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O Lrris Reltraxlo Ilotrrvana, l9ó'[ O IrìrÌiçõcs (ìoÌor i;r, lila
(')(X)ál)
lìtrr Nova tìu'l'rirrtlrrle. 24, ì 2[X)-i30ii l.islxra ( ì a J r i r : r r ' l r r o r ì t t 1 ã o r ì t ' t l e s e t r Ì t r r c t t r o g r ' ú Í i c r rt l e F e l n a t t t l o C a l ì r a n o ' plirliíì<.irçr-rq r l t : r r r < r l ì v o s( ) r l r â n l e l ì t r Ì i st l t . l r i r s t i l c s f e i l , r s < < t t r ra r a t t r e t l e < : o l t r e , M o ç a t t t l t i t ; t t e
OutìÌlrr() 2(X)8 ISIIN : !l7t\-972-7 95-26 | -u
Índice
Nota do azttor à prinzeìra etlição
Nós matámc)s o Cão-Tinhosc-r Inventário
cle imóveis e jaceutes
p.9 11 'J
Dina
63
A velhota
87
Papá, cotrra e eu
97
As rlãos dos pretos
r17
Nhinguitimo
I23
Lui s B erÍìardo
FI onwana
NÓS MATÁIuoS O CÃO-TI1\FIOSO
,,,,,8.j',',,,
Nota
do autor à primeira
edição
Não sei se realmente scrr-rescritor. Acho que al)enáÌs escrevo sobre coisas qlre, âcc)ntecenclo à minha rrolta, se relacionem intimar-nente conrigo ou trtrdu zan f actos cìue me L)areçam decentes. Este livro cle histórias é o testen-ÌLÌnìro erl que tento retratzLr uma série de situações e proceclimentos clue talvez interesse conhecer. Chan-ro-me Luis Augusto Bernzrrdo Manr,rel. O apelido Flonurana não venl ncls nleus documentos. Sou filho cle Rar-rl Bernardo Manuei (Honurana) e cle Nally Jeremias Nhaca. Ele intérprete da administração da Moarnb:r e ela doméstica. Tenho oito innãos. Nasci em Lourenço Marques, errt 1912, e vivr corrl crs mells pais, na Moarnba, até aos 17 anos. Actualmente morc) no Xipamanine, em Lourenço MarclrÌes, e alérn c1efrecluentar o liceu, sou jornalista. As minhas primeiras histórias datanr do início cla antiga págína literária juvenil do jorr-ral "Notícias", o "Desprertar". Todavia qlrase toclos os contos cÌrÌe aì!Ìora sLro pul-rlicaclos começaram a ser feitos anterjormente, cluando ainda não dava tanta atenção a<>ql-re de vez em cluando rne darra pzìra escrever. Foi nutna altura em cÌue, embora prraticasse desportos muito intensarrellte, Lrnl grupo de jornalistas, pintores e poetas erjudolr-me a ler Lrma qLÌ?ìnticlade de livrc>s
Lu is Bcrnarclo
FIonu'trnzr
iÌnportântes, levou-ÍÌle a ver filmes que tinharn cle ser vistcls e emprestor-Ì-me algumas das suas preocupações. Entretanto estuclei desenho e pintura durante algum tempo e participei com vários rrabalhos errl exposições de arte. Tar-nbérr-rescrevi coisas para filmes que não se fizeram e pertenci a Llnìa equipa qLre corìreçol.Ì a fazet urn filne e desistiu antes clo fim. Depois do "Despertar", Eugénio Lisboa, Rui Knopfli e José Craveirirrha entusiasrnarâm -me, p ublicar-rdo algumas das minhas histórias enl jornais. FÌá pouco teÍÌ1po o Pancho, que tornou possível o aparecirnento deste livro, falou-me pelar prirneira vez elrÌ editar alguns contos errr livro. Para a capa e para ilustrar as histórias aproveitaram-se fragmentos de clesenhos que a Bertina tinha feito sem conhecer os meus escritos o que o Pancho usou depoís de ver que eìscoisarsqt-re os desenhos contam são parecidas com as hístórias que fr2. O pedaço cle inventário é de um inventário verdadeiro: â mão d'As mãos dos pretos é a minha.
Lurs BgnNaloo
10
HoNwANA
O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis".. O Cão-f inhoso tinha uns olhos ilzuis qtre não tinharn brilho nenhum, llras erarrr elÌorn-Ìes e estzlvarn serÌrpre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar coÍrìo unra pessoa a pedir qualquer coisa sern qrÌerer dizer. Eu via todos os dias o Cãct-ïnhoso a andar pela sombra do muro em volta do pátio da Escola , a ir para o callto das canlas de poeira das galinhas do Senhor Professor. As galinhas nerìl fugiam, porqr-le ele não se metia corr elas, setnpre 2ì andar devagar, à plocura de uma canra de poeira que não estivesse ocupada. O Cão-T'inhoso passava ct terxpo todo a clornrir, mas às',uezesanclava, e então eu gostava cle o vef, corf-ì os ossos todos à mostra no corpo n-Ìagro. Eu r-runcavia o Cão-Tinlroso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz dissc-r, porque andava todo a tremer, lffesmo sem haver frio. fazendo balanço com a cabeça, corrìo os bois e dando uns peìssostão rnalucc-lsqlÌe par-ecia un-ìa carroça velha. Houve um clia que ele Íìcou cl tempo todo no portào da Escola a ver cls oLltros cães a brincar no capim clo outro laclo da estrerda, a correr, â cc'l:rer, e a cheirarr debaixo clcr li
Ltris
Bern a r-clo lïons'arrr
a
rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia rnais do que rÌÌÌrìca, mas foi a única vez qtÌe o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe clas pernas e as orelhas espetadas de curiosidade. Os outros cães às vezes deixavam de brincar e frcavaÍn â olhar para o Cão-Tinhoso. Depois zar'gavaïÍr-se e punharn-se a ladrar, mas cornc) ele não dissesse nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar debaixo do rabo uns aos olÌtros e a correr. Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso colTÌeçou a chiar coÍÌl a boca fechada e avançou para os outros quâse que a correr, mas com a cabeça muito direita e as orelhas mais espetadas do qLre nunca. Quando os outros se virarerm pâra ver o que ele queria, teve rneclo e parou no meio da estrada. Os outros cães ficaram urn bocado a pensar ncl qLle havianr de fazer por ele estar a olhar pata eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e avançou devagar até onde estava o Cão-Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver e neÍn se mexel-Ì quando o Bobí lhe foi cl-reirar o rabo: olhava sernpre em frente. O Bobí, depois de ficar uÍÌ1a data de tempo a anclar ern volta do Cão-Tinhoso, foi a correr e disse qualquer coisa aos outros - o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a Mitr. osa e o Lulu - e puserârn-se todos a ladrar rnuito zangados para o Cão-Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondi.r, senìpre rnuito direito, rnas eles zangaÍaÍlr-se e avanç2ìralrì para ele a lzrdrar cacla vez mais de aito. Foi então que ele recuor-r coln medo, e voltanclo-lhes âs costas, veio para zrIlscola, corrì o rabo toclo enfiado. T4
N ós r-natírnros cl (lão-'l'inlroscr
Quando passou por lrlim ouvi-o a chiar corrr a boca fechada e vi-lhe os olhos azuis, cheios de lágrimâs e tão grandes a olhar como un-Ìa pessoa a peclir qualquer coisa sem querer dizer. Mas ele nenr olhou para rnirn e foi pela sorrrbra do pátio cla Escolaì, sempre conl a cabeça a fazer balanço corno os bois e a andar conìo uma carroça velira, para o czìnto cl.rs camas cle poeira das galinhars do Senhor Professor. Os outros cães air-rdaficaran urn bocado a laclrar pâraì o portão da Escola, todos zangados, lrras voltaram pariÌ o carpim clo outro lado cla estrada tr)aracontinuar a correr, a rebolar, a fingir que se mordiarn uns aos olrtros, a correr, a correr e a cheirar debaixo do rabo uns dos outros. De vez enì qr-rândo o Bobí olhavtr parâ o portão dzr Escola e, lembrando-se do Cão-Tinhoso, punha-se a ladrar outravez. Os outros, ?Ìclollvi-lo, cleixâvam de brincar e punham-se também a ladrar, rrruito zangados, para o portão da Escolzr.
O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cireiarcÌe pêlos brancos, cicatrizes e mnitas feridas. Ninguém gostava clele porcÌLìe erâ um cão feio. Tinl-ra senlprc nruitas troscas a colrrer-l}ìe as crostas dtrs feridas e cluando andava, zÌsnloscas iam com ele, a \/oaf em voltar e â pot-lslìr rlas crostzìs das feridas. Ninguém gostava cle lhe passerra mão pelas costas colTìo aclsoutros cães. Iìem, a lsaurzr era rì única que tazia isso. O Quim disse-me unr día qr-reo Cão-Tinhoso era muito velho, rxiìs qLre quanclo air-rclaera novo clevia ter sido r-rm cão com o pêìo a brilhar corìro o clo Mike. O Quirr-r disse-tle tambénr clue as fericlersclo Cão-Tinlrcrso eranr por car-r15
Luis
Ì3errr:rrdo Ì Ionwanir
sa da ÉìLrerrae da bomba atórnica, mas isso é ca\)az de ser peta. O Quirn diz muitas coisas clue â gente nem pensa que podem não ser verdadeiras, porqlre quando ele as coÌrta a €ïente fica tudo de boca aberta. A malta gosta de ouvír o Quirrr a contar coisas de outras temas e os filmes que vai ver lá ern Lourenço Marques, no Scala, e as coisas do El Índio Apache a jogar luta-livre e a fazer tourada, e aquiÌo que El Índio Apacl-re fez ao Zé Luís no Continentai. O Quim diz que El Índio Apache só não vai ao focinho ao Zé Luís porque não quer. O Quirl clisse-me isso de o Cão-Tinhoso ser muito velho quando um dia o virnos a bocejar sern dentes na boca. Foi nesse dia que me contou a história da bomba atómica coÍÌl os japoneses pequeninos a morrer todos que era Lurìa loeleza e o Cão-Tinhoso a fugir depois de ela rebentar e â correr Lll]fa distância monstra para não morrer. O Qr-rirn não me contor'Ì a história toda logo de uma vez e disse que só a acabava se er-lrrre portasse bem lá dentro, na prova. Eu passei-lhe quase toda a prova fiìas a Ser-rhora Professora topclu e deu-lhe 8 reguadas no rabo. Quando saímos eu não lhe pedí par^ acabar a história da bomba atónrica porque ele era capaz de se lernbrar do que a Senhora Professora lhe tinha feito 1á dentro e zang4ar-secomigo. Ele só a acatrou à tarde no Sá, antes de começarmos a jogzrr o sete-e-n-ìeio a cigarros. Toclos ficaram de boca aberta a ouvir. Até o Sá cleixou de atencler os fregueses para ouvir o Quim a contar. Ele contou tudo desde o princípio sem ninguém pedir, mas era diferente claquilo que tinha começado a contar nâ Escola, porque já não llletia Cão-Tinhoso. Eu não disse nada porqrÌe ele era cllpaz de se zangar comigo. l6
Nírs nrartainros o (lão-Tinhoso
O Cão-Tinhoso tinha a Lrele velha, cheia de p-rêlos brancos, cicatrizes e muitas lericlas, e em muitos sítios não tinha pêlos nenhuns, nenf brancos nerrì pretos e a pele era preta e cheia de rugas corrìcl a pele cle urn gala-gala. Ninguém [Ìostava de lhe passar a mão pelas costas conro âos outros cães. A Isaura eÍa ^ única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tenrpo todo conr ele, a clar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazet-lÌre festinhas, mas a Isaura erzÌ n-ìaluquinhar, todos sabiam clisso. A Senhora Profess<>ra já tinl-ra dito que ela não regulava 1â muito bern e que o trrai a havia de tirar da E,scola pelo Natal. A Isaura não brincavâ ccrlfi âs clutl'zlsrneniuas e era a mais velha c1asegunda classe. A Senhora Frofessora zuìlrgavâ-se por ela não saber r-rardae dar erros na cópizr, e ciizia-lhe que só não llre dava reguarclasporque salria que ela não tinha tudo lá dentro da cabeça. Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nada -, "\16 se oLlve narda, não se ouve 121d21" e a élente díziae a Senhora Professora dizia que os rleninos cla quarta classe não tinham nada que ouvir. Ilntão os meninos cla seÉ{Lrncla classe conleçavarrr a dizer: "Não se ouve nacla. não se ot-lve nada". A Senhora Prof-essora zan€Iava-see fazia lunta bronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as olrtras rnenlnas fazianl. uma roda corìl a Isaura no meio e punham-se ir clançar e a cantâr: "Isaura-Cão-Tir-rhoso, Cão-Tinhoso, Cão-ïnhoso, Tinhoso, Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinl-roso". A Isaura parecia clue não ouvia e ficava com aquela cara de parva, a olhar parâ toclos os lados à procura cle não sei quê, cclmcl tlrzia erSenhc-rraProfessora"
Luis Benrzrrclo T-Ioreç'arra
Houve um dia em que falei corn a Isaura. Foi assim: Estaver sentado n2Ìs escadas cla Escola, ffÌesrrro em frente âo portão, a coÍÌrer o lanche. Era o intervalo do lanche. A Senhora Professora estava a ler um livro e passeava pela varanda, indo até uma ponta, virando-se e vindo para a outra. Como ela passava por rnim (ouvia os sapatos, cóc, cóc, cóc, no chão) eu estava para saber se me havia de levantar ou não quando ela passavâ, pclrqr-Ìe era chato levantar-me todas as vezes que ela passava por mirn. De resto, efa rnesÍÌlo capaz de estar â pensar que eu não dava por ela, por estar de costas para o sítio por onde passeava, e não rne perÉIuntar depois, na aula, se os meLrs pais não me dar.'am eclucação. Eu estava a pensar nisso e à coÍner o lanche, quando vi que a Isaura andava zìprocura do Cão-Tinhoso. Depois foi lá parzi.fora e espreitou a rua toda. Corr.o não visse o Cão-Tinhoso, ficou no portão a olhar paÍe' todos os laclos até que me viu. Ficou Lrma quantidade de tempo a olhar para rnirn e, clepois, veio até às escadas, a andar devagarinho e de laclo, subiu-as, e quando chegou perto de mirn voltou-se para LÌnìa coluna e pôs-se lá zr risczrr qualquer coisa, muito distraída. Perguntou-rne corno se estivesse a falar corn outra pessoa qlÌe eu não via: - Vi51s o meu cão? Heim? Viste? Como eu não clesse nenhuma resposta, porqlle era prirleira a vez que ela talava con igo, insistiu: - Não passolr lâ para fora?. . . Nísto, o Cão-Tinhoso apareceu n<l portão. Parou um bocado, e clepois, en-ì vez de ir paráÌ as camas de poeira das galinhas .lo Senhor Profe.ssor,veio piìra âs escadas.Eu disse: - E,stá aii. 18
Nós matrinros
o Cão-TinÌroscr
A Isaura voltolr-se logo: - Aolrde? Ah! Meu cãozinho... Tinhas ido passear? A Senhora Professora parclr-lrìresnìo atrás de mirn (ouvi o cóc, cóc, cóc dela a vir e rul cóc mais forte lTìesÍTÌoatrzis de mirn. De resto, senti o perfume dela em cína de mim). A Isaura tinha corrido 1ogo, escadas abaixo, a at4alraÍ-se ao Cão-Tinh<lso, quando a Senhora Professora disse: - Ó menina, cllre pollca-verÉIonl-ra é essa? Yai jálavzrr as rnãos ! Eu estaverainda a pensar para serberse nle havia cle levantal otr rìão, l)orque ouvía-a nìeslllo por sobrc as nrinhas costas, embora não a estirzessea ver. A Isaura afastou-se do Cão-Tinhoso e virou-se paÍà a Senhora Professora. O Cão-Tinhoso ficou rambém a olhar para ela. Foi aí que a Senhora Professora disse para o Cão-Tinhoso: _ suca I O Cão--Iinhoso aincla ficor: unr bocaclo a olhar para a Senhora Professc-rrâ, coll os olhos gral-rdes a oll'rar conlo Lrma pessoa a peclir qualquer coisa sem querer dizer. Eu vi-lhe as lágr:imas a brilhar em riscos no focinho. A Senhor:a Professora cleu um grito paráÌ o Cão-Tinhoso orrvir bern: _ suca daqui ! C) Cão-Tinhoso voltou-lhe as costas e desapareceu pelo portão Íbra, sem clizer nacla, com o seu andar cle carroça velha e colTì a cabeça a fazer balanço corlro os bois. A Senhora Professora continuou a andar (cóc, círc, cóc, de LÌnla ponta da varetndzr para a or-rtra) e a Isaura ficou LÌrr'rbocaclo arolhar corrr aqr-ìela cara cle parva páÌra o sítio ertrás de lr. im oncle a cara da Senhorzr Professora clevia ter estaclo, e clepois veio derragarirrho e a andar cìe laclo l9
Luis
IJernerrdo
Honrvanar
e encostolr-se outrà\/ez à coluna, muito clistraída a riscaf na cal. Daí a bocaclo disse-rne: - Vi51s). . . E eu disse:
-vi. E ela: - Comeu com ele... E eu: -- Sim. Ficámos um bocado sem falar e depois eÌa veio numa corridinha pôr-se-rrìe em frente para me olhar com força. Os cantos dos olhos dela começâraÍrr a encher-se de lágrimâs e quando os olhos estavam cheios elas rebentaram e caíram-lhe pela cara aloaixo, a fazer dois riscos Eïrossos. Pergr-rntou-Íìfe: - V i s l s ) . . . V i s t e o q u e e l a f e z ?. . . Eu respondi:
-' vi.
Ìl ela: - Ela é rná... E rná,... E,u não disse nada e ela continuou: - f'cldos são rnaus paÍa o Cão-Tinhoso... Os olhos dela não eram azuís, mas eranr flrandes e olhavaur como os olhos do Cão-Tinhos<-r como urna pessoa a peclir qualquer coisa sem cllrerer clizer. Depois ela foi-se errborrr, lâ pata trás, onde os outros estavam a ctlnler os lanches e a brincar.
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Ntis nratiimos
o Cào-'l-iubosc>
ctrspilr para nós os dois e O Senhor Administrador disse aquilo do Cão-Tinhoso, rïras era só porque ele e o parceiro tinharn levado urlra limpa-quatro-l:olas; O Cão-Tinhoso costumava âparecer no Clube aos sábados à tarde para ver a malta a treinar futeLrol. Eu r-rãosei porque é que o Cão-Tinl-roso gostava disso, mas â verdade é que ele estava lá todos os sábados à tarde. Houve url dia qlle zÌmaÌta cluis f-azer un'ì cìesafio a sério e não me cleixou jogar. O Gulamo nenl nre deixou jogar àbaliza. Ele disse-me: "Aguentáì un bocaclo na varanda do CÌube. Ficas conìo srlplente. Daqui â pouco entras, 1Tìas há-de ser quando estiveruros à riìsca ou a perder, porcpre'aí entras tu e â gente resolve o iogo". Eu vi logo qr-reeÌes não me haviam de cleixar jogar porque o jogo era a clinhciro e qr-rando é assim eles não lre deixam jogar. Isso de eu ficar corrìo suplente era o que eles dizian quanclo não queriatlt que eu jogasse, mas eLÌ não disse nadar e fr,ri para a varandi.r c{o clube. O Cão-Tinhoso estava lá. O Senhor Adrr-inistraclot: e os outros estavalrl lla varandzr clo Clube, a jogarr à sueca cclnìcl tarmbéur era hzíbito toclos os sábaclos à tarde. Eu estarrraa olhar parâ o Senhor Adninistrador quanclo ele e o parceiro levzrrarn un-ì capote e ele disse ao Doutor da Veterinária, que se estavzì errir todo satisfeito, por lhe ter daclo o capote: "Não acho graça nenhuma" " " Isso foi leiteir:a" ... Depois olhou partr nirl- e viu que eu tambérr. me estava a rir. Olhou para o Cão-Tinhoso e üu-o tambem a e peréllrntou âos outros: "Eh! rir-se. Por isso zané{cll-r-se Quenr é que disse qr-reisto nào era a Arca de Noé?". Depois continuaraÍn a jogar zìsueca e o Senhor Administraclor e o parceiro levarânr LÌlrlâ limpa-quatro-trolas. 21
L,uis Berr-rardo Flonlvan;r
Eu estava zrolhar para ele qrÌândo ele disse ao Doutor da Veterinária que se estava a rír por lhe ter dado a iirnpa-quatro-bolas: "Mas qual é a piada, porra? Conr os trunfos todos na rnão qr:em é qr-re não fazia o qr're vocês frzerant? Olha fiIho, toma! Toma! Chupa!... Eu chamo-lhe leiteirzr..." Depois olhou parzr mir.,- e zanÉÌoÌ-r-se.Ele sarbiaque eu sabia que ele estava a perder. Olhou paràmirrr e para o Cão-Tinhoso sem sarlrercom qual de nós os dois haúa de correr prirneiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu para nós os clois, isto é, para LÌrrr sítio entre nós os dois. Está-se lrìesr:rìo a ver que o cuspo tanto era para mim cc)lrìC)para o Cão-Tinhoso. O Doutor da Veterírtâria ainda se estavâ a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas e ele acabou com aquilo de tÌnìa vez: Oulus lá, o qr,re é que este cão está a fazer ainda virro? Estzl tão podre que é urn nojo, carambar! Bolas para isto! Ai que eu tenl-ro cle nre meter em todos os lados tr)ara p ô r m r - r i t ac o i s a e m o r d e m . . . O Senhor Chefe dos Correios, qÌre era o 1-rarceiro do Senhor Aclministrador, já estava a dar as cartâs nessa alttrre, e por issc-rficaram todos a ver qlrantos trunfos é que lhes l-ravierrl cle szrir. Er-r Êqlrei um momento a olhar parzÌ aquilo tuclo até co1'Ì-ìpreenclero cllìe o Senl-ror Administr:ador qrreria clizer: O Cão-Tinhoso vai morrer! Olhei para ele: estava a dormir com a czrbeçerentre as LliÌtas, truito clescansaclocla vida. Fui a correr para o calììpo de futebol para avisar er rlalta: "O Cão-Tinhoso varin orrsp". - O Gularno disse-lìre: "Fora daqui|" -Agarrei-rle a ele evoltei a dizer-lhe que o Cão-Tinhoso ia morrer: "I-arga-me". Ele só clizia isso. "Lafeeì-nfe" - Mas estava quieto. 22
Nós nratrinros o (lão-'Ì'inhos<r
Ficámos os clois a ver Lll-ìlzÌavançacl2l do grupo clo Quim. O Faruk, que eral cl ponta direita cleles, f-oi com a bola até ao canto, depois cle ter batido o Narotalno errì corrida, e de lá centroLl. O Quin-r passolÌ por nós â correr para abalíza, rrìzrso Gr-r]an"rosó clizia: "Larga-me". O Quim meteu o golo com Lrm2rcabeçada. O Gulamo foi logo a correr: "Este golo não verletrporclle este tipo estava à àgíttr'àt-lrle". O Quinl e cls clrÌtros não quiserâm s,lber: "Isso é que vale, estás a ouvir?". Depois o (ìr-rlelmo veio ter corrigo: _- Ó frlho da mãe, sLrc.;ìclilqui para fora e não voltes a chatear, estás a ouvir? Suczrclaqui ar-ìtesque eu te rebente o f'ocinho! Iìetn, corrÌo o Gulanr o dizia aquilo muito zangado eu fui-me emborzr para fora do câmpo, mas fiquei chatearclo porque os olltros não queljerm saber do Cão-Tinhoso. QuancJo ia ja a sair do czìlrrpcl, o Telmo correLÌ para rnin e prôs-sea trater-me na cerbeçae a gritar: - Só, só, só mais urn! Só, só, só mais um!... Agarrei-lhe os braços e clisse-lhe o qlre ia acontecer ao Cão-Tinhoso, rnas ele continuava: - Só, só, só tnais rur, só, só, só maís unl... f-ive vontade cle bater no Telmo, mâs o Gulan-ro estava ali perto a olhrrr para mirn con'ì os braços cruzaclos r-ro peito e tive nìesn-ìo cle me ir embora. Quando passei pela vararnda do Ch-rbe, o Senhor Aclministraclor e os oÌ-rtros estavarn muito entretidos a jogar à srÌeca, e o Cão-Tinhoso estava muito quieto, a dormir con'r a cabeça entre as pâtas sem ter percebido o qr-relhe havia de acontecer-.
2)
I-u is Bellrarclo
Honrvana
Na segunda-feira de manhã fui ver o Cão-Tinhoso logo que cheguei à E,scola. A Isaura estava ao pé dele e dava-1he o lanche dela, partindo o pão aos bocadinhos e espalhando-os perto da boca do Cão-Tinhoso, qure ia comendo dev.rgar, porque levavtr muito tempo a fiÌastigar. Qtrtrndo tocou paÍa entrar, a lsaura despecliu-se dele e rreio a correr para a charnada. Lá dentro, enquanto fazía as contas e o desenho, e 1Tìesmodurante o cfitaclo, fui pensando no Cão-Tinhoso â ser norto pelo Doutor da Veterinârra, depois de ter escapado da bombzì atómica e tuclo, depois de ter corrido unriì clistância monstra para não morrer por caltsa da bomba atórnica. O Doutor da Veterinária se calhar não tinha vontacle nenhun-ra de rrratar o Cão-Tinhoso, rrÌiìs coÍÌlo é que ele havía de fazer. coitado. se foi o Senhor Administrador que mandou? Perguntei zro Quirn conlo é que o Doutor da Veterinárra l-raviarde matar o Cão-Tinhoso, e ele disse-me: "IJm cão matzr-se colrl arntibióticos". Eu perguntei-lhe o que era isso de antibióticos e ele zangoll-se e disse: "Ó seu burro!" E clepois de se carlar um bocado e continuar a fazet o cleserrho, r,oltou a falar, rffas já sem estar zangado: "Meu Deus, qrlem é que te rnzrnda ser tão besta? E quetn é que me manda ter tanta çraciência para te aturar. E clue aindar por cin-rernão sei em cllre língua é qr-re te hei-de falar porque não percebes nacla de portr-rguês, chiça? ! Um cão mata-se corrÌ Lrma bala de Ponto 22. Sirn, para ti tetn de ser assirn. E, unr:r balarde Pontct 22 e pronto, arre!". Calou-se Íì1ascontinuou: "Ou coÍn antibióticos. . . ". E pouco depois: "A não ser que o Doutor cla Veterinária seja tão burro como tu que só o posszÌ nlatar con'r LÌma bala cle Ponto 22" . 24
N os nr trt:írl os o (ião- J'ir-rl-ro-.o
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Ó lìleninos, isto não é unr bazar" hein-r... Era a Senhora Professora" - O que é qr-reo Quirn te estav'a a cfizer? Sim, tu, Ginho, responde! Eu ia a responder mas o Quinr cleu-me um beliscão. Não queres clizer? Scrá preciso r,rsar ar régua no teu rabinho? - Não era nada, Serrhortr Professora, era pcrr causa do Cão-Tinhoso. C) Doutor cla Veterintiria vai rr.artá-lo. - Vocês não tên-r telxpcl pÉìrâ tratar desses sigilosos negócios de estacìo clurante a hora clo ir-rtervalo/ - f'emos, sim, Senhora Professora. - pn1[s tocâ a fazer o clesenho e bicir calaclo. Ficán-ros de bico carlacloa fazer o clesenho. Qr-ranclo chegou a hora do intervalo a Isarurlr veio ter corrrigo, rn uito atlita - O que é que tu e o Qr-rim estâvzÌl1 para ali a dizert E,u já tinha falaclo conr ela Lltrìa vez, mas era como se fosse a prin'reirà\rez, porque fiquei sem saber o que lhe havia cle responcler. - O que é que tu e o Quinr estavam para ali a falar do Cão-Tinhoso? _ Nadzì... - Vão matá-Ìo? O Doutor da Veterinzíria vai matá-lo? - N ã o , i s s o é n r e n t i r ' . rd o Q u i m . . . - p11ls, porqlre é qrre esta\/am a Fttlarnisso? -- l>avapassar t-lterrìpo. E, que o desenho era chato.. " - Vocês não saberr que não devem dizer merìtiras? (Ela estava a armar enì Senhora Professc-rrâ or-l qualquer outrâ pessoa já crescid:l). - O Quin'r é que disse mentiras, loi o Qtrirn... 25
Ltris B.:rtrardr>
Flon$'anzr
y'\ Isaura respirou Íundo (ainda a ârrrÌar errr pessoa crescida) e foi a correr pare_o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. Antes de chegar Iá, parou e rroltou-se para rnin- coÍn as rnãos a tapat a boca, rnas como visse cJueeu aínda estava a olhar pa-raela voltou-me AS COSIAS.
