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04 OUTUBRO
2010
CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora
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Joaquim Oliveira Caetano Os “Morgados” do Museu de Évora
ÍNDICE OS “MORGADOS” DO MUSEU DE ÉVORA. Joaquim Oliveira Caetano A TALHA MAIS MODERNA. O PERCURSO ARTÍSTICO DE MANUEL E SEBASTIÃO ABREU DO Ó. Celso Mangucci Os azulejos do Mosteiro de São Bento de Cástris. Teresa Verão São Manços: da lenda à realidade arqueológica. Patrícia Maximino
Joaquim Oliveira Caetano nasceu em Beja, em 1962, e apresentou a sua tese de mestrado na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Nova de Lisboa, em 1997. Publicou inúmero artigos sobre a História da Arte em Portugal, dedicando-se principalmente ao estudo da pintura. Foi director do Museu de Évora entre os anos de 1999 e 2010 e actualmente integra os quadros do Museu Nacional de Arte Antiga.
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os “Morgados” do Museu de Évora Joaquim Oliveira Caetano
O Museu de Évora possui 15 pinturas dadas como da produção de José António Benedito de Faria e Barros, conhecido como “o Morgado de Setúbal”. Mesmo considerando que três destas pinturas podem ter atribuição discutível, é um núcleo importante de obras do pintor, actualmente talvez o maior, depois do grande grupo de 26 pinturas do Museu Carlos Machado de Ponta Delgada, que pertenceu à antiga colecção da Condessa de Cuba. Todas as pinturas datam das décadas de 1780 e 1790 e, à excepção de duas, todas pertenceram à colecção de Frei Manuel do Cenáculo. Esta ligação do Morgado de Setúbal com o futuro arcebispo de Évora, e um dos maiores coleccionadores portugueses do seu tempo, começou por iniciativa do pintor que ofereceu a Cenáculo um retrato de Hipócrates, acompanhado de uma carta que já tivemos ocasião de publicar: “Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Eu quiz ter a honra e a satisfação de offerecer a Vª Exª esse retrato, porque julgo que não he muito facil o encontralo em colecções de pintura; Como sei que Vª Exª he apaixonado por esta arte, me re rezolvi a fazer hum painel em que a minha mão ainda tímida não poude dar aquelles toques vantajozos que escapão das mãos dos Mestres; e por este motivo desculpará V. Exª os deffeitos que devizar, considerando, o quadro como produção de hum genio que ainda não tem ellegido methodo para poder dar a cada objecto o tom, e o colorido que lhe são proprios. Eu sou de Vª Exª o mais humilde e obediente servo Joze Antonio Benedito Soares de Faria e Barros”1 CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 4 | Outubro 2010 | página
Joaquim Oliveira Caetano Os “Morgados” do Museu de Évora
A carta não está datada, mas o retrato ainda existe e tem no verso a assinatura latinizada e a data de 1787. Esta data e o documento são importantes de várias formas. Mostram-nos, por exemplo, como a fama de coleccionador de Cenáculo era generalizada e também, de algum modo, como a sua colecção de pintura tinha uma concepção mais temática, mais baseada na invulgaridade dos retratados, do que propriamente na qualidade das obras que a constituíam. Jozé Benedicto apela para a raridade da representação, apesar dos defeitos que reconhece à pintura. O facto mais importante é a relação da data com a pintura.
artista, o escultor Pedro Baptista “mestre na arte de escultura natural da freguesia de Santa Catarina do Monte Sinai e morador na Rua Direita nesta freguesia de Santos o Velho ambas nesta cidade que disse ser da idade de sessenta e cinco anos”3 que, aliás, não conhecia José Benedito nem a sua família mais próxima. Em todo o processo, as dezenas de pessoas que nele depõem mencionam-no apenas, e recorrentemente, como “pessoa que se trata com limpeza e bom tratamento do que lucra de suas fazendas” ou “que trata das fazendas de seus pais” e “vive limpa e abastadamente com bom tratamento tudo precedido do que seus pais lhe dão”.
Em 1787, Jozé Benedito pintava incipientemente como a pintura documenta e ele próprio concede ao falar da sua mão “ainda tímida”, estar ainda no princípio das suas experiências artísticas, como quem “não tem ellegido methodo para poder dar acada objecto o tom, e o colorido que lhe são proprios”.
