Ceramicaviva - no particular exercício de triangulação dos processos de consumo, contextualização e produção estética
Isabela Frade – UERJ/Iart
A poesia é sempre uma linguagem agonizante, mas nunca uma linguagem morta. Robert Simthson
O presente texto visa contribuir para uma reflexão ampliada sobre a Metodologia Triangular elaborada por Ana Mae Barbosa. Publicada no início da década de 90 como conteúdo principal do livro A Imagem no Ensino de Arte (1994) se apresenta como grande marco no campo da arte educação brasileira. A Metodologia Triangular se instaura como influência cardeal, veio maior que drena e irriga as novas práticas e pesquisas desenvolvidas desde então, - e é importante notar que sua influência se deu em âmbito nacional e que, de forma intensa, envolveu a comunidade de arte educadores em geral - enfeixadas e articuladas pelo direcionamento na área na promoção do aprofundamento teórico, do trabalho de pesquisa do educador e de seus estudantes, e a uma nova visão do projeto pedagógico e artístico que se configura como ação cultural. Ser professor de artes adquire daí o sentido de envolvimento total com o campo da arte na medida em que essa proposta identifica as estratégicas zonas de sua produção: a crítica e a história da arte como inserção em uma particular zona cultural, a produção plástica propriamente dita como exercício em linguagem (meta linguagem), e a fruição e o consumo da arte como extensão desse processo. Pensar hoje essa Proposta é trazer novas possibilidades de exercitá-la – e é sobre esse aspecto que meu esforça aqui se dá, no sentido de estar acompanhando um novo momento de sua trajetória – abrindo novos espaços para o estabelecimento de um campo ampliado de ação cultural e educativa. Para tanto exploro minha própria experiência como arte educadora para elaborar essa reflexão, apresentando propostas pessoais e coletivas deflagradas a partir dessa
vivência mágica da triangulação no estudo/pesquisa e ensino da cerâmica. Nesse aspecto, grande parte desse texto é constituído por fragmentos de reflexões já elaboradas sobre o método, enxertos diversos, selecionadas as reflexões que se somam as referências à Metodologia Triangular extraídas de meus próprios textos dos relatórios acadêmicos, especialmente aqueles referentes ao projeto de extensão Ceramicaviva que vem sendo desenvolvido na UERJ desde 1998. O exercício de pensar o barro e as artes da terra vem se dando de modo particular. A constante deriva entre os ângulos propostos na triangulação, numa adaptação livre que propõe o jogo com diferentes pesos se seus vértices, a relação entre esses pontos de atuação gera percursos de encantamento e descoberta. Um jogo que desse triângulo se chega a um poliedro animado. (Enquanto observo o petrificado modo como o exercício da releitura se disseminou, reduzindo e eliminando exatamente o que de melhor se estabelecia como propostai, busco me aliar aos que exploram esses canais entre os pólos como vetores de ação educativa engajada, consciente e produtiva).