C) Cão-'Iinhoso viu-a chegar e pôs-se logo zrabanar o rzrlro e a balancear íì cabeça, erntrora não estivesse a anclar. A lsaura ajoelhou-se diante clele, agamou-lhe zr cabeça e pôs-se ;r dizer-lhe urÌ1,ì clata cle coisas que não ouvi. Deprois sentou-se sobre os calcanhares, cruzou os cledos no regaço e pôs-se a olhar para as nrãos. Eu estava nlesn-ìo atrás dela quando ela clisse: Não ligues zr isso tudo porqlre é peta do Quim, o Doutor cla Veterir-rairía não te cluer matar nem nadar, isso é peta. Nós air-rdâ \/rìrrlos f'alat cl:ls nossas coisas e eu hei-de dar-te cle comer todos os clias. Também posso ür à tarde depois cla lrora do lanche e tÍ'azer-te de comer, a minha tnãe não diz naclzr.Cão-Tinhoso! Não sejas malcriado! O que é que estiìs a qlrerer ver clebaixo clas n.inhas saias? - E, plrxa a saia p^ra tapar os joelho Oh! Desculpa-me, Cão-Tinhoso! Estás a ver a barra da rninha saia nova! Desculpa-me, eu devia saber que não és como esses meninos malcriados c1-reandam por aí. Não tinhas visto ainda a minha saia nova/ Tbn- mr-rítaroda, queres vs12 - Levantou-se e esticou a saia pelos lados. Estava a fazer uma voltinha quando nre viu meslÌìo atrás dela. Ficou de troca aberta a olhar-me depois r.'irou-se para rnirrr com a boca muito fechada e de rr.ãos nas ancas'O que é que você quer daqui? tringi que est2Ìvaa zrpanhar qualquer coisa corn qr-reti\/esse estado a brincar e tivesse ido parar ali sem ser de zl)
Nós tnntitnros
o Cão-J-inhoscl
propósito, e depois fui-me embora a fingir que metiâ a coisa ao bolso. fjrn clizr,o Senhor Duarte clzrVeteri nária veio ter connosco quanclo estávanlos no Sá ?ìcontar filmes e aneclotzrs e disse-nos: - Ó rapazes, tenl-ìo uma cois a \)ara vocês. Claro que fornos todos atrás dele até âo r-Ììuro da Veterinária. - Oiçam, ó rapazes, tenho umer coisa pata yeçgs repetiLr - alepois de se sentar ao alto do muro, com a tnaitâ errl volta. - É rnesnro Lrnra coisa para a rlalta. Calou-se por um boczrcloe olhou para as nossas caras. "É uma coisa de rnalta, rrìesmo de malta (agora só olhava para as unhas com cls olhos cluase fechacÌos por causa clo l - u t t r oc l o c i g a r r o ) . E c o i s a c l u e c u c o l ì - ìi Ì v o s s a i d a t l e r r ã o deixaria de fazer, se r-ne pedissern para fazer. Benl, vocês salretn, o f)outor mandou-me clar cabo de urn cão, aquele, vocês conhecem-no, aquele que anda aí todo podre que é um nojo, vocês não o conhecem!'... Ora l:em, o Doutor marrdou-me dar cabo dele. Bem, eu iá o devia ter liquidado há mais tempo, 1nâs cl Doutor só me disse esta manhã. Bem, acontece que eu tenho visitas em casa e é bera estar agora a pegar enì armas e zLtca-zuca atrás de r:m cão, vocês compreendem, não é rapazes?. . . Mas elr nerrÌ rle afligi porque pensei cá para comigo - que diabo, os rapazes estão sem fazer peva e é para as ocasiões qt-rea gente conta corrr os arnigos - e pensei logo erl vocês, porqlÌe já se vê, vocês até devern gostar de lr- anclar Lrns tiritos, hern? Bern, calern-se não digam mais, eu já sabia que vocês são nralta fixe. Olh efi:' ra-pazes, vocês pegam aí numa corda 27
Lr-ris Llern arrlo I Ions'an:r
clualquer, procuram lá o cão e levam-no para o mato sem grzìndes arlaridos e aí ferram-lhe uns tiritos rlos cornos, que tai?'... E,stá bem. está bem. calma. deixem-rrre acabar de falar". . . () Quir-r-rbateu-me na boca - Deixa ouvir o Senhor Duarte, cararrrba! - Olhenl. vocês, eu sei que vocês andam por aí aos tiros tìs rolas e âos coelhos, olhem que eu sei... Mas deixet.r- lai qlÌe eLÌ não levo a mal, malta é malta, isto é assirr rììesnÌo, eu só não quero é clue façarr-r as coisas à minha frente porqLre l.enho responsabilidacles, vocês sabem. Ora vocês jártêm armas e por isso não tenho de vos ernprestar irs Ì)otrtcr 22 daq:ui cltr Repartição, :rliás uma chega, rnas se vocês quiserem fazer tiro ao alvo, eu não tenho nada com isscr... Mas, L)st, setrl f'azer uffì câÉIaçalque se oiça aqui na vila?... Prontio> ràp^zes, icle, ide divertir-vos um peclaço, mas cuidado lá colrl âs armas, lrem? Nacla cle clesatar a ferrarrtiros nos cornos ulls dos outros... A malta pôs-se logo a correr, e o Senhor Duarte teve de se pôr de pé ao alto clo nruro da Veterinária paráì nos chrurarr de rrovo. Depois esperou que chegássemos bern ao pé clele para nos olhar bem n?ì câra antes de falar com os olhos c)Lrtra vez qlr2ìse fechaclos por caLÌsa clo fumo do ciglan'o: Oiçarn, rap'àzes, et-l estou a falat entre homens, porrâ ! Isto escllsa de ser propalaclo L)or aí aos quatro ventos, estão a ouvir? Eu só quis dzrr utrr prazer à malta porclue sei clue vocês gostâm de dar uns tiritos de vez em qu'anclo e eu não levo a mal... Sirn, sei quevocês gostârn de dar por aí uns tiritos às rolas e aos coelhos, mesrrÌo sem terem licença de uso e porte de arma, tr)ara não falar na li28
N<is nratrinros o (-,iìo- I'iuh<-rs,-r
cença de caça, e vocês sabenr qt-re se sãc-lapanlrados por mirÌÌ oLÌ por um Íìscal cìe czrça, chutrrarm uns rrleses de prisãcl qLle se Ìixam. digo a ninguém pais ilegalmente. sas nìeslxo
Mas deixa lá clue eLÌ rìão levo ernral netr c1ue rrocês LÌsarrì as arrÌlzìs dos vossos
E,r-rsó cÌLìero clue não me façarl essas coidebaixo clo nariz, porcllÌe tenho responsahili-
dades, r'ocês sabenr" Eu
não
lerro isso a mal,
p()rque
conheço bem rr n-ralta, nrirs isto não é parâ ser espalhaclo por aí, rrocês não acharn / De resto isto nerl
tinha cle sel dito, porclÌÌe estou a fa-
lar entre honrens... F i q u e d e s c a r n s a c l o ,S e n h o r D u a r t e . . .
Foi o (luim. -
p1cl11<l, r^L)àzes, ide clivertir-r,os. lllaìs pouco
ala-
rido... O Sá, da varancÌa clzrloja, Íãzia-nos sinais para lhe irn-ìoscontar cl que o Senhor Duarte nos tinha dito, rras nós nem olhán-los pârâ 1á. Fornos logo para a escola, e no canto das canrlls de poeira clas galinl-ras do Senhor Professor lá estava o Cão-Tinhoso a dormir. Quando nos viu, Ìer'ântou-se e veio por'.rli fora a cobrejar, todo cansado, com as pâtas a tremer. Olhou para todos nós com os olhos azuis, senl sâber que nós queríamos rrratá-lo e veio erfcostar-se às minhas perr-ìas.Depois cle estzrr um bocado assirl encostado, cleixotr escorregdr o traseiro e sentou-se.Eu serrti-oa tremer como não sei o quê, encÌLlzìntoos outros combinavanl, e via os rneus sapatos a briÌhar onde ele os lambia. - Ouve lá, tr-r deixas esse cão todo podre que é um nojo encostar-se a ti? -- O Farruk estava serÌpre zÌn-Ìeter-se cornigo, nlas o CJuim queria combit-rar as coisas e não qrÌeria ouvir o que ele dizia: l')
Luis Bernarclo l]onrl'an:r
-
Deixa 1á, é preto e basta, cleixa lá... Bem, rrraltzì, o cãtl não sai claqui e a gente vai cada um para a sr-racâsa buscar as Arlrìas e depois levarno-lo para a r11ataatrás do rnatzrclouro e clamos cabo dele, óquêi? Corno é que o levarnos? E,u é que não o levo às c o s t a s .. . - Ó minha bestal - O Quin não gostava daquelas piaclinha E isso seria demais? - Corrlo é que vocês, os cltraclrúpedes, costlurÌam levar as coisas? - Depois virou-se para rnim: - T'oucinho, tu trazes aquela corda que tens na tua casa cfettaixo do canhoeiro. _ E, querrr é que leva o cão? _ (Eu não queria levar o Cão-Tinhoso). - A gente depois atíta LlÍÌrâ moeda ao ar e vê quern é que o leva. - Não rne digam que este gajo também atira... - Ó rnalta, vamos fazer o qt're o Senhor Duarte Ìrrandou ou não? Fomos todos a correr para ir buscar as armas. Quando cheguei a casa, a minha rnãe estava sentada numa esteira Ínesrno à porta. Escondi-me atrás de uma árvore para pensar corno é que havia de levar a minha Ponto 22 de um tiro sem ela se zar,ga-r,mas ela viu-me logo e chamoLÌ-me: "Ginho! O que é que estás aíafazer todo escondido?" - Qs51i para ela e entrei eÍÌì casa saltando-lhe por cima das pernas. "Eh! Que brincadeira é essa>' - Mas eu jâ náo a ouvia. Fui buscar a arrÌa e voltei muito devagar, sem fazer barulho nenhum, até ao corredor. Depois corri com força. - O que é isso? Para oncle é que levas a espingarda? Anda cá! Olha que eLrfaço queixa eìo teu pai! 30
Ncis natiír-nos o Cão
'fir-rhoscr
Só parei urr l)ocad() parel lerrar o r<llo de corda debaixo clc, canhoeiro. Depois r-ìão c-r.vi mais os Lrerros clela. Enquanto corria parà a escola fui pensando que ahnal até era bom lllatar o Cão-ïnhoso porqrìe anclrrvatoclo clreío de Íeridas que era ulr nojo. E zrté era trem feito para ^ rsaura que a'dava cheia cle'rarnias p.,r câLÌsadele. er-rando cl-reguei a escola, apaltrrei o bolso cla c^rnisa para sentir as balas a esfregarem-se LÌrrìasnas outras. Bem, esqueci-nre de clizer qLle, quândo fui busca. a espingzrrda, tarr,bém levei algumas balas. Se as não levasse, colrro é que havia cle matrrr o Cão-Tinhoso?
Nós éramos 12 quando fornos para a estrada do Matadouro com <l Cão-T'inhoso. O Quirrr, o Cìulamo, o Zé, o Xangai, o Carlinhos, o rssufo e o chico itrm pelo meio cla estradiì conì arsesp>ingardas apontadas para :r fi:ente. Atrás deles ia o Faruk, que não tinha espingarda, a ârrastaf o Cão-finhoso pela cord,l. O Cão-Tinhoso não clueria zrndar e chiava que se danava, cclm a boca fechada. Nós, eu e o Telmo de um lado, o Chichorro e o Norotamo cfo olltro lado, ía'ros também armados, meio rneticlcls no czrpirl.^ , corfio o euin. tinha mancl:rdo, a bater c' r-zìto. Eu não entrava muito pelo capirrÌ, porcìLle, qu:.rndo rÌìe apirrecia u'la nricaia pela fre'te, eu contorllava-a pelo lado da estrada do'-rataclouro, por onde o resto da nraÌta ia, e volta e rneía o euim tinha cle trle perfjur-ìtar se er-r ia a bater o trratcl ou quê, porque eu só queria era olhar pz.ìrao Cão-ïnhoso, a cl,riar, que se dan.va e'rais aquele barulho de ossos lá dentro )l
l-tris Berr-rarrcloI lonr"'zrnrr
dele clue às vezes ollvia quando o Faruk o puxava com força, e rrÌeslrro lá na escola, no canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor, qlrando ele andava. Quando chegárnos ao matadouro os moleques do Costa vierarn ver a malta a passar: Ollde vai jimininu? Leva xipingar, vai no caça? Mas aquele cão num prrêsta! - Fora daqui, negralhaCa! - Era o Quim. Os rnoleques julgaram qLre o Quim falava na bríncadeira e não se mexerarla, rnas o Quirrr apontou-lhes a arrna e repetiu: - Ilora daqui, negralhacla,fora daqui cabroada escura! Desapareceram todos nt-lrn instante, a correr, que batiam conì os calcanhares no cu, corno àizia o Quim. Avançámos para o mato, rrìas et-r tinha a cetteza de que eles nos estavafiì a seguir. - Ó pá, vocês ajuclem-me, - era o Faruk - venha , outro tipo puxar o sacana do cão.. . - Ó pá, rnas a gente mandou Lrmâ moeda ao ar e fr,caste tì.Ì.". -- Então mandern cllrtra vez... Bcllas, assim não! Nós tínhalTìos combinado... Bem, óquêi. O Quim olhou para mim: - T"oucinho, anda tu! - Ó pá, rlas eLrvou a bater o mato corno tu disseste... - O Faruk frca a bater o mato! - Ó pá, não há o direito... Não há uma ova! Vai tu e não refiIes! Dá arua anfra ao Faruk!
)z
Nós tnirtiitros
o (,iìo-Tinlroscr
Os outros pararam LrnÌ pcluco atrás. Eu sabia disso, Irras não fui capaz cle 1-rarar.C) Cãcl-Tinl-roso zrgora ia à frente de mim e eu é qr:e andava devagar. E,u via-o de cabeça esticada L)ara ir frente e cle rzrbo espetado. Andava tcrdo inclinado para a frente, colrr as pernas afazer nrúsculos com o esforço de fugir da corda que lhe apertava o pescoço. Tínhamos entraclo rluito pelo mato adentro m:rs estávamos nllrrì sítio onde não havia árvores e só havia capirl. As árvores estâvam à nossa Írente e o Cão-Tinhosc-r queria ir para lá. Às vezes ele nem se via no capím a[to, rnas de vez em quando andava tão depressa, qt-Ìe a corda se esticava e então eu tinha de andar LÌm por-rco mais cìepressa para naì() sentir na n-rão, na cabeça, aqui dentro, no corpo todo, a força dos ossos dele a chiar, a chiar e a chiar. - Ei, para oncle é que levirs isso? Parei e o peso veio toclo na corda pzÌra clentro de mim. Virei-me devagar e vi o Quin-r a nleter um cartucho na Calibre 12 de Dois Canos. - Ó Chico, o clrÌe é qr-redizes, SG ou iA? - Agora falava conl o Chico, com o cartucho rrreio metido nlÌtrr dos canos e com o cledo a erlrplrrrá-lo clevagarinho 1á par-a dentro da câmara. - Ó Quim, pá, põe-lhe o núnrero 4, não sejas bera que colrr isso escangalhas o cão todo, p'á.". - Quvs 7â, para onde é que Ìevas isso/ - Eu estava parado, a sentir tudo aquilo do Cão-Tinhoso que vinhzr p e l a c o r d a e s t i c a c i a .O C ã o - T i n h o s o v i r o u - s e l ) d r â r r r i n l e atirou-se para trzís de recuo a chiar por todos os lados. Eu sabia qr-re ele fiie estava a olhar cclrlì os olhos arzuis, mas não pude cleixar de olhar LraraÌaÌmaltâ, que estava a fazer ))
Luis
l]ernarclt-r
Honrvana
meia roda, andando devagar e sem fazet barulho, sempre a armar e a clesarrrÌar as espingardas. O Quim, em cirna de uma peclra, olhava para rnim colnì o cartucho rÌleio metido num cÌos canos da Calibre 72. O Faruk ag'àrrava corn força a minha Ponto 22 de Um Tiro, e jâ lhe tinha metido uma bala expansiva na câmara. Ele era o único que não estava selrìpre a mexer na culatra para arrrrar e desarmar a espingarcÌa. - Ó Quirn, não atires corn SG nem com 3A que isso é chato... - N ã o : r t i r e s ,Q u i r n , i s s o é b e r a . . . - [ 5 5 1 1 1 ,o g a j o q u i n a l o g o . . . - Ó Quirn, mete-lhe o número 4 ou outro número quaìquer, o Senhor Duarte disse que nós também podíarnos âtir?ìr... - Poça, Quin-r, isso não! O Cão-Tinhoso jâ não fazia força e de repente senti a corda lassa. Daí a por-rco o Cão-Tinhoso encostava-se às minhers pernas, todo a trener e a chiar baixinho. O Quim acabou de meter o cartucho num dos canos da espingarda e endireitolr-a devagar até fechar a cârnara. A arrna ficor-r voltada para mim. Eu não pude olhar mais para lá, rr.as era por causa dos olhos do Quinr, que me olhavam qlrase fechados, a brilhar sem ele estar a chorar. Eu é que tinha urìra danada vontade de chorar mas não poclia fazer isso corrr arqueles toclos a olhar para mim. - Quim, a éìente pode não rlatar o cão, eu fico com ele, trato-o clas teridas e escondo-o para não andar mais pela vila conì estas feridas que é tur trojo... O Quirn olhou para rnim como se nurìca me tivesse vislo erl nenhuu lacJo,trras respondeu aos outros: )1
Nós n-ratános o Cão-Tinl-roso
-
!qç$s qt-Ìe se lixem, elr âtiro colrl o cartucho que quero e pronto ! - {1i12s Lrrn raio é que zrtiras! Não julgr,res que teÍnos medo de ti! O Quim olhou pata o Gulamo e perguntou devagar e em voz baixa: - Ó meLÌ frlho da mãe, queres qr-Ìe eu te rebente o focinho? - Rebentâs Lrma ova, tu aqui não armes em nandão que eu não tenho medo cle ti! O Gularno tir-rha-se virado para o Quim, corrr arnÌa e tudo. - Ouve 1á, queres ter algurla coisa conigo, monhé de um raio? O Quim não teve medo da arrmarcle Gularro. Isso erâ o teu avô, nÌell la'breguinlro orclinârtol Nunca te contararn isso 7á na tua alcleizr?Seu maguerre! . . . - Monhé! trilho de tür corno! - Ó C)uirn, não atires conr SG nern 3A que isso é ser chato... - Não atires, Quim, isso é bera... O Quim tinha clesciclo cla peclrer e avançava pzÌrzr () Gr-rlamo. - Ó Quinr, rnete-lhe o nírrrero 4 ou clutro núrnero qutrlquer, o Senhor Duarte clisse clue ncis tar-nbém poc1íamos atirar... - Poça, Quim, isso não! O Cão-Tinl-roso chiava barixinho e r()çava-se peÌas minhas pernas 11trel-ìfer. O Faruk aéÌarrava a minhar espingarda corn fcrçâ e ?ìpontaìva-a par-â nrint corll âs pernas afastadas, rrìas olhava parzr o Cão-Tinhoso, corrl os olhos )5
Ltris llerrrrrr'.ìo I Iorrrv:rna
grandes de medo. Os outros todos ficavam tarnbém com os olhos cl-reios de medo quando oÌhavam para os olhos azsis do Cão-Tinhoso. Eh, malta, vam<rs acabar com isto que é tarde e está quase escLÌro. Vocês não desatem aqui âos tiros p^ra os cornos ulTÌ do outro... O Qr-rirl pz-Ìrou e virou-se para o Xangai: -- Cornos tenl cl teu pai, estás a ouvir? Eu não deixo que unr rnonhé abuse sern levar na cara! De mirn ninguém se frca zr rir.. " E se ladras mais também comes no focir-rho... Ttr ou qr-ralquer outro! Vocês todos estão a ouvir? O Quirn gritava ctlnlo urn doido, rrras o Gularno não tinha medo dele porque começolÌ a arregaçar as mangas da c;,rtlisa. Já estava quase escuro e o Cão-Tínhoso tremia contra as minhas perr-ras como não sei quê. - Eh pá, vamos cleixar isto para o outro dia, - o Faruk olhava para o brilho do cano da Ponto 22 de IJm ïro - vâmos deixar isto para amanhã or-rolrtro dia.. . Ele tarlvez ficasse por aqui, l:rìascc>rfroo Quirl deixasse de berrar parâ ouvir o qt-reele clizia, continuou: É que iá está quase escuro e podíamos ferir alguérl serrr cluerer, no escl-rro, com tantas espingardas... O Quim gritou logo: - Ó meus filhos da mãe, vocês estão cotn medo? Só er,ré clue respondi: Eu estot-Ì corrr rnedcr cLrstou-me dízet aquilo porqLle mais ningtrém estava com meclo, rnas foi melhor assim- Eu estou con nreclo,Qtrim... Apesar cle já estar quase escuro eu via os mells sapatos â brilhar nos sítios oncle o Cão-Tinhoso os lambia. )6
Nc;s
llìe1tiìrìlcls o (.ito-
linhostr
Mesmo riam-se to se rir -
corn o capim e tudo. O Qr-rim e a outra malta corn forçâ e o Gulamo rebolava no capim cle tanpor et-rter tr. edo. ps12 é l:orte, rnalta dizi^ o Qr-rim. conl â boca toda atrerta e os olhos a chorar de ttrnto rir" - ps12 é qr,re foi - chzia o GuÌamo qr-re neur se via por estar a reÌ:olar no capin. Os outros rianl-se mr-rito, também. Parece que eu tive rnuita vergollha por ter díto aqr-rilo. Voltei a sentir um peso nronstro dentro de minr e nc> pescoço. Eu não nre nrexiâ pard os outrcrs lrão se riretrr mais de mim, mas as pernrìs trerlian'Ì-l-ne l)or causar do Cão-Tinhosc), a tremer er-rcostado a elas. - ps12 é forte! - O Quim Lrerrirva c)utra \/ez" - ps1i1 é forte! O Gulamo dtzizr isto enquanto rebolava no capim de tanto se rir de mim. - [5gs é forte... Os outros, às vezes calavau-se, e só o Quim é que se ria sempre, sempre e cacla vez cclnr mlris fcrrça. C)s outros ouviam-no quando se calavam e volt,rvanl a rir-se com força corno ele. E, riam-se, riam-se, riam-se enqrrirnto o peso no meu pescclçcl e cá clentro âurnerÌtava curcler rrcz mais. Pzrrece que nlrnca nrais acab2rvâl-ìrde se rir, e eu ct.rlll aquilo só tinha vontade de chorar ou de fugir c()m o Cão-ifinl-roso, lTÌas tarlbém tinha meclo de voltar: arsentir a corder a tremer de tão esticada, corÌl o chiar c,losossos a querer fugir da minha rlão, e com os latidos clue saríama chizrr, afcrgados na boca fechzrcla corno ainda l-rá bocaclo. Sirl, eu nulrca maís qtreriar voltal a sentir isso. O Quir-n estava de novo em cirna cla pedra mas atncler se ria de rrez erx qLráìnclo e dizia esta é forte, estar é fcrrte . )7
I-r-risBernardo
Ijonu,ana
O Gularno estava ajoelhado, sentado sobre os calcânhares e corn a camisa limpava a cara das lágrimas que saltâralTr dos olhos de tanto se rir de mim por eu ter medo e tanrbém dizía esta é forte, esta é forte. Os outros já não se rizrm mas de vez em quando concorclavam ctlrn o Quim e conr o Gularrro nisso de esta é forte, esta é forte. .]á estava quase escl-Ìro e o Quirn, do alto da peclra, disse para a malta: - Eh, malta, agora é que vai ser: Eh! Toucinho, desata a corda! Mas eu não era càpàz de rne Ínexer, todo envergonhado e com o pescoço a doer corno não sei o quê. _- Eh, malta, vocês nLrnca me viram aìrrlâtaf rìm pre_162 O Quir-n aproximou-se cle mirn: "Eh, Toucínho, desatrracorda!" O Gularlo aproxilrrou-se também. "Eh, Toucir-rho, clesatara crtrcla!" O r-róestava feito de tal maneira qr-reclrstâva a desataq e eu não tinha força nenhuma nos dedos. Tinha vontade de choral ou fugir corn o cão e tuclcl. -- Anda Ìír, senão rebentarnos contigo, preto de um raio ! - Al-ìda lá con-r isso, carambzì, - aÉìora era o Faruk - a l l d ' r I z ic o r l i s s o , p r e t o d e u m r a í o ! . . . No pescoço, as feridas do Cão-Tinhoso iânão tinharn crostzr pclr causa dar corclaÌ,mars só saía delas urrra aguadilha vermelha qr-rerrre rr-rolhava as rnãos. - Allda lá, nãc-rtentes ser besta, Toucinho! Quando acabei cle desapertar o nó, agarrei a corda com força parâ ela não cair e continuci a rnexer no pescoço do cão, mesnìo colr-ì os olhos fechados. l8
Ncís n'ratárnos o Cio-'l'in[rosc-r
Eu tenho lnedc>, clesculpa-me Cão-Tinhoso - eu disse aquilo tão baixinl-ro que só o Cão-Tinhoso me podia ouvir - eu tenho rnedo, Cão-Tinhoso. - Eu vou pedir isso ao Quim e à rnalta. e eles cleixam cclnr certezà, e eLt levo-te e trato-te e depois vaís outra vez dormir pâr.ì as camas de poeira das galinhas clo Senhor Profèssor. Ifu vou pedir ao Quim e à malta e eles cleixarm.Mas, não nre olhes corno se eu tivesse culpa, Cão-Tir-rhoso! Desculpa, mas eLl tenho medo dos teus olhos... Abri os olhos e o Cão-Tinl-rosc'r estava conr cls olhos em cima de rlirn, corÌìo se não tivesse percebido o qr-reelr tinha pedido. Tive de desviarÍ ^ càr'ãclepressa e pclr isso a corda caiu-rnedas nràos... - Ei, o qLre é ciue estás parâ trí a dizer? O c1uê,iti trcabaste?' - Quirlr, a gel-ìtepode nãcl matal o cão, etr fico cotl ele, trato-lhe as feridas e escondo-c-lparzì não anciirr t-nais pela vila com estas feridas qrre é um nojo ! . . . O Quim não queria saber do que eu estava a,Jizer e, por isso, aÉlarrolr-rxe pela gola cla car-nisae perÉlulÌt()Lr-me o qrre é qtre eLÌ estava para ali a dizer. O Cão-Tinhoso trerlía, circlirvez mais enfiaclo nas rninhas pernas corì-ì o rabo a clirr e ar clar e et.r ernptrrrei c-r Quim parar voltar â àgarrar er corda no pescoço clo cão pari.ìos outros rrão vcrenr. - O que é que estás a clizer? - Era o Gulamo. O Cão-lfinhoso olhava me c<lrr-rforçzr. C)s seus olhos azuis não tirrhan-r brilho nenhunr, rnas erzìr-Ìlenclrtr-tese estâvam cheíos de lágrímas qlÌe the escorriam pelo focinho. Metiam meclo aqueles olhos, assim tão grandes, a oll-rzrr colrìo ulrÌa pessozra pedir clualquer coisa sen-ìcluerer clizer. -