A residência em Mafra e a circunstância de serem pintores deve ter criado a ideia da ligação de aprendizagem, mas a pintura do Morgado é, como notou José Augusto França, tipicamente um caso de autodidactismo4. Do ponto de vista estritamente técnico a sua pintura denota uma ausência de prática de ateliê com deficiências na preparação das telas e na utilização dos aglutinantes, que criam um típico engelhamento nos reversos, com linhas de perpassamento do óleo e um estalado largo e cortante, que se desenvolve em espirais fracturadas como uma teia de aranha, o que parece de facto indicar uma aprendizagem individual desamparada de direcção.
Esta afirmação parece pôr em causa a fonte memorial mais perto da vida do Morgado, a Colecção de Memórias de Cirillo Wolkmar Machado2, que atribui ao pintor uma aprendizagem com Vieira Lusitano, que parece de todo inverosímil se considerarmos que a pintura do Morgado era ainda tão incipiente em 1787 e uma aprendizagem com o Lusitano só poderia ter acontecido antes de 1770. É muito provável que José Benedito tivesse conhecido o Lusitano, pois ambos viveram em Mafra até essa data, tendo o seu avô, o sargento mor António Soares de Faria, a responsabilidade de Tesoureiro das Reais Obras de Mafra, na altura em que o pintor habitava no convento. Mas a família estabeleceu-se em Setúbal, em 1770, tinha António Benedicto 18 anos, e não consta que tivesse nenhum tipo de aprendizagem da arte. Aliás, no processo para familiar do Santo Ofício que requer e lhe é concedido, em 1774, não se menciona nada desta aprendizagem, nem sequer um especial interesse pelo meio artístico. Nas dezenas de testemunhas arroladas para o processo apenas se conta um
Do ponto de vista artístico a análise dos primeiros anos da sua produção, com o recurso à datação das telas que faz frequentemente, mostra-nos uma evolução enorme que também parece indicar um esforço individual e solitário. Bastará compararmos, limitandonos aos exemplares do Museu de Évora, as obras mais antigas, como este retrato de Hipócrates, ou “Peças de Cozinha, Gato e Galinha”, de 1782, com as obras mais complexas dos anos 90 como “Aves e Utensílios de Cobre” ou “Pavões e Galo”. Na obra inicial, não só o tratamento é incipiente, como a composição é de tal forma simplificada que parece apenas que a pintura foi dividida em quatro partes, ocupando cada figura uma delas, de forma que se perde de
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1. Morgado de Setúbal, Retrato de Hipócrates, 1787. Museu de Évora, ME 652. Foto do autor.
todo o relacionamento entre os vários elementos da pintura, denotando uma pobreza típica da iniciação autodidacta.
nas nossas bibliotecas referiremos o Traité
Desde o início do século XVIII, ou mesmo da centúria anterior, que vários manuais de pintura se dirigiam não só aos aprendizes de pintura mas também a um público crescente de amadores. Para nos limitarmos às obras francesas, que tinham mais influência entre nós e permanecem com alguma abundância
Boutet, com sucessivas edições durante
de Mignature pour Apprendre Aisément à Peindre sans Maître, Paris, 1672, de Claude mais de um século até 1817 e traduções nas principais línguas europeias; a obra de Roger de Piles, nas suas várias versões (Les
Premiers Eléments de la Peinture Pratique, Paris 1684, Cours de Peinture par Principes, Paris, 1708, Elements de la Peinture Pratique,
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2. ����������� Inscrição no verso do Retrato de Hipócrates,����� 1787. Museu de Évora, ME 651. Foto do autor.