Fig 1. Produtos da Oficina da Terra. Técnicas de construção de placa e rolete. Projeto de arte relacional Casa de Passarinho. (2007)
O encontro com a cerâmica estabeleceu o lugar onde pude mirar essa amplitude, vislumbrando e vivenciando diversos modos de pesquisa ação de forma intensa. Sua abrangência cultural inspira continuamente na busca do
reconhecimento de outras experiências na arte, enquanto sua plasticidade se revela como território ímpar na promoção de encontros sensíveis entre o sujeitos (consigo mesmos e com os demais). Desde as primeiras explorações das potenciais qualidades de uma matéria-prima às mais sofisticas reflexões transculturais – que, na minha compreensão, é processo que só se inicia a articular a partir de uma experimentação metodológica inventiva. A apreciação da produção plástica instaurada na Proposta Triangular foi, neste caso, o motor indispensável. A competência para a apreciação crítica das produções artísticas possibilita a construção de modelos de percepção reflexiva de maior profundidade, instaurando a curiosa abertura para o outro – uma abrangência cada vez maior para essa apreciação ao interno e ao externo dos circuitos institucionalizados. Considero essa movimentação pessoal como parte de um programa geral: a imersão na fecunda onda multiculturalista que se instaura no campo educacional brasileiro a partir dos anos 90 - exatamente se iniciando nas múltiplas apropriações e desenvolvimentos dessa objetivação das práticas em arte educação. A publicação de Tópicos Utópicos (1998) trouxe, nesse aspecto, obra que alimenta esses novos expedientes, engenharia epistêmica que serve para dar um maior impulso à ampliação e fortalecimento de uma campo ainda tolhido pelas previsíveis resultantes à intensa movimentaçãoii – pressões e rejeições de cujos efeitos ainda hoje se percebe os ecos -, na promoção de uma grande virada, em renovação intensa, compondo o estatuto no qual agora nos encontramos, o de franca consolidação. Desde então liderança e responsável pela entrada da arte educação no âmbito acadêmico, Ana Mae Barbosa é referência indispensável. Indiscutível o rigor com que discute a história do ensino de arte no Brasil, tarefa que, de certa forma, traduz a preocupação em constituir esse lastro de referências amplas para a consolidação desse domínio. Esse resultado não se dá apenas em sua própria produção teórica, mas nos grupos que apóia e reúne na promoção de núcleos de intensa atuação, o que tem resultado no fortalecimento continuo e reconhecimento gradativo do campo.
Ceramicando – os desejos pela argila
A escolha pela cerâmica se deu por pressões externas: meu alunos (CAp UFRJ/
1993-1997) me pediam sempre que
trabalhasse com o
barro.
Questionavam o academicismo reinante e estavam dispostos a experimentar novos processos, mas se envolviam de modo intenso na elaboração de determinados exercícios desde que as técnicas convencionais estivessem envolvidas.
Resolvi investigar as motivações dos alunos e dos professores e
comecei a pesquisar o currículo programático da escola para descobrir sua história. Na época, seu conteúdo refletia a formação dos artistas na EBA e era calcado em técnicas plásticas. Ao redigir projeto de pesquisa de materiais, ordenei certas matérias convencionais com intuito de entender o filtro exercido pela criação artística acadêmica tradicional e moderna. A questão central era: - Se a arte contemporânea provoca a entropia da técnica e amplia o índice das materiais artísticos a toda a qualquer substância, qual o papel atual das matéria-primas tradicionais? Estariam condenadas a serem deslocadas? O que essas tradições artísticas produziram como experiência poderia servir ao artista e educador hoje? A argila ficou em primeiro lugar, contemplado o desejo das crianças. Me inspirava o livro Cerâmica Viva de Nino Caruso, grande ceramista italiano. Posso dizer então que não pude ultrapassar essa primeira fase do projeto, mesmo tendo saído da educação fundamental, e encaminhado essa instigante questão sobre os limites do barro para a pesquisa universitária, quando então assumi essa particular projeção da cerâmica (me instiga sempre sua legião de amantes), apresentando o projeto Ceramicaviva na UERJ em 1989. Sobre cada matéria se poderia realizar uma pesquisa deste gênero, assim como fez Bachelard em suas inúmeras investidas filosófico-poéticas, pensando a pedra, o fogo, o ar, a água. Realizar um mergulho em profundidade seguia então como modo exemplar de devaneio através de meio plástico – entre sua antropologia, sua história, sua pedagogia, sua ecologia, sua geografia, para revelar aí sua infinita potencialidade expressiva. O projeto então assumiu novas configurações: 1. na montagem de uma Oficina da Terra, espaço de atuação específico, um atelier/laboratório que