)L)
l-lrrs llern;rrrlo
I Ìonrvarta
Quando eu olhava agcra para clentro deles, sentia urn peso lrrtlito maior do que quando tinha a corda a tremer de tão esticadar, corrÌ os ossos a qlrerer fugir da minha mão e con os l'atidos que sâíaln a chiar, afogados na boca fechada. E,u tinha Llma danacla vontade cle chorar mas não podia fazet'isso com a n:alta toda a olhar para mim. O meu braço estavâ todo molhado pelo sangue das feridas do pescoço do Cão-Tinhoso, rnas tinha de me abaixar Lrnr pouco mais, só urais rÌm bocâdinho, l)ara apanhar arcorder. O Faruk falava rnuito baixinho e depressa. Devia estar outra vez a olhar para o brilho do cano da espingarda: Vallros deixzrr isto para or-rtro dia, pâ... Damos cabo do cão arlanhã cru or-rtro dia... Carlou-se mas continLrou logo: Ê que já estiÌ quase escr-rr<le podíamos ferir alguénr sem qlrerer, rlo escl-rrocom tantas espingarclas... -
Qr-rim, eu não qLÌero dar o primeiro tiro... (Eles queriam qlre eu clesse o çrrirneiro tiro). - Ancla lai, ar-rda1á, não tenhas rnedo... - $sbss, Quim, é que eu não qtÌero matar o Cão-Tinlroso". " O meu pai é càparzde me bater qurlndo souber... crt rrìo quero, rrão... pá. I:u disse-te qr-re só davas o primeiro $11111çvs, t i r u r ,c e s ó i s s o o c 1 l r ev a i s f a z e r . - E cpre, sabes, pá... O rreu pai lá errr câsa... Ìlu \/ou-me errrbora, ele está à minha espera... Se chego tarde, ele barte-me... llate-me, Quim, cla oÌÌtra vez bateu-[ìe... - Vamos, valflos, deixa-te clessascoisas, não sejas meclrosc'r...Iá r'iram isto. nrzrlta. tun dc' nós a borrar-se todo .10
N(is lìrrÌtiÌnros <l (,âcr-l-inhostr
por causa do cão... E que eu não sei porque é que este tipo anda connosco se não é macho de verdade... .lâ viram/ __ Eu não me estou a borrar toclo, Quim, eu se não quero dar o prirneiro tiro... E que er-lsou Llm bocâdo amigo do cào e e clrato ser eu e riar'o prinreiro tiro... - Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não és é rnacho, cclnfo a gente... Mirricars! Não tens vcrgonha? D á , 1 áo t i r o , ^ r ' d . ^ . . . - Merd.à para ti, caran.]1a! - Era g Gularnç -- Pre to de merda! - Dispara, pâ, não sejas meclrosc-r... Até L)âreceque é a primeira vez que aÉIarra nlu:rìa ânrìa. . . - Q t r i n r , e u n ã o q u e r o . l a r o 1 - r l i r r r c i r toi r o . . . - Se continuas assirn aÌgente clepois conta 7á na escola que tu tiveste r-nedo de n-ìatar o cã<>,que con)eçaste conf cagtrfas.. . A gentc vaí dizer qrre te borraste toclo.. . A gente vai contar isso, palervra clue vai contar... - Quim, eì.Ì não tetrl-ro cagrrfzr rìem naìda, não tenho t n e d o . l e r n a t a r o c ã o . . . E s ó l ) o r q u e o r r ì e u l - r a ic s t á à e s l r e ra lá enr casa... - Se elTrvez cle estares aí'a falar tivesses daclo o tiro, ja estaríamos despachaclos. Ancla lá, não sejas nreclroso! - |vl[scl1oso,tne-dfo-so ! me-clro-so ! - Eu não sou rneclroso! .Jríclisse, não sou rleclrosoJ - Ér. és.és... Atira se não és! Atira! - {1i16, sirn, e clepois? Eu nranclo já tll tiro no sâcâna clo cão... - 1556v é que é f-arlar!"..O Quim abraçou-n-re. Eu tinha a arrna áìpontadel ìrlas cl Cão-Tirrhosci fartava-se de clançar no polrto de mirzr. C) Quim não saía do metr lado: .+l
I-r ris Ilernzrrclo lÌ onur:rnur
-
Não atires à rrratar> estás a ouvir? Mas se quiseres, podes tÌtírar... Sabes, é só porque tu estâvas todo cheio de cagufa e era preciso rnostrar à rlalta qlre não és rnaricas. É por isso que tu és o gajo que vai dar o primeiro tiro... Eu se fosse a ti atiravà a Ínatar e despachava o gajo logo... Não há azar nertlturn nisso, foi o Senhor Duarte que rnandou... E assim poupavas o trabalho à rnaltu. É q.-r" urn tipo chega para mâtar o cão, e escusávamos de encher o gajo de chumbo, que isso é ser rrraldoso e se o Padreca souber disso é capaz de andar para aí a dizer que nós soÍnos ordinários. Sabes, Ginho... Eu acho qLreo Doutor da Veteriná,ria deviar ter liquidado o sâcana do cão corn LlÍrìa droga qualquer... Eu li numa revista que na América os cães matan-r-se corn drogas... Sirr, Iâ na América, quando um Doutor da Vetertnária quer matar urr cão que anda lá nas rr-ras cl-reio cie fericlas que é urn nojo, dá-lhe urna droga qualqt-ler... Só para rnostrar ao Doutor qt-le ele não percebe nacla disto a malta devia não rnatar o cão... Não era por medo nem por nada, mas erâ para o gajo ver... Ginho, não acl'rascirre clevia ser assim? Não, não achas? Hem? - Ó Quirn, pá, não podes conversar mais tarde con-r esse tipo? - Era o Gularrro. - Sabes, pá... Eu estava a dizer aqui ao Ginho uma coisa bestiarlL . . Não era, Ginho? É Llma coisa que a rnalta devia fazer, não era Ginho? - psli bem, está bem, contas isso depois, agora vai pârâ o teu lugerr e deixa o tipo dzrr o prirneiro tiro para a malta zrtirar também... Ou será que o gajo voltou a fr.car com rnedo de atirar? - Eu não estou corl medo, já dissel - Eu virei-me para o Gularlo - ELÌ atiro já... 12
Ncis nrart.inros o Clãc, Tinhoscr
-
[51[ bem, está bem, eLÌ só qlreria saber... Vamos, Quirn, vaí parâ o ter-Ìlugar... Ou tarlbém estás cctlr rlredcl? O Quirrr riu-se coÍÌro se arcluilo fosse rÌma piada e foi com a arma dele para cinla da pedra. Quando lri chegou, gritou paÍa mim: - Pn1[cl, atiras oll nãcl? A rlinha Ponto 22 de um Tiro (a clue estava colr-ì o Faruk) estava conl ulr-ì lreso clanaclc',,e pclr isso o Cão-T'inhoso Íartava-se de dançar no polrto de míra. Só os olhos dele é que não se mexiam nacla e olhavam sempre parrÌ mim. Comecei a f)uxar o gatilho muito clevagar. "Desculpa-me, Cão-Tinh()so, lrlas não vou atirar a n]ratLrf"... Eu clisse acluilo n-ruito baixinl-ro, e só o Cão-Tinhoso é que ouvia. Eu só havia cle darr o prín-reiro tiro porque a malta queria clue fosse eu, mas r-rãohavia cle mzrtar o Cão-Tinhoso! "É clue eu tenho tnedo, eu tenho medo, Cão-Tinhoso, rrìas eu vor-Ì atirar para a rnalta não clizer que eLÌ tenho cagufa". Depois vi que aÊ.nalnão estavaì1ÌpLr-\zÌl'o gatilho, porque tinha o cleclo no guarda-n-ìato. Comecei â plrxar o gatilho devagar para ter tempo cle clizer tuclo ao Cão-Tinhoso: "Eu não tenho outro reméclio. Clão-Tinhoscl. et'rtenho de atirar... Eu estou cheio de n eclo, desculpa, Cão-Tinhoso... Deixâ-me atirar e não rle olhes desserrnaneirzr... E,u e s t o r ìé c o r r r m e d o , e s t á s a o u v i r ? . . . E s t o u c o n m e d o ! . . . Se pudesse, fugía e levava-te corrigo. E depois tratava-te e nunca mais aparecias pela vila corrl essas feridas qr,re é um nojo, mas o Quim... +)
Lu i s Berrr rrrclo Ì-Ì onr.r'zrr-ra
A folga clo gatilho acabou cle repente e o peso da mola eriì tal, que cr Cão-Tinhoso dançava a.i:ndamais sob o polrto de mira da minha ârrrìa. Tive de fechar os olhos e era por c2Ìusa dos olhos do Cão-Tinhoso, qr-reestavam parados e olharram parzl rnim muito quietos, mesrno quando ele dançava no ponto de mira. - VamoS, pá, atíÍa lá que nós estanos à espera de ti; mostra que és teso e que podes contínuar conì a n:ralta!".. A moia ia cedendo aos pot'rcos e cada vez estava mais pesacìa. A tensão iria aurnentar âté o cão saltar e perfurar a bala. Então não haveria mzris resistência e o gatilho viria até erofitn, com o estoiro do cartucho na cãrnara e o Ìigeiro coice da coror-rha. Tinha de falar mais depressa pãreacarbarcle clizer tudo antes do estoiro, e não podia art>riros olhos senão velia os olhos do Cão-Tinhoso e não seria capaz cle atirar. "1-\ão vais sofrer nada, porqlìe o (]uim meteu na Calibre 12 rnais Lun cârtucho SG, e cls outros também vão :rtirar iìo nlesm() tenìpo. Não te rrai cloer, tu ainda cstás a penszìr er-n qualquer coisa e já estás morto e não sentes mais ntrclrr,nell-r rrs feridas a doer pclr causa da corclâ nem n a d i ì . . ." - p6112, atiras oll não, L)reto cle mercla? "TLr rnorres e varis parzr o Céu, direitinho ao Céu... Vais gozar lá r-ro Céu... À,Ias antes clisso eu hei-de enterrâr o ter-Ìcorpo e hei-cle pôr umal cruz branca... E tu vais para o lirnbo... Sinr, ântes de ires pâra o Céu, vais para o limbo, colrfo trura criança pequena... L,stás a ouvir, Cão-Tinhoso?"
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N ós rlrrtiinros
A Senhotzr Professorâ nos davâm
educação
sobre o Cão-Tinhoso, Logo
depois
perg+ifit{ru
o ( lão-'I'inhos<-,
se o:s x-rtr$süspais não
lá enl casÉËe r-iós nr-rÍÌaâ rÌlâis faÌárnos rÌìesnìo quelrldo estávanros no Sár"
do estoiro
ouvi unr grito lìlonstro
e naclar
nais. O tneu tiro devia ter rr-lasoardo nruito o Clão-Tinhoso para ele gritarr co1Ììo urr-tÍì pessoa. Iriclr-rci sem sarber o que harria de fazer porque
logo depois, o Cão-Tinhoso corrÌeç o u 2 rg , e r n e r -c o r T ì o r i l r r a c r i a r r ç a . Fui afzrstzr,nc-loas mãos dar cat'a e tlepois ill>ri c-rs,rll-ros. A Iszrura estava agarrada ao Cão- finhoso e era ela cluem estava ^ Élerrrer-,mas não sei se não terirr sido mesrlo o Cão-liinhoso quem gritara aincla hai bocado. A rnzrlta estaÌva toclir de boca aberta a olhar par'áì âquiÌo e só se ouvia zr Isar-trera gemer muito alto e a oll'rarr parar toclcls os laclos colll ()s oll'ros toclos saídos e muito
agarrada ao Cão--finhoso. O Quin-r fcri o prir-neirc-r a Íalar': C) que é qlre esta tipa vei<-rpeìr'aìacltti tazer? O GuÌarno também tinha ^ voz roucâ: Se cirlhar forar-n os pretos do Costzr que Ìhe disse-
ram... C)s n-roleqlìes clo Costzr estaviÌrlr 1-ror detrás da rnalta, clisfarçaclos no escl-lrc-rclos troncos das árrzores, e ctlllì iìs nãos cruzaclas sotrre o peito e os olhos todos srrídos. "I-oo'FIê!", "Hi!" dcrs eles ian-r clizenalo c À oll-rar tr)ara a malta. O capataz dos moleqtres clo Costa escondeu-se ainda rlais no tronco cle uma rlicaia e falou ccllr os braços a voar para todos os laclos: A nós não terrr cLrl'pa! Elc que veio prlrguntar', e gente veio corl
ele para ver jirnininu
cunr cão ! A nós não
tem curpa, só veio ver natar- cãol Não tem curpa!... 15
Ltris llernarcìo
l-lonrvanzr
-
Ah, negros cabrões! O Quim âpontou-lhes a Calibre 12 de Dois Canos. - Nu1Ìl nÌata nós, nurn tira, pâtrão. . . Hi ! - e clesai)errecerarrl toc]os ccllll rÌnr cergaçalmeclonho pelzrsmicaias, a gritar "Hi !" e "Hi!" O Quirn virou-se para a fsaura, que estava meio esconclic{zrno capim e colr-r os olhos todos de fora, a olhar l)ara zìnrailtare a éIerner.: * Ó tipínha. não te disseram que nós não queremos fêmea a esta hora? O que é que vieste p^ta aqui fazer? Não cluerctÌlos gajas a atraprìlhar o que nos manclararl fazer, ourriste? A Isarura r-rãodizia nada e só gemia para a ntalta. Ficou tr-rdo calado por u1r-rinstante e a rnalta a olhar LrnsL)arrrcls ot-rtrcls,serfi saber o cILÌef azer. - Eh, rnalta, temos de matar o cão... Foi o Senhor Duarte quem marrdou... Ele disse que contava connosco... - O Quirl já não estava rouco. - [512s1os aqui a cìemorar isto não sei çrorquê... - Quem é que está com cagaço? Quem é que se borr a n a s c a l ç a s ? .. . _EU não!... -Eunão!... -Eunão!... Toda a rnalta disse eu não e ficaram a olhar para tnim a ver o que eu dizia. - ELI não estou com câgaço, Quim.. . Eu não rre vou Lrorrar nas calças, QuitlEu estava a trerner todo quando disse acprilo, mas gâranto que não estava corn medo nenr nada. Então â E{entenão tinha vindo para ma46
Níis rn:rt:inros o Cão-Tinhoso
tar o cão que andava todo podre qr-Ìeera Lìm nojo? Foi c-r senhor Duzrrte que disse, e porque é que não havíantos de clar uns tiritos? Eu estarzaera coltl pella cle o matar depois de ele correr urrra clistância nìol-ìstriì para não nrorrer pclr causada bomba atómica e mais nada. - Girlho, tira 'a gaja cle cin-ra dcr cão! O Quim falava sem olhar pariì mim. O Faruk veio buscar a Por-rto ?2 cle Llm ïro, quc nre tinl'racaído das nrãos quanclo c{isprrrei,e voltou para o ltrgar dele. - [11[e, Ginho, estás conl cuÌgâçooLr quê? - Não, Qtritl, não estoll conl câgaço, nem nacla... Estousó a pensar... - Pensâs depois. Agora vai tirar a gaja do cão. O Quim falava sem olhar pzlra nrin, só a malta é clue nàc-r tirava os olhos de cin.a de rnim, parra ver se eu tinha cagaço ou não. - And2r lá deprressa,clue já estzíescuro... O senhor Duarte disse para despachanllos o cão nuÍn instatnte... A Isaura gemia e olhava parâ a maÌta com os olhos todos de fora. Fui arndando prara oncle a Isaura e o Cão-Tinhoso estavam, e ela, quarndo me via a ir pzrra laí, gerrria cadavez mais alto. - { s s q p 2 , s a i c l a í . .. - ï r a a g a j a , n ã o v ê s q u e e l a rn ã o q u e r s a i r ? . . . - Isaura... A gente qLler fazet o clue nos rrrandaraln Í a z e r . . .S a i d a í . . . - M a s q u e b u r r o q r - r ee l e é 1 . . . A r r : a n c a a t í p a , n ã o ouves? Agarrei-a por debaixo dos braços e ela sactrcliu-se toda para qlÌe eu a deixasse.Ftz nrais força rlas elzrdobra17
Lurs Bcr-narclo Ì {onrvarra
va eìspernâs e não ficava de pé. Mas já não lutava corrÌo no princípio e só gritava colrÌo se eLl lhe estivesse a bater" - Isaura, não vês que foi o senhor Duarte qlre Ínandou? - O Xangai também queria explicar aqr-rilo à Isaura. Puxei-a devagarinho e ela largou o pescoço do CãoTiuhoso, clue ficou a olhar para eÌa e a ganir corn a boca fechada cclr'ìrclainda há pouco. - Isaura... () Quim estava em cima da pedra e toda a malta trpot'rtervaas espingerrdarsparâ o cão. Isalrrà... Eu queria dizer-lhe qualquer coiszr r-nasnão szrbia o quê. - ÌJmmmr-ì1. O Quim colneçou a contar. Tcrclosharriam de atirar âo nlesmo tenìpo e por isso as balas não haviam cle ser muito custosas para o Cão-Tinhoso. Elc estava aincla a pensar err. qualquer coisa e já estava l'ì-ìc)rto.
-
Isaura... O Cão-Tinhoso deve jâ ter visto qr-reos outros cães não querem brincar com ele... Ninguém gosta clele... Eu nlrnca vi ninguém a passar-lhe a mão pelas costas confo se faz corrf os outfos cães. . . - Dooooooiiiis... (O Quim levou rÌm tempo enorÍne erdizer dois). "Ele deve saber que é rnelhor rnorrer do qr-re atÌÌrar aquilo tudo, os miúclos da primeira classe a atiÍar-lhe peclras e a fazer rodinhas par:à lhe cham at Cão-Tinhoso, a Senhora Professora a dizer-lhe suca e o Senhor Administrador ermar-rdar o Doutor da Veterinária rnatá-lo por ele ter fericlas por car'rsada bomb a atórnica. . ." - Liii.. " 48
Nos nratrimos
o L,:ìo-'l'ir-rhoso
A Isaura gemia e estava toda lÌlole, a não querer áÌlldar e com os olhos todos saícJosa oÌhar o Cão-Jìnhoso. Eu tarlbém tinhuÌ f)ena de ver o Cão-Tinhosc-r a lTìorrer, mas nãc-r adiantava nada levá-lo parar casa e tratar-lhe as fericlas e fazer urrra casirha para ele clorniq porque ele er^ c^L)az de não I}-r serbiaque ele já sabia de muitars coisas para €ïostíìrcüssc-r. só querer cl que clualquer cão pocliar ter. O Cão-Ïnhoso devia estar à esperarde clualquer coisa cliferente do que cls oLrtros cães ccrstLÌrlfalr tel, serxpre cc)r'Ìlos oll'ros 'azttis a olllarr, tnas tão grerndes qr.re paìrecia tula pessoa a peclir quaìqurer coisa senì qlrerer clizer. Il lr- esrlo quando olhava pâra os outros cães, pâra as árvores, pàrd os cíìrros a prÌssâr>páìra as Elalinhas do Senhor Professor a debicar l-ìo chão por entre as patas dele, pzrra os miúdos da primeír'a classe a jogar berlindes ou olÌtra coisa qualcluer-, paÌra cl Seuh<'rrAcltr- inistrzrclot: e para os ot-rtrclsa jogar à sueca na r''aranda clo Clr-rbe Lìclssábados à tarcle, par?r cr Quirn zÌ colltar coisas na loja do Sá, parzr a Isaura a dar-lhe o lert-rchee a falar com ele, selrpre quando olhava, estava a pedir querlqtrer coisar clLle eu não entencliar mas cÌLrenão der.ía ser só parer lhe tr,Ìtarem as feridets, para lhe darem de comer oLr para lhe fazerenr LÌnrzÌcasinha.
- rnÊsr Ficou ttrclo parurdo e até a lsaurlr czrlou-se e ficou dura. - Atirem, porrer! Eu queria clizer-te quaiquer coisa, Isâura... queria clizer-te tuclo o qr-reestava a pensar. - Poça, ninguém atira? - flsm) A Isaura olhava pareÌ mim conr aqueles olhos todos" ll c)
Ì-uis Bernirrcìo
I Ionu'iu-rir
-
A gente não pode dar nada ao Cão-Tinl-roso... A gente não sabe o que ele quer. Palavra clue a gente não sabe... A Isaura ficou a olhar L)ara mim sern ter compreendiporque clo, eu falei muito depressa. - Eu vclrÌ corltar. olrtfa vez até três, mas ai do gajo que não atirart ... _Isaurar... - Um... Doi. .. zí... 'Irês!... Logo ao primeiro tiro a Isaura agarrou-se-me de tal maneira que caímos, e eu fiquei corn tanto medo que the gritei: "Tapa-me os ouvidos!" Ela meteu-se toda no rrìeu peito e procurou-me as orelhas colrr as rnãos. Os tiros rebentavarn por toclos os lados e lrÌesmo com os olhos fechados eu via fogo a saltar dos canos das espingardas. O corpo cla Isaura estava duro e estremecia a cada estoiro. Os tiros retrentavaln sem parar, mas quando a Calibre 72 de Dois Canos do Quim disparava, o chão tremia e as árvores faziant "IÃaat . .." atê ao longe. O cão já devia estar morto mas eles continuafatrr a atirar. Sentia o ar querìte como o corpo da Isaura e tinha a boca cheia de pólvora, e isso dava-me uma danada vontade de tossir, mas não conseguia fazer isso porque estava cheio de medo do assobiar das balas que passavam por cima de nós; é que esse assobiar só acaltava noutro estoiro, que também não tinha eco porque mesnro antes de a bala acabar de assobiar o mato rebentava cofiì olrtro estoiro. Os tiros acabaram de repente e a Isaura ficou como morta, por címa cle rr-im, mas muito tlja. Quando ía a sacudi-la, vi por entre o capim o Quim a meter urn cârtucho rra câmara e a fechá-Ia. O nÌato todo estava ainda cheio do 50
Ncis n-ratárnos o (lão-Tinhoscr
barulho dos tiros a afãstar-se de nós, qlrando do buraco escuro clo cano da CaÌib re 12 brilhou um fo€Ìo rápido e q u a s e b r a n c t > e a o r r ì c s l ì ì ( )t e l ì ì l ) o s c o u v i u o e s l o i r o . A Isaura deu um berro com toda a força e voltc-ru a enfrar-sepelo met-Ì corpo. I)epois, ao lrlesn-ìo terrpo cìue o estoiro ia rebentanclo preÌo mato fola, cada vez rlais longe, cluviam-se outra vez os gerniclos da Isaura. Eu sentia a barriga clela muito quente e suada, tocJa colacla à rrrinha. - Chega, ntalta, \/zlmos errbora O Qr-rim estava mais rouco do que ainda há bocaJo. A rrossa voÌta o capirn fazia " fff -fff" quando eles andavam. Ó pá, quando mandei o SG, o tipo comeÌÌ enl cl-reiono peito... Eu vi-o levantar-se tocio do chão e a ellterrar-se todo no capin... Ainda ressaltou conro se fosse de borracha, vocês não viram? - Eu acertei-lhe 1lo olho esquerdo quando o tiçro ainda estava de pé. O focinho até lhe ficou todo para cl lado com a força clabala... .E depois meti dois 3As e mzrnclei-os quase ao mesmo ternpo par2r os cornos c1ogajo. O tipo c-leveter ficaclocom a cabeça toda rebentada... - Ó pâ, tu com o SG mataste-o logo... A gente atiÍoÌÌ parâ um alvo já morto... -E d e p o i s ? O q u e é q r - r et e n s c o n ì i s s o ? . . . E u a t i r o com o que bern nle apetece... A Isaura gemia para mim e chorava baixinho, senl lhe saírem lágrimas dos olhos. O cabelo delar estava cheio cle capim mas só cheirava à pólvora quancJo se me rrÌetia peÌo nariz adentro. _ Isaura... A barriga dela ficou dura, toda colada à r'ninha. 5i
Lrrts llclnarclo
I lonrvern:r
_
vanlos eÍllb()ra... As unhas dela furavaffì-me o pescoço, mâs el'r flostava e n?io trre rnexia. - Isaura. . . A cara clela esta\za querìte como a barriga. - ELÌ só gostava de saber o que é que aqueles dois estão para ali a fazer escondidos no capirrì há uma data de telTÌpc-). " "
-- Foi o Quim. A Isaura levantou-se logo e pôs-se a cornpor o vestido,, toda cnvergonhada. Depois olhor-r pàra mim e fugiu para as árvores. Durante algurrr tempo ainda ouvirrros o barulho do vestido dela a rasgar-se pelas nricaias, mas depois ficotr tudo em silêncio. -_ Vatnos embora!... O Quim veio ter comigo no intervalo clo lanche. Eu vi que era ele rnesrrlo sem deixar de olhar pavà os cães a brincar do outro laclo da estrada. - Ginho... - Diz. - d 5 1 sé u r r r a c h a t i c e . . . -É Sentou-se nas escadas ao pé de rnim e ficou também a olhar para os càes. - Eles não queriam brincar coÍÌr o Cão-Tinhoso apontiÌva pariì sle5 eles não queriam brincar cotrr o Cão-Tinhoso!... Falar"r cor'.^muita força e espalhava os braços para todos os lados. - p6s1s tr.rqLÌe nle contaste isso, não foste?. . . 52
Nós rnatánros
o Llào-'I'tnÌroscr
Os sapatos da Senhora Prof-essc'rrafaziant "cóc, cóc, cí1c", atrás de nós, mas colrìo eLr estavzì a collvefsar com o Quim e a olhar para outra coiszr,não precisava de n-relevantâr. - S a b e s ? . . . A f s a u r a f c r i d i z e r a o p z r iq u e n ó s . " " - O quê? - E l a p e d i u i r o p a r ip a r a n o s b a t c - r . . . -ff,211sr)... Porquê? - P o r q u e n ó s m a t á n - ì o so C ã o - T i n h o s o ! . . " E ria-se com força, todo torcido. -- Não é tramada? E esta, heinr ?. . . Bater-nos porque nós matár-nos o Cão-Tinhoso!... Depois calou-se. Aí falor-r zrSenl-rorir Professora: - Meninos> para a auÌa! - G i n h c l . . . T u p a s s a s - n l ea p r o v a ? - O Q u i m a b r a çou-lne pelos ombros. - Deíxas-nre copiar?. . . _ E,stá bem" - Ginl-ìo... Tu estás zangado comigo? A gente não c l e v i at e r l i q u i d a d o o c ã o ? . . . F o i o S e n l - r o r D u a r t e q u e mnndou. . . Tu tarnbérn estavas Iá. . . - Eu não estou zangado nenÌ nada... _- pn1[6 passas-rne os problemas?. . . Ì)assas-n.e?. . . Eu faço-te o desenho... - Esrá bem. - Meninos ! Para a aula ! Para a rrula, iá disse ! E, Íbmos pâríì a aular.