Paris, 1766) e, talvez sobretudo, o tratado de Gerard Lairasse, Le Grand Livre des Peintres, ou L’art de la Peinture consideré dans toute ses parties, com variadíssimas edições em diversas línguas europeias entre 1701 e 1817, incluindo edições parcelares em português5, em 1801. A juntar a estas obras maiores devemos somar pequenos tratados como Le Moyen de devenir Peintre en Trois Heures et d’exécuter au pinceau les ouvrages des plus grands Maîtres, sans avoir appris le dessein, Paris 1756 (e 1772), com tradução portuguesa6, em 1801, que, embora incida sobre a pintura de gravura colada em vidro, tem utilidades práticas na técnica da pintura, e outras obras gerais com uma forte componente de ensino prático das artes, como a obra do espanhol Bernardo Monton, Segredo das Artes Liberais e Mecânicas (Madrid, 1760) editada na tipografia Rollandiana em 1818, ou os Segredos Necessários para os Officios, Artes e Manufacturas... extrahidos da Encyclopédia..., Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1794; sem esquecermos a reedição, em 1767, da velhinha, mas sempre muito divulgada, Arte Poetica da Pintura Symmetria e Perspectiva (1615) de Philippe Nunes, o tratado prático português mais conhecido. José Benedicto por certo tinha acesso a muitas destas obras nas bibliotecas das casas que frequentava, pois alguns dos coleccionadores, como Cenáculo, eram também, e sobretudo, bibliófilos detentores de grandes bibliotecas. O próprio pintor teria um razoável número de livros, pois embora nos seus inventários apareçam apenas duas obras individualizadas7, para o registo dos seus bens, após a morte súbita, foi nomeado o professor de gramática Félix Vidal Gacha para avaliador dos livros “por não haver nesta
villa livreiro”8, necessidade que indica algum vulto destes bens, aliás avaliados em 28.680 rs., verba de alguma substância para livros usados9. Cirillo Volkmar, que já citamos atrás, diz que ele “amava as bellas letras, e lia livros Latinos, Francezes, Italianos, etc. pelo que é de todo provável que tenha sido em boa parte esta literatura de divulgação que lhe serviu de base à “muita applicação à arte da pintura”10. As suas primeiras obras mostram com evidência as dificuldades do autodidactismo, quer do ponto de vista técnico, quer artístico. Muitas vezes são figuras isoladas, centradas no quadro, como o “Gato” do Museu de Évora, não datado, mas por certo do início da carreira, cerca de 1780, sem a qualidade da representação da textura e da côr de obras similares uma década posteriores, como o “Galo” vendido há não muito tempo numa leiloeira de Lisboa, datado de 1791, com um vigoroso tratamento da plumagem e, frequentemente são réplicas de outras pinturas. Glória Nunes Riso Guerreiro, que, em 1963, realizou uma pequena exposição de pinturas do Morgado no Museu de Setúbal, tinha já dois anos antes, na sua tese para conservadora, mostrado uma série de pinturas de José Benedito que copiavam obras seiscentistas portuguesas e espanholas12. O que é mais curioso, é que as réplicas, frequentemente, como no caso da Quinta dos Perus, na Arrábida, permaneciam no sítio dos originais, nas mesmas colecções, o que denota, quanto a nós, uma familiaridade entre os proprietários e o artista muito grande. Não por acaso, certamente, as obras do Morgado estavam maioritariamente em grandes conjuntos, na Condessa de
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3. ������������ Morgado de Setúbal, Mulher e Perú, ������������ 1792. Museu ������ de Évora, ME 643. Foto IMC - DDF José Pessoa.
Cuba, no Palácio Pombal, em Cenáculo, nas Quintas das Torres, do Machado, dos Perus, de Aranjuez, no Palacete Cabral Ferreira em Santiago do Cacém, nas colecções dos Marqueses de Borba e do Conde de Farrobo, um conjunto de locais e personalidades não muito distantes geograficamente e com evidentes proximidades políticas, mais ou menos todos descendentes do pombalismo. Repetições de pinturas seiscentistas são as duas naturezas mortas do Museu de Évora, curiosamente as duas pinturas que não pertenciam à colecção Cenáculo, mas foram mais tarde compradas por Cunha Rivara para a Biblioteca Pública de Évora. As duas obras são par, mas se a técnica com que dá a textura e a cor aos frutos é idêntica, já a composição da Cesta de Frutas é muitíssimo mais complexa, com vários planos de profundidade, sem rigidez na relação entre os vários elementos do quadro e com uma paisagem enquadradora de belo efeito, elemento que foi sempre insuficientemente tratado na obras do Morgado. Esta
comparação mostra-nos estarmos perante obras realizadas no mesmo tempo, mas sobre protótipos de uma qualidade muito diversa. Da cesta de frutos conhecemos, aliás, por fotografia, várias réplicas, reproduzidas algumas na já citada tese de Glória Guereiro. O Morgado domina claramente primeiro as texturas e o colorido, antes de melhorar a composição, o que exigiria maior aprendizagem de desenho e maior prática de academia. Só perto dos anos 90 as suas pinturas começam a mostrar maior atrevimento neste aspecto. A Natureza Morta com Fogareiro, Perna de Cordeiro e Cebolas, de 1796, é um exemplo dessa mudança. Tratase já de uma composição própria, onde os elementos são mostrados de forma simples mas relacionada, aproximando-se mais da captação de um interior do que da composição artificiosa dos elementos característica da natureza-morta. Três outras composições do Museu de Évora documentam outra faceta muito presente na obra do Morgado de Setúbal
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4. Morgado de Setúbal, Peru e Galos, 1790. Museu de Évora, ME 644. Foto IMC - DDF José Pessoa�.
