto por ele mesmo. Depois, descobri que um certo autodidatismo é necessário para qualquer atividade prática. Dele depende o “olho clínico”. Papai gostava tanto de medicina que fez uma promessa a si mesmo: daria para seu filho o nome de um professor que o ajudou. “Dr. Paulo Cesar de Andrade”, nome que hoje decora uma rua no Jardim Botânico.
PRECONCEITO aos 6 anos, ouvi falar de uns tais ‘judeus que nasciam com chifrinhos’ na própria testa Minha formação inclui contatos com aquilo que, depois, aprendi ser “preconceito”, forma maior que assume a mentira. Aos 6 anos, na escola primária, ouvi falar de uns tais de “judeus que nasciam com chifrinhos” na própria testa. Fui perguntar o que era isso para minha mãe, que contou a meu Pai e deu o maior forrobodó na escolinha. A partir daí, meu Pai passou a comemorar apenas uma data religiosa: reunia os primos e 59
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contava a história de um tal de Moysés, que, além de governar as ondas de um mar, era uma pessoa que não recebia ordens de ninguém, “nem mesmo do faraó”. Aos 9 anos, enfiei uma ideia na cabeça que, depois, descobri como teimosa e medrosa: preferia que ele [meu Pai] não mais pagasse meus estudos. Resolvi entrar em um colégio de Estado. Pode ter sido alguma intuição ou terror infantil edipiano: pensava continuamente, de modo aterrorizado, que meu Pai poderia falecer cedo e que eu precisaria “me virar”. Dois anos depois, Papai “caiu doente”, como dizia minha mãe. Uma raríssima infecção extraintestinal, plena de complicações. Foi operado de urgência por um amigo, David Rosemberg. A documentação da cirurgia virou caso de revista técnica e nutriu uma tese de doutorado. A não ser por esse temor, creio que tive uma infância feliz. Sete anos depois, a sorte sorriu de novo e entrei em universidade pública, nos tempos em que estas eram consideradas muito boas. Sobre ele falecer cedo, isso ocorreu, mas, por sorte, ainda demorou 18 anos depois dessa cirurgia!
A VERDADE perplexo, perguntei: ‘mamãe, por que estou sofrendo tanto?’ Sobre meu primeiro amigo, meu Pai, acrescento que jamais tive o indômito espírito pioneiro e a capacidade amorosa que o caracterizou; nem a de meu Avô, um tipo de faz-tudo e conserta-tudo. Acho que eles amavam o que faziam. Muito tempo depois, descobri que amavam o que era verdadeiro. Um dia, meu Pai me falou: “As crianças não mentem, a não ser que as ensinem; e algumas, nunca aprendem!”. Acho que as comparava com adultos. Aos 4 anos, tive minhas amígdalas arrancadas, cirurgia da moda; quando consegui falar, perplexo, perguntei: “Mamãe, por que estou sofrendo tanto?”. Fiquei muito interessado na anestesia e achei que o médico, Dr. Medicis, era um grande amigo. Nunca pensei realmente em fazer nada que não fosse medicina, mesmo que não soubesse patavina do que seria isso. Contribuiu bastante o fato de que um de meus primos, Eduardo Berger, entrou na mesma faculdade que eu sonhava entrar. Com ele, aprendi a maior parte da pequena medicina que fiz depois. Devo a este primo o fato de ainda estar vivo – ele diagnosticou meu primeiro câncer e operou-me de uma apendicite supurada... aos 60 anos! Procurado por toda a família, ainda operou minha mãe, uma tia e sua própria filha.
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O HUMANO para cada Freud, temos pelo menos um Stalin A formação médica que recebi limitou excessivamente o acesso a informações de cunho histórico e filosófico. Nos anos 80, descobri a origem do termo “humano”, através do meu melhor guia para estudos humanísticos: uma obra de Bion, Uma Memória do Futuro, onde existem duas referências à obra de Vico. Procurando a fonte, soube que o termo “humano” provém de “húmus”, a matéria putrefata misturada com terra que envolve cadáveres. Humano quer dizer: aquele que vira cadáver, aquele que morre. Ou seja, todo mundo. Antigas intelligentsias acharam-se pináculos do desenvolvimento; autodenominaram-se “homo sapiens”. Vou parafrasear uma parte do discurso de um ex-prefeito de Hamburgo casado com uma psicanalista, Von Dohnany. Na cerimônia de abertura do primeiro Congresso de Psicanálise (1986) em solo alemão no pós-guerra, disse que: “nós, alemães” sempre falamos “nosso Freud, nosso Bach, nosso Einstein” e que “precisamos então dizer, nosso Hitler”. Minha paráfrase de natureza biológica, e não apenas étnica para nós, é que somos “homo sapiens e não sapiens”: “para cada Freud, temos pelo menos um Stalin”. Muitos daqueles que se convenceram de que somos apenas “sapiens” brandem o argumento de que conseguimos nomear tudo: coisas, pessoas, eventos. Nomeamos coisas as quais não temos a menor ideia do que sejam. Nomeamos coisas antes que as conheçamos – por exemplo, o nome de nossos filhos, e, por conseguinte, já que todo mundo é filho, nossos nomes. Hoje, penso que essa é uma das manifestações mais insuspeitas do preconceito. Mais do que isso, parece-me fator originário do preconceito. Nomeamos, inclusive, coisas que não existem. Também nomeamos coisas que podem vir a existir, sem ainda poder saber se, um dia, serão conhecidas ou existirão – o que diminui a chance dessas coisas poderem ser melhor nomeadas, ou seja, que correspondam a algo que existe na realidade. Um bom exemplo disso é a palavra humano! Esta capacidade desenfreada de nomear também resulta em que sempre aparece alguém dizendo que um determinado “aquilo” não é “aquilo” que disseram que era. Um exemplo simples para nós, integrantes do movimento psicanalítico, é a palavra “transferência”. Muitos disseram e continuam dizendo que transferência não é o que Freud – que, afinal, emprestou o termo, pela primeira vez, de algumas teorias biológicas e físicas – observou que era. Isso perturba excessivamente tanto a criação como a manutenção de conceitos amplamente utilizáveis. Principalmente em disciplinas novas e que lidam com fenômenos imateriais, como a psicanálise.
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Entrevista com Paulo Cesar Sandler
AMOR como verdade, ou existe, ou não existe. Há coisas que admitem gradações; outras, não Em minha experiência, aquilo se chama de “morte” equaliza-se a Nada. Não se trata de “O Nada”, coisa de filósofos. Esta experiência é influenciada por dois fatores: (i) a prática médica; e (ii) de ter sido submetido à vivência de ver, sentir e sofrer o fato de que vários amigos e parentes, não mais do que de repente, ficaram mortos. No polo oposto ao Nada, ou morte: pró-criação, que inclui algumas duplas paradoxais: cuidado e falta de cuidado; ajuda mútua e ausência de ajuda mútua. Acredito que a experiência da guerra – na qual a medicina e a psicanálise sempre encontram oportunidades de desenvolvimento acelerado – e a experiência da maternidade, coisa que nunca tive e nunca poderei ter, apesar de ter podido usufruir minimamente da oportunidade de contribuir e participar, oferecem tudo o que uma formação médica também oferece. Com isto, estou dizendo que não vejo nenhuma obrigatoriedade para a formação de psicanalistas, que, para mim, é uma ode à liberdade, mas que formação médica, maternidade, paternidade e experimentar (não apenas sentir) guerra ajudam. Meu Pai “amava psicanálise”, pelo menos segundo todos os seus amigos que conheci, como minha mãe, eu mesmo, meus dois irmãos e muitos médicos como Cicero Cristiano de Souza, Gil Soares Bairão, José de Barros Magaldi, Josef Feher, Isaac Mielnik, Daher Cutait e, principalmente, Cleo Lichtenstein Luz, Mauricio Levy (parente do patrono da escola que estudei, que aceitava que se falasse “Leví”), Roberto Azevedo, Otávio Luiz de Barros Salles, Elza Barra, Breno Yulo Ribeiro, Virginia Bicudo, Laertes Ferrão, Eugênio Mariz de Oliveira Netto, Mario Yahn, Gecel e Fajga Szterling, Bernardo Blay, Paulo Gonzaga de Arruda, Isaias Melsohn, Chaim Hamer, Orestes Forlenza, Guita Guinsburg, Regina Schnaiderman – que, segundo ela mesma me revelou, motivou-se a mudar de profissão (era professora de química) para praticar esta atividade em função de seu contato com meu Pai. Outros colegas que o respeitavam – como Paulo Vaz de Arruda, Waldemar Cardoso, Darcy Uchoa e Frank Philips – achavam que tal amor era excessivo, comentário que até hoje não alcanço. Pode ser apenas mais uma de minhas incontáveis limitações, mas ainda não consegui quantificar “amor”; como verdade, ou existe, ou não existe. Há coisas na vida que admitem gradações e tonalidades; outras, não. Ainda hoje, posso ouvir, por leitura, suas dúvidas, concordâncias, discordâncias, hipóteses, conclusões e heurekas, na letra desenhada que nunca pareceu letra de médico, com tinta lilás que não existe mais, escrita com caneta Parker 61. Estão gravadas em anotações à margem de uma enorme biblioteca que acabou não cabendo mais no meu consultório, nem em minha casa. Parte dela, por doação que reconheço ambivalente, forçada por necessidade, pode ser consultada nas bibliotecas da SBPSP e de Ribeirão Preto. 62
Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
MENINO nunca fui pioneiro em nada A criança e adolescente que fui conheceu, mais ou menos superficialmente, quase todos os fundadores da SBPSP - à exceção de um. Eu não fazia a menor ideia do que era psicanálise, mas meu Pai dizia “dever muito” a um Dr. Schlomann, seu primeiro analista. De 20 a 30 anos depois, conheci esses fundadores de um modo mais ou menos abrangente e profundo. Principalmente dois deles, por ter me submetido a supervisões e contatos prolongados: Virgínia Bicudo e Frank Julian Philips. Ter entrado em uma faculdade de medicina incentivou esse tipo de ideia de fundo delirante, eivada de desejo e prazer – que todo mundo “se ajudava”. Como entre as minhas várias características, que hoje vejo como defeitos, mas que, naquela época, achei que eram sinais de prudência, existe aquela que já assinalei, de nunca ter sido pioneiro em nada. Fui fazer alguma coisa parecida com aquela que achei que meu Pai fazia, também devido ao amor que ele parecia ter por mim e eu por ele. Fez parte de minha formação o fato de minha mãe tocar piano de ouvido: até hoje, penso que ouço os tangos e músicas russas e chorinhos brasileiros que faziam a delícia de meu Pai. Fez parte de minha formação tentar jogar futebol e basquete, e tenho certeza de que sempre fui o pior dentre os menininhos, mas fiz uma certa carreira como catador de bola. Um dia, consegui marcar um gol. Fiquei extremamente feliz, paralisado pelo impacto, durante talvez uns 10 segundos, quando tive que correr feito um doido para fora do “campinho”. Todo mundo, menos eu, já tinha descoberto que era um gol contra meu próprio time. Graças a meu Pai e meu primo mais velho, Ronaldo, aprendi a andar de bicicleta, o que quase me redimiu dos fracassos com esportes com bola. Aos 11 anos, descobriu-se que eu tinha sérios problemas de vista: ambliopia, astigmatismo e hipermetropia (o único caso onde fui hiper em alguma coisa). A coisa que mais queria era voltar a jogar futebol. Readmitido no time, acabei levando uma bolada que estilhaçou meus primeiros óculos. Sempre sortudo depois de um azar, não atingiu a vista. Depois, descobri que tinha pé chato e patela alta, causando sérios problemas no joelho e na marcha.
PROFISSÃO REPÓRTER o contato com a mentira me fez fugir espavorido do ambiente Fez parte de minha formação tentar ganhar um dinheirinho um tanto precocemente, com 13 anos, dando aulas para criancinhas, amigos de meu irmão menor, e uns poucos colegas de classe, daquilo que eu não conhecia direito, como aritmética, geografia e hebraico. Um desses colegas, Laerte, indicou-me para posar para uma reportagem, no Instituto Biológico, quase em frente de minha casa, onde um repórter iria entrevistar um biólogo especializado em formigas. 63
Entrevista com Paulo Cesar Sandler
Adorava biologia e fiquei interessado no formigueiro artificial montado no instituto. Enquanto isso, o repórter desentendeu-se com o entrevistado. O fotógrafo aconselhou-o: “Olha, dá a reportagem pra este menino, que estava prestando atenção no professor Autuori”. Por mera coincidência ou sorte, acabei entrando para trabalhar em um grande jornal paulistano. Lenita Miranda de Figueiredo e os biólogos-médicos José Reis (então diretor de redação do jornal e diretor do Instituto Biológico), Isaias Raw e Maria Julieta Ormastroni organizavam um suplemento infanto-juvenil como apêndice de outra instituição, o IBECC. Leram meu texto sobre formigas e resolveram aceitar um “repórtermirim”. Foi aí que comecei a aprender inglês – lendo a Encyclopedia Britannica. Portanto, fez parte de minha formação o fato de ter trabalhado por seis anos em um jornal de grande circulação, a Folha de São Paulo, fazendo colunas semanais sobre assuntos usualmente considerados abstrusos pela intelligentsia. Entrei em 1963, escrevendo sobre a vida das formigas. Passei por filatelia, coisa que treinou minha paciência, pois não era nada que realmente me interessava, e me deu noções de história. Desemboquei na paixão infantil que permanece, conhecida hoje como história de tecnologias e das corporações que a fabricam; mais especificamente, de uma geringonça chamada “automóvel”; outro nome impreciso, por pretensão, já que esses dispositivos ou instrumentos nunca são, realmente, auto-móveis. Talvez nada seja, mas a única entidade que se aproxima disso é aquela que é viva – ainda que dependa do ambiente, da força de atrito. De qualquer modo, achei que jornalismo era um excelente modo de “ajudar pessoas”, por compartilhar informação e educação. Um fotógrafo e dois jornalistas acharam que eu tinha jeito para a coisa: tentaram que tentaram me ensinar como se “fabricava notícia”. Fugi espavorido daquilo que dava um bom dinheirinho para o dia-a-dia de um adolescente de classe média. Aflito porque os bem-intencionados professores estavam me ensinando a mentir, achei melhor me dedicar apenas ao estudo da medicina. Estava no segundo ano, envolvido na mentira institucional propagandeada como “revolução redentora do 31 de março”, que havia se dado no dia 1º de abril. Se houvesse um coração ou um fígado recoberto por algumas camadas de epiderme e gordura e fáscias e coisas assim, ou caso o sangue jorrasse por um corte, ninguém iria dizer que se tratavam de outras coisas. Não se tratava de fabricar mentiras. Nem de “leituras individuais” do que havia, ao bel prazer da psicopatia ou de outros desejos, inclusive comerciais, do praticante. Seis anos depois, em 1968, outros repórteres tomaram-se de cuidados por mim. Achavam que eu dava para a coisa; um deles era dos Diários Associados. Tentaram me ensinar como se “fabricava notícia”. O contato com a mentira me fez fugir espavorido do ambiente. Meu refúgio, em 1969, foi o segundo ano na escola médica. Afinal, se descobríamos um fígado ou hepatócitos, ou um sarcoma, não havia nenhuma possibilidade de dizer que aquilo era outra coisa que não um fígado, hepatócitos ou um sarcoma. Concepções e conceitos eram baseados na realidade, não na mera visão 64
Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
pessoal do investigador, por mais maravilhosas que lhe parecessem suas próprias ideias. Lembro-me do pai de um colega de ginásio, jornalista razoavelmente famoso, um daqueles que tentou me ensinar a fabricar notícias, que me questionou: “Pode-se beber álcool quando se toma antibiótico?”. O segundanista de medicina, ainda com um rei na barriga, foi peremptório: “Não”. E ele, resignado, mas dando de ombros: “Nunca mais tomo antibiótico”
FORMAÇÃO ANALÍTICA nessa época, estava muito sob efeito da ideia de jerico de que todo mundo ajudava todo mundo Tenho certeza de que a pergunta também inclui alguma informação sobre minhas análises. O primeiro profissional que procurei, aos 21 anos – já praticava ilegalmente a atividade médica, pois não era formado – ostentava o título de psicanalista. Quando soube – e soube logo – de minhas sérias limitações financeiras, indicou que eu poderia fazer psicodrama, com ele mesmo. Isso incitou algum interesse em trabalhar com grupos, mesmo que a experiência tenha tido valor terapêutico que poderia ser medido em zero grau Kelvin. No entanto, achei que havia valor diagnóstico naquele método. O que me motivou a procurar uma análise? Dificuldades na vida, uai – estava pensando em me casar. Aos 24 anos, residente em psiquiatria, minha amada concebeu nossa filha, Daniela, algo que me impulsionou com velocidade supersônica a uma análise. O primeiro que procurei era amigo de meu Pai. Famoso por sua inteligência e erudição, praticamente me expulsou de seu consultório, ao saber de minhas limitações financeiras. Fui perguntar a meu Pai o nome de alguém. Nem pestanejou: “Deocleciano Alves. Acho que ele é o analista mais criativo da sociedade”. Com quem me submeti, anos depois, a uma “segunda análise”. Entre essas duas, tive contato, em termos de “análise didática”, com Drª. Judith Seixas de Carvalho Andreucci, como ela gostava de ser chamada! Outra vez, indicação de meu Pai, que novamente não pestanejou: “Acho que ela pode te ajudar. Na minha opinião, é a pessoa que lida melhor com psicóticos na sociedade”. Era uma época meio diferente... Deocleciano relatou, publicamente, que, ao se encaminhar para formação analítica, fora entrevistado por Elza Barra – acompanhei-a em seu leito de morte, por câncer, no Hospital do Servidor Público. Encarregada de realizar os testes de Rorschach nos candidatos, disse a Deocleciano que ele apresentava muitos sinais de psicose, mas que isso sempre acontecia com candidatos e, como logo iria fazer uma psicanálise, isso não seria problema, era até uma vantagem! Analistas daquela época eram bem considerados caso pudessem examinar seus aspectos ligados à posição esquizoparanóide. 65
Entrevista com Paulo Cesar Sandler
Era a época em que as contribuições de Klein estavam completando seu processo de introdução. Meu Pai havia acabado de terminar sua tradução do Origens da Transferência, Virgínia Bicudo voltara há uns 7 anos de sua formação na Inglaterra, Lygia Amaral falava sobre observação de bebês, Frank Philips estava se reinstalando em São Paulo, e o ambiente era muito animado, fascinado com Klein, Bion e Winnicott. Drª. Judith ajudou-me a complementar minhas ideias confusas sobre amor e ódio, que, para mim, eram imiscíveis, e devo a ela a percepção de que ninguém conhece e ama mais uma criança do que a mãe, e a de que o sacrifício do desejo é condição de maturação. Ela conseguiu mostrar-me a ilusão que eu tinha sobre aspectos fundamentais de minha própria pessoa. Impossível dissociar a paternidade de minha formação, muito ajudada por Daniela e Luiz, que nasceu em 1976. Nessa época, estava muito sob efeito da ideia “de jerico”, como dizia Nalva, uma empregada nordestina de quem me afeiçoei quando pequeno, de que tudo mundo ajudava todo mundo. Quando andei lendo sobre estas coisas de transferência, na época em que me submeti à primeira análise com Deocleciano, [elas] fizeram todo sentido para mim. Pensava que ajuda mútua, cordialidade e bem-querer eram coisas que todo mundo fazia e queria. Isso me impulsionou para trabalhos voluntários e para editar periódicos, além da fascinação por medicina e psicanálise, [duas áreas] que me pareciam bons modos de ajuda mútua. Nesta época, não dei ouvidos a meu Pai, que sempre me alertou: “de pensar muito, morreu um burro”. Esta época durou muito: hoje, acho que o sentido que percebi pertencia mais à área intelectual e ao consciente, ainda não era um verdadeiro insight.
SEQUESTRO fiquei três dias em cativeiro até poder ‘negociar’ minha saída No entanto, durante esses anos, sofri um sem número de sequestros de muitos modos em função disso, até chegar a um sequestro abertamente criminoso, na época em que este atentado à vida virou moda e comércio no Brasil. Fiquei três dias em cativeiro até poder “negociar” minha saída: não possuía a quantia que eles exigiam, mas, no final, por razões desconhecidas, aceitaram uma quantia – para mim enorme – quatro vezes menor, já que não conseguiram negociação útil a eles, com minha família. Um dos bilhetes foi recolhido por outra pessoa, antes que minha família chegasse ao local. Propus que entrássemos juntos no banco onde eu tinha conta e eles aceitaram. Por pura sorte, saí quase ileso; acabei não entregando a quantia combinada. Os criminosos levaram-me à agência, mas se recusaram a entrar comigo, “na hora H”. A esperteza deles poupou-os, além do meu dinheiro, de uma prisão: o banco estava pleno de policiais, graças a acordos entre a delegacia antissequestros e banqueiros. Espero ter aprendido a lição, mas ainda é cedo para ver se isso influenciou minha malacabada formação. 66
Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
Acrescento que minha formação, acredito, tem sido extensamente influenciada pelo contato continuado com Antonio Sapienza, minha esposa Ester, Francesca Bion e, até quase seu falecimento, Odilon de Mello Franco. Infelizmente, não posso falar o nome de meus pacientes.
Jornal Associação Livre: Como foi sua aproximação com as ideias de Bion? Paulo Cesar Sandler: Foi a pior aproximação, em 1974, seguida da melhor aproximação, em 1981, onde pode-se ver que amor e ódio são duas faces diversas da mesma moeda. Estava iniciando minha primeira análise. Havia lido, uns anos antes, um livro de Michael Gold, Judeus sem dinheiro. Avisava sobre o perigo de erigir e seguir líderes messiânicos, a nocividade de qualquer idolatria política, sempre delirante. Contava as desventuras de judeus desesperados e, por isso, piedosos em New York, que importaram um falso rabino. Achei que os psicanalistas, quase todos amigos de meu Pai, estavam se comportando desse modo com um tal de Bion.
Onde ia este homem – Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo – iam quase todos os analistas da época. Meu Pai servia de intérprete simultâneo em algumas supervisões – como já havia feito com o Sr. Philips. Ele era um dos poucos analistas daqueles tempos que possuía domínio da língua inglesa. Recordo-me que apenas ele e Roberto Azevedo eram proprietários da Standard Editions, ainda incompletamente editada. Lembro-me da reação de Deocleciano com meu comentário cri-crítico (vindos de um “cricri” – os da época recordam-se desta gíria) de quem não tinha nenhuma prática nesta experiência – estava mal começando minha análise com ele. Em Brasília, Papai foi hospedado por Luciano e Terezinha Lírio. Houve um momento em que questionei minha analogia: meu Pai voltou munido de dois livros de Bion, assinados pelo próprio autor. Encafifado e apressado, perguntei: “Ué, você está com os livros dele?”. “Não, meu filho, fui comprar os livros e pedi-lhe um autógrafo, coisa que ele fez ipsis litteris! Você poderia me conseguir alguma noção de matemática, sobre a teoria das funções?”. Papai sabia que eu estava me dedicando à estatística, como parte da minha dissertação de mestrado em medicina, ligada à psiquiatria comunitária. “Por que?”. “Meu filho, Bion está dando a maior contribuição para a psicanálise desde que Melanie Klein morreu. Uma contribuição científica. Ele está meio revoltado com esta coisa de interpretações sem sentido, aleatórias, tudo ao gosto do freguês. Preciso aprender alguma coisa sobre a teoria das funções, pois este livro dele fala sobre isso. Você pode me ajudar?”. Assim era meu Pai... ou seja, minha visão sobre idolatrias em relação a esse tal de Bion sofreu um estremecimento, e a análise com Deocleciano mostrou-me algumas características minhas – que achei péssimas – que estavam entrando na visão anterior. 67
Entrevista com Paulo Cesar Sandler
Entrei no instituto em 1978 e achei melhor não ir às palestras de Bion: achava que se tratava de pós-graduação em psicanálise e que eu precisava começar com Freud. “Como ele já veio três vezes, na próxima eu vou!”. Estava enganado: havia muito Freud na obra de Bion; ele faleceu no ano seguinte – coincidentemente, um mês depois do falecimento de meu Pai, na Inglaterra. Os dois tiveram contato naquela época. Foi a primeira vez que percebi um engano que aparece na obra de Bion – a falácia da inferência. Em 1981, tive a sorte de escolher Felix Gimenez como monitor para a obra de Bion. As aulas de leitura atenta dele – muito parecido com as aulas de Virgínia Bicudo – sobre Second Thoughts causaram-me o seguinte sentimento: “Nossa, por que eu não li isto aqui antes de atender psicóticos?” Eu tinha razoável experiência de atender pessoas assim, qualificadas – trabalhava há onze anos no Instituto Aché, sob a direção de Mario Yahn e Waldemar Cardoso, dois dos maiores, embora silenciosos, impulsionadores da SBPSP em seus primórdios. Jornal Associação Livre: Você então não chegou a conhecê-lo? Como tornou-se tradutor da obra de Bion? Sandler: Em dois anos, li tudo que Bion tinha escrito. Uma obra dele causou uma espécie de vórtice na minha mente, que prossegue até hoje: Uma Memória do Futuro. Descobri que os livros – eram três – não haviam sido objeto de tradução. O que mais me impressionava, e ainda impressiona, é a ajuda desses livros na clínica, no atendimento a pacientes.
Foi assim que resolvi traduzi-los, para meu próprio uso. Por respeito a colegas, fazia questão de não traduzir livros já traduzidos por outros, até 2002, quando Jayme Salomão demonstrou-me a necessidade de fazê-lo – ele mesmo, o primeiro tradutor de Bion no mundo! Convidei alguns colegas para fazerem o trabalho em conjunto. Todos recusaram. Procurei analistas estrangeiros que pensava serem experts em sua obra, como Hanna Segal, Betty Joseph, Meltzer (ainda guardo a correspondência que mantive com eles), cuja reação foi igualmente negativa. Apenas quatro me incentivaram: Virgínia Bicudo, José Longman, Cecil Rezze, e James Grotstein. Já tinha experiência como tradutor de artigos em psiquiatria social, pois trabalhava na Faculdade de Saúde Pública da USP. Procurei, então, Frank Philips, com o qual tinha excelente contato, que me desaconselhou de fazê-lo: “Você vai fazer um péssimo serviço. Os analistas precisam aprender inglês. Se você faz a tradução, ninguém vai aprender inglês!”. Questionei-o: “Mas o senhor participou de uma equipe de tradução, de um livro de Bion!”. Caracteristicamente, replicou: “Eu não devia ter feito isto.”
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Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
Procurei o British Council, pois a tradução mostrava-se difícil, e apelei para a pessoa para a qual Bion sempre dedicava suas obras, sua viúva, Francesca Bion. Ela e o British Council deram a ajuda que faltava: arranjei duas excelentes amigas e terminei a tradução. Portanto, nunca conheci Bion. Posso dizer que conheço, com certa intimidade e indubitável amizade, sua esposa, suas filhas – uma delas, precocemente desaparecida e seu filho, médico intensivista de renome. A influência e estímulo de Francesca Bion em minha formação é impossível de ser descrita, embora eu tenha tentado em todos os meus livros publicados no exterior. Jornal Associação Livre: Sentimos falta de tradução sua da obra de Bion “O aprender com a experiência”. Não houve interesse em traduzi-la? Sandler: Ah, houve sim! Tanto é que participei de uma equipe de dois que o
traduziu. Já é uma equipe, não é? Diz-se que uma junta de três médicos tem cinco ou nove opiniões ao mesmo tempo. Acho que uma equipe de dois psicanalistas é receita para “n” opiniões. Ester Sandler é a cara metade desta equipe. A tradução está pronta há pelo menos seis anos. E há pelo menos quatro, na editora. Jornal Associação Livre: O seu dicionário de conceitos “The Language of Bion” (Karnac Books) tornou-se obra de referência mundial, traduzido para várias línguas. James Grotstein afirmou ser o livro de cabeceira dele. Teremos tradução para o português? Sandler: Não sei bem como estão as traduções e sequer se foram iniciadas. Sei que a Karnac foi procurada por algumas editoras e psicanalistas ligadas a elas – no Brasil, Espanha, França, Rússia, Israel e Japão, para aquisição de direitos de tradução. Em Israel, esbarrou-se no fato de que quase todos leem inglês. Também sei que cerca de 800 universidades norte-americanas compraram o livro para suas bibliotecas, que foi catalogado na National Library of Congress; e umas 600 na Europa e Ásia. Hoje, na segunda reimpressão, é certamente é meu livro mais vendido. Devo ao Carlos Gioelli a ideia inicial de fazê-lo. Cassio Rotemberg, consultando a Amazon, descobriu um exagero consumista da sociedade banalizada na qual vivemos: uma livraria está pedindo mais de 1.200 dólares por um exemplar de capa dura, da primeira edição. Jornal Associação Livre: Sobre sua nova obra lançada no Brasil pela Karnac Books – A clinical application of Bion’s concepts –, qual critério você utilizou para a escolha dos temas abordados nos três volumes? Sandler: Tentei escolher os conceitos onde havia maior dificuldade de apreensão e, consequentemente, de uso clínico – para mim, psicanálise é o atendimento a pessoas que sofrem por não poderem tornar-se elas mesmas. Vitimados por leituras individuais e tendências idealistas, cada um parece achar que Bion falava a coisa que mais apetece 69
Entrevista com Paulo Cesar Sandler
a este “cada um”. Acabei concluindo que a escrita de Bion, totalmente compactada e condensada, muitas vezes apelando para construção de aforismos, e também para a experiência clínica do leitor, resultou em dificuldades. Francesca Bion – que me parece ser a pessoa que mais conhece a obra de seu marido – ilumina o assunto em seu prefácio para Bion in New York and São Paulo. Jornal Associação Livre: Qual sua relação com a editora Karnac Books, agora instalada no Brasil? Sandler: Talvez as melhores coisas que nos acontecem acontecem por acaso e inesperadamente. Pelo menos está é a técnica que Ester, mãe de meus filhos, utiliza quando viajamos... Creio que o bom relacionamento com Oliver Rathbone foi responsável pela procura de conselhos de minha parte, quando ele teve a ideia de se instalar no Brasil. O mercado europeu está estagnado... Ouviu tudo que eu tinha para dizer, consultou outras fontes e acabou formulando o convite para que eu, até então mero conselheiro, conduzisse o processo como Editor Assistente “at large”, à distância, como eles dizem. Um de seus planos é publicar autores brasileiros. Como uma editora sobrevive de lucros, pensou que a primeira obra que publicaria seria o Dicionário, pelas excelentes vendas, tanto aqui (em torno de 600 exemplares) como no exterior, onde está na segunda reimpressão. Jornal Associação Livre: O XXIV Congresso da Febrapsi debateu o Ser contemporâneo: medo e paixão. Bion chamou a atenção para a pessoa do analista. Medo e paixão do psicanalista podem obstruir a função precípua da psicanálise, a apreensão da realidade psíquica? Sandler: Bion usou uma metáfora onto e psicogenética, originada da herança de Darwin na obra de Freud, para observar, uma vez mais – pela negação onipotente que persiste dominando a mente, que medo, ou, na linguagem de Klein, angústia de aniquilamento, é fator básico na e da personalidade humana. Usou o termo “terror talâmico” para enfatizar seu caráter primitivo, básico, primordial. Pode-se dizer contemporâneo, pois faz parte da vida, e não há vida que não seja contemporânea; vida ocorre quando ela existe. Qualquer coisa extemporânea, como precocidade ou postergação, é ameaça à vida possível. Creio que não há nada de específico ou especial para o dito homem moderno em relação a medo, este nosso contemporâneo transcendental: Paradoxal bom conselheiro e mau guia, teu nome é Medo. Paixão é nome mais problemático, quando elevado a conceito; creio pertencer à psicologia acadêmica, interessada apenas no sistema consciente. Se o termo for utilizado para uma das dimensões da interpretação psicanalítica, como o fez Bion em Elementos de Psicanálise, começa a adquirir significado psicanalítico útil – por incluir o sistema inconsciente.