5l
Invent谩rio
de irn贸veis
e iacentes
As portas e as janelas estão fechadas" O Papá Íìaìclgosc<>m zìs portas e as j'anelas rrbertas não sei ta de donlir porquê. Pode-se pensar qr-reé por causa da doença, mas eu acho que eÌe foi sempre assim. Ele agora dortne no nosso qlrarto porque os n-rédicos, quando lhe deram zrlta. recortendaram-lhe que clorrrrisse nurla can-ìadura, o que se improvisou no nosso qlrarto, já qr-renão convinl-ra rnexer na cama de casal, ncl quârto dele. O ar está pesado neste quarto, pclrqr-le além de estar tuclo fechado, dormenr aqui, incluindo-me, 5 pessoâs. As vezes somos 6 e isso dá-se mais frequentemente, porque a cama agorá1 ocupada pelo Papá é norrralrrente ctcl-r1)acla çrela Tina e peltr (ìita, que agora donnenr colrì a Mamh llo (ìÌltro clrÌarto" O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra czìlrÌâ ressonanì. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. C)nterl, quancìo h-ri sorrateiramente abrir a porta, clepois de deixar que c-lsolrtros adormecesserrì bem, c,urriresson'ar no outrc> qLraìrto.Não sei se era :r Mamã ou se era a Tina. Devia ter siclo a Mzurã. Sim, acho c1rlefoi a Mamã. enrbora não tenha a cerÍeza. Será que eu taurirém fessonarei quando adorlnecer? J7
Luis Ilernardo
.Honrvturer
C) Nandito muclou de posição e disse qualquer coisa. Deve estar a sonhar. Além do quarto em que estâmos e do olltro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais 2 divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tern as paredes enegrecidas pelo furno, porque dantes a Marnã tinha ali o fogão, a um canto. É oc,-r.padapor 1 mesa já despolíàa e sem estilo, rodeacla por 7 cadeftas, Lrma de cada espécie, urn arnrárío elrr que alguém escreveu "Elvis", e vários sâcos no canto, atrás cla porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradas Lrma para a outra e encostadas, uma aos sacos e a outra ao armário. Ao meio ficzr o prato de alumínio. Quando faz frio sentaln-se sobre LÌma esteira. Invaríavelrrrente o prato co1ìtém arrc.z e caril de arrencloinl. Naturalrrente um dia uma clelas enjoou e virando a c^ra pegou nunÌ lápis e escreveu "Iflvis" no armário. Acho que devia ter sido assirn porqrÌe a inscrição está nurrr ponto tal do arntârio que forçosanlente foi feita por alguém sentado ao nível do chão. A sala de visitas teln urrìa parecle cornrlm cofiì o qÌrarto oncle estanros e outra com o quarto onde estâ a Mamã. Alén'r der porta clue dá para a rraranda, tem outra que clá pera LÌm c}rartito zr que chamanfos Coffedoq pafa onde tanrbém clão a portâ deste quarto> a cla sala de jantar, a <1o quarto c1aMamã e a da casa de banho. Aci-ro qlre a Mamã tilou o fogão da sala de jantar por causa clo fturno, elnbora as parecles já estejarn todas negr:rs. 1-alvez fosse porque as paredes do corredor e clos querrtos começasserì a eneÉïrecer também. Agora a Mamã cozirrha rrLlllìrl palhota que se constrlÌiLl a um canto no 58
Irrventárir'r de imóveis
e jacentes
quintal. Apesar de se ter mlldaclo para rá ha be'r pouco ternpo' a palhota está quase negra, tanto por crentro como por Í'ora. Agora de'e lá estar a clor'rir o úud,r.anzr" A pa_ lhota não tem nada a'edar a enrrada. c) Totó clerrelá estar a dormir também. Não o ouço a laclrar. Para se passar da sala de jantar para a sara de estar tem-se forçosan.ente cle F)âssarpero co..e.r<l.. Acho que por lá passamos sempre qt.le \/amos cle u'ra clivisão para outfa. Entre a porta que dá píÌra zì casa cle banho e a que clá para este quarto, encostada à parede do Cor.redor, há r_rrna estante conr 5 prateleiras tocras cheias de rivros. Terl a cobri-la uma cortína feita dum pâno icrêntico ao do clas cortinas da sala de visitas. As corti'as do quarto cla Manrã são também do nresrn., pano. Só neste quarto é que as cortj_ 'as são diferentes. são dunr pano éÌrosso e amareracro. A Tina diz que o pano é feio, n-ìas quando o papá esteve preso tirou 2 cortinas e com elas fèz 1 saia que'ão era páìrecida con-ì nenhuma szriaque eu n-Ìelernbrasse cle ter visto. Eu acho que era feia. o Nandiro vohou a'ruclar cJeposição e .ì farar.parece que está com vo'tade de ir à caszrde banho. o colchão Íaz o barulho de palha a esnìagar-se. Toclos os corchões das nossas canÌas são de pa[-ra, ''ìenos o cÌa Marlã. ,Esseé de sumerírma. Foi cor'prarJo ern segunda mão pelo Mano Mário, que depois o vendeu acl V"pa. É,-,m borr'l colchão e eu gosto de descansar nele. euanclo esto. cle férias queÌse que passo o dia lá deitado. () papá zanga-se quanclo rne vê lá, e, por isso nresmo, tenhc-,o cuidaclo cle eviia. qr.renìe 59
Lurs Bernartdo I lonwzrrrzr
âpânhe" A Tina está o teffÌpo todo à espera de ver quando é que eu saio pata se ir lá deitar também. A Mamã disse urrìa vez que a preguiça é urn defeito feiíssimo nuÍna mulher, e er.rrepeti isso rnesmo à Lolota quando urìfa vez avi deitadar no colcirão de sumaúma. Além clo colchão de sumaúrna e da caÍ11aque o contém, o qlrarto da Mamã tem 1 berço ern que dormem o Joãozinho e a Carlinha, 1 cómoda, 1 guarda-fatos, 2 mesinhas de cabeceira, uma de cada lado da cama do colchão de sunraúma, e 1 rlala de cânfora sobre a qual estão várías malas cle viagem. Sobre as rnalas de viagem deve estar o monte de roupa que â Mamã engomou durante a tarde de hoje. Ern cornparação, o quarto da Mamã é melhor do ql-le o nosso, que além das J camas e 2 rnesinhas de cabeceira, só tem 1 rnala cfe cânfora. Debaixo clesta calrìa está guardado o lrreu material de desenh<-te pintura, contido em dois caixotes de madeira. FIá ainda mais 3 caixotes corrl livros. Debaixo da cama ern que estri o Papá há mais caixotes com livros. As revistas esttlo distribuídas pelars 4 mesinhas de cabeceira dos clois quartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a nÌesa cle centro, sobre o aparador, sobre a máquina cle costura e na mesinha do ráclio. Se agora quisesse ler unra levísta ia direitinho à rnesa do centro, porque lá e que estão as "Lifes", as "Tinfes" e os "Cruzeiros" mais recentes. Nos outros lugares dzr sala de visitas estão as revistas mais antigas e as mais ordinárias. Na Ínesa do centro está tamllém o "Iìeader's", mas talvez neÍìf lhe tocasse porcpe parece que não é grancle coisa. O Papá diz que 60
I r r r c n t a l i o t l ç . i r r r t r v c i s( . i : r \ ' ( - r ì t c s
e uma porcâria. Bem, Ínas llârzÌ ele todas as re\/isras que a Mamã costu''zì pôr na saia de visitas são uma porcaria. í por 1r isso que 'ão tenho assim tantrì vontade de sair da cama errrbora não tenha sono nenhurn"
()l
Dina
Dobraclo sobre () ventre e con-ì as n-rãos pendentes para cl chão, Maclala ouviu arúltima das doze Lradalaclasdcr rneio-diu. Erguenclo a cabeça, clivisc-rup()r entre os pés de milho a brancura esverdeada cJascalçr,rsdo czrpataz, a dez passos de distância. Não ousou enclireitar-se rlais porcÌLre sabia que apenas devia largar o trabaÌho quarndo ouvisse a orclenr traduzicla nlrrrr berro. Apoiou crscotovelos aos joelhos e esperor-r pacientemente. O sol estav?ì mesrìÌo em citrra do seu dorscr nrl, mas convinha sLrportarrum pouco mais. (lontou o tempo pelo número de gotas de suor que lhe pingavam ;rela pontzr c{o nariz para Lrma pedrinha que brilhavâ no chão, a seus pés, e concluiu que o caF)atàzclevia estar nruito zangaclo. Voltou ?respreitar as pernas a dez passc>sde distância e viu as ainda na mesma posição. AÌongando a vista parzÌ além delas, viu a mancha escura do corpo clo Ìrílir-none, igualÌrìente dobraclo sob a supertÌcie clarsfolhas mais altas dos pés de mi-lho, aguarclando a ordem cle larrgar o trabalho. A dor de rins era-lhe insuportável, e muito pior agorar que já, tinha tocado o cÌina. (]uando os rnúrsculos clo pescoço lhe conreçaram a doer pela torção a qtre os subn etiul, mantendo a cabeça erguida, deixor-r cair os braços ate tocâr nas folhinhas carnuclas e escorregadias clas ervas clue 6J
l-uis lJernardo
Honwan,r
devia arrancar. MrrquinaÌmente, apâlpou-âs parâ sentir a resistência clo cal-le dimintrto, entrânhou os declos p<lr entre os rarninhos e retesou o ccrrpo. Embora a plantâ não suportasse grar-rdemente o ernpuxão, os tendões da parte posterior da irrticulação do joelho Tatejaratn-lhe cìolorosamente. Depois ergr-reu a planta para se reanirrrar com o cheiro forte da terraì cpre vinl-ra presa às raízes esbranquiçadas. Enquarrto aspirava sofregamente, corrì as raízes da planta apertaclas contra o lábio superior, observou o buraccì que se produzirano chão. Iìeahnente, o dia estava muito qLlente porque llem urrr fio de vapor se escapava de 1á. De rnaclrugacla, e clurante as primeiras horas da mar-rhã, ainda húmido clo orvalho nocturno, o chão humoso cla machamba íturnegarra rnesmo clos torrões mais pequencls e o trabalho não cansava tantcl. Mas quando o sol jâia alto, só clos buracos deixados pelas plantas é que saía al gurn vapor, e rnesmo cfaí, caáa vez clurante Ínenor espaço de tempo. Deixou cair a planta e escutoÌÌ. Nacla. Só o ulular da brisa por sot>re as folhas rnais altas do mill-ro. Voltou a endurecer o corpo e a deixá-lo pender para trás atê que a planta que tinha segLrra na mão deixasse de oferecer resistência. E que assim poupava os rnovimentos àtê. ao imprescindível. O esforço de aÍrar'caÍ uÍna planta resultava da aplicação de parte do peso clo próprio corpo, e não de contracções dos rnúsculos dos L;raços, que só dobrava de vez effÌ quando, para sorver a força dos torrões que vinhâÍrÌ presos às raízes. Quando arrâncou a sétirna planta desde que ouvira a úitima badalada do dina, o velho voltou a espreitar por entre os pés de milho, receando não ter ouvido a voz do 66
Dirrri
capataz. Apurou o ouvido durante um pedaço, nfas só ouviu o murrnúrio abafado cla oncl-rlação. Madala enclrrvoll-se parâ a frente erté experirrrenttrr uma clor lancinante, mas nessa altura já tinha a plar-rta bern segura e inclinolÌ-se para trás, até qr-re ela se desprendeu clo chão. Por entre as raízes saltou unì escorpião, mas como não lhe conviesse erglrer-se e não tivesse ulfla enxada à mão, deixou-o fugir. fJm pouco assustado, Madala pensolr que se fosse rnordido pclr âqlìele escorpião teria dores horríveis durante três clias e talvez morresse rrc) quarto. Sim, jâ não era tão robusto que purclesseresistir ao veneno de um escorpião daquele tarranho clepois de três dias de dores. Às primeiras horas da manhã ainda saltavam gafauhotos das folhas das plantas que zÌrrarlczìva,mas àquelas horas só apareciam escorpiões, lacraus, lagartixas e zrté ntesmo cobras. O Pitarrossi morrera nìordido tr)or uÍïraÌ cobra que o atàcàra quanclo trabalhava r-raquela machamba. Nenhun. dos olrtros conhecera o Pitarrossi, mas todos deviarn conhecer a mulher clele, que cìepois disso começara a dormir conr os hornens ql're lhe pagavam bebidas nas cantinas. Primeiro dtzia que só se deitarra con-ì quem ll-re desse vinte escuclos, rnas agora só the interessava beber. Quando havia magaíças, ernlrebedava-se de tal maneira que não era preciso dar-lhe nadtr, e, então, qualquer um, mesrìlo que trabaÌhasse nas mzrchanrllas, levava-a para o capim alto atrás das cantinas. Mas todos sabem qLle qr-tando é assirn, ela adonrìece logo e só acorcla quanclo o homem se Ìevanta. Só ele é que já estava tão velho que não ia dormir com ela. Alérn disso, tinha conhecido o Pitarrossi. 67
Luts
Berurrrd<'r
Horru'etnar
Maclala arrancou mais dr-rasplantas e esperou, de cotovelos apoiaclos aos joelhos. O sol parecia aproximar-se a cadâ instante, mas já devia faltar poucó pare_o capatàz rnandar largar. De reprente, sentiu o víolento esticão dos fios da sua cl..ença. Era o prirneiro nó. Atendendo à ordem do capataz,Madala não se tinha apercebiclo do esticar clos fios, nras agora, depois de sentir o prímeiro nó por entre as dobras do intestino, endureceu o corp)o na rrã esperança de contrariar o enlaçar dos fros corrì a tensão muscular. Todavia, o fio que descia por dentro cla gafganta encrespolr-se por alturas do meio do peito, formirnclo um novelo que cleslizou rapidamente para o estômago. Durante os segundos de expectativa, as veias do pescoço qllase qr'le explodiram no ser-rlatejar tenso e o corpo estremeceu-lhe convulsivarnente. As folhinhas da plar-rta que tinha nas mãos desfizeram-se, exalancÌo unra Íragrâncía opressiva. O segundo nó quase que lhe aÍraÍtcava os rins, mas pelos lábios apertados de Madala nem unr único queixume se escapou. "Porque é que o branco não manda largar> ..." Murrnurou Madaia, tentando alcançar os raminhos de urn arbusto. - "psscle qr-retocou o dina as sombras já cresceram dois palrrros"... Ao puxar o arbusto, Madala não pôde evitar que os joelhos se lhe dobrassem e, como não largasse o apoio dos raminhos, caiu de borco. Quando veio o espasmo doloroso do nó, as pernas en clireitaran-r-se-lhe violentamente. 68
f)ina
Pouco depois, corrl o corpo e fofa, sentiu os fios a afrouxar olhos corrr força e esperou que De joelhos, já reconposto
estirado sc-rbrea terra seca gradualmente. Fechou c'rs ersclores desaparecessenr. da crise, Maclala lançou mão a um tufo de ervas e desenterrou-as clevagarr. "Não se pode trabalhar cle joelhos... " -- lr-ìurmurou enqlÌanto deixava cair as erv?Ìs.Agarrou o caule cle um pequeno arbusto, mas antes de o arrancar sepzÌrou o molho de caules das ervas que acabava de atir-ar ao chão e contou- o s :" I J m . . . d o i s . . . t r ê s . . . q u â t r o . . . c i r l c o . . . " . Quando acabou a contagem ârrâncou violenlamente a planta qlÌe lrantinl-ra na nrão direita e alinhou-a às out r a s : " s e i s . . ." "Não se pode trabalhar cle ioelhos..." - sibilou, enquanto esmagava corrr os dedos as folhinhas cla sexta planta. Con-r um suspiro deixoll-se ton.bar sobre o ourbrr-r clireito e enroclilhou-se no chão. apertando o clueixo acls joelhos. Com certa satisfação, lembrou-se dos fios da sua cloença, agora quietos em volta clos selrs órgãos. I-evou à boca o qlÌe restava da sexta plar-rta e cclrÌÌeçou a mastigar de oÌhos fechados. - Chega >r^pãzes! Varlos comer! "Sete! Oito! Nove! Dezl..." _ Madala efgueu,se precipitaclarnente e arrarlcou as qllatro piantzrs. Depois passou os dedos pela testa para espaÍìtar unras gotas de suor qLle quando escorrierm provocavan arclor nos olhos. Não se levantou logo. Não convinha que o càpàtàz notasse que tinha pressa em largar o trabalho. urrr últiQuando aflorou à strper:fície expelirrentou mo esticão e urna vaga tontura. O n'Guiana e o Mutakati já estavam de pé, nìas cl capataz dizia-lhes: 69
Lrtis lJema rclo I'Ionu,ar r:r
p21a conleçar são urnas corrrichões qt-renunca rììais acabarn, rnas para despegar é a correr, não, nìeus cabrõezinhos? Continuern assilrì que eLÌ desanco-vos o lombo... O Filimone, qlle estavâ só com a cal)eça de fora, afunclou-se até aos olhos quando ouviu os berros do capat2ì2,mas, vendo o Maclala, ganhou c<-lragerrle endireitou-se com uma espécie de desafio no olhar. Aos poucos, o Tandane, o Djimo e o Muthambi foram emergindo da machamba, corfr os olhos postos no capataz. O corpo do Djimo estava todo coberto de suor, rnas ÍÌlesnfo assirrr o Madala observou a clança bonita dos seus nrúscr-úosassustadíços debaixo da peie da cor da areíado rio. - Vamos ao chicafo!... O capataz iniciou ar.rnarcha e os outros seguiram-no ern silêncio. Madala estendeu o olhar ern volta, sentinclo um certo prazer enl rnagoar avista nos pedaços de sol que saltavam das folhas lisas do milho. "Machamba é como o mar". Os outros já ian-r longe, meio mergulhados na espessura esverdeada da machanba, caminhando lentarnente conlo se realmente estivessem a vencer um meio líquido. Madala continuou imóvel: "Machanrba é como o n - ì a r " . . . i n s i s t i u e n q u a n t o s e g u i a c o m a v i s c ao o n d e a r d a superfície uniforme da machamba. Só lá longe é que se desfazia a onda e1l que viajava o olhar de Madala, assaltada por rnil fulgurações prateadas, pequenos sóis tornados cometas pelo vento. -
Quando Madala chegou ao acanparÌìento, os outros grupos já tinharn chegado. Alguns deles iâtinhan almoçado. O grupo clo desbravalTÌento, eue era sellpre o primei70
I)ina
ro a chegar, estava agora disperso pelas sombras. A maior parte dos seus homens dormia, para se reconlpor clo esforço dispenclido durante a manhã. O gn-rpo da horta devia ter tardado, L)orque José, cl seu kuka, aincla estava a fazer a fogueira para a botwa de farinhzr. Madala dirigiu-se para urn dos celeiros velhos e sentou-se à sombra, escolhendo lugar entre os hornens clo grupo do curral, que, ao vê-lo aproximar-se, deixaram de conversar sobre mulheres e vestiram urn ar mais reverente. - Madala, corno é que vão as coisas no ter-rgrupo? - perguntou Lurìa voz. Madala não respondeu prontamente, porque antes de emitir qualquer opinião, tinha de repetir a perglrnta interiorlnente e ouvir a resposta clo seu íntimo. - E;az muito sol na macharnba... clesculpor,r-se avoz ante o mrÌtisrno de Madala- Sim, faz muito sol na machamba... Sentindo a obrigação de continuar a fazer-se ouvir, àvoz arriscou: - E o branco não sai de cin.a de vocês... Madala fitou a cara jovem do seu interlocutor e tentou lernbrar-se de qualquer coisa que pudesse dizer, cle maneira a fazê-lo compreender que não era necessário que continLrasse a ÍÌrostrar-se interessado. - O branco é mau. continuava o rapaz - EIe demora muito antes cle manclar largar. .. F-u via isso qlrândo traLralhavar'a machamba... Tarrrbém não deixa as pessoasendireitarern-se por urn Lrocado para descansareln as costas... Eu vi isso nrltnâ vez... - Subitâmente inspirado, o jovem virou-se para os olrtros - is16 não é rnentira, juro que não é rrrentira... uma vez, esÍávamos nós a trabalhar -7
1
Luis
llern,rrcl<.l
Ho1-ìu'zìna
na rnacharnba colTì o branco. f-azia muito sol... toda a gente siìbe clLrefaz muito sol na nìeìchâtrba... vocês vão ver porque é que eu dígo que o capataz é mau. Estávamos nós a trabalhzrr na macharnba. .. Fazia muito sol na merchanrba o jovem continuou a narração, cada vez tnais tomado prelo er-rtusiasmo, transferinc]o a audiência dzrs suas palavras de Madala para os seus companheiros. O velho otrservou o capatà4 que sentado nulTì caixote, â LlnÌa clas sornbras contíglÌas, se serrria clo seu almoço. Diante dele as rrrarrnitas empilhavarrÌ-se sobre Lrm olrtro caixote que servia de mesa. Cornia com muita vontade e bebia o vinho pelo gargalo. Quando MaclaÌa ia zìscantin:rs, no {im do mês, oferecia um por-rco do seu vínho aos amigos, rrlas o capataz nunca ofereciar o seLl vinho arninguérn errrbora neÍÌl serrÌçrre acirbasse as garrafas qt-re a rnulher lhe mandava para o almoço. O vinho era cle Llnl anìarelo sujo e ^ gattafa estava toda suacla. Quando o branco bebia, até fechava os olhos. _ Madalar _ E,ra o Djirno _ NIadala, vamos co_ nÌer. .. Pelas sombras, os hornens dos vários grupos da propriedacle <lescansavalrì e comiam. Havia muitos que Maclala nern conhecia, mas todos o conheciam, e o cumprin-Ìentavan, quando passava. - M.dala! Eu não te disse lop;o, mas era só por causa do branco. Está ali a tua filha. A Maria vinha 1â ao encontro deles: - Boa tarde, pai! ... - Boa tarcle, minha filfia. 72
I)ina
O Djimo âproxirnou-se de Marier: - Maria, eu fui brrsc:rr o teLÌ pai 1-rarar o veles, mas scl agora é qr,re lhe clisse cÌue cstão aqui, porque cr braìnco estava a corÌfer nt-lnf sítio perto clo lugrrr oncle ele estava sentaclo. . . -Marí4 c c l n l o é q u e e s t ã o a s p e s s o a sÌ á d e c a s â ? . . . - Marlala, é nrelhor ires fal.ar cor-ìì a tua filha nâqLÌela sorrrbra. La não lr:i sol. [, rrrcllror'...Maria. vai lrrrra ztcluela sombrar e leva () teu pai contiéìo para frrlares com ele. Lá não há sol. . . O Diimo çrareciir g()strrr mlrito clarMerria, lrlzìs o velho sabizr que corrìo ela dormiar com muitos Ìromens ninguélll queria casâr-se com ela. - Maria, ccllfio é clue estão as L)essoâslá em casa?... - Lá elrì casa estão todc,rsLrons, pai. IÌu vim czi Lrara te vef ...