pudesse abrigar nossas investidas plásticas, tratando de reunir equipamentos, ferramentas e pessoal especializado e 2. na organização de uma biblioteca especializada, encontrada a difícil tarefa do material bibliográfico especializado em nosso país. O sub-projeto Mapa da Cerâmica Fluminense teve início, quando pude então treinar uma equipe de alunos pesquisadores para desenvolver as pesquisas de campo. A idéia de colher dados sobre os ceramistas populares e observar sua produção, executar uma etnografia desses agentes, visava a ampliação do conhecimento de seus práticas. Além disso, criaando estratégias para poder, eventualmente, aprofundar esse contato e seguidamente trazê-los para o laboratório. Construir a partir do desejo destes próprios sujeitos uma forma de entendimento da arte cerâmica de cunho popular, quebrando o status único do saber acadêmico. A cerâmica popular como espaço único, particularíssimo, onde se poderia pensar a arte em termos abrangentes e em realidades diversa. Neste caso, se torna visível o valor da relação pesquisa-extensão, pois a presença dos artistas populares em nosso atelier como professores, como a de artistas vinculados à pesquisa de cultura tradicionais, assim como as pesquisas da equipe de extensão (professores/bolsistas) criam um ambiente profícuo para o amadurecimento e fortalecimento das trocas entre as diferentes formas de arte cerâmica. Os aspectos da criação artística foram se tornando mais fortes, graças ao crescimento da comunidade de artistas que passou a freqüentar nosso atelier/laboratório. Temos hoje um grupo coeso de pesquisadores e artistas plásticos que encontraram aqui, na UERJ, um espaço de dinamização e valorização de seus projetos. Essa comunidade requer maiores recursos: ampliação do horário de funcionamento da oficina, novos equipamentos, orientação mais específica. Passamos a acompanhar a ousadia e esse desejo no aprimoramento de seus trabalhos, traçando novas fronteiras no que tange o contato com a produção de arte contemporânea. A cerâmica enquanto arte popular e/ou étnica (entre nós, uerjianos, se destacavam os interesses por categorias bem amplas: a indígena, africana, portuguesa e japonesa) já se incorpora como produção conhecida e prestigiada
pelos alunos e pesquisadores na universidade. Designers, artistas populares e acadêmicos, educadores, terapeutas, cientistas, estivemos atentos a produções mais variadas ao percebermos que a angulação de 360 graus era necessária. Essa atitude de entendimento da arte cerâmica a partir de uma perspectiva multicultural já está consolidada e amadurece nas intervenções de nossos pesquisadores-ceramistas. Caminhamos no sentido de uma abertura ao movimento das instituições de arte
que
promovem
o
circuito
contemporâneo-erudito,
evidenciando
a
preocupação de criar um diálogo com a produção artística atual de modo abrangente. Desafio difícil. Enquanto permanecemos nos ambientes à margem do circuito, criava-se um relativo conforto no que diz respeito ao entendimento das linguagens artísticas. Vivemos uma evidência paradoxal: o que nos é alheio é o mais próximo. A dificuldade maior entre nosso público foi (e ainda é para muitos) atingir o elevado índice conceitual exigido na apreciação da arte contemporânea.
Fig 2. Brincante. Aglomerados de argila líquida. Objeto Relacional. 2003.
Considero que um dos aspectos restritivos a essa aproximação advém de uma visão estereotipada da cerâmica, que entende o processo criativo apenas como produção de objetos decorativos (vasos e estatuetas principalmente) e não atinge o cerne de uma visão propriamente artística. Desde o lidar com a massa, até a consecução da forma e a preparação de seu contexto, inúmeros caminhos deixam de ser explorados. Os procedimentos assim reduzidos deixam de ser entendidos como produtores de sentido e passam a ser meios de obtenção de efeitos que estão superficialmente adequados a um resultado final já planejado de antemão. Para ampliar o escopo desse entendimento da cerâmica como lugar de pesquisa e da experimentação plástica há que se alinhar a modos de intervenção: palestras, visitas guiadas à exposições, vídeos de artistas, passeios virtuais pelas enciclopédias da arte, diálogo com artistas, entre outros caminhos, na promoção de uma mediação eficaz que viabilize um olhar mais penetrante e um fazer consciente que permita o trafegar nesse território. Força para saltar o fosso que separa a apreciação leiga da acurada intervenção deste meio erudito. Por outro lado, exatamente na outra ponta desse eixo, mesclar a elevada ação reflexiva do campo erudito, constituindo um estado de abertura e diálogo, com a arte popular que entre nós é vivamente presenteiii. Colocar diferentes sujeitos em diálogo é uma ação sobre esses limites e a consciência do lugar que se ocupa nesses mundos da arte. Para o artista popular, sair da sujeição e ganhar visibilidade, para o acadêmico, flexibilizar seus índices estético-conceituais capazes de possibilitar a tão desejada abertura comunicativa com o público. Segundo Sielsky (2006), a arte do barro hoje recupera sua ampla significação, já explorados os limites entre técnica e processo, esta sendo vista como campo de exploração de conceitos plásticos, “para cada conceito, uma técnica”, não necessitando ser classificada quanto a sua função: esboço, escultura ou cerâmica.