Vincular medo e paixão implica em algo já conhecido no movimento psicanalítico e na teoria psicanalítica, bem coberto por conceitos como os mecanismos oníricos, depois observados como mecanismos de defesa do ego – principalmente resistência, 70
Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
repressão e regressão, assim como suas evoluções positivas. Não consigo perceber que haja algo além do que Freud observou em vários estudos, como Totem and Taboo, The Future of an Illusion, Group Psychology and Ego Analysis, Civilization and it Discontents e, mesmo nos inacabados, como Moses and Monoteism: ou seja, não consigo perceber que o ser humano tenha algum dia sentido menos medo ou tenha tido menos paixão, ou mais medo ou mais paixão, embora as manifestações, por liberdade ou libertinagem, sem dúvida variaram na história até hoje conhecida. Por exemplo, com a descoberta da paternidade e a relativa evolução de aspectos de tolerância à frustração de desejos. Como escreveu Bion em A Memoir of the Future, será que o ser humano evoluiu desde a época dos sáurios até a emergência de um Hitler? Acrescentaria, de um Stalin? Será que Malenkov ou Beria ou Himmler ou Bruno Betelheim ou Samuel Klein (antigo dono das Casas Bahia) ou Hannah Arendt ou Primo Levi ou Einstein ou Freud ou Oppenheimer sentiam mais medo, menos medo, ou medos iguais aos de um hominídeo primitivo cujo nome jamais saberemos, se é que já havia nomenclatura humana? Jornal Associação Livre: Nos limites do que pode ser a psicanálise contemporânea, corre-se risco de uma psicoterapização da psicanálise? Sandler: Sua pergunta me parece borrar limites que me têm sido úteis, quando
mantidos. Psicanálise, herdeira daquilo que Kant descreveu como antropologia e do que difere de movimento psicanalítico. Psicanalistas húngaros continuaram praticando-a, apesar das proibições estatais, semelhantes ao que ocorreu na ditadura militar argentina. Sem dúvida, pressões advindas de entidades governamentais cobrando resultados ditos terapêuticos, indistinguíveis dos efeitos placebo, são melhor atendidas por laboratórios farmacêuticos e pelos representantes de uma situação que ficou imutável desde a época de Freud. Há muito mais dissidências que se apregoam “melhores”, mais “rápidas”, menos custosas desde que ele descobriu a psicanálise. O movimento psicanalítico, pertinente ao âmbito das imanências sociais e políticas, talvez precise apelar para a banalização na formação dos analistas e adotar promessas terapêuticas “incumpríveis”, já dominadas por várias práticas que se pretendem “psicoterápicas”, que apregoam adaptar o ser humano considerado desviante aos vários ambientes sociais, em termos econômicos e comerciais. A psicanálise, como transcendência atinente à área da ciência, que visa a adaptar, pelo “tornar-se”, o seu humano a quem ele realmente é, conseguiu se desenvolver a partir de Freud. Para sobreviver, poderá se desenvolver novamente. No entanto, as últimas descobertas úteis, como antibiótico, sistemas (e vasos privados) sanitários, teorias da computação, composição musical, descobertas tecnológicas de engenharia, cirurgia, teorias científicas empíricas como evolução das espécies, da relatividade e dos quanta, genética, psicanálise, são produtos do Iluminismo, que se desenvolveu até o final do século XIX e início do século XX. De lá para cá, o ambiente social não foi mais tão propício. Nesse sentido, ainda estamos usufruindo do que se fez nesse intervalo 71
Entrevista com Paulo Cesar Sandler
de tempo; estamos na época da nostalgia, onde tudo se copia, nada se cria. Creio que a maior ameaça ao surgimento de descobertas realmente novas, que ultrapassem a retórica, é a infestação da banalização. Há muito de muito, tudo de tudo. Jornal Associação Livre: Além de psicanálise e suas relações com filosofia, física, matemática e arte, estrelas do automobilismo como o Fusca e o Porsche também são temas de livros de sua autoria. Trata-se de uma paixão para você, como parece ser o caso da música? Sandler: Sim! Desde meus 4 anos de idade, pelo menos. Vocês bem sabem, há
pessoas que “nunca crescem”, ao menos em alguns aspectos. A história desta descoberta tecnológica – motor à explosão movimentando geringonças de transporte terrestre, naval e aéreo – parece-me sintetizar história social, econômica e psicológica. Tentar descrever como isso se dá tem me fascinado; são histórias humanas.
E música, para mim, equivale a oxigênio. Quando fui sequestrado, os sequestradores colocaram uma câmera e um alto-falante na cela sem janelas do cativeiro. Depois de um dia, repleto de música ruidosa de alguma FM, perguntei a eles se não poderiam colocar na Rádio Cultura. Comentaram: “Ah, o senhor gosta de música clássica, não é?” Eu os tratava de senhores e eles responderam na mesma moeda. Imediatamente, trocaram de emissora. O maior problema era que coincidiu com a época de eleições, na segunda vez em que Lula venceu. Foi a única vez em que reclamei de alguma coisa, tomando o cuidado para não reclamar de nada que os afetasse. Algum tempo depois – eu havia perdido a noção do tempo –, trocaram o rádio por um reprodutor com um pot-pourri meio minguado de três sinfonias de Beethoven: 4, 7, 8 e 9. Até hoje, fico pensando de onde retiraram o CD, já que a 4 e a 8 são pouco tocadas, relativamente a outras. Como tento trabalhar com pacientes, tentei não julgar os sequestradores. Julgamentos, fruto explosivo de desejo multiplicado com memória e entendimento, parecem-me nocivos. Jornal Associação Livre: Qual sua relação com Virgínia Bicudo e o grupo formado por ela em Brasília? Sandler: Virgínia Bicudo conheceu-me quando eu era pequeno. Adorava ser
chamada de “Tia Virgínia” e, de vez em quando, ia lá em casa. Quando passou a ser supervisora de casos de meu Pai, era a vez dele ir à casa dela, aos sábados ou domingos pela manhã. Usualmente, levava-me junto. Virgínia estimulava tudo que percebia que me atraía e foi a única pessoa a viajar para a Europa que conheci naqueles tempos - e que meu Pai permitiu que me trouxesse alguma coisa: um carrinho de metal. Ela o convidou para lecionar na Santa Casa e para ajudá-la a formar a Revista Brasileira de Psicanálise, com José Nabantino Ramos e Luiz Galvão, e o Jornal de Psicanálise. Até hoje, tenho uma carteira e uma miniatura de um automóvel, presentes espontâneos dela, que é um modo especial de descobrir o interesse de um adolescente, sem fazer perguntas.
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Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
Virgínia recebeu-nos em Brasília, em congressos de psiquiatria. Aceitou ser minha segunda supervisora oficial. Sua seriedade teórica e experiência clínica eram notáveis, assim como alguns voos imaginativos em um terreno de hipóteses futurísticas onde o zeitgeist pseudocientífico do século XIX, fascinado com a eletricidade e a telepatia, se fizeram presentes. Meu interesse por correlacionar a física moderna (de Einstein e Planck) e a psicanálise se originou pelo contato com ela. Era amiga de meus pais e tentou me avisar que meu Pai “a idealizava muito”. Virgínia proporcionou-me ainda a primeira oportunidade de publicar um artigo em um periódico psicanalítico, Alter. Andei falando alguma coisa mais sobre o contato mais do que marcante que ela me proporcionou, em um exemplar de uma publicação que fiz quando dirigia o Departamento de Publicações da SBPSP, de 2000 a 2006, o número dois do In Memoriam – uma tentativa de substituir uma prática da SBPSP que havia sido extinta, de homenagear analistas falecidos com depoimentos dos que os conheceram. Não posso dizer que tive alguma relação especial com o Grupo de Brasília, cuja fundação assisti à distância. Mas posso dizer que sempre tive enorme simpatia por pessoas desse grupo, geralmente correspondida: Luciano e Terezinha Lírio viraram personagem na casa de meus pais antes mesmo que eu os conhecesse; Ronaldo Mendes de Oliveira Castro adquiriu, para enorme surpresa minha, o primeiro exemplar do meu primeiro livro; Jansy e Humberto Haidt permitiram proximidade imediata em função de meu entusiasmo juvenil protraído; Carlos de Almeida Vieira permitiu a primeira aproximação científica às minhas tentativas de escrever; Stella Winge acompanhou-me nos tempos de psiquiatria comunitária; Jose Nepomuceno, Silvia Valladares, Regina Mota, Roberto e Thaís Jabur. Minhas contribuições foram aceitas, por convite, no Alter, anos após a saída de Virgínia. Se isso não for simpatia mútua, então não sei o que vem a ser... Francesca Bion sempre me perguntava: “Como está Virgínia? Como está Ronaldo? Como está Pessanha”? Embora Pessanha não seja de Brasília, ela também associa a pessoa dele a esta capital... Jornal Associação Livre: Pode-se afirmar que há uma psicanálise antes e depois de Bion? Sandler: Só consigo conceber psicanálise depois de Freud. Graças à sua formação médica, ele deu corpo e encarnou uma tentativa dos gregos antigos, das Cabalas e outras heranças místicas hebraicas e cristãs, da Renascença tardia na Inglaterra e Alemanha, do Iluminismo e dos primórdios do movimento romântico, canalizando para pessoas, que sofriam uma atenção e um cuidado absolutamente individuais, as aquisições de conhecimento sobre mente e verdade. Bion, em função disso, afirmava, sem nenhuma boutade – como desconfiou Green –, que psicanálise já existia antes que surgisse um Freud que pudesse nomeá-la. Se alguém se interessar em ler o penúltimo capítulo de Cogitações, não terá dúvidas sobre a opinião de Bion a respeito disso. Creio 73
Entrevista com Paulo Cesar Sandler
que se trata de idolatria achar que ele foi revolucionário. Penso que foi evolucionário. Acho que contribuiu, como Klein, Winnicott, Reik e Searles, para que a psicanálise se desenvolvesse, sendo hoje mais ela mesma. Jornal Associação Livre: A clínica bioniana permite abordar as “patologias” contemporâneas? Bion é contemporâneo? Sandler: Para a primeira pergunta, eu diria que não. Pois não observo que existam
patologias contemporâneas. Isto me parece negação das aquisições tornadas possíveis pela psicanálise – só se contemporaneidade puder equivaler a retrocessos. Se ficarmos apenas no que os psiquiatras da época em que a psiquiatria conseguiu sistematizar um raciocínio diagnóstico sindrômico, sem ficar totalmente perdida com sintomas inumeráveis, chamavam de “patoplastia”, e levarmos em conta os pequenos avanços obtidos pela etnopsiquiatria e pela psiquiatria social, perceberemos que a aparência externa das patologias psiquiátricas modifica-se temporalmente, assim como o modo de lidar com elas. Como ocorreu com as infecções de doenças degenerativas! Diagnosticar uma histeria de conversão hoje em dia oferece problemas diversos daqueles oferecidos na época de Kretschmer, Charcot, Janet e Freud. Como toda histeria, ela é muito plástica! O que hoje alguns psiquiatras – um deles, expulso da Unicamp por desonestidade científica e financeira – andaram chamando de “síndrome do pânico” equivale, em minha experiência, às neuroses de ansiedade da psiquiatria hoje em desuso. Penso que as aquisições da ciência pertencem ao âmbito transcendental. Uma vez adquiridas, permanecem, desafiando tempo, espaço, nacionalidades e qualquer zeitgeist. A teoria geométrica que espelha o que chamamos de “roda” permanece. A própria roda, seja representada por fórmula algébrica da área do círculo (A=π r 2 ), por pedras rolantes, por secção de troncos de árvore, por pneumáticos ou por rolamentos, permanece idêntica, como transcendência subjacente e “superjacente”, ao que chamamos “roda”. Representações, aparências externas, imanências, são culturalmente mutáveis e podem ser “contemporâneas”. Penso que a teoria do continente/contido e as teorias de observação psicanalítica, como a aplicação da teoria matemática de transformações e invariâncias, vieram para ficar. Como as pirâmides no Egito, a teoria da relatividade de Einstein, a teoria da evolução das espécies de Darwin, a teoria do triângulo edípico e dos quatro instintos básicos de Freud (epistemofílico, de horda, instintos de vida e instintos de morte), e a teoria de movimentos contínuos entre as posições, de Klein, e a teoria do objeto transicional, de Winnicott, vieram para ficar. Sem dúvida, serão sempre contemporâneas aos psicanalistas trabalhando com pacientes, enquanto houver psicanalistas trabalhando.
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Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos de Almeida Vieira
Jornal Associação Livre: Qual a influência de Bion no Brasil? Existe uma psicanálise brasileira? Sandler: Não observo que exista uma “psicanálise brasileira”, mas penso que existe psicanálise feita em territórios que se convencionaram ser chamados de Brasil, inicialmente por acordo político entre Espanha e Portugal, há uns quinhentos anos. Um território parecido com outros, talvez meio diferente no tamanho mastodôntico, de população ligada por uma língua mais ou menos igual na aparência – como a Itália. Penso que as contribuições de Wilfred Bion, via Virgínia Bicudo e Frank Philips, com afluentes outros, de menor importância pedagógica, mas não menos importantes – veiculados por pessoas como Alcyon Baer Bahia, Bernardo Blay, Jayme Salomão, Luiz Alberto Py, Jose Américo Junqueira de Mattos, Laertes Ferrão, Waldemar Zusman, entre outros –, exerceram influência ímpar em alguns lugares, notadamente São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Ribeirão Preto.
Ciência e arte me parecem pertencer ao âmbito das transcendências: como o inconsciente, não descoberto, mas melhor descrito por Freud, são atemporais, “anespaciais”, desafiam “zeitgeisten”, por mais vienenses ou marioandradísticos que sejam. São eternas, enquanto duram, desde que descobertas, posto que são chama, com desculpas póstumas especiais a Vinícius de Moraes, o Poetinha Camarada do Toquinho e de nós todos, pela apropriação indébita. Gostaria de agradecer a Cláudia Carneiro e ao Carlos de Almeida Vieira pela inestimável e bondosa oportunidade de poder pensar um pouco a respeito destas perguntas – para mim, penetrantes e, por isso, fertilizadoras.
© alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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alter | Revista de Estudos Psicanalíticos da SPB | Vol. 31 (1/2) - 2013 | Vol. 3 (1) - junho de 2014
Entrevista com Luiz Ruffato Mirian Estides Delgado1
Luiz Ruffato nasceu em Cataguases (MG), em 1961. Formado em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é autor de 11 livros de ficção. Laureado com os prêmios APCA, da Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, por Eles eram muitos cavalos, ganhou o Casa de las Américas, principal galardão literário cubano, por seu Domingos sem Deus. Publicado atualmente pela Companhia das Letras, que lançou este ano seu novo romance, Flores artificiais, Ruffato é uma das principais vozes da literatura brasileira contemporânea. Pouco antes de fazer o histórico discurso de abertura da participação brasileira na Feira do Livro de Frankfurt de 2013, em que o Brasil foi o país homenageado, o escritor mineiro conversou com Mirian Estides Delgado em Brasília. As questões giraram em torno de seus livros premiados e traduzidos para diversas línguas, especialmente a série Inferno provisório e o romance em fragmentos Eles eram muitos cavalos. Escolhido entre os 70 convidados brasileiros para discursar, em outubro de 2013, na abertura da feira alemã, Ruffato antecipa nesta entrevista as preocupações sociais que guiam seu projeto literário e que motivaram a contundente participação em Frankfurt. A interface entre literatura e psicanálise, sua influência mútua, é motivo declarado da escrita ruffatiana e ponto central da entrevista. A seguir, seus principais momentos.
Mirian Estides Delgado: Ruffato, você teve alguma experiência com a psicanálise? Luiz Ruffato: Fiz muito pouca psicanálise. Na verdade, eu fui muito pouco
paciente. Eu fui para discutir uma questão muito específica, perdi um irmão – aliás eu escrevi um livro sobre isso, o De mim já nem se lembra, quando eu tinha 17 anos – e foi terrível porque foi o ano em que eu saí de casa. Mudei para Juiz de Fora [MG] e eu era muito ligado a minha mãe, meu pai, minha família. Naquele ano, quando eu rompi com esse laço muito forte, italiano, eu tive outra perda terrível, porque meu irmão era uma pessoa muito importante para mim, ele era quase meu pai substituto, porque o meu pai por vários motivos, de doença, de temperamento etc., era um pouco omisso em nossa 1
Membro do Instituto de Pscicanálise Virginia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Entrevista com Luiz Ruffato
casa, que se rearranjou. Então, em função da minha mãe e do meu irmão mais velho, eu passei a minha vida toda com um peso, um peso imenso, esse era um problema não resolvido da minha vida. Chegou um determinado momento em que eu senti necessidade, eu não estava aguentando mais, eu senti necessidade de discutir isso. Aí, eu fiz um ano e meio [de psicanálise], muito pouco tempo, mas eu acho que consegui, não resolver, porque essas coisas a gente nunca resolve, mas consegui pelo menos entender. E, para mim, quando eu terminei, quando isso já não era um peso tão grande como foi antes, ou seja, já era um peso suportável, eu não quis continuar, aí, eu parei. Mirian: Você chegou a ler textos freudianos? Rufatto: Eu li o que me interessava para a literatura, porque os textos do Freud são muito literários. Eu li sempre com esse viés literário. Li O Mal estar na Civilização, evidentemente, A Interpretação dos Sonhos, Luto e Melancolia. Era uma tentativa de me compreender lendo um pouco a teoria. Eu ficava fascinado com a capacidade de tentar compreender o outro a partir do olhar dele, e isso foi o que mais me interessou. Isso talvez, na psicanálise, seja o que mais me interesse. Eu preciso me colocar no lugar do outro para tentar compreender o que o outro está sentindo. Mirian: O que é uma maneira de se conhecer, sendo, ao mesmo tempo, outra pessoa. Rufatto: Isso, para mim, é o mais importante dele. Eu tenho uma teoria própria
de como é que eu escrevo, como essas histórias vêm para mim, porque todo mundo pergunta como é meu processo de escritor. Ao longo do tempo, eu fui desenvolvendo uma ideia. Eu acho que, no meu caso, o que existe é uma memória coletiva, pode chamar de inconsciente. E, nela, estão todas as histórias. Então, meu papel é muito simples, é estar aberto a receber essas histórias, de percebê-las em meu corpo, transformálas em outras histórias agora escritas. E, se essas histórias forem lidas, elas voltam a realimentar essa memória coletiva. Na verdade, para mim, o meu papel é simplesmente de intermediação entre memória coletiva e memória coletiva. Mirian: Como se dá o processo de formalização dessa linguagem do inconsciente? Rufatto: Eu sou um escritor que não é de gabinete. Eu preciso circular fisicamente
para poder conseguir apreender. Se uma pessoa me conta uma história, qualquer que seja, eu tenho que vivenciar, não aquela história específica que ela me contou, mas essa história. Por exemplo, eu não tiro fotografias. Se viajo, gosto que tudo me impregne, visualmente, a audição, o tato, o cheiro. O corpo, sentir o tipo de clima que estava, porque, quando eu tenho que rememorar, eu não rememoro intelectualmente, eu rememoro fisicamente. Isso me dá a oportunidade de presentificar algo que não é presente mais, algo que está na minha memória.
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Mirian Estides Delgado
Mirian: Parte de uma seleção de fragmentos das experiências que te mobilizaram e que ficam armazenadas, digamos, no inconsciente, na alma. Rufatto: Quando eu falo que o meu inconsciente dita e que sou só um intermediário, é evidente que o que passa é o que ele filtra, e ele filtra a minha história, a minha visão de mundo, é aí que está o recorte. Quando eu recorto, eu estou recortando minha história, minha visão de mundo. Por exemplo, histórias que me contam. Eu sou capaz de pegar todos os fragmentos do Inferno provisório e objetivá-los. Dizer: Mirinha, essa aqui, me contou uma fulana no lugar tal e eu transformei nisso aqui, isso aqui eu li em algum lugar e recortei. Mirian: Elas têm alguma base na realidade de quem te conta. É claro que quando te contam já é também uma ficção, uma transformação que, por sua vez, você transforma e o leitor também. Rufatto: Eu sempre fico em dúvida sobre o que é real e o que não é. São as várias transformações o que me interessa. Por exemplo, quando eu ouço uma história, quando alguém me conta uma história qualquer, às vezes, o que me interessa nessa história de duas horas é um detalhe, um pequeno fragmento, que se sobrepõe à minha própria história, desperta em mim alguma coisa, pela estranheza ou proximidade com a minha dor. Tem um fragmento no Eles eram muitos cavalos que é de um pastor que está pregando na Praça da Sé. Eu sempre passo na Praça da Sé e as pessoas debocham, ele está lá e ninguém ouve, e todo mundo debocha daquilo. Aí, eu pensei: por que esse cara continua pregando? Deve ter um motivo. Então eu tento fazer sempre assim, vou sair de mim e vou para ele, eu vou ser ele, como ele vê as pessoas que estão ao redor dele, e não como eu o vejo, porque, para mim, quando eu comecei a pensar em escrever, eu era muito influenciado pelas minhas ideias de esquerda, achando que eu tinha que fazer um romance coletivo. Continuo achando, só que eu virei a ideia, porque o romance coletivo parte do geral e particulariza. Mirian: E tenta passar uma mensagem. Rufatto: E geralmente a mensagem é sempre do bem contra o mal. Quando eu
percebi isso, eu pensei: eu quero fazer um romance coletivo, mas quero inverter essa figura. Eu quero entender o geral a partir do particular. O particular para mim é o que importa, e sem bons ou maus, todos nós somos bons e maus, porque você está sempre sendo colocado em situações extremas e não sabe como você reage, ninguém sabe. A gente acha que sabe, mas na hora que tem de reagir você se surpreende. Então, eu tentei fazer isso. Eu saí da ideia de fazer realismo socialista, mas, na verdade eu faço realismo capitalista, porque, como compreender o capitalismo? Só através das necessidades individuais. A partir desse princípio, eu pude compreender que, para escrever sobre o outro, só havia uma maneira: despir-me de mim mesmo e entrar no outro, deixar que o outro, que eu fosse o outro literalmente. 79
Entrevista com Luiz Ruffato
Mirian: Parece-me que, ao contar essas histórias, você tira do anonimato, da solidão, essas pessoas, dá voz a elas, torna suas histórias banais, despercebidas, em épicos urbanos. Rufatto: Aí, entram nossos desejos pessoais. Quando eu fui para Juiz de Fora e comecei a ler literatura com mais empenho, eu levei um susto, porque a literatura brasileira, não só a brasileira, mas particularmente a brasileira, ela reflete muito a nossa sociedade segregacionista. Você tem uma literatura sobre classe média alta, sobre classe média média. Depois pula e você tem uma literatura de bandidos, prostitutas. E essa grande parcela da população, que é a trabalhadora, dos anônimos, dos invisíveis, ela não aparece. Eu quis, na verdade, foi tentar resgatar isso, resgatar a minha família, os meus amigos, o meu bairro, a minha história. Quis quebrar esses estereótipos de que escrever sobre pobre é escrever sobre personagens muito rudimentares. Não, as pessoas não são assim, nenhuma pessoa é nem rico nem pobre. E usando uma linguagem pobre. Não vou usar linguagem pobre. Usando uma forma pobre, não vou usar uma forma pobre. Eu vou desconstruir essa ideia de que você só pode escrever sobre esse assunto dessa maneira, que é a demagogia da década de 30. Mirian: Seu livro “Eles eram muitos cavalos” foi reconhecido como uma ousadia literária e muito premiado por isso. Rufatto: Ele era muito ousado para mim. Quando eu levei para a editora, ela falou assim, ninguém vai entender esse livro, ele não vai vender, você me deve outro livro. Eu fiquei frustradíssimo, porque também achava isso. E, para nossa surpresa, foi o livro que mais vendeu, com várias publicações no exterior. A gente nunca sabe o que vai acontecer. Mirian: A representação dos trabalhadores em seus romances, calcada em sua experiência pessoal, foge bastante ao que tradicionalmente se tinha [antes]. E sua referência nas coisas denuncia a sociedade de consumo que submete a todos, mas diferencialmente, segundo a posição econômica. Rufatto: Esse é um dado curioso, porque geralmente quando se falava sobre pobres, eles eram revolucionários ou prestes a se tornar revoltados e tal. E os meus personagens não são nada disso, eles são conformistas. No fundo no fundo, eles são mais conformistas. Na verdade, eles não são revoltados contra o capitalismo, eles são revoltados por não pertencer ao capitalismo, por estar à margem. Tanto que essa ideia da coisificação tem muito a ver com isso. Você passa a pertencer no momento que você tem e, por isso, essa necessidade enorme das pessoas estarem sempre falando em comprar, em ter, e sempre uma necessidade imensa de querer pertencer. Mirian: É a vitória do capitalismo de consumo. Rufatto: Sim.
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Mirian Estides Delgado
Mirian: Perguntaram ao Slavoj Žižek, no programa Roda Viva, se era possível uma sociedade igualitária, e ele respondeu que não. Por causa da inveja. Esse sentimento primário que leva as pessoas a desejarem o que o outro tem e se guiar por isso. Rufatto: O problema da inveja é que ela, normalmente, está vinculada a um desejo de aniquilação do outro. Não um desejo de querer o que o outro tem no sentido de admiração e na tentativa de se equiparar. Porque essa tentativa de se equiparar, ela é boa. Ela te move. Por exemplo, fulano de tal escreveu um livro legal, então eu tenho que escrever um livro melhor, e não querer que ele morra. Mirian: No “Eles eram muitos cavalos” tem-se essa impressão de uma pessoa andando pela cidade e captando a incomunicabilidade afetiva, só possível entre subjetividades, em uma reificação que as representa e as mantêm isoladas irremediavelmente. Rufatto: A solidão de não pertencer a lugar nenhum. No Inferno provisório também tem isso. As pessoas são conhecidas pelas coisas. Você reconhece a classe social do personagem pelo tipo de roupa que veste, pelo tipo de cigarro que fuma, pelo tipo de bebida que bebe. Mas eu falava justamente disso, você não reconhece o outro na nossa sociedade pelo que ele é, é pelo que ele tem. Então, eu tentei objetivar essas coisas. O personagem tem objetos e ele também é um objeto, um objeto entre objetos, tanto que tem lá uma lista de livros em uma estante. A minha ideia não era simplesmente divulgar uma lista de livros em uma estante, mas tentar mostrar para o leitor que, ali, tem uma pessoa, com aquela biblioteca, com aqueles livros. E você identifica que tipo de leitor é aquele e, portanto, que tipo de personagem é. Assim, quando eu descrevo os objetos de uma casa e não há personagem, mas eu queria que o leitor entendesse quem é que tem aqueles objetos, que tipo de gente tem aqueles objetos. Aí, você pergunta: ele não tem uma subjetividade? Não, não tem. Ele é aquilo, ele se entende como aquilo. Tem uma cena, um fragmento de uma professora que chega à escola e ela está destruída. E eu vou descrevendo [a cena] através dos objetos e, para mim, é exatamente isso: todos ali são objetos. A professora fica horrorizada com aquilo, mas o que ela vê em torno da escola são favelas, seus moradores, nada tem subjetividade e, por mais que você tente dar subjetividade às pessoas, ou emprestar subjetividade às pessoas, aos olhos dos outros, elas nunca passam de objetos, elas não se pertencem. Mirian: Essa desumanização é mais flagrante em cidades grandes como São Paulo? Rufatto: No Inferno provisório, eu tentei discutir que isso, na verdade, é uma característica da nossa sociedade, porque mesmo em Cataguases, por exemplo, mesmo em uma comunidade menor, as pessoas também não são, elas têm. O que me diferencia do meu vizinho é o carro que está na porta ou o carro que não existe, ou o tipo de televisão que eu tenho, ou a televisão que eu não tenho. Isso é cruel. Tem uma história que está no último livro do Inferno provisório, que está em uma antologia que acaba 81
Entrevista com Luiz Ruffato
de sair na Alemanha, que se chama “Sorte teve a Sandra”. A sorte é porque ela pegou aids. Por que é sorte? Primeiro, porque ela tem uma aposentadoria, ela não precisa trabalhar. Depois, significa para as outras pessoas que ela, em algum momento, se jogou no mundo, ela ousou, ela foi para o Rio de Janeiro, ela viveu no Rio de Janeiro, ela se contaminou no Rio de Janeiro, ou seja, saiu daquela situação horrível. Mirian: E isto é invejável. Rufatto: Para mim, é horrível, mas é verdade. Mirian: Como é escrito um livro onde você se dispõe aos personagens, se desdobra neles? Rufatto: Quando eu começo um livro, não sei exatamente o que vai acontecer. Eu sou como um camelo que vai atravessar um deserto. Você sabe o ponto de saída e onde quer chegar, só que o deserto, ele muda a paisagem o tempo todo, venta, as dunas mudam, tem pedras, areia movediça. Então, o camelo vai fazendo um caminho, eu sei onde estou começando, mas o que vai acontecer nesse percurso não, esse percurso é para mim inteiramente desconhecido, ele é impalpável e ele é surpreendente, porque eu vou tentando encontrar os meandros dos personagens, mas descobrindo junto com o personagem ao mesmo tempo. E, às vezes, eu tenho crises quando um personagem vai agir de uma determinada maneira que eu não sabia. E não é nada místico, mas você não detém os personagens, ele é um personagem, não é você, você não sabe tudo que está acontecendo com ele e, à medida que você vai escrevendo e descobrindo, às vezes, olha, é terrível. É terrível porque, de alguma maneira, é você também que é terrível. E é muito ruim quando você descobre de que você é capaz, porque, no fundo, no fundo, o que o escritor faz, eu acho, é transferir para as personagens todas suas taras, angústias, dores, ruindades etc. Só que você dilui isso. Quando você se depara com o personagem fazendo determinada coisa, para ele agir de uma determinada maneira, você tem que saber como agir daquela maneira. Portanto, é você que está ali por trás e é péssimo quando você descobre que você tem todas essas coisas ruins. Olhar para você e descobrir que você é aquilo também é muito triste. Mirian: Não tem como perscrutar o inferno alheio sem passear pelo seu próprio inferno. Todas as histórias que você nem sabe que sabe. Rufatto: As duas maiores crises que eu tive, uma foi no Inferno provisório em
uma história que o filho leva a mãe para a praia, pela primeira e última vez, porque ela está com câncer. Para mim, foi horrível. A minha mãe tinha passado exatamente pela mesma coisa e eu tive que reviver tudo aquilo, tive que reviver de uma maneira muito pesada. Tive que parar, fiquei alguns dias sem conseguir enfrentar o texto. Foi péssimo. A outra [crise], também no Inferno provisório, é a do pai que chama o menino para 82
Mirian Estides Delgado
nadar sabendo que ele vai matar o menino. Ele vai chamando o filho para a profundeza do rio e ele sabe que o menino vai morrer afogado, que ele precisa que o menino morra afogado para se vingar da mãe dele. E, nesse momento crítico, eu não sabia que iria acontecer isso. Eu me lembro que, quando eu saí de bicicleta, meu personagem sai de bicicleta e eu saía junto com ele levando o filho para beira do rio – eu imaginei –, sei lá que ele ia conversar com o menino. Quando eu senti o que ia acontecer, tive que parar. O personagem me disse, agora eu vou fazer isso. Levei tanto susto. Na época, eu tinha uma namorada que fazia ioga e fui para frente do lugar onde ela estava fazendo ioga, porque precisava contar para alguém que ia acontecer uma coisa horrível. Eu contei em prantos e não conseguia entender porque ele [o personagem] estava fazendo aquilo. Ao mesmo tempo, eu não podia deixar de fazer, impedi-lo de fazer aquilo. Ele tinha que fazer aquilo, que não era eu, e eu não podia interferir na vida dele. E aí, eu tive que matar e foi horrível. Nossa Senhora! Foi horrível! Foi um horror! Até hoje, eu me arrepio quando penso nisso, porque é tão esquisito quando você descobre do que somos capazes, é muito estranho. Todos os livros, todas as histórias têm alguma coisa assim que, em algum momento, eu me deparo: opa! Espera aí, calma lá, alto lá! Tem a história de um menino que mandam ele pegar uma bola debaixo de um porão, um menino negro. Ele vai, se enfia debaixo [do porão] e some. Ele nunca mais aparece. À noite, quando o outro menino, colega dele que mora na casa, vai dormir, fica ouvindo alguém debaixo do porão precisando dele. E não ajuda, não pode ajudar. Eu não sabia que o menino ia entrar no porão. Mentira! Eu sabia que ele ia entrar no porão, porque a história foi andando para esse lado. Mas eu não sabia que ele não ia conseguir sair, eu achei que ele ia entrar e sair. Quando eu descobri que ele não conseguia sair, foi outro baque. Eu falei: e agora? É horrível. Mirian: A esgrima entre as pulsões de vida e morte, talvez seja isso o tempo todo. O menininho que não conseguimos tirar debaixo do porão. O inconsciente insistindo o tempo todo. Rufatto: Quando eu escrevo é como se uma mão, como no Mobral, a pessoa pegava o lápis e, aí, alguém pegava sua mão e ia desenhando as letras. Então era você escrevendo, mas não era. Eu sinto um pouco isso, é como alguém tivesse pegando a minha mão, a mão é minha, o lápis está na minha mão, mas não tenho controle total. Eu posso deixá-lo mais pesado, menos pesado, posso arredondar um pouco forçando um pouco mais, mas, na verdade, o controle não é todo meu, acho que o controle é do inconsciente. Não gosto de falar que é o inconsciente, porque parece que você não tem nenhum controle. E tem. Por isso, eu prefiro a memória coletiva porque é como se essas histórias já estivessem prontas, essas histórias estão lá prontas, mas você não conhece as histórias. É uma sinopse o que está escrito nessa memória coletiva, está lá: a mulher abandona o marido, o marido pega o filho e vai se vingar. Quando você escreve, ela vai se desdobrar, e você se coloca, assim, a serviço de escrever essa história. 83
Entrevista com Luiz Ruffato
Mirian: Lembrei-me de Bion, um psicanalista que também diz que as ideias estão aí prontas para serem pensadas por quem puder e souber captá-las, e dos personagens pirandellianos buscando um autor para suas histórias. Rufatto: Todas essas histórias estão aí. Todo o mundo vê essas pessoas na rua e pode escrever sobre elas. Agora, cada um vai escrever de uma maneira diferente. Cada vez mais eu penso assim. Eu não detenho meu processo de criação, não detenho. E acho que todas as vezes que você quer colocar uma amarra, quer colocar um cabresto, não funciona, fica artificial. Ela [a história] tem que te tomar, você tem que estar impregnado dela. E, como se fosse na umbanda, eu não fico escritor o tempo todo, como a dona Joana incorpora naquele momento. Então, ela está disponível, vai na memória coletiva e dá pra você o que você quer ouvir. Porque, no fundo, é isso: ela [dona Joana] pega a memória coletiva e a transforma. Depois, acabou. Ela volta a ser uma pessoa comum. Mesmo porque eu acho que ser escritor 24 horas por dia é um saco, ninguém aguentaria. Eu sou uma pessoa, sei lá, 20 horas por dia. Então, [durante] quatro horas, eu viro um escritor. Mirian: Você tem uma disciplina para escrever? Algum ritual? Rufatto: Eu tenho. Eu sou extremamente disciplinado. Quando estou em casa, eu escrevo todos os dias das 7 horas da manhã ao meio dia. Quando viajo, faço umas adaptações. Não tenho nenhum ritual, escrevo com a porta aberta e, às vezes, conversando com minha filha. Mirian: Os personagens ficam ali do lado, esperando... Rufatto: Eles ficam, eles são bonzinhos. Inclusive, porque eu acho que, de alguma maneira, eles sabem que isso faz parte. E, como eu sou muito focado, eu posso parar, colocar uma vírgula e voltar sem nenhum problema. É uma coisa meio louca, né? Esse método do camelo para mim é importante porque o camelo também vai dando cada passo, sem pressa. Ele vai no ritmo dele. Quando tem que parar, ele para e não avança porque sabe que se ele parou foi por algum motivo. Ele não avança, mesmo porque o deserto você vai construindo, ele está lá, é só uma travessia. Aparentemente, não existe nada, nem árvores, montanhas. É areia, areia, areia. Mas só que quem quer ler sabe que o deserto tem as suas ruas, tem seus sinais, sempre muda tudo, mas tem. Tanto que você consegue andar pelo deserto sem se perder. Meu sonho é algum dia conseguir atravessar o Saara de camelo. Acho que seria um exercício muito legal. Como eu acho que não vou conseguir, eu ainda tenho uma vontade muito grande de fazer o caminho de Santiago de Compostela, que não é a mesma coisa, mas é uma maneira de transpor. Porque eu acho essa ideia da solidão dos eremitas como reconhecimento interior muito legal. E o deserto é isso, tem que aprender a beber água pouquinho. É você viver com o mínimo, mínimo, mínimo. E estar o tempo todo sozinho, porque eu não vou falar com um árabe.