-
Eu estorÌ bom, ninha filha... Todos os homens c]o 2ìcampamento olhavam L)ara a Marria, percorrendo-lhe as fbrmas apetecíveis por sobre a capulana. Boa tarde, Maria!... ïrdos a curnprimentavam, buscando LÌrrr olhar, nas elir respondia sell:Ì afastaf os olhos do chão. Madala e Maria ficaram curlados clurante um peclaço. Maria sentilÌ-se embaraçacfa com os oihares qr-re os hornens lhe lançavanl. - Madala, não qtreres vir comel) - Era outrzr vez cl Djirno. - Agora é rnesrlo para comer porque o n'Cluiana e o Muthakati jâ acabararn de tazer a cornida. Agora não é só para o branco não perceber qtre a tua filha veio aclui para te ver... É -.rn-ro par2Ì comer. -74
l-uis ìien-rarclo FIonu'an:r
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ELì fico aqr-ri corrl a minha frlha, Djimo. O capataz surgiu da esquina do celeiro e aproximou-se conì um cigarro na rnão: - Olá, Maria! O que é que vieste câ fazer? E,stás a engatar o Maclala?. . . Ao Madala não deve ser porque está nruito cocuana. .. Ta|vez seja ao Djimo... Maria, tu estás a engatar o Djirno?. . . - ELr não está engatar Djimo respondeu Maria, tentando falar enr português. Divertido, o capataz interrornpeu o movimento de levârocigarroàboca: - Mas tu não gostarias de dormir com ele? De olhos postos no chão, lVlaria não respondeu. -
Madala, varnos comer... As pessoas que trabalham na machamba oLÌ noutra parte qualquer precisam de comer quanclo chega o dina! Madala não se pôde pronunciar imediatamente. Naquele rnorrìento olhava para a filha, tentando descobrir o que ela sentiu quando o capataz the dirigira a palavra. Maria desviou o olhar. -P^1... Eu penso que é melhor ires comer. Maria esgâravatava o chão com um pé. Ao ver qÌre o Pai conhecera o seu nervosismo, recotheu o pé precipitadamente. Cruzorl os braços sobre o peito e apertou as costas com as mãos. Maclala aproxirnou-se mais da filha e tentou espreitar-lhe os olhos ensombrados pelas pestanas descidas. - Porque é que tu pensas assim? Ao ouvir a voz cava mesmo jtrnto à sua cara, Maria esqúvou-se ainda mais, cluase que fic'ando cle costas para o pai. 74
l)ina
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Bern, eu não tenho nacla... Eu não tenho nacla qr'le me faça pensar assim calou-se por um bocado, mas logo continuou um polrco mais animad:r eu não sei, pai, rlas penso qlÌe tr-rprecisas de ir cclnrer... Madala contornou o corpcl de Maria e pôs-se-lhe en-r frente, corrì os joelhos exageradarnente dobrados, renrando ver-lhe os olhos definitivamente esconclidos por detrás das pálpebras. - Tïr pensas assim/. .. - Tu precisas cle ir corrler, ;pa.i... - de olhos fechados, Maria falava mais afoitamente. - Mas eu não tenho fome nenhurna na minha barúga... Madala abriu os braços colrlo que admirado. - Tens de ver que não tenho fome nenhuma na minha barriga... Maria não retrucou. - E tu não queres comer, rninha filha? - Eu corni nas cantinas, antes de vir ver-te. Quando eu ia a passar pelas cantínas urììa pessoa atrrigaviu-rrre c chamou-rne7â para dentro. Essa pessoa antiga corrÌprou-me urrlas coisas e disse - toma lá, isto é para tu comeres - e eu comecei a corner. - |y1[21isabriu os olhos. mas techou-os imediatanÌenre. - E agora jâ não tens fon.e? Não queres ir corner dar comida do meu grupo? - A voz de Madalzr estava ansiosa. - Não, rneu pai, o qLre essâ pessoa amiga me ofereceu para comer deixou-rne satisfeita e àgicra jâ não tenho fome. Eu fico aqui à tuzr espera enquanto ccllt-es. Djimo censurou o Madala: - Madala, atuafilha está a dizer coisas muito ceÍ'tas... Il Madala desistiu: 75
Luis Bcrr r :rrcl.-rIlonu'arra
p51f bem, et-rvot-l comer e tt-r esç)eras-lne aqui... Maria abriu os olhos quando pressentiu o pai a afàstaf-se. O velho L)artiu um pedaço cie côi, molhoLÌ-o no tacho do m'tchovelo e levou-o aìboca. Os outros irnitararn-no. Corr.ram silenciosamente. O rn'tchovelo estava clelicioso, todo cheio de gordura. -
Do ponto errl que estava sentado, Madala poclia ver â Maria, meio oculta, à sombra de um celeiro. Embora estivesse o tempo todo a olhar paralá, não viu o capàtaz a chegar. Maria respondeu às trrerguntas do branco sern tirar os olhos do chão. Madala sentiu pena de não pocler ouvir o qlre <lizian, e, por isso, pergrÌntou ao seu íntimo o que é que um horrìerr-ìdiz tt urìÌâ mr-rlher quando qlrer ir dormir com ela. O seu íntimo estava adorrnecido. O capataz parecía zangar-se coÍÌl a Maria, rrras às vezes falava docemente. Tirou urn pacote de cigarros do bolso, abriu-o, escolheu urn, acendeu-o e apagou o fósforo âssoprando-lhe LlrÌra nlrvem de furrro. Manteve a rnão no ar>brandindo o palito ardiclo à medida que falava. Quando acabou de fumarr o cigarro, voltou as costas à Maria e desaparecelr na esquina do celeiro. Pouco depois aMaria tomava o 1Tìesrnocaminho. O côi já estava rnuito reduzido, nras Madala tinha a certeza de que ninguérn saciara a fome. O último bocado era pata o n'Guiana e o Muthakati, os kuka clo grupo. Os restos do rrr'tchovelo também eraÍn para eles. Depois de sugar das mãos os últimos vestígios de cornida, Madala esfregou as mãos Lìrrraà outra e passou-as 76
I)ina
pelo cabelo. Dando a refeição pror fincìa, levantorÌ-se. Os outros imitaranf -ncl. Ainda faltava algum tenlpo pareì serem horars de voltàÍ a mergulhar rìa rrìachamba, e pclr isso M:rdala olhou em volta, proclrrando um sítio para descansar. Os horlens do grupo do curral afastararn-se e o velho voltou para o sítio oncle antes tinha estado. O joven-r que ainda há pouco the dirigira a p-,alavrafitava-o allora corìl umâ expressão cleliberadamente irónica: - Madala, a tua filha está ali atrás, a colrversar com cl branco... Elías, cl ellcarregado clos homens do grupo do curral não gostor-rda provocação: - Qlrando as pessoasnào conrpreelrdeln certas coisas derrem calar-se. O silêncio tornolr-se pesado. Maclala buscou com a mão uma planta que sentira junto à suerperna esquerda. Prendendo-lhe os raminhos entre os declos, enrolou uma boa parte do caulezito rnaleável ern volta do pulso e puxou corn cleterrninação. O arbustc't desprendeu-se da terra com LÌma explosão surda. Djimo aproxirnc)u-se: - Madala, queres qlre eu faça algur-na coisa? Madala não respondeu. Por detrás do Djino, pelo canrinho que levava à machanrba, o câpatâz àvar,çzva. Dez passos atrás, Maria seguia-o. O velho seguiu cl par ccrnr â vista. Procurou no chão algo que não encontrou. Os dedos cerraram-se-lhe em volta de uma planta irnaterial. Maria mergulhou os pés ncl lnar verde e chapinhou desordenadamente pelos rebentos tenros clo milho da perife77
l-uis Bcrnarcìo 1-Ionu,errrir
ria, procurando colocar os pés sobre as pegadas do homem. A espesslrra verde jâ li;-e tingia os joelhos, rrras continuotÌ. Todavia, carninhava rrÌais clevagar, embora resolutarnente, p1aÍàvencer a correnteza. Já muito dentro da machamkra, o ca;patazparou e voltou-se para l\üaria. Esta tarnbém parou, a alguns metros de distância. Madala, realmente não pensâs ern nada de que gostes e que eLÌ te possa fazer sern rne custar nada? Madala viu o capataz a tentar retroceder até onde a Maria estava, e a parar corrìo se mudasse de ideias, poucos passos volvidos. Andavar corìlo se estivesse â atravessar um rio. Madala pensoLr que devia dízet qualquer coisa ao Djimo, mas não se lerrrbrou de repetir a pergur,Ïa pata si mesrno e por isso não soube o qlre dizer. O capataz fazia sinais à Maria mâs esta parecia não entender. A planta que M,.rdala segurava na rnão oferecia ao seu esforço un-ìa resistência exagerada. Por isso, o punho de Madala tremia. O homem mergulhou na rnachamba. Momentos depois a Maria agitou os braços, apoiou-se aos frágeis pés de milho e acabou por desaparecer também. No sítio por onde ela submergiu, as folhas do milho agitararn-se por unr perlaço, rrras depois a ondulação desapareceu. O tom da voz de Djirno revelzrva certo nervosisrno: - Maèlalâ... Mas o nen'osismo <ìesaparecelÌ logo. Djin-o deu uma orderrr: - Madala, não olhes paralá! 78
I)ina
Dentro de Madala, qualquer coisa se crispou. Mas não erarl os Íìos da sua doença. Na confusão verde do fundo da rrrachamba, Maria não viu o capataz imediatanente. Esbracejou com aÍLição, tentando libertar as pernas. IJm braço rodeou-lhe os ombros duramente. O bafo quente e ácido do homem aproximou-se da sua face" A capulana da Maria desprendeu-se ciurante a breve luta e a sensação fria de água tornou-se-lhe rrrais vívida. IJm arrepio fê-la contrzrir-se. Sentiu rìas coxas nuas a carícia morna e áspera dos dedos calosos do horlem. Madala olhou em volta. Ninguém o olhava directamente rnas todos os hornens do acalnpamento se tinharn disposto pelas sorlbras de rnodo a poderem vigiá-lo. Só o jovem do grupo do curral, que ainda há pouco o interpeIara, é que Ínantinha a expressão malcriacla. O silêncio tornolÌ-se opressivo. José, o kuka do grupo da horta, tossiu insistenterrìente, tnas o silêncio manteve-se. Na penumbra do fundo da macharrrba a pele exangue do c^pataz adquirira um tom esverdeado. A face, dura, crispada de desejo, encheu momentaneamente os olhos de Maria. O hálito de fogo do hornem entrou-lhe pelos lábios entreabertos e embriagou-a ntlÍn ápice. Mzrria fechou os olhos sern raiva e abandonou-se à ondulação. {Jma vaga quentura veio colìì as onclas subnrarin:.rs, misturou-se às algas crespâs clo fundo da machamba e borbulhou mansamente no ventre de Maria.
7.)
Lttrs Bernar<lo
FIonu':ur:r
lJn-ra a unla, Madala eslnagolr as folhinhas da robustzl planta imaginária que tinha na Ínão. Escapou-se-lhe nr.rma espécie cle soluço, eLÌando lhe ocorreu que os fios cla sua cloença the tinl-rarn rninado os ór5{ãos cle tal rnaneira que não lhe sobravarrr forças L)^ra clesenterrar ufiìa planta que se agarrasse à terra Lrm potÌco rnais soliclamente do que as que arrâr-ìcava na rlacharnba. - Não chores, Madala. era Djimo. O n'Guiano e o Filimone foram os primeiros do grupo da sacha. Seguiu-se o José e o Maleísse, que, embora aélora trabalhtrsseÍrì no desbravamentc), tinham pertencido anteriorlTìente ao grupo do Madala. Num instante todos os homens do grupo da sacha e muitos de outros grr-lpos roclearram Madala. Maclerla corrreçou a acariciar os râminhos agora nus da planta imaginária. -
Maria, o que é que vieste fazer aqui? A voz do capat'dz estava rouca. Esrnagado pelo peso clo homem, o peito cÌe Maria tinha urn arian:brando e con-ìpassado. A voz do capa-rtaz chegava-lhe misturada a um longínquo rurnor de vagas. - P6pqsê fez isso? murlrturou. - flsn1). . _ - Porquê... - Maria sacudiu o horlem corn rudeza. - Iflrm? ... - A mão do capataz fechou-se preguiçosamente sobre o seio de Maria. -
TrÌ não gostaste?. . . O hornem pulou para o lado. -llsi11?... N ã o g o s t a s t e ?- Ç 6 6 p ô s a roupa evir o u - s e p a r a a M a r i a r .H e i ! . . . A c z r b o u ! . . . A c o r d a ! . . . 80
r' Dina
Os olhos da Maria briÌhavanl na rxeia escuridão dc-r fundo da machamlra: - Assin não é bom... De noite é meris üìell-ìorÌ E houve pânico na sr-lâvoz. - Agora Mrrdala viu!... Madala viu... gemelr. Mas \/ocê clissesteé só p'ara combinar para gente contrar de noite... - !211-1ç'vs, rapariga, acabou a festa. Depois dotr-te a massa... Maria sentilr o chão duro da rlacl-ramba contra as SUAS COStAS.
O caprataz foi o primeiro a aparecer à superfície cÌo mar vercle. Esbracejou para \zencer o sentido da maré e avançou em direcção do carninho clo acampamerìto. Quando a Maria surgiu à superfície foi pror-ìtaÍÌrente envolvicla pelo sopro prolongado da exclamação do mar. Sacudiu da capulâna LrÍìs torrões de areia e reÉÌresscluzìcl acarnpament(). Ao longo do caminho teve de erguer as mãos de vez quando, para se defender dzr ondulação qr-Ìe â passaem genr do càpatàz provocara. Os hornens do grupo do curral afastarane-se pzrra Maria passar. Maria cheirava à maresia. A fisionomia do jovern do grupo clo curral que se aborrecera corn Madala estava comprletamente rlodificada. Os traços do ódio tinhzrm substituíclo o esgar cínico cÌe ainda há pouco. A quarlrì lcntativâ corìseguiu emitir alguns sons: - M a d a l a . . . f a z m u i t o s o l . . . o r - r c 1ter - rt r a t r a l h a s . . . Madala pensou qr.re antes de achzrr as palavras certas c l e v i ad i z e r q u i r l q u e r c o i s z r : 81
l-uis Bern:rrdo
I lonlvarr.r
-
Sim. Íneu filho. Na macharnba faz muito sol... Mas o silêncio não chegou a ser destruído. A Maria não levantava o oll-rar. De pé, todos os hornens do acarnparnento olhavam pare- o chão, quietos coÍno estacas. -
MadaT^. .. - A voz do jovem conrinha,se - Madala... Diz-nos o que é que devernos fazert... Fala e nós acabaremos já com isto tudo... Eles podem rnatar-nos mas nós não ternos rledo de morrer... {Jrn rumor de aprovação elevou-se da massa coÍnpacta dos homens do acarnpaÍnento. Madala ergueLr os olhos e percorreu dernoradamente os seus companheiros. - Madala, todos nós vímos o que ele fez à tua filha, rnesrno diante cle ti! ... Diz qualquer coisa, diz,Madala! -.. Os olhos súplices do jovem buscavarn avidamente urn traço de revolta nos olhos de Madala. O íntimo de Madala estavâ aclormecido. O capataz surgiu pela esquina cle um dos celeiros velhos e procurou Maria coÍÌr o olhar. Quando a descobriu Ìarrçou-lhe paraÌ o regaço urrìa rlloeda de ptata - Aí tens o que te <fevo. Trazia nos lábios um cigarro furneg;rnte e um sorriso satisfeito. Maria cfesembaraçou o braço da capulana. Alguém tossiu. Maria retraiu a rnão nervosârrìente. Cruzou os bracos sobre o peito e apertoÌr as rnãos às costas. Então, Maria? I Os olhos do capataz estavaÍn cheios de surpresa. Maria projectou o corpo contra a parede do celeiro e desviou a cara. a2
Dir-ra
Madala observava-a corn c> seu oÌl-rar triste. Ela fechou os olhos. - Porquê fez isso? - sibilou surdamente. O capataz descansou as mãos nas ancas e soprol-r ulna breve gargalhadzr: - Mas o que é que tens, rapariga? Não queres o dinheiro? Tens medo de o receber? - Calou-se, aÉ1Ìârdando a respostâ cle Maria. Mas continuoll' .- Tens medc-r que os t^peizes descubraÍn ql're és urna puta? Maria abraçout-se mais apertadamente e, crâvando as unhas nas costas, choramingou: _ Madala viu nós... Madala viu... - E, o que é que isso terr-/ - O càL)atazabriu os braços, reforçanclo er adrniração, e depois crllzou-os sobre o peito. - Madala é minÌra pait.... - O quê? I - 26içulou por firn o c,àp'àtz-z. A cara arnarela tingia-se-lhe rapidamente de sangue. - Eu não sabia que eras filha clo Madala... - gesticulou asfixiado. Eu não sabia... palavra de honra, Madala, palavra qrÌe não sabia. .. eLÌ tlão sabia que tinhas unì?ì f i l l r a .. . t ã o b o n i t a . . . e u . . . s o t t a r n i g o d e l a . . . O silêncio dos homens do acampamento latejava cle tensão. - Madala... - o càpataz aproximou-se de Maclala - Madala, se quiseres pocìes não tralralh.rr esta tarde. ' ficas aqui no acalnparnento a coltversar corn à t:ua filha' '. Maclala esconcleu no chão o ser-Ìolhar triste. Os seus dedos, desconhecenc{o o volume da planta invisível, fec h a r a n r - s ec o m f o r ç a . 8l
Lui s Berrarr:lo
IJonrr,,;rnar
O silêncio parecia desesperar o capataz. (Jaguejando unl €ìesto eÌÍnistoso explodiu: - Merda!... Como é que eu havia de saber? - VoltoÌ-r-separa os honrens do acarmpamento, estendendo-lhes a interrogação. Mudos, os homens nantinham-se na sua ngidez sombria" - Merdat - rugiu o capata4 cheio de terror. - Mad,ala... Eu dou-te algurn dinheiro e tu vais com a tua filha para as cantinas... O capataz espiava ansiosarnente quaÌquer vestígio cle animação na expressão velada de lvlaclala. O velho encrÌrvou-se um pouco mais. Madal^... balbuciou o capataz. A mão interrolrrpelr-se-lire no nreio do gesto e caiu. - Merd at 7gcuou até clesaparecef na esquina de um celeiro. O jovem do grupo do cr-rrrallevantou avoz: - Madalzr, todos nós vinros o que ele fez à tua filha rrlesmo diante de ti! Maria sr-rbiuas mãos pelas costas e soluçou. O capataz surgirr pela esquina do celeiro corn unlâ gerrafa de vinlro na nrão: Eh rapazes sua voz era firme. Encarou o rìcarnparnento e berrou. Vamos trabalhar que jâ são horers! Vamos emborer que já passa da uma e rneia! Desl:rzrvamento! Maleíssel Elias! Alberto... Os homens do DesbravamentoT... Desbrâvanìerìto, alat Acabar com a mata clo laclo clo rio... Horta! Ernbora Horta! Morte aos bichos das couves ! Currzrl ! Grupo do Curral, levar o gado e rb e l r e r ! . . . S a c l r a , c o m i g o ! E m b o r a , S a c h a , e m b o r a p a r à a machamba!... 8rl
r I
I)ina
Todos de pé, os homens do a.canlpamento continuaranr irnóveis. Os dedos cle Madala frcaram de reper-ìte conscientes da planta irlirginária. Abrirarr-ì-se e voharam a acariciá-la. - p n 1 l s , r a L ) a z e s ? !N ã o o u v i r a m / . " . Já tocoLr! Acabou o dina! O c . J l - t à t a rzl r j t a v a c c l n ì r r t ì ì a i r r i t a ç ã o c t ' e s cente. Olhor-r p^ra a gïarrarfa qr-ìe tinha na rnão: Madala!... Merdala levantou-se. - Vocês não ouvem/ Embor'a, jâ disse!... Ernbora cabrões!... Madala arceitou a garrafa clue lhe ela estendida. - Cabrões! Cachorros! Para o trabalho, cachorros! Todo o acampamento oll-rarrra parâ o MadaÌa. O jovenr do grupo do curral avançou LÌn-ìpasso: - Madala I Com uma expressão cheier de cÌureza, Maclalar relanceolÌ o olhar pelas fisionomias ansiosas qt.Ìe cl cercâvanl. A garrarfa estava tocla suadar e o vinho era cle LÌm amareio sujo, avermelhado. Madala beberl de urlar únicer vez, deixando que rÌrrla boa parte Ìl-remoÌhzÌsse as barbas e lhe escorresse pelo pescoço. Depois derrolveu a garcafa vazia ao capataz. - F i l h o s d a p t r t a ! Ì ) ' r ó t r z r b a l l r o ,j á d i s s e l . . . As estacas oscilerrarn-r, fracluejando. O silêncio era cfe c]errotzr. Maria observava tudo, apreensirra. C) c.rlrataz branclia aÌgarraìfa \,tzíà, segtrr-ando-apelo gargalo. - trilhos <ìa puta! O jovern clo grupo do crrrral cr,rsçritrparaÌ os pes de Maclala: 85
Luis
Bcrnarcìo
Honwana
-
CãoJ... O velho desconhecelr o insulto. Voltou-lhe as costas e torrlou o caminho da rnachamba. O n'Guiana e o Filimone seguiram-no" O Djimo voltou-se paÍ^ os outros trabalhadores: -- $21ns5. . . - Depressa! Depressa!... - o càpat^z rugia. - Depressa, seus cães! Os homens do acarnpaÍnento, encabeçados pelo Djimo, iniciaram a marcha de retorno ao trabalho. - Psplsssâr - o capataz investiu. A garrafa partiu-se ao primeiro golpe, rnâs o jovem do grupo do curral não se Ínoveu. O segundo golpe abriu lhe o cotÌro cabeh-rdo. Os pés do capataz calcararn-lhe o rosto com raiva: - tri_lfio-da-pu-ta ! Madala inclinotr-se para a frente e enrolou o caule de urn arbusto ern volta do pulso. Deu um ligeiro puxão pàra ver se estava bem preso. Depoís, deixou o corpo pender para trárs até que o arrancoLl. Colocou-o cuidadosamente no chão, alinhando-o com <l monte dos que játinl;'a ^ttar'czrcloà sna volta. Alongou a vista por entre os pés de milho até c{istinguir o vulto do Djimo. O FiÌimone, o n'Guiana, o Mr-rthakati, o Tanclane e o Muthambi também estavam perto, Madala conseguia vê-los. Com um suspiro rouco retornou o trabalho. Por sobre os seus estranhos peixes, a superfície clo r-ììâr vercle era percorriclâ pclr uma brisa suave. A ligeira orrdulação qr-le lhe era imprimida cilesfazia-se,avançava e voltirva a desfazet'-se, l-Ìrurmuranclo o segredo clos búzios. 86
E,u jurarier qLre não cheguei erperder o conhecimento embora pouco antes de cair tirzesscex1>erinrcntaclo aqr-rele estado de embotarrìento cle sensilriliclade quc, cllrando nos tonra, restringe a nossa capacicl'ade de clefesa acrs gesrrls puramente instintiv()s nras estupidanlente lentos, que todos conhecem nos boxelrrs "grogrles". Acho clue ninguérrr podia avaliar o esforço tremer-rdo que fiz r-ressesnão seí se longos se breves nlclnìenttrs, prìrrì corrclurzir os rner-ls punhos, brr-rtalmente pesacìos antes de ganharem rnovimento e incrivehrente flutuantes depois de erguiclos. Entretanto, às çrancaclas qr-rerecebiir não se alivierva clualcluer sensaçãofísica porque só lhes percebia cl cco diluinclo-se Ìentamente dentro clarminha cerbeçar.Esse maldito eco e só ele é que foi o cr-rlpado cle etr cair. E, cÌLÌeatrapalhava-me muito e fazía conr clue antes cle levantâr Lll-Ìrbraço tivesse de pensar cotn força qlÌe tinha que levantar Lrrn braço. Caí lentamente, com plener consciência de estar cainclo. Primeiro senti-r-ne quase bem no chão, ernbora o eco continuasse a er-rcÌrer-n-ìea czrbeça. Quanclo abri os oll-ros veio o zut-nbiclo e senti raiva cle rnim nÌeslrì<-lpor. ter caíclo. O eco atrapalhava-De a vistzr a tal pont() que não tinha a certezà do que via, n-rasclepois, quando a minha vista clei8c)
Luis Bern:rrdo Honurana
xou de trerner, vi as duas pernas vestidas de escuro, Çtue, nascidas urrrâ de cada lado do meu corpo cresciam longaÍìrente l)at^ cima, tesas e tensas, convergindo para a placa cle metal brilhante clo cinto, Por cima delas, lá em cima, perto da lâmpada do tecto, a cara fitava-me, ateÍrta, sorrinclo satisfeita. Voltei a fechar os olhos. Sentí-me a treÍnef, nÌas o eco era mais suportável porque deixava de se processar desordenadamente para ser uma espécie de latejar. Só voltei a abrir os olhos quando tive a certeza de que o tipo já se tinha ido embora, farto cle provar aos oì,rtr<>sque realmente me batera. Eu precisava cle ir para casa. Acho que já tinha vontade de o fazet ântes mesrrìo cle entrar no bar, por isso, o qlre aconteceLl lá clentro não era o que me levava a tet tat:rta vontacle cle ir pelra casa. Não via a velhota e os miúdos, não sei desde quando, porqlre ultimamente voltava à casa muito tarde e saía muito cedo, mas não tinha bem a certeza tle os qlrerer ver mais alguna vez. A velhota era insípida e os miúrdos eram chatos e barulhentos, sempre cc>m porcarias pÍìra resolrrer. Claro qt'le isso não era nacla que se comtr)arasse àquilo do bar, de há bocado, ou de todos os outros l:ares, restatÌrantes, átrios de cinemas ot-rquaisquer or-rtros lugzrres no género errì que todos rne olhavam duma maneira ir-rcomodativa, como que â denunciar ern mim um elemelÌto estranho, riclículo, exótico e sei lá o que mais. Que nojentos! E eu sern poder rebentar exactarìente por caìrsa do raio da velhota e clos ranhosos dos miúdos ! Aquilo do bar, ainda há bocado, era afrnal o que se pâss:lvzì:eu r-lão consegui bater o tipo porque ele era todos 9O
A veÌhot,r
os outros> e exactâmente como isso é que ele nre baterl. Não aclianta contetr,porizaq tuclo é a rnesma coisa. Mesmo os que têrrr a rnzrnia de que fazerrt exceprção só são isso em caÌìrpos neutros ou quando tenham necessidacle <le vir até mim, porque, em volta deles edifican rrruros de tabus e defendem-se conl os ïnesrrros nojentos olhares enojacìos sempre que alguém vai para além desses nÌuros. Eu que o diga! Eu precisava cle ir para casa. fa corner artoz e caril de amendoirn corrlo eles queriam clue fizesse, rlas não para encher a L'>arriga.E precisava de ir 1-raracasa perra encher os ouviclos de berros, os olhos de misér:izl e a consciência de artoz corn caril cle arnencloimSentada na esteira a velhotaì estava quieta, a ver os miírdos a comer. De vez em quanclo levantavzì-seum e vinhaúazer-lhe o prâto de alumínio para ela servir-lhe mais. Foi de uma dessas vezes que a velhota cleu comigo. Estarra com a colher de pau erguida, cheia de arroz, e ia clespejá-lo no prato, quancìo parecer-r<Jolembrar-se de qualquer coisa,se virou piìrzÌ a portnÌ. Logo que nìe viu espreitorr para o fundo da pzlnela e perguntorÌ-rne se queria conÌer. - Ainda não sei se cluero conÌer ou não - respondi. Virou-se parà o lume, clemorou-se um bocado a olherr para as chamas conl eì concha ainda rìo ar e depois perguntou: - [s1fs zangardo? Estás tão zan)s.adoque não podes comer e neÍìl sabes se qÌÌeres ou não?. . . - Não, não estou zangado. A velhota pensou aincla um bom pedaço e resÍnungou: - Então estzibem. se não estás zancado. . ^ 9I
Luis -BernartÌo I Iorrrr,.irnzr
E corno '.to dizer isto estivesse virad a para o miúdo, perglllrtou-lhe ccrmo se isso lhe interessasse mais do que qualcluer outra coisa. _- Quito! C) que é que tu estás para aí a mastigar sem pârar. Quito-t Antes qr-reQuito clesinrpedisse a boca paÍa poder responder, a Khatidja berrou lá clo fundo: - Ì--.qseQuito está a mastigar a carne clne roubou do mel-Ì prato seln eLrver! E, mínha, marrã! Chi? Quito, tu és um laclrãer - e voltando-se par?rpim - Erninha, estorÌ-te a clizer, Mano! O Quito mostrolr n'a palma da rnão tudo o qLre tirou da boca e aclmirolr-se: - Esta carne, Kati, est.r aqui? troi er Mamã qrÌe me cleu, est'/rsa ouvir? - e pâra mim: - Não foi, Mano? A essa altura já os rniúdos estavam nr-lm bemeiro desgraçado e a velha inpôs-se:
-shhh!... Calou-se tudo nurrì instante rrlenos a Khatidja, que ainda choramingava É rninha... É minha... Ele roubou! Chi! Quito não tens vergonha? Eu vi-te... Mas os olÌtros miúdos ajudaram a vell-rota: -Shhh!... A Khatidja virou-se para eles: - Shhh!... E, desataram-se todos a fazer "shhh". Corn a colher de pau ainda erguida a velhota olhava para aquilo tudo. Depois os miúdos fartaram-se da brincadeira e voltaralTÌ a comer e o Quito pôs na boca tudo L)2
A velhota
o que tinher na nlão. Sci então é que a veÌhota despejotr a colher no prato do miúdo. Antes de lhe pôr caril pensor-Ì um bocado e voltou a servir-lhe ourra e or-rrra colherada de arroz. Quando o miúclo se ia embora perglrntcìLÌ-me com um ar distrzrído: - Mas é verdade cìuc não sabes se cllleres confer ot-l não? - Bem, e se er'r quiser? (Aborrecia-rnc aqtrela insistência,caramba!). A velhota pareceLì ficar erflita. Espreitolr para o fundo da panela e sorriu-se prrra rlinr conìcl qLre a desculpar-se: - É que só há ucoco! Lá dos cântos os miúclos conìentzìrarn: Chi!! A ucoco?! O Quito fez "shh" e tudo se pôs a fazer "shh". A velhota berrc>u e os t'- iúclos continLrararrÌ a comer. E então porque é que insistes enì perguntâr'se quero comer? Iì o que é que tu vais comer/ - ELr não tenho fome - responcleu a velhota. - Mas não há nrais comicla, não é isso? -- Eu não tenho fome... Não tenho, juro que não tenho. Mas se tu quiseres faço chá num instante, qrreres/ - Eu talrbém r-rãotenho fornc. - Nesse caso faço chá para os miúdos, parâ eles tomarern, se continuareln corl fome. Depois não nre pude furtar ao impulso cle .rbraçar zr velhota. Ela manteve-se quieta quanclo enterrei a cabeça entre crsseus seios. Rírrdo-se nervosa, protestou: - Mas tu não costrÌmas fazer isso. . . E continuou a rir-se até ter coraêIerfi de me apertar nos bracos. .))
ïq I l.rtis Ìlernartìo
I Jonrvarr:r
-
Meu filho... Senti-lhe os cledos ásperos a percorÍerem-me timidamente à cara. Depois beijou-rne e rilr-se muito. Ouvi os miúdos a rirern-se rambém. "f'u não costumaÌs ser assim ! O que é que foi. . . Meu filho... Meu filho... Tens fome? Queres que faça dná para
ri?" Eu jaí não onvia aquele tom de voz desde não sei quando e talvez neffÌ me lernLrrasse de o ter ouvido alguírìa vez. - ff'a1s1am-te? Diz-me, meu frlho, eles baterarn-te? Quem foi? - Não, não rne bateram. - Mas eles fizeram-te alguma coisa, não frzerarn? Tu estás com raiva, não é? Tentei não fafar, mas não tive ternpo de pensar: - Eles destruíram tudo, eles routr ararÍ), eles não querem. . . Senti-a prender a respiração e endurecer ligeiramente. -- Não queres conrar? Não? Não queres? _ Não serve de nada. Os rníúdos aproximaram-se: -
Ç6n12, conta...