Fig 3. O Círculo da Terra. Aro de ferro como suporte e esfera de barro como instrumento de desenho. (2009)
Em 2005 o sub projeto Cerâmica Contemporânea teve inicio voltando-se para a ampliação do Mapa da Cerâmica Fluminense, buscando envolver os artistas com repercussão no circuito de arte carioca. Este projeto realiza desde então o levantamento das produções artísticas contemporâneas no Rio de Janeiro que exibam a utilização de materiais cerâmicos. O mapa se fazendo como um conjunto amplo no qual estejam situadas diferentes categorias de produtores em arte, sejam eles ligados às culturas tradicionais populares, aos setores mais eruditos ou aos que ocupam as faixas intermediárias entre esses segmentos. A pesquisa trata da análise do conjunto geral dessas produções e do modo como cada artista dá significado aos procedimentos que desenvolve. O sentido expresso é percebido como pertinente aos modelos de construção formal, sejam eles inovadores ao não. O que implica compor um quadro onde essas áreas de significação estejam dispostas a partir de suas injunções e / ou
disjunções. Busca detectar, na trajetória que cada produtor constrói em suas relações com os materiais que utiliza, o caráter que a cerâmica que assume na contemporaneidade artística brasileira.
Fig 4. Montagem da exposição Infinito & Totalidade. Instalação de 1001 peças de cerâmica em suspensão. Galeria Gustavo Schnnor, Centro Cultural da UERJ. (2008)
A partir de 2006, passamos a explorar os espaços institucionais como espaços de comunicação estética. Nossos freqüentadores começam a expor e comercializar os trabalhos realizados na Oficina. Há uma demanda política quanto à promoção de seus trabalhos e esse é outro desafio a se cumprir periodicamente. Organizar mostras da produção da oficina e fazê-la circular fora do âmbito desta universidade é cumprir uma demanda social, alimentar nossos
desejos de artistas. Essa abertura para o público se tornou parte de uma ação comunicativa premente. Além de atender a esse movimento intenso na criação de uma Oficina da Terra, realizamos parcerias com demais projetos acadêmicos de diferentes áreas. O projeto de alfabetização de adultos, o ProAlfa, nosso parceiro em várias intervenções educativas, assim como o ProAfro, através do levantamento das influências africanas na cerâmica fluminense, o Proíndio, em corrente pesquisa sobre arte e artesanato, planos de escavações e oficinas com o Programa de Estudos da Pré-História, entre outros, onde exploramos nossos limites do entendimento de uma matéria e dos modos de estudá-la. A filosofia de Bachelard (1991, 2000) foi uma forte influência para esse movimento de composição multidisciplinar. A filosofia da imaginação material servindo como amálgama de concepções variadas sobre a natureza dos corpos e das ações humanas sobre a matéria. Com efeito, a imagem não deve ser estudada em fragmentos. Ela é precisamente, um tema de totalidade. Requer a convergência das impressões mais diversas, das impressões que vêm de vários sentidos. É com essa condição que a imagem assume valores de sinceridade e seduz o ser em sua totalidade. (1991, p. 12)
O exercício dos estudantes/pesquisadores/artistas nessas parcerias, enquanto dinamizadores de saberes entrelaçados, projeta sua atuação além dos espaços do Instituto de Artes. Trata de dialogar com novas formas de compreender a cerâmica, o que é bastante enriquecedor. Enriquece também o universo do outro, sujeito da experiência, que vem entrar em contato, quase sempre pela primeira vez, com seus próprios poderes criadores. O encontro é vivificante nos dois sentidos. É interessante notar que muitos projetos, cursos e eventos já contam conosco, de antemão, o que denota o aprofundamento nessa relação e que aponta para a continuidade desses contatos. A idéia central é formar um laboratório transdisciplinar para a pesquisa em cerâmica.
