As aventuras de um
História da vida do Sr. Antônio Dias de Moura
Vera M. Moura Mendes & Clóvis Pereira Mendes Filho
As aventuras de um
História da vida do Sr. Antônio Dias de Moura
Vera M. Moura Mendes & Clóvis Pereira Mendes Filho
Capa: Jorge Moura Projeto gráfico, Ilustração e diagramação: Jorge Moura Ícones de Mato Grosso: Manual Aplicativo Elementos da Iconografia de Mato Grosso - Ed. SEBRAE/MT - Giulio & Valerio Vinaccia Impresso na gráfica Vermelhinho Cópias - Cuiabá/MT Revisão: Margarida
Ficha Catalográfica
MENDES, Vera Moura; MENDES FILHO, Clóvis Pereira 2004, Cuiabá - MT. As Aventuras de um Pracinha Pantaneiro. 1ª ed. 200p. 14,5 x 20,5
DEDICATÓRIA À mamãe Branca, pela grande esposa, companheira e amiga do Seu Tóte, que com mais de meio século de convivência, soube contribuir decisivamente para que esta história valesse a pena ser contada, com sua personalidade forte de professora e de mãe educadora, que soube transmitir as suas cinco filhas o sentido de responsabilidade e seriedade em suas atitudes perante a vida, não esmorecendo mesmo quando a estrada se encontrava pedregosa e nublada, achando junto ao esposo soluções de comum acordo para resolverem as questões, quando apresentadas. Foi ela, que enquanto meu pai, no afã de ganhar a vida, se aventurava na compra e transporte de gado e nas caçadas, ficando, por isso, várias vezes, por muitos dias longe de casa, dava continuidade na criação das filhas, administração da casa, sem nunca faltar um só dia a suas obrigações de professora.
Na Vida Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não arrisca vestir uma cor nova e não fala com quem não conhece. Morre lentamente quem faz da televisão seu guru. Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o escuro ao invés do claro e os pingos nos is a um redemoinho de emoções, exatamente a que resgata o brilho nos olhos, o sorriso nos lábios e coração aos tropeços. Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto, par ir atrás de um sonho. Morre lentamente quem não se permite, pelo menos uma vez na vida ouvir conselhos sensatos. Morre lentamente quem não viaja, não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo. Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da sua má sorte, ou da chuva incessante. Morre lentamente quem destrói seu amor próprio, quem não se deixa ajudar. Morre lentamente quem abandona um projeto antes de iniciá-lo, nunca pergunta sobre um assunto que desconhece e nem responde quando lhe perguntam sobre algo que sabe. Evitemos a morte em suaves porções, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples ar que respiramos. Somente com infinita paciência conseguiremos a verdadeira felicidade. Pablo Neruda
AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço a Deus Todo Poderoso, por ter me dado um pai tão especial, com uma história de vida tão interessante, que valeu a pena escrevê-la. Durante todo o tempo que Clóvis e eu escrevemos o livro tivemos o apoio incondicional e o reconhecimento da minha irmã Ana Maria, que sempre acreditou no nosso empenho e dedicação para que este projeto tornasse realidade, inclusive com vários depoimentos sobre sua infância no Carvoal e Poconé, que muito enriqueceu a nossa pesquisa.
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INTRODUÇÃO A muito tempo várias pessoas, pelo fato de meu pai ter uma história de vida muito interessante, com uma vontade de viver a vida da forma mais alegre possível, ter, apesar de sua idade, uma memória invejável e ser um conhecido contador de deliciosos “causos”, verdadeiros ou folclóricos, diziam : “O Seu Tote merece que alguém escreva um livro sobre sua vida” Baseada nessas idéias, alguns amigos e familiares, como por exemplo seu amigo Valdir Sebastião da Silva, o meu cunhado Amauri Lobo, os meus sobrinhos Beto e Adriana e a minha irmã Ana Maria com sua filha Samira, pensaram em começar a fazer algo a respeito. Mas devido a falta de tempo de todos e a dificuldade por morarem longe da residência de meus pais, esse projeto ia sempre ficando para depois. Apesar de não ter imaginado ser a pessoa que iria executar esta tarefa, por nunca ter exercitado o meu lado literário, e como proprietária de uma floricultura, profissão que não tem data nem hora para estar em atividade, não tinha tempo para tal, até que no final do ano 2.002 eu tomei a decisão de parar por um tempo com minha empresa, para poder repensa-la, e também poder fazer uma cirurgia que a muito tempo vinha deixando para depois. Com isso, no início de 2.003, adquiri o tempo disponível para colocar este projeto em prática, o de escrever a história da vida do Seu Tote, meu pai, tendo, para isso, o total apoio de meu esposo INTRODUÇÃO
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Clovis e de minha irmã Ana Maria. E assim este projeto passou a ser o meu principal objetivo do ano 2.003. No início, deram-me a idéia de começar fazendo entrevistas com ele com auxilio de um gravador, mas como meu pai sempre foi uma pessoa muito simples, e Clovis e eu achamos que isto poderia inibi-lo, fazendo-o esquecer muitos detalhes, pois a presença do aparelho eletrônico o faria fatalmente perder a naturalidade. Resolvemos , então que a melhor maneira seria eu ir fazendo várias entrevistas e ir anotando para posteriormente passa-las para o computador. Isso começou no dia 21/01/2003, e daí por diante foi realizada uma sucessão de trinta e quatro entrevistas nas seguintes datas: 21/01/03, 23/01/03, 28/01/03, 04/02/03, 14/02/03, 21/02/03, 15/03/03, 31/03/03, 04/04/03, 09/04/03,10/04/03, 15/04/03, 22/04/03, 25/04/03, 26/04/03, 28/04/03, 06/05/03, 26/05/03, 29/05/03, 02/06/03, 10/06/03, 16/06/03, 23/06/03, 03/07/03, 15/07/03, 25/07/03, 04/08/03, 06/08/03, 11/08/03, 13/08/03, 22/08/03, 31/08/03, 10/09/03, 30/09/03 e 06/10/03. A maior dificuldade durante as entrevistas, foi quanto a coordenação cronológica dos acontecimentos, pois o papai, por ser uma pessoa muito detalhista e gostar muito de contar para os outros os seus “causos” e sua história pessoal, se perdia no tempo na maioria das vezes, por exemplo, quando começava falar sobre fatos ocorridos na cidade de Cáceres e ao lembrar de certos companheiros, começava a contar situações acontecidas posteriormente na Itália. Foi este o aspecto mais difícil, pois eu tinha sempre que interrompe-lo e dizer com jeito: “Pai, nós estamos ainda em Cáceres, precisamos ir pela seqüência de datas, deixe os casos da Itália para quando estivermos lá.”
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INTRODUÇÃO
As entrevistas eram sempre realizadas no período da tarde a partir das 16:00 horas indo até as 19:30 horas, quando a minha mãe, Dona Branca, geralmente dizia: “Tóte, esta na hora de você tomar banho” ou “Vai começar o Jornal Nacional”. E quando falávamos sobre situações em que envolviam pessoas da família, conhecidos, ou políticos importantes, a minha mãe sempre dizia: “Cuidado, não fale sobre isto, você pode estar arranjando encrenca de graça” Mas o livro sempre foi escrito baseado em acontecimentos verídicos e emocionantes. Além das entrevistas, feitas por mim, o Clovis e eu fizemos várias pesquisas em livros sobre a história da 2ª Guerra Mundial e da participação brasileira nela, história de Mato Grosso e pesquisa na internet em sites de assuntos pertinentes ao caso, para que pudéssemos contar a história de meu pai dentro da cronologia real, verificando as datas dos acontecimentos descritos por ele e onde ele estava naquelas datas pesquisadas, bem como vários depoimentos de personalidades importantes que influenciaram na sua vida. Procuramos fazer com que o livro retratasse a figura honesta, religiosa, a firmeza de caráter e a consciência ecológica, mesmo que intuitiva, do homem pantaneiro, bem como o valor, a coragem e o patriotismo do pracinha brasileiro, e em especial do expedicionário mato-grossense, para que isso não ficasse apenas nas lembranças de quem teve a oportunidade de conviver com o Seu Tóte, mas que no futuro fosse um legado passado para o seus descendentes.
INTRODUÇÃO
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“Quem passou pela vida em brancas nuvens e em plácido repouso adormeceu . Quem não sentiu o frio da desgraça . Quem passou pela vida e não sofreu . Foi espectro de homem, não foi homem, só passou pela vida e não viveu”.
Francisco Otaviano
CAPÍTULO I Nasceu no dia 12/08/1920, em um lugar chamado Mimoso, em uma região de morros, o que caracteriza o local, pois destoa do pantanal a qual pertence, que é uma vastidão de topografia plana e o protege de suas enchentes periódicas. Fica à 140 Km de Cuiabá, atualmente pertencente ao Município de Santo Antônio de Leverger Estado de Mato Grosso, apesar de ficar próximo a sede do Município de Barão de Melgaço. Mimoso é o nome de uma pastagem natural própria da região do Pantanal, e muito abundante na citada localidade, pois se caracteriza por resistir as enchentes, pois quando ela o alcança, rapidamente solta um pendão que fica sempre na superfície, se preservando para quando vier a seca e continuando a alimentar os animais vegetarianos, tais como o gado e o cavalo. Durante a seca forma extensas pastagens, de um verde brilhante, que ondula ao vento, dando uma sensação de refletir imagens, como um espelho natural. Esta beleza natural inspirou os primeiros viajantes na região, e lhe deram o característico nome : Mimoso. Na época em que meu pai nasceu, Mimoso era um lugar bastante próspero para os padrões vigentes, sendo considerado um local onde os fazendeiros da região buscavam encontrar recursos para resolver seus pequenos problemas de abastecimento e buscar mão de obra necessária para as atividades de seus empreendimentos. A característica principal de Mimoso, era não ter cerca entre os proprietários das terras, todos sabiam quanto
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tinham de área, que passava de pai para filho, não se sabendo de quando, e ninguém tinha documentação de propriedade das terras e sim direito de posse. Criavam seu gado misturado em um campo comum, sendo que todo ano na época certa, se reuniam, arrebanhavam e marcavam os novos bezerros as suas marcas a ferro de suas famílias e novamente os soltavam nos campos abertos, sendo todos responsáveis pela manutenção do rebanho. Terra de homens honrados, onde a palavra valia mais que o escrito, onde a principal característica era a solidariedade de compadres, que quase todos eram um dos outros, e como a justiça oficial ficava distante, lá na cidade grande, as suas disputas eram geralmente resolvidas pelo senso geral, onde prevalecia as leis naturais do certo ou errado, baseados no temor a Deus e na fé católica transmitida de pai para filho, e por isto mesmo obedecendo os ditos da Sagrada Escritura, lá no seu Velho Testamento, “O olho por olho e dente por dente”, ou seja , você fez, você paga e que muitas vezes isso resultava em confrontos armados, na base do calibre 38. Terra de Cândido Mariano da Silva Rondon, ilustre filho mimoseano que pela sua visão humanista permitiu que as missões de desbravamentos e construções, fossem realizadas em paz, foi por isso indicado por 15 países a concorrer ao Prêmio Nobel da Paz, em 1957. Recebeu os títulos de Civilizador dos Sertões e Patrono das Comunicações no Brasil, sendo por isso comemorado no dia do seu nascimento, dia 05 de maio, O Dia Nacional das Comunicações, homenagem a que fez juz ao integrar o interior do Brasil com a instalação de milhares de quilômetros de linhas telegráficas, interligando Mato Grosso e Amazonas às linhas já existentes no Rio de Janeiro, S.Paulo e Triângulo Mineiro. O Marechal Rondon ao mesmo tempo em que realizava seus trabalhos de Construção das linhas telegráficas, fez levantamentos Cartográficos, topográficos,
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zoológicos, botânicos, etnográficos e lingüísticos dos índios das regiões percorridas. Hoje está sendo construído em sua homenagem um museu na localidade de Mimoso, onde deverá estar exposto à visitação objetos que lhe pertenceram bem como instrumentos antigos de telégrafo, telefonia e radio comunicação. Na época do nascimento do meu pai, Antônio Dias de Moura, ele já era o quinto filho do casal Pedro Dias de Moura e sua esposa Maria Francisca Dias, que tinha o apelido de Dona Mariquinha. O casal teve nove filhos, na seguinte ordem; Davino Francisco Dias, José Dias de Moura (Juquinha), Cândida Dias de Moura (Cândi), Umbelina Dias de Moura (Biloca), Antônio Dias de Moura (Tóte), Miguel Dias De Moura, Wenceslau Dias De Moura (Vence), Miquelina Dias de Moura (Quini), João Dias de Moura (Joãozinho). Toda a infância até mais ou menos 12 anos foi passada nessa localidade, junto com os seus irmãos onde ganhou o apelido que levaria por toda a vida “Tóte”. O meu avô Pedro era um próspero comerciante que tinha uma Casa Comercial em Mimoso e que fazia o seu comércio principalmente pelo Rio Cuiabá. Os produtos mais comercializados eram: produtos alimentícios, tecidos, querosene, fumo, material para montaria, pesca, utensílios domésticos, etc. O barco que o meu avô Pedro usava para o transporte das mercadorias do comércio, era um batelão e tinha as dimensões aproximadas de 10,00m de comprimento por 1,50m de largura. A maioria das mercadorias eram pegas na Lancha do Sr Miguel Gattas que era proprietário da lancha Agachi e Lancha Itajaí, que faziam a linha Corumbá-Cuiabá. Outra lancha que também fornecia as mercadorias era a Lancha Rio Tejo, de propriedade do Sr Elias Chuki. A área que o meu avô Pedro comercializava era a região compreendida pelo contorno da grande ilha formada pelo Rio Piraim e o Rio Cuiabá. O Rio Piraim, na verdade é um braço do Rio Cuiabá, CAPÍTULO I
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que sai abaixo da cidade de Barão de Melgaço e vai desembocar de novo no Rio Cuiabá próximo à localidade de Porto Cercado, onde hoje está localizado o Hotel Sesc Pantanal, no município de Poconé.Naquela época as proximidades da Ilha do Piraim era bastante habitada, existindo no local várias fazendas e moradores que pontilhavam todo seu contorno e arredores.. O meu avô Pedro,era uma pessoa conhecida como amigo de todos, calmo, inimigo de confusões, apesar de morar em um lugar onde a tradição era não levar insultos para casa e a justiça pelas próprias mãos era lei. O avô Pedro era uma pessoa de uma religiosidade muito grande, e sua fé era reconhecida pelos que o conheciam. Como naquela época o acesso à medicina tradicional era muito raro, era comum as pessoas procurarem as curas para diversos males através de benzeções que era aplicada por pessoas, que como meu avô, tinham esta fé e o conhecimento das rezas que eram tradicionalmente passadas de pais para filhos. Com isso as pessoas das redondezas onde meu avô morava o procuravam sempre que algum mal os afligia, tais como: “quebranto” em recém nascidos, “cobreiro”, mordedura de cobra, “bicheira” em animais, ajuda para um bom parto, e outras ocorrências. Este poder que meu avô tinha era reconhecido, inclusive nas cidades próximas de onde ele morava, tais como Poconé, Nª Srª do Livramento e Barão de Melgaço, que toda vez que ele chegava em uma dessas localidades, a notícia logo se espalhava e era comum várias pessoas o procurarem para obterem as benzeções para os seus males. Tinha como tradição fazer a festa de S.Pedro na sua casa ocasião em que combinava com a vinda dos sacerdotes de N.Srª do Livramento para realizar a missa, os casamentos e batizados das crianças que haviam nascido no período entre as festas. Era um evento muito esperado na região, onde meu avô custeava todas as despesas com a
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alimentação e hospedagem dos que vinham prestigiar a sua festa. O meu avô tinha uma maneira especial de educar os seus filhos ensinando cada um a desenvolver os seus principais dotes, ensinando-os a trabalharem com o couro, madeira, .com o trato do gado, cavalos, barcos, pescaria, transporte de animais, caçadas e também com o comércio, além da tradicional honradez e honestidade tão característica do homem pantaneiro, onde realmente, um fio de bigode valia mais do que qualquer papel assinado Moravam com a família do meu avô, seus irmãos Antônio, João e José. O José, o irmão mais novo, tinha apenas 11 anos de idade, e como todo menino pantaneiro, vivia despreocupado, aproveitando o que a natureza lhe oferecia, cumprindo seus deveres de casa e junto com amigos que viviam na pequena vila, procurando atividades que os divertissem ou lhes trouxessem algum ganho, para ajudar nas despesas da família. Naquele tempo, no começo do século XX, a pluma do peito da garça branca era considerado um belo adorno para as mulheres da cidade grande, portanto tinha valor comercial, que os donos das lanchas compravam para revende-los na cidade. O pantaneiro, com sua natural consciência ecológica, ao invés de matar as garças para retirar a pluma, catava-as nos viveiros, árvores onde as aves tinham seus ninhos e vinham pernoitar, sendo que a garça branca tem o costume de fazer sua higiene diária limpando as penas com seu bico, fazendo que muitas delas caíssem no chão, facilitando a sua colheita, a quem chegasse primeiro ao local, logo ao amanhecer ficava com a melhor parte. Em uma destas ocasiões, José acompanhou um vizinho seu, já adulto, para pegarem as penas em um certo viveiro onde tinham certeza do sucesso da empreitada. Porém este vizinho tinha uma richa com pessoas de uma CAPÍTULO I
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outra família do vilarejo, e depois de uma discussão havia sido jurado de morte por integrantes da mesma. Eles resolveram fazer uma tocaia no local do citado viveiro, para matar o desafeto, o qual consideravam que os tinham ofendido. Quando José e o amigo chegaram ao local, foram surpreendidos pelos elementos que os esperavam e depois de um breve bate-boca os elementos covardemente mataram o rapaz a tiros, sendo que o mesmo se encontrava desarmado. Depois do fato consumado é que foram atentar que José havia presenciado tudo, e mesmo sem ter nada a ver com a confusão era a única testemunha do ocorrido e para que ele não delatasse o ato de covardia dos mesmos, resolveram cometer uma maior ainda e mataram o menino a tiros, sem nenhuma chance de defesa. Quando os corpos foram encontrados a notícia correu pela corrutela como um rastilho de fogo, e como em localidades pequenas todos sabem de tudo o que ocorre, foi inevitável a conclusão de quem tinha cometido a terrível atrocidade. Antônio Dias, que era o mais velho dos irmãos que morava com meu avo Pedro, era conhecido por sua coragem e valentia, sendo uma pessoa muito boa a quem merecia sua bondade, porém não media esforços para fazer justiça a quem achava que merecia ser corrigido. Também tinha fama de ser rezador, cheio de misticismo e mistérios, sabendo usar de simpatias para cuidar de pessoas que precisavam curar seus males. Antônio ao ficar sabendo da morte de seu irmão, não teve dúvidas, montou em seu cavalo, armado de seu inseparável “38” e se dirigiu à casa das pessoas que ele tinha a certeza de serem os executores de seu pequeno irmão. Lá chegando encontrou a pessoa que procurava em frente da casa, chamou-o pelo nome, o homem se virou para ele e
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dizendo o que veio fazer ali, sacou da arma e prontamente disparou um certeiro tiro, matando-o instantaneamente. Voltou para casa, chamou o irmão João, contou o que tinha ocorrido e disse para ficarem aguardando que fatalmente a família do morto viria buscar satisfações. Nesta ocasião meu avô Pedro se encontrava com seu barco comercializando pelo rio Cuiabá, na região do Porto Cercado, Município de Poconé. Não deu outra, cinco elementos da referida família chegaram, todos armados de revolveres e carabinas, e entraram casa a dentro para vingar o irmão morto. Porém os dois irmãos, Antônio e João, já os esperavam, e conhecedores do terreno, depois de intenso tiroteio, os cinco invasores foram mortos. Depois do ocorrido os dois irmãos resolveram fugir, pois fatalmente a polícia seria avisada e seriam presos, e assim fizeram. A polícia foi avisada, foi formada uma patrulha de captura e partiram em busca dos irmãos. João que tinha mais medo fugiu para algum lugar distante e não foi encontrado, porém Antônio, por ser mais confiante e mais corajoso, ficou por perto, em uma fazenda de conhecidos seus, e logo foi capturado e como a fama do Mimoseano é de ser perigoso, os capturas o amarraram para leva-lo para a cidade. Porém no caminho de volta, nas margens do rio Mutum, em uma cabana que encontraram para pernoitar, Antônio percebeu a intenção dos seus captores de mata-lo para não correrem perigo de serem surpreendidos pelo preso, pois corria a fama do mesmo ser rezador e fazer sortilégios, e mandingas para escapar de situações adversas. Se Antônio usou de seus sortilégios, rezas e mandingas não se sabe, o fato é que durante a noite, num momento de descuido do guarda que ficou encarregado de vigia-lo ele se libertou das cordas, não se sabe como, e CAPÍTULO I
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quando o guarda se deu conta só o escutou falando: “Já estou indo embora, adeus, depois só escutaram alguém se jogando na água, e desapareceu. Muitos anos depois o meu avô Pedro ficou sabendo que Antônio esteve no Estado de Minas Gerais,mais tarde voltou para Mato- Grosso na cidade de Campo Grande e depois de muito tempo, quando achou que as coisas já tinham esfriado, voltou para Poconé. Com todo esses acontecimentos a situação em Mimoso ficou muito complicada para o meu Avô Pedro, que apesar de estar fora da confusão se viu ameaçado pela família dos mortos, que passaram a prometer vingança, até que culminou em um misterioso incêndio de sua casa comercial, que destruiu tudo, obrigando com isso na sua mudança de Mimoso para a região do Carvoal município de Livramento. Com o incêndio do comércio os amigos do meu avô o aconselharam a abrir falência do estabelecimento, mas como era um homem muito honesto não concordou e assumiu toda a dívida que na época importava em 11 contos de Réis. Assumindo a dívida mudou-se para o Carvoal, onde lá chegando teve todo apoio do Sr. Antônio Salomé da Silva, que cedeu um pedaço de terra para que a família do meu avô se instalasse.
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“Uma família virtuosa é bem semelhante a um navio, que durante o temporal se firma em duas amarras : a religião e os bons costumes”. Montesquieu
CAPITULO II Com a família instalada meu avô montou a nova Casa Comercial, que atendia as primeiras necessidades da população local. Com o crescimento do comércio ele passou a ter tamanha importância para a região, que os moradores deixaram de ter que se deslocarem até a Vila de Poconé para fazer as suas compras. A Casa Comercial era composta de duas peças grandes de paredes de madeira rústica revestidas com barro, conhecido como revestimento de barrote, com a cobertura de palha, onde vendia-se desde fumo, utensílios domésticos tecidos, produtos alimentícios ferragens etc. Por causa do grande crescimento da Casa Comercial, que as lanchas que antes passavam somente pela parte mais larga do Rio Cuiabá, começaram a entrar pelo Rio Piraim, o braço mais estreito do rio que contorna a ilha,chegando até a localidade do Carvoal, somente para fazerem negócios com o meu avô Pedro. Com esse evento incentivou-se o crescimento do comércio de produtos locais, tais como couro de gado, caititu, capivara, jacaré, crina de cavalo e outros, causando o interesse inclusive de comerciantes e fazendeiros da região de Poconé, que viram no Porto de Piraim uma oportunidade para comercializarem seus produtos, comprando o que necessitavam e vendendo os seus produtos regionais. Com essa ligação comercial com Poconé meu avô Pedro descobriu a grande necessidade que os fazendeiros da região tinham de aquisição de cavalos para o trabalho no campo, pois a exaustiva vida do pantaneiro dentro da água durante as CAPÍTULO II
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cheias e a extrema seca durante a estiagem levava a constante necessidade de renovação da tropa e a região do Carvoal se mostrava ideal para a criação de eqüinos, atividade esta que veio ter, também uma efetiva participação do meu pai durante toda a sua juventude. A maior parte de sua infância e parte de sua mocidade foi passada nessa localidade, foi lá que ele teve os primeiros contatos com os estudos, em uma escola particular que funcionava na Fazenda do seu padrinho, o Sr. Silvério Jorge da Silva, onde estudavam todas as crianças da região e cada uma pagava como podia. Nessa época moravam no local uma média de 38 famílias, e a sua primeiras professora chamava-se Eudóxia. Com a criação da escola na Fazenda Biguasal do seu padrinho, que ficava situada a mais ou menos 3 léguas do Carvoal, o meu pai foi morar nessa fazenda, onde ficou por um tempo de quase 3 anos. A escola funcionava em uma das salas da fazenda. A professora que mais o ensinou foi a Maria Catarina. Ela ensinava desde a alfabetização até o 3º ano do ensino fundamental. Estudavam pessoas de cuja idade variavam dos 8 aos 20 anos. A escola funcionava durante todo o dia e os alunos estudavam os dois períodos, freqüentavam a escola 37 alunos. O meu pai ficava durante toda a semana nessa fazenda e no final da semana voltava para a casa dos seus pais no Carvoal. Concluído o 3º ano, o meu pai voltou para a casa dos seus pais onde aí realmente passou a ter uma participação efetiva no comércio do seu pai, juntamente com seus irmãos Juquinha e Davino Eles ajudavam no comércio e também trabalhavam como guieiros e como carreiros dos carros de bois e carroças. Na época meu avô Pedro possuía quatro carros de bois e 2 carroças que eram utilizados nos transportes das mercadorias, do Carvoal para Poconé. Quando o meu pai voltou da fazenda do seu padrinho Silvério, os meus avôs já tinham comprado uma terra própria
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e tinham mudado das terras do Sr. Salomé . O meu pai assim como os seus irmãos ajudavam nos trabalhos do campo no comércio e também na fazenda, no período da seca faziam rapadura. Como os seus irmãos mais velhos Davino e Juquinha foram trabalhar em atividades próprias, os outros mais novos Wenceslau e Miguel começaram também a ajudar. Um fato curioso desta época foi o advento do hidroavião. Em 1930 a empresa aérea Sindicato Condor Limitada inaugurou a primeira linha comercial entre Corumbá e Cuiabá, sendo utilizado um hidroavião, monomotor alemão Fokker de quatro lugares, que para o percurso de 435 quilômetros necessitava de uma escala técnica para reabastecimento. Normalmente esta escala técnica era realizada em Porto Jofre, porém por algum motivo de adaptação da rota, ou problema técnico com o local anteriormente escolhido, por uns dois ou três anos, provavelmente entre os anos 1935 e 1938, meu pai não se recorda exatamente a data correta, a empresa aérea escolheu a baia do Coqueiro ou baia Grande, por ter as características de ser bastante longa e reta, facilitando a descida do aparelho. Para resolver o problema de fornecimento de combustível a empresa aérea, através das lanchas que faziam o percurso de Corumbá a Cuiabá, procurou saber quem poderia receber e transportar a gasolina do rio até a margem da baia do Coqueiro. A resposta dos proprietários dos barcos foi imediata: o Pedro Dias, meu avô, pois pela sua responsabilidade e senso de dever saberia dar a devida importância para aquela missão. Então a partir daí as lanchas traziam os galões de 18 litros de gasolina, como era fornecida na época, e meu avo a transportava até a margem da baia do Coqueiro, e na data e horário certo, o hidroavião chegava e pousava nas suas águas calmas, taxiava até a sombra de uma imensa figueira, onde era amarrado, no local onde ficava a casa de D. Maria Inez, a parteira da região. O próprio piloto, com auxilio dos inúmeros CAPÍTULO II
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curiosos que apareciam, invariavelmente, ao local, fazia o abastecimento, e para o delírio dos presentes, tomava a direção da sua pista aquática e levantava vôo, em direção de Cuiabá ou Corumbá, dependendo da direção que estava vindo. Esta figueira enorme, ainda existe no mesmo local, conhecida atualmente como “Tapera da Marinez”. Meu avô nunca cobrou um centavo pelo seus serviços, pois o fazia pelo simples fato de estar colaborando com o progresso, e a empresa Sindicato Condor Limitada lhe dava o direito de voar de graça no avião, quando tivesse necessidade, porém, com seu jeito desconfiado de pantaneiro legítimo, sempre dispensou a deferência especial, pois achava que quem devia voar eram os inúmeros pássaros do pantanal, que ele não cansava de admirar, e que se Deus achasse que ele deveria voar, teria nascido com asas. Pensando bem, voar em um avião monomotor na década de 30, era necessário bem mais que coragem para embarcar em tal aventura. Os hidroaviões fizeram esta linha por dez anos, voando entre Cuiabá e Corumbá até o ano de 1940, quando foi substituído pelo Trimotor Fokker, de nome “Maipu”, que aterrisou em Cuiabá em 14/10/1940, inaugurando a linha Rio de Janeiro/Cuiabá. O meu pai como sempre foi uma pessoa muito comunicativa, extrovertida e com um senso de humor muito apurado, participava de todos os eventos festivos e religiosos da região muito freqüentes na época, tais como as festas de São Benedito, São Gonçalo, S.Antônio, Festa da Conceição, São José, etc., onde aprendeu a dançar “O Cururu”, “O Siriri” e a tocar a Viola de Cocho. Com a saída dos seus irmãos Davino e Juquinha, o meu avô Pedro passou a maior parte do comando do comércio para o meu pai, onde ficou até o começo da sua enfermidade. A doença do meu pai aconteceu quando ele tinha dezoito anos de idade. Tudo começou com uma pequena gripe e muita dor de cabeça, que mais tarde foi se
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transformando em uma espécie de pneumonia, até chegar num enfraquecimento tão grande que o deixou impedido de caminhar. Uma das suas pernas chegou a ficar encolhida, que para sua pouca locomoção era necessário o auxílio de uma muleta, isso num período de 9meses.Nessa época todo o tipo de tratamento disponível na localidade foi tentado, vindo inclusive os remédios pelas Lanchas, que eram comprados em Cuiabá, mas a cura só realmente viria acontecer, quando num determinado dia, o seu tio Sr. Antônio Dias da Silva, aquele do caso do Mimoso, que tinha fugido para Minas Gerais, depois de muitos anos, ficou um tempo em Campo Grande e voltou à Poconé, onde ficou trabalhando em uma Fazenda próxima da região do Caeté , onde tinha uma comunidade que era comandada pela Srª Laurinda Lacerda Cintra, que era conhecida pelo apelido de Doninha do Tanque Novo e mais tarde Doninha do Caeté. Ela afirmava ter visões de uma santa chamada “Jesus Maria José” e por isso atraia muitas pessoas que ali chegavam em busca de curas e conselhos. Como o senhor Antônio Dias da Silva era uma pessoa sempre ligada ao misticismo logo se viu protegido pela amizade com a Srª Doninha, foi a própria que lhe contou sobre a enfermidade do seu sobrinho Antônio, filho do seu irmão Pedro, o qual não via mais desde a fuga do Mimoso. Doninha lhe disse que tinha tido uma visão mística onde viu a cura para a doença de seu sobrinho, e que seria a seguinte: o Sr Antônio deveria tirar a medida da porta da já destruída igreja de “Jesus Maria José” do Tanque Novo, e levar ao sobrinho enfermo, para que ele amarrasse em sua cintura, e que ficaria curado. Sabendo então da situação tomou as devidas providências aconselhadas por Doninha e na companhia de uma de suas filhas partiu imediatamente para a casa de seu irmão Pedro, na localidade de Carvoal para levar à cura para o sobrinho. Ele bateu a porta da casa do meu avô Pedro e disse:
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“ Voltei para trazer a cura, para o meu sobrinho Tóte”. Com a chegada do irmão que não via há muito tempo, após os emocionados abraços de boas vindas, foi providenciada a colocação da fita na cintura de seu sobrinho enfermo. Colocada a fita com a medida da porta da igreja, após 3 dias aconteceu um verdadeiro milagre, pois os movimentos das pernas começaram à voltar, e ele pode colocar as pernas no chão e aos poucos pode ir deixando o auxílio da muleta. Após a sua milagrosa cura, meu pai pode voltar as suas atividades normais, e como estava na idade de servir o Exército, poder se apresentar para servir a Pátria, e posteriormente ser convocado para defende-la como “Pracinha” nos campos de batalha na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, como descreverei posteriormente. Sem a interferência milagrosa de Doninha do Caeté, não havia perspectiva destes fatos tão importantes acontecerem, e mudarem o rumo de sua vida, cujas conseqüências continuam a influenciar sua história até a data de hoje.Depois de curado, meu pai foi pessoalmente à comunidade de Caeté agradecer a graça recebida. A senhora Doninha do Tanque Novo e posteriormente Doninha do Caeté, não só influenciou na vida de meu pai, como participou de acontecimentos que repercutiram, inclusive, na historia do Estado de Mato Grosso, conforme relato a seguir. As curas da senhora Doninha alcançaram tanta fama que segundo dizem vinham pessoas de outros Estados à procura de seus conselhos e curas, atraindo com isso para si, a inveja e o despeito dos poderosos que temendo a sua influência sobre o povo da região, que por ela tinha uma admiração e fé muito grande, acabou por envolve-la em um episódio político que acabaria em tragédia. Esse episódio aconteceu no início do Governo Antunes Maciel que desejava que aquela comunidade se manifestasse a favor do
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partido de Getúlio Vargas e contra a constitucionalização do país, como isso não aconteceu, ocorreu o episódio do Tanque Novo, onde os inimigos da senhora Doninha invadiram a comunidade e os moradores resistiram bravamente num confronto armado. Nesse episódio muitas foram as mortes de ambos os lados, porém os moradores do Tanque Novo foram vencidos, resultando na prisão temporária de Doninha e na destruição da Igreja “Jesus Maria José”. Quando a senhora Doninha foi libertada se formou uma nova comunidade na região de Caeté, onde permaneceu até a sua morte. Os fatos, acima citados, levaram a uma insatisfação do Governo de Getúlio Vargas, vindo a destituir Artur Antunes Maciel e foi nomeado outro interventor para o Estado de Mato Grosso, Leônidas Antero de Matos. Segundo meu pai, alguns de seus descendentes estão vivos morando na região de Cuiabá.
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“ Quando os nossos dias se tornarem obscurecidos por nuvens baixas lembremonos de que há no universo um grande e benigno poder capaz de abrir caminho onde não há caminho e de transformar o ontem sombrio num luminoso amanhã “. Martin Luther King
CAPITULO III Com a sua vida voltando à normalidade, o meu pai voltou a tomar a frente dos negócios do meu avô Pedro. Neste período estava no auge a comercialização com as lanchas que percorriam o rio Piraim, tendo como referência o Porto do Carvoal, e a cidade de Poconé, trazendo mercadorias da cidade para embarcar nas embarcações e levava as encomendas feitas pelos clientes em suas carroças e carros de bois. Neste ambiente de grandes atividades comerciais, onde meu pai pode se instruir para enfrentar as atividades que lhe daria condições de tocar a vida quando finalmente fosse enfrentar o mundo por conta própria. Nesta época por várias vezes percorreu o rio Cuiabá a bordo das lanchas com as quais seu pai comercializava, aproveitando para aprender os segredos da navegação fluvial praticada na época, conhecendo cada curva, cada rebojo, cada corredeira e a maneira de como enfrentá-las, coisas que lhe valeram muito no decorres de sua vida, já que sempre esteve de alguma maneira ligada ao seu tão querido rio. Aproveitou, também para estreitar grandes e definitivas amizades, tais como o “José Grande”, proprietário de várias lanchas que faziam o citado percurso. “José Grande” pertencia à família Gattas, famosa por serem empresários da navegação fluvial naquela época, amizade esta que continuou sempre sendo importante em vários acontecimentos de sua vida, como poderão observar mais a frente. Nesta atmosfera de grandes atividades, pois a chegada de uma lancha no porto transformava o locar num CAPÍTULO III
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burburinho de gente, típico de qualquer porto do mundo, respeitada, naturalmente, as devidas proporções, onde lá estão os estivadores, carregando e descarregando a embarcação, os comerciantes, buscando oportunidades de negócios ou entregando e recebendo suas mercadorias e o povo em geral, que por simples curiosidade, tenta quebrar a rotina do dia a dia, testemunhando as novidades que sempre aparecem nestas ocasiões. Enfim, o local se transformava em uma festa. Foi ai, neste universo que ocorreu um fato que marcou a vida de meu pai, na época um jovem de dezoito para dezenove anos de idade, ou seja, nos idos do final da década de 30, que demonstra a importância da educação recebida de seus pais, baseada nos princípios pantaneiros de honradez e honestidade. Chegou ao Carvoal um senhor conhecido de todos, cujo nome era Pedro Ferreira, e que por isto chamava meu avo de “Chara”, morador da região da barra do rio Pirigara, afluente do rio São Lourenço, abaixo da foz do rio Cuiabá, pois diferentemente do que muitos imaginam, após o encontro dos dois rios, Cuiabá e São Lourenço, o rio passa a ter o nome do ultimo mencionado e ele é que vai desembocar no grande rio Paraguai. Pedro Ferreira era proprietário de um pequeno sítio nesta localidade, onde tinha uma pequena criação de gado, porém de boa qualidade e sua renda de maior monta era a caçada de animais silvestres, comum nesta época, que comercializava com as lanchas que passavam no rio. Porém, aconteceu uma fatalidade, sua esposa caiu enferma, com uma doença que Pedro nunca soube explicar direito, só sabia dizer que ela estava de cama e passando muito mal. Inicialmente os comandantes das lanchas, amigos seus, levaram um relato do diagnóstico para os médicos em Cuiabá, que mandaram remédios conforme entenderam o que poderia ser, porém sem resultado. Depois, quando a
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situação ficou muito preocupante, e os recursos começaram a ficar esparsos, pois o mesmo dependia da ajuda da esposa para poder exercer suas atividades normais, se deslocou até a cidade de Poconé, onde um amigo e compadre lhe cedeu um espaço em sua casa, para que a sua mulher pudesse ficar e fazer o tratamento que os médicos lhe receitaram. Sendo um homem de poucos recursos financeiros, pois tinha um patrimônio razoável, porem sem liquidez imediata, dependia de suas atividades diárias, nas caçadas ou na criação do gado ou na fabricação de queijo ou rapadura e até mesmo o pescado, para ter dinheiro vivo na mão. Como estava impedido pela doença da esposa, logo ficou em apuros e dependendo da caridade dos amigos. Para um homem pantaneiro, independente por natureza, esta era uma situação humilhante. Lembrou então do amigo “Chara”, o Pedro Dias, do porto do Carvoal, que lhe poderia dar hospedagem até a chegada da lancha do seu outro grande amigo, o “José Grande” Gattas, homem de grandes recursos financeiros e para quem desejava fazer uma proposta. Meu avô lhe ofereceu a hospedagem, além da alimentação, é claro, pois em casa de pantaneiro jamais se deixa alguém sem comida. Sabendo que a lancha só chegaria após alguns dias, Pedro Ferreira tratou, a seu modo, de não ser peso para o amigo que tão gentilmente o acolhera, ajudava nos afazeres diários como se fosse uma pessoa da família, rachava lenha, ajudava no trato do gado, na ordenha das vacas e até no atendimento do armazém, quando havia necessidade. Meu pai lembra que sempre era o primeiro a dormir e o primeiro a levantar, e sempre incentivava os outros a fazer o mesmo, pois no seu entender um homem nunca deve ver o sol nascer deitado em uma cama, ou no caso do pantanal, na rede. Finalmente chegou a lancha e o porto do Carvoal se transformou em um grande mercado, estivadores descarregando a carga da lancha que constituía de sacos de CAPÍTULO III
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trigo, milho, arroz beneficiado, açúcar, cimento para as construções, tecido, fumo, querosene para as lamparinas, gasolina para ao motores de popa e outros produtos indispensáveis e que o campo não pode produzir. Tudo era armazenado em um salão que ficava ao lado da sala do comércio de meu avô, construído com paredes de taipa e coberto com palhas de coqueiros. Neste armazém também estava a mercadoria que iria ser embarcada na lanchas, tais como : carne seca, peixe seco, peles de animais silvestres, couro de gado, crina de cavalo, rapadura, queijo, mel, banana e outros produtos que eram de interesse dos habitantes da cidade, bem como lenha para alimentar as fornalhas da lancha à vapor. Foi neste entra e sai de gente no armazém que meu pai, já no fim da tarde, quase escurecendo, entrou para fazer uma conferencia e de repente pisou em algo que lhe chamou a curiosidade, abaixou, pegou e constatou que era uma grande quantidade de dinheiro em notas de grande valor, enroladas uma nas outras. Surpreso, colocou o volume no bolso, começou a imaginar quanto seria o valor do achado, pensou na aflição de quem teria perdido e respeitando seus princípios recebidos desde pequeno em sua rígida educação de respeitar o que do alheio, imediatamente procurou seu pai, chamou-o a um lugar em particular e mostrou o seu achado, disse que não sabia de quem era e nem quanto seria a quantia, pois não havia conferido. Meu avô pegou o dinheiro, conferiu e verificou que eram doze contos de réis, e disse ao meu pai: “Tote, vamos ficar obser vando se o dono aparece espontaneamente, pois uma quantia desta, se for dado o alarme, vai aparecer dono de todo o lado. Se o dono não aparecer, vamos ver o que faremos”. Logicamente, que uma quantia de dinheiro como esta
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meche com o imaginário de qualquer pessoa e meu pai, ficou fantasiando o que poderia fazer com a quantia que, por justiça, caso não aparecesse o dono, seria sua, e na sua mente de jovem com gosto pela vida, fazia mil planos de como gastá-lo. Quando o dia amanheceu, já encontrou a todos, como de costume, em plena atividade, porém com uma pequena diferença, o amigo Pedro não havia ido chamá-los, inclusive podia se notar que sua rede nem tinha sido usada. Foram encontrá-lo na hora do “quebra-torto”, cabisbaixo, pensativo, apresentando olheiras profundas de noite insone, nem parecia uma sombra da pessoa otimista e vibrante de todos os dias. Meu avo, observando isto, chamou meu pai e disse: “Tote, vá chamar o “Chará”, preciso ter uma conversa, em particular com ele, algo deve estar acontecendo. Será que recebeu notícia de piora na saúde de sua mulher?” Meu pai o chamou e ele atendeu prontamente. Ao ser perguntado o porque de sua tristeza, ele contou o verdadeiro motivo da sua vinda ali. Disse que havia procurado o “José Grande” oferecendo seu gado para venda ou parte de sua propriedade para que o mesmo lhe adiantasse uma certa quantia em dinheiro e ele pudesse fazer frente às despesas com a enfermidade de sua esposa, e que depois do assunto resolvido recomeçaria tudo de novo. Porém “José Grande”, que tinha o coração do tamanho do nome e sabia o quanto representava ao amigo o que lhe estava oferecendo em momento de desespero, não aceitou a sua proposta e lhe fez uma contra proposta, lhe emprestaria uma certa quantia em dinheiro e o mesmo lhe pagaria no futuro, quando tivesse condição de trabalhar novamente. Entrou na lancha e trouxelhe doze contos de reis, quantia que Pedro nunca imaginou que o amigo lhe confiaria, porém “José Grande” disse-lhe, obrigando-o a aceitar sem contestar: CAPÍTULO III
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“Vai, amigo, cuidar com dignidade de sua mulher que esta doente, mais tarde a gente conversa sobre o pagamento deste dinheiro, que para mim não fará falta e sei que estará seguro em seu poder”. Pedro Ferreira ficou tão feliz, de ver que tinha seu problema resolvido, e de constatar que tinha amigos em quem confiar, que colocou o dinheiro no bolso e tratou de ir ajudar o seu outro amigo, o “Chara”, nas lides de descarregar e carregar a lancha, naquela confusão de carga que entra e carga que sai, e numa destas idas e vindas, o dinheiro sumiu. Disse ele ao meu avo: “Eu estava sem dinheiro para atender a minha esposa e agora eu estou endividado e sem ter para onde correr. Só uma ajuda Divina pode me salvar, estou desesperado, pois naquela confusão, aqui, ontem, com tanta gente pra lá e pra cá, quem achou já deve estar muito longe e não posso acusar ninguém, pois o incaoteuto fui eu mesmo”. Meu avo, Disse a seu desesperado amigo: “Chará”, acalme sua mente, meu irmão, o Tote, meu filho, achou seu dinheiro, ontem lá no galpão, foi Deus que colocou ele no seu caminho, pois ele me entregou sem nem mesmo conferir, pois não é seu costume ficar com o que não é seu”. Segundo meu pai, a expressão de alivio e alegria que se estampou no rosto daquele homem naquele momento foi algo que nunca mais presenciou, e com lágrima nos olhos fitou o meu pai e disse: “Tote, Deus há de lhe pagar mil vezes o bem que você me fez, qualquer um ficaria com o dinheiro e eu não poderia culpá-lo por isto, pois dinheiro achado não tem dono. Quanto eu posso dar a você para recompensá-lo?
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Meu pai agradeceu a oferta e disse que em hipótese alguma aceitaria uma recompensa, principalmente sabendo as aflições que o amigo estava passando por causa do bendito dinheiro. Meu avo disse que não deixaria meu pai aceitar a recompensa, pois amizade se paga com amizade e que algum dia em algum lugar o amigo Pedro teria a oportunidade de pagar com a mesma moeda, porém que ficou mais feliz ainda em ver que seu filho já tinha aprendido esta lição, tão importante, para a vida de um verdadeiro pantaneiro, que sempre, em suas aventuras pela mundo afora, tantas vezes precisa de amigos para tirá-los de apuros, e o dinheiro nunca esta nestas transações. Muitos anos depois, nas suas andanças como comprador e transportador de gado por estes pantanais a fora, meu pai, por várias vezes necessitou de um pouso ou um auxilio com as boiadas na região da barra do Pirigara, e o amigo Pedro Ferreira, “Chara” de seu pai, estava lá pronto a atender e a contar a incrível história do seu dinheiro perdido. A vida seguiu seu curso, sem muitos contratempos, até que o meu pai tomou a frente os negócios do meu avô Pedro, até que em outubro de 1940 aos 20 anos de idade apresentou-se ao exército em Cuiabá no 16º Batalhão de Caçadores, integrando a 2º Companhia. O 16º BC funcionava no prédio que hoje se encontra instalado o SESC ARSENAL, na rua 13 de Junho, bairro do Porto. Nessa época ele hospedava na casa da srª Rosa, na rua 15 de Novembro, quando não se encontrava no quartel.Ficou em Cuiabá até 1941, quando foi transferido para o quartel de Cáceres, pois como vinham para servir no 16º BC soldados de vários estados brasileiros houve na época um excesso de contingente devido à proibição de baixa que o exército adotou como 1ª providência par a possível participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial. Chegando em Cáceres integrou-se à 2ª Companhia do 2º Batalhão de Fronteira, onde o Batalhão era dividido em 3 CAPÍTULO III
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companhias, o quartel localizava na Rua 6 de Outubro, pois a sede definitiva estava em construção. Terminada a construção da sede foi inaugurado o 2º Batalhão de Fronteira e onde foram reunidos no mesmo local, a 1,ª,2ª e o PE (Polícia do Exército).Em Cáceres ficou até passar à pronto (data em que o recruta faz o juramento à Bandeira e passa a ser considerado soldado) e o seu soldo passou de 21.200,00 réis para 62.200,00 réis O Batalhão ficava responsável pelo fornecimento dos soldados para servirem na guarda da fronteira Brasil-Bolívia. Como os soldados que eram designados para servirem na fronteira, recebiam uma diária de maior valor e meu pai era acostumado com as atividades no campo, preferiu ficar no Destacamento de Fronteira o maior tempo possível, já que outros soldados sem a sua prática de homem do sítio não agüentavam a dura realidade do patrulhamento de fronteira. Com isso ficou, ininterruptamente por um ano e oito meses em vários destacamentos, sendo na maioria do tempo no Destacamento de Corixa. O Batalhão de Fronteiras era composto de 7 Destacamentos: Destacamento Caiçara, Destacamento Corixa, Destacamento Jaurú, Destacamento Baia das Pedras, Destacamento Bota Medo, Destacamento Casalvasco. O Destacamento Corixa ficava em um local onde a fronteira Brasil-Bolívia era apenas um pequeno córrego. Era composto por 27 soldados, 03 cabos e 02 Sargentos. Durante este período em que ficou destacado na fronteira meu pai conta vários fatos curiosos que demonstram a dureza que eram as atividades militares para manterem a ordem em um local onde a lei não era reconhecida, e que somente a autoridade imposta pelo Exército Brasileiro, a força bruta e a astúcia de seus membros, aliados ao senso de justiça e bom senso de seus membros conseguiam levar a bom termo a missão a eles designada, sem que se deflagrasse uma insurreição do povo
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que ali vivia. A seguir descreverei alguns destes episódios ocorridos nesta época. O Destacamento de Corixa era a principal unidade militar do Brasil naquele setor de divisa com a Bolívia, sendo dali que saia ordens para todos os outros destacamentos que pontilhavam a vasta fronteira seca entre os dois paises. Através destes destacamentos o Exército Brasileiro impunha a presença do nosso povo nestes locais, tentando levar até lá nossos costumes, cultura, língua e a preservação de nossas l e i s . N a s p r ox i m i d a d e s d e s t e s d e s t a c a m e n t o s , invariavelmente, se formava um aldeamento de índios chiquitanos, de origem boliviana, que mesmo falando castelhano, afirmavam com sotaque carregado que eram brasileiros, na esperança de serem tratados com mais consideração e conseguirem favores dos soldados, pois qualquer coisa que conseguissem era de grande valia, dada a extrema miséria que viviam. Como sempre ocorre com estes contatos, as populações indígenas aculturadas sofrem das maléficas influencias da civilização: os homens conhecem a bebida alcoólica e as mulheres a prostituição. Dentro deste universo, onde a brutalidade estava sempre presente e havias a necessidade de ser duro na aplicação da lei, para que não se perdesse o controle da situação, é que se passa o fato que estarei relatando a seguir. Meu pai conta que um dia chegaram várias pessoas no destacamento procurando o comandante, o Ten. Roosevelt, dizendo que um certo índio, totalmente embriagado, havia assassinado sua mulher grávida, a golpes de faca, e que havia fugido para um local próximo, dentro de terras brasileiras. O Ten. Roosevelt imediatamente chamou o soldado Moura e ordenou que fosse verificar o ocorrido e tomasse as providências necessárias para a prisão do criminoso. O soldado Moura, junto com outro soldado conhecido como “Baiano”, chegaram no rancho beira chão, que havia sido palco da tragédia. A cena encontrada era CAPÍTULO III
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horripilante, a pobre mulher estava no chão ensangüentado, com a barriga aberta pelos golpes da faca, com um corte em forma de cruz, e seu lado, também morto, um pequeno bebê, retirado da barriga da mãe, pela fúria assassina de seu próprio pai. O que fazer em uma situação como aquela? O que teria levado a esta atitude tão bárbara? Provavelmente alguma discussão sobre a comida ou negativa de aceitar o companheiro bêbado em sua cama, porém a verdadeira causa realmente era a bebida alcoólica, que tinha sido consumida em larga quantidade e que não o deixou avaliar as conseqüências dos atos praticados. Nada a fazer naquele local, senão lamentar o ocorrido e deixar os parentes tomarem conta dos funerais, partiram então os dois soldados em busca do famigerado assassino no local indicado pelos outros aldeões. Chegaram então, os dois soldados, a um pequeno rancho de palha beira-chão as margens de um córrego, onde devia estar o famigerado assassino. Antes de abordarem o elemento, os dois, usando de suas experiências anteriores, traçaram um plano, que seria o seguinte: usando o fator surpresa, um chegaria sorrateiramente pela parte frontal do rancho e o outro abordaria pelos fundos, tentando cortar uma possível rota de fuga. Dito e feito, enquanto o soldado Moura, armado com seu fuzil Mauser 7 mm, aproximou-se da parte frontal do rancho, o soldado “Baiano” deu a volta por traz e ficou na espreita. O soldado Moura avistou o homem deitado em uma “tarimba”, ainda visivelmente sob o efeito do álcool, com a roupa toda ensangüentada, e quando percebeu que tinha sido descoberto, levantou-se rapidamente, e dizendo palavras incertas, tentou sair correndo pelos fundos, deparando com o soldado “Baiano”, com seu fuzil apontado para seu rosto, e que lhe deu a voz de prisão. Pego de surpresa, o índio não resistiu, apenas balbuciou palavras misturadas de espanhol e português,
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sobre não saber o que estava acontecendo. Os dois soldados, com a missão cumprida, levaram o prisioneiro à presença do Comandante do Destacamento, que olhou para o homem que estava a sua frente, um famigerado assassino? Não, ali a sua frente estava um pobre coitado, um indígena que havia sido destruído pelo contato com o branco opressor,que lhe ofereceu álcool para dominalo e que o forçou a esquecer a própria cultura. Mas agora, o que fazer, levar aquele homem para uma prisão em Cáceres, o que resolveria? Ele nem entenderia o que era uma prisão. Liberta-lo, simplesmente, que efeito faria em sua comunidade, será que não daria a eles uma sensação de impunidade, perdendo os militares, encarregados de manter a lei e a ordem na fronteira, o controle sobre a situação? Mas o Ten. Roosevelt tinha que tomar uma decisão, que a comunidade indígena considerasse como uma punição ao assassino, e ao mesmo tempo desestimulasse outros a cometerem crimes naquele local, sabendo que havia alguém que tomaria providencias se algo viesse a acontecer. Então ele chamou a sua presença o soldado “Baiano” e ordenou: “Vá ao campo, corte umas varas de marmelo, e em lugar público, aplique 25 chicotadas no elemento, depois eu digo o que fazer.” O soldado “Baiano,”cumpriu a ordem dada, e segundo o meu pai, até passou um pouco da quantidade de chicotadas ordenadas. O índio, apenas gemeu enquanto era açoitado, ficou largado no chão, então o Tenente mandou carrega-lo até um rancho bem próxima á linha da fronteira, e pediu que o avisassem quando o mesmo acordasse. No outro dia pela manhã, o índio já estava acordado, com as costas e pernas toda rocha de vergões impostos pelo pesado castigo e curado da enorme bebedeira, então o Ten. CAPÍTULO III
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Roosevelt falou ao mesmo: “ Vá embora para a Bolívia, e nunca mais volte por estas bandas, e se eu apenas souber que você se aproximou deste lugar o seu castigo será bem diferente do agora aplicado, provavelmente você não sairá vivo de um outro encontro nosso, agora suma!!!”. O índio levantou-se, gemendo de dor e medo, se dirigiu ao córrego que era a divisa entre os dois países, e desapareceu na mata. Segundo meu pai, até o dia de sua volta a Cáceres, não se teve notícia do mesmo. Esta história, por mais terrível que possa parecer, exemplifica bem a dureza do ambiente em que viviam os soldados dos destacamentos de fronteira Brasil-Bolívia, na década de 40, onde, até um ato de brutalidade extrema, pode ser um ato de humanidade, pois na maioria dos casos, um caso como este seria a execução do malfeitor o castigo esperado e entendido por todos. Outro exemplo, contado por meu pai, que mostra o quanto a manutenção da ordem na fronteira Brasil-Bolívia nos anos 40 era difícil, exigindo muitas vezes atitudes severas e as vezes arbitrárias, fazendo valer as ordens exaradas do Exército Brasileiro e a autoridade investida pela patente do militar, custando o que custasse. Como meu pai, o então Soldado Moura, trazia consigo muita experiência nas labutas do campo, tais como trato com gado e cavalos, fabricação e manutenção de arreamento e outras peças de couro, bem como o costume com a dura vida de boiadeiro e carreiro, e o gosto pela vida ao ar livre lhe conferia uma grande vantagem sobre muitos que o acompanhavam naquela missão de patrulhar a fronteira. Muitos de seus companheiros vinham da vida nas cidades e era a primeira vez que tinham contato com a vida no campo. O comandante do destacamento, o Ten. Roosevelt, confiava muito nesta experiência de meu pai, e muitas vezes
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confiava-lhe missões específicas que só com sua prévia experiência seria possível cumpri-la. Esta confiança entre soldado e comandante iria se transformar em um forte e sincero laço de amizade, que muito repercutiria no futuro. Em cumprimento de uma dessas missões é que meu pai conheceu e fez amizade com um próspero fazendeiro da região, cujo nome real ficou no esquecimento, mas respondia pelo apelido de Dunga. O Sr. Dunga era fornecedor de carne bovina para os destacamentos, contrato este que era cobiçado por todos os outros fazendeiros da região e dado ao valor monetário respeitável, era tratado diretamente pelo comandante do Batalhão de Cáceres, sendo que as vezes o fazendeiro se deslocava até a cidade e as vezes o próprio Comandante vinha ao Destacamento de Corixa, que era o mais próximo da fazenda, para tratar dos negócios. E foi em uma destas vindas do Comandante ao Destacamento que o fato que passo a descrever aconteceu: Estava escurecendo quando se ouviu ao longe o ruído de motor de um veículo que vinha se aproximando de Corixa, e pelas chuvas recentes e as estradas, na verdade caminhos carroçáveis que existiam naquela época, dava para se imaginar as dificuldades passadas pelos viajantes, enfrentando buracos, lamaçal, rios sem ponte e etc., uma viagem como esta era mais uma aventura, onde as pessoas sabiam quando saiam mas não sabiam quando chegariam. No começo da noite, finalmente chegou o pequeno caminhão militar, todo sujo de lama e com marcas evidentes das dificuldades enfrentadas, pois provavelmente havia atolado várias vezes no transcurso de Cáceres e Corixa. Na boléia do caminhão estava o Comandante do 2º Batalhão de Fronteira, o Major Alfredo Monteiro Quintela, com expressão grave no rosto, de quem estava bastante aborrecido com os acontecimentos, com o uniforme e principalmente as botas bastante enlameadas. Trazia nas mãos, como era costume dos comandantes na época, uma pequena chibata de açoitar CAPÍTULO III
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cavalo, que freqüentemente batia em sua própria perna, fazendo um ruído característico. Depois das apresentações militares de praxe, imediatamente perguntou ao Ten. Roosevelt : “Onde esta o Dunga, que no mês passado, em Cáceres marquei com ele para estar hoje aqui para tratarmos sobre a compra do gado?”. Quando o Ten. Roosevelt disse que o Dunga não estava, pois ninguém havia avisado que ele deveria estar ali naquele dia, pois se soubesse teria tomado as providências para que o mesmo ali estivesse. O Major se enfureceu, e a altos brados disse que era um desaforo com sua pessoa ter se sacrificado naquela dura viagem e o outro faltar ao compromisso assumido, e no mesmo tom de voz ordenou: “Tenente, mande prender o Dunga e o conduza à minha presença ainda hoje, eu ficarei aqui esperando, e só irei descansar após resolver este assunto”. Diante de tal ordem, dita no tom em que foi dada, o Ten. Roosevelt nem pestanejou em atendê-la, mandou chamar o soldado Moura, que segundo suas convicções era o que mais teria habilidade para se deslocar por aquelas paragens aquela hora da noite, e era quem tinha melhor conhecimento da fazenda do Sr. Dunga e com o mesmo mantinha uma boa amizade, adquirida em outras vezes que foi ajudar a apartar reses adquiridas pelo Exército, para alimentar seus homens nos Destacamentos de Fronteira. O meu pai recebeu as ordens do Ten. Roosevelt, que lhe explicou com clareza a situação, e vendo não ter alternativa, senão obedecer, foi procurar o Sargento Luiz Pires, seu superior imediato, para ver coma poderia resolver o problema com melhor resultado. O sargento que era uma pessoa muito ponderada disse ao soldado Moura :
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“Você esta correndo risco de vida para cumprir sua missão, pois nem um cavalo temos para poder lhe ajudar na empreitada, terá que ir a pé, e como levar o fuzil pode ser incomodo, vou lhe emprestar meu revolver .32 e minha lanterna, para ajudá-lo na escuridão. Vá com cuidado pois nestas horas é comum encontrar lobos guarás vagando pelo caminho que você vai percorrer. Vá com Deus e boa sorte.” A distância do Destacamento de Corixa e a fazenda “Tremedá” era de aproximadamente duas léguas (12 Km), e não havia caminho carroçável para que o caminhão pudesse chegar até lá, então o soldado Moura seguiu seu caminho para cumprir a sua espinhosa missão, pediu proteção de São Benedito, seu santo de devoção e disse a clássica frase que usa toda vez que sai para alguma viagem: “Na hora de Deus e da Virgem Maria”. A noite não estava muito escura, pois havia um luar que clareava a mata com sua luz prateada, e logo nos primeiros quilômetros o soldado Moura pode perceber a presença dos lobos guarás que estavam a sua volta, soltando sons característicos que um homem do campo identifica imediatamente. Percorreu as duas léguas com a maior brevidade possível e chegou à porteira da tão falada fazenda, sem saber precisar o horário correto de sua chegada, estava bastante cansado, porém tinha que pensar como chegar até a casa sem ser descoberto, pois não tinha noção qual seria a reação do fazendeiro ao saber da ordem de prisão. Durante a caminhada, usando a astúcia natural de um bom pantaneiro, vinha traçando um plano de como resolver a situação sem precisar usar de força ou agressividade para por um bom termo á sua missão. Contava com a sua amizade pelo Sr. Dunga e sua esposa, que tantas vezes havia saboreado sua deliciosa comida, que lhe era servida na mesa de almoço e jantar junto com toda a família do mesmo. Que era uma CAPÍTULO III
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deferência dada apenas para pessoas a qual se tinha consideração especial, e o respeito pelo Exército Brasileiro que as pessoas daquelas paragens aprenderam a ter. Neste momento lembrou dos cachorros que cuidavam a sede da fazenda “Tremedá”, e pensou se os animais dessem o alarme, todo seu elemento surpresa que fazia parte do seu plano de ação, arquitetado durante a caminhada, iria por água abaixo. Por sua sorte havia ganho a confiança dos cachorros nas outras vezes que estivera ali, à serviço. Então, subiu em um mourão da cerca, bem grosso, que ficava ao lado da porteira, e aguardou os cachorros que vinham em desabalada carreira em sua direção, latindo. Porém ao chegarem perto de meu pai, ele os chamou pelos nomes e os cães começaram a pular de alegria ao reconhecer o velho amigo, e pararam de latir. Observou a casa, que continuou às escuras, e concluiu que não haviam se alarmados com os latidos dos cães, e dela se aproximou. Sua maior preocupação era como comunicar a prisão ao fazendeiro sem que ele se ofendesse e reagisse com violência, pois estava sozinho e o outro poderia, inclusive chamar seus trabalhadores para ajudá-lo, em alguma reação. Quando se aproximou da casa observou que a janela do quarto do casal esta aberta, fechada apenas por uma tela contra mosquitos, que de antemão sabia que era facilmente removível. Chegou junto à janela, com todo o cuidado, e observou que o casal estava dormindo tranqüilamente, iluminados pela luz do luar que entrava pela abertura. Pensou em chamar o Dunga pelo nome, porém raciocinou que se o fazendeiro acordasse com ele ali do lado de fora poderia se armar e no intuito de defender sua casa disparar e ocorrer uma tragédia, que naturalmente queria evitar. Então tomou uma decisão, que a primeira vista pode parecer imprudente, porém há uma explicação que darei logo a seguir. Observando que o casal estava dormindo em sono
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muito profundo, sem fazer barulho algum, retirou a tela contra mosquitos, pulou a janela e invadiu o quarto do fazendeiro. Surpreendentemente o casal continuou dormindo, então o soldado Moura, munido do revólver e focando a lanterna diretamente sobre rosto do fazendeiro adormecido disse em voz alta: “Dunga, Dunga, Dunga...”, com objetivo de acordá-lo. A reação do interpelado foi imediata, em um pulo levantou-se dizendo em voz alta: “Virgem Maria, soldado dentro de minha casa!!!”. Aproveitando o fator surpresa e do fato de Dunga estar encandeado pela luz da lanterna, o soldado Moura tratou logo de se identificar: “ Dunga, aqui é o Moura, e de ordem do Major Alfredo, Comandante do 2º Batalhão de Fronteira, você está preso”. Ao escutar o nome do seu amigo, Dunga tranqüilizouse, pois sabia que por mais ousada que fosse a situação, sabia que o Soldado Moura jamais faria aquilo somente por falta de respeito ou atrevimento, e perguntou : “Moura, o que eu fiz para me mandarem prender a esta hora da noite?”. Vendo que sua estratégia de abordagem tinha surtido efeito, meu pai explicou-lhe a situação, dizendo que o Major havia marcado com ele aquela data para que estivesse no Destacamento de Corixa e o mesmo não havia comparecido, deixando o Oficial muito aborrecido e que exigia sua presença imediatamente naquele local, e para não ter dúvida CAPÍTULO III
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de que ele iria, mando-o buscar como prisioneiro, atitude que os comandantes daquela época usavam para exercer a sua autoridade e manter a ordem e obrigar o respeito à lei na fronteira Brasil-Bolívia. Imediatamente pediu desculpas pelo fato de ter invadido a intimidade de seu lar, mas que tomou tal atitude pensando na segurança dos dois, pois um mal entendido poderia resultar em uma reação violenta por parte do fazendeiro e alguém sair ferido deste confronto, por isso quis ter o total controle da situação, neutralizando qualquer reação por parte do mesmo, pois sabia que quando explicasse o ocorrido seria entendido.E foi o que aconteceu. Passada a surpresa e dada as explicações cabíveis para a situação, o fazendeiro reconheceu sua parte na culpa dos fatos ocorridos, pois havia mesmo esquecido do compromisso assumido no mês anterior, em Cáceres, e dada as atividades da fazenda e a perda de noção de tempo que as lides no campo proporciona à pessoa, a data lhe tinha passado desapercebida. A esposa do fazendeiro se aproximou do soldado quase chorando e fez um pedido: “Moura, não leve meu marido preso, você é considerado gente de nossa casa, foi recomendado pelo pessoal dos Gattas como pessoa de confiança, o que vai ser de nós sem o Dunga aqui na fazenda?”.(Gattas era uma família de proprietários de barcos que faziam o percurso entre Corumbá Cuiabá Cáceres, e que conhecia meu pai na região do Carvoal, quando fazia comércio com meu avô Pedro). Meu pai lhe explicou que naquele momento não estava ali como amigo e sim como soldado e como tal tinha que obedecer ordens, mas que de maneira alguma iria faltar com o respeito com a pessoa do fazendeiro, pois seu apreço por ele continuava o mesmo. Dunga, agora já refeito da surpresa, falou ao meu pai se era para ir imediatamente ou podiam esperar o amanhecer,
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tendo como resposta que deveriam ir imediatamente, pois estas eram as ordens dadas, e demonstrando o grau de confiança que havia entre os dois, disse ao meu pai, então você poderia ir ao piquete pegar dois cavalos para irmos montados, pois chegaremos mais rápido para resolvermos logo esta situação. Meu pai, conhecedor dos costumes do local, foi até um galpão próximo, pegou dois embornais com milho, para facilitar a captura dos cavalos, e se dirigiu ao piquete localizando e trazendo o mais rápido possível os animais. Assim que encilharam os cavalos, montaram, se despediram da preocupada esposa do fazendeiro, que lhes disse: “sigam com Deus”, partiram. Nesta viagem de volta, Dunga expressou sua preocupação com qual seria a reação do Major, que apesar de ser um homem de pequeno porte e franzino, era famoso por sua rigidez e autoritarismo em suas atitudes. Quando chegaram, ainda estava escuro, e o Major se encontrava no pátio do Destacamento, como se fosse uma fera enjaulada, andando para lá e para cá, com as mãos para traz, segurando a chibata, como sempre dando pequenas batidas nas próprias pernas, as vezes resmungando algo ininteligível. O soldado Moura chegou com o prisioneiro, se apresentou ao Major e ao Ten. Roosevelt, que recebeu o fazendeiro e dispensou o praça para que fosse para seu alojamento. Missão cumprida. Voltando ao alojamento, encontrou o Sargento Luiz Pires que o esperava ansiosamente, preocupado com o que poderia ter acontecido com o seu comandado, e lhe fez um breve relato do ocorrido e lhe devolveu o revólver e a lanterna emprestados, sendo que o sargento imediatamente disse: “Vamos nos aproximar do local onde o Major esta falando com o Dunga, sem sermos percebidos, que por nada deste mundo eu perco de ver a bronca que ele deve estar levando”. CAPÍTULO III
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E foram os dois, morrendo de curiosidade, até uma vala no terreno, próximo de onde estavam ocorrendo os fatos, e lá ficaram a observar sem serem vistos. A cena era quase cômica. O Dunga, um homem de boa estatura, forte, avantajado, de cabeça baixa e repetindo varias vezes “Sim, senhor”, e o Major um homem franzino, de baixa estatura, com sua chibata quase esfregando no nariz do fazendeiro, falando em altos brados sobre responsabilidades, falta de consideração, respeito aos compromissos, ao Exército Brasileiro e a sua autoridade, enfim, passando-lhe uma baita descompostura. Os dois observadores, já com vontade de rir das cenas apresentadas, resolveram que já tinham visto o bastante e sorrateiramente como chegaram, voltaram para o alojamento, para finalmente descansarem, pois naquela noite que estava terminando, ninguém havia dormido. Logo pela manhã apareceu no alojamento onde estava meu pai o fazendeiro Dunga, com um sorriso meio sem graça, procurou os seus amigo Moura e o sargento Luiz dizendo num sotaque bem característico de homem rústico que era: “ Vocês nem queiram saber o apuro que passei na frente do Major, êta homem brabo, nem sei onde ele achou tanta palavra difícil para me esculhambar, teve muita coisa que eu nem entendi. Pra dizer a verdade, passei “porquera” hoje, aqui, Moura”, sem nem um sinal de magoa, talvez por achar que merecesse por sua falta na palavra dada, coisa muito levada em conta, naquela época e talvez por se submeter, como um soldado a autoridade indiscutível naquelas paragens do Comandante do Batalhão. Os dois que o estavam ouvindo, percebendo que já era hora de aliviarem as tensões e voltar tudo ao normal, falaram quase na mesma hora:
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“E você só falando “Sim “sinhô”, sim “sinhô, sim “sinhô”...”, dito isto o Dunga olhou surpreso para os dois que já começavam a rir e falou com ar de brincadeira: “Seus porcarias, então vocês estavam olhando escondido eu passar aquela apuro e nem foram me ajudar!!!”, e imediatamente os três caíram na gargalhada como bons amigos que eram e que sabiam o papel de cada um naquele mundo perdido que era a fronteira Brasil-Bolívia na década de 40. Como resultado disto tudo, foi que o Dunga manteve seu contrato de fornecimento de carne para os destacamentos e no outro dia, após este episódio, lá estava o soldado Moura, meu pai, na fazenda do Dunga, ajudando apartar o gado e se deliciando com os quitutes que sua esposa preparava e servia em sua mesa farta. Este caso que fiz questão de relatar é um dos muitos que meu pai contou e recontou sempre que pode e mostra como a vida na no Exército lá na fronteira com a Bolívia era cheia de imprevistos e como em muitas ocasiões a sua astúcia pantaneira de homem prático e destemido, sabedor dos seus deveres e cumpridor de suas obrigações, que ponderava como agir dentro do que o momento lhe oferecia, o levou no futuro a ser escolhido e ir enfrentar circunstancia bem mais adversas e ter sucesso nos campos gelados da Itália, durante a 2ª Grande Guerra, conforme relatarei mais a frente.
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“O destino é uma porta através da qual podem entrar a boa ou má sorte. Mas dessa porta tu tens a chave”. Pensamento oriental.
CAPITULO IV Quando o meu pai apresentou-se no Exército, a intenção dele era de ficar apenas o tempo normal de todo soldado, pois pretendia voltar logo para continuar a frente dos negócios do seu pai na região do Carvoal. O tempo que os soldados ficavam no exército era de um ano. Mas como nessa ocasião já tinha começado a 2ª Guerra Mundial, na Europa, com a invasão da Polônia pela Alemanha em setembro de 1939, e o Exército Brasileiro começou a reter os soldados por ocasião da baixa dos mesmos, e por esse motivo acabou ficando só no destacamento de fronteira um período de quase dois anos. Quando ele voltou do Destacamento de Fronteira para Cáceres transcorria o ano de 1942, a guerra na Europa ganhava proporções épicas, envolvendo todas as nações, mesmos as mais longínquas de alguma maneira, e a violência chegou as águas territoriais brasileiras com o afundamento de vários navios mercantes brasileiros. Durante três meses, meu pai fez o curso de cabo onde melhorou suas atividades militares e prestou exame com 81 can didatos para pre e n ch e r 11 vag as disponíveis,onde foi aprovado passando de soldado para cabo. Ficou como Cabo de Dia durante quase 4 meses, quando então já estavam começando as escalações para que fosse escolhido os 80 praças que seriam enviados para o Quartel de Campo Grande, onde de lá seguiriam para a cidade do Rio de Janeiro.
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Durante o período de escolha dos 80 praças, que iriam para a Força Expedicionária Brasileira muitas pessoas usaram influências para se livrar da tão famosa seleção. E foi o que ocorreu com um determinado cabo que era parente de um oficial que conseguiu ser excluído da lista. Sendo então necessária a escolha de mais um cabo para compor o contingente. O meu pai, o Cabo Moura, estava de serviço como Cabo da Guarda e foi designado pelo tenente Roosevelt, o Oficial de Dia para conduzir os três cabos escolhidos para a seleção médica, até o Oficial Médico. O Tenente Roosevelt recomendou ao Cabo Moura que ele também se apresentasse como um dos possíveis selecionados. Ao chegar na enfermaria do quartel encontrou o Oficial Médico já de saída para um compromisso inadiável, e ao ser informado do motivo dos cabos estarem ali e por já conhecer previamente as condições de saúde do cabo Moura, pois os outros cabos tinham chegado recentemente ao quartel de Cáceres. O médico disse então que o escolhido seria o Cabo Moura, sem nem mesmo ter feito os exames de saúde nos outros candidatos. E assim o Cabo Moura estava integrado a Força Expedicionária Brasileira que iria enfrentar os alemães nos campos da Itália. A saída da cidade de Cáceres dos 80 pracinhas, para a Corumbá, foi através da “Lancha Etrúria”, até o Porto Esperança navegando pelo Rio Paraguai, passando por Corumbá. Em Porto Esperança embarcaram no trem da linha férrea Noroeste do Brasil e seguiram até Campo Grande, onde foram submetidos aos exames médicos. Em Campo Grande fez-se a concentração dos soldados de Mato Grosso, das diversas cidades onde tinham unidades do exército, tais como Cuiabá, Cáceres, Corumbá, Aquidauana, Campo Grande e Três Lagoas. Campo Grande era a sede da 9ª Região Militar do 2º Exército Brasileiro, onde lá foram selecionados 800 homens de Mato Grosso que foram aos poucos seguindo
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de trem para a cidade de Caçapava interior do estado de São Paulo onde iniciaram os primeiros treinamentos militares. Em Caçapava foram chegando aos poucos os soldados da região Sul, Sudeste e de Mato Grosso, que se reuniram no 6º RI, onde permaneceram por um período de mais ou menos 6 meses, onde iniciaram os primeiros treinamentos objetivando os combates na Itália.Começaram os treinamentos como; manejo de armas, escavação de trincheiras, treinamentos de posição de ataque e defesa em combate, utilização de bússola, embarque e desembarque de navio, para o qual foi construído um grande navio de madeira com redes de cordas, onde os soldados treinavam como subir e descer do navio em ações de guerra. No Exército todos os soldados recebiam um soldo, mas a partir do momento em que foram convocados em Cáceres e seguiram para Campo Grande, todos os soldados deixaram de receber o soldo e passaram a receber apenas alimentação, uniforme e equipamentos, ficando com isso totalmente dependentes do que o exército fornecia e o que a família conseguia encaminhar, através dos correios e também do apoio da L.B.A(Legião Brasileira de Assistência) do Governo Federal que era comandada pela 1ª Dama Srª Darci Vargas. A L.B.A. distribuía entre os soldados: equipamentos, instrumentos musicais, matérias para lazer como jogos de baralhos, damas, xadrez etc. Com isso os pracinhas podiam se divertir formando bandas e grupos de diversas modalidades conforme encontravam os companheiros com a mesma formação cultural, como exemplo: grupos de samba, duplas caipiras,grupos nordestinos e grupos do sul do país. Em Caçapava os brasileiros convocados começaram realmente a sentir o peso da responsabilidade e a seriedade de defender com a própria vida a sua Pátria, e foi lá que eles tiveram que fazer a declaração de Bens para quem ficaria os CAPÍTULO IV
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seus pertences, caso não voltassem da guerra. Desde a saída de Mato Grosso muitos dos homens convocados desertavam com medo de participar da guerra e conforme foi se aproximando dos dias de embarque, aumentava o número de soldados que fugiam de sua responsabilidade com a pátria e se tornavam fugitivos. Por ocasião dos treinamentos nos campos vários eram os que não voltavam e quando descobertos eram severamente punidos pela falta cometida. Depois de quase seis meses de treinamentos militares os pracinhas foram transferidos para a cidade do Rio de Janeiro, onde se reuniram com o restante da tropa , que eram homens vindo de todas as cidades brasileiras,ficaram concentrados na Vila Militar na região do Morro do Capistrano, onde foram formados vários Batalhões conforme a necessidade da guerra. Quando os pracinhas de Mato Grosso chegaram no Rio de Janeiro o Capitão Roosevelt de Farias, (o mesmo Tenente Roosevelt de Cáceres, que meu pai havia servido em sua Companhia no Destacamento de Fronteira), procurou o Cabo Moura e lhe disse que a sua companhia já estava completa, mas o apresentaria ao seu amigo Capitão Covas, com a recomendação de que se tratava de uma pessoa idônea, companheira, e cumpridora dos seus deveres. A partir daí passou a integrar a 6ª Companhia do 2° Batalhão do 11º Regimento de Infantaria na qual foi para a Itália onde ficou até o fim da guerra. No Rio de janeiro realmente iniciaram os treinamentos de combate quando verificou-se a inexistência de especialistas para uma gama enorme de funções militares previstas na organização americana, fazem-se, então, convocações especiais e cursos de emergência no Centro de Instrução Especializada, para atender as necessidades da FEB. Inicia-se instruções pesadas, com objetivo de treinamentos específicos com a tropa, inclusive com “Tiro
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Real” no qual muitos soldados perderam a vida, antes mesmo do embarque para a Itália, chegando inclusive ocasiões de morrer de quatro a cinco soldados por dia, isso devido ao nervosismo pela situação ora enfrentada pelos mesmos e também devido a pouca experiência com o manuseio dos equipamentos militares. De abril a julho intensificou-se a preparação militar, realizada com uma série de restrições, inclusive por carência do material bélico com que iria combater. Foi no período em que meu pai estava no Rio De Janeiro, que durante uma manobra onde se empreendia uma caminhada de aproximadamente quarenta quilômetros com todo o equipamento de treinamento (mochila, armamento, capacete de Aço e etc), que o meu pai depois de estar em ação desde quatro horas da manhã, lá pelo horário das nove horas, começou a sentir fortes dores abdominais e logo teve quase um desmaio, provavelmente provocado pelo excesso de esforço físico devido ao forte calor da cidade do Rio De Janeiro. Percebendo o mal estar do Cabo Moura o Comandante da Companhia o aconselhou que não continuasse com a tropa e ficasse à espera do recurso médico que mais tarde passaria por ali. Foi isso que o Cabo Moura fez, porém o recurso médico não chegou ficando ali até quase o final da tarde, quando se sentindo em condições de caminhar reiniciou-a com ainda bastante dificuldades até chegar à um lugar denominado Arraial do Taquaral.Onde pode contar com a solidariedade de uma senhora que muito se emocionou devido ao seu estado, e vendo que o mesmo não tinha se alimentado, apesar do seu pouco recurso ofereceu lhe uma xícara de café e deu-lhe duas bananinhas, que foram imediatamente devoradas inclusive com a casca. O meu pai quando me contou este fato disse que poucas vezes achou um alimento tão saboroso como aquelas bananas com casca e tudo. CAPÍTULO IV
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Recuperada as energias, reiniciou a sua caminhada até que encontrou um caminhão onde o motorista lhe deu uma carona por um trecho da mata, e como já estava escuro devido ao começo da noite deu-lhe algumas orientações de como chegar a Região do “Cais 10” onde a sua Companhia estava acampada em uma praia.Quando chegou à Companhia já era de madrugada e encontrou o seu companheiro de barraca o Cabo Sólon Ferreira Sinésio enrolado no chão com a metade do tecido da barraca, pois a outra metade estava na mochila do Cabo Moura. O Cabo Sólon era um pernambucano que ficou muito amigo de meu pai dividindo barraca com o mesmo e essa amizade foi até o fim da guerra, compartilhando de muitas aventuras tristezas e provas de solidariedade entre companheiros. Durante o período de Treinamento no Morro do Capistrano aconteceram muitos fatos curiosos e vou relatar um deles que era o “ Evento dos Sacos”. Era o seguinte: os soldados recebiam os equipamentos sempre em duplicatas, ou seja, em dois sacos que eram o “Saco A e o Saco B”. O Saco A ficava com os soldados e o Saco B seguiria adiantado de navio para a Itália. Esses sacos continham todo o equipamento, vestimenta, calçados, roupa de cama, material para barraca etc. Nesse saco era gravado a identificação do soldado. Como os soldados ficavam responsáveis pela guarda dos devidos sacos até o embarque para a Itália, logo criou uma confusão onde os brasileiros, com o seu espírito brincalhão que lhes é característico, logo fizeram uma sátira para os Sacos A e B,utilizando a música de sucesso na época, a música mexicana “Rancho Grande”:
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“ Lá no Capistrano aonde nós vivíamos, Havia uma confusão de saco todo dia(bis) O saco A nós carregávamos O saco B reclamava Até que em fim Um belo dia O saco B se despedia.” A partir do momento em que os soldados já estavam incorporados nos devidos Regimentos eles passaram a receber novamente o soldo militar que na época era de aproximadamente de 260.000 mil réis (Duzentos e sessenta mil réis) e ficou estipulado que durante a Campanha da Itália cada soldado receberia três soldos, sendo que um seria enviado para a família (ou a quem o soldado determinasse), o segundo soldo seria depositado em um Fundo de Previdência (uma espécie de Caderneta de Poupança), que seria retirada na volta da Itália e o terceiro seria pago ao soldado na Itália para custear suas despesas pessoais. Também neste período foi criado o famoso distintivo da F.E.B. a cobra fumando. O distintivo era uma cobra verde com o cachimbo na boca sobre um fundo amarelo com as bordas vermelhas, onde está escrito Força Expedicionária Brasileira. Dentre as várias versões do surgimento do distintivo a mais aceita é a de que os opositores da participação das forças brasileiras na guerra, era a de que só seria possível se a cobra fumasse e dentro do espírito de jocosidade do Povo Brasileiro quando foi dada a ordem de embarque alguém disse: “Então a cobra fumou”.
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“A grandeza de um país não depende da extensão de seu território, mas do caráter do seu povo”. Colbert
CAPITULO V Embora o Brasil sempre fosse um país de paz e houvesse procurado manter-se à margem do conflito, o afundamento, no litoral do nordeste de 15 a 21 de agosto de 1942, de seis navios brasileiros, o “Beapendi”, o “Aníbal Benévolo”, o “Araraquara”, o “Itajiba”, o “Arará” e o “Jacira”, com dezenas de civis, mortos, provocou uma onda de revolta no país, mobilizando a opinião pública já claramente a favor de uma participação mais efetiva do Brasil na luta para eliminar o Nazi-Facismo. O governo brasileiro, no começo dos conflitos da 2ª Guerra Mundial era simpático aos governos do Eixo, devido a sua conotação ditatorial, porém não pode ignorar os fortes laços comerciais com os Estados Unidos, que vinha pressionando por uma tomada de posição do nosso pais, devido a sua importância geograficamente estratégica, por ter o ponto mais próximo entre as Américas e a África, e nem as agressões aos nossos navios mercantes, em 21/08/1942, Getúlio Vargas reconheceu a existência de estado de guerra entre o Brasil a e as potências Nazi-Fascistas fazendo o seguinte pronunciamento: “O nosso país não se atemoriza diante de tais brutalidades e o governo examina quais as medidas que deve tomar em face do ocorrido. Deve o povo manter-se calmo e confiante na certeza de que não ficarão impunes os crimes praticados contra a vida e os bens dos brasileiros”.
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Com o decreto de estado de guerra em todo o território nacional, as conseqüências imediatas foram a mobilização nacional, econômica e militar, o incremento das medidas de proteção ao tráfego marítimo e de defesa do nosso território, e como conseqüência principal, a criação de um instrumento militar especificamente destinado à participação direta no conflito. A mobilização e o treinamento dos soldados e oficiais para a campanha na Itália foram tarefas complexas. Desde problemas de saúde dos recrutas como a dificuldade de encontrar homens com vinte e seis dentes na boca, até a crítica necessidade de equipamento moderno, que ia de uniformes para o combate no inverno italiano até veículo de todos os tipos, passando por sérios problemas de organização administrativa, o caminho até o primeiro embarque das tropas foi bastante longo. Por isso somente em 9/08/43 que se estabeleceu as primeiras normas gerais de estruturação da 1 ª DIE, e no mesmo dia o General João Eurico Gaspar Dutra convidou o General de Divisão João Baptista Mascarenhas de Moraes para comandá-la.. A participação tornou- se mais efetiva com a decisão de enviar à Itália um Corpo de Expedicionários constituído de três Divisões de Exército. Mas apenas em julho de 1944 é que as forças brasileiras partiram para a luta.O final da guerra em maio de 1945, impediu que a 2ª e 3ª Divisões fossem se juntar na Itália à 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE), o contingente de brasileiros que lutara, como integrante do 5° Exército americano ao lado dos soldados americanos, ingleses e sul africanos. O Brasil foi o único país da América Latina que participou diretamente da Segunda Guerra Mundial. A força Expedicionária brasileira permaneceu na Itália cerca de 11 meses, dos quais oito meses na frente de luta, em contato permanente com o inimigo.
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Com um efetivo de 25.334 homens, a FEB participou ativamente das operações de guerra comandada pelo General de Divisão João Batista Mascarenhas de Moraes. Compôs-se a FEB de um Comando, uma Divisão de Infantaria, um depósito de Pessoal e pequenas organizações de Justiça e Serviço de Saúde. No seu conjunto, a 1ª DIE se compunha do 1º Regimento de Infantaria (O Sampaio), do Rio de Janeiro, do 6º Regimento de Infantaria da cidade de Caçapava, o