-
Nada, vocês hão-de crescer, âgora não chateiem. Sim, lr-reufilho, há o tempo, o tempo... Tudo hárde rnudar, tudo há-de rnelhorar... E quando eles crescere1n... - Flão-de crescer... Pois hão-de crescer nisto... - De verdade que não queres contar? Çe112, contal e os miúdos rodeavam-nos na esteira. (/ \-À
A veÌl'rota
Não, eu não contaria. Não fìrr,r para ísso clue viera pâra casa. Além disso, não seria eu a destruir neles fosse o que fosse. A seu teïÌìpo algr-rén-rse encarregaria de os pôr na taiva. Não, eu não contaria. - Meu filho... Acho que rr-resobressaltei ao ouvir a velhota. - Meu filho, eu não entendo bem o que estás para aí adizet:, palavra que não entendo. Mas tu tremes, tr: estás ou assustac{oou muito zangado ou outra coiserqualquer, e rì que tu dizes não é borrr, pclrqr-Ìe estás a tremer, palavra que estás a trerrrer... Talvez a velhota tivesse razão porque deve ser raro a veihota não ter razão. Mas de todar a rlaneira isso não modificava nada. Eu não contaria e pronto; e ainda que contassede que serviria isso? Sirn, de que serviria, se a porcaria, o raio da porcaria daqr-ri1otudo viria para aqueles miúdos coln outros porrrlenores, em outras circunstânc i a se c o m o u t r o s n o m e s ? - Eh, vocês todos! Dormir', anda! Sim, dormir, o queé que estão a olhar? Dorrnir!... Ì V I a s . . .q u e m s a b e ? E t a m b é n ì p o r q u e n ã o a c r e d i t a r ? Porque não acreditar en-r qualquer coisa de giro? Como por exemplo que a formação dos miúclos fosse diferente da minha e qr-relhes conferisse tula conclescenclência para com aqlrelas coisas, rÌrfla condescendência que as minhas coordenadas emocionais não comportavam... E que talvez, eLÌ sei 1á, que talvez pala com eles o tempo obrigasse a mais compreensão, rnais carinho, sim, a rlais hurnanidade... Porque talvez a velhota tirzesserazã<>,há o tempo, o tempo... - MeLÌ fllho os rniúdos iír se foram... 95
,rïl
1 I I
Luis lìcrt-r:rtclo l Iotru'irna
l
I Sim, eLÌ \/c)rÌ dizer: eles bzrteram-me. Quen-r fcri? Mas isso não é tudo, tu tremes... Sinr. isso não é tudo. E mé não é nada. Eles fize' rzllrì-me pequenino e conseglrem qì-ìeeu nre sinta pequenino. Sim. é isso. Isso é que é tudo. E porquê-/ Eles lrem o dizer-r-rde alto. E tudo cai, cai de repente, com barulho l a q u i c Ì e n t r o , e c a i e c z r ie c a i . . . I - Bem, acho qr-reo rlelhor é não querer saber disso para nada, porque não percebo nada do que tu dizes... Ficámos silenciosos os clois, e cle tal maneira estávamos abraçados que não sabia se era realmente ela que tremia. Tenho zrimpressão cle clue só neste rrromento é que vi as chamas, ernbora estivesse há muito ten-ìpo a oÌhar para elas. () seu calor era bom e envolvia-nos, mas para isso elas torciarrÌ-se nuÍn baiÌado estranhamente rubro. Só deixei de as olhar quando a velhota falou duma rnaneira que me fez logo L)ensar que ela tinha estado um bom pedaço a matutirr na maneira de nre dizer qualquer coisa que aÊnal não disse. Acho que ela só disse: -- ffisu filho. . . -
I
L) (-t
Papรก, cobra
e eu
Logo que o Papá saiu da nresa para ir ler o jornal na sala de visitas, saí também. A Marnã e os oLrtros deviam demorar-se uÍÌf pouco mais, mas eLÌ não tinha vontade nenhuma de ficar ali. Assim que rne levantei a Mamã olhou paramim e disse: - Anda cá ! Deixa-rrle ver os teus olhos ! . . . Aproxirnei-me dela devagar porque quando a Marnã nos chama nunca se sabe se está zangada connosco ou não. Depois de me ter levantado as pálpebras corn o polegar da mão esquerda, para me observar bem os olhos, voltou-se para o prato e eu fiquei à espera que ela me rnandasse embora ou dissesse orÌtra coisa qualquer. Acabou de mastigar, engoÌiu e levantou urn osso para espreitar pela cavidade, fechando urn olho. Depois voltou-se precípitadarnente para rnim e olhou-rne corn cara de espanto: - fbns os olhos cheios de veias encarnadas, estás fraco e andas sem apetite. Ela falava cle tal maneira que rrÌe sentia obrigado a clizer que não tinha culpa nenhuma, qr-reera sem querer. Todos os outros olhavaur rluito curiosos, a ver o que é que aquilo dava. A Mamã voltou a espreitar piìra clentro do osso.Depois começou a chupá-lo, de oÌhos fechados, e só seinterrompeu para dizer: L)9
Ltris Bernardo FIonu.':rna
-
Alr-tanhã tomas um purgante... Assirn qt-re ouvirarÌr isso, os olltros começaram a corrrer corÌf rruito ruído e mr-Ìito depressa. Como a Manlrtã não parecesse ter vontade de dizer mais narda, fui para o quintal. E,stava tudo cheio de calor e não se via ninguém na estrada. Por sobre o mr-Ìro do quintal três bois olhavam para mim. NaturahTìente voltavam do tanque de água da Administração e tinham ficado a descansar à sombra. Lá longe, por sobre os cornos dos bois, os tufos cinzentos de rnicaias poeirentas trerrriarn conÌo se fossern chamas. Ao longe tudo oscilava, e viam-se ÍTìesÍÌro as ondinhas que se elevavam das pedras da estrada. Sentada numa esteira à sombra da casa, a Sartina almoçava. Enquanto mastigava devagar, olhava em volta e às vezes afastava coÍn rÌrn gesto distraído as galinhas que se aproximavaÍn à espera das migalhas. Mesmo assirn, de vez em quando os frangos mais atrevidos pulavam para a borda do prato e fugiam com torrões no bico. Quando isso acontecia, os ot-rtros perseguiam-nos e todos clisputavam o bolínho, que por fim ficava tão esfrangalhado que mesrno os pintainhos maís peqrÌenos apanhavarn bocados para debicarr. Quando me viu a andar por ali perto, a Sartina puxou a capulan a para baixo, de rnaneira a cobrir melhor as perlras e, lrlesÍrìo clepois clisso, conservou urna rnão espalmada à frente dos joelhos, pensan<lo, muito convencida, que eu queria espreitar alguma coisa. Mesmo quando eu Íne virava para outro lado qualquer, ela não tirava de lá a rnão. O Totó apareceu a andar devagar, respirando de língua de fora, e avançou para oncle estavâ a Sartina. Cheirou 100
Papá, cobra e eu
o prato de longe e virou-lhe as costas, dirigindo-se parà a sombra do muro, à procura de um lugar fofo onde se deitar. Quando o achou, enrolou-se corrr o focínho quâse em cirna do raLro e só parou quando a barriga assentolr no chão. Bocejou sem pressas e depois deixou cait a cabeça entre as patas. Contorceu-se ligeiramente, à procura de urna posição mais cómoda e cobriu as orelhas corrr as patas. Quando acabou de comer, a Sartina olhou insistentemente para mirn antes de afastar a mão corn que rapava o espaço entre os joelhos, e só quando se convenceu de que eu não a estava a olhar é que se pôs de pé nunì pulo. O prato estava tão lirrrpo que ate brilhava, mas ela, depois de rne lançar um último olhar de desconfr.ança,levou-o para a selha da louça suja. Andava com um ar cansaclo e partia-se toda pela cintura quando as nádegas surbiam e desciam debaixo da capulana. Debruçou-se sobre a selha, nras ctlmo nessa posição as pernas lhe ficassem todas à rnostra, atrás, foi para o outro lado da selha para eu não ver. A Mamã apareceu à porta da cozinha, ainda corn o osso na rnão e antes de charnar a Sartirta para ir tirar a mesa, olhou em volta para ver se estava tuclo em orc{ern. - Não te esqueças de dar corlida ao Totó - acrescentoLr ela em ronga. A Sartina dirigiu-se 1âpara dentro,limpanclo as rnãos à capulana e depois szriu corrì a imensa pilha de pratos" Numa segunda viagen-r trouxe a toalha de mesa e sacudiu-a nas escadas. Enquanto as galinhas se atiravaÍr. às migalhas, insultando-se e batendo-se, dobrou a toalha ern duas, ern quatro, erfi oito e voltou lá para c{entro. Quando saiu novamente trouxe o prato de alumínio conr a comida do Totó e foi pô-lo ern cima da caixa de cimento do contâ101
Luis Bernar<io
Llonw:rna
dor de âgua. Mesmo antes de acabar de colocar o praro, o Totó, que não precisa que o chamem p^ta ir corneq já se tinha atírado à comida. Com o focinho desfez rapidamente o monte de arroz à procura dos pedaços de carne que ia engolindo gulosarnente. Quando já não havía rrrais carne, afastou os ossos e comeu urn pouco de arroz. As galinhas estavarr todas à volta mas não se aproximavam porque já sabiam conlo é o Totó quando come. Depois de engolir um por-rco de arroz o Totó fingiu não querer rnais e foi sentar-se à sornbra das canas-de-açúcar à espera do que as galinhas fossern fazer. Estas foram-se aproxirnando muito a medo da comida do Totó e arríscararn Lrma e outra debicadela, todas desconfiadas. O Totó ollrava para aquilo tudo sem Íãzer urn único movirnento. Anirnadas pela irnpassibilidade do cão, as galinhas atiraram-se com gosto âo arroz, arntando LÌm pandemónio desgraçado. Foi então que o Totó se fez âo monte e distribuiu patadapor todos os lados, rugindo como um leão zangado. Quando as galinhas desapareceram, fugindo para todos os cantos do quintal, o Totó foi outra vez para a sombra das canas-de-açúcar, à espera qt- e elas se juntassem novarrrente. Autes de ir para o serviço o Papá foi ver a capoeira com a Marnã. Apareceram os dois à porta da cozinha, a Mamã c<rrn o avental já posto e o Papá com um palito na boca e o jornal debaixo do braço. Quando passararn por mirl o Papá dizia "ÍÌão pocle ser", "não pode ser", "isto não pode continuar assim". Irui zrtrás deles e quando entrámos na capoeira a Mamã virou-se para- mirn corno se fosse <fizer qualquer coisa, mas desistiu e avânçou para as grades de rede. to2
Papá, cobra
c ert
Atrás da capoeira estavam arrìontoadas urna data cle coisas: tubos que sobraraln quando se fez o moinho da machamba, blocos que foram traziclos quando o Papá ainda pensava elrì fazer uma dependência em alvenaria, caixotes, tábuas de madeira, trapos e eu sei lá que mais. As galinhas às vezes metiam-se por entre aquelas coisas todas e iam pôr os ovos onde a Mamã os não pudesse ir buscar" A um canto da capoeira estavâ uÍìra galinha rìrorta e â Mamã disse apontanclo para ela: - Qsnr esta jâ não sei quantas galinhas morrem de um dia pa'ra o outro. Os pintos desaparecem simplesrnente e os ovos tarnbém. Mandei deixar esta galinha aqui parà tu veres. Eu jâ estou farta de te dizer e tu não queres ouvir... - Está bem, está berl, tnâs o qlre é que tu queres que eu faça?... - Olha, as galinhas atr)arecem mortas e os pintos desaparecem. Ninguérn entra na câpoeira durante a noite e nern se ouve qualquer barulho. Tens de descobrir a coisa qì-rerne mata as galinhas e me conÌe os pintos... - E o que é que achas qr-reé? A Marnã pareceu ficar zartgada L)orque respondeu em ronga: - As galinhas são morclidas e os pintos são engolidos. Só pode ser a coisa que pensas que é se é que a tua cabeça esÍ^ a pensar em alguma coisa... - pslf bern. Amanhã de manhã mando lÌìatar a cobrzr. Como é clornirrgo é fá"cíI arranjar genre para isso. Amanhã!... O Papá ia a sair da cap-roeiraquando a Mamã disse, já em português: 101
Luis Bernardo
Ilorrwana
-
Mas amanhã de manhã sem falta porque não quero ver nenhÌìrn dos rneus filhos mordido por uÍTracobra!... A Mamã esperolr qLÌe o Papâ desaparecesse atrás da esquina da casa, a carninho do serviço, paÍa se voltar pata mim: - Ì{unca te ensinaram que quando o teu pai e a tua mãe estão a conversar não deves ficar a ouvir? Os rneus filhos não costrÌÍÌrarn ser mal-educados. A quem é que tu sais? E voltou-se pâra a Sartina que estava encostada à rede da capoeira: - O que é que tu queres? Alguém te chamou? Eu estou a faTar coÍÌr o rnell filho e tu não tens nada que ouvir! A Sartina não devia ter compreendido aquilo tudo porque não percebia bem o português, rnas afastou-se da rede rnuito envergonhada e foi outra vez pata a selha. A Manrã continuou a falar paÍa mim: - Se tu pensas qrìe rne hás-de apanhar distraída para levares a espingarda e ires caçar, estás enganado. Ai de ti se fazes uma coisa dessas! Ponho-te corn o rabo em sângue! E se julgas que ficas aqui nâ capoeira tarnbém estás enganado. Não estou disposta a ter maçadas por tua causa. ouviste? A Mamã devia estar muito zangada porque naquele dia ainda não a tinha ouvido a rir corno nos otltros dias. Depois de falar comigo, saiu da capoeira e eu fui atrâs dela. Quando pâssorÌ pela Sartina perguntou-lhe ern ronga: ç;az muito calor debaixo das tuas capulanas? Quem é que te disse que hás-de vir parà aqui rnostrar as tuas pernas a toda a gente? A Sartin a não disse nada mas deu a volta à selha e continuolu alavar os pratos debruçada sobre o outro lado. to4
Papá, cobra e eu
A Mamã foi-se embora e eu fui sentar-me onde antes tinha estaclo. Quando a Sartina deu por isso virou-se para mim zangada e depois de rne olhar conr os olhos cheios de taíva deu outravez a volta à selha e corneço:u a carrtar uÍnâ cantiga monótona, daquelas que ela sabia e às vezes levava uma tarde inteira a repetir, quando se zar'gavà. O Totó já se tinha aborreciclo de brincar corn as galinhas e já tinha acabado de comer o atroz. Estava agiora a dormir outrâ vez corn âs patas em cirna das orelhas. De vez em quando retrolava na poeirer e -6cava deitado de costas corn as patas dobradas no ar. Fazia rnuito calor e eu não sabia se havia de ir para a caça como era costllme todos os sábados, ou se havia de ír à capoeira para ver a cobra. O Madunana entrou no quintal corl unr rrfonte cle lenha às costas e foi arrumá-lo perto do sítio onde a Sartina lavava os pratos. Esta, quando o viu, deixou de cantar e tentou disfarçar um sorriso desajeitado. Depois de olhar perra todos os lados, o Madunana deu um beliscão na nádega da Sartina, que ficou cclrrì Lurl risinho envergonhado e responcleu-lhe com uma palmada sonora no braço. Os dois riram-se satisfeitos sern olhar um para o outro. O Nandito, oJoãozir-rho, a Nelita e a Gita saíram nesse mornento a perseguir Lrma bola e puseraffÌ-se às carreladas no meio do quintal, muito diverticlos. A Mamã âparecelÌ à porta cla cozinha, vestida pata sair. Logo que ela surgiu o Maclunana baixou-se rapidamente, fingíndo procurar qualquer coisa no chão e a Sartina voltou a debruçar-se sobre a selha. 1O5
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Honr:l'ana
-
$26ina, vê se consegues não partir nenhum prato atê acabares. Despacha-te. Tu, Madllnana, deixa a Sartina eír, pàz e mete-te na tua vida. Não quero poÌÌcas vergonhas aqui. Se vocês contirÌuâm com isso, digo ao Patrão! Tu, Ginho (agora falava em português) toma contâ da casa e lembra-te de que jânão és nenhurna criança. Não t>atasern ninguém e não deixes os miúrdos sair do quintal. A Tina e a Lolota estão 1á dentro a fazer a\l:rnpeza e não as deixes fazer maluquices. Sartina (voltou a falar em ronga), quando acabares isso põe a chaleira ao lume pa;ra o lanche das crianças e manda o Madunânâ comprar o pão. Não deixes os miúdos acaL>aruÍÌl pacote de rnanteiga. Ginho (agora era em português) toma conta de tudo que eu volto jâ, vou ali à casa da comadrcLúcía conversar um bocado. A Mamã ajeitou o vestido e olhou em volta para ver se estava tudo em ordem e depois foi-se ernbora. O cão do Sr. Castro, o Lobo, espreitou o Totó 1â da estrada. Logo que viu, o Totó avançou e puseram-se os dois a ladrar uÍn parâ o outro. Todos os cães da vila tinham rnedo do Totó e llresmo os maicres fugiarn quando ele se zangav^. Apesar de peqÌÌeno, o Totó tinha urn pêlo grande e branco e quando se aborrecia com qualquer coisa eriçavzr-o corno os gatos, ficanclo colrl um aspecto terrífico. Isso devia ser a causa do temor dos outros. Norrnalmente afastava-se deles e preferia divertir-se corrr as galinhas. Mesrno às cadelas, só em certos rnoÍnentos é que atLrrava. Para rnim era um cão com "pedigree", ou por outra, "pedigree" só podia ser o que ele possuía. Tinha muito de mandão e a única pessoa de qr-rem tinha medo eta a lvIamã, emLrora esta nunca lhe 106
Pirpá, cobra
e eu
tivesse batido. Para cl tirar de cima de uma cadeira era preciso que a chamássemos, porque rnesmo aoPap.á, rosnava com os dentes à rnostra. Os dois cães estavam frente a frente e o Lobo já tinlna começado a reclrar, cheio de rneclo. Nisto passou o cão do Sr. Reis, o Kiss, e o Totó pôs-se a ladrar tambérn para ele. O Kiss fugiu logo, r-Ìlaso Lobo foi atrás dele, abocanhando-lhe o traseiro, e só o deixou quando já gania, cheio de dores das mordidelas. Quando o Lobo voltou parajunto do f-otó os dois iá erant zrnigos e plrseram-se a brincar. O Nandito veio sentar-se zro pé cle mirn e disse-me, sem qlre eu lhe perguntasse, que jâ estava cansado de jogar à bola. - E porque é que vens para aqui/ - Til não queres? - Eu não disse isso. - p11[6 fiçç. - Fica, se quiseres. Levantei-rre e ele levantou-se tambérl. - Onde é que vais? Vais à caça? - Não. -
p11[62
-
Não rne chateies. Não gosto cle falar corn garotos. Tu também és garotci! A Mamã ainda te bate... Se voltas a dizer isso vou-te à cara ! . . . Ps1{ bern, não digo mais. Fui para a capoeira e ele veio atrás cle mim. Os tr-rbos estavar-ììquelltes e tive cle os tirar colr. a ajuda de Lrns panos. A poeira que se levantorÌ era densa e sllfocante. r07
Luis Bernardo
Honwana
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O qrìe é qrÌe estás a procrÌrar? Posso ajudar-te? Sai daqui!... Afastou-s e para urÌl canto da capoeira e pôs-se a chorar. Quando tirei o últirno bloco de urna rirna, vi a cobra. Era uma rrrarrrtra de cor rnuito escura. Sentindo-se descoberta enroscoll-se urn pot.rco rnais apertadarnente e levantou a cabecita triangular. Os olhitos briÌharam apreensivos e a língua negra e bífida palpitou ameaçadora. Recuei até sentir nas costas a rede do cercado e clepois sentei-me no chão. - Não chores, Nandito. - Tu és rnau, não queres brincar coÍn a gente! - Não chores rnais. Eu depois brinco contigo. Não chores. Ficámos os dois quietos. A cabecita da cobra pousou lentamente sobre o anel mais alto e todo o volume deixou de estremecer. Mas os olhitos continuavaÍÍ1 a vigiar-rrre atentaÍnente. - Nandito, diz-me qualquer coisa. Fala!... - O que é que queres que eu diga? - Diz o que te apetece dizer. Qualquer coisa. Fala. - Não me apetece dizer nada. O Nandito ainda esfregava os olhos e estava ressentido comigo. ïa viste alguma cobra? Gostas de cobras? Tens medo delas? Responde! . . .
_ onde é que há cobras? O Nandito levantou-se cheio de rnedo e olhou em volta. - Ncl rnato. Senta-te e fala. -- Aqui não há cobras? - Não. trala! Fala-me clecobras... O Nandito sentou-se muito perto de rnim. I O8
Papá, cobra
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Eu tenho muito medo das cobraÌs. A Mantã cfiz que é perigoso andar no mato por czÌLÌsadelas. Qr-rando a gente anda no capirn pode pisar un-ìa senÌ querer e pode ser mordi<1o. Quando urna cobr:a nos morde a gente n-ìc)r're. A Sartina diz que para a gente nào morrer clepois de ser mordidos por Llnìa cobrar é preciso rnatá-la, queirná-la até frcar secâ e comê-la. Ela cliz que já corrìeu urrìâ cobra e por isso, nrìesnìo que seja mordida não há-de morrer. -Iá r'iste algurna cobra/ -Iá! F o i e m c a s a d o C h i c o ! O moleqlre rììatolÌ-a na capoeira... - Como era essa cobra/ - Erâ grande, encarnadar e tinhar uma Lroca colfro Lrnr sapo... - (l6512vas de ver LÌrnzìcobra agoraT O Nandito levantoll-se e encostou-se iÌ rnirn, olÌrandc-r erl volta, muito receclscl. FIá alguma cobra nesta capoeira/ Tenho mecÌo! Vanos sair daqui!... - Se queres sair vai-te embora. Eu não te chamei... - Tenho rnedo de sair sozinho!... - pn1[s senta-te até eu ter vontade de sair. Ficámos os dois rnuito silenciosos por url bocado. O Totó e o Lobo estavam a brincar do lado de fora da rede. Corriam de urrra estaca para a outra, dando a volta ao cercado e recomeçanc1o. Errr cacla estaca p?ìravam e urinavam de pata levantada. f)epois entraranr na capoeira e deitararn-se de barripzìra descansar. O Lobo viu a cobra imediatamente e [Ìa, começor-r zr ladrar. O Totó laclror-r também rlas esterva de costas par:l ela. l0c)
Luis Bernarcìo
Ì-Ionwana
- Mano, costrÌrrìa haver cobras errÌ todas as capoeiras? - Não. _ Aqui há aÌguma? _-H.â. - [n1[6 porque é que não saímos. Tenho medo. - S e q u e r e s s a i r ,s z r i . . . O LoÌ:o avançoì.r paÍa a cobra, ladrando cada vez rnais aflitivamente" O Totó voltou a cabeca mas continuou senl ver nada de estranho. O Lobo tremía todo nas pernas e escarvava o chão nLrm desespero. De vez ern quanclo olhava para rnirn sern colTìtrlreender a razão por que eu não acudia ao seLÌalarrne. - Porque é que ele ladra assim?. . . - É porque viu a cobra. EncurraÌacfa ao fundo do vão da rima de blocos, a nramba alargou o seu corpo de rnaneira a apoiar-se mais solidanrente. A cabeça assente sobre o pescoço esguio, manteve-se fixa r1o ar, alheia ao movimento do resto do corpo. Os olhitos luziam cclmo brasas. Os apelos do Lobo erâm agoÍ:a horrivelmente lancinalltes, e elrì r'olta do pescoço o pêlo tinha-se-lhe eriçado. Encostados à rede, aTirs.a, a Lolota e o MaduzÌna espreitavarl, curiosos. - Porque é que não vais matar a cobra? - A voz do Nanclito estava chorosa e ele tinha-se-me agarrado ao pescoço. - Não rre apetece... A distância entre a cobra e o cão era de metro e rneio. Não obstante, ela enterrou a cauda no ângulo que um bloco fazia colrt o chão e levantou os seus anéis uns dos outros preparando-se para dar o bote. A cabecita triangular 110
Papzí" colrra e eu
recr-rou irnperceptivelrnente. Parecendo aperceber-se da proximidade do seu finl o Lobo começ<lLl a ladrar freneticamente, sem contudo tentar afastar-se da cobra. urn pouco atrás, o Totó laclrarra tamlrérn, tlas já de trré. Durante fracções de segundo o pescoçcl cla cobra enclrrvou-se enqlranto a cabeça descaía pâra trás, rnas logo projectou-se para a frente num movirnento impossível de seguir, e, embora o cão se tivesse erguido nas patas traseiras conlo unr bode, atingiu-o em pleno peito. Livre de apoio, a cauda da cobra chicoteou Ìlo ar, acorìlpânhanclo o ondear do últirno anel. O Lobo caiu <le costas esperneânclo convrrlsivamente e coffÌ um ganido abafado. A mamba abanc{onou-o irr-reclíatzrmente e com outro salto clesapareceu por elltre os tubos. _ A nhokar _ gritou a Sartína. O Nandito atirou-rìle L)ara um laclo e fugiu da capoeira com um berro, antes de desrnaiar nos braços do Maclunafia.. O Lobo, assim que se viu livre da cobra fugiu e clesaparecerÌem n-reiaduzia de pulos, rlas ouvímo-lo ganir en-rdirecção à casa do Sr. Castro. Os miúdos começaram todos a chorar senr ter compreendido o qr-le se tinha passado, e a Sartina levou o Nandito para clentro de casa, transportando-o nos braços. Só quando os miúdos desapareceram atrás da Sartina é que chamei o Madunar'a para rxatarmos a cobra. O Madunana manteve-se, com un-lâ capulana erguida ao alto dos braços enquanto er-r ia removendo os tubos com um pau de vâssoLlra. Logo qlÌe a cobra aparecelÌ o Madunana atirou-lhe a capulana e desatei à paulada sobre o monte.
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Lr ris LJcrrrlrcìo
Honrvaua
Quanclo o Papá regressolr cìo serviço o Nandito já tinha voltzrcio a si e tinha-se recomposto do abalo chorando copiosarrnente. A Mamã, que ainda não tinha ido ver a cobra, foi com o Papá à capoeira. Quanclo tarnbém fr-ripara 1á,vi o Papá a rrirar â cobra cìe barriga paÍà o ar corn um pau. Eu nerrl qllero perlsar no que LÌrna cobra destas podia fazer a urrr frlho meu ! . . " O Papá riu-se: ()LÌ a qualquer olrtra pessoa. Foi melhor assim. O que me cLÌsta é pensar qì-re estes quase clois metros foram conseguidos à custa dzrsrninhas galinhas... E estavam nisto quando o carro clo Sr. Castro parou à frente cla casa. O Papá foi para lâ e a Mamã foi falar com a Sartina. E,u fui atrás do Papá. - Boa tarcle, Sr. Castro... - Ó Tchernberre, o tner-r cãro perdigueiro aparecelr-me rnorto e conÌ o peito inchado. Os meus pretos dizern que veio daqui da tr-ra casa a ganir, antes de morrer. Eu não estou para muitas conversas e só te digo isto: ou pagas Reuma in<lernnização ou faço queixa à Administração! solve! Era o rnelhor perdigueiro que jamais tive... - Eu acabo rnesrrìo de chegar do serviço e... - Eu não quero saber disso pàra nada! Pouca conversa! Pagas ou quê-/ - Mas ó Sr. Castro... Sr. Castro coisa nenhurna! São setecentos paus. E é rnelhor as coisas ficarem por aqui!... - Comc> queira, Sr. Castro, mas eu não tenho dinheiro agora.. " - Isso depois veren-ìos ! Espero até ao fim clo mês e se não pagas rebento contigo ! . . . I t2
Papá, col>r-a e err
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Si-. Castro, nós conhecemo-nos há tanto terrrpo e nunca... - Isso corrrigo não pega! E,u já sei o que vocês querenl ! Só eìporrada. . . O Sr. Castro lneteu-se no c2rrrcle zìrrancor,r.O Pap,á fr,col-Ì um bocado a ver o carro a afastâr-se. _ trilho da mãe ! Aproxirlei-me dele e pr,rxei-lhe a rÌlanpïzl clo casaco. _-Papá, porqrre é que não clisseste isso à frente dele? Não me respondeu. Mal acabárnos de jantar: o Papá clisse: Mulher, mander a Sartina tirar a mesa deçrressa. Meus filhos, vârrros rezàn Hoje não vamos ler a Bíblia. Vamos rezar, sirnplesmente. Quando a Sartina acabou de tirar os pratos e ârrumorÌ a toalha o Papá começou: -Tz1ar,a,ha ku dumba Hosi ya tilo ni misaba... Quando acabou estava de olhos vermelhos. _ Amen I _ A n - t e nr . . _ A Mamã levantou-se logo e perguntou como se falasse de LÌrna coisa sem importância nenhurna: - Mas afrnal o cÌue é que queria o Sr. Castro? - Não tem nada de especial... Não interessa!... - pslf bem, contâs-me 1á no quarto" Vou arrurrìar as camas dos miúdos. Tu, Gínho, amanhã acorclas ceclo para tomares ctpurgante!... Quando se foram todos embora perguntei ao Papá: Porque é qrÌe o Papát reza qrrando está muito zangado?
Luis
llerrrardo
_ -
I lonrvarril
porque Ele é o melhor conselheiro. O que é que Ele lhe aconselha? Ele não me aconselha. Dâ-rne forças para conti-
nuar... - O Papâ acredita muito n'Ele? O Papá olhou-me como se rrre visse pela primeiravez e depois explicou: - Meu filho, tem de haver ÌrÍnìa esperança! Quando um dia acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho, telrros de ir attanjar forças para continuar a sorrir e continuar a dizer "isso não ten-ì importân cia" .. . Ainda hoje viste o Sr. Castro a enxovâlhar-me! Isso foi só um bocadínho da ração de hoje... Não, meu filho, rrìesmo que isto tudo s ó O n e € f u e ,E l e t e m d e e x i s t i r ! . . . O Papá paroì.r de repente e sorriu nurn esforço. Depois acrescentolr: - Mesnro um pobre tem de ter qualquer coisa... MesÍÌro que seja só uma esperança!... Mesmo que ela seja falsa!... -Papá, eu podia ter evitado que o cão do Sr. Castro fossemordido pela cobra... O Papá olhou-me corn uns olhos cheíos de carinho e disse surdamente: - Não tern importância. .. Ainda bem que foi rnordido!... A Marnã apareceu à porta. - Deixas o miúrdo ir dormír ou não?... Olhei para o Papâ, lembrámo-nos do Sr. Castro e rirno-nos corrr muita vontade. A Mamã não comDreendeu. - Vocês estão cloidos? 11À I Iï
Papá, col>ra e eu
-
Sim, já era tempo de sermos doidos - foi o Papá que respondeu sorrindo. O Papá já ia a caminho do quarto rnas devo ter falado demasiadamente alto. De qualquer maneira foi melhor que ele tivesse ouvido: -Papâ, eu às vezes... Não sei bem, mas havia já algì-rÌÌf te1:rÌpo que estava sernpfe a pensar que não gostava de vocês todos. Desculpa... 'A. Mamã não percebia o que nós dizíamos e por isso zângoLr-se: - Parem com isso senão... - Sabes, melr filho - o Papá falava pausadamente e gesticulava muito antes de cada palavra - sofre-se muito... Muito, muito, muito!... A gente cresce com muita coisa cá dentro rnas depois é difícil gritar, tu sabes... -Papâ, e quando o Sr. Castro vier?... A Mamã iabarafustâr rrìas o Papá seÉlurou-lhe os om, bros firrnemente: - Não é nada, rnulher, mas o nosso filho acha que ninguém rnonta em cavalos doidos, e qÌÌe nos famintos e mansos é onde lhes dá rnais jeito, percebeste? Quando um cavalo endoidece dá-se-lhe um tiro e tudo acaba, mas aos cavalos mansos rnata-se todos os dias. Todos os dias, ouviste? Todos, todos, todos enquanto eles se aÉJuentarern de pé! ... A Mamã olhava-o cle olhos esbugalhados. - Sabes, rlulher, tenho medo de pensar qtre isso sejzr verdade, rrras tzìmbém não tenho coragem pâra lhe dizer que é rnentira. Ele vê... Aincla hoje viu... O Papá e a Mamã estavam já no qlÌarto e por isso não pude ouvir mais, rrìâs mesrno de lá, a Mamã berrou: 115
l-uis Bernzrrcìo
I Ionrr,,ana
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Amanhã tornas purgante qr-re é pàra saberes ! Eu não sou o teu pai que se cleixzrlevar... O luar inundava a rninha cama cle amarelo e era agtadável sentir a pele a arrepiar-se com a sua carícia fria. Incompreensivelmer-ìte veio-rrìe aos sentidos a sensação lrlorna cio corpo da Sartina. Por rnoÍnentos consegui reter a sua preserlça qrìase tísica, e desejei adormecer corn ela L)ara não sonhar corn cobras e cães.
116
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As rnãos dos preros
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J á não sei a que propósito é que isso vinha, rÌlâs o Senhor Professor disse urn día que as pahnas clas mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam cotn elas apoiadas ao chão, corno os bichos do rrrato, sern âs exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto clo corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese qlÌe nós não prestávamos nlesmo para nada e que até os pretos eralTì melhores do que nós, voltou a falar nisso de as rnãos cleles serem mais claras, clizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de rnãos postas, a rezan Eu achei urn piadão tal eì essa coisa de as mãos clos pretos serelrl mais claras que aÉÌora é ver-rne a não largar seja qr-rem for enqtranto não rne disser porque é qr-reeles têm as palmas das mãos assirn mais claras. A Dona Dores, por exeÍnplo, disse-me qr're Deus fez-lhes as rnãos assinr mais claras para não sujarem a cornicla que fazenr para crs seus patrões ou quzrlquer outra coisa que lhes rrranclem fazer e que não deva ficar senão lirrrpa" O Senhor Antur-res dzr Coca-Cola, clue só âpzìrece naì vila de vez em quando, quando zls cociì-colas das cantinas já tenham sido todrrs vendidas, cìisseque tudo o que nle til1c)
Ì,ttis Beluirrclo
Ì {orru.rrnit
nham contado era alcìrabice. Claro que não sei se realmente erâ, nlas ele garantiu-rne que era. Depois de eu lhe dizer cpre sirn, que era aldrabice, ele contolÌ então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim: "Antigamente, há rnuitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristc-r,Virgern Maria, São Pedro, rnuitos outros santos, todos os anjos que rìessa altura estavarrì no céu e algumas pessoas qlre tinharn rrrorrido e ido pafa o céu fi.zeran't uma reunião e resolverat;rt fazer pretos. Sabes como? PegararÌì em trarro, enfiaram-no em moldes usados e parâ cozet o barro clas criaturas levaraÍn-nas para os fornos celestes; conro tinharn pressâ e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, pencluraralTì-nâs nas chamines. Fumo, fumo, furrro e aí os terÌs esclrrinhos corno carvões. E tu agora qLreres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiverarn de se agattar enquanto o barro cleles cozia? !" Depois de contar isto o Senhor Antunes e os orÌtros Senhores que estavan-rà minha volta desataram a rir, todos satisfeitos. Nesse nìesrno dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tucio o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era urna grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso clas mãos dos pretos era o que ele sabia: qr.re Deus acabav:r de fazet os homens e mândava-os tomar banho llulrì lago do céu. Depois do banho as pessoâs estavarÌ branquinhas. Os pretos, colTìo foram feitos cle macln-r gaàa e a essa hora a ítgua do lago estivesse muito fria, só tinham rnolhado as palmas das rnãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virern para o mundo. 120
,{s nràos rÌos lrretos
Mas eu li num livro, que por acaso falava nisso, que os pfetos têm arsnrãos assirtr mais claras por viveretll encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de rnais não sei 2ìonde..Iá se vê que a Dona Ìlstefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deÌes desbotarem à fbrça de tão lavadas. Ììem, eu r-rão sei o que rrá pensar disso tudo, rìfas a rterdacle é qr-reainda que calosas e greradas, as mãos dunpreto são sernpre mais claras clue todo o resto dele. Essa é que é essa! A rninha mãe é a úniczr que derre ter razão sobre essa questão de as tnãos de urn preto serem mais claras clo que o resto do corpo. No dia em que falárnos nisso, eu e ela, estavar-lheeu aincla a contar o clue iá sabia dessa questào e ela já estava farta de se rir. O qt.re archei esquisito lbí que ela não me clissesselogo cl qr-le pensâvâ disso tudo, quarÌdo eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fãrtar de ver que eu não rrle cansava de insistir sobre a coisa, e nlesrrro assinr a chorar, agarraclr à brrrriga colrlo qLleffÌ não pode mais de tanto rir. C) c1r-re ela disse f<ri nrais c-llrrr-ìenos isto: "Deus fez os pretos porque tinha cle os haver. Tinha de os haver, rrìeu filho, Ele pensolì que realnrente tinha de os har,'et... I)epois trrrependerr-se cìe os ter feito por-qlre os clutrcls l-rorlens se riam cleles e lerravanl-llos piìra as czìsâs cleles para os pôr a selvir cclrlìcr escravos clLÌ potÌco nrais. M'.rs como Ele já os não puclesse fazer ficrrr todos brancc-rs porqrre os qLle já se tinhanr habituaclo arvê-los pretos reclarnariam, fez colrr que zìspalmas das mãos cleles ficassern exactanlente cclrxo trs palmas cl:rs tlãos dos outros hon l e n s . E s a b e s p o r q u e é c l u e f o i r C l a r o q r - Ì en ã o s a b e s 121
'ry' Luis Bernardo
l-Ionrvana j
t
e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para Ínostrar que o qtle os hornens fazern é apenas obra de hornens... Qu. o qÌre os honrens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serern qualquer outra coisa são homens. Deve ter siclo a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às rnãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos". Depois de <lizer isso tuclo, a minha mãe L'eijoll-lïìe as mãos. Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nr-rnca tinha visto Lrma pessoa a chorar tanto sern que ninguérl lhe tivesse batido.
122
Nhinguitirno
As R olas Pouco antes do início clas colheitas, as rolas reúnerr-se nas matâs que divideÌrf as macharnbas do vale" Durante duas ou três semanzìs, ern trandos Íìunlerosos, sobrevoam os carnpos etrì largos círculos. Nesses voos as rolas clemarcam do ar os carnii-rhos ql-Ìe os tractores e os lavradores utilizam mais frequentemente e, cle posse desse pormenot pfepararrÌ a estratégia 1]arao ataque às esçrigasacabadas de torrar ao sol pocleroso cle Setembro. De vez err- quando duzls, três roÌas, seis no máximo, destacam-se cla tral'ectória do resto do banclcl e polrsaì11Ì nas macharml:as para provar os gr'àos. Vários dias clecorrenÌ neste período cle reconhecimentcl ncl futuro carnpo cle operações, rfias, em cclrfipensação. na manhã em qr're scliì a orclem cle atacar', o bando é dirigido pelos guias para as uachar-nbars onde o bago de milho é lr- ais pequeno e mais redc,ndo, onde o pé cla planta não teve tempo de crescer par?Ì além de um llfetro clo chão. Por uma questão cle segurzrnça, o bzlndo proctrra cobrir áreas não nruito sulcaclas pelos carminhos dos homens c dos tractores. Mas, ÌÌlesrrìo depois cle tomacla essa medicla cle precaução, uma dezena cle rolas, geralmente das r25
*q I-uis llernardo
I-{onrv:rna
Inais lrovas, crga:nizam um cordão de vigilância que bordeja toda a superfície de actuação do bando. Com o serÌ colarinho negro, recortado no torn palha-arroxeado das penas, a rola é uma das aves mais antipâtícas da criação. Pelo menos assim parece estar estabelecido entre as populzrções das pequenâs viÌas que, subsidiárias da actividacle agrícolzr, <Jisputam às rnacharnbas e às matas de micaias os terrenos do vale do Incornáti. Essencialmente prâtica, a rola sacrifica no seLl voo a graça de uma pirueta e a amplitude de uma curváì à necessidade de chegar rnais depressa. Ninguém se lerrbra de ter visto urrra rola a deixar-se embriagar pela carícia do vento, como frequentemente acontece à anclorinha; ningr-rémpode jurar qlle, coÍrìo o abutre, a rola se entregue no seu vc)o ào prazer sensual de cleslizar ccllrtra o azul pastoso cìo espaço, colrì as aszrstodas clesfraldadas; por certcr tamtrém ninguém ouviu clizer que uma rola tenha passado LÌn-ìamanhã inteirâ a catar piolhos no ventre, zr esttrfar o peito e a alisar a penlrgern, corrìo faz a preguiçosa sécua. Com os olhitos neÉìrossenìpre vigilantes, a rola viajana esteira clos grãos e volta pontuahlente todos os anos, semanas antes do início das colheitas. Reprocluz-se enquanto vai e volta e engorda calnramente corrl o tempo. Engorda e eneéIrece. C) seu cantar, que não telfì tenÌpo cle ser musical, é imedizrtamente triste; é uma espécie de refiIalrço ror-rco e agreste. Às vezes, sencio monótono, é clescritivo e nostálgicoNunca lrorém poético ou divagzrnte: é sempre horrivelmente directo. L26
Nl-ringuirirncr
Cantando, a rola não lzrmenta, como fazel;t muitos outros pássaros, acLÌsa.Entristece o vale. Torna despropositado o verde dos campos e insípiclo o azul intenso do ceu. Quando o visgo adocicado do bago cle rrrilho seca e a espiga endurece, c>\/ento levanter do chão das nrachamb,rs e do seio das rnatas a poeira adormecicla clesde as últimas chuvas. O céu to|r-ìa-se parclo e clescai por sobre as nìachambas. Animado, o vento sobe e clurante clias redemoinha espirais de Íoli-ras secas, rotrbadas ao cl-rão das n-ratas, assustando as rolas> cllÌe fogem dos carnpos. Depois as mzrchambas cobrem-se cle eìmarelo e, rnacluros, os grãos se desprendem darsespigas. O vento da poeira já estâ farto de se eslìapar pelos espinhos vibrantes ders micaías e já entonteceu de tanto redemoinhar. As rolas voltatrr iìo áìtaque, refeitas do susto e l-rabitr-raclas ao zunir contínuo e inofensivo do vento. Então chega o nhinguitimo. Nuvens apressaclas escaparì-se dos nrontes Litrombos, e clescenclo a encosta, ?ìtravessam o vale. O vento da poeira cessa e recolhe à profundiclacle c'lasmatas do outro lac-loclo rio. O zrr ;rára; os bicl-ros truscam iìs tocas e as micaias nlras retalham firmemer-Ìte cl céu cinzento. O nhinguitin-ro irrompe pelo vale e varre instantaneamelfte erpoeira que enche o ar. Célere, vasculha as mataìs, demuba os pés cle mili-ro e clobr.r as micaias, qLre gernern de aflição. As rolas procr-rralrl refúgic-r no mais recôndito cla fothagem espessa das figueiras que segurân-Ìo rio no seu leito. ÌìnqUanlo as rììilis llovas sc lrper[ar]ì unlas às outras, trernendo cle rneclo, as mais i<Josas comentzìlrl cl telnpo colrl o seu arrulhar soturno. 127
Luis Bernarcfo
Honr,r'ana
Duas ou três rolas, seis no máximo, perfurarn nervosa.mente o espaço, pof sobfe as rnachambas, avisando dos perigos da tempestade e concluzindo a retirada.
Como ser:ia possível esquecer aquela noite, caramba?! Em noites extrerÌarneÍÌte húmidas como aquela, por um acordo tacitamente firrnado entre nós e os nossos pais, permitíamo-nos retarclar anormalmente a hora de recolher ern nais duas dú.zias de partidas de sete-e-meio. De resto, os hábitos qlrâse sempre rígidos da vila escanÉÌalham-se coln o excesso de hurnidade que todos os anos se fazia sentir porÌco antes das grancles chuvadas: o administrador, o méclico, o chefe dos correios, o veterinário e o chefe da estação, iam beber paÍa o balcão da cantina do Rodrigues, sítio geralmente tido corrro impróprio para a gente grada da vila; os trabalhadores clas rnachambas do vale alrandonavam os acampamentos e iam al:ancar no salão da frente da cantina do Rodrigues, sítio onde só erarrr acìmitidas pessoas "da nossa rrrelhor sociedade", no dizet do çrróprio Rodrigues; as prostitutas da vila, normalmente tímiclas e obscuras, circulavam alegremente por entre as mesas, deixanclo que os ra,pàzes e os trabalhadores das machamlras ll-res treliscassem arnigaveknente as coxas e que os membros da tal melhor sociedade da vila lhes acariciassem sub-repticiamente os traseiros. Por detrás do Ltalcão-frigorífico recentemente comprado, o Rodrigues, todo boa disposição, anirrrava as investidas meclrosas clos senhores da vila aos rabos das prostitutas e clava pahradinhas nas costas dos trabalhado128
Nl-ringuitimo
res das machârnL>as, fazendo-os torrÌâr mais ulrrâ pingLrinha. O tipo ficava terrivelmente satisfeito conl o facto de a tasca dele se transformar de repente enì cerltro de reunião da vila. À. .r.t-, desaprrrecia pela porta dos funclos, ia acordâr a tnulher e fazta-a espreitar a sala para qtre ela visse conr os próprios olhos a excelente ideia que forzr â compra do balcão-frigoríÍìco, já clue toda a vila se rnatava pelas suas bebiclas sernpre geladas. Por entre aquela confusão tocla, eu e C)s(ìt_Ìt-rosrapazes inteirávamo-nos das ideias clos senhores irlportantes 7a da vila, confraterniz'âvamcls abertarnente conì as prostitutas, sem que isso merecesse qualquer reproviìção e oterecíarnos cigarros aos trab:.r11-raclores; matá\/ar-ìlos a sede ccrrrl cocâ-colas e o ternpt.l conì zrlclrzrbices. De uma maneira geral, as collversas versavarl sobre asslrntos relarcionados corl a agricultura do vzrle: os senhores "da sociedade" disclrtian o preço qlre o n-rílho podería atíngir; os trabzrlhadores zrczrriciavan-rvelhos sonhos possíveis de realizar cclm a abunclância que se previa para aquele ano agrícola; nós anunciávzrmos solenemente núlrneros corresponclentes ao clobro e ao triplo cla qr-rantidarde de sacos cle rnilho qlre os nossos pais esperavam colher. Não Se exceptuando. rÌs pfostitrltas pergufìtavaÍrÌ LÌlllas às outras o que devían^nfazer cc)rìr o dinheíro ganho durante a f a r t t r r a c l a sc o l b e i t a s . Er-r não era amigo do VírgLrla C)ito, trabalhzrdor da rnacharnba do Rodrigr-res cla lojer. Apzrrentando ser muito 1ìovo, o tipo era trrzìgro, desengonçaclo e tinha uns olhos muito expressivos. Embora trabzrlhasse na macharnba dcr Iìo<lrigues, tinha a slra prclpria macharnba do outro lad<> 12c)
Luis Bernarclo I'Ionrvana
clo rio, no Goana, rÌrn sítio onde o adrninistrador ainda não tinha ordenado o levantamellto da reserva indígena. Naquela noite quente, terrivehnente húmida, ern que parecíamos lrìergulhados nunr líquido 1ïÌorrìo, pegajoso, estava eu a olhar para a escuridão da ru,a, sinceramente chateado com tudo o que ouvia dizer à minha volta quândo o Vírgula Oito ap)Íìreceu à porta clo bar. Vestia uma camisola interior muito branca e ulììas calças de caqui, cheias cle bolsos e de remenclos coloridos, como as dos magaíças. Parou um pedaço, pestânejou para habituar a vista à h-rz intensa das lâmpadas <J,aloja e dirigiu-se para urrìzì ÌTìesa próxinra onde estâvam Maguigu at)a e o Matchurnbutana, tarnbém trabalhadores da machamba do Rodrigues cla loja. Lembro-me ainda do seu andar desajeitado e bzlrrrbolearrte, cts set-rsombros secos e estreitos e clos seus oihos brilhantes. - BclrÌ noite. clisse cl tipo patà os outros. Falava em swazi. -_- B'oa noite, Massinga - responderam os outros em changane. Cararnba, ainda hoje parece-rne sentir no ombro o rucle impacto do encontrão que o tipo me deu quando, corrì o seu anclar desengonçaclo passou pela mesa da maltal Como não podia deixar de ser, a conversa que se desenvolveu na rrìesa zìsminhas costas erzr sobre as colheitas que se arvizinharrarm.Para fazet inveja aos outros, o Vírgula Oito desatou a falar do seu mi-lho, do seu feijão, do seu amendoim, das suas corlves, da sua batata... Tarnbém se fartou de falar da N'teasse, urna rapariga lá do Goana, fiIha do Sigolohla. 130
Nhinguitincr
Avoz do Vírgulzr Oito lenrbrou-rÌre o arrulhar das rolas que, para exercitar a pontâria, nós "at:atíarnos" todas as tardes nas machambas próxinras à curr,'a do rio. Chiça?! Mas que calor quefazia naquele dia, cararnba! Suava horrorosaÍrìente e sentia LÌrr torpor, Llrìfâ espécie de sonolência febril. Perdi 4 maços de cigarros ao sete-e-rìreio. Depois, definitivamente enjoado, fui-me embora. A Marta mostrou desejos cìe vir comigo. Nem nre opus nem a animei. Ela r.eio. Muito depois de abandonzìr a N|arta, já em casa, enquanto esperava pelo golpe seco e fulminante do sono, o tom bíblíco da última frase que ouvira cJo Vírgula Oíto veio-nre à rnemóría: - Quando chegar o "nhinguitirlo" tuclo vai mudar - dissera ele - As machambas grandes que eles fazem vão ficar clestrr-rídas pela fírria clo vento. As nossas lrìachambas continuarão a ermarelecer calmamel-ìte porqlle âs grandes árvores do outro lado do rio protegem-nas dos vento*c. O çrreço do milho rrai sutrir e nós vamos ter algurn dinl-reiro. Deus ten-rde querer que seja assirn... Poça, aquilo era urrl crilor de nratarr! Hurniclade conro sei lá o quê e o cén todo cheio de estrelas. Chateavâ pensar que as grandes chuvadas ainda tarclariam. Estive quase para ir tomar olrtro banho de chr:rreiro. mas entretanto adormeci.
O Rodrigues do balcão
da loja fartou-se de esfregar o tâmp<l
Vírgula Oito bateu coÍn c>cclpo vazio no taÍnpo da mesa e lirnpou os beiços às costas da mão. Corn um rápiclo 117
Lrris Èìcmar.ìo lf onu'an:r
olhar, certificou-se do interesse dos seus companheiros no que acabirva de revelar e pigarreou para aclararr à voz, aÍrtes de continuar. - Se eu chegar fogo à rnata e não âpagar as chamas clurante três dias seguidos, fico corrr ulrra machamba duas vezes maior - a sl-ravoz tinha Lrrrrtorn de conficlência O dobro - lTìLlrrÌÌurol-l . - Mas ness?ìaltura ficas com tanto clinheiro conro cl Lodrica e os outros brancos... admirou-se o Maguiguana - Até podes andar cle camo e comprar tractores... - Nessa altura pago o imposto, compro sâpatos, Lrm fato, unr chapéu, uns óculos, uma bengala e Lrm sobretudo... e crìso-me conl a N'teasse... - esclareceu Vírgula Oito - Se o milho chegar aos duzentos escudos o saco, para o ano palavrzl que alrmento urmacharnba.Jâ falei com o régulo e ele disse que sim... Arranjo uns homens para me ajudarern porque a rlínha mãe está velha e à minha irrlã casa-se um dia destes na igreja do Padre. Arranjo uns homens para trabalhar só para mim, como moleques, e erÌ mesmo é que lhes pago quando chegar o fim do mês, p o r q u e n e s s a a l t u r z rs o u e u o p a t r ã o . . . - Nlas suspirou MatchurnbLrtana. Rápic1o, Vírgula Oito percebeu um esboço de dúvida. - Não acreditas?... _ atalhou. - Bem, eu arcredito... Vírgula Oito virou-se interrogativarnente para Maguiguanu. - Berrr, eu tarrrk;érrr acredito apressou-se este a esclarecer.
r)2
Nhirrguitir-no
Repetindo zì rodader de whisky, Rodrigues insinuou: - Porclue é que o senhor administrador não vai ver â terra corrr os seus prírprios olht>sl - Porqr-re tenho tnaris que falzer, horler-n1... - ps5poncleu o aclministrador:, desa,rpcrternclomais urn botão da camisa. Enqr-ranto cleitartzr rrma nreclicla de ág,ua gelada nos copos, Rodrigr-res trlr-lrrllurol-Ì L)araìsi: merda... Logo c-lepois voltou ao ataque: Senhor administraclor, ersinfr-a-estruturas clesta província... .E as rnédias e aìssuperestrLrtrtrrìs... - acrescentou o administrador, imitando L\voz clo Roclri[ÌLres.Todo o grr-rpo se riu perdicìern-rer'ìte.Satisf-eito corrì o apârte que frzer^, o adnrinistr'.rdor repisou-o quando as gargalhadas corneçavzÌrÌì a dirlir-ruir de intensíclade: .e as méclias e as sLìperestnÌtlÌras... O grr-rpo voÌtou rr clobrar-se sottre o ventre, espremendo outra explosão cle gargalhaclas. Envergonhado, o Rodrigues afastoLr-se, polinclo afanosallrente o tampo do balcão-frigorífico. .e as rneclias e as sLrperestrltturas... - voltou a declam ar o aclministraclor-. - Merd n-ÌLrrllllÌrotr o Rodligues, quando, tendo atingiclo a ponta do tanrpcl, teve de descer o L)ânclpor r,ì.nìaclas paredes larterais do frigoríÍìcc-r para poder contirfl-Ìar a esfregar. "Merda..." - repetiu quando chegou ao chão. Arregaçanclo o Lreiço, erêÌLrerÌ-sce aproximou-se dcr É{rlrpo. .e as nrédias e as slrperestrutlrras... 1)i
Luis lìernzrr-do I lons,an zr
Obediente, o Élrlrpo soltou olrtra gargalhada. O Rodrigues, cientro do ritmo, muito desportivâmente contribuiu também colrì a sua gargalhadazinha. -
Massinga... Ouve, eu acredito nisso tudo que tu dizes que vais fazet. afirrnou Matchumbutana - De verdade que acredito, mas... - Mas o quê? - avc,z de Vírgula Oito tornou-se impaciente. Mais rastejzrnte, Maguiguana justificou-se: - SaÌres. . . Eu não sei se eles não fr.carão zangados por tu teres tanto dinheiro... Eles são capazes de não gostar disso... Eles não vão permitir que tenhas tanto dinheiro... - Eles são capazes de não gostar, Massinga... acudiu Maguiguar'a - Eles são capazes de não Élostar.. . E que tu és cap^z de ter mais dinheiro do que o enfermeiro e o intérprete> os assimilndos... - Mas porque é que vocês pensam que eles se hão-de zangal'2 - Vírgula Oito adoptou urn tom de voz extremarnente paciente - eu não mato nem roubo; como o que ganho n9 trabalho; gasto o dinheiro com a minha família; pago o imposto... Pago aos rrreus trabalhadores... Corno é clue eles se podem zangar? - B,enì... assim não se zar.garn... Assim não se podern zang ar. . . - O Maguiguana tentava desculpar-se. - Não se zangam... Acho que não se zangam O Matchumbutar-ra tanrbém retirou a sua dúvida. - Amanhã vou lá para casa - Vírgula Oito reiniciou o fio da narração, desconhecendo os restos de increduliO Lodrica deixadacle que os outros ainda rrrostrava -nre ir porqLÌe eu disse-lhe que precisava de ír para casa parzì consertar as palhotas. Chego lá e dou uma ajuda à 131
Nhirrgtritimc>
rrrinha rÌrãe e à minha irmã nzr colheita. Se colhermos depressa podemos vender o rnilho antes cìe o preço corrreçar erbzrixalr, quanclcl os braÌ1cos tambérl fizerem as slÌiÌs ccrl h e i t a s . . . E v e j o a N ' t e a s s e ." . -
Senhor adnrinistrador, se er'l insisto nisto é só prorqr-ìerrre clrsta ver uma terra tão r-ica a ser cìesperdiçada pelos pretos O Rodrigues tinl-ra conseguidc-r deter a palavra depois das três rodas de whisky que durou a festejar cl aparte do adrrrinistrador, - e selxpre lhe digo que esta vila podia ter melhor sorte se se desse ulrr pouco mais de ater-rção às pretensões dzrs sr-ras€Ienter... (o Roclrigues darra a sua rrrordidela vingativa. . .) Senhor adrlinistrado! eu sempre confiei na clarriviclência colrr que Vcrssa llxcelência dirige superiormente os interesses clas populações neste Íncrlllento conturbardo. o Rodrigues rectificáìva a canelaCa rrras isto lá do baixio do Goan a é tão importante. . . -
Vírgula Oitor - chamou o Rocìrigues - Vírglllâ Oito! Andzr cá!... C) senl-ror administraclor quer pergLlntar-te umas coisaslá do teu sítio... Cruzando os braços sobre o peito, rlr-urla atitucle de proÍundo respeito, Vírgula Oito aproximou-se clo grupo. Erguenclo as mãos até à aÌtura da cabeçâ, numa espécie cle continência, sauc{()Lro adrninistrador: - S,2ys1n i 'kossi! ... Depois voltou à crazaï as mãos sobre o peito e esperou. - O Senhor adrninistraclor pode interrogar este indíger-Ìae inteirar-se clarveracidzrde clas rninìras arfirnrações... - o Roclrigues esfregc-,uo peÌr'ìoao târÌllro do balcão-frigoríÍìco, elrr peqrrenos e rápiclos movinentos circulares L)5
Luis
Rernarclo
I lonu,irrrrr
...e inteireÌr-se da veracidacle das rninhas âfirn-ìações... repetiu a frzrse para si próprio, satisfeito com â ressonânciâ solene cìa sua voz ao proferi-la. - Conlo é que tu te charnas, ó rapaz? - perguntou o achninistrador. Eu chana Alexandre Vírgula Oto MassinE4a, sinhoro Mixacloro! O Rodrigues voltou da ponta do balcão nuÍÌra corridinha e debruçou-se para a conversa, todo ínteressado: 1 6 1 s 1 ' r o É I u e - o i, n t e r r o g u e - o s e n h o r a d m i n i s t r a dor!... - C)ncle é que tu trabalhas? - in1s1r'ompeu brutalmente o adrlinistrildor Onde é que tu trabalhas) rapaz? Vírgula Oito atrapalhou-se com a ira do administrador. Quando se dorninou, responcleu: - ELì trabalha machambar patrão Lodrica. Trabalha rluito te[ìpo ÍÌ]esrno... dls><2ndre Vírgula Oito Massinga... Raio de n o m e . . . D e o n d e é q r - r et u é s ? Eu são cfo induna Goana, senhora Mixadoro... O barulho que enchia a sala cessâra instantanearnente. Tocla a gente se pôs à escuta. Maguiguana segredou a Matchumbutana, encostando-lhe os lábios ao ouvido: - Eu não disse que eles não haviam de gostar? Mc-n'endo a c,rbeça nurrr larrgo assentimento, Matchumbr-rtana devolveu a pergunta intacta: - ELr não disse que eles não haviam de gostar? - Eru não clisse) - insistiu Maguiguana. - EìLrnão disse) - repetiu Matchumbutana.