Não posso deixar de demarcar o inicio da disciplina acadêmica eletiva universal Cerâmica, que abre o currículo dos estudantes da universidade – e não apenas aqueles das artes, mas de toda e qualquer área (é universal) – para os saberes da terra enquanto ciência e arte. O principal argumento em favor de sua criação foi a notada ausência de referências às produções em cerâmica nos livros de História da Arte, uma lacuna que a disciplina tenta eliminar com a produção teórica de docentes a alunos. Para os integrantes da equipe de extensão – coordenação e bolsistas – que se colocam como pesquisadores e produtores de arte, e não como mero instrutores ou transmissores de conhecimento, a prática no laboratório está profundamente marcada pelo ato de compartilhar. A troca, que sempre ocorre, é dialógico reversiva, em duplo sentido, pois o olhar inocente sobre a cerâmica costuma revelar novas possibilidades também para os mais experientes. Vivenciamos o conhecimento e o compartilhamos. Na verdade, estamos construindo uma comunidade, na medida em que mais e mais pessoas se aglutinam em torno desse projeto. O espaço de criação que o laboratório hoje oferece se faz, mais do nunca, um território a ser mantido e cuidado na UERJ. É a defesa do privilégio da pesquisa artística com vistas à sua democratização. É o lugar da pesquisa e da troca; arte, ciência e comunicação. Os saberes da cerâmica não se esgotam. Ainda que nossa postura seja a de preservar certos saberes – aqui nos referimos aos conhecimentos da cerâmica nas sociedades tradicionais – em certos aspectos então uma ação bastante conservadora, enfim, também nos projetamos para o futuro, traçando novos percursos na pesquisa e prática artística, na promoção de outras instigantes formas de se fazer arte. O objetivo maior é nos humanizar nessa transformação da matéria inerte em uma matéria vivente, vivificante (BEAUVAIS, 2001). Reinventar o ofício de pensar a terra como espaço primordial, recriar a arte de trabalhar o barro como o sensível lugar de origem da vida. Entre as últimas realizações, destaco ainda o projeto Biodiversidade e Diversidade Cultural promoveu a partir de 2007 uma parceria profícua com a equipe de educadores ambientais vinculados ao Programa de Pós-graduação em Meio
Ambiente. Realizamos uma Mostra de Cerâmica Fluminense em 2008 a partir deste trabalho de pesquisa conjunta, reunindo no campus UERJ Maracanã as obras de vários ceramistas e incentivando o diálogo entre eles e com o público universitário. O projeto Terra Doce, desenvolvido a partir de 2008, se deriva daquele, explorando a comunidade vizinha da Mangueira como potencial campo de pesquisa ação para a arte pública engajada, onde estes mesmos artistas e artesãos pudessem estar desenvolvendo ações educativas e entrando em comunicação com um público leigo. A formação do coletivo Círculo da Terra, reunindo mulheres artistas da UERJ e da Mangueira, se consolida e firma, no espaço laboral da Oficina, um encontro entre artistas na discussão sobre as vidas pessoais, os sonhos da arte e as experiências plásticas com a cerâmica. A pesquisa pretende contribuir para o atendimento dessa exigência: a formação de futuros arte-educadores capazes de lidar com a indissociabilidade entre prazer estético e qualidade de vida, entre conhecimento acadêmico e experiência de vida, e capazes de gerar novas enlaces com a pesquisa científica e o saber artístico. A ação educativa em comunidade vizinha permitindo uma formação mais completa, ampliando as experiências em educação para além do sistema formal de ensino. Trata-se de um projeto de arte voltado para a constituição de um elo (enlace estético/afetual) entre o campus e a favela, comunidades fisicamente tão próximas mas socialmente tão distantes: um projeto de pesquisa-ação que visa dar subsídios para uma nova dinâmica da produção artística da comunidade de mulheres da Mangueira e um novo percurso reflexivo na vida acadêmica de nossa universidade. Não se propõe como ação intervencionista ou investigativa – apesar de contar também com essas vertentes em seu trabalho de composição -, mas de criar um espaço comum, um campo de trocas para a “partilha do sensível” como proposição aproximada do que sugeriu Ranciére (2005). A introdução de práticas criadoras em cerâmica, nesse sentido, surge como veículo para a ação educativa em arte em âmbitos mais abrangentes, envolvendo questões sociais, ambientais, familiares e pessoais. Acreditando na troca dialógica como principio educativo, embebidos nas base nas propostas de freirianas, buscando estruturar a efetivação de um espaço sensível de produção de
conhecimento e cultura, apostamos na introdução de certos procedimentos artísticos em cerâmica como dispositivo paraa aproximação e o entrosamento capazes de deflagrar entusiasmo pelos próprios poderes criativos de suas participantes.
Dessas primeiras experiências com a terra nasce Lembrancinhas, obra configurada como veio de arte relacional, onde o público também é envolvido no processo de criação de uma onda verde – são sementes, mudas, vasos com flores que promovem uma semeadura que acompanha, em sua feitura, o ritmo do outono. Colher as sementes no campus maracanã foi experiência única na vivência de muitos anos de universidade, onde os pequenos jardins mal eram vistos, muito menos tocados. A busca do verde na Mangueira, reduzido a poucas árvores e vasos domésticos, resultou numa alegria intensa. Muitas receitas de remédios caseiros, de doces e de artes mágicas foram aparecendo nesse processo. A abertura da exposição é o momento onde a obra ganha vida, na troca econômico-afetiva, pois a idéia é gerar renda para a comunidade, fazer com que arte também possa ser provento.
Fig 5. Cartaz da exposição CORPOARTELABOR com texto parcial da obra Lembrancinhas, produção do Círculo da Terra. (2009)
Os fundamentos político-sociais da pesquisa sob a metodologia da pesquisaação em educação artística referem-se, em especial, a necessidade de superar um modelo de conhecimento fundamentado na separação entre o saber científico e o saber artístico, entre a teoria e a prática, entre arte e artesanato, entre o conhecer e o agir, entre a neutralidade e a intencionalidade, entre cultura acadêmica e cultura popular. Tendo a cerâmica grande lastro e abrangência cultural, especialmente fortes nas culturas populares, é com ela que prosseguimos, abrindo espaço para o entrosamento e articulação com as demais formas de arte, essas se referindo às próprias práticas estéticas que vão sendo reconhecidas pela pesquisa de campo e potencializadas na ação dos arte/educadores envolvidos no projeto. Revelo aqui o trecho do projeto que apresentado à Faperj e em parte discutido entre pares no último encontro ANPAP, obtendo apoio financeiro e se realizando plenamente em nosso laboratório:
O trabalho educativo baseia-se na Metodologia Triangular de ensino de arte gerando desde as fases iniciais a articulação entre criação, reflexão e fruição estética, destacando seus aspectos fundamentais. O aprofundamento nas práticas com a cerâmica aponta para o grau de especificidade que se pretende dar no trato da cerâmica enquanto meio expressivo e laboral, explorando a plasticidade da argila como recurso pedagógico, aprofundando a relação histórica potente (com lastro cultural universal) e equilibrando-a com sua capacidade de servir à metamorfose criativa, ampliando a individualização imaginante do sujeito, como diria Bachelard (2001). (FRADE, 2008)
Explorando espaços cada vez mais amplos, no jogo da triangulação entre ângulos cada vez mais agudos, continuamos o trabalho de pesquisa plástica, crítica e contextual, examinamos formas de entendimento dos espaços sociais reservados à arte. A cerâmica se revelando, em cada um desses desdobramentos aqui sucintamente descritos, matéria capaz de congregar um pensamento denso e de estabelecer, como preconiza Rizzi (2008), uma configuração complexa do ensino de arte. Uma matéria capaz de dar pleno suporte a esse universo amplo de experimentações. Sabemos como começamos um programa de ensino de arte, mas não temos certeza como o finalizaremos, pois, ao longo do processo ocorre um fluxo de escolhas, de interferências e retro-interferências que alimentam e desafiam todos os elementos envolvidos no processo. (RIZZI,p.346)
Entre os espaços acadêmicos, nas galerias de arte, nas praças públicas, nos terreiros das olarias, nos estúdios de artistas, nas ruelas da favela, nos congressos de educação e arte, vamos apresentando esses exercícios práticos e discutindo nossas pesquisas teóricas. Há ainda muito que explorar e refletir. O mais importante a notar, na finalização deste texto, é a dinâmica vivificada por uma
metodologia
multidimensional.