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Mirian: Talvez fale com o camelo. Rufatto: E o camelo me entenda. Eu gosto desse exercício de autoconhecimento.
O caminho de Santiago é uma opção. Se você vai sozinho, eventualmente vai encontrar com alguém. Eu gosto dessa ideia. Mirian: Você se sentiu muito sozinho em São Paulo?
Rufatto: Mirinha, eu não me sinto sozinho, sabia? Mas, talvez, eu tenha me
tornado escritor por causa disso, para não me sentir sozinho.Tem uma quantidade de gente comigo o tempo todo, é impressionante. Agora é o fulano de tal e, depois, é fulano de tal. O Pirandello tinha aquele negócio de dar audiência aos personagens. É mais ou menos isso. Mirian: Como é que um personagem começa a aparecer. Ele começa a te incomodar? Rufatto: Eles aparecem. Um dia, um deles chega e diz: agora é a minha vez, vou te contar uma história. E eu vou convivendo com ele um certo período. Em um determinado momento, você percebe que já amadureceu, que está realmente pronto. Eu não anoto nada. Acho que se eu anotasse eu me sentiria obrigado a seguir um roteiro. Se as ideias são boas elas vão ficar. Se a personagem é boa, ela fica. Se a história é legal, fica. Mirian: Teve um momento específico em que você decidiu, quis ser escritor? Rufatto: Eu decidi politicamente. Eu quero escrever para a minha família, meus amigos que não estão na literatura brasileira, operários, trabalhadores urbanos. A partir desse momento, eu comecei a fazer exercícios. Só que eu demorei uns 15 anos pra escrever, entre eu achar que eu ia escrever e escrever. Eu não sabia como escrever, não tinha nenhuma ideia de como entrar nesse universo. Mirian: E quando entrou, muitas histórias já estavam lá. Rufatto: Eu ficava debaixo das mesas ouvindo as histórias dos adultos. Enquanto
todos os meus primos ficavam correndo, brincando, eu ficava ouvindo. De alguma maneira, eu estava me preparando sem saber. Estava lá embaixo ouvindo as histórias. De alguma maneira, aquilo me afetava. As histórias do meu bairro, que depois voltaram. Frases, fragmentos, quando eu comecei a escrever, voltaram. Mirian: Como em um sonho. Rufatto: Vou te contar uma coisa, eu não sonho. Não me lembro de nada.
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Entrevista com Luiz Ruffato
Mirian: Você escreve os seus sonhos. Sua escrita é livre, poética, tem a feitura dos sonhos. Você reconhece em seus personagens um comportamento bastante conformista, algo fatalista. Nós continuamos acreditando em possibilidades de superação, transformações. Você não vê alternativas de mudanças, possibilidades outras? Rufatto: A questão é assim: as dimensões do coletivo e do individual estão sempre conversando. Eu não vejo nos livros nenhuma possibilidade de conversão coletiva, ou seja, não há um sentimento de que pertencemos a uma comunidade e que essa comunidade, junta, pode mudar alguma coisa. Isso eu não vejo, inclusive porque eles são extremamente egoístas e individualistas. Mas acho que o final do ciclo inteiro é totalmente de superação, porque – e agora eu estou falando como leitor – é o seguinte, pode ser obscuro, mas acho que não é tão obscuro não. A última história que conversa com a primeira do primeiro volume [da série Inferno provisório] – uma chama “Uma fábula” e a outra chama “Outra fábula”. Na “Uma fábula”, existe a criação do mundo e é uma espécie de taumaturgo que aparece lá. Ele cria do nada. Ele cria uma casa, uma família. Ele é vingativo. Imagine: ele mata o filho, ele trata a mulher dele mal, ele enlouquece a mulher. Ele é o Deus Todo-Poderoso, ele é o poder. Ele cria o mundo. E ele cria o mundo literalmente. [Já em “Outra fábula”], o personagem é um jornalista que deixa pistas do que ele vai escrever. Eu acho que ele vai escrever o Inferno provisório, e ele começa a história se preparando para a corrida de São Silvestre, que ocorre no último dia, no dia 31 de dezembro. Portanto é um novo ano, acontece em 2002, que é o ano da eleição do Lula. E o que é a corrida de São Silvestre? Noventa e nove por cento das pessoas que estão ali não estão para ganhar a corrida. Agora é o autor, o narrador. O narrador deu a saída coletiva neste momento, mas, individualmente, essa superação se dá em um nível muito primário, que é o de ter. Eu só acredito que eu vou melhorar de vida se eu tiver uma melhora econômica, que é o que o Lula fez. O Lula colocou 42 milhões de pessoas, entre 2002 e 2008, consumindo, mas não como cidadãos. Não há nenhuma cidadania, só consumo. Claro, isso é uma análise muito posterior e comprometida que eu estou fazendo. Mas eu acho que, no fundo, essa sociedade em que estamos vivendo hoje corre neste momento, e esses personagens que se enriqueceram com o Lula são os personagens que já estavam tentando se enriquecer antes, eu acho. Tem a superação? Não sei. Há uma tentativa clara, para mim, de superação pela posse. E ela é individual. Mirian: Coletivamente, há uma saída utópica? Rufatto: Aí é uma utopia. É uma corrida, mas é o país, não é a comunidade. Então, tem a superação. No Eles eram muitos cavalos, também acho que existe, também é leitura, que é a seguinte: tem 77 capítulos, ou fragmentos numerados, aí, ele termina, tem a página em preto, que deixa claro que aqui acabou alguma coisa. No último fragmento, que não tem numeração, é um diálogo entre um homem e uma mulher à noite, e eles começam a discutir que tem uma pessoa ferida lá fora e se eles devem ir ou não lá fora salvá-la ou ver 86
por Mirian Estides Delgado
o que aconteceu. É mais ou menos isso que eu proponho: olha, leitor, até aqui, eu mostrei uma realidade e, agora, eu pergunto para você: nós vamos lá fora ou não vamos lá fora? Eu acho que proponho, mas não acho que os personagens proponham. Acho que os personagens estão tão mergulhados em sua própria dor, na sua solidão de não pertencer em todos os sentidos, economicamente, socialmente, historicamente. Então, eu não vejo nos personagens, mas o narrador sempre tenta colocar uma questão, inclusive porque, senão, eu cairia no niilismo, que é o que eu nunca quis e nem quero, eu acho que tenho que propor algo, não propor no sentido da ação, mas propor uma reflexão. Eu tento em todos os meus livros propor uma reflexão, seja ela óbvia ou não. Você me coloca essas questões, me faz pensar sobre elas, e eu acabei inaugurando um discurso.
Mirian Estides Delgado 705/905 Sul, Bloco C, Centro Empresarial Mont Blanc, Sala 338 Asa Sul, Brasília. DF estidesmirian@gmail.com © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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A ruptura psicótica Maria de Fátima Rebouças Malva1
Resumo: A autora propõe pensar a ruptura psicótica, considerando a importância desse foco permanente na clínica psicanalítica. Aponta a relação íntima entre a experiência psicótica e o funcionamento psíquico arcaico, apresentando considerações sobre a linguagem possível na relação analítica diante dessas circunstâncias. Palavras-chave: ruptura; psicose; regressão; linguagem.
Tudo é teu que enuncias. Toda forma nasce uma segunda vez e torna Infinitamente a nascer. O pó das coisas ainda é um nascer em que bailam mésons. E a palavra, um ser esquecido de quem o criou; flutua, reparte-se em signos – Pedro, Minas Gerais, beneditino – para incluir-se no semblante do mundo. O nome é bem mais do que o nome: o além da coisa, coisa livre de coisa, circulando. E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos, cálculos. (Carlos Drummond de Andrade, 2012, p.14)
Proponho neste ensaio pensar na ruptura psicótica considerando desde surtos alienantes e duradouros, que podem se manter durante toda uma vida, até o que, comumente, chamamos de vivências de núcleos psicóticos. As vivências psicóticas fazem parte do cotidiano de todos nós, reapresentado-nos momentos de fragilidade e de ausência da percepção de nós mesmos, fazendo-nos transitar pela dança do psiquismo 1
Membro titular da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB) e membro associado da Sociedade de Psicanálise de São Paulo (SPBSP).
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A ruptura psicótica
humano, que Drummond poeticamente descreve quando diz que toda forma nasce uma segunda vez e torna infinitamente a nascer. Nos havemos com o pó das coisas, onde a palavra é esquecida e se distancia da situação onde nascera. Empreende-se um ir e vir flutuante, utilizando o que há aquém e além da coisa, apenas como matéria para a desintegração de signos. Coisa livre de coisa e de ligação com a palavra e com os afetos passam a circular em maior ou menor frequência e durabilidade, em nossas mentes. Acredito que através do estudo do trabalho clínico com psicóticos possamos ampliar a compreensão de vivências que, em sua maioria, não são percebidas, no dia a dia das nossas vidas. Por outro lado, penso que em uma experiência de análise, a inclusão de um foco permanente a tais movimentos, permite-nos, como analistas, um trabalho que se propõe a percorrer uma área psíquica, a meu ver, básica, para que o desenvolvimento emocional tenha chance de acontecer, de modo mais profundo e consistente. Frequentemente em nossas mentes, ocorrem experiências emocionais insuportáveis, vividas na relação com o mundo externo, estabelecendo um estado de pressão interna, atormentado, ameaçador-persecutório, gerador de um medo extremo e de uma impossibilidade de viver a dimensão afetiva de um vínculo. Muitas vezes, tal tensão é tão intensa que, assim como uma bola submetida a uma pressão que não encontra força em suas paredes para conter, estoura. Acontece assim, a experiência de fragmentação psíquica. Essa é uma experiência muito mais frequente do que se possa observar e, em sua maioria, apenas sinaliza a sua presença através de estados de humor alterados, maior intolerância à frustração, pequenos esquecimentos etc. Em casos extremos, rasgos psíquicos desconsideram absolutamente a realidade externa. Winnicott (1945/1993) inicia seu artigo sobre o “Desenvolvimento emocional primitivo”, dizendo-se movido pela escolha de “estudar a psicose na análise” (p. 269), antes de qualquer pesquisa literária sobre o assunto. Essa é uma empreitada corajosa e única no sentido de buscar alcançar a percepção dos trâmites afetivos dentro desses vínculos. É por esse vértice que os trabalhos sobre o tema da psicose se desenvolvem, navegando sobre fendas psíquicas profundas e distantes da possibilidade de serem nomeadas. Estudar a psicose através da experiência clínica é, sem dúvida, um exercício de natureza quase inalcançável. O que pode ser realizado estende-se ao âmbito da consciência e da percepção, sendo, nesse sentido, um exercício hercúleo. O analista é colocado em um território onde um corte profundo com a realidade e com a percepção se fez e se mantém por angústia. Referindo-se à sua experiência com psicóticos, Winnicott (1945/1993) nos diz: Isto ocorreu na guerra e posso dizer que mal notava os ataques, estando o tempo todo envolvido na análise de pacientes psicóticos que, de maneira notória e enlouquecedora, não dão a mínima atenção a bombas, tremores de terra e inundações. (p. 269/270) 92
Maria de Fátima Rebouças Malva
A capacidade de Winnicott de “entrar” e suportar a angústia desse encontro, oferecendo tempo e espaço para o mundo psicótico, anunciava o requisito básico e fundamental para o desenvolvimento desse trabalho. Assim como seus pacientes, ele, também, “mal notava os ataques...”. Havia guerras externas que precisavam ser deixadas à margem para, assim, viver o bombardeio, os tremores de terra e as inundações internas. Foi vivendo essa história que Winnicot trouxe contribuições valiosas ao tema: 1. Diferencia dois tipos de psicanálise – análises que levam em conta, principalmente, a relação pessoal que o indivíduo mantém com as pessoas, junto com as fantasias conscientes e inconscientes que constituem relações entre “pessoas totais”. Essa é a forma original da psicanálise. O outro tipo de psicanálise, surgida posteriormente, apresenta a fantasia como foco de maior interesse, considerando-a como reveladora da organização interna, incluindo sua origem na experiência instintiva. Desse modo, a análise passou a ser relacionada às mudanças qualitativas no mundo interno, associadas às experiências pulsionais. Essa progressão natural da psicanálise envolve uma nova compreensão, mas não uma nova técnica - uma compreensão focada no primitivismo das relações de objeto e as consequentes possibilidades de percepção, pelo analista, da situação de transferência inerente a essa vivência arcaica. 2. O paciente que precisa analisar a ambivalência em suas relações externas tem uma fantasia sobre seu analista, diferentemente da fantasia de um deprimido. No primeiro caso, o trabalho do analista é considerado como fruto do amor que o analista tem pelo paciente, sendo o ódio desviado para coisas odiosas. Por outro lado, o paciente deprimido requer a compreensão de que o trabalho do analista é, até certo ponto, seu esforço para aguentar sua própria (do analista) depressão”; ou seja, a culpa e a dor dos elementos destrutivos (do analista) (Winnicott, 1945/1993, p. 271). Trata-se de um pedido de ajuda reapresentado-nos a relação primitiva e pré-depressiva com os objetos. Aquilo que primitivamente foi deslocado é reapresentado no setting analítico, através da necessidade de viver o amor e o ódio não deslocados e, assim, coincidentes ao mesmo objeto, no caso, dirigidos ao analista e contidos por este. 3. A ampliação desse foco de atenção do analista permite considerar os fins de sessão, final de análise, as férias etc., como situações reveladoras do ódio, do mesmo modo que “as boas interpretações são expressões de amor e símbolos de alimentação e cuidados”. 4. Nesse artigo, “Desenvolvimento emocional primitivo” ( 1945/1993), Winnicott pretende examinar os sentimentos e a personalidade do bebê, nos três ou quatro primeiros meses de vida. Quando o bebê experimenta uma relação primitiva 93
A ruptura psicótica
de objeto “suficientemente boa”, nesses primeiros meses, ao alcançar o período subsequente, ele começa a se preocupar com a mãe, com sua saúde e com seu humor. Quando o ser humano sente que é uma pessoa que se relaciona com outras, ele já andou um longo caminho em seu desenvolvimento. 5. Winnicot adverte o analista que: “... é inútil, e mesmo perigoso, analisar as relações pré-depressivas primitivas e interpretá-las à medida que aparecem na transferência, a não ser que o analista esteja completamente preparado para lidar com a posição depressiva, com as defesas contra a depressão e com as ideias persecutórias que surgem para ser interpretadas à medida que o paciente progride.” (1945/1993, p. 272) 6. Winnicott apresenta, então, a seguinte tese: ... o desenvolvimento primitivo do bebê, antes de o bebê conhecer a si mesmo (e como consequência os outros) como a pessoa total que ele é ( e que elas são), é vitalmente importante: é, de fato, que aí se encontra o esclarecimento na psicopatologia da psicose. (1945/1993, p. 274)
Considerações clínicas Esse desenvolvimento teórico de Winnicott (1945/1993) nos oferece a possibilidade de entender a angústia do psicótico, associada à experiência emocional dos primeiros meses de vida, quando nos é possível observar que: Expressar um sentido e uma coerência referente ao tempo e ao espaço é comumente caótico. Exemplo clínico de Winnicott: ... um menino de nove anos que adorava brincar com Ann, de dois anos, mostrava um agudo interesse pelo bebê que estava sendo esperado e disse: ‘Quando o novo bebê nascer, ele vai nascer antes de Ann?’ Para ele, o sentido do tempo era muito pouco firme. (1945/1993, p. 274)
A localização do self dentro do próprio corpo é outra dificuldade do psicótico. O sentido de self e de outro-que-não-o-self não se desenvolvera. Exemplo clínico de Winnicott: ... uma paciente psicótica em análise veio a reconhecer que, quando era bebê, pensava que sua irmã gêmea do outro lado do carrinho era ela mesma. Sentia-se surpresa quando a irmã era pega no colo e ela permanecia onde estava. (1945/1993, p. 275)
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Maria de Fátima Rebouças Malva
E outro exemplo: Outra paciente psicótica descobriu que vivia dentro de sua cabeça a maior parte do tempo, atrás dos olhos. Via através dos olhos como se estivesse vendo através de janelas, não sabendo, portanto, o que faziam seus pés, apresentando como consequência a tendência a cair em buracos e tropeçar nas coisas. Não tinha olhos nos pés. Não sentia a própria personalidade localizada no corpo, que era como uma máquina complexa que ela tinha que dirigir com habilidade e cuidado conscientes. (1945/1993, p. 275)
Um dos meus pacientes, durante alguns dias em que entrou em surto, via-se como um pênis que precisava reter a urina pelo medo de se esvaziar e morrer. O sofrimento e a angústia de morte inerentes eram incontroláveis e extremamente ameaçadores. Pude observar que não somente, como disse Winnicott, a mente estaria fora do corpo, como poderia estar representada por uma parte dele. De toda forma, expressando um caos nesse processo de integração entre mente e corpo.
A necessidade de cuidados básicos se evidencia nas manifestações psicóticas Acompanho há vários anos, em análise, uma paciente que, tomada por um medo imenso diante dos episódios de separação, precisava armazenar tudo que podia lembrar em seu dia a dia para, ao chegar à sessão, me relatar, porque só assim sentiase cuidada por mim. Apesar do seu esforço, naturalmente, os fatos lhe escapavam e a angústia de morte estava sempre presente. Outra experiência recorrente era a de sentirse, frequentemente, observada por um olho, como disse: “é como uma parte minha que se separa de mim e me observa”. Como nos diz Winnicott, ser conhecido significa sentir-se integrado pelo menos na pessoa do analista. Em uma situação de supervisão, a analista apresenta um caso de um psicótico que sentia a necessidade de expor o umbigo porque só assim teria chance de ser reconhecido.
As experiências emocionais associadas ao ciúme remetem ao desamparo primário Uma paciente vive um momento de intensa angústia diante de uma experiência de ciúme. Relata ter passado o fim de semana com uma voz persistente em sua mente que anunciava o fato de que seu marido estaria lhe traindo. Na noite anterior, relata ter tido o seguinte sonho: estava em um ambiente familiar, onde havia muitas pessoas e, em um certo espaço, meio escondidos, alguns animais. Por alguma razão que não lembrava, um desses animais se torna extremamente irado. A partir desse momento,
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passou a viver uma situação de desamparo e perseguição já que esse animal, que era um leão enorme, passa a ficar solto, entrando pelos cômodos da casa, enlouquecido de fúria e o seu destino seria estraçalhar-lhe. Refere-se a uma cena em que se defronta com esse ser medonho tendo como proteção apenas uma porta frágil de madeira que o leão, com suas patas enormes e violentas, estilhaçava. Era, então, apenas uma questão de tempo e, efetivamente, estaria morta. Em um momento seguinte, uma de suas filhas entrava em uma espécie de restaurante requintado, onde havia pessoas preocupadas com a ordem e os bons modos, e ousa dar alimento a um gato faminto que trazia no colo. Abre uma travessa e retira bons pedaços de peixe grelhado, sem a menor preocupação com o que poderiam estar pensando e alimenta o bicho faminto. No decorrer da sessão, conversamos sobre seu ciúme e o decorrente sentimento de desamparo. Um desamparo que a remete a um ódio intenso e a um sentimento de extrema vulnerabilidade e ameaça. Pensando nesta fera solta, como esse leão enlouquecido do sonho da minha paciente, podemos nos referir a um movimento pulsional, qualificado pela ameaça entre a vida e a morte. Acredito em um movimento regressivo profundo, onde a situação de risco diante da experiência de desamparo é real. O ego experimenta a desintegração provocada pelo ódio reativo à ameaça de vida. O ciúme, em essência, nos remete a uma experiência psicótica, quando a desintegração anuncia um desamparo que desperta a necessidade de controle e de posse do objeto, como se pode entender na relação primária da mãe e do bebê, quando a perda do objeto significa, de fato, a morte. São experiências que expõem vivências características de um bebê em seus primeiros meses. Se, na experiência clínica, pudermos alcançar a amplitude do que o paciente tenta nos comunicar através do surto, teremos chance de, com muito cuidado, oferecer-lhe o atendimento de uma necessidade básica. Ou melhor, alimentarmos o bicho faminto que todos carregamos dentro de si. O paciente psicótico reapresentanos a vivência de um bebê ameaçado por falta de cuidados maternos. Se, diante da angústia do funcionamento psicótico suportarmos, suficientemente, o contato com o mundo primitivo, teremos chance de atualizarmos através da relação analítica o drama da relação traumática com o objeto. Nós analistas enfrentamos, nesses momentos, os nossos próprios desarranjos emocionais, nos apegamos, também, na concretude da linguagem ouvida. Esse seria um momento de total desencontro, repetindo, desse modo, o trauma inicial cunhado pelo desamparo. Winnicott coloca que, no seu início, a personalidade não é integrada e, na psicose, há uma desintegração regressiva. É para esse momento que somos conduzidos. Postula, assim, uma não integração primária. Assim sendo, o estádio não integrado primário fornece uma base para a desintegração e o atraso, ou o fracasso da integração primária, predispõe à desintegração como uma regressão. Desse modo, diante de uma situação de pressão emocional do mundo interno/externo, somos levados a esse estágio primitivo de não integração. O mundo externo, do mesmo modo, sofre um processo de caos 96
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pela própria situação de desencontro e de impossibilidade de diálogo e, portanto, de compreensão. É apenas quanto o vértice de escuta se volta para a experiência primária de desamparo que teremos chance de ajudar a esses pacientes desintegrados e a nós mesmos, a sustentar a possibilidade de um movimento de integração.
Itens a serem considerados em termos de comunicação na relação analítica Primeiramente, devemos suportar sermos colocados, como analistas, no lugar de distância e de alienação próprios ao objeto primário (representativo do meio externo), agente desencadeador do trauma. Essa é uma experiência que requer, como nos disse Winnicot, que o analista esteja preparado para “lidar com a posição depressiva, com as defesas contra a depressão e com as ideias persecutórias que surgem para ser interpretadas à medida que o paciente progride” (1945/1993, p. 271). Não é uma tarefa fácil! Questões de ordem narcísica surgem como defesa, enquanto o paciente, fragilizado, busca, inclusive, a introjeção de um modelo de funcionamento psíquico continente ao seu desamparo. 1. O discurso a ser estabelecido é, fundamentalmente, representativo do funcionamento psíquico arcaico, considerando-se os aspectos orais, anais e sadomasoquistas. O analista é colocado no lugar da mãe que não suportou e, assim, o ódio e o medo tornam-se presentes como fundamentação da relação. 2. As interpretações transferenciais passam pela cisão. Nesse sentido, passam a ter alguma chance apenas aquelas que venham a se fundar em uma experiência emocional de cunho verdadeiro, que esteja sendo experimentada pelo analista. Repetidas vezes, interpretações ancoradas em identificações projetivas são abandonadas pelo paciente de modo frio e inalcançável. Continua sua “ladainha” como se nada estivesse acontecendo, como se o analista, efetivamente, não existisse. Tenho percebido que o que mais importa é a capacidade do analista de ser colocado no lugar do vazio e da desvitalização. As repetidas situações de reorganização psíquica do analista oferecem ao paciente o modelo de relação objetal viva. 3. Outro aspecto que chama a minha atenção é o fato de que, apesar de aparentemente desinvestida, a existência do analista é muito importante para o paciente psicótico. Os ataques inerentes a essa situação me parecem insistir em uma tentativa de retomada de um vínculo perdido. Essa situação me faz pensar que, mesmo no trauma precoce da psicose, alguma experiência de vínculo e dependência aconteceu com sucesso. Talvez possamos pensar em situações ligadas à condição intrauterina, por exemplo. É uma hipótese. 97
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Um bebê que não teve qualquer pessoa para juntar seus pedaços começa com uma desvantagem - sua própria tarefa de auto-integração e talvez não consiga empreendê-la, ou pelo menos, não consiga manter sua integração com confiança. (Winnicott, 1945, p. 276)
O processo de análise, em sua essência, passa a oferecer ao processo de integração, a técnica do cuidado, que faltou a essas mentes. Acredito que aspectos ligados ao setting, tais como a firmeza relativa à rotina do tempo e do espaço, além da presença atenta e sensível do analista, são permanentemente de grande valor terapêutico. Assemelhamse aos “cuidados infantis através dos quais a temperatura do bebê é mantida, ele é manipulado, banhado, embalado e nomeado e, também, as experiências pulsionais agudas que tendem a tornar a personalidade una a partir do interior” (Winnicot, 1945, p. 276). Sendo assim, ao nos defrontarmos com os momentos psicóticos, em uma primeira instância, vejo o setting, incluindo a pessoa do analista, como o constituinte do limite (paredes da bola) de sustentação para uma mente fragmentada.
Outros autores trazem aspectos significativos à teoria e à técnica psicanalítica no trabalho com psicóticos Diante da vivência onde a liga afetiva se revela fragmentada, acredito, como já dito anteriormente, ser a identificação projetiva o caminho que oferece a esperança do contato. Mais uma vez, repetindo um funcionamento psíquico primitivo, contamos com a pulsão de vida no intercurso da relação com o mundo. A cena primordial onde um bebê ferido e abandonado às suas limitações encontra-se, perdidamente, em busca de si e do outro, é básica. Sinto a descrença profunda e radical com relação à possibilidade de ser visto e cuidado. Por outro lado, me indago sobre o fato do investimento em uma relação que exige frequência, tempo, dinheiro etc., ser buscada. Afinal, o paciente está ali. Acredito que possamos pensar na existência de um território psíquico estéril, no entanto, com reservas de outros territórios constituídos por afetos que permeiam esses núcleos. “... minha mãe, tinha muitas limitações, mas buscava oferecer o que dava conta”, essas eram expressões que acompanhavam a percepção da dor ligada ao sentimento de desamparo. Klein, ao conceituar o processo de identificação projetiva, refere-se à ataques violentos fantasiados sobre a mãe, seguindo duas linhas principais: “uma é o impulso predominantemente oral de sugar até secar, morder, esvaziar e despojar o corpo da mãe de seus conteúdos bons... A outra linha de ataque deriva dos impulsos anais e uretrais e envolve expelir substâncias perigosas (excrementos) para fora do self e para dentro da mãe. Junto com esses excrementos nocivos, expelidos com ódio, também são 98
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projetadas partes cindidas do ego, incluindo objetos internos e mesmo o superego, ... para dentro da mãe. Esses excrementos e partes más do self visam não apenas ferir, mas também controlar e tomar posse do objeto. Conforme a mãe vem a conter as partes más do self, ela não é percebida como um indivíduo separado, mas como o self mau... protótipo de uma relação objetal agressiva. Eu sugiro para estes o termo “identificação projetiva” (1946/1986, p. 322). Klein continua: “Entretanto, não são apenas as partes más do self que são expelidas e projetadas, mas também partes boas do self. Os excrementos, então, têm o significado de presentes... (1946/1986, p. 323). Em seguida, Klein diz: “Desde o início, o impulso destrutivo é voltado contra o objeto e é primeiro expressado em ataques oral-sádicos fantasiados ao seio da mãe... Os medos persecutórios que surgem dos impulsos oral-sádicos do bebê de despojar o corpo da mãe de seus conteúdos bons, e dos impulsos anal-sádicos de colocar seus excrementos dentro do dela... são de grande importância para o desenvolvimento da paranóia e da esquizofrenia” (1946/1986, p. 293). As duas linhas pulsionais (oral e anal-uretral) expressivas dos modelos de comunicação com o mundo externo seguem a dinâmica fisiológica do bebê. A pulsão oral (sugar até secar, esvaziar...) é vivida na relação íntima-corpórea com a mãe (objeto), logo a sensação de estar “engolindo” a mãe tem, em si, a fantasia de controle e é vivida, de forma realística. Do mesmo modo, a pulsão oral-uretral, onde “coisas” são “expelidas” do corpo, encontram como destino o corpo da mãe. Vemos os movimentos de introjeção e projeção vividos “concretamente”, associados aos movimentos do corpo. Estas são as bases da linguagem psicótica estabelecida na tentativa de serem decodificadas nas relações com os objetos internos e externos. O ambiente-objeto vai determinar a qualidade do amparo para essas vivências. Há, na psicose, a impossibilidade de um acolhimento confortável para um self incipiente, prematuro e, antes de tudo, dependente (o self do bebê). Uma catástrofe ocorreu, estabelecendo, a partir daí, a criação de um núcleo psíquico, mantido pela vivência de um bebê assustado, sobrecarregado pelos movimentos de vida que esbarram em uma crosta enrijecida, impermeável, sem profundidade. Grotstein (2010, p. 111) refere-se a Bion em seus estudos sobre psicóticos, dizendo que “...quando bebês, pareciam ter sido privados da oportunidade normal de empregar identificação projetiva (interpessoal, comunicativa) com uma mãe adequadamente continente” ; e, a partir daí, desenvolve algumas ideias: 1. “O conceito de Klein de identificação projetiva como uma fantasia onipotente exclusivamente inconsciente foi ampliado para sua nova concepção como comunicação emocional normal entre bebê e mãe.” 99
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2. “Bion descobriu o “elemento patogênico” chave para a psicose (e o trauma) em sua formulação do “objeto obstrutivo”, que em suas obras posteriores veio a tornar-se o superego assassino hipermoralista. Este objeto quimérico, tóxico, consistia da hostilidade inicial do bebê em relação à mãe, então de sua raiva aumentada dela por não ser uma mãe continente, da imagem da mãe como odiando o bebê e da imagem dela como projetando na direção oposta.” 3. “Bion postulou que, juntamente com a influência tóxica do “objeto obstrutivo”, o paciente psicótico, quando bebê e durante a vida adulta, foi incomumente intolerante à frustração e, portanto, concretizou e preencheu seu espaço mental da ausência materna com um “não-seio” como uma realização negativa e como um objeto interno odioso, em vez de ser capaz de permitir que o espaço de “não-seio” (ainda) permanecesse aberto à expectativa.” 4. Bion conclui, então, que os psicóticos não podiam pensar ou sentir, porque eles não podiam permitir-se sofrer dor emocional... eles também não podiam dormir e, portanto, eram incapazes de diferenciar entre sono e vigília e entre consciência e o inconsciente ( 2010, p. 112). Concluindo, “o bebê que está destinado a tornar-se psicótico deve livrar-se de suas emoções e de sua mente, porque lhe falta a experiência de um continente externo suficientemente bom (com sua função alfa, sonhar e fantasiar) com o qual regular e mediar suas emoções. Sem este continente interno, consequentemente, o psicótico carece do equipamento transformacional e deve então declarar um estado de falência emocional-mental e jogar fora o resto de mente que ele ainda possuir, juntamente com seus pensamentos, em seus objetos, incluindo seu corpo. A falha da mãe em ser um continente suficientemente bom resulta, frequentemente, na projeção reversa da mãe para o bebê – na ausência de um continente bom – e desse modo ser transformada em um objeto obstrutivo, que ataca os vínculos, um superego hipermoralista. Este objeto torna-se o núceo, em minha opinião, do refúgio psíquico, e é a marca registrada do trauma (Grotstein, 2010, p. 171). Imaginemos, então, a angústia da experiência repetida, na relação com o mundo. As referências, anteriormente dirigidas a um único objeto, passam a encontrar na realidade, uma multiplicidade de situações-ambiente que repetem a angústia arcaica da ameaça de morte. “Todos perseguem-me e existem para destruir-me”. A intensidade do ódio fragmenta continuamente aquilo que já está fragmentado. A repetida intensidade dos movimentos de introjeção e projeção alimenta esse destino. Não nos esqueçamos que, junto aos “excrementos nocivos” expelidos com ódio, também são projetadas partes cindidas do ego, algumas funções de proteção da mente, tais como o superego arcaico e cruel, para dentro da mãe. Inicia-se aí a experiência persecutória e violenta do psicótico. 100
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O medo de retaliação pelo objeto se intensifica e a mente passa a viver uma perseguição sem fim. O objeto passa a ter um poder enorme sobre o ego, já que carrega partes vitais e ao mesmo tempo destrutivas (nocivas) do ego. Logo, as partes do self que estão envolvidas na identificação projetiva incluem impulsos oral e anal-sádicos, além de objetos internos persecutórios. Como nos disse Klein (1946/1986), o objeto transformado é tratado como se fosse parte do self e, desse modo, as defesas de cisão e identificação projetiva não operam completamente. Através desse processo de identificação-projetiva mantém-se uma ligação com o objeto, mesmo que o “objeto” se constitua de partes projetadas e intoleráveis. Associo a imagem de um bebê em cólera, que demanda tolerância e respeito pela sua dor, apesar de um choro intenso, gritos, movimentos motores agressivos, mordidas etc. Muitas vezes, diante da sensação de não estar sendo alcançada como pessoa-analista, pelo paciente psicótico, vejo-me diante desse bebê. O choro-dor e o ataque intermitente, subjacente ao excesso de projeções, precisa ser sentido, visto e cuidado. Remeto-me, mais uma vez a Bion, ao seu conceito de language of archievement (1962), que, para mim, se traduz como linguagem das emoções, como recurso possível, e por que não dizer único, no tratamento analítico, principalmente de pacientes psicóticos. Para tanto, o analista deve tornar-se um “mam of achievement”, desenvolvendo a habilidade de “uma paciência indomável e equanimidade e que esteja habituado à incerteza”. Também sobre paciência, escreveu Grotstein: Isto significa que com paciência e segurança, o analista possa interromper o alarido perturbador da linguagem de substituição (linguagem comum) de modo a manter-se aberta às emoções inconscientes que estão espontaneamente fluindo de dentro dela, enquanto ela experiencia-se totalmente experienciando a presença total de seu analisando... (Grotstein, 2010, p. 119).
A forma de contato é tão cindida quanto o encontro entre as mentes do analista e do analisando. Somos, com insistência, colocados no lugar desse objeto, criado pelos destroços psíquicos do paciente. Vejo a importância de nos permitirmos viver essa montagem de retalhos psíquicos, para que, assim, possa ser abstraída alguma possibilidade de linguagem-contato. Diferentemente do objeto criado pelo neurótico, onde somos “incorporados” por um personagem, com relação aos psicóticos, a vivência é de outra ordem. Não se trata de uma identidade com funções maternas ou paternas e, sim, com a ausência delas, em uma etapa de extrema vulnerabilidade do desenvolvimento psíquico.
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Assim como o bebê, através das suas projeções, busca em sua fantasia onipotente controlar a mãe, a fim de evitar a ansiedade da separação, o paciente psicótico também o faz. A mente do analista experimenta uma “ocupação” que vale a pena focar. Tenho acompanhado os analistas “pré-ocupados”, ao viverem experiências clínicas psicóticas e acredito que essa é uma condição que insere um elemento imprescindível para que algum benefício aconteça no processo analítico. Indicam a formação de uma liga entre as duas mentes, que certamente faltou ao bebê psicótico. Penso aqui, em Winnicott (1946/1993, p. 49), quando desenvolve seu conceito de preocupação materna primária. Tais pacientes constroem um cenário onde a proposta é a de viver aquilo que não foi possível viver na relação mãe-bebê, no que diz respeito a holding. Por outro lado, a permanência do analista em estados encapsulados de angústia psicótica gera a reconstrução da insuficiência geradora da própria cisão. Bion nos diz que “a ansiedade do analista é um sinal de que o analista está recusando-se a “sonhar” o material do paciente: não sonhar = resistir = não introjetar. Caso um paciente esteja resistindo, pode ser útil considerar se a resistência apresenta características relativas aos fenômenos descritos por Freud como “trabalho onírico”. Quero dizer que o material consciente tem que ser submetido ao trabalho do sonho para tornar-se adequado para armazenamento, seleção e apto à transformação da posição esquizoparanóide para a posição depressiva, e que o material pré-verbal inconsciente tem que ser submetido ao trabalho do sonho recíproco para o mesmo propósito. Freud diz que Aristóteles afirma que um sonho é a forma da mente funcionar durante o sono: Eu digo que é a forma que ela funciona quando acordada (1992/2000, p. 56). Bion acrescenta, portanto, ao conceito de identificação projetiva, dimensões interpessoais e comunicativas, junto à ideia de uma fantasia onipotente intrapsíquica. Postulou (segundo Grotstein, p. 182) que, quando o bebê projeta na mãe, esta, em um estado de rêverie, emprega sua “função alfa” para apresentar uma contraparte a uma variável matemática que opera como uma alternativa para ambos os processos primário e secundário de Freud (1911), coletivamente, para absorver, desintoxicar e refinar as projeções em preparação para uma resposta significativa e adequada ao bebê: ou seja, fornecendo o nome do sentimento ou o gesto que sirva como interpretação do estado interno do bebê, que corresponde à emoção. A função analítica toma o curso do continente tanto para o analista quando para o paciente. Penso que o suicídio é a expressão da área psicótica, onde o anseio pela vida afetiva se esvaziou. Através do surto psicótico, a mente apresenta sua área morta com relação ao mundo externo e, ao mesmo tempo, uma desenfreada tentativa de cuidado. Observando os delírios ou os “sonhos” trazidos por esses pacientes, pode-se observar a apresentação do trauma primitivo ou dos arranjos desenvolvidos como forma de sobrevivência. É 102
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nesse espaço que a análise encontra possibilidade de acontecer oferecendo àquela mente o que ela nunca encontrou, desde que não repitamos o movimento de enviar aquela loucura para o nosso manicômio pessoal. Penso que, para o momento psicótico, o suicídio psíquico já aconteceu e ameaça ser “revivido” a cada momento em que a tensão e a subsequente insuficiência são retomadas diante da vida. Nesse sentido, o trabalho analítico segue a angústia criada e sustentada por uma realidade que remete ao desamparo e ao desencadeamento da necessidade de ruptura. De toda forma, acredito no processo analítico como algo que deva manter de forma flexível e sensível o espectro de vivências e de escutas.
... A chama galopante vai cobrindo um tinido de freios mastigados e de patas ferradas, e em sete freguesias passa e repassa a grande mula aflita. Urro De fera fúria de burrinha grito de remorso choro de criança? Por que Deus se diverte castigando? Por que degrada o amor sem destruí-lo? e a cabeça da mula sem cabeça ainda é rosto de amor, onde em sigilo a ternura defesa vai flutuando? (Carlos Drummond de Andrade, 2012, p. 31.)
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A psychotic break Abstract: The author proposes to think the psychotic break, considering the importance of continuing focus in psychoanalytic practice. Shows the close relationship between psychotic experience and archaic psychic functioning presenting considerations about a possible language in the analytic relationship under these circumstances. Keywords: break; psychosis; regression; language.
Una ruptura psicótica Resumen: El autor propone pensar la ruptura psicótica, teniendo en cuenta la importancia del enfoque continuo en la práctica psicoanalítica. Señala la estrecha relación entre la experiencia psicótica y el funcionamento psíquico arcaico haciendo consideraciones sobre una posible lenguaje en la relación analítica ante estas circunstancias. Palabras clave: ruptura; psicosis; regresión; lenguaje.
Referências Andrade, C. D. (2012). A palavra e a terra (pp 14-31), 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. Bion, W. R. (2000). Cogitações (Trad. E. H. Sandler e P. C. Sandler). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1992). Bion, W. R. (1962). Learning from Experience. London: Heinemann (Reprinted, London: Karnak, 1984). Grotstein, J. S. (2010). Bion, o matemático, o místico, o psicanalista. Um facho de intensa escuridão. O legado de Wilfred Bion à Psicanálise (Trad. M. C. Monteiro). Porto Alegre: Artmed. Freud, S. (1996). Formulação sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, p. 233-246). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911). Klein, M. (1986). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. Progressos da Psicanálise (Trad. A. Cabral, 3ª ed.). Rio de Janeiro: Guanabara. (Trabalho originalmente publicado em 1946). Winnicott, W. R. (1956). Desenvolvimento emocional primitivo. Textos Selecionados: da Pediatria à Psicanálise. (Trad. J. Russo, 1993). Rio de Janeiro: F. Alves. (Trabalho originalmente publicado em 1946). Winnicott, W.R. (1993). Desenvolvimento emocional primitivo. In Winnicott, W. R. Textos Selecionados: da Pediatria à Psicanálise. (Trad. J. Russo). Rio de Janeiro: F. Alves. (Trabalho originalmente publicado em 1946).
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Uma solução engenhosa ao horror da castração – um apanhado sobre o fetichismo na obra freudiana Ronaldo Manzi Filho1
Resumo: Embora haja uma referência esparsa sobre o fetichismo na obra de Freud, seu papel, entretanto, é decisivo. De um modo geral, Freud irá destacar como o fetichista triunfa diante do horror à castração, pois ele nega a castração do pênis materno e, ao mesmo tempo, consegue eleger um objeto substituto que satisfaça sua fantasia. Uma negação, aliás, peculiar na obra de Freud, que ele denomina de Verleugnung. Mas, talvez, o mais interessante só apareça nos seus últimos textos em que ele mostra de modo claro uma operação de clivagem do Eu – uma clivagem no interior de uma das instâncias psíquicas que poderia nos levar a pensarmos em outra forma de subjetividade não mais pautada no recalque. Poderíamos então perguntar: o que seria um Eu não mais submetido ao princípio de sínteses, mas clivado? Palavras-chave: fetichismo; castração; objeto substituto; negação; clivagem do Eu.
Apesar de o termo fetichismo ter aparecido na obra freudiana de modo discreto e só receber um estatuto mais acabado no final da década de 20, esse conceito não deixa de ser decisivo em sua obra. Primeiro, porque revela um modo de negação muito específico que ele denomina de Verleugnung (desmentido). Segundo, porque coloca em destaque o papel do complexo de castração. Por fim, mostra de modo claro uma operação de clivagem do Eu. Entretanto, é só no texto de 1927, Fetischismus (Fetichismo), e, depois, em 1939, com Die Ichspaltung im Abwehrvorgang (A divisão do Eu no processo de defesa), que essas operações ficam claras. Na verdade, há uma referência esparsa a esse conceito desde o texto Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie (Três ensaios sobre a Sexualidade), em que ele afirmava que “nenhuma outra variação da pulsão sexual nas raias do patológico merece 1
Ronaldo Manzi Filho: possui graduação em filosofia pela Universidade Católica de Goiás e formação em Psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos. Possui mestrado e doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo, e doutorado em filosofia pela Radboud Universiteit Nijmegen (cotutela). Co-organizou os livros A filosofia após Freud (Humanitas) e Paisagens da Fenomenologia francesa (UFPR). Participa do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (USP). É membro da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.
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Uma solução engenhosa ao horror da castração – um apanhado sobre o fetichismo na obra freudiana
tanto o nosso interesse quanto essa, dada a singularidade dos fenômenos a que dá lugar” (Freud, 1905/1996, p.145). Isso porque o fetichismo aparece como uma “substituição imprópria do objeto sexual”, ou seja, quando o objeto sexual visado é impróprio para “servir ao alvo sexual normal” (Freud, 1905/1996, p.145). Assim, o sujeito visa partes do corpo ou mesmo objetos inanimados que substituem o objeto sexual normal, havendo, desse modo, uma supervalorização psicológica desse objeto ou dessa parte do corpo. Com isso, o fetichismo serve como um exemplo maior do que Freud entende por plasticidade da libido. Quer dizer, com o exemplo do desvio do alvo sexual normal, o fetichista demonstra que, para ele, não há uma relação necessária entre o destino da libido e os imperativos de reprodução, o que fica claro também ao se destacar como a sexualidade infantil é polimorfa e perversa. O caso é que o fetichista mantém esta fixação perversa mesmo na vida adulta. Entretanto, no texto de 1905, Freud não explica como esse desvio da sexualidade é possível, somente indicando como, na maioria das vezes, a escolha fetichista recai nas impressões infantis devido à “(...) preponderância que cabe na vida anímica aos traços mnêmicos, em comparação as impressões recentes” (Freud, 1905/1996, p.228). O que ele destaca é como a fixação no objeto fetiche é patológica e não o ato do sujeito investir sua pulsão em um objeto que não seja o alvo normal, como no caso do enamoramento. Esse mesmo tema de fixação relacionada ao fetichismo encontramos no texto Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci (Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância), de 1910. Na verdade, o fetichismo aparece aqui relacionado ao complexo de castração. Trata-se de uma passagem em que Freud busca explicar como “(...) a imaginação humana não vacila em emprestar a uma imagem que pretende essencialmente representar a mãe um atributo da potência masculina que representa exatamente o oposto de qualquer ideia maternal” (Freud, 1910/1996, p.101). A seu ver, a teoria psicanalítica da sexualidade infantil é capaz de responder a essa estranha manifestação. Freud retoma nessa passagem as teorias sexuais infantis, especialmente o interesse do menino pela sua própria genital. Digo “especialmente”, não por acaso – Freud parece mostrar como o fetichismo está ligado à constituição da identidade masculina. Ou seja, é a partir da hipótese da identidade masculina que se terá a possibilidade de uma negação fetichista. Lembremos para isso que, devido à supervalorização de sua genital, a criança crê que todas as pessoas, inclusive sua mãe, possuem um órgão tão importante. Isso porque, no desenvolvimento sexual, a sexualidade é unificada ao primado da zona genital tendo, no pênis, o objeto privilegiado de investimento, sendo improvável que a criança possa pensar que qualquer outra pessoa possa ser desprovida de tal órgão. Sua crença é tão profunda, que ela nega a percepção da ausência de um órgão semelhante
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nas meninas, crendo que algo irá crescer ali mais tarde2. Modo de dizer, aliás, que o conflito entre a percepção e seu desejo se vale também de julgamentos e hipóteses a favor de sua crença, o que significa afirmar que é possível sustentar uma crença mesmo diante de uma percepção indesejada (o horror à castração). Depois de ter frustrado sua expectativa de não ver um pênis crescer nas meninas, Freud sugere que a criança realiza outra hipótese: o pênis nas meninas foi cortado. Nessa mesma época, a criança provavelmente já terá ouvido ameaças ao seu próprio pênis, devido ao seu interesse demasiado por ele – por isso ela é capaz de realizar tal hipótese que, aliás, é uma fantasia da criança. Trata-se aqui da ameaça de castração. Entretanto, antes desse complexo, a criança já deve ter passado por uma experiência escópica intensa pelos órgãos genitais. Com a descoberta da ausência do pênis nas meninas/mulheres/mãe, o desejo escópico se transforma em seu oposto e mesmo em uma repulsa ao fato de alguém não possuir um órgão tão importante. Assim, a representação de um corpo sem pênis é o motor de angústia e mesmo de agressividade em relação ao feminino – uma recusa da feminilidade (no menino). É aqui que Freud introduz a possibilidade de fixação – no modo de a criança lidar com a ameaça de castração: a fixação no objeto antes tão intensamente desejado, o pênis da mulher, deixa traços indeléveis na vida mental da criança, quando essa fase de sua investigação sexual infantil foi particularmente intensa. Um culto fetichista cujo objeto é o pé ou calçado feminino parece tomar o pé como mero símbolo substitutivo do pênis da mulher, outrora tão reverenciado e depois perdido. Sem o saber, os ‘corpeurs de nattes’ [pervertidos que sentem prazer em cortar o cabelo das mulheres] desempenham o papel de pessoas que executam um ato de castração sobre o órgão genital feminino. (Freud, 1910/1996, p.103)
Como vemos, o fetichismo está relacionado aqui, como nas Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie a uma fixação e a um deslocamento. Entretanto, essa fixação e esse deslocamento são, agora, relacionados ao complexo de castração – à negação da castração do órgão genital feminino. Ou seja, o fetichista simplesmente elegeria um objeto substituto do pênis feminino, como, por exemplo, o culto ao pé que seria nada mais do que a substituição do pênis feminino existente em fantasia. Desse modo, Freud articula 2
A menina também, segundo Freud, supõe a existência de um pênis – o clitóris seria um “pequeno pênis” que mais tarde cresceria. Isso destaca um caráter masculino na sexualidade feminina que será superado no momento de sua passagem pelo complexo de Édipo. Freud dirá em Die infantile Genitalorganisation (eine Einschaltungin die Sexualtheorie) (A organização genital infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade)): “a característica principal dessa ‘organização genital infantil’ é sua diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (Freud, 1923/1996, p.158).
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a gênese do fetichismo com a constituição das identidades sexuais3. Percebamos: a menina não poderia realizar uma tal negação porque ela não é ameaçada de ser castrada – ela deve assumir o fato de não possuir um pênis4. O menino, por outro lado, pode negar a castração feminina, não abandonando, assim, a fantasia do “monismo fálico”. O fetichista pode, então, conservar a fantasia de que “todos possuem um pênis” ou, pelo menos, não levar a sério a castração. Essa passagem de Vladimir Safatle é clara nesse sentido: pelas vias da substituição, o sujeito conservava uma construção fantasmática que, mesmo assumindo o primado fálico, anulavas as duas consequências principais dessa assunção: ele não submetia a sexualidade aos imperativos de reprodução e, principalmente, ele agia como se a diferença sexual não devesse ser levada a sério, como se fosse questão de sustentar uma certa in-diferença sexual originalmente suposta. (Safatle, 2010, p. 71-72)
O sujeito pode, assim, agir como se sua construção fosse válida, mesmo sabendo a diferença entre os sexos e a ausência do pênis na mulher. Ele simplesmente pode agir como se isso não fosse um fato, construindo para si uma fantasia: substituindo o pênis feminino por um objeto qualquer. Por isso, talvez quem melhor compreendeu esse mecanismo foi Octave Mannoni ao indicá-lo como uma negação que se daria assim: je sais bien, mais quand même... (“eu sei, mas mesmo assim...”) (Mannoni, 1985, p. 9). Podemos dizer então na coexistência de dois julgamentos sem que eles se anulem – posso saber e não saber de algo ao mesmo tempo.
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Vladimir Safatle, no seu livro Fetichismo – Colonizar o Outro, destaca como essa teoria infantil que parte de uma espécie de “monismo fálico” leva a crermos como o desconhecimento da diferença sexual é também um desconhecimento do potencial fundamental de alteridade: “esse é um ponto muito importante. É possível que a diferença sexual seja a primeira experiência de alteridade profunda com a qual a criança se confronta no interior da vida social. Nesse sentido, ela é o fato fundamental no interior do que poderíamos chamar de ‘maturação’. Até porque reconhecê-la implica ter à sua disposição um modelo de reconhecimento da diferença que, certamente, influenciará processos sociais mais gerais” (Safatle, 2010, p. 59-60).
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Podemos confirmar isso nessa passagem de 1925 do texto Einige Psychische Folgen des Anatomischen Geschlechts-Unterschieds (Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos): “enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do complexo de castração. Essa contradição se esclarece se refletirmos que o complexo de castração sempre opera no sentido implícito em seu conteúdo: ele inibe a masculinidade e incentiva a feminilidade. A diferença entre o desenvolvimento sexual dos indivíduos dos sexos masculino e feminino no estádio que estivemos considerando é uma consequência inteligível da distinção anatômica entre seus órgãos genitais e da situação psíquica aí envolvida; corresponde à diferença entre uma castração que foi executada e outra que simplesmente foi ameaçada” (Freud, 1925/1996, p.285).
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De fato, é assim que Freud descreve a Verleugnung (desmentido)5 no famoso texto de 1927, Fetischismus (Fetichismo). Ou seja, trata-se de um mecanismo diferente da Verdrängung (recalque) que ele descreve como uma negação no sentido de recalque. No texto Die Verneinung (A Negativa), Freud afirma: negar algo em um julgamento é, no fundo, dizer: ‘Isto é algo que eu preferia reprimir’. Um juízo negativo é o substituto intelectual do recalque; ou seu ‘não’ é a marca distintiva do recalque, um certificado de origem – tal como, digamos, ‘Made in Germany’. (Freud, 1925b/1996, p.266, tradução ligeiramente modificada)
Ou seja, trata-se de uma negação que, no fundo, diz assim: “não quero saber sobre isso”, diferentemente da negação fetichista que pode ser resumida como “sei, mas mesmo assim...”. Freud aponta como essa negação é uma ação enérgica, pois, diante de uma percepção (ausência do pênis), o sujeito ainda assim mantém sua crença: “sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada como seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor” (Freud, 1927/1996, p.157). Noutros termos, o fetichista triunfa diante do horror à castração – ele nega a castração do pênis materno e, ao mesmo tempo, consegue eleger um objeto substituto que satisfaça sua fantasia. Triunfa porque não perde o fundamento de suas crenças – ele age como se a percepção da ausência de pênis não abalasse seu sistema de crenças. Diferentemente do que ocorre à grande maioria, que consegue superar o horror à castração, o fetichista triunfa sobre ele sem, com isso, escolher como objeto sexual o homossexualismo. No texto de 1927, Freud ainda destaca como o sujeito fetichista deve emprestar/ projetar no objeto fetiche aquilo que ele busca encontrar. Ou seja, ele cita o caso de um jovem que tem fetiche por certo brilho do nariz que ele “(...) dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível a outros” (Freud, 1927/1996, p.155). Seja assim, o sujeito, à sua vontade, pode ou não projetar ou dotar no objeto, no caso o nariz, esse brilho que torna o objeto desejável. Essa é uma observação importante como salienta Safatle: 5
Escolhi a tradução de Verleugnung por desmentido seguindo as conotações que esse termo parece enfatizar segundo o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Hanns. Baseio-me, principalmente, nessa passagem: “há no termo verleugnen a ideia de ‘negar a presença-existência’. Trata-se de ‘dizer que não está lá’. Frequentemente, é como se o sujeito soubesse que aquilo que é rejeitado existe, mas continua a negar sua existência ou presença. Nestes casos, o que o termo alemão evoca, em primeiro plano, não é uma postura negativa de discordância com relação ao conteúdo do objeto, mas a contestação da veracidade de sua existência. O que é ‘desmentido’ é a própria existência do objeto” (Hanns, 1996, p. 304).
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aqui, tocamos um ponto essencial a respeito do fetichismo. A operação fetichista concerne não apenas ao gozo dependente do investimento libidinal em uma parte do corpo (no caso, o nariz) reduzida à condição de suporte de traço atributivo (o brilho). Ela concerne também ao modo pelo qual o objeto é elevado à condição de objeto do desejo. (Safatle, 2010, p. 77)
Isso é fundamental, uma vez que, diferentemente do recalque, em que o sujeito “não quer saber sobre isso”, o fetichista sabe perfeitamente qual é o objeto do seu desejo. E mais, ele é capaz de emprestar a esse objeto atributos que o elevam a essa condição de objeto de desejo. Por isso, Safatle destaca que, com o fetichismo, estamos diante de uma “(...) posição subjetiva não mais caracterizada pelo desconhecimento” (Safatle, 2010, p. 77). O sujeito é perfeitamente capaz de reconhecer que o brilho que ele encontra no nariz de uma mulher é uma projeção sua, sem, com isso, ser taxado de “louco”: ele sabe, mas, mesmo assim, é capaz de atribuir a esse objeto como objeto do seu desejo. Não à toa, “para o fetichista, uma mulher só é desejável quando ela se deixa submeter seu modo de gozo ao primado fálico, aceitando transformar-se em puro suporte de um traço atributivo para o qual convergiu a significação do pênis” (Safatle, 2010, p. 92). Na verdade, Freud já havia destacado isso em um texto apresentado em uma reunião da Sociedade de Psicanálise de Viena, em 1909, como, no fetichismo há “um tipo de recalcamento instituído através da clivagem do complexo [representativo]. Uma parte é genuinamente recalcada, enquanto a outra é idealizada, o que no nosso caso significa que ela é elevada a fetiche” (Freud apud Safatle, 2010, p. 53). Isso quer dizer que, diferentemente do procedimento neurótico, em que a representação é recalcada e o afeto reprimido, no fetichismo, é o afeto que é recalcado (Freud. 1927/1996, p. 156). Podemos dizer que há um recalque parcial do afeto, enquanto o complexo representativo é idealizado. Sendo assim, o que é idealizado é um traço genérico que não se refere a nenhum objeto específico – o sujeito empresta ou projeta no objeto um atributo que o torna desejável, tal como o brilho no nariz da mulher, que atualiza os traços fantasmáticos que o sujeito deslocou na negação da castração. Entretanto, como dissemos, o fetichista se utiliza de um mecanismo para realizar essa negação da castração feminina. Trata-se de uma negação denominada desmentida, em que o sujeito sabe que a mulher não tem pênis, mas age como se ela tivesse, como se ele não soubesse que ela não o tem. Por isso, Freud dirá de uma atitude dividida do fetichista: “tanto a rejeição quanto a afirmação da castração encontram caminho na construção do próprio fetiche” (Freud. 1927/1996, p. 159). O fetichismo rejeita a castração porque substitui o pênis por outro objeto e, ao mesmo tempo, afirma o que nega. 110
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Podemos compreender melhor esse mecanismo se nos voltarmos a um dos últimos escritos de Freud, datado de 1938, Die Ichspaltung im Abwehrvorgang (A divisão do Eu no processo de defesa). Freud destaca aí como a criança consegue conciliar um conflito aparentemente insuperável. Trata-se de uma situação em que ela está diante de um perigo intolerável – a castração – e que, por isso mesmo, poderia, supostamente, agir somente de dois modos: 1) ou reconhece o perigo, renunciando seu desejo; 2) ou desmente-o, convencendo-se de que não há nada a temer. Noutras palavras: “existe assim um conflito entre a exigência por parte da pulsão e a proibição por parte da realidade”(Freud. 1940/1996, p. 293, tradução ligeiramente modificada). Entretanto, mesmo que assumamos que, diante de algo percebido como perigoso, não podemos simplesmente ignorar esse fato – ou o reconhecemos ou o desmentimos –, Freud observa como a criança busca outra saída: “a criança não toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, o que equivale à mesma coisa”(Freud. 1940/1996, p. 293). O que isso significa? Freud observa como a criança consegue desmentir a realidade e, ao mesmo tempo, assumir o perigo, sem se contradizer, o que, a seu ver, é uma solução muito engenhosa da dificuldade (Freud. 1940/1996, p. 293): recusa e reconhece o que é a angústia. Uma solução engenhosa porque satisfaz à pulsão ainda que respeitando a realidade. Ou seja, a criança, diante do perigo da castração cria um substituto (um deslocamento de valor) do pênis feminino e poupa seu próprio pênis de qualquer ameaça – mantendo a crença na existência do pênis feminino, ela não precisa temer por seu próprio pênis. Mas Freud não deixa de destacar que, com esse movimento, “tudo tem de ser pago de uma maneira ou outra”. É nesse ponto que surge uma divisão (splitting) do Eu. Ora, sabemos como Freud pensa a função do Eu, fundamentalmente, como uma função de síntese. Contudo, esse caso evidencia um preço de divisão do Eu, mostrando como o Eu, em certas condições, também está sujeito a desvios, colocando em dúvida o princípio imediato de síntese do Eu. Diferentemente de uma clivagem no aparelho psíquico, Freud observa uma clivagem no interior de uma das instâncias psíquicas. Com isso, Freud parece tentar ver as consequências do fetichismo na própria teoria metapsicológica do aparelho psíquico, tentando “(...) elevar a operação de desmentido a uma forma peculiar de organização psíquica necessariamente pressuposta pelo processo de formação do Eu” (Safatle, 2010, p. 93). Freud já havia deixado claro, por exemplo, em Zur Einführung des Narzissms (À guisa de introdução ao narcisismo), como o Eu não é uma unidade dada6, mas que, em algum momento, ele deve ser constituído e que se desenvolve se distanciando 6
“É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente no indivíduo desde o início” (Freud, 2004, p. 99).
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do narcisismo primário em direção a um Ideal-de-Eu (Freud 1914/2004, p.117)7. A constituição do Eu seria, assim, uma tarefa de constituição de uma unidade de sínteses e de auto identidade. Uma pressuposição básica para que possamos identificar no sujeito uma certa coerência na sua história – que ele possa responder por si como sendo o mesmo, tanto na infância quanto na vida adulta. Entretanto, com o desmentido, Freud fala de uma clivagem do Eu. O que isso significa? Sabemos, por Ernest Jones, que esse manuscrito de Freud foi escrito no Natal de 1937 e publicado, inacabado, postumamente, em 1939. Sendo assim, podemos entrever, das considerações desse texto, que seriam apenas especulações, mas que não deixam de ser pertinentes. Ora, Freud classifica esse modo de lidar com a realidade como algo “que quase merece ser descrita como astuta” (Freud, 1940[1938]/1996, p. 295). Com o desmentido, a criança não recalca a castração e não renuncia ao desejo da pulsão sem, com isso, sofrer as consequências da proibição, por exemplo, de ela se masturbar. O que acontece, por outro lado, é uma clivagem do Eu. Mas qual a consequência dessa clivagem? É difícil tentarmos responder isso. Freud cita um exemplo desse mecanismo nesse texto, mas que pouco nos ilumina sobre essa clivagem. Trata-se de uma criança que cria um substituto do pênis materno realizando, assim, um desmentido da realidade. Agindo assim, não precisava reconhecer a ausência de pênis nas mulheres e não precisava se preocupar com as ameaças de castração que sua babá lhe tinha imputado em nome do pai. Continuou assim a se masturbar sem temer por seu próprio pênis. “Ele não fez mais do que um deslocamento de valor – transferiu a importância do pênis para outra parte do corpo, procedimento em que foi auxiliado pelo mecanismo de regresso”, afirma Freud (1940[1938]/1996, p. 295). Contudo, o menino desenvolve um sintoma em que reconhecia o perigo da castração ao ser ameaçado pelo pai. Um sintoma que regressava à fase oral de seu desenvolvimento sexual e que era vivido como um “medo de ser comido pelo pai” (Freud, 1940[1938]/1996, p. 295). Freud ainda cita que, posteriormente, o menino desenvolveu outro sintoma: suscetibilidade ansiosa de ser tocado no pé, o que mostraria como “(...) em todo vaivém entre desmentido e reconhecimento fosse todavia a castração que encontrasse a expressão mais clara...” (Freud, 1940[1938]/1996, p. 295). Ora, não podemos deixar de notar como a clivagem que esta criança realiza é astuta, porque mantém a satisfação da sua pulsão (masturbar), mas que, ao mesmo tempo, desenvolve sintomas regressivos. Entretanto, aqui, Freud não diz mais das consequências dessa clivagem. O que podemos concluir desse percurso sobre o fetichismo na obra freudiana pode ser resumido assim: este termo aparece como um comportamento perverso ligado à história do desenvolvimento sexual infantil. Logo depois, ele é empregado como 7
Vale aqui nos voltarmos a Lacan e seu famoso “estádio do espelho”. Para isso, ver Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je — telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique (Lacan, 1966, pp. 93-100).
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uma operação de desmentido da castração. E, por fim, enquanto uma possibilidade de clivagem do Eu com o propósito astuto de reconhecer a castração e a desmenti-lo ao mesmo tempo. Esse último movimento nos leva a questionar se o desmentido não seria uma possibilidade mais engenhosa da criança de lidar com a castração do que a que a maioria das crianças realiza diante desse horror: aceitá-la em detrimento ao seu gozo. Isso poderia nos levar a pensarmos numa outra forma de subjetividade não mais pautada no recalque, mas que, de algum modo, sabe da castração, mas que mesmo assim diz sim às suas pulsões... O que, talvez, não podemos avaliar é o preço dessa clivagem do Eu. O que seria um Eu não mais submetido ao princípio de sínteses, mas clivado? O que a clivagem de uma instância que tem, normalmente, a função de síntese, poderia nos levar a pensar da própria metapsicologia freudiana? Questões como estas não me parecem sem importância, mas poderiam nos dar uma medida do preço que nós mesmos pagamos ao nos submetermos aos imperativos naturalizados como normal. Mesmo porque o fetichismo desafia a própria clínica freudiana, que tem dois dispositivos maiores: a interpretação e o manejo da transferência – ambos calcados na revelação do recalque. Sabemos como, na neurose, há um conflito psíquico entre desejos opostos originados de instâncias psíquicas diferentes8. Ora, “que as pessoas adoecem de neurose quando impedidas da possibilidade de satisfazer sua libido – que adoecem devido à ‘frustração’, conforme costumo dizer – e que seus sintomas são justamente um substituto para sua satisfação frustrada” (Freud, 1917/1996, p. 348) é algo que Freud afirma em vários lugares. No caso do fetichismo, como o próprio Freud defende, esse conflito parece inexistir: não é preciso esperar que essas pessoas venham à análise por causa de seu fetiche, pois, embora, sem dúvida, ele seja reconhecido por seus adeptos como uma anormalidade, raramente é sentido por eles como o sintoma de uma doença que se faça acompanhar por sofrimento. Via de regra, mostram-se inteiramente satisfeitos com ele, ou até mesmo louvam o modo pelo qual lhes facilita a vida erótica. Via de regra, portanto, o fetiche aparece na análise como uma descoberta subsidiária. (Freud, 1927/1996, p. 155)9 8
“Uma parte da personalidade defende a causa de determinado desejo, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não existe neurose” (Freud, 1917/1996, p. 352).
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A clivagem do eu parece ser uma solução, por exemplo, nessa passagem: “seria desejável saber em que circunstâncias e por que meios o eu pode ter êxito em emergir de tais conflitos, que certamente estão sempre presentes, sem cair enfermo. Trata-se de um novo campo de pesquisa, onde sem dúvida os mais variados fatores surgirão para exame. Dois deles, porém, podem ser acentuados em seguida. Em primeiro lugar, o desfecho de todas as situações desse tipo indubitavelmente dependerá de considerações econômicas – das magnitudes relativas das tendências que estão lutando entre si. Em segundo lugar, será possível ao eu evitar uma ruptura em qualquer direção deformando-se, submetendo-se a usurpações em sua própria unidade e até mesmo, talvez, efetuando uma clivagem ou divisão de si próprio. Desse modo as incoerências, excentricidades e loucuras dos homens apareceriam sob uma luz semelhante às suas perversões sexuais, através de cuja aceitação poupam a si próprios recalques” (Freud, 1925c/1996, p. 352). Ttradução ligeiramente modificada).
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Por outro lado, sabemos como Freud defende como a renúncia à satisfação imediata da pulsão, em prol do princípio da realidade, torna o Eu racional (Freud, 1917/1996, p. 360). Entretanto, o modo de negação fetichista, tal como apresentada em 1938, nos leva a crer que é possível satisfazer a pulsão sem, com isso, abandonar o princípio da realidade. O sujeito é capaz de se clivar... Não estaríamos desse modo diante de uma nova possibilidade de pensarmos o sujeito, a partir do desmentido e da clivagem do eu? E mesmo: não estaríamos talvez diante de outra possibilidade de gozo? O que dificulta ainda mais estas questões é percebermos que a divisão do Eu não parece ser um caso isolado do fetichismo e mesmo que não ocorre em toda substituição simbólica do pênis feminino por outro objeto (Freud, 1940/1996, p. 216). No capítulo 8 do Abriss der Psychoanalyse (Esboço de psicanálise), Freud também dirá de uma clivagem do Eu se referindo à psicose. Por se tratar de um texto escrito no mesmo ano (e poucos meses depois) que aquele sobre a clivagem do Eu no fetichismo (que vimos acima), podemos ter ideia de como essa questão parecia importante aos seus olhos: no caso de uma divisão psíquica] duas atitudes psíquicas formaram-se, em vez de uma só – uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra que, sob a influência dos instintos, desliga o Eu da realidade. As duas coexistem lado a lado. O resultado depende de sua força relativa. Se a segunda é ou se torna mais forte, a pré-condição necessária para uma psicose acha-se presente. Se a relação é invertida, há então uma cura aparente do distúrbio delirante. (Freud, 1940/1996, p. 215)
Não bastasse esse dado novo, Freud acrescenta a possibilidade de clivagem também na neurose: “o ponto de vista que postula que em todas as psicoses há uma divisão do Eu não poderia chamar tanta atenção se não se revelasse passível de aplicação a outros estados mais semelhantes às neuroses e, finalmente, às próprias neuroses” (Freud, 1940/1996, p. 215). Podemos, assim, pressupor que essa clivagem do Eu seria um mecanismo mais geral do que o apresentado no fetichismo: “deparamo-nos com fetichistas que desenvolveram o mesmo temor da castração dos não fetichistas e reagem da mesma maneira a ela. O seu comportamento, portanto, expressa simultaneamente duas premissas contrárias” (Freud, 1940/1996, p. 216). Isso talvez coloque em xeque as questões que colocamos acima, uma vez que o desmentido seria um modo de negação que não excluiria o recalque de um neurótico, por exemplo. Isso nos levaria a crer que a divisão do Eu seria então um modo de lidar com a castração de modo amplo, que se daria tanto na neurose, quanto na psicose e na perversão. O texto sobre a clivagem do Eu no fetichismo (Die Ichspaltung im Abwehrvorgang), nesse caso, seria apenas um modo estratégico de expor essa possibilidade do Eu em se 114
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fender, como Freud parece afirmar quando diz que “não se deve pensar que o fetichismo apresente um caso excepcional com referência à divisão do Eu; trata-se simplesmente de um tema particularmente favorável para estudar a questão” (Freud, 1940/1996, p. 217). Tudo nos leva a pensar que o fetichismo somente mostraria de modo claro as clivagens presentes, mas invisíveis, em todo ser humano, tal como em um cristal, em que suas linhas de clivagem só aparecem ao jogá-lo ao chão10... Entretanto, não podemos deixar de notar como a clivagem na perversão é muito diferente desta que Freud se refere na neurose. Freud reconhece que esta característica na vida psíquica do neurótico é um conflito entre duas forças opostas que coexistem mutuamente e independentes uma da outra. Mas, “no caso das neuroses, entretanto, uma dessas atitudes pertence ao Eu e a contrária, que é recalcada, pertence ao isso” (Freud, 1940/1996, p. 217, tradução ligeiramente modificada). Com essa observação, podemos novamente recolocar nossas questões, já que, aqui, Freud deixa explícito que se trata de uma clivagem entre instâncias e não no interior de uma específica (o Eu). Uma diferença fundamental, já que o conflito neurótico leva a um impasse e, por isso, ao sofrimento, diferente do conflito perverso. Fica-nos, então, a questão: o que a clivagem de uma instância que tem, normalmente, a função de síntese (o Eu), poderia nos levar a pensar da própria metapsicologia freudiana?
10 Refiro-me aqui a esta bela passagem de Freud: “se atirarmos ao chão um cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam predeterminados pela estrutura do cristal” (Freud, 1933/1996, p. 216).
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An ingenious solution to the horror of castration - an overview of fetishism in Freud Abstract: Although references to fetichism in Freud’s work are sparse, their role, however, is decisive. In a general sense, Freud underlines how a fetishist triumphs when confronted with the horror of castration by denying the castration of the mother’s penis and, at the same time, electing a substitute object capable of satisfying his fantasy – a form of denial that is peculiar to Freud’s work, and which he names Verleugnung. Most interestingly, Freud’s final textual production present a clear description of an operation of cleavage to the I – a cleavage within a psychic instance which could lead us to ponder a different form of subjectivity, one which does not have repression as its foundation. If so, it may be asked: what would an I be that no longer subjected to the synthesis principle, but cleaved? Keywords: fetishism; castration; substitute object; denial; cleavage of the I.
Una solución ingeniosa para el horror de la castración – una visión general del fetichismo en Freud Resumen: Aunque escasas, referencias al fetichismo en la obra de Freud tienen importancia decisiva. En términos generales, Freud destaca el modo como el fetichista es capaz de triunfar sobre el horror de la castración ya que él niega la castración del pene materno y, al mismo tiempo, logra eligir un objeto sustituto que pueda satisfacer su fantasía – negación peculiar, además, a la obra de Freud, que el mismo denomina Verleugnung. Tal vez el aspecto más interesante sea, sin embargo, el que aparece en los textos finales de Freud, donde se muestra claramente una operación de escisión del Yo – una escisión de una de las instancias psíquicas que podría llevarnos a contemplar otra forma de subjetividad no más basada en la represión. Podríamos preguntarnos de echo: ¿qué sería un Yo no más sometido al principio de la síntesis, pero escindido? Palabras clave: fetichismo; castración; objeto sustituto; negación; escisión del Yo.
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Uma solução engenhosa ao horror da castração – um apanhado sobre o fetichismo na obra freudiana
Ronaldo Manzi Filho Rua Heitor Penteado, N.1797 Apto. 13, Sumarezinho 05.437-002 São Paulo/SP (11) 3862-4096 manzifilho@hotmail.com © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan1 Elisabeth Cimenti2 Resumo: O artigo aborda o conceito de transferência do ponto de vista do Seminário A Transferência de Lacan, estudado à luz do texto do Banquete de Platão. Enfoca de forma sintética os diversos discursos dos participantes do Banquete, analisando-os e transpondo-os à estrutura de uma sessão analítica. O Banquete fala sobre o amor, que, segundo Lacan, seria o motor do tratamento analítico. Palavras-chave: transferência; sessão analítica; discurso; Banquete de Platão.
A cela analítica, mesmo macia, não é nada menos do que um leito de amor... ... no quadro mais protegido de todos, o do consultório analítico, a posição do amor se torna ainda mais paradoxal. ... entendo partir do extremo, do que é suposto pelo fato de que alguém se isole com o outro para lhe ensinar o quê? ...aquilo que lhe falta. Situação ainda mais temível se imaginarmos justamente, que, devido à natureza da transferência, o que lhe falta ele vai aprender amando. (Jacques Lacan)
Degustar Platão no Banquete, repensando o conceito de transferência em Lacan, é meu objetivo neste texto. Experiência muito bonita, de reflexão e crescimento, ocasião para entender como Lacan aborda essa questão: fica claro que o faz a partir do amor, conforme suas próprias palavras nas epígrafes que abrem este trabalho. Ele se debruça sobre o Banquete e também o degusta. Porque o Banquete fala do amor e Lacan parte daí para entender o amor da transferência. Lacan se pergunta qual a relação que realmente se coloca para um analista. Qual a nossa relação com o ser de nosso paciente? Considera que, afinal, é disso que se trata a análise. 1
Artigo originalmente no livro da própria autora: Reviravoltas do Eu - Narrativas em Psicanálise. Editora Movimento. Porto Alegre, 2012.
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Psicóloga, psicanalista, analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), fundadora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP) e mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
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O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan
Em meu ensaio, vou me abster de falar especificamente sobre cada discurso, a não ser de passagem, supondo serem tais discursos de conhecimento do leitor, e abordarei tão somente os recortes que interessam ao tema em questão. O que acontece no Banquete? O banquete é uma cerimônia com regras, uma espécie de rito, de concurso íntimo entre pessoas da elite grega. Lacan propõe tomar o banquete como um relato de sessões psicanalíticas. Esse encontro se dá entre seis pessoas reunidas para falar a respeito do amor. Inicia com Fedro, que havia proposto a cada um deles tecer um elogio ao amor. Começa ele mesmo com o primeiro discurso. Relaciona o amor a algo divino. E reconhece em alguns poucos a verdadeira capacidade de amar; para ele, Aquiles mostra essa mais nobre forma de amor. Aquiles de amado se transforma em amante, sacrificando-se por Pátroclo. Os discursos seguem-se com Pausânias, que coloca duas formas de amar, mas de modo derrisório, e depois com Erixímaco, o médico, que apresenta uma visão cosmológica do homem e, com isso, oportuniza uma abertura escancarada à ideia de amor para Platão. Nessa ordenação, já se delineiam alguns detalhes: Erixímaco substitui Aristófanes, que seria o terceiro a falar. Esses detalhes podem parecer sem importância, porém Lacan os explora a fundo e, aí, começa o apaixonante estudo realizado por ele. Antes de abordar a questão da transferência e se voltar para o Banquete, relata que foi falar com Alexandre Kojève, pois havia estudado a filosofia de Friedrich Hegel com este durante alguns anos. Perguntou que sugestão Kojève daria para decodificar melhor o Banquete. Seu professor hesitou, vacilou, disse que não relia esse material há muito tempo, entretanto, quando Lacan ia se retirando, falou: “Seja como for, você nunca interpretará o Banquete se não souber por que Aristófanes estava com soluço” (Lacan, 1961/1992, p.67. Ou seja, o soluço de Aristófanes fez com que ele trocasse de posição, cedendo lugar a Erixímaco, que, então, fala antes dele. A partir daí, segue-se Aristófanes, Agatão – o dono da casa –, que havia recebido um prêmio pela escritura de uma tragédia, e, depois, enfim, fala Sócrates. Então, a ordem dos sujeitos se altera, e por que isso é importante? Porque cada sujeito pode ser considerado como um significante para outro significante e, de acordo com a sua posição, confere uma ressignificação ao discurso de todos que o antecedem. O último discurso reordena todos os anteriores. Esta é a importância da troca de lugar das pessoas que falam no Banquete, pois se pode compreender cada discurso como um significante. Através dessa cadeia de significantes que se constitui, o desejo vai deslizando metonimicamente e definindo o que é o amor. Lá pelas tantas, aparece a palavra desejo. A ordem dos discursos fica assim: ocorrem os de Fedro e o de Pausânias, e, depois, entra Erixímaco, que, conforme mencionado, confere uma visão que representa uma abertura aproveitada por Aristófanes. Por que? 120
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Porque Aristófanes traz um personagem do Imaginário, através de um discurso que contém um caráter delirante, em um contexto contraditório que remete precisamente à questão da transferência. O elogio de Aristófanes apresenta uma observação zoológica de seres imaginários: seres que poderiam ser cortados em dois como ovos cozidos. Trata-se de personagens esféricos, de todos os lados semelhantes a si mesmos, sem limites por ser sua forma em bola, na qual reina a mais completa solidão graças a sua autossuficiência. O autor insere, assim, a ideia de narcisismo, ao mesmo tempo em que introduz a concepção de um possível corte - castração. Esta personagem mítica, completa em si, apresenta-se através de três sexos – homem/homem, mulher/mulher e homem/mulher. Representa o mito de nossa unidade primitiva. Entretanto, Zeus castiga essa figura completa por sua presunção e ela sofre uma divisão, que Aristófanes chama de spaltung e tem a passagem dos genitais para a frente do seu corpo. A partir do corte, cada um desses seres toma consciência de que lhe falta algo e passa a viver em busca dessa parte que lhe falta. O termo spaltung é utilizado por Freud e Lacan para definir a divisão mental própria inclusive das tópicas da mente. Essa divisão permite que se chegue ao Simbólico – a divisão que todos nós temos entre a parte conhecida, consciente, e a parte inconsciente, desconhecida de nós mesmos, que aparece em nosso discurso como furo, como equívoco, e que fala de nossa verdade do inconsciente. A partir de Aristófanes, então, quando se cria essa divisão no sujeito, aparece o ser descentrado, o ser da falta, que vai necessitar do Outro e que vai levar à instauração do Simbólico. Definida essa posição no sujeito, Agatão ingressa na ordem dos discursos e, muito embora apresente o seu elogio ao modo de uma fantasia extravagante, ele arma a posição para a construção da argumentação socrática. Sócrates inicia seu discurso diferentemente dos demais, na forma de um diálogo; ele faz perguntas a Agatão e busca as suas respostas para armar o seu elogio. Dessa maneira, apresenta o conceito de desejo, desejo daquilo que não se tem, formalizando a ideia da falta como causa do desejo e do amor. Pode questionar dialeticamente, porque já está estabelecida a divisão, o furo, a falta. Então, chega-se à palavra através do simbólico, que se constitui depois de um corte, uma divisão no “sem furo” típico do narcisismo, que se estrutura na completude onipotente da fusão mãe/bebê, momento em que se forma o Imaginário, cuja visão os primeiros discursos nos proporcionam. O Banquete propicia, portanto, uma ideia do desenvolvimento da individuação do sujeito e da própria sexualidade que se dá através do complexo de Édipo; assim, se vislumbra a possibilidade de completude e a difícil aceitação da complementaridade sexual que surge com a ideia desse ser descentrado, incompleto, que se defronta com a diferença sexual. No momento do corte, a sexualidade assume a frente como uma problemática a se resolver no discurso de Aristófanes.
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O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan
Então, o que faz Sócrates? Ele discute dialeticamente toda essa questão do sujeito, da divisão, enfim, desde o discurso de Fedro, que era o pai da ideia de homenagear o amor e cujo discurso é mais voltado para a grandeza do amor – grandeza essa muito mais presente no lugar do amante que no lugar do amado. Lacan explica que Sócrates restabelece essa discussão dialética entre amado-amante e apresenta duas figuras bastante significativas insinuadas por Fedro: o Érastès e Érôménos. Érastès seria aquele que ama – o amante – e Èrómenos, o amado. O valor grego maior recairia sobre o fato de a pessoa poder abrir mão do lugar de amado para alcançar o lugar de amante. A seguir, introduz a figura de Diotima – como um mito. Fala do lugar de uma mulher, uma sacerdotisa estrangeira, que, na realidade, era uma ficção criada por Sócrates. A estrangeira, por si só, já dá lugar para o conceito de diferença que se impõe. Sócrates possuía um discurso muito denso, em comparação com o de Agatão, e não iria entrar no tom. Então, ele fala através dessa mulher. O que diz Diotima? Ela relata como se deu o nascimento do amor, é esse o seu discurso. Mas ela estabelece primeiramente um diálogo com Sócrates, bem à maneira socrática, na qual ela faz as perguntas e ele – Sócrates – responde, exatamente como ele fizera com Agatão, ao introduzir o seu discurso. Diotima assume o lugar de Sócrates e este, de Agatão. Assim, aparecem personagens que se alternam e trocam os seus lugares. Nessa passagem, Diotima inclui a dialética, visando a dar um salto e passar para o método de exposição alegórica. Demonstra que, não necessariamente, a verdade pode estar em dois polos que se opõem; o que não é belo não será forçosamente feio; o que não é bom, não é forçoso que seja mau. Assim, introduz a ideia de que nem sempre temos uma síntese que representa uma certeza e demonstra a natureza intermediária do amor, relatando a sua origem. Ela conta que o amor tem sua origem na festa que se organiza pelo nascimento de Afrodite – deusa da beleza – e que terá um grande número de convidados. Recurso é um dos convidados. E, na porta da festa, porque não fora convidada, encontra-se Pobreza, a espiar. Depois de Recurso muito beber e se embriagar, cai em frente à porta, e Pobreza se aproveita dele; o seduz. A partir desse encontro, nasce o Amor. Estabelece-se, assim, a relação entre a beleza e o amor. Constrói-se a dualidade entre o belo e o amor que Platão tem de fundo, e define-se que o amor, na verdade, nasce também de uma falta. A pobreza representa esta falta. O elogio ao amor apresentado por Sócrates é muito importante para se entender o lugar da transferência em Lacan. Então, o que acontece no desenvolvimento do Banquete depois do discurso de Sócrates? Entra Alcibíades. Bêbado. Irreverente, vem à frente de uma espécie de bloco de carnaval e, no momento em que entra, rompe e subverte toda a ordem estabelecida no Banquete, onde havia uma combinação prévia entre os participantes.
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No início do Banquete, foi feito um acordo acerca do evento: “Nós vamos cada um fazer um discurso de elogio ao amor, vamos beber pouco porque ontem já bebemos na comemoração do prêmio recebido por Agatão”. Assim, foi estipulada uma série de regras, todavia rompida com a entrada escandalosa de Alcibíades. Esse acontecimento dá a dimensão de como eclode a transferência no espaço analítico, no qual existe toda uma série de combinações, que a transferência visa a romper e que ninguém pode prever como se dará. Então, o que acontece mais exatamente no Banquete? Alcibíades irrompe naquela sala, e faz o quê? Em lugar de entrar no jogo sobre o elogio ao amor, ingressa em cena como ator e passa a ser ele quem dirige o espetáculo. Faz uma apaixonada declaração de amor a Sócrates. Antes, porém, entra na casa e escolhe ir deitar-se ao lado do dono da casa – Agatão. Coloca-se entre Sócrates e Agatão e, em um primeiro momento, não enxerga a Sócrates. Quando ele o vê, leva um susto, e diz: “Ah! Tu estás aqui !?!” Então, desafiado a fazer parte do jogo dos elogios e sentindo-se alcoolizado demais para isso, propõe fazer um elogio à pessoa da sua direita e passa a contar sobre sua aventura com Sócrates. Relata a sua experiência de apaixonamento por Sócrates e seus esforços em seduzi-lo. Mas, que, apesar de todos os seus apelos e tentativas de sedução, em momento algum, Sócrates expressa qualquer sinal de concessão amorosa a ele e se mantém irredutível na sua posição. Para Lacan, a grande mudança que acontece com a entrada de Alcibíades é que, em lugar de realizarem um elogio ao amor, os convidados passarão a fazer um elogio ao outro e, precisamente nesse ponto, se passa à metáfora. O elogio do outro substitui o amor; não metaforiza o elogio do amor, mas ao amor propriamente dito. Cria-se a metáfora do amor. O amor passa a ter um significado tão somente metafórico. Com isso, se configura toda uma questão sobre a qual Lacan (1961/1992) se apoia para explicar a transferência. Segundo o autor, Alcibíades cria essa metáfora e fala para um terceiro que estava todo o tempo olhando: Agatão. Assim, uma mudança acontece desde o discurso de Diotima. Ela fala para um Outro, que é colocado como o Bem supremo e Alcibíades cria, com sua entrada, uma situação tríplice. No início de seu discurso, refere-se a Sócrates como um sileno; palavra que tanto pode significar um satírico e, assim, pareceria ser tomado no Banquete, como também poderia ter o significado de uma embalagem ou caixinha de joias, na linguagem da época. E esse último sentido é o lugar que Lacan entende que Alcibíades quer conferir a Sócrates: aquele que contém coisas preciosas muito íntimas. Volta, assim, o seu discurso do externo para o interior. Desse modo, Alcibíades arranca a ideia da dialética do belo como o desejável e dirigese, a grandes passadas, ao surpreendente efeito da linguagem da paixão, da paixão do significante que crava a sua lança e gera sentidos. Aqui entra uma pergunta e a pergunta seria: “O que você deseja? Existe um desejo que represente a sua vontade?” (p. 143). Esse 123
O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan
outro, enquanto objeto de desejo, possivelmente seja a soma de um punhado de objetos parciais, que, de modo algum, constituem algo semelhante a um objeto total, como costuma ser apresentado em uma simplificação ingênua, segundo Lacan, designada como a genitalidade a ser atingida como o Bem supostamente harmonioso. Para Lacan, o isso, com que temos de nos manejar em nossa profundidade inconsciente, talvez não passe de um vasto troféu de todos esses objetos (p.147). Nessa perspectiva, o Eu se constrói inteiramente na pluralidade de identificações que se estruturam no Eu ideal, no ideal do Eu e em um Eu desejante, que está em incansável busca do par perdido, em algum resquício de experiência fugaz do passado. O amor, portanto, se transforma em uma metáfora que pretende atender uma demanda de outro sujeito descentrado e que tem o seu desejo perdido no passado. Desde esse lugar, em que é aparentemente seduzido a se colocar como objeto do desejo do outro, Sócrates é irredutível. Ele sabe. E, porque sabe, fala a Alcibíades, enunciando o que poderia ser designado como uma autêntica interpretação analítica: “Tudo o que você acaba de dizer de tão extraordinário, de tão enorme em sua imprudência, tudo o que acaba de revelar, falando de mim, foi para Agatão o que disse (p. 152)”. Lacan (1961/1992) postula, ainda, que o analista precisa jogar na transferência com o seu desejo, pois, segundo ele, todos os dias o nosso desejo vem nos dar bom dia e não podemos fugir disso. Mas precisamos nos manejar com ele, como se fosse o morto de um baralho, que está ali, mas não entra no jogo. E, nisso, Sócrates mostra a irredutibilidade de quem sabe o que é o amor. E Alcibíades dá a representação verdadeira do conhecimento socrático, sem o saber. Ele escancara o que está presente, mas coberto pelo véu do pudor. Em certo sentido, ele é o demônio de Sócrates. Talvez ajude retomar as figuras já apresentadas de Érastès – o amante – e de Érôménos - aquele que é amado. Érastès se caracteriza por colocar a todos que dele se aproximam como aquilo que lhe falta, mas ele não sabe o que lhe falta. Érôménos situase sempre como aquele que não sabe o que tem oculto e que constitui a sua atração. Nenhum escapa da insciência do inconsciente. Assim se apresenta o problema do amor: o que falta a um não é o que existe escondido no outro. Amar é sempre dar o que não se tem e não dar o que se tem (Lacan, 1958/1999, p. 218). A relação significante/significado é que poderá criar algum sentido na metáfora do amor. A relação de Érastès, como o sujeito da falta, substitui a função de Érôménos, que seria o objeto amado e, aí, se produz a significação do amor. Amar, portanto, é poder suportar a castração de saber que nenhum objeto da nossa vã realidade poderá ser aquele que de fato corresponderá fielmente ao nosso desejo e que sempre permanecerá um sentido de falta que se encontra na borda do humano.
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Não é à toa que Lacan lembra que a expressão eterno amor é colocada por Dante, exatamente nas portas do inferno. E, nesse sentido, o analista – sempre que estiver exercendo a função analítica – precisa estar ciente de que está lidando com Hades – o lugar dos mortos. Esta é uma narrativa sobre a confluência entre o Banquete de Platão e o conceito de transferência como Lacan o compreende, em seu seminário sobre A Transferência.
The Plato’s Symposium: a revisit to the transference in Lacan’s work Abstract: The article points out the transference concept through the point of view of the Seminar ‘The Transference of Lacan’, studied under the light of Plato’s Symposium text. In summary form, focuses on several speeches of the Symposium’s participants, analyzing and transferring them to the structure of an analytical session. The Symposium talks about love, which, according Lacan, would be the analytical treatment engine. Keywords: transference; analytical session; speech; Plato’s Symposium.
El Banquete de Platón: una revisitación a la transferencia en Lacan Resumen: El artículo aborda el concepto de transferencia desde el punto de vista del Seminario ‘La Transferencia de Lacan’, estudiado a la luz del texto El Banquete de Platón. Plantea, de forma concisa, diversos discursos de los participantes del Banquete, analisando y transponiendolos a la estructura de una sesión analítica. El Banquete habla de amor, que, según Lacan, es el motor del tratamiento analítico. Palabras clave: transferencia; sesión analítica; discurso; Banquete de Platón.
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O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan
Referências Lacan, J. (1999). As formações do inconsciente In Lacan, J. Os três tempos do Inconsciente. O Seminário. Livro 5. (Trad. Vera Ribeiro, p. 185-203). Rio de Janeiro:Zahar. (Trabalho original publicado em 1958) _________. (1992). O Seminário – Livro 8. A Transferência (Trad. D.D. Estrada, p. 27-152). Rio de Janeiro:Zahar. (Trabalho original publicado em 1960-1961). PLATAO (2003). O Banquete, ou Do Amor. Rio de Janeiro: Difel. (Trabalho original do Sec. IV a.c.)
Maria Elisabeth Cimenti Rua Joao Abbot, 319, Conj. 401 Petropolis, Porto Alegre/RS bethcimenti@hotmail.com © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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Imbricações entre sexualidade e cultura: um trajeto culturante da pulsão1 Veridiana Canezin Guimarães2
Resumo: O artigo busca discutir o conceito de Eros na psicanálise freudiana, de modo a compreendê-lo como a sexualidade culturante. Para consecução desse objetivo, discute a concepção da sexualidade mais primitiva e corporal, a sexualidade infantil e as consequências psíquicas da adaptação do sujeito ao princípio da realidade, face os modos de socialização. Argumenta-se sobre o recalque enquanto fator culturante das pulsões e estruturante do psiquismo, articulado ao conceito de sublimação, que se refere a um trabalho precisamente realizado por Eros. Conclui que Eros deve ser compreendido como um conceito que nomeia a trajetória da libido ou da sexualidade na cultura, nos objetos, situando-o como um destino culturante da pulsão. Palavras-chave: Freud; Eros; sexualidade; cultura; destinos pulsionais.
Este artigo tem como objetivo discutir o conceito de Eros na psicanálise freudiana como um destino culturante da pulsão, nomeando uma sexualidade culturante. Considera-se que há, na teoria freudiana, uma compreensão da passagem da sexualidade mais primitiva e pulsional para as suas formas mais elaboradas, em que Eros se manifesta imbricado entre sexualidade e cultura. Supõe-se, assim, que as pulsões devessem percorrer um trajeto para transformar o sexual no que ele tem de mais pulsional, mais destrutivo, em uma sexualidade que atue em benefício do processo civilizatório. Pressupõe-se que a teorização acerca do conceito de Eros passa pela abordagem do sexual, apostando na tese central freudiana de que a experiência da sexualidade é a base sobre a qual o psiquismo se constitui. Portanto, retomar o tema da sexualidade, a partir de uma concepção de Eros como sexualidade culturante, significa, no limite, atualizar uma problemática cara à psicanálise freudiana sobre a questão do sexual, vez que grande parte dos autores pós-Freud atribui um papel secundário à sexualidade nos processos subjetivos. 1
Este artigo é fruto das discussões presentes na tese de doutorado intitulada Eros na psicanálise freudiana: um destino culturante da pulsão, defendida no Programa de Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília.
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Psicóloga clínica, Pesquisadora colaboradora (UnB), pós-doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB), Professora no curso de psicologia na Udf e Iesb. Membro do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Imbricações entre sexualidade e cultura: um trajeto culturante da pulsão
1.1 Alguns apontamentos sobre a teoria da sexualidade e o circuito pulsional em Freud O entendimento do conceito de Eros parte, portanto, da apreensão da sexualidade dita mais primitiva e corporal, fazendo-se necessário discorrer, em termos gerais, sobre o conceito de sexualidade a partir do estudo da sexualidade infantil em suas dimensões autoerótica e perverso-polimorfa, enfatizando o caráter inicial da sexualidade. A concepção freudiana da sexualidade tem sua matriz no livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905d/1976), no qual Freud imprime a importância desta em todas as realizações humanas, ampliando o seu conceito em sintonia com a afirmativa de que ela é uma disposição psíquica universal, inerente à própria condição humana. A partir desse livro, a sexualidade é elevada ao conceito – e assim permanece – de sexualidade infantil, que designa um modo de sexualidade que está presente na infância, mas se prolonga, jamais sendo superada, por toda vida do sujeito. A sexualidade infantil, perversa-polimorfa, constitui-se a sexualidade por excelência, sendo considerada a sexualidade originária. A sexualidade dita adulta e genital é resultado de uma transformação da sexualidade originária, e dela conserva seus traços, de forma a assinalar que o sujeito jamais se liberta completamente da influência das primeiras experiências sexuais, mesmo que estas vigorem de forma modificada, sob a determinação dos diversos deslocamentos e condensações característicos das representações recalcadas. Na infância, as pulsões parciais são desvinculadas e independentes entre si em sua busca do prazer, não subordinadas ao primado da genitalidade. Essas pulsões precisam percorrer etapas, caminhos que culminam na sexualidade adulta, na qual as pulsões se unem a serviço da função reprodutora e com a finalidade de atingir um objeto sexual. A pulsão sexual, que era inicialmente autoerótica, desloca-se à procura de um objeto. Nesse sentido, o autoerotismo, como momento originário da sexualidade, obriga-se a dar lugar ao objeto de satisfação situado fora dos limites do sujeito. A satisfação, portanto, decorre de uma excitação sensorial de qualquer parte do corpo, funcionando como zona erógena e, segundo Freud, o primeiro órgão a surgir como zona erógena e a fazer exigências libidinais à mente é, da época do nascimento em diante, a boca. Inicialmente, toda a atividade psíquica se concentra em fornecer satisfação às necessidades dessa zona. Primariamente, é natural, essa satisfação está a serviço da autopreservação, mediante a nutrição; mas a fisiologia não deve ser confundida com a psicologia. A obstinada persistência do bebê em sugar dá prova, em estágio precoce, de uma necessidade de satisfação que, embora se origine da ingestão da nutrição e seja por ela instigada, esforça-se, todavia, por obter prazer independentemente da nutrição e, por essa razão, pode e deve ser denominada de sexual (Freud, 1940a [1938]/1976, p. 179).
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Interessante relembrar o capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900a/1976), no qual Freud traz à cena a situação do recém-nascido que grita ou dá pontapés impotentemente na esperança de que sua excitação interna (a fome) seja satisfeita. No entanto, a situação permanece inalterada, porque a excitação que surge de uma necessidade interna não é devido a uma força que produz um impacto momentâneo, mas a uma força que se encontra em funcionamento contínuo. Uma mudança só pode surgir se, de uma maneira ou de outra (no caso do nenê, através do auxílio externo), pode ser atingida uma ‘experiência de satisfação’ que põe fim ao estímulo interno. (Freud, 1900a/1976, p. 602). O auxílio externo, emblematizado na figura materna que busca atender a criança em suas necessidades, representa o vínculo desta com um eu fora do seu próprio corpo, mesmo que ela ainda não o compreenda como tal. E, além da expressividade de uma demanda corporal, as manifestações do recém-nascido constituem um apelo de sentido à angústia e à impotência do desamparo original que ele experimenta em sua entrada na ordem cultural. Nesse sentido, entende-se o nascimento do psiquismo como uma resposta à essa condição de desamparo do bebê, à medida que se refere aos caminhos traçados para dar vazão à sua pulsionalidade originária. Como aponta Celes (2004), a angústia seria então um sinal psíquico de sua própria falta: falta psíquica (desvalimento psíquico) expressa no corpo. Pulsão, angústia e psíquico nascem no mesmo ato, no mesmo gesto, o da primeira satisfação. Rigorosamente, então, o nascimento psíquico pode ser entendido como presença: presença pulsional (que exige trabalho), a qual presença a angústia denuncia. Essas digressões direcionam para pensar a constituição psíquica enquanto devir, vez que não se pode conseguir efetivamente dar vazão para toda pulsão. Além disso, sabe-se que essa forma de dar vazão implica o exercício de adiamentos da satisfação e soluções sempre parciais, o que caracteriza, em termos mais amplos, a esfera da vida em sociedade. Assim, se, por um lado, há uma situação definidamente marcada por um limite de solução para a excitação do corpo, por outro, é essa mesma condição que faz do psíquico uma instância em devir, na possibilidade de alcançar novos caminhos para a pulsão. A atividade psíquica, portanto, teria como objetivo evitar o acúmulo pulsional – o que levaria ao sentimento de desamparo – e impedir que o sujeito desconsidere o princípio da realidade, colocando-se em perigo. Como nenhum objeto satisfaz a pulsão, no registro pulsional o objeto de satisfação por excelência estará desde sempre perdido. E é precisamente porque nenhum objeto pode satisfazer a pulsão que, em última instância, ele é de natureza totalmente variável, o que sugere também a diversidade dos destinos pulsionais e o necessário engajamento aos objetos culturais.
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1.2 O funcionamento psíquico a partir da dimensão social Essa discussão se amplia na medida em que se leva em consideração a premissa de que os percursos encontrados pelo sujeito são necessariamente ancorados no campo da cultura e têm repercussões e registros na dinâmica psíquica individual. Nessa direção, surge a necessidade de refletir acerca de determinadas consequências psíquicas da adaptação do sujeito ao princípio da realidade, procurando discutir as formulações acerca dos princípios constitutivos do aparelho psíquico – o princípio do prazer e o de realidade -, tendo como orientação os processos de inserção do sujeito nos modos de socialização, enfatizando o narcisismo e os processos identificatórios. Constata-se que a possibilidade de desenvolvimento do humano se efetua em decorrência de determinados processos e sucessivas identificações que promovem o distanciamento do sujeito da sua relação primitiva e original com o objeto. Dessa forma, articula-se a emergência do sujeito no campo da cultura a partir de um movimento necessário, porém nem sempre efetivo, de direção e afastamento do núcleo narcísico, que é tributário da instauração da alteridade. Nesse sentido, necessariamente, a organização psíquica a partir da adaptação do sujeito à realidade requer o avanço deste, de uma organização autoerótica, eminentemente vinculada ao princípio do prazer, para uma organização que leve em consideração processos regidos pelo princípio da realidade. A libido, em benefício da emergência do sujeito, requer, necessariamente, destinos mediados socialmente. Nesse contexto, a passagem do Eu-prazer para o Eu-realidade é correlata à perda do objeto primordial, do primeiro objeto de satisfação, permitindo uma reestruturação ou remodelação do Eu que transforma a economia do objeto da pulsão. A pulsão sexual precisa se submeter a desvios, adiamentos e processos de domesticação para que sejam viáveis uma estruturação do Eu e a própria vida em sociedade; a pulsão sexual deve se submeter ao princípio da realidade. É essa a possibilidade de vida encontrada entre os homens, visto que a satisfação imediata e total coincidiria com a sua dissolução. Portanto, com o acometimento do mundo externo, a estruturação do Eu é tributária de circuitos de investimento em objetos bem como adiamentos e satisfações parciais, no qual a dinâmica psíquica segue o conflito entre as moções pulsionais que se expressam numa sexualidade autoerótica e polimorfa perversa e as moções pulsionais em que já estão implicadas mediações do campo social. Interessante lembrar Freud (1916[1917]/1976) quando afirma que o autoerotismo é a base do atraso da sexualidade no processo de educação no princípio de realidade, já que se refere a uma atividade sexual do estádio narcísico da distribuição da libido. No entanto, a especificidade e a capacidade de se voltar para objetos externos implicam, de certa forma, um distanciamento narcísico, sem que, necessariamente, por esse motivo, ele desapareça.
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Para dar conta dos investimentos e vínculos que unem diversos sujeitos em um grupo, Freud necessita de um mecanismo que vá além da dimensão da libido objetal: trata-se do processo de identificação. São os objetos encontrados na realidade externa que fornecem matéria-prima para as identificações, que, em consequência, também estruturam o Eu. Conceito fundamental na teoria freudiana, a identificação consiste em um processo pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando os aspectos, traços ou atributos das pessoas que o cercam. Ao mesmo tempo que se identifica, o sujeito reconhece-se separado daqueles com os quais se identificou. Os laços de identificação permitem, portanto, o reconhecimento da semelhança e, ao mesmo tempo, da diferença constitutiva do sujeito. Assim, se, de certa forma, identificar-se implica incluir uma parte, um traço do objeto, há algo irredutível presente na identificação: a admissão da ausência do objeto, o que leva a uma introjeção de algo do objeto no Eu. De uma forma geral, os processos identificatórios correspondem a um meio de reorientar os impulsos originais do homem, na medida em que há um abandono das metas diretamente sexuais. Nota-se, portanto, uma importância atribuída ao ideal na sustentação do laço social através das identificações, o que pode revelar a própria natureza do laço social. O Ideal-de-Eu contém, além de sua parcela individual, uma parcela social que se expressa em ideais comuns a um grupo. Um ideal cultural articulado à pulverização das referências simbólicas a serem transmitidas e compartilhadas. O Ideal-de-Eu parece se constituir, assim, em uma mediação entre o singular e o cultural, entre o registro narcísico e o registro que implica as esferas sociais. O desenvolvimento do Eu supõe um distanciamento do narcisismo primário, embora permaneça o anseio de recuperá-lo. O distanciamento acontece devido aos deslocamentos da libido “em direção a um Ideal-de-Eu que foi imposto a partir de fora, e a satisfação é obtida agora pela realização desse ideal” (Freud, 1914c/1976 p.117). Nesse sentido, a formação de ideais constitui-se em um dos caminhos percorridos pela libido a partir da constituição do Eu, revelando um percurso do sujeito em direção aos objetos externos. Diante da renúncia ao estado de completude e onipotência infantis vividos no narcisismo primário, tem-se a possibilidade de, através da identificação, da formação de ideais, construírem-se laços libidinais inibidos em seu fim, que esteiam os grupos sociais. Assim, não é sem razão que Freud (1923b/1976) compreende o Ideal-deEu como um dos mais importantes destinos da libido. A identificação se configura importante argumento da socialização e da vinculação humanas, um mecanismo estruturante e organizador do Eu, no qual o social surge não somente como uma instância que recalca os desejos infantis, mas também como organizador da própria vida da criança, por meio da oferta de modelos identificatórios tanto para o eu quanto para o Ideal-de-Eu. Além de estruturar o Eu, a identificação lança o sujeito nos vínculos sociais. Importante ressaltar que a 131
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ideia do social representada pelos pais ou pela cultura necessita de ser delimitada, pois, inversamente, a qualidade do vínculo dos pais com a criança pode exatamente dessocializá-la, por assim dizer. Os vínculos podem lançar o sujeito à psicose e não neurotizá-lo. Portanto, as identificações não somente organizam o Eu, mas podem constituí-lo desorganizadamente, empreendendo nele verdadeiras cisões. Introduz-se, necessariamente, não somente a estruturação do sujeito devido à identificação, mas também evidenciando a função do circuito completo (triádico) do complexo de Édipo. Trata-se de compreendê-lo como uma passagem fundamental para a inserção do sujeito na sociedade, desde que, além de proporcionar a internalização da lei do incesto, funciona como mediador entre as moções pulsionais e o espaço cultural, dando vazão à pulsionalidade humana. Assim, sugere-se pensar o conflito edipiano como estruturante do ser humano porque, nele e através dele, se opera a articulação entre a vida pulsional e a esfera social, fazendo com que o ‘outro’ venha a ocupar, na vida psíquica, os quatro lugares atribuídos por Freud: modelo, objeto, auxiliar ou adversário. O conteúdo do complexo de Édipo – que pode ser descrito esquematicamente como a instauração da proibição do incesto – envolve a transformação mais decisiva da história de cada indivíduo, transformação que consiste em fazê-lo como sujeito humano capaz de desejar e de reconhecer na realidade social a si mesmo, o objeto de seu desejo e os limites intransponíveis opostos ao exercício deste último (Mezan, 1990, p. 458). Assim, a lei do incesto interdita o incesto e, ao mesmo tempo, autoriza o sujeito a outras escolhas amorosas não incestuosas, de modo a afirmar que a sexualidade, no espaço social, deve se submeter a processos que a impeçam de se desenvolver livremente. Internalizar a autoridade, assim, parece ser condição essencial para que o sujeito possa se lançar ao mundo, identificando-se com os ideais de cultura e estruturando os ideais do eu, reconhecendo o limite da sua condição desejante. Está aí em iminência a forma como se processa a relação com o outro, as mediações que a cultura encontra para regular os relacionamentos sociais. Isso significa que os destinos pulsionais, as possibilidades humanas de subjetivação, são culturalmente regulados e marcados pelos sacrifícios que a civilização impõe tanto à sexualidade quanto à agressividade do homem Dessa forma, regular os relacionamentos entre os homens em benefício da vida em comum possibilita construir mediações entre o sujeito e a cultura, que, no limite, estão atravessadas pelo pressuposto freudiano do sacrifício das pulsões.
1.3 O conceito do recalque como fator culturante das pulsões Nesse momento, situa-se o conceito de recalque como um destino pulsional estruturante do psiquismo, de forma a elucidá-lo enquanto fator culturante das pulsões. O recalque, como fundamento na origem e sustentação da relação entre 132
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sujeito e cultura, sustenta a ideia da interdição da condição pulsional do homem como causa na constituição do sujeito, de forma a afirmar que a vinculação do sujeito com o mundo externo se deve, sobretudo, ao recalcamento das pulsões sexuais e agressivas na esfera civilizatória. A tensão entre a condição humana pulsional e o processo civilizatório exige incessantes elaborações, uma vez que não há uma superação definitiva. Portanto, a possibilidade de emergência do sujeito está na constante solicitação de um trabalho psíquico que transforma a natureza pulsional, que continua a atuar e a necessitar de simbolização. Sem a intervenção do aparelho psíquico (e da cultura), a pulsão continua a se apresentar de forma desenfreada, sem contornos e limites, necessitando do psiquismo para articular e adaptar os impulsos internos e os estímulos externos, ligando-os a objetos, civilizando-os e buscando nisso alguma satisfação. Importante é pensar que as mediações psíquicas construídas a fim de sustentar a vida social dependem também do que é oferecido à economia libidinal, não apenas do que lhe é negado. Nesse momento, interessa lembrar a reflexão de Mezan (2002), que denuncia a tese freudiana de que a cultura repousa integralmente sobre a coerção das pulsões. Para ele, essa tese não se sustenta completamente, uma vez que é preciso destacar outra dimensão da relação entre pulsão e cultura: a cultura também possui a tarefa de propiciar à pulsão objetos que excitem e satisfaçam o desejo. Essa dimensão da cultura está presente, do começo ao fim, no processo de subjetivação, desde a experiência de satisfação – elevada ao estatuto de uma satisfação ideal – até as experiências de sublimação. Assim, tudo que se apresenta como capaz de satisfazer o desejo humano é fruto de um trabalho social. Portanto, a relação entre a cultura e a pulsão não pode ter apenas um cunho coercitivo – coagir as pulsões para que elas se dirijam para o trabalho ou para as relações sociais permitidas e estimuladas, que se baseiam, em última análise, no erotismo inibido quanto ao fim –, mas deve, obrigatoriamente, incluir um aspecto sedutor, propiciador, que, sem dúvida, é parte satisfatória (no sentido de oferecer coisas que de fato satisfazem, de algum modo, os desejos agressivos e sexuais do ser humano, bem como os seus anelos narcísicos) (Mezan, 2002, p. 359). Sugere-se entender, portanto, que a esfera social funciona como espaço de sustentação do circuito pulsional para a estruturação do sujeito psíquico, que realiza investimentos na realidade transformando-a e obtendo (im)possibilidades de gratificação, ao menos no que se refere a um deslocamento da condição originária e primitiva. A partir das formulações freudianas, é possível embasar a ideia de que o social está presente no individual, mesmo que se apresentem diferenças entre essas instâncias. No interior do sujeito, situa-se a instância do Supereu, que representa tanto o nível individual – a singularidade dos processos inconscientes e psíquicos – quanto o social – a reprodução das leis, regras e proibições de uma sociedade. O Supereu é a instância 133
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interna do controle social, mas também o resultado de diversas identificações, resquício de escolhas de objeto, herdeiro do complexo de Édipo. Nesse sentido, ele é social e individual ao mesmo tempo, de maneira a sugerir que os processos de culturalização das pulsões como destinos pulsionais estão, de maneira geral, ancorados na problemática freudiana do homem na cultura. Na teoria freudiana, a referência ao recalque, ao interdito e à lei parece ser indispensável para pensar a constituição do psiquismo nos fios da cultura, de modo a localizá-lo como um eixo estruturador, condição de subjetivação e objetivação, possibilidade, então, de acesso à linguagem, ao simbólico, à cultura. O recalcamento das moções pulsionais registra que a possibilidade de regulação social se dá, principalmente, por uma lei instituída interna e subjetivamente, que passa a representar a própria relação entre cultura e sexualidade. No entanto, não se deve conceber uma linearidade nesses processos, como se fosse possível resolver o problema da vida em sociedade impondo a indispensável renúncia pulsional, o que asseguraria toda a humanidade da força pulsional. A civilização, diz Freud (1930a[1929]), não necessariamente indica um progresso ou é sinônimo de aperfeiçoamento. A regressão do sujeito a estágios infantis e a processos primários, funcionando segundo os automatismos do prazer-desprazer e não segundo os imperativos do princípio da realidade, é uma possibilidade que, a todo momento, está à espreita, justificando as inúmeras barbáries do cotidiano e impondo a prerrogativa de que a vida pulsional não é totalmente domesticável, por mais apurados que sejam os métodos e regulamentos sociais e psíquicos. No entanto, não há como banalizar a assertiva de que é pela limitação e pelo deslocamento dos impulsos destrutivos e eróticos que a civilização procura regular as relações entre seus membros, promovendo a sua continuidade. Sempre haverá um limite para a assimilação do sexual, dos impulsos sexuais nas organizações simbólicas e sociais, o que torna possível dizer que, nas formações psíquicas, o sexual se apresentará de forma fragmentada, não nomeada, apontando para um resíduo seu inassimilável. Para tanto, a cultura precisa continuar a exercer o objetivo fundamental de culturalizar a sexualidade na forma de Eros, constituindo-se, conforme Freud (1921c/1976), como um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações em uma única grande unidade, a unidade da humanidade. A ideia de culturalizar a sexualidade na forma de Eros significa promover o investimento libidinal em objetos, ampliando o círculo das relações humanas, o que requer a instalação do recalque. Sugere-se, portanto, compreender que a tarefa de culturalizar a libido ou a sexualidade consiste em considerá-las uma pulsão sexual vinculante ou culturante, dirigida aos objetos, diferentemente de uma sexualidade 134
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autoerótica. O recalque, nesse sentido, consiste em um mediador psíquico capaz de conferir a Eros uma sexualidade que está intimamente relacionada à cultura, desde que Eros se distinga da sexualidade puramente pulsional, pois se coloca como uma sexualidade marcada pelas relações de objeto propriamente ditas. O estatuto de Eros na psicanálise freudiana, como uma pulsão sexual culturante, indica que a ligação libidinal com o outro, com os objetos, é constituída culturalmente pelas vicissitudes, particularmente, dos processos de recalcamento e sublimação. Ou seja, a sexualidade culturante parece estar também, embora diferentemente, infiltrada nos processos sublimatórios.
1.4 Sublimação: insígnia de Eros, mas renúncia da satisfação - seus limites e possibilidades Nesse momento, apresentam-se algumas articulações acerca do conceito de sublimação como uma pulsão sexual culturante, circunscrevendo-a como um trabalho precisamente realizado por Eros, promovendo o laço social e inscrevendo, por meio das produções artísticas, intelectuais, científicas e culturais, a possibilidade de canalizar e dar vazão aos elementos pulsionais. No entanto, todo o processo de Eros está concomitantemente atravessado pelas vicissitudes da pulsão de morte, que apresenta sua face nos processos de desfusão pulsional realizados na sublimação. Compreende-se que a sublimação implica a substituição de uma gratificação real das pulsões, que nunca será erradicada, pela gratificação mediada culturalmente, dessexualizada, ainda que se presencie uma defasagem entre a satisfação procurada e a obtida. Mas a sublimação encontra sua importância no processo civilizatório porque consiste em um processo psíquico capaz de gerar satisfação e, ao mesmo tempo, favorecer a organização cultural. De qualquer forma, há uma descontinuidade constitutiva entre as pulsões sexuais e a cultura, no sentido de que, nesse enfrentamento, nem sempre se acomoda a dupla exigência, a sexual e a cultural, que são diferentes, porém interdependentes. O que se quer evidenciar é que a sublimação se inscreve como possibilidade de articular esses dois elementos, embora ela continue a carregar a marca do sacrifício pulsional a favor da construção da cultura. No entanto, o excesso de trabalho sublimatório, enquanto representante da exigência civilizatória, pode resultar em uma diminuição da satisfação individual por meio da intensificação do recalque, acarretando, necessariamente, um prejuízo sexual. No texto A moral sexual civilizada e doença moderna, Freud (1908/1976) chama a atenção para o papel eventualmente prejudicial da sublimação, apontando que a satisfação direta é indispensável à pulsão. Nesse cenário, a sublimação não deixa de ser uma renúncia à satisfação, mas, ao mesmo tempo, é uma possibilidade de inscrever outra forma de satisfação pulsional, que recai sobre o afastamento e desvio do que é sexual, mas é favorável à vida em comum. 135
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Não há como negar que a sublimação se situa como uma saída bem-sucedida diante do conflito entre sujeito e cultura, já que estabelece um caminho para reduzir o sofrimento imbuído pela neurose e desfazer os estragos do recalque, restaurando a capacidade de amar e de encontrar prazer por meio de processos, nos quais a pulsão sexual tem uma finalidade mais adequada às reivindicações da cultura. Mas algumas questões relevantes atravessam esse mecanismo. Primeiro, mesmo existindo uma plasticidade na pulsão, é preciso ressaltar os seus limites na própria economia da sublimação. Outro aspecto importante refere-se à relação entre o Eu e Eros, sob o viés da desfusão pulsional entre as pulsões de vida e as pulsões de morte, inscrevendo a dessexualização das pulsões e a sublimação. As pulsões - eróticas, por serem plásticas, com capacidade de desvios e deslocamentos, diferentemente das pulsões destrutivas, trabalham “a serviço do princípio do prazer, visando sempre a evitar represamentos e buscando sempre achar diferentes vias de escoamento” (Freud, 1923b/2007, p. 53). Nesse sentido, denomina a energia utilizada no deslocamento – quando ela consiste de libido dessexualizada – de energia sublimada. São processos que estão em sintonia com o objetivo de unir e enlaçar desempenhado por Eros. O processo de dessexualização presente na sublimação é tributário de uma liberação da agressividade - uma desfusão pulsional - que será consumida no próprio processo de criação. Nesse sentido, a liberação da agressividade, vez que a libido fica dessexualizada pelo processo de sublimação, mantém viva a força pulsional, o que não é, necessariamente, a favor da adaptação na cultura, pois também pode indicar uma diminuição da força de Eros quando esta se funde à pulsão de morte. A sublimação, que se apresenta principalmente como um destino elogiável, pode se fazer facilitadora de ameaçadoras desfusões pulsionais. Daqui se pode considerar que a possibilidade de compreensão do processo sublimatório se delineia no texto freudiano a partir de dois aspectos importantes. Primeiro, a sublimação se refere a um processo de extrema importância na construção da civilização, situando-se como uma mediação entre o sujeito e a cultura, de forma a fortalecer os laços sociais e trazer algum apaziguamento para o sofrimento psíquico, além de se apresentar como a forma mais benéfica de lidar com os conflitos dessa ordem. No entanto, a partir do ensaio de 1923, O ego e o id, Freud ressalta a característica da desfusão pulsional envolvida na sublimação, fazendo com que as pulsões agressivas se liberem no Supereu, deixando o Eu exposto à ameaça de maus-tratos e de morte. Nos momentos em que a pulsão de morte excede em atuação no aparelho psíquico, diminuindo a potência erótica e fortalecendo as desconexões, está aberto o caminho para destinos não favoráveis para o sujeito, que, assoberbado de angústia, se mobiliza à procura de defesas extremas.
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Essa constatação não destitui Eros de sua funcionalidade. Aliás, assevera sua importância como uma pulsão sexual culturante, que, embora afastada dos desígnios originais da sexualidade, está comprometida em realizar um trabalho de articulação entre sexualidade e cultura, um trabalho de ligação, permitindo, assim, a sustentação desta. Esse é precisamente o trabalho de Eros, o representante dos impulsos libidinais na cultura, que tem a função de impulsionar as relações humanas e driblar as intenções de desconstrução de Tânatos, que não cessa e insiste em se inscrever. Compreende-se que as mediações psíquicas, como a sublimação, são caminhos pulsionais que procuram atenuar ou aquietar o caráter polimorfo e pulsional da sexualidade, tanto pela necessidade de utilizar a libido em proveito da cultura, quanto pela necessidade de lidar com o seu aspecto desorganizador e selvagem, que se expressa principalmente pelo excesso de estímulos. É a partir dessa interface ou simultaneidade que se pode pensar a construção do conceito de Eros em Freud como pulsão sexual culturante. Qualquer resolução ou redução sua ao aspecto social ou pulsional retira o que há de mais essencial no texto freudiano, a saber, sua fertilidade em refletir acerca da relação sujeito e cultura sempre em uma perspectiva de tensão e constituição recíprocas. Se o entendimento reside no pressuposto de que a pulsão de morte tem por meta conduzir a vida de volta ao estado inanimado, há uma força, Eros, que tem como meta amalgamar cada vez mais, dando à vida uma forma mais complexa e, assim, preservando-a. Enquanto o processo pulsional, ou princípio pulsional, registra uma tendência à morte da vida, Eros vem complexificar o percurso da morte por meio dos elementos de vida. Complexificar, portanto, parece significar o estabelecimento de vias variadas e complexas de satisfação pulsional, evitando o circuito direto para a descarga pulsional, a realização de sua tendência ao zero. O curso da vida é a morte; e Eros, a libido, é o que impede essa execução, é o que representa o esforço de viver. Compreende-se, portanto, a especificidade de Eros no contraponto da pulsão de morte, que se opõe ao programa de civilização, que, por sua vez, requer a culturalização da sexualidade. Eros, nesse sentido, deve ser pensado como um elemento que se constitui em uma relação de contradição, na medida em que se esbarra nas tendências destrutivas da pulsão de morte.
1.5 Considerações finais Propõe-se, assim, como consideração final deste artigo, considerar Eros como um conceito forjado ao longo do desenvolvimento da obra de Freud para apreender uma sexualidade culturante, na qual estão em atuação, ao mesmo tempo, exigências
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da cultura e da sexualidade, instâncias fundamentais no arcabouço teórico acerca da subjetividade. Considera-se que na obra freudiana estão presentes, por assim dizer, dois modos de sexualidade constituindo Eros, que sustentam os laços humanos: a sexualidade recalcada e a sexualidade sublimada, ou o Eros dessexualizado. Sugere-se, então, que o conceito de Eros seja apreendido, em Freud, como uma sexualidade culturante, uma sexualidade que precisa passar por desvios, redirecionamentos, para ser favorável à vida em comunidade, mesmo que isso signifique, sob o viés da falha do recalcamento permitindo o retorno do recalcado, algum prejuízo psíquico para o sujeito, como as neuroses e a perda das moções pulsionais que a cultura poderia utilizar em seu proveito. Importante ressaltar que o objetivo de Eros de formar grandes unidades, construir vínculos e constituir a unidade da humanidade nada tem a ver com a intenção de uma perfeita harmonização do sujeito com a sociedade. Primeiro, porque, na linha de pensamento freudiano, a ruptura da união primordial é um passo irreversível no processo de hominização, enfatizando a relação de oposição e complementaridade entre as exigências singulares e culturais. Segundo, porque Eros só registra sua especificidade no contraponto da pulsão de morte, o natural instinto agressivo do homem, como diz Freud (1930a[1929]), que se opõe ao programa de civilização, que, por sua vez, requer a culturalização da sexualidade. Eros, nesse sentido, deve ser pensado como um elemento que se constitui em uma relação de contradição, à medida em que esbarra nas tendências destrutivas da pulsão de morte. A discussão a respeito do conceito de Eros na obra de Freud, portanto, torna-se pertinente não para vislumbrar uma cultura em que possa reinar o Eros que neutralize a agressividade humana, tamanha sua potência de formar unidades, mas, para além de atualizar a centralidade do sexual nas relações entre sujeito e cultura, apontar que a força de Eros e sua intenção só se fazem presentes nas vicissitudes psíquicas porque há uma força ao mesmo tempo implacável que tende a destruir o que foi construído. Nessa direção, toma-se Eros na sua contradição, o que faz lembrar a citação de Platão, para quem Eros é o desejo do que não se tem. Portanto, deve-se discutir o fato de que a sexualidade pulsional nunca se esvai completamente e, sendo intermitente, há sempre nela algo de indomável que não se subjuga à linguagem, à representação, à cultura. Portanto, a sexualidade contém em si mesma um aspecto demoníaco, submetido a processos primários e à compulsão de repetição, procurando, enfim, por caminhos mais curtos, a realização completa da satisfação. A força de Eros - que, embora na sua origem esteja vinculada à sexualidade desligada – reside, na sua potencialidade, nas tramas da cultura, que, por caminhos mais complexos, constrói satisfações menos avessas ao desenvolvimento cultural.
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The interlacement of sexuality and culture: a culturant route of the instinct Abstract: The essay tries to discuss the concept of Eros in freudian psychoanalysis, in order to understand it as a culturant sexuality. To achieve this goal, discusses the conception of sexuality in a primitive and corporal sense, the infant sexuality and the psychic consequences of the subjetc’s adaptation to the principle of reality, before the manners of socialization. Points out the repression as a culturant factor of the instincts and structuring of the psyche, articulated to the sublimation concept, which refers to a work precisely done by Eros. The article concludes that Eros should be understood as a concept that names the path of libido or sexuality in the culture and objects, placing it as a instincts’s culturant destination. Keywords: Freud; Eros; sexuality; culture; instincts destinations.
Entrelazamientos entre la cultura y la sexualidad: un trayecto culturante de la pulsión Resumen: El artículo analiza el concepto de Eros en el psicoanálisis freudiana, con el fin de comprenderlo como la sexualidad culturante. Para lograr este objetivo, se analiza el concepto de la sexualidad más primitiva y corporal, la sexualidad infantil y las consecuencias psíquicas de la adaptación del sujeto al principio de la realidad con respeto a los modos de socialización. Se discute sobre la represión como um factor culturante de las pulsiones y de estruturación del psiquismo, articulado al concepto de sublimación, que se refiere a un trabajo realizado con precisión por Eros. Se discute sobre la represión como um factor culturante de las pulsiones y de estruturación del psiquismo, articulado al concepto de sublimación, que se refiere a un trabajo realizado con precisión por Eros. Concluye que Eros debe entenderse como un concepto que da nombre a la ruta de acceso de la libido o la sexualidad en la cultura, objetos, colocándola como un destino culturante de la pulsión. Palabras clave: Freud; Eros; sexualidad; cultura; destinos pulsionales.
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Imbricações entre sexualidade e cultura: um trajeto culturante da pulsão
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Veridiana Canezin Guimaraes SEPS 705/905, Bloco C, Sala 141 Ed. Mont Blanc. 70.390-000 Brasilia/DF (61) 8276-4800 veridianacanezinguimaraes@gmail.com © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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Sobre o ressentimento e suas implicações na clínica1 Marina Abdalla de Souza Porto2
Resumo: O presente artigo aborda o aprisionamento mental do sujeito que experimenta o sentimento de ter sido ou estar sendo humilhado. Com sentimento de ferida narcísica, ele fica obcecado pela ideia de vingança contra aquele ou aquilo que acredita ser o responsável por seu sofrimento. Descreve a relação entre ressentimento e vingança e como a compulsão à repetição mantém o sujeito ressentido. Aborda também como este estado pode adiar ou impedir o processo analítico. Palavras-chave: ressentimento; vingança; narcisismo; perdão; reparação.
O ressentimento pode ter o rancor como sinônimo e representa amarga e enraizada reminiscência de uma ofensa. O ressentido sente seu ego ferido por não ter sido capaz de se defender de forma satisfatória contra uma violência sofrida. A todo momento, ele re-sente o ataque primário e o atualiza. Assim, o passado é sempre atualizado, tornando-se presente mortífero. Mas não é só ele quem quase morre. Aquele que ele acredita ter ferido sua honra, manchado seu narcisismo, será destruído pouco a pouco. Destruição que pode ser fantasiada ou atuada lentamente, pois a morte do objeto não lhe trará a completude, o pedaço que lhe foi roubado. A destruição do objeto ocorrerá uma vez que ele alimentará uma posição característica: a condição de vítima privilegiada (Kancyper, 1991/1994).
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Trabalho apresentado em reunião científica da Sociedade de Psicanálise de Brasília em outubro de 2012, com coordenação do analista didata Carlos de Almeida Vieira, a quem agradeço por me incentivar a escrever este trabalho em supervisão na tentativa de compreender melhor os fenômenos psíquicos.
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Analista em formação do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB).
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Sobre o ressentimento e suas implicações na clínica
Escutemos um analisando: “Eu fui envenenado. Envenenado de ódio. Não me trataram como eu merecia. O rancor é tudo que eu sinto e não vou me livrar dele. Não quero analisar o ódio. Ele vai comigo, onde quer que eu vá. E as coisas para eles não vão ficar boas”. O ressentido acredita ter o direito de punição, de castigar quem o atingiu, busca a inversão de papéis. Para ele, o objeto é mau e ainda retém para si o bom ou lho dá através de conta-gotas. Assim, ele sente que foi privado injustamente, mas sua privação será transformada em castigo. Nas palavras de uma analisanda: “A Fernanda está com câncer. Achei foi bom. Acham que é ciúme. Não é. Ela sempre foi o centro das atenções. Tinha dor de cabeça e minha mãe corria para lá. Fala que ela pode morrer. Eu também posso. Pra mim, diz que vai rezar para eu melhorar. E o que isso pode me ajudar? Nada. Ela não me dá o que preciso”. Na literatura, podemos pensar com Guimarães Rosa sobre o ressentimento e o desejo de vingança através de seu personagem Matraga, em “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Trata-se da história de um homem valentão, opressor, que, segundo o narrador, era “sem detença, estúrdio, estouvado, sem regra”. Para compreender a falta de lei de Matraga, vale à pena voltar a fatos do seu passado. “Mãe do Nhô Augusto morreu com ele pequeno... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de mais de uma morte... Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre ... Rezar, rezar, o tempo todo”. Augusto Esteves Matraga era, então, um valentão poderoso que, agora, estava perdido em dívidas. Sua mulher acaba se apaixonando por outro e foge. Seus capangas o abandonam e passam para o lado do Major Consilva, inimigo de seu pai. Nhô Augusto resolve ir atrás da mulher e do amante para matá-los, mas antes decide acertar contas com o Major Consilva. Lá, é pego pelos ex-capangas e atacado. Até marcado com ferro de ferrar gado. Atirado ao chão, rola uma ribanceira e os capangas pensam que havia morrido e vão embora. O sujeito ressentido não consegue abandonar o objeto como destituído de valor. Ao contrário, supervaloriza tal objeto pela recusa da realidade e pela idealização, atribuindo-lhe qualidades de perfeição e possibilidades que, na realidade, ele não tem. Além disso, sua agressividade não desafoga suficientemente sua fúria, pois ainda tem contas a saldar. A idealização, a recusa da realidade e a agressividade garantem a permanência de um vínculo não discriminado com um objeto que, apesar do tempo, não perde sua supervalorização (Kancyper).
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Melanie Klein enfatiza a importância, não só dessa idealização interna e negação da realidade, como também a cisão de objetos e de impulsos e abafamento das emoções como defesas típicas do ego arcaico. A autora ressalta que os processos de excisão de partes do self e sua projeção para dentro de objetos são de importância vital não só para o desenvolvimento normal, como também para relações de objeto patológicas. Vale lembrar que, ao projetar as partes más do self, no sentido de castigar o objeto, por estar re-sentido, as partes boas do self também seguem nessa mesma direção, e o ego se torna cada vez mais empobrecido. A possibilidade de idealização do objeto aumenta, podendo intensificar a inveja e o sujeito ressentido ficar perseguido, uma vez que sente que, da mesma forma que atacou, pode ser “mais uma vez” atacado. Penso em uma associação entre o ressentimento e o que Freud (1937/1996) chamou de viscosidade especial da libido. No texto “Análise terminável e interminável”, ele aborda a viscosidade da libido. Segundo Laplanche e Pontalis, (2001), viscosidade é uma qualidade para explicar a maior ou menor capacidade da libido para se fixar em um objeto ou em uma fase e a sua maior ou menor dificuldade em alterar os seus investimentos depois de obtidos. A viscosidade é variável conforme o indivíduo. Nas palavras de Freud: Deparamo-nos com pessoas, por exemplo, a quem estaríamos inclinados a atribuir uma especial “viscosidade da libido”. Os processos que o tratamento coloca em movimento nessas pessoas são muito mais lentos do que em outras, porque, aparentemente, elas não podem decidir-se a desligar catexias de um determinado objeto e deslocá-las para outro, embora não possamos descobrir nenhuma razão especial para essa lealdade catexial. Freud (1937/1996, p. 258)
Como dito antes, penso que esta lealdade catexial possa ser alimentada pelo ressentimento, pois o movimento que o sustenta, segundo Kancyper (1991/1994), é regressivo a um estado anterior. Ou seja, regressivo ao estado em que sua onipotência e completude infantil não havia sido ferida. Novamente, Freud coloca: Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, vê-se perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, na qual ele era o seu próprio ideal. (1914/1996, p. 100-101)
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Sobre o ressentimento e suas implicações na clínica
A partir deste movimento regressivo ao estado anterior, penso na compulsão à repetição. Para Laplanche e Pontalis (2001), a origem da compulsão à repetição é inconsciente e de difícil controle, uma vez que ela leva o sujeito a se colocar repetitivamente em situações dolorosas, réplicas de experiências antigas, tendo a impressão muito viva de que se trata de algo motivado na realidade. Chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos. (Freud, 1920/1996, p.31)
Nesse contínuo ruminar da injúria sofrida, o ressentido tem seus afetos em hibernação. Congela-os para que possa se vingar. No dito popular temos “A vingança é um prato que se come frio” ou “A vingança é o prazer dos deuses” ou ainda “Quem não pode vingar-se do senhor, vinga-se do criado”. Este criado, muitas vezes, é representado pelo analista. Isso porque o afeto hibernado chega ao setting e altera a forma da transferência-contratransferência. Nesse sentido, Ogden (1995) aponta para a necessidade de avaliar a vitalidade ou a desvitalização do processo analítico. Entendo que a hibernação de afeto do analisando ressentido pode imobilizar também o analista, e a dupla pode ficar mergulhada em um conluio inconsciente intersubjetivo. M. e W. Baranger (1978), citados por Kancyper (1991/1994), falam sobre o baluarte no processo analítico como formação artificial, subproduto da técnica analítica. Obstáculo ao processo, uma vez que retira um setor mais ou menos amplo do mundo interno do analisando. Cristaliza a estrutura, e a relação da dupla fica imóvel. Tratase de uma lua-de-mel, ou idílio transferencial-contratransferencial, ou o seu inverso. Com aparente mobilidade, a dupla analítica realiza um trabalho que parece satisfatório, cegando para a alteração da direção do processo. Essa força das defesas em análises estagnadas também é abordada por Steiner, que privilegia o termo refúgio psíquico. Caracteriza-o como área de relativa proteção e tranquilidade contra as tensões, quando qualquer contato com o analista é visto como uma ameaça ou estado mental de estagnação e isolamento do paciente. Uma área mental em que a realidade não precisa ser encarada, e a fantasia e onipotência podem coexistir. Um tipo de refúgio é aquele onde o paciente é dominado por mágoa e ressentimento. Outra possibilidade é a ocorrência da reação terapêutica negativa dentro do processo analítico, quando o analisando, em parte, se liga à figura de vítima privilegiada, se contrapondo ao sucesso da análise.
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Descrevi noutro lugar como, no tratamento analítico, deparamos com pacientes a quem, devido ao seu comportamento perante a influência terapêutica do tratamento, somos obrigados a atribuir um sentimento de culpa ‘inconsciente’. Apontei o sinal pelo qual tais pessoas podem ser reconhecidas (uma ‘reação terapêutica negativa’) e não ocultei o fato de que a força de tal impulso constitui uma das mais sérias resistências e o maior perigo ao sucesso de nossos objetivos médicos ou educativos. A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o mais poderoso bastião do indivíduo no lucro (geralmente composto) que aufere da doença — na soma de forças que lutam contra o restabelecimento e se recusam a ceder seu estado de enfermidade. O sofrimento acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas para a tendência masoquista. (Freud, 1996/1924, p.183)
Segundo Kancyper (1991/1994), Rosenfeld estudou o aspecto defensivo do ressentimento ante os impulsos invejosos inconscientes, durante a análise. Nesse processo, quando se desfazem as construções até delirantes que sustentam o ressentimento, ergue-se o reconhecimento discriminativo intersubjetivo e a própria incompletude e alteridade são assumidas. A partir deste momento, o analista lidará com a inveja consciente de seu paciente, pois este reconhece o exterior com características preciosas, elas não são mais exclusivas a si. Consequentemente, o sujeito se reestrutura e seu objeto também. Os afetos começam a sair do congelamento, e a possibilidade de evolução na análise aumenta. Caso predomine a destrutividade, a inveja tomará conta dos afetos do analisando, e este terá como missão destruir o analista, manifestação da pulsão de morte e revelada pela identificação projetiva. Verá no analista os pais que teve e que lhe mostravam sua dependência, reforçando o ódio contra este objeto, o que pode provocar desejo de intrusão parcial ou total no objeto bom, a serviço de Tanathos, para dominar e controlar. Controle, inclusive, que evita o desaparecimento do objeto para, assim, não impedir o acerto de contas. Evidenciando, portanto, a dificuldade de viver em dependência, prefere aniquilar seu nascimento, recusar a existência do objeto como bom. O paciente pode abandonar a análise, mas antes poderá agir em meio a atuações, desqualificando o analista e suas demais relações objetais. Para o sujeito ressentido, conforme Kancyper (1991/1994), o rancor oferece objetivo de ataque e, por outro lado, em alguns, a gratificação pelo triunfo. O sujeito se alimenta do ardor das feridas expostas. O ressentimento se relaciona diretamente com o sentimento de perda, gerando ódio, sentimento de injustiça e investimento narcísico à mutilação, onde a restauração pode não ser adequada.
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Segundo Kohut (1984), o fanatismo da necessidade de vingança e a compulsão pelo acerto de contas após ofensa sofrida não são atributos de uma agressividade integrada aos propósitos adultos do ego. Ao contrário, foram mobilizadas a serviço de um self grandioso-exibicionista arcaico e que se desenvolveu dentro de uma percepção arcaica da realidade. Um analisando refere: “O ressentimento é como um demônio dentro de mim. Tive que enjaulálo para seguir minha vida. Minha mágoa de meu pai passou, acredito que a poeira assentou. Fiz isso por ele, mas mais por mim, para eu conseguir viver de outra forma. Se olhar muito para o demônio, ele me pega outra vez”. A vingança é um fenômeno cheio de amarras, pontos cegos. Usualmente, iniciase com ofensa realizada ou imaginada que gera desejo de represália razoável. Porém, se tal ofensa atinge especialmente os objetos bons internos, não havendo retorno egóico seguro para eles, o sujeito se alimenta da ideia de vingança. Inicialmente vista como pulsão de vida, pois mobiliza o objeto no sentido do ego ideal, se transforma, a posterior, em pulsão de morte declarada. O ruminar indigesto de ódio e os dilacerantes ataques o empobrecem, o matam aos poucos. “Eu preciso falar da mágoa que tenho da minha mãe. Não é porque ela morreu que virou santa. Eu me lembro bem das coisas que passei. Lembro que, quando criança, morava perto do estúdio do programa da Xuxa. Queria ser paquita, eu era uma criança bonitinha, loirinha, tinha boas notas. Vivia pedindo para minha mãe me levar e ela ficava enfurnada no quarto cheirando cocaína. Pedia que eu não contasse nada e se irritava quando eu falava dos meus desejos. Para ela, era tudo bobeira de criança e, assim, fui ficando sem querer as coisas, sem acreditar em mim mesma”. Quando a dupla analítica consegue trabalhar a culpa pelo ataque, é possível se ter a reparação, a integração, através do perdão aos objetos e de si, pelo seu fazer ou sua intenção. E, para alcançar este conteúdo, penso ser preciso se valer do cuidado pelo terceiro analítico intersubjetivo. Expressão de Ogden (1995) para situar uma experiência individual, criada no setting, um terceiro sujeito que surge pela interação inconsciente analista-analisando, e que permite a avaliação da vitalidade do processo analítico. Conforme Steiner (1993b/1997), o perdão exige o reconhecimento da coexistência de sentimentos integrados bons e maus, de maldade bastante para justificar a culpa e de bondade bastante para merecer perdão. Penso que esses aspectos expandem as questões relativas à posição depressiva de Melanie Klein. Voltando à história de Augusto Matraga, após ser jogado da ribanceira, um casal de negros que morava nas redondezas encontra o corpo e, quando ia enterrá-lo, percebe 146
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que Augusto estava vivo. Cuidam dele, do corpo e da alma. Augusto entra em depressão. Agora, depende deste casal para viver. Um bebê recebendo investimentos libidinais. Talvez não tivesse sido catexizado, assim, pelo afeto. É possível, então, que se inicie o processo de reparação. Agora, ele tem representação da figura materna e paterna, acolhimento e lei, sendo possível uma renúncia pulsional, a renúncia da agressividade e a possibilidade de desenvolver relações interpessoais. Vale lembrar que, neste período de dor da alma, um padre conversou com Augusto e lhe disse que chegaria sua hora e sua vez. Augusto continuou a viver seis anos com o casal, cultivando a ideia de ir “para o céu nem que fosse a porrete”. Chega ao vilarejo um bando de jagunços que Augusto abriga com alegria, trataos bem até o momento da partida, onde ele recusa o convite de pertencer ao bando e o oferecimento de vingança. Neste momento, Augusto esboça movimentos reparatórios. Depois de um tempo, Augusto também resolve partir do vilarejo e, em um burrinho chega a um povoado que está em alvoroço, porque o bando de jagunços iria acertar a morte de um membro deles. O desfecho se dá com Augusto usando sua violência, vai matar e ser morto pelo chefe dos jagunços para defender o inocente que seria atacado. Já agonizando, Augusto é reconhecido por João Lomba, “velho conhecido e meio parente”. Nesse momento, ele é nomeado como Matraga, morre, então, com a sua identidade reencontrada (Meneses, 2010). Podemos pensar que tal identidade foi reencontrada após o recebimento do afeto, veículo para o período de reparação. Uma identidade antes preenchida pelo rancor, quase nada munida de afetuosidade, que se valia de opressão e desejo de vingança, passa a ser domada no sentido da existência de altruísmo e sensação de esperança, esperança talvez de continuar experimentando sentimentos bons. A seguir, uma sessão analítica onde são trabalhados, assim como na história de Matraga, a existência do ressentimento, os prejuízos para o ego, e o processo de reparação: A: Consegui quebrar meu orgulho e ligar para minha mãe. Foi muito desgaste, muito ódio, ressentimento. Mas percebi que tenho que ir por outro caminho. Quero tentar perdoar; fazer a arte de se contrariar. Quando o ódio vir, pensar no perdão. M: Entendo que, para isso, você também precise se perdoar, se permitir ser perdoado por você e pelos outros. A: Difícil. É um processo longo. Minha mãe acha que eu estava ligando para pedir perdão. Não era isso. Palavras comovem, mas gestos arrasam. Quero fazer isso, não só falar. Quero sentir que perdoei, não só chegar aqui com você e falar da boca para fora. Eu percebo que não sinto mais, estou frio. M: Frio, sem afeto, mas acredito que você sente, mas é quase sempre o mesmo ódio, você re-sente o ódio e re-sentindo se impede de sentir afetuosidade. 147
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A: O problema não é minha família, é em mim. Eu fico chateado comigo, com o que eu não fiz, com o que perdi por causa do ódio. Fiquei ressentido no trabalho, achando que as pessoas me diminuíam. Depois, percebi que você começar sem saber tudo é normal, faz parte do começo. M: O ressentimento é levado por você para suas relações. A: Eu fico querendo diminuir a dor que sinto e, aí, ataco os outros. Quero me envolver com minha namorada. Às vezes, ofereço para ela coisas que nem tenho. Mas “ninguém é tão rico que não possa receber e tão pobre que não possa dar”. Mas ela não é o meu porto seguro. Silêncio. Ela não é minha mãe. Mas a relação com minha mãe está distante, estamos separados. M: Lembrei do episódio em que seu pai pediu que ela lhe tirasse do colo e desde então, você sente não ter recebido colo, acolhimento, afeto. E, talvez, esta seja sua maior dor. A: Aquilo foi marcante, uma separação. Hoje, ela quer me ajudar financeiramente. Já é alguma coisa. Tem gente que nem isso tem, mas o afeto que eu queria mesmo era o da minha mãe. Não era só o dinheiro dela, era o amor. Hoje a ideia de vingança passou, porque preciso viver outra vida. M: Trocar a vingança pela esperança. Esperança em você, na sua afetuosidade. A: Isso mesmo, me encher de sentimentos bons para minimizar a mágoa, para eu dar conta de seguir acreditando que vai dar certo. Cada um tem a sua hora e a sua vez, que pode ser entendida como a hora da vingança, do acerto de contas ou da reparação, da integração psíquica. Esta última é uma conquista que se pode obter também via trabalho analítico, com enfoque no abandono das exigências narcísicas e busca de satisfações que atendam ao principio da realidade.
About resentment and its implications on clinic Abstract: The present article discusses the mental imprisonment of the subject experiencing the feeling of having been or being humiliated. With sense of narcissistic injury, he is obsessed with a revenge against that or what the subject believes to be responsible for his suffering. Describes the relationship between resentment and revenge, and how the compulsion on repetition keeps the subject resentful. It also discusses how this state can delay or prevent the analytic process. Keywords: resentment; revenge; narcissism; forgiveness; reparation.
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Acerca de resentimiento y sus implicaciones en la clínica Resumen: Este artículo analiza la prisión mental del sujeto que experimenta la sensación de haber sido o de ser humillado. Con la sensación de herida narcisista, el queda obsesionado por la idea de venganza contra aquel o lo que cree ser el responsable por su sufrimiento. Describe la relación entre resentimiento y venganza y como la compulsión a la repetición mantiene el sujeto resentido. También analiza como este estado puede retrasar u impedir el processo analítico. Palabras clave: resentimiento; venganza; narcisismo; perdón; reparación.
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Marina Abdalla de Souza Porto SQS 402, Bloco O, Apto 202, Asa Sul 70.236-150 Brasília/DF marina_abdalla@yahoo.com.br © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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Os primórdios do psíquico, a origem da mente na espécie humana e os fenômenos psicopatológicos1 Marisa Pelella Mélega2
Resumo: A autora tece inicialmente considerações sobre os fatores ambiental e constitucional na formação da personalidade. Revê então a hipótese de Bion sobre os primórdios do psíquico em que o intenso terror estaria associado a registros talâmicos e vivências antes do nascimento. Cita as contribuições de Meltzer acerca de uma vida tribal, que se encontra nas profundezas da mente, e manifesta-se por meio de processos corpóreos (Meltzer, 1986). Lembra-se das contribuições de Rascowsky a respeito do fenômeno do filicídio e da predação quando há fraturas nas funções parentais ou nas grandes catástrofes da história. Por fim, traz ao nosso conhecimento trabalhos de Lusetti, autor italiano, que relaciona antropologia e psicanálise para elaborar a hipótese canibalística da origem da mente na espécie humana. Palavras-chave: estrutura psíquica; terror; vida tribal; registros talâmicos; filicídio e canibalismo.
Por que abordar este tema em um congresso de psicanálise, se a nossa ciênciaarte tem como foco principal o estudo das relações humanas? O interesse tem origem em minha clínica com psicóticos e com borderline. Eu precisava invocar frequentemente o fator constitucional para responder a questionamentos acerca da origem das perturbações das personalidades em análise. Procurei divulgar tais questionamentos por meio de textos que fui apresentando aos meus colegas, a saber: 1993 - Constituição versus ambiente (caso clínico de criança de 22 meses); 2006 - Redimensionando o papel do rêverie na estruturação psíquica: conjecturas com base em experiências clínicas e em pesquisa; 2007- Repensando os critérios de analisabilidade – um depoimento. 1
Apresentado durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise – 25 a 28 de Setembro de 2013 – em Campo Grande – Mato Grosso do Sul.
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Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SPBSP).
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Os primórdios do psíquico, a origem da mente na espécie humana e os fenômenos psicopatológicos
Em todos esses textos, o fator ambiental não era suficiente para compreender a origem dos estados mentais. E continua sendo difícil delimitar o que é constituição na formação psíquica. Até há pouco tempo, a constituição era entendida como resultante do patrimônio filogenético e ontogenético (a formação do ser no período intrauterino), e não se sabia muito bem como a vida intrauterina influenciava a formação psíquica. Psicanalistas como Bion e Klein afirmaram que a inveja primária, a voracidade e a intolerância à frustração fazem parte da constituição da personalidade. Em 1978, Bion falava de uma mente desenvolvida antes do nascimento e que se mantinha inalterada e ativa após o nascimento. Mattos e Braga (2009) reveem essa hipótese de Bion sobre os primórdios do psíquico. Em seu trabalho, eles chamam a atenção para registros associados a órgãos atuantes precocemente no funcionamento somático (tálamo e adrenais) antes que o córtex cerebral possa fazer registros com potencialidade de representação. Pois bem, nesse contexto, Bion conjecturou que sentimentos de culpa muito primitivos seriam capazes de desencadear sanções cruéis a ponto de serem mortais. Sugeriu a existência de uma moralidade primordial que se manifesta impondo proibições sem que tenha havido experiência para tal. Bion conclui que tal sentimento de culpa primitivo encobriria um estado de intenso terror e estaria associado a registros talâmicos e glandulares de vivências antes do nascimento, chamando a atenção para uma base somática. Mattos e Braga (2009) acreditam que conceitos de terror sem nome e mudança catastrófica tenham sido tentativas prévias de Bion para formular a experiência da mente do indivíduo já nascido, por não conseguir dar continência para estes registros primordiais. Há que se considerar ainda o legado que Bion nos deixou, ao sugerir em Experiências em grupos, uma vida interna de tipo de grupo de Suposto Básico, em que somente um dos três Grupos pode estar ativo em um dado momento, enquanto os demais se mantêm em um nível “Protomental”, em íntima relação com os processos corpóreos. Segundo Meltzer (1986), embora não explicitado por Bion, é possível discernir uma insinuação acerca de uma vida interna de tipo de Grupo de Suposto Básico. Esta evocação de uma vida primitiva, talvez tribal, nas profundezas da mente, capaz de manifestar-se na superfície como comportamento grupal ou por meio de processos corpóreos, é bastante impactante, e parece sugerir que devemos pensar nos estados do desenvolvimento corporal, incluindo os embrionários e os últimos meses ou semanas da vida fetal, como podendo ter uma representação diferenciada na estrutura do self.
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Mas tal representação pertence a um mundo caracterizado por graus de excitação, por regras e medidas que contrastam com o mundo da mente individual, simbólica, com seus atributos de observação, pensamentos e julgamentos. No mundo dos Supostos Básicos, a aprendizagem é feita por recompensas e castigos, e a virtude é a obediência. Meltzer, partindo desta ideia de Bion, conjectura o seguinte: suponhamos que o nível primitivo do Suposto Básico da mente, organizado como um establishment, seja suficientemente forte para poder ter acesso direto aos complexos processos hormonais, hematológicos e imunológicos. Suponhamos que este establishment se encarrega destes processos por ter seu monopólio. Continuemos supondo que, para poder sobreviver no mundo interno e externo, as partes pensantes da personalidade devem acatar as regras, tanto do establishment interno, como do externo, e também abrir caminho para conseguir um lugar a fim de desenvolver os interesses apaixonados e as relações íntimas, que são o coração da vida da mente. Se este lugar cresce, pode-se chocar com as demandas do establishment interno e temos, então, “ações subversivas” ou “perturbações da ordem pública”. Em suma: existe um nível primitivo da vida mental — o nível Protomental ou Soma-psicótico — que segue os princípios que regem a organização social-tribal das partes pré e pós-natal da personalidade, em que a cisão e idealização do self e dos objetos tendem a ser mais severos. Se esta severidade não for modulada por experiências suficientemente boas (intra e extrauterinas), o nível Protomental tende a ficar muito cindido das estruturas pensantes e socializadas da personalidade (que evoluem junto com o domínio da linguagem) e consegue exercer uma forte influência sobre o caráter social, por ser excessiva a ansiedade persecutória do tipo mentalidade de grupo (ansiedade catastrófica, temor ao caos e ao reino do terror). Quando a cisão e idealização são mitigadas por boas experiências, os objetos parentais se distinguem claramente do líder do Suposto Básico e, com isso, tais objetos podem lutar contra o líder impedindo que a ordem do corpo e da mente seja invadida pelo caos. J. Wilheim (2005) tem dado importância às repercussões psíquicas originadas de um hipotético acontecimento traumático ocorrido nos primórdios de nossa existência biológica. Em seu trabalho Síndrome do sobrevivente da concepção gemelar: o gêmeo desaparecido, ela menciona que, recentemente, ficou se sabendo da relativa e frequente incidência de concepções múltiplas que desaparecem até a décima segunda semana de gestação, permanecendo apenas um dos fetos. Cita Aray J., com El estress prenatal el yo primitivo y el comienzo de las angustias paranoides, catastróficas e primitivas (1990), e também Piontelli, Do feto à criança (1995), que evidencia a alta incidência do gêmeo desaparecido durante a gestação, fenômeno que passou a ser acompanhado
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Os primórdios do psíquico, a origem da mente na espécie humana e os fenômenos psicopatológicos
pela ultrassonografia. Um dos gêmeos cresce às custas do outro, que deve lutar para se alimentar e poderá até ser ferido mortalmente pelo cogêmeo. É sobre a luta pela sobrevivência, o fenômeno da predação que iremos tratar logo mais. Retomando a hipótese de Bion das vivências intrauterinas, terror hipotalâmico e registros somáticos antes do nascimento, portanto ontogenéticos, a pergunta seguinte é: Por que não avançar pensando no patrimônio filogenético? Esta investigação poderia nos levar à origem da mente humana! Este voo teria características antropológicas! O autor W. Lusetti, com longa convivência clínica com psicóticos, empreendeu esta jornada e se propos, no livro Il circuito della sofferenza (2011), uma meta a ser perseguida com instrumentos clínicos, com referências ao pensamento biológico e evolucionista contemporâneo e com hipóteses especulativas em alguns momentos. A meta é fundamentar a hipótese de uma “explicação” cabalística quanto à origem e à estrutura formal da mente e quanto à sua conotação persecutória. O autor pensa conseguir, deste modo, compreender e ligar duas séries de características humanas: de um lado, a linguagem e o pensamento simbólico, particularmente a estrutura simbólica do tipo religioso, e mágico do sacrifício, típico do pensamento humano, principalmente o “primitivo” e que se manifesta dentro de um grandioso fundo persecutório, muito análogo ao das doenças mentais; e, de outro, a sexualidade perene e a conformação neoténica3 de nossa espécie. Tais características explicariam algumas patologias do comportamento sexual da espécie, como as perversões sexuais e o incesto. Quanto à “biologia do homem”, este autor pensa que o canibalismo, em sua forma primária, de canibalismo contra a prole, tenha evocado na nossa espécie uma resposta sexual de caráter anticanibalístico e pacificador, e tal resposta conseguiu transformar a sexualidade periódica e centrada no estro das fêmeas pré-humanas em sexualidade perene, tornando-se um instrumento do tipo pacto primordial entre presa e predador, uma permuta da carne por sexo. As mães se tornaram perenemente receptivas no plano sexual em troca de salvar a própria prole. Em resumo, Lusetti entende que o canibalismo evocou uma segunda resposta anticanibalística, agora com fortíssimas implicações culturais, uma resposta linguística, produzida também com finalidade pacificadora. Entendemos que tais técnicas de apaziguamento linguístico da predação canibalística foram tomando o lugar da sexualidade e depois evoluíram, por meio da linguagem simbólica que até hoje nos caracteriza, para a consciência, ou seja, em um sistema de monitoramento, controle e inibição, voltado especialmente aos aspectos canibalísticos, predadores que são próprios do homem.
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Capacidade de reprodução no estágio larvar e persistência de caracteres larvais no estágio adulto.
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O primeiro núcleo da consciência entendida como “sensor antipredatório” teria sido provavelmente de tipo alucinatório e, só depois, se tornaria “moral” e afetivo. A consciência, porém, conseguiu elaborar a singular estrutura autodissociada, auto-observadora e auto-inibidora, que bem conhecemos e que tanto nos impacta, valendo-se de uma identificação preliminar da presa com o predador. Isto, essencialmente com a finalidade de ajudar o sujeito, em perigo de ser capturado, para poder prever o ataque predatório, descobrindo e combatendo sua própria predatoriedade interior, a qual, não controlada adequadamente, poderia ser ativada para fora, para o predador, com ataques letais. Para concluir: a consciência com a finalidade de proteger o sujeito dos perigos predatórios externos tornou-se um “sensor antipredatório” dentro do self e, então, evoluiu em forma tipicamente humana para uma “autoconsciência reflexiva”, para um autocontrole e em automonitoramento de ordem, “moral”, em senso lato. Nesse sentido, entendemos que o canibalismo pode explicar algumas características fundamentais do homem, de natureza biológica e cultural, como a sexualidade perene e as perversões sexuais, a consciência, os distúrbios psicopatológicos e a linguagem, colocando todas estas características em um único quadro evolutivo. Quanto ao “sofrimento mental” que caracteriza nossa espécie, Lusetti pensa que os fenômenos psicopatológicos possam ser muito bem explicados pela origem canibalística da mente humana. O canibalismo de fato – ou melhor, qualquer fenômeno persecutório “primário” – nos ajuda a explicar muitos fenômenos psicopatológicos. As formas e os conteúdos mais graves do pensamento psicopatológico dito “psicótico” poderiam ser interpretados como respostas compensatórias à predação e ao canibalismo como, por exemplo, as respostas delirantes-alucinatórias, as quais são quase todas formas de “alarme antipersecutório e antipredatório, originadas ocasionalmente por estímulos externos e voltadas a fornecer respostas para o “externo”; e as respostas maníaco-depressivas, nas quais a perseguição contra a qual reagem é, principalmente, aquela “de dentro” e é combatida por meio da culpa e da “consciência moral”. Franco de Masi (2006), outro autor que se dedica ao trabalho com psicóticos, nos traz algumas ideias que, de certo modo, vão em direção a um substrato biológico dos quadros psicóticos. Ele sugere que a precoce e prolongada distorção das relações iniciais cria as premissas para uma percepção alterada da realidade psíquica. O autor comenta a dificuldade e até a impossibilidade de se obter algum sucesso terapêutico frequentemente se chegando à interrupção da terapia psicanalítica. Ele ressalta que uma razão do insucesso depende de se conhecer pouco acerca da natureza dos distúrbios psicóticos, principalmente da esquizofrenia, por não conhecermos suas origens. Imaginando um diálogo entre Bion, Lusetti e De Masi, 155
Os primórdios do psíquico, a origem da mente na espécie humana e os fenômenos psicopatológicos
poderíamos sugerir que o nível Protomental, Soma-psicótico, que segue a organização social-tribal das partes pré e pós- natal da personalidade, precisaria ser modulado por experiências suficientemente boas (intra e extrauterinas). Se este nivel ficar cindido das estruturas pensantes, poderá surgir como formas e conteúdos altamente persecutórios, medo ao caos e terror. Isso equivaleria à emergência do aspecto da mente original canibalística, segundo Lusetti? Seriam respostas da personalidade à predação e ao canibalismo, como as formas de alarme “antipersecutório e antipredatório dos estados delirantes alucinatórios”? Lusetti afirma que os distúrbios Anoréxico-Bulímicos, para dar um exemplo, têm uma evidente característica de “resposta” antipredatória e anticanibalística. Pacientes com esses distúrbios regulam, em forma ritual, a própria relação com o mundo externo, que sentem como profundamente persecutória e “devoradora”, voltando a predação para si próprios e administrando-a com a finalidade de controlá-la e impedir que tal controle seja assumido por um predador. De acordo com De Masi, as personalidades com estrutura psicótica parecem ter, no início da vida psíquica, “algo autodestrutivo”, que se insinua no interior das áreas mentais predispostas ao desenvolvimento da capacidade de pensar e de perceber as emoções. Poderia corresponder ao nível Protomental, de Bion? Ou à mente ancestral canibalística, de Lusetti? De Masi sustenta o ponto de vista que considera a base biológica das psicoses. Seria, para nós que estamos promovendo este diálogo, a mente ancestral, filogenética, se revelando sob certas condições e abrindo caminho numa estrutura psíquica inicial deficitária, apontada tanto por Bion como por Lusetti? Fim do diálogo imaginado, por enquanto.
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The psychic early days, the origin of the mind in the human specie and the psycopathological phenomena Abstract: The author initially presents some considerations about the environmental and constitucional factors in personality formation. She than reviews Bion’s hypothesis about the early days of psychic when intense terror would possibly be associated to a thalamic records and experiences before birth. She mentions Meltzer’s contributions concerning a tribal life that is in the depths of the mind and manifests itself through bodily processes (Meltzer, 1986). The author also recalls the Rascowsky contributions about the filicide phenomenon and the predation when there is a fracture in the parental roles or in the biggest catastrophes in history. And, finally, she mentions the Lusetti’s work, an italian author that makes a relationship with anthropology and psychoanalysis in order to develop the cannibalistic hypothesis of the mind’s origin human species. Keywords: psychic structure; terror; tribal life; thalamic record; filicide, cannibalism.
Los primitivos del psíquico, la origen de la mente en la especie humana y los fenómenos psicopatológicos Resumen: Los orígenes del psíquico, el inicio de la mente en la especie humana y los fenómenos psicopatológicos. El interés por este tema se origina en mi clínica con pacientes psicóticos y con borderlines, en que, a menudo, necesité invocar el factor constitucional para contestar a los cuestionamientos sobre el origen de las perturbaciones de las personalidades en análisis. En 1978, Bion hablaba de una mente desarrollada antes del nacimiento y que se mantendría inalterada y activa después del nacimiento. Es muy impactante la evocación de una vida primitiva, quizás tribal, ubicada en las profundidades de la mente y siendo capaz de manifestarse en la superficie como un comportamiento grupal o mediante procesos corporales. Retomando la hipótesis de Bion, sobre las vivencias intrauterinas, terror hipotalámico y registros somáticos antes del nacimiento, por lo tanto ontogenéticos, la pregunta que le sigue es: ¿Por qué no avanzar pensando en el patrimonio filogenético? ¡Esta investigación podría llevarnos al origen de la mente humana! ¡Este vuelo tendría características antropológicas! Palabras clave: estructura psíquica; terror; vida tribal; registros talámicos; filicidio; canibalismo.
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Referências Bion, W.R. (1963). Experiências em grupos. Buenos Aires: Paidos. De Masi, F. (2006). Vulnerabilità alla psicosi. Milão: Raffaello Cortina. Junqueira Mattos, J.A. & Braga, L.C. (2009). Consciência moral primitiva: um vislumbre da mente primordial. Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 43, p.141-158. Junqueira, L.C. (2009). Acomodações do espaço mental nas tramas da cidade. In: A psicanálise nas tramas da cidade, pp. 129-141. São Paulo: Casa do Psicólogo. Lusetti, V. (2008). Il Cannibalismo e la nascita della coscienza. Roma: Armando. Lusetti, V. (2011). Il Circuito della sofferenza – Uno studio evoluzionistico sulla follia. Roma: Armando. Mélega, M.P. (1991). Constituição versus Ambiente: um diálogo decisivo na formação e transformação psíquica”. Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 27, nº 4, pp. 681-705. Meltzer, D. (1986). Studies in extended metapsychology, p.38. Perthshire: Clunie Press. Raskovsky, A. (1959). El psiquismo fetal. Buenos Aires: Paidos. ____________ (1985). El Filicidio. Buenos Aires: Orion. Spignesi, S.J. (2006). As cem maiores catástrofes da história. Rio de Janeiro: Difel. Wilheim, J. (2005). Síndrome do sobrevivente da concepção gemelar: o gêmeo desaparecido. Apresentado na SBPSP, Out. 2005.
Marisa Pelella Melega Av. Vereador José Diniz, 3720 Conj. 202, Campo Belo São Paulo/SP pmelega@uol.com.br © alter Revista de Estudos Psicanalíticos
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Elogio ao amor Editora Martins Fontes – Selo Martins, 2013 Autores: Alain Badiou e Nicolas Truong Resenhado por: Alexandre da Costa Pantoja
O livro Elogio ao Amor foi produzido a partir de um diálogo público sobre o amor entre o filósofo Alain Badiou e o jornalista e escritor Nicolas Truong, sendo o primeiro o entrevistado e o segundo o provocador, dentro da série “Théâtre des Idées” [Teatro das Ideias], organizada junto ao Festival de Avignon (que promove apresentações de teatro contemporâneo), na França. “Uma mistura de teatro, multidão, amor e filosofia...”, segundo Badiou. No primeiro capítulo – O amor ameaçado, Badiou parte de um anúncio de um site de relacionamento, o qual promete um amor com seguro total: “Tenha amor sem ter o acaso”, esse era um dos slogans do site. Diante disso, o autor faz uma análise das ameaças que, em sua visão, corre o amor no mundo contemporâneo. A primeira, ele denomina como a ameaça securitária, que, em vários aspectos, se parece com o antigo casamento arranjado, onde toda a potencialidade da surpresa do encontro, a possibilidade de descoberta, a aventura, a poesia do encontro amoroso são deixadas em segundo plano para se obter a “certeza” da felicidade. Uma segunda ameaça seria a negação da importância do amor, sendo este colocado em um mesmo plano dos prazeres da vida, não considerando “qualquer experiência autêntica e profunda da alteridade com que o amor é tecido”. De acordo com Badiou, o risco do amor não seria eliminado, mas, sim, transferido para o outro da relação, não sendo assumido pelo sujeito do amor, que não deve sofrer as consequências da relação a dois. Isso parece ocorrer em consonância com a sociedade moderna, na qual o egoísmo e o consumismo são incentivados pela indústria do prazer solitário, que tem no mundo internético seu meio ideal. Haveria a necessidade de reinvenção do amor, a inclusão do risco e da aventura, características deste em um ambiente moderno. No capítulo seguinte, 2 – Os filósofos e o amor, Badiou discorre de maneira polêmica sobre a relação entre sua profissão – filosofia – e esse objeto de apreciação – o amor, versando sobre como alguns filósofos enfrentam o tema, inclusive discordando das opiniões da maioria deles. Ele Inclui em sua lista filósofos como: Platão, Arthur 161
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Schopenhauer, Sören Kierkegaard, Emmanuel Levinas e Simone de Beauvoir. Traz também ideias do psicanalista Jacques Lacan, o qual afirma que não existe relação sexual na sexualidade e que o amor é que surge no lugar desta não relação, é nele que o sujeito vai além dele mesmo, além do narcisismo. Schopenhauer seria o representante do antiamor, para o qual o amor torna possível a perpetuação da espécie humana, que não teria valor. Para Kierkegaard, seriam três os estágios da existência: o estético (a experiência do amor é a da vã sedução e da repetição); o ético (o amor é verdadeiro e experimenta sua própria seriedade); e o religioso (caso o valor absoluto do compromisso seja sancionado pelo casamento). Em Platão, a experiência amorosa é um impulso para algo que ele vai chamar de Ideia, que Badiou considera a passagem da pura singuralidade do acaso para um elemento que possui valor universal. Em A construção amorosa, o 3° capítulo, Badiou aborda a questão da duração do amor, tema por qual ele se interessa profundamente. Para ele, o amor não se resume ao encontro, que seria a formação do Um. O que seria uma concepção romântica do amor, onde ele é, de certa forma, abrasado, consumado e consumido nesse momento – concepção rejeitada por Badiou. Sem negar a importância do encontro, o autor define que o amor é a construção da vida entre duas pessoas, com subjetividades infinitas, com diferenças, e que irão experimentar o mundo de uma nova forma, aventurosa ou contingente. A essa experiência, ele dá o nome de “Cena do Dois”. O amor seria uma construção duradoura, uma aventura obstinada, que não se rende aos primeiros obstáculos e divergências. Discorda da visão pessimista moralista que concebe o amor como um ornamento do desejo sexual, uma construção imaginária com vistas à reprodução da espécie. Para ele, o amor envolve o desejo – e não é só o desejo –, referese à totalidade do ser do outro, sendo a realização do desejo sexual, a entrega do corpo, o símbolo material dessa totalidade. No capítulo 4 – A verdade do amor, a verdade proposta pelo amor é ser uma experiência totalmente surpreendente sobre o “Ser Dois”, vivida pelo prisma da diferença, e não uma experiência solitária. Isso seria a característica universal do amor, por isso mobiliza a todos. Essa verdade quando declarada, no “eu te amo”, em todas as suas variantes, fixa o acaso do encontro, dando início a uma duração, assumindo ares de destino, uma construção, uma necessidade. Daí o clima tenso e carregado que uma declaração de amor adquire, podendo ser longa, difusa, confusa, complicada, declarada e redeclarada. Um compromisso assumido, uma fidelidade, no sentido da necessidade de vencer o acaso dia após dia, inventando uma duração, uma eternidade que deve se realizar da melhor maneira no tempo da vida, sendo a felicidade amorosa a prova dessa possibilidade. O autor se opõe à ideia de que o filho é o verdadeiro destino do amor, o retorno à ordem do Um. O filho seria um ponto, em seu conceito, um momento particular na duração do amor, de reavaliação, de redeclaração, uma redefinição do Dois, um reviver a “Cena a Dois” com esse Um. 162
Elogio ao amor. Editora Martins Fontes – Selo Martins, 2013
Badiou discorre, no capítulo 5 - Amor e política, que os dois elementos são procedimentos de verdade, sendo que o segundo refere-se ao coletivo. No amor, devese buscar saber se os sujeitos são capazes, de, a dois, assumir a diferença e torná-la criativa, sendo a família sua célula básica da propriedade e do egoísmo, responsável por socializar sua gestão. Na política, se são capazes, em grande número, de criar igualdade, tendo o Estado como responsável por sua gestão e normalização. No 6° capítulo, cujo título é Amor e arte, o autor explora a correlação desses dois temas. Na análise de Badiou, os surrealistas teriam como palavra de ordem reinventar o amor. Que seria ao mesmo tempo um gesto artístico, existencial e político. A arte representaria, frequentemente, o caráter associal do amor, pois este não seria redutível a qualquer lei, o pensamento do amor seria contra a força de ordem da lei. Entretanto, os surrealistas só se interessaram pela força do encontro do amor e pouco se interessaram pela duração, na dimensão da eternidade. Sendo esta eternidade, na concepção de Badiou, menos milagrosa e mais laboriosa. “Existe um trabalho do amor, e não apenas um milagre. É preciso estar ativo, tomar cuidado, unir-se consigo mesmo e com o outro. É preciso pensar, agir, transformar. E aí sim, como recompensa do labor, vem a felicidade”.
Em Elogio ao amor, Badiou fala ainda de seu amor pelo teatro, podendo ser este pensado como o momento onde pensamento e corpo são, de certo modo, indiscerníveis. Corpo e ideia se misturam, exatamente como em um “eu te amo”, que é dirigido não só a pessoa, mas a algo que está além e dentro dela. Tanto no teatro quanto no amor, as repetições estão sempre presentes. No primeiro, os ensaios, que fazem o pensamento ir para o corpo, e, no segundo, seria a necessidade de renovar a declaração de amor. Seria objeto do teatro a descrição da fragilidade da ponte que o amor lança entre as duas solidões dos sujeitos que se amam. E o conflito teatral mais comum à luta do amor acidental contra a lei necessária dos padrões morais vigentes seria a busca pela liberdade. Em sua conclusão, Badiou revisita sua visão comparativa entre o amor e o acontecimento social, a política. Enquanto na política sempre haverá a proposta de uma busca de identidade, forma depressiva e reacionária, para o amor, isso seria uma ameaça. O amor afirma a necessidade da diferença, daquilo que é único e não repete, errático e estrangeiro, da dimensão associal do amor, do seu lado selvagem e violento, que se contrapõe à segurança e ao culto identitário da repetição. O autor aborda a questão da visibilidade do amor, do interesse generalizado pelas histórias de amor, o amor sempre e em tudo. Para ele, amar é para além de toda solidão, é estar às voltas com tudo o que no mundo é capaz de animar a existência. 163
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Neste livro, Badiou nos presenteia com uma visão autêntica e controversa sobre o amor, sua correlação com a filosofia, a política e a arte. E, ainda, a maneira pela qual se apresenta na modernidade. Seu interesse por um aspecto pouco explorado do amor, a sua duração, e o uso de uma nova concepção teórica: a “Cena do Dois”, nos dão subsídios para também podermos revisitar e repensar conceitos nas diversas áreas do conhecimento, a partir deste modelo. No caso específico da psicanálise, podemos encontrar nessa discussão feita sobre o amor um convite para podermos arejar, como ele o fez na filosofia, conceitos já tão discutidos como narcisismo, pulsão de vida e de morte, sexualidade, complexo de Édipo, princípio do prazer e da realidade, entre tantos, nos quais o amor está sempre entrelaçado.
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Todos os reis estão nus Editora Três Estrelas Autor: Contardo Calligaris Resenhado por: Maria Lúcia de Aragão Canalli1
Contardo Calligaris é um psicanalista italiano radicado no Brasil. É colunista da Folha de São Paulo. O livro Todos os reis estão nus é uma coletânea de crônicas organizadas pelo jornalista Rafael Carriello, que foram publicadas nos últimos cinco anos sobre diversos temas: políticos, comportamentais ou culturais. Suas crônicas levam à reflexão da existência humana e contribuem para um entendimento sobre as questões da contemporaneidade. O livro está organizado em Apresentação, Introdução e 118 Crônicas de janeiro de 2008 a junho de 2013. O título do livro nos remete ao conto “A roupa nova do rei”, de Hans Christian Andersen: “Um bandido, se fazendo passar por um alfaiate de terras distantes, diz a um determinado rei que poderia fazer uma roupa muito bonita e cara, mas que apenas as pessoas mais inteligentes e astutas poderiam vê-la. O rei, muito vaidoso, gostou da proposta e pediu ao bandido que fizesse uma roupa dessas para ele. O bandido recebeu vários baús cheios de riquezas, rolos de linha de ouro, seda e outros materiais raros e exóticos, exigidos por ele para a confecção das roupas. Ele guardou todos os tesouros e ficou em seu tear, fingindo tecer fios invisíveis, que todas as pessoas alegavam ver, para não parecerem estúpidas. Até que um dia, o rei se cansou de esperar, e ele e seus ministros quiseram ver o progresso do suposto “alfaiate”. Quando o falso tecelão mostrou a mesa de trabalho vazia, o rei exclamou: “Que lindas vestes! Você fez um trabalho magnífico!”, embora não visse nada além de uma simples mesa, pois dizer que nada via seria admitir na frente de seus súditos que não tinha a capacidade necessária para ser rei. Os nobres ao redor soltaram falsos suspiros de admiração pelo trabalho do bandido, nenhum deles querendo que achassem que era incompetente ou incapaz. O bandido garantiu que as roupas logo estariam completas, e o rei resolveu marcar uma grande parada na cidade para que ele exibisse as vestes especiais. A única pessoa a desmascarar a farsa foi uma criança: 1
Membro do Instituto da Sociedade de Psicanalise de Brasília (SBP).
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“O rei está nu!”. O grito é absorvido por todos, o rei se encolhe, suspeitando que a afirmação é verdadeira, mas mantém-se orgulhosamente e continua a procissão.”
Calligaris teve uma forte influência de Kant, como alega na crônica de introdução do livro O nosso jeito de ser, e sua ideia inicial era a de dar cursos e escrever um livro de críticas à subjetividade moderna. Como kantiano, suas críticas não são negativas, nem positivas: “significa descobrir e mostrar o que tornou possível a existência do objeto que está sendo ‘criticado’.” O psicanalista, sempre atento ao que ocorre no mundo, discorre em suas crônicas críticas aos mais diversos assuntos da atualidade. Destaco algumas: “Entre pai e filha”, onde ele usa o filme “À Deriva”, de Heitor Dhalia, para falar sobre o delicado processo pelo qual a menina se torna mulher; “Para que serve a psicanálise?”, quando levanta questões sobre a vida adulta e o paternalismo, por ocasião das eleições no Brasil em 2010; “Homofobia e homossexualidade”, no qual Calligaris traz uma pesquisa feita na Universidade da Geórgia onde indivíduos homofóbicos demonstram excitação sexual diante de estímulos homossexuais. Na crônica “Meus pais são bipolares”, coloca que o termo bipolar se tornou corriqueiro na fala dos adolescentes porque, para eles, “o termo é uma descrição genérica de um estado de espírito dominado por altos e baixos radicais”. Para Calligaris, a personalidade narcisista é a que melhor resume a subjetividade contemporânea e há, no coração dessa personalidade, uma oscilação bipolar, ou seja, o adolescente tem razão: os pais são bipolares. Em junho de 2013, o Brasil viveu várias manifestações populares por todo o país abrangendo uma grande variedade de temas, com grande repercussão nacional e internacional e, nessas manifestações populares, além de expressões pacíficas de estudantes e trabalhadores, houve forte ocorrência de violência e saques no decorrer das passeatas. E o autor, com a crônica que finaliza o livro, “Qual baderna?”, levanta o questionamento: “Por muitos anos, no Brasil, nós nos vimos e fomos vistos como aqueles súditos acríticos da fábula. Este ano de 2013 parece que entrará para a história como aquele momento do grito da criança da fábula de Andersen: O rei está nu!”. Calligaris, como Freud, é um homem atento aos sinais de seu tempo e, por isso, suas crônicas se interessam em pensar a cultura, tanto quanto se dedica à prática clínica. A psicanálise está tão intrincada na cultura atual que já não podemos imaginar o mundo sem seus conceitos básicos e seu jargão peculiar. Psicanalista e excelente crítico da cultura, Contardo Calligaris é um grande observador da realidade do Brasil e de suas transformações sociais. 166
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Orientação ao colaboradores 1.0 Linha Editorial Alter - Revista de Estudos Psicanalíticos é uma publicação da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb), que é filiada à International Psychoanalytical Association (IPA), à Federación Psicoanalítica de America Latina (FEPAL) e à Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI).
1.1 Dados Históricos Idealizada por Virginia Leone Bicudo, pioneira da Psicanálise na capital do Brasil, Alter foi editada, pela primeira vez, em 1970, propondo estabelecer elos entre a experiência da Universidade de Brasília e outras instituições interessadas em estudos psicodinâmicos. À época, a revista teve como subtítulo Jornal de Estudos Psicodinâmicos, posteriormente alterado para Jornal de Estudos Psicanalíticos, mantido até o último número publicado em 2006. Em 2007-8, Alter passou a denominar-se Revista de Estudos Psicanalíticos.
1.2 Objetivos Divulgar a produção psicanalítica, incentivando a reflexão e a discussão das questões específicas da área, bem como as interfaces da mesma com as outras áreas do conhecimento.
1.3 Do material destinado à publicação em Alter Os trabalhos encaminhados para publicação em Alter deverão ser inéditos. Excetuam-se aqueles publicados em anais de congressos, simpósios, reuniões científicas, mesas-redondas ou boletins. Outras exceções poderão ser aceitas, após exame e autorização do corpo editorial.
1.4 Aspectos éticos 1.4.1 O artigo com relato clínico deverá ser objeto de toda atenção do autor para que normas do sigilo profissional sejam rigorosamente respeitadas, 167
Orientações ao colaboradores
especialmente no que se refere à proteção da identidade de pacientes mencionados no texto. 1.4.2 O artigo não poderá conter, ou mesmo insinuar, argumentos considerados ofensivos a terceiros. 1.4.3 O conjunto dos conceitos, critérios e condutas adotados no artigo é de total responsabilidade do autor.
2.0 Encaminhamento dos trabalhos 2.1 Preparação dos originais Alter - Revista de Estudos Psicanalíticos adota a APA (American Psychological Association) para as regras bibliográficas e uniformização de artigos. Os originais deverão ser digitados utilizando-se o editor de textos Word e a fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo entre linhas (incluindo tabelas e referências). A extensão do trabalho não deverá ultrapassar 40.000 (quarenta mil) caracteres, incluindo os espaços. As resenhas deverão ser apresentadas com a extensão máxima de 10.000 (dez mil) caracteres, incluindo os espaços. Os trabalhos a serem submetidos ao conselho editorial da Alter deverão ser encaminhados como anexo de mensagem eletrônica à spbsb@spbsb.org.br solicitando sua publicação. Para outros esclarecimentos, os interessados deverão dirigir-se à Secretaria da SPBsb: Tel: 61 3248-2309 Figuras, tabelas e fotos devem constar de arquivo separado, em formato tiff.
3.0 Avaliação dos trabalhos 3.1 O corpo editorial da Alter é constituído por membros da Sociedade de Psicanálise de Brasília e tem como corpo de consultores psicanalistas membros de outras sociedades componentes da IPA, bem como psicanalistas de reconhecida competência. 3.2 Os manuscritos recebidos pelo corpo editorial, para fins de publicação, serão inicialmente submetidos à avaliação de sua forma, em concordância com as normas gerais de publicação. Em seguida, serão submetidos a dois membros do corpo de consultores para uma avaliação cega. Os autores dos manuscritos, também, não terão conhecimento da identidade dos consultores.
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Nome do autor
Os autores receberão os pareceres com eventuais sugestões de modificações para as devidas providências. Em caso da não implementação das modificações eventualmente sugeridas, os autores deverão enviar a justificativa. No caso de dois pareceres contrários, caberá ao corpo editorial a decisão final acerca da publicação, ou não, do manuscrito enviado.
4.0 Normas gerais 4.1 O texto encaminhado para avaliação deverá apresentar uma folha de rosto contendo: • • • • •
Título do trabalho, resumo e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Nome completo do (s) autor (es). Filiação institucional e/ou titulação acadêmica. Endereço completo. Informações sobre a origem do texto (apresentação em eventos científicos, derivação de trabalhos acadêmicos etc).
4.2 A folha de rosto será destacada e mantida em sigilo pelo editor para preservar a identificação do autor. 4.3 O texto principal também deverá ser acompanhado de resumos (no máximo 150 palavras) em português, inglês e espanhol e de palavras-chave nas mesmas línguas (no máximo 7 palavras).
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Assinaturas Pedidos de assinatura e númeors avulsos: • Assinatura individual (compreendendo 2 exemplares, excluindo números especiais e monografias): À vista: R$ 60,00 Exemplar avulso: R$ 35,00 Exemplares de anos anteriores: consultar a secretaria da SPB • Assinatura para o exterior (porte mínimo): US$ 40 • Números avulsos para o exterior: U$ 20 Nome: _________________________________________________________ Endereço: _______________________________________________________ CEP: ____________________ Cidade: ________________________________ Telefone: _________________ E-mail: ________________________________
Indique com um x • Assinatura anual • Números avulsos 1 2 Ano: _________
Pagamento Fazer um depósito a favor da Sociedade de Psicanálise de Brasília Banco Itaú | Agência: 0919 | C/C: 14022-8 Enviar o comprovante de depósito juntamente com o formulário acima preenchido para: Fax: 61 3364-1553 ou email: alter@spbsb.org.br A revista será enviada para o endereço indicado sem custo de frete.
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conteúdo EDITORIAL Carlos Cesar Marques Frausino
ARTIGOS DE MEMBROS DA SOCIEDADE DE PSICANÁLISE DE BRASÍLIA – SPB APRESENTADOS NO XXIV CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE Realidade sensorial e realidade psíquica: trânsito e turbulência Cláudia Aparecida Carneiro
Medos e paixões nas relações societárias psicanalíticas Crisélia Sanromán Barral Chaves
Crise suicida – sofrimento narcísico e dificuldades nas relações de objeto Daniela Prieto e Marcelo Tavares
A psicanálise de criança na contemporaneidade Maria Silvia Valladares, Liliana Dutra de Moraes Avidos e Suely Marise Pego
DIÁLOGOS Entrevista com Paulo Cesar Sandler Cláudia Aparecida Carneiro e Carlos Almeida Vieira
Entrevista com Luiz Ruffato Mirian Estides Delgado
ARTIGOS A ruptura psicótica Maria de Fátima Rebouças Malva
Uma solução engenhosa ao horror da castração – um apanhado sobre o fetichismo na obra freudiana Ronaldo Manzi Filho
O Banquete de Platão: uma revisita à transferência em Lacan Elizabeth Cimenti
Imbricações entre sexualidade e cultura: um trajeto culturante da pulsão Veridiana Canezin Guimarães
Sobre o ressentimento e suas implicações na clínica Marina Abdalla de Souza Porto
Os primórdios do psíquico, a origem da mente na espécie humana e os fenômenos psicopatológicos Marisa Pelella Mélega
RESENHAS Elogio ao amor Autor: Alain Badiou e Nicolas Truong Resenhado por: Alexandre da Costa Pantoja
Todos os reis estão nus Autor: Contardo Calligaris Resenhado por: Maria Lucia de Aragao Canalli
ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES