16 | Diário do Alentejo | 13 outubro 2023
REPORTAGEM A bomba continua a estralar no ano em que o grupo comemora 25 anos de existência
adiafa TEXTO JOSÉ SERRANO ILUSTRAÇÃO SUSA MONTEIRO
Os Adiafa estão a comemorar, neste ano, o seu 25.º aniversário. O grupo, de raiz tradicional alentejana, foi protagonista de um dos mais ribombantes êxitos da música popular portuguesa, pelo seu disco de estreia, homónimo, que permaneceu durante seis semanas consecutivas em 1.º lugar do top nacional de vendas, tendo chegado a disco de platina, por vendas superiores a 40 000 unidades. O “Diário do Alentejo” falou com três dos quase 30 músicos que integraram, até hoje, a formação, uma “máquina vocal com enorme qualidade e potência”.
E
strala a bomba/E o foguete vai no ar/Arrebenta e fica todo queimado/N’há ninguém que baile mais bem/Que as meninas da ribeira do Sado. A moda, tradicional, que, possivelmente, o leitor estará, mentalmente, a trautear, foi cantada, na noite de 27 de abril de 2003, alto e bom som, por 20 mil pessoas, no Pavilhão Atlântico, atual Altice Arena. A sala de espetáculos, localizada no Parque das Nações, em Lisboa, registou nesse dia a capacidade máxima do espaço, preparando-se para ver ao vivo, Shakira, diva mundial da pop. “Shakira exige Adiafa em palco”, fazia a manchete, três dias antes do evento, de um notório jornal nacional, revelando que a vedeta, considerada, pela imprensa “especializada”, nesse ano, como a mulher mais sexy da indústria musical, queria o sexteto de músicos alentejanos a atuar antes dela, dada a sua preferência “por primeiras partes asseguradas por bandas que se exprimam no idioma do país onde atua”. A escolha, que acabou por recair no coletivo de seis músicos, oriundos de Beja e das redondezas, trajados de camisa branca e colete preto, foi alicerçada na gigantesca notoriedade do grupo, no verão de 2002, pelo surpreendente sucesso de “As Meninas da Ribeira do Sado”. Uma moda tradicional, à qual foi acrescentada uma cantiga original, da autoria de Luís Espinho, aplaudida, cantada e dançada, de norte a sul de Portugal, desde o mais velho ao mais novo, nos seus dois formatos. O mais castiço, que abria o CD, homónimo da banda, exaltava a genuinidade do cante, e um outro mais moderno, o remix elétrico, cuja festividade do som se refletia em bolas de espelhos de discotecas de todo o País, encerrava-o. O trabalho, com 10 temas, gravado nesse mesmo ano, que depressa subiu ao 1.º lugar do top nacional de vendas, onde se manteve durante seis semanas consecutivas, registava as vozes de Emídio Zarcos, António Santos, João Paulo Sousa, Luís Espinho, Paulo Colaço e José Emídio, e os instrumentos musicais por estes tocados – a viola
campaniça, o adufe, as tracanholas, o triângulo, o bombo e a pandeireta. Um conjunto tradicional em ameno convívio com o “sopro” mais orquestral, do fagote, tocado, no álbum, por Joaquim Simões, e com os beats de house, jungle e drum ‘n’ bass, na versão remisturada do hit, que conduziu o disco à distinção de platina, por vendas superiores a 40 000 unidades. “O público ficou enfeitiçado com aquele tema, que ainda antes de termos CD, abria as nossas atuações. Era a nossa alvorada, tal com dantes se fazia nas feiras, os instrumentos de percussão todos a chocalhar, antes de começarmos a cantar. A função do ‘estrala a bomba’ era chamar a atenção para o início da festa, que era o nosso espetáculo. Mas nenhum de nós imaginava o sucesso que viria a ter”, diz Paulo Colaço, um dos fundadores do grupo. Êxito tremendo, diga-se, que, ainda que vindo sem avisar, tem na sua base uma estrutura sólida, acentua o músico. “O que nós fizemos para ali chegar foi trabalhar muito”. Para se explicar, convenientemente, Paulo Colaço recua no tempo, antes ainda de 1998, ano da fundação do grupo. “Eu e o Zé [José Emídio] trabalhámos juntos em vários projetos musicais e animávamos casamento e batizados. Depois, eu fui para o Algarve tocar em bares e hotéis e ele ficou, em Beja, a explorar Os Infantes, que também apresentava música ao vivo. Naquela altura, ‘lá em baixo’, o normal era ouvirmos, nos locais de diversão, cantar-se Beatles, Neil Diamond, por aí. Achava aquilo estranho, os turistas virem a Portugal ouvir a música da sua própria terra. E eu, num bar onde costumava atuar, em Albufeira, comecei, por iniciativa própria e com liberdade para o fazer, a apresentar música popular portuguesa, modas alentejanas. E os turistas ovacionavam, ao escutarem o nosso património musical”. Este interesse turístico pela música nacional e, particularmente, pela tradicional do Alentejo, foi satisfatoriamente registado por Paulo Colaço, que, ao receber um convite para, periodicamente, atuar no empreendimento
turístico herdade dos Grous, formou, em 1998, juntamente com José Emídio, os Adiafa, palavra que, etimologicamente, significa “hospitalidade”, “banquete”. Ao grupo, que tem na sua génese a interpretação e a divulgação do cante popular tradicional baixo-alentejano, acompanhado de instrumentos tradicionais, juntaram-se, pouco tempo depois, mais três membros, António Santos, Emídio Zarcos e Manuel Bexiga. “Ao diretor do hotel dos Grous, que recebia muitos hóspedes alemães, propusemos três momentos musicais distintos: um com aquela música para encher chouriços – baladas anglo-saxónicas, sem fazer muito barulho; um outro de música latina, em que o Zarcos entrava com as percussões; e um último, dedicado exclusivamente à música tradicional do Alentejo. Tocávamos lá uma vez por semana e era este o nosso ensaio”. Depois, em 2000, com a saída de Manuel Bexiga, “por afazeres profissionais”, o grupo recebeu novos membros, “dois altos, com características diferentes”, refere Paulo Colaço – “O João Paulo Sousa, músico com maior ligação ao cante alentejano, e o Luís Espinho, com uma cultura musical gigantesca, cuja voz ia a ‘todas as praias’”. Este último recorda: “Quando eu entrei cantava-se a duas vozes, tal como a maior parte dos grupos alentejanos o faz, com ‘ponto’ e ‘alto’. Pus à consideração do grupo eu fazer uma terceira voz. E ficou giro”. A atenção dada às vocalizações – “havia um cuidado extremo nas harmonizações, nos cânones”, observa Luís Espinho – ia sendo, aliás, cada vez mais precisa, como parte identificadora do coletivo. “Aqui, em Beja, qualquer grupo, numa festa ou num petisco, canta à alentejana. Mas uma coisa é cantar entre amigos, outra é ter um
espetáculo afinado, com técnicas de coro, que íamos, exaustivamente, aperfeiçoando. Começámos a estar rodados e quando chegávamos à cidade, vindos dos espetáculos nos Grous, íamos beber um copo e cantávamos, espontaneamente, em alguns bares. Daí a nada, começaram a notar em nós e as juntas de freguesia a convidar-nos para festas, encontros de folclore…”. Para além da excelência vocal referida, Paulo Colaço acrescenta um outro importante fator para o sucesso do grupo e para “As Meninas da Ribeira do Sado” contagiarem Portugal inteiro: a sorte. “Logo após lançarmos o nosso primeiro CD, ‘Adiafa’, que apresentámos em estreia na Casa da Cultura em Beja, a 9 de abril de 2002, conseguimos uma entrevista para a ‘Antena 1’, para um programa que passava de madrugada. Demos a entrevista, eu e o
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Luís Espinho, e ao sairmos do estúdio reparámos que, num outro estúdio, estava o Rui Veloso a dar um concerto em direto para a ‘RDP África’. Resolvemos esperar por ele e oferecemos-lhe o CD. Tínhamos acabado de chegar a Beja, telefona-me o Rui Guerreiro, alentejano de Castro Verde, técnico de som do Rui Veloso, a dizer-me que ele tinha ouvido o disco, no carro, no caminho até Sintra. Que tinha adorado e que estava disposto a fazer uma pequena gravação, dizendo que recomendava muito aquele trabalho. Claro que aceitámos a amabilidade e enviei o disco para todas as rádios nacionais, juntamente com aquele
pequeno spot publicitário do pai do rock português. O Paulino Coelho, do programa da manhã da ‘Rádio Renascença’, ouve ‘As Meninas da Ribeira do Sado’ e gosta, também, imenso. E todos os dias o tema está no ar, uma série de vezes, e aquilo começou a ganhar uma velocidade…” Uma velocidade que rapidamente esgota os dois milhares de exemplares do CD, vendidos através da Internet – “todos os dias eu entregava 80 CD nos correios, passava ali horas a carimbar, a colocar discos dentro dos envelopes”, diz Paulo Colaço –, e que exige a presença do grupo em inúmeros programas de rádio e televisão, em múltiplos espetáculos. A notoriedade era tão intensa que, em novembro de 2002, o grupo assina um contrato com a multinacional Sony. “A partir daí foi uma loucura, milhares de discos a serem vendidos. Em seis meses fizemos 130 espetáculos no País. Uma tour à maneira antiga, sempre na estrada, numa carrinha de nove lugares. A sorte é que
todos nos dávamos muito bem e o ambiente era espetacular. Só tinha que ser assim, porque num grupo, se há ‘malta que não se cheira’ as coisas acabam por não resultar. Íamos sempre bem-dispostos e quando dávamos por nós estávamos nos sítios. Era chegar, montar o material, atuar, comer e ir embora para outra terra”, frisa Luís Espinho. “Para além das atuações no País, íamos também ‘lá fora’, convidados pelas comunidades portuguesas emigrantes. Durante, praticamente, um ano, não ‘calçámos’ em casa. Eu vinha à pressa a Beja, ver o meu filho, que era pequenino”, acentua Paulo Colaço.
Uma carteira prodigiosa de espetáculos que terá beneficiado da experiência adquirida pelo grupo nos concertos semanais apresentados na herdade dos Grous. “Foi lá que fomos criando uma boa estrada vocal e instrumental. Quando começámos com os concertos já estávamos com uma rodagem muito valente, bem entrosados uns com os outros, o sucesso terá também passado por aí. Chegávamos em cima do palco, as pessoas viam um grupo alentejano todo bem-disposto, a ‘cantar porreiro’, com harmonias a três vozes – houve muita malta que ficou espantada”, destaca Luís Espinho. Uma excelência que conduziu os Adiafa ao Coliseu dos Recreios, à gala dos Globos de Ouro 2003, da estação televisiva “SIC”, estando nomeados nas categorias de melhor grupo, com “As Meninas da Ribeira do Sado” a concorrer para melhor
canção do ano. A moda, que continuava a encantar e a constituir-se como um enormíssimo sucesso, chegou até ali, “vestida de gala”, através da tradição oral passada de geração em geração, sem se conhecer, tal como acontece em muitas pautas do cancioneiro tradicional, o seu autor. “Não encontrámos o tema escrito em lado nenhum, mas era, vulgarmente, sabido em Évora”, cidade à qual “os proprietários da região dos arrozais do Sado tinham muita ligação, diz Paulo Colaço. “Eu conhecia a moda desde gaiato. Nas férias de verão, um primo meu, de Évora, dava o mote, apregoando ‘estrala a bomba’. E lá íamos nós todos, moços pequenos, em Monte Gordo, correndo para dentro de água”. Das razões acerca do êxito da música não há certezas, mas aventam-se hipóteses. “Não sabemos qual o motivo deste enormíssimo sucesso, mas garanto que as pessoas gostam de canções simples, são essas as que mais triunfam. O ‘estrala a bomba’ é um tema orelhudo, com dois acordes, uma let r a jo cosa e está a andar. E depois o pessoal gostava dos nossos jogos de vozes”, entende Luís Espinho. “A música tem uma simplicidade que fez com que toda a gente cantasse aquilo. Era uma dose magistral de boa disposição, de pouco mais de minuto e meio, que as pessoas ouviam logo pela manhã, a caminho do emprego”, diz Paulo Colaço. “O que quer que tenha sido”, diz o músico, tocador de viola campaniça, “se nós não estivéssemos vocalmente aprumados, se não tivéssemos prazer na intensidade do trabalho e um enorme amor a todas as modas que cantávamos, nada de espetacular teria acontecido”. 25 ANOS DEPOIS “Adiafa era (é ainda)
uma máquina vocal com enorme qualidade e potência. Em qualquer palco, aquela máquina vocal distinguia-se e surpreendia. Era do melhor que havia no País, sem qualquer dúvida”, acentua Paulo Colaço. Um quarto de século volvido desde a sua fundação, cinco álbuns editados, mais de 150 mil CD vendidos e duas décadas após a consagração (2003 foi, paralelamente à sua glória, um ano de enorme
consternação para o grupo, com a morte, em setembro, de Emídio Zarcos), os Adiafa continuam hoje presentes no panorama musical português. Ao longo deste tempo, passaram pelo grupo cerca de três dezenas de elementos, incluindo Buba Espinho, um dos músicos mais mediáticos da atualidade, tendo colaborado com o coletivo, em espetáculos e gravações, outros nomes sonantes, a exemplo de Rui Veloso, Paulo de Carvalho, Walter Hidalgo ou o letrista Paulo Abreu de Lima. “Adiafa é uma instituição, uma festa em constante mudança, renovando-se, com novos elementos, à procura de novos sons, à descoberta de instrumentos musicais capazes de serem conjugados com o cante alentejano. Este fator de experimentação, dentro da música popular está na génese dos Adiafa e mantém-se”, sublinha José Emídio, fundador do grupo, que com Bernardo Emídio, Rúben Lameira, Luís Caracinha e Carlos Rosa constituem o atual quinteto. “As pessoas nunca nos esqueceram”, evidencia José Emídio, revelando que, ao longo deste ano, no âmbito dos vários espetáculos comemorativos dos 25 anos do nascimento do grupo, a assistência, “dos dois aos 10 mil espetadores”, tem sido relevante. “O público continua hoje a cantar connosco grande parte do nosso reportório, não se resume só às ‘Meninas da Ribeira do Sado’, são muitas outras – a ‘Mariana Campaniça’, os ‘Meus Senhores’, o ‘Canta a Rola, Pia o Cuco’, o ‘Baião Da Pinga’…” Com um novo álbum, celebrando a efeméride, “Adiafa – 25 Anos”, que revisita temas celebrizados pelo grupo e inclui, também, novos originais, o rigor vocal, já referido, continua a ser apanágio do grupo. “Adiafa sempre esteve, em vozes, no topo da música portuguesa, sempre foi uma referência. Hoje, pelo trabalho continuado, essa máquina vocal está ainda melhor”. Perspetivando o futuro – “ainda outro dia respondi ao Herman [José], em tom de brincadeira, que, para esse efeito me dava jeito ter uma bola de cristal” –, José Emídio considera que o mais importante “é continuar a apresentar trabalhos novos e mostrá-los às pessoas”. Assim, atualmente, os Adiafa encontram-se a preparar um novo disco, com modas de Natal do cancioneiro popular alentejano. Um disco “Antena 1”, cujos responsáveis “tiveram a amabilidade de nos atribuir este apoio, e que, brevemente, vai ser destaque naquela rádio”. Mas as novidades não ficam por aqui e para o início do próximo ano, “logo a seguir aos Reis”, o grupo tem previsto o lançamento, em plataformas de streaming, de um tema “pertinente, engraçado, que vai levantar alguma polémica”, anuncia. “Temos
que fazer é música, coisas novas. É esse o futuro”, observa, ainda que sem esférico adivinhatório, José Emídio. Do legado deixado, Paulo Colaço discorre sobre a importância que o grupo teve na forma como as gerações mais novas encaram, hoje, o cante alentejano. “Ainda não tínhamos nenhum disco editado e já nós íamos às escolas, cantar com as crianças, ensinar-lhes a cantar e falar-lhes sobre o cante”, revelando-se esta faceta altruísta, menos visível dos Adiafa, do ensino do cante alentejano, um prólogo do que seria, anos depois, o ensino institucionalizado deste património em algumas escolas do Baixo Alentejo. “Essa geração de miúdos cresceu a dar muito valor ao cante, a não lhe encontrar qualquer defeito, ao contrário das gerações anteriores que o desvalorizava quase totalmente. Esta criançada sentia que o cante alentejano é a maior riqueza que temos como povo. Essa semente que plantámos germinou e deu frutos. Agora é ver toda esta nova geração a cantar bem. E os que cantam mal também cantam. Cantam todos, com orgulho. Os frutos estão todos aí”. E acrescenta: “A esta distância, não tenho pejo nenhum em dizer, com medo de me acusarem de alguma altivez, que os Adiafa fez os artistas do cante acreditarem que há forma de ter visibilidade, que não é inevitável ficarmos sempre e só nos ‘festivaizinhos’. ‘Moços, subam ao palco sem vergonha de cantar à alentejana’, era esta a mensagem”. De regresso ao dia 27 de abril de 2003, à tardinha. Após o concerto dado em Leiria, a carrinha dos Adiafa segue pela estrada, a caminho de Lisboa. Com receio de chegarem tarde ao compromisso do Pavilhão Atlântico, o pé pesa no acelerador. Mandados parar pela GNR, “num carro descaracterizado”, é-lhes transmitido que circulavam a 150 à hora. Multa passada, não abalam sem que antes lhes seja pedido, pelos guardas, um CD autografado. As meninas da ribeira do Sado é que é/Lavram a terra c’ oas unhas dos pés/As meninas da ribeira do Sado são como as ovelhas/Têm carrapatos atrás das orelhas. No Pavilhão Atlântico, a moda que o leitor, muito provavelmente, terá recomeçado, em surdina, a cantarolar, teve dois encores, com as 20 mil pessoas a não desistir do empenho e da alegria colocada, alto e bom som, em cada um deles. Na despedida aos seis rapazes, trajados de orgulho do seu cante alentejano, uma ovação galáctica como a estrela que viria a seguir. Assim apresentada pelos Adiafa, na despedida ao imenso público: “Muito obrigado. A seguir vem aí uma rapariga fazer a segunda parte do nosso espetáculo”.