- a representação de aves, que parece ter pintado insistentemente nos primeiros anos da década de 1790. São elas Peru e Galos, de 1790, e Pavões e Galo e Peru e Patos, ambos de 1791. As duas primeiras são das melhores peças do pintor do ponto de vista da organização dos elementos da pintura, complexas e plausíveis, mas é mais uma vez nas texturas e na exuberância das cores, de certo exagero de vibração e contraste, que o Morgado se compraz. Do ano de 1792, é outra tela também com aves, a Mulher e Peru, cena curiosíssima de drama culinário, em que um peru, à direita da imagem observa uma mulher, vestida com despropositada elegância para a tarefa, que afia num alguidar a faca fatídica, enquanto, pela porta entreaberta e estranhamente central, como que dividindo os dois protagonistas maiores da cena, um gato se esquiva com uma sardinha na boca. Ainda do mesmo ano, intensamente produtivo, é outra pintura do Museu de Évora, os Três Músicos, conjunto de meias figuras, com um cego ao centro tocando sanfona rodeado por dois miúdos, um tocando pandeireta e o outro
pronto para receber as moedas dos ouvintes, composição repetida com variantes pelo pintor inúmeras vezes e que corresponde a um dos mais célebres modelos do Morgado de Setúbal, os conjuntos de três meias figuras, onde podem entrar cegos, negros, velhos, exuberantes raparigas, sempre retratadas com um evidente prazer na representação dos tipos populares. A produção destes anos talvez esteja ligada ao facto do pintor se ter então finalmente libertado dos afazeres políticos que o ocupavam e para os quais não era talhado. Em Setembro de 1790, a Rainha Dona Maria aceitou um pedido de José Benedicto de Faria e Barros, para que o escusasse de ser almotacé da Vila de Setúbal, como era normal naqueles que deixavam o cargo de vereador. O pintor tinha ocupado este cargo, mas, nas suas próprias palavras do documento régio “em veneração da honra com que Eu o distinguira, mas não exercitara em razão do seu genio melancólico e repugnante a tudo que eram cargos”13. A última pintura do museu, proveniente da colecção Cenáculo é a Fiandeira, mulher de
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idade e popular, vista de perfil a fiar, datada de 1796, um modelo do qual também conhecemos várias réplicas executadas pelo pintor. Permanece sem explicar-se cabalmente se esta profusão de réplicas e variantes que aparece na obra de José Benedicto se devia a uma procura da perfeição, característica da pesquisa autodidacta e amadora, ou se destinava a fornecer um mercado de compradores e a satisfazer necessidades económicas. O processo para familiar da inquisição, que já citámos, dá-o como vivendo folgadamente da gerência dos negócios dos pais, mas Cirillo diz expressamente que “como os allimentos que seu pae lhe dava não bastassem para as despezas que fazia, usou da Arte como professor até os annos 1804, tempo em que pela morte de seu pae herdou a casa que rendia 10 a 12 000 cruzados”. A mesma ideia é repetida pelo anónimo memorialista14 da Revista de Setúbal, de 22 de Outubro de 1908 que afiança que “viveu sempre com certas difficuldades de dinheiro, o que prova ser pouco rendoso o morgadio, valendo-se por vezes do pincel para ganhar a vida”. Sabemos de facto que, mesmo em vida de seu pai, em 1798, fez acertos nas heranças a receber, abdicando de todos os bens que lhe pudessem caber pela herança paterna, à excepção dos vinculados ao Morgadio em favor dos outros herdeiros ou credores do pay”15, o que indica talvez ter recebido antecipadamente algumas verbas. É provável mesmo que este episódio neste ano se prenda com desavenças familiares entre António Benedicto e o pai, de quem objectivamente dependia. Já em Janeiro desse ano António José Bernardo Soares de Faria e Barros, pai do pintor, tinha deixado Setúbal para se instalar em Lisboa “com a sua família e dependencias da sua casa”, deixando o pintor nas “cazas da sua habitação na Praya da Alfandega desta villa, pertença de um dos morgados que administrou seu pai”. António Benedicto ocupava todas aquelas casas “à excepção da loja” e é descrito no documento
de certificação de residência como “huma das principaes pessoas desta villa por si, seos pays e avós e por todos os seus ascendentes”16. Talvez as desavenças familiares, se é que as houve, ou pelo menos a certa mudança dos progenitores para Lisboa se devesse à “paixão irregular” que Cirillo diz que o pintor nutria, de onde resultou uma filha havida numa mulher casada, que o pintor não conseguiu legitimar.