aberta
que
libera
um
espaço
de
ação
educativa
Bibliografia:
BACHELARD, G. A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______________. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARBOSA, A. M. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva, 1994. BARBOSA, A. M. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte, C/ Arte, 1998. BEAUVAIS, M. Magie de L´Argile. Paris: Flammarion, 2001. BOURDIEU. P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. CARUSO, N. Cerâmica Viva. Milano: Hoelpi Editore, 1982. FRADE, I. Terra Doce. Projeto apresentado à FAPERJ no Edital 2008 de apoio às artes. Parcialmente publicado em _____ e BRANQUINHO, F. “Arte, Educação e Projeto Ambiental” in ANAIS ANPAP. Salvador, UFBA, 2007. RIZZI, M.C. “Reflexões sobre a Abordagem Triangular no Ensino de Arte in BARBOSA, A. M. (org.) Ensino da Arte – memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008. SIELSKY, I. “O Barro na Arte: uma questão de limites” in ANAIS ANPAP. Florianópolis, EDUSC, 2007. SMITHSON, R. “Uma Sedimentação da Mente: projetos de terra” in FERREIRA, G. e COTRIM, C. Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2006. RANCIÉRE, A Partilha do Sensível. São Paulo: Editora 34, 2005.
i
A própria Ana Mae Barbosa comentou, em série de encontros de pesquisadores, o desencanto e desapontamento com esse enfadonho aproveitamento, perversão de sua proposta. O abuso desse procedimento, fruto de uma apropriação reduzida, gerou uma técnica de aplicação pedagógica de razoáveis resultados plásticos, uma vez que a referência aos cânones artísticos estavam presentes e, como se deveria esperar, os reflexos de uma obra de vigor estariam assim estaticamente já autorizados a se imporem na produção. Aliás, esse é o maior motivo da mudança de nomenclatura, que de Metodologia Triangular passa à Proposta ou Abordagem Triangular, numa tentativa de abrir o canal da experimentação na sua apropriação. Como tenho em Morin uma referência potente com relação ao método, continuo usando a primeira terminologia, mesmo correndo o risco de ser mal interpretada. Nesse sentido, creio que importa resistir e fazer valer o estudo de uma epistemologia aplicada, ou ainda, uma epistemologia prática, é isso a metodologia!! ii Segundo Bourdieu (2000), especialmente citado para a reflexão sobre a prática social nos campos de produção simbólica, a presença de elementos novos e sujeitos insurgentes prescreve a luta constante entre os agentes na produção cultural. Como experiência pessoal que pode ser estendida no campo profissional como dado histórico, vivi momentos de duras discussões na universidade (2001-2003) quando se colocava questão o valor da arte/educação como campo de conhecimento, por alguns considerada inadequada ao âmbito acadêmico e entendida como realização extra artística. Elas derivavam de um parco entendimento do campo educacional e de uma ânsia premente na atuação artística restrita e conservadora. iii Esse modo difere do caso do artista acadêmico que se apropria da cultura popular em seus trabalhos.