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Nhingrritir-nc,
-
f'LÌ tens n-ìacharnba 1á no Goana? Eu tem machamber lá mesrr.o na Goana sinhorcr Mixadoro. . . - Tern muito rnercharnb a lá7 - f-errr muito macl-ramba lei sinhoro Mixacloro... - Mâchamba lá no Goana é prociutiva/ Raios... Prod u t i v a n ã o ! . . . É b o r n ? . . . M a c h a m b a 1 án o G o a n a é b o l r . ? . . . Jesus, isto sír com o irrtérprete, lá na adrninistração... A-larnr ado, o Roclrigues ofereceu-se: - ELr posso servil cle intérprete, senhor administrador... - Não!... O pano arra.ncolr do talrpo do balcão-frigorífico ullr ..Merda. chiar aflitiv'. ..,, _ getniu o Rodrigues. - Ouve cá, tu tiras muito milho lá na tua machamba? - Câcìa veztita, cada vezrtão tira, sinhoro Mixacloro.. " - O que é que estás para aí a ãizer, hornem? - Eu diz eu tira, sinhoro Cìomandante... O aclministrador conteve o riso que lhe provocara o novo tfatamento. -Aterraéboa? Vírgula Oíto percebera a rápicla sombra que perpaìssou pelo olhar do admitristrador quando o tratara por ctlmandante: - Terra é borrr, sinhor:o Mixacloro... - A terra é boa? - berror'r novamente cl admir-ristradoq irritado corl a perspicácia clo trabalhzrdor'. Vírgula Oito clemorou a resposta, indeciso: fbrra é born, sinhoro Conandante. Toclo o corpo de Vírgula Oito oscilou, srrblir-rlrando a afirmação. t)7
Luis Bernarclo I'{onrvan a
Perante o silêncio do interloclrtoq Vírgula Oito optor*l: - T'erra é borrr. e aguardou o efeito da nova fórmula, apertando as rnãos ao peito. Depois de olhar para Vírgula Oito de cenho franzido, o administrador explodiu numa gargalhada. Rápido, o Rodrigues introduziu o acompanhamento à terceira quebra do riso do administrador. Mais nroroso, o grupo que rodeavâ o acLninistrador começou o coro já com bastante atrâso. AJgumas clas raparigas desatararn a rir sem que tivesserrl percebido o que se passava. Menos teÍìso, Vírgula Oito disfarçou um sorriso, baixando a cabeça. - ps1[ bem, r^L1az,vai-te embora... Depois falamos, meu vivaço... Novamente, Vírgula Oito er€luer-ros braços lluma saudação. -
Nós não dissemos?. . . Nós dissemos que eles não haviam de gostar, Massinga... Maguiguana estava todo excitado - Disselrìos ou não dissemos?... Vírgula Oito fitou longarnerìte as pahnas das rnãos antes de responcler: Matchumbutana parecia saNós dissemos tisfeito col-ìr a atrapalhação de Vírgula Oito. - Vocês sabem... Eu não sei falar como o intérprete ou comcl o enfermeiro, eu não sei falat bem a língua deles, mas vi clue o Mixadoro não gosta de ver qlre as pessoas sabem o que ele pensa... Ele ficou zangac)o pclrque ... Bern, eu vi que ele ficor,r zangado. . . Vírgr-rÌa Oito não tentou disfarçar aìsua perturbação.
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NÌringuitimtr
A terra do Goan a era boa que se fartava Ernbora na última estação :rs chuvas tivessem siclo abundantes, o lodo do vale já secara havia alguns rrreses" Causticacla por um sol intenso, a terra endurecida fendera em sulcos sinuosos e profundos. Livres da sujeição das raizes do capim, àquela altr-rra do ano já duras e quebradiças, as terras da encosta soltavam-se e rolavârÌ âo mínimo soÌavanco do vellto, exa]ando LlÍÌrâ poeira clensa que caía sobre o vale, asÍìxianclo a folhergem das ánzores e turvando as águas vagiarosas do rio. A todo o comprimento do rrale, o lençol cle machambas ondulava rigidamente, percorrido pelas rajadas breves cle urn vento volúvel. Maduras, as espigas per-rdiarÌl para o chão, gordas e inteiriçadas. Do outro lado do rio, a colheita já tinha sido iniciada. As pequenas macharnbars mergulhadas nzl espessura da floresta enchiam-se de €ierÌte que afanosamente partia as espigas de rlilho das hastes. Era Lrnr rrlatraqlÌear entusiasmado, LÌÍna corrida contrar a baixa de preçc-r c1r-rcsurgiria quando os armâzéns da vila se enchessem colrr o rnillro dos grandes agricultores. E m v o l t a d a s p o v o a ç ò c s o s c e l e i r o s e n t L r m e s c i a r nr a piclanrente durante as manl-rãs para, durante a tarde, vomitarern as espigas paraì a clebulha. Durante a noite, conrboios de pequenas jangadas ajoujzrclas cle strcos àtravessavam o rio. Encravzrdas entre grancles propriedacles, titlÌladâs e demarcadas corrì cercados de ararne farpado, as reser\/as I 3')
Luis Berlr ard c>ll onu'.rnar
inclígenzrs cresciam em profundidade, dando para o rio u1Tìafrente estreitíssima. Contra a regra, a reserva da região do Goana dava ao rio uffÌa das faces do seu comprimento. 'fodas âs suas pequenâs rlacharnbas tinham L)crrisso acesso às águas do Incomáti. Situada a 12 qui,ómetros da vila, na outra marÉIem, era a mais próspera de toda a circunscrição. Compreendendo terrenos baixos, alagadiços, era manchada por uma série de lagos qr-rese mantinham ÍÌlesmo durante a estação da cacirnba. Nos terrenos mais secos do Goana apareciam Ltelos rnilheirais regados por varlas abertas pelos agricuÌtores. Nas zonas pzÌntanosas verclejava o arÍoz, o tabaco e, ern pequerìas áreas recuperaclas das águas pelos aluviões, cavava-se \>atata. IJrn extenso véu de vapor coLrria as terras do induna Goarra. De malha finíssima a nlrvem rodeava as árvores, as câsas e os animais rrum halo azulado, serrr contudo depositar nâs superfícies indícios de humidade. Por sobre as copas das árvores a neblina era perpassada pelos primeilos raios de sol, aclquirindo urr tom c{or-rraclo,antes de se desfazer no calor. Saudando o dia, os sclns do mato, zrinda vaÉIosbocejos roucos e, por vezes estridelrt es, ziguezag,ueavampreguiçosos, saltitando cle foll-ra em folha e ecoando surdamente até se perderem na profundidade do véu de vapor. IJm l<rrte cheiro a barro subia da terra, misturava-se aos vapores acres clo pântano e às fragrâncizrs da floresta; depois aétarrava-se às gotículas do véu azti.ado e desfazia-se lá em cirler, rìo ar já ir-rtensanente clourado pelo sol nascente. 140
Nllinutritrrncr
Com as narinas frementes Vírgula Oito sorvelr lolrgcls haustos do rrapor fresco cla manhã, antes de enveredar pelo capirn estreito qlÌe rastejava a seus pés. A cada passo sentiâ a carícia leve da franja de capirl que pendia p'ara a pequena concavidacle do canrinho, ulr'ìâ cócega agradável nos tornozelos e nos calcanhares. Vírgula Oito atravessou a machamba, pondo ern debandada uma nrlvenl de insectos que. pendurados nas plantas, esperavam a chegacla clo sol. Descuidado deixou qr-reos espir-rhos de LÌmâ pequenâ micaia que se disÍarçerva no capin lhe clilacerassem o braço. O sangue brotou ímediatarnente do rasgão, mas Vírgula Oito não se preocupoll. O trabalhaclor deambulou pelos reéÌos da macharnba. e, por fin, ébrio do cheilcr forte da terrar, cleixou-se cair' sobre urn tufo de ervas. Bocejanclo restos de sono, N'teasse, filha cle Sigolohla, avançoLr lentamente até transpor o limite dtr povoação. Desinteressacla, ajeitou a capulana e espregtriçolr-sc cotrr urn gernido. O mato acolheu-a c()lrl LÌn-ìaì car:ícia gélida. EsrrerrìeceuA nuverl de vzrpor perturbotr-se ligeiramer-ìte, encrespor-r e divicliu-se. Depoís uniu-se, envolvendo-a. A tema clo Goana aíndrr donliar;os carxpos, de um âr1ìarelo azulado, estavam desertos. Aqui e ali. enorn-ìes piràlides de espigas cle milho elerravatl-se c{o seio das nraclrarlbers. Com LÌma lenticlão capr-ichosa. Vírgula C)ito leverr-rtolr-se do chão. N'teasse ria-se llervosanlente, conf os dentes a faiscar por entre os lábios túrgidos. C) seLr corpo estrernecia sacudiclo pelas gargalhadas. l'-ll
Luis Bernardo l-Ionu'ana
De pé, Vírgula Oito fez nrenção de se atirar sobre a rapariga que, assustada, fugiu corrÌ Llrïì grito. Poucos passos voÌvi.los 1't:l16ue voltou a rir-se, nunìa provocação. Vírgula Oito avarìçou. Ela recuou. - Espera aí... _ p21a quê?.. " - Espera... - Não... Vírgula Oito correu, rnas tropeçou e caiu. Com raiva, ouviu o riso excitante dz-trapariga. - \'1szÌssê!. suplicou. Não poclendo conter o riso, a rapariga torcia-se em espâslnos. Vírgula Oito levantou-se num salto, e N'teasse fugiu pela macharnL,a. De gatas, Vírgula Oito ârrastolr-se cuiclzrdosamente pela estreita passagem entre as micaias. Do outro lado dos arbustos N'teasse espreitava-o, sorridente. Quando Vírgula Oito transpôs a passagem N'teasse esperou que ele se levantasse e voltou a correr, rindo-se em frescas gargalhadas. Segura erltre os braços do homeln, N'teasse sorria envergonhada. A inteusiclade clo olhar cle Vírgula Oito, baixor-l c)s olhos. E,nrbzrraçadc-r,o hornem afrouxou o braço; a rapariga desprendeu-se com urÌr safanão e fugiu corrr erlormes gzrrgalha das. Deitado no capim, Vírgula Oito deslizou com a ajuda dos pés, aproximarndo-se de N'teasse. Iìrandindo um pau, a rzrpariga nrantinha-o zìdistância, sorrindo satisfeita. r42
Nhinguitino
-
\'1szrsse... - atneaçoll Vírgula Oito, atirando-se pafa a frente. O pau caiu pesadamente sobre o orlrbro do homem. A rapariga soltou ÌÌma breve gargalhada. Vírgula Oito tentorÌ segurar o palr, mas N'teasse rÌaÉÌoou-lhe os cledos. -
\'1s2SSe...
A rapariga arrastolÌ-se pelo capin, fugindo devagarinho. Por fim, Vírgula Oito conseguilr seéllrrar cl pau. A rapariga puxou. Com o braço livre o homern alcançou-lhe o tornozelo. Flacidamente, a rapariga lutou para se libertzrt. Deçrois cobriu os olhos com as mãos e gemeu baixinho. Vírgula Oito prendeu entre os Ìábios a bochecha cle N'teasse. Depois, a força de sr-rcçãodiminuiu e a cârne escorregou corrf LÌrìf estalido sc>n<lrcr.
Nhinguitirno -
Massinga, nós não poderrros fazer nada... Eles levam-nos :ìs terrâs e nós tt:Ínos cle não dizer nada... Vírgula Oito não respondeu. Sentado nLln caixote, m2rntinha-se cle cabeça baixzr. Mertchumbutana insistir-r: - Tu não te pocles zàtrgar, Massinga... Não te deves zat1g,ar... - l\{36çhr-rrnbutana... - Vírgula Oito falava lentamente, titulreants - M21churr- butana... Ilu nasci naqr-rela terra... O meu pai tarnbérl nasceu lá. Tocla a minha fanrília é do Goana... Os meus avós todos estão lá enterrados... Maguiguanzr, o Loclrica tenl Ìojas, tenr tractores, t4)
Ltris Bernartlo
I Ionrr,'ana
terrr macharnbas grandes... Porque é que ele quer o nosso sítio? Porquê-/.. . Em volta, o Zedequiel, o Munanga, o .ê.lifaz, o Maguiguana e os outros traL,alhadores da machamba do Rodligues seguiam a conversa, acocorados. - ELr trabalho aqui, na machamba dele - continuou Vír:gule'rOito cclrÌr1>rclo qLre preciso na loja dele... A nrinha mãe, quando vem cá à vila vai para aToja dele.. " - Massinga, deixa 1áisso, o Mixadoro é capaz de não mandar sair ninguén... Se o Padre disse que ia falar corn ele tu não deviâs pelÌsâr assim. assustado corrì o tonl cla própriavoz, o Matchumbuterna calou-se de repente. O condutor meteu a primeira e aceleror-r.Relutatlte, o catnião â\/ançou, n-rgindo. No pino da subida o condutor rl'ìetelr a seguncla e o camião hesitou vaganÌente, antes de rolar, mais clócil, pela picada. Erritzrndo urrr rrìo1fte cle saccls, o carrrião resvalou do trilho, derrapou rrras logo se recornpôs. Cem metros à frente, jâ na macharlba, parou com Lrrrrestremecimento. E,i rap2Ìzes1 - gritou o câpat'.t2, saltando para o chão: Carregar nlun instante! Tenho pressal... I. â!... Zeclequiet deixou cair uma espiga e chamou os conlparnheiros colrì LÌm gesto. Vírgula Oito continuou acocoraclo, por cìetraiscle unrzr pirârlide de rniÌho. - C)rlde é clue está o Vírgula Oito-/ - perflLrntou o câpLltàz - [s5e Vírgula paìrece que anda â qlrerer brincar... Vírgr,rla C)ito ap rc'rximou-se : - EÌì estii doente, partrão... Dói cabeça... Dóí tnuito... - []s12ibem, quzrnclo largares pocÌes ficar cloente à volttrrde, 1-ìláÌs âÉIoravai ajucl'ar os oLrtros a cârregâr o catnião...
141
Nhinguitirno
Tcrdo abatido sobre as molas, o calnião inrzerteu o sentido nurra manobra trabalhosa e tneteu pela picada, gelxendo e Lrufando. Zedequiel! Matchunbutana!... Maguiguana! Munanga! ... Vocês todos! ... Todos os trabalhaclores se aproximaram de Vírgula Oito. Vocês cligarm-rne Lrnfa coisa: acham que isso dcr Lodrica está certo?. . . Ninguér-n respondeu. Vírgula Oito dobrou-se sobre o ventre e riu mansamente. fntrígados, os trabalhadores cntreolhzìrarì-se. ()s olrtros tarmbém se encheram de medo cJissepor fim Vírgula Oito, toclo strfocaclo trrelo riso - F.stão todos corn medo... Surgindo do sul, âs nuvens zìvançavam rapiclâmente, tir-rgindo o céu de negro. ps1[6 todos conr rnedo... Nós \ráìlrlclsficar sen-r nacla e toclos contirìLriÌrll conl rled<,... O estrondo enonle do prirleiro trovão esnlzÌ{tc)Llc) riso cle Vírgula Oito. Rugir-rdo, C)vento troLtxe Ln-ìtanu\/enì de poeira qlì.e envoh'eu os homens. Vírgula Oito ergueu o oÌhar e abriu os braços pateticârxente. - É o nhinguitiq-rol ... - gritor-r alguén-r. De braços erguiclos, Vírgrrìa Oito explicava ao céu pensamentos qr-reo vento desf,lzizr. - M a s s i r r g a ! . . . M a s s i n g e r "! . . V i r g u l ô ! . . . - Nhinguitirnol ... -gargalhou Vírgula Oito, carÌ)baleanclo. Perfurando nervosameÍìte a poeirada, duas ou três rolas, taltrez seis, sobrevoaran) os trabalhzrdores em círcu145
Luis
Bernardo
I-Ionwana
ios apertados. Depois do aviso frenético, as rolas rumaranr para as grandes florestas do outro lado do rio, fugindo do nhinguitimo.
Nessa noite iuro que senti raiva Lã fora a chuva caía rniudinha. Não fazia propriamente frio, mas o ternpo estava bastante mais fresco. gelg_s_meio realt _ gritou alguém a Íneu lado. Baixei as ciìrtas e procurei mais rÌmas neoedas no fundo clo bolso. O Maguiglrana entrou ântes de eu polrsar as moedas na banca. Todo coberto de lodo, esplÌrnava e berravâ estuçridamente. Ao meio cla sala, arquejante, anunciou: - Vírgula Oito ficou rrraluco patrão... Matou Zedecluiel com Alifaz collr Matcl-rumbrìtana... Tambérn quereu rneltar eLÌ, rnas eu fugiu, correr rnuito mesmo ! . . . A nós querelr aÉÌarrar ele e ele começou rnatar nós ! . . . Estava falar cotn céu... A nós queria levar ele para fugir de vento clenhinguitimo... Todo debruçado por sol;re o tâmpo do balcão-frigorífico, o Roclrigures atrriu a boc:,ì, sem poder ernitir qualquer sonl. Depois fzrlor-r. - Ilomens ! Peguern errÌ arnÌas e valnos abater esse r-Ìegro aÌntes que ele lTrate rnais gente! Varnos depressa antes que aconteça qualquer coisa de rnuito mau nesta viia!... MeuDeus!... Pouco clepois de eles saírem levantei-me da mesa: - Vão todos à merda tnais a estupidez deste jogo! r46
Nhinsrritimcr
Ninguém se preocupoLÌ conÌigo. Saí. Poucos passos rinha daclo quando senti a Marta a chapinhar, atrás de mim. Caramba, cc)nìcr é clue é possível haver tipos colTìc) e u ? E n c l u â n t o e u l n a t a v a r - o l a se j o g a v a a o s e t c - e - r r - l e i o aconteciarrì unlâ data de coisase eu llelìì lne irrrpressionava! Nada, ficava na rrlesrÌla, fazia qr-renão era cornigo... - ffi2rt2! - charnei. A rapariga veio a correr. Poça, aquiÌo tinha que mudarl...
1Á1
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Colecção IJilrliote<,a ltl<.litores Inclepenclentes
1 . Ilíarht.
l-lornt'r.o
2 - D - Q t t ì . x t t . e :r ! . el u M t t t u ; l t t r . , / , M i g r r t : l r l e C e r . r , t r r r l . s i3. D. Quit:.te rle kt, Iïlltr.rt.lut, Il. Mìgtteì tle Cer.virÌìtes 4,. Mett.sttgellr, F'er.rrarrrrltlI)essoa !-t. T rês l t o nt e t t.s rt ttt t t l t rt rr.o, .]e,rrrrne lt. .Iercrrrre (i. Poentus. Mrír.io tle Sei_Carr-neirrr 7. Cort.trts cle Sãtt l)r:!ersbttrgr.,, Nilçoìai Gírq-oì ti. (.)rlrt,rtrlr;, V i rgirr iir Ïíoolí(). O que ()r-tegir y (ìarsst:l é tt h-ì.[tt.so/ìrr.2, lo. o cri.nrc de ['orrl.e tlrÍ.ttr stu:i1e e ottrrtt.s oortto.s, ()st.ar: wilrle I l - F-ícç'õt;' rht Irtrt:rl tí.r!.i..- I)trcrnrts lntlt[.it.tuLt.s t:rrt t,ì.rkt. Fenrrr ntlo ltessoa 12. () I.h,ro rkt r./rrí. l(akrrzo Okal<ur-a lil- A xrarot,i.l.lto.so l/i,r44ern rl.t: Nir..sÍIol.l4er.s.srtttatrru,é.s rkt. ,stuít.irtSelnra Lagerlt;f' f :1,-Zen e rr ArÍ,e rl. T'i* t:.nt Art..- Iltrgen t[e'.igell 15. {./rn e.strunlut ent (}oct.,.José Flrluarrl<l Aguerlr-rsar 16- (Jrno lÌecrrrt!ctg'ã,o rk: Irt.fânt'ia. rre Lerntrurht clrt l/i.rtt.i,. Sigrnurrrl lìr'etr<l I7 - Cu,dentos tltt ,Ju.ltt<:rrâtte:o.JJosloiévski lB- Menórün 7tóstu,,tas t!e Rrcí.s cLtbrts, Mtr.rracÌti rÌe Assis 19. ( ) .fogrtrl or. I)ostoiér,skj
49. No hlostrt rlct Cctrsdr/o lerxt:t'r-totla Peregrillaçãol, l-ernão Mer-rrles Pinto 5|o. Iútriku,
fÌerrriqtre (iah'ão
51 - Terra. tìt()Ì't.(r,. Ctrstlo Strrontt tthrr l>2. \/ iru44enl, (lastr'o Sorornenho 5:3.,.1 c:|rcr.14tt, CirsI r'o Soronrenht.r !>4,.B t t In cct trt./è it.i.ç'o, LJarrI re n gar Xit u 55. /Vd.s,os do Mrt.l;tt,l.u.stt., Lrrerrtrlino Vieira 5 ( > . O o n t o s t c t r r t l u t t l c t t t , r i oÍ z l e . s . s e L e . s I t. I ì u y
I)uar-te tle Carvirlfrcr
i>7. Nós ntctt,rírntt.so Cã,rt-'l-ittltoso- I-rris fìen-rarclo Ilorrrvarra Sti. Ilu.. o Prnto, Mulirrr..tli ïJarn:rlrí: João 59. C lt i,t1ttítt.It rt. [ìuÌtasar' -[,o1res 6(l - f) o <:t t,rn e r t tr í,r i,o. A I-níl r:ar (-ìalrrer I
'20.
Arte rle Ser Portttguês,
Teixeira
rle Pasc:oaes
) f - P l n t c r o e e t t . . . l t r a r r R i . r n r í r r rJ i r r r é r r e z 22. Al.ìce do Otúro Lodo d.c'l)s1>ellto, Lewis Calroll 2i3. (,)s Doze Cé.sares, Suetóni() 24. M rtn gcílio, Ilernarclo
Car-vaÌho
25- () Spl,eett.de I'u,ris. Charles LÌaucleÌaire 26- Re:;ti.tírict. Iì'ã.btrlet.se OLLtro.sE.scriÍos, Leonerrrìo Da Vin<:i 2 7 - L I a r n l , e z ,W i l l i n r n S l r : r k e s p e a r e 2tl. O Cttlt.o clo Cltd, $íencesltru
tle Moraes
2()- Poesias Oontpl.et.írs.S- .loão da Cruz lfo- Câlttico
clos Câtt.tit:os
-iI . Cotttos, Tchéklror. ì\2. Martttril, da Pre.stidì.gitação, Mário Cesarirry ):,lJ-Desrrtetl,írlo - Crón,icrt,s do Bro..si.l.,Ruy f)uarte i \ , 1. ( ) F ' í . n t d e L i z z i e - A n a ' l ' e r e s a
rle Carvalho
Pereiru
il1- Arte cle Arnar. Or'ídio ';\b. l;itt.ge:n.ç, Mtrrco Polo 37 . I'ertsatnentos.
Marco Aurélicl
lftì - 0 dissefuz, I]onrercr :19. Noites Brant,ctts, Dostoiévski 40. Ca.rta sobrc A Felí,cíducle, Elticuro
e Da Vidn. Felí2, Séneca
4,f . Terror <:Misérirt, tlct Terc:eiro Reir:lt, Bertolt
Brecht
f'2. Poesíct, Antírnio Mnriar Lisbo.r .tiì. Surraslrr.r:, Honoré
cle Ralzac
44- Trê.s Corttos da. htd.io, Ruclyarcl Kipling 'Walt 4-.>.Conto cl,eMint, Mesnto. Whitman 46. Grt rclerr Prrrty, I(atherine
Mansfield
4'7. O Alieni.sta e Otúr-t>s Con,tos, Machado 4'8. Maria
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