5
Morgado de Setúbal, Peças de Cozinha com Gato e Galinha, 1782. Museu de Évora, ME 651. Foto do autor.
Infelizmente, a abundante documentação sobre o Morgadio de Setúbal que o Marquês de Faria doou à Torre do Tombo em 1935, constante de 3 arcas e 3 caixas com documentos e bens, permanece na sua maioria por inventariar e na sua totalidade sem livre acesso, de forma que estes e certamente muitos outros dados sobre o pintor, duzentos anos depois da sua morte estão ainda, desnecessariamente, no esquecimento. Em 1804, o pai faleceu e José Benedicto ficou com o Morgadio nos cinco breves anos que mediaram até à sua morte, de surpresa (“de um insulto appopletico”, diz Cirillo), sem que tivesse recebido os sacramentos da Igreja17. Curiosamente não conhecemos pinturas suas datadas entre a recepção do Morgadio e a data da morte, o que faz crer que a administração da casa não era tão pouco rendosa como isso ou não lhe deixaria tempo para a pintura. Os inventários de bens feitos depois da sua morte permitem concluir por uma situação financeira de grande desafogo18, que exclui alguma ideia de dificuldade na
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fase final da sua vida, que passa por vezes nalgumas notícias. O que é certo é que, pelo menos logo depois da sua morte, a fama e o valor das obras do Morgado de Setúbal não parou de crescer, talvez mais pela nobreza do autor e pela grandeza dos que possuiam conjuntos das suas obras. Em 1847, já o Conde Raczynski se espantava das 30 moedas que pediram à duquesa de Bragança por um “Velho em Oração”, da autoria de António Benedicto. Mesmo este autor, que justamente criticava o colorido terroso, o fraco desenho e a forma grosseira de pintar, não deixava de considerar que tinha talento “para representar a natureza com verdade”19. Também Cirillo apresenta a mesma duplicidade de opinião, entre a consciência do carácter naive de muitas das suas obras e a atracção pelo verismo inusitado entre nós dos seus modelos: “Pozse a pintar de curiosidade toda a sorte de objectos que lhe parecião pinturescos, como aves, animais, utensílios de cozinha, frutos, labregos notáveis, hortaliças etc.; e apezar da extrema secura, e dureza do seu pincel, e da má composição dos seus paineis, ha em muitos delles cousas tão naturaes, que agradão aos mesmos Artistas”20. Taborda, menos crítico, louva-lhe as cópias, os retratos e diz que conseguiu ser “um perfeito imitador da natureza na reprezentação de fogos, metais e penas e pelos de animais”, acrescentando a anedota dos cães que se arremessavam contra um gato pintado por ele, espécie de versão nacional e tardia, da célebre história de Plínio dos corvos debicando as uvas pintadas por Zeuxis21. Mas talvez a apreciação fundamental sobre a pintura do Morgado seja a menção de Garrett nas Viagens na Minha Terra, descrevendo uma velhinha “sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo. Era o único sinal de vida que havia em todo o quadro. Sem isso, velha e cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de António Ferreira ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal”.
É para nós extremamente importante esta valorização do introdutor do Romantismo literário em Portugal, colocando-se exactamente sob o mesmo prisma de observação do Morgado. De facto o interesse do pintor sobre o povo e os objectos rudes como modelo pinturesco trazem à pintura portuguesa uma novidade que não se pode quanto a nós distanciar da abertura romântica ao vernáculo e à descrição do rude, do popular e do estranho quotidiano e, neste sentido, o Morgado de Setúbal está primeiro aberto ao Romantismo do que qualquer outro pintor português, pelo que não é de estranhar que a sua fama permanecesse nas gerações seguintes, mais embuídas do mesmo espírito. Não deixa de ser curioso que para aclarar a sua descrição Garrett se sentisse obrigado a explicar em nota quem era António Ferreira, o famoso barrista, comparando as suas figurinhas “à mesma graça e naturalidade flamenga com que pintava o Morgado de Setúbal”, parecendo-lhe desnecessário qualquer esclarecimento sobre este.
6. Morgado de Setúbal, Natureza Morta com Melancia, Uvas e Figos, c. 1785. Museu de Évora, ME 651. Foto do autor.
Já menos explicável é que essa fortuna tenha continuado até aos dias de hoje, manifestada nos altíssimos preços que atingem as suas obras em comparação com bem melhores pintores portugueses coevos e que leva mesmo a que muitas obras de autoria duvidosa, mas de temática afim, lhe sejam atribuídas com alguma ligeireza. De entre as tradicionalmente atribuídas no Museu de Évora,
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três levantam-nos algumas dúvidas de atribuição. São três obras de pequeno formato, uma representando uma Vendedora Negra de Castanhas com duas Crianças (ME 650), atribuída o Morgado no inventário de Gabriel Pereira22, outra um Velho Pedinte com o chapéu cheio de castanhas (ME 810)23 e uma Avarenta contando dinheiro, descrita no inventário de Cenáculo como do Morgado. Esta última é uma versão de uma pintura perdida de Abraham Bloemaert (1564-1651), gravada várias vezes por Salomon SaveriJ em 1625 e por Hendrick Blomaert, como emblema da Avareza. Mesmo tratando-se de um tema de uma pintura internacional, o carácter popular da representação levou imediatamente à atribuição ao Morgado, o que demonstra com evidência, como a sua pintura se tornou uma referência em Portugal de um modo de expressão que representava com verdade as coisas simples, a pintura dos géneros menores, denegrida pela Academia, mas cada vez mais ao gosto da agitada sensibilidade romântica.
7. Usurária. Mulher contando dinheiro à luz da vela. Museu de Évora, ME 1422. Foto do autor.
9 Idem, fl. 28 vº 10 Taborda, 1922, p. 275-276. 11 Palácio do Correio Velho, Leilão 69 de 19 de Dezembro de 2006, lote 117. 12 Guerreiro, 1961. 13 Reproduzido em Primeiro Centenário..., 1909. 14 Artigo reproduzido em Primeiro Centenário..., 1909.
NOTAS 1 Caetano, 1997, pp. 9-17 2 Machado, 1922, pp. 176-177. 3 Informação de Geraçam de Jozé Antonio Benedicto da Gama e Barros que vive das suas fazendas solteiro filho de António Jozé Bernardo da Gama e Barros natural da villa de Mafra, freguesia de Santo André deste Patriarcado e morador nele de Setúbal, 7 de Junho de 1774, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações-José, maço 142, doc. 2809. fl. 64 vº 4 França, 1966, vol. I, p. 123. 5 Princípios do Desenho..., 1801 e Princípios da arte da gravura..., 1801. 6 O Meio de se fazer pintor em tres horas..., 1801 7 ANTT, Fundo: Morgado de Setúbal, Lº 3, fl. 89: “hum livro ao comprido com estampas de lições” e “As Metamorfoses de Ovídio com estampas de Pecord em fólio encadernado”. 8 ANTT, Fundo: Morgado de Setúbal, Livro 2, fl. 12.
15 Termo de abstenção de herança que assina o suplicante José António Benedicto Soares de Faria e Barros, 6 de Março de 1798, Cartório de António Cerqueira Cardoso, transcrito em Primeiro Centenário..., 1909. 16 Certificação de residencia de José António Benedicto Soares de Faria e Barros passada pelo escrivão dos officios do juízo da correyção desta notavel villa de Setúbal, José Ignacio de Oliveira em 16 de Janeiro de 1798, transcrito em Primeiro Centenário..., 1909. Nas mesmas casas morava como seu inquilino um Francisco Falcão, maltez de nação, em julho de 1798, o que pode confirmar a ideia de necessidades económicas do pintor por esta época. 17 Livro 5 dos Óbitos da Igreja da Graça de Setúbal, assento de 12 de Fevereiro de 1809 “faleceu, solteiro, não recebeu os sacramentos porque morreu de repente”. Tinha 56 anos, pois nascera em 21 de Abril de 1752, em Mafra, tendo recebido baptismo a 29 de Abril. Livro dos Batizados da freguesia de Santo André de Mafra, fl. 93. Teve como Padrinho o bispo de Macau. Documento transcrito no
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citado processo de Habilitação, fl. 9. Vide também Descendências em Linha recta de José Augusto Maria Soares de Faria Barros e Vasconcellos Administrador do Morgado de Setúbal e Breves Apontamentos sobre “Farias” e” Barreiros”, Buenos Ayres, Typographia Portugueza, 1865
Machado (1922), Cirillo Volkmar, Colecção
18 Além dos rendimentos do Morgadio os avaliadores dos bens traçaram o seguinte quadro em 6 de Dezembro de 1809: fl. 28 vº e seg. Movel de madeira 57$880/ Roupa branca e de fatto 61$610/ Cobres de Cozinha 6$100/ Arame 5$800/ Ferro e cobre 1$840/ Estanho 480/ Loiça e vidros 17$075/ Pinturas e Lustre 283$400/ Livros 28$680/ Prata 114$650/ Dinheiro em poder do cabeça de cazal 2:948$550/ Dinheiro que se acha no cofre 3:002$580/ Dívidas antigas por cobrar 192$800/ Lenha de Sepa 21$600/ o Monte Mayor na villa de Mafra 6:743$045/ Dividas Passivas 848$981/ Monte menor 5:894$064. ANTT, Fundo Morgado de Setúbal, Lº 2, fl. 28.
O Meio de se fazer pintor em tres horas...
19 Raczynski, 1847, pp. 202-203. Veja-se também do mesmo autor, (Raczynski, 1846, pag. 357), em que o critico avalia as obras da colecção Cenáculo, dizendo “qui n’ont pas grandement accru mon estime pour son talent”, acrescentando: “On voit qu’il était né avec une certaine disposition à saisir avec verité les caractères des figures, mais on voit aussi que son talent n’a pas été sagement dirigé. Il peignait grossièrement, ou plutôt on voit qu’il ne savait pas peindre; mais qu’il lui eût été facile de l’apprendre”.
de Memórias Relativas às vidas dos Pintores e
Esculptores,
Architectos
e
Gravadores
Portuguezes..., 2ª ed. Coimbra, 1922, (1ª ed., Lisboa, 1823).
(1801), e de executar com o pincel as obras dos
Maiores Mestres sem se ter aprendido o desenho: tradizido do Francez. Lisboa, Tipografia do Arco do Cego, 1801 Pereira (1903), Gabriel, A Collecção de desenhos
e pinturas da Bibliotheca de Évora em 1884. Lisboa: Officina Typographica, 1903. Primeiro Centenário... 1909 da Morte do Célebre Pintor MORGADO DE SETUBAL José António Benedicto da Gama de Faria e Barros. Milão: Typographia Nacional de V. Ramperti, 1909. Princípios da arte da gravura... (1801), tras-
ladados do Grande Livro dos Pintores de Gerardo Lairesse Livro Decimo Terceiro; para servirem de appendice aos Principios do Desenho do mesmo author, em benefício dos gravadores do Arco do Cego. Lisboa: na Typographia Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria do Arco do Cego, 1801.
20 Machado, 1922, p. 176-7
Princípios do Desenho... (1801) tirados do
21 taborda, 1922, p. 276.
Grande livro dos pintores, ou Arte da Pintura de
22 Pereira, 1903, p. 21.
Gerard de Lairesse: traduzidos do francez para
23 Pereira, 1903, p. 19
beneficio dos gravadores do Arco do Cego, de Ordem e debaixo dos Auspicios de Sua Alteza Real o Principe Regente N. S. Lisboa: na Typographia
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Biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga. CENÁCULO Boletim on line do Museu de Évora | n.º 4 | Outubro 2010 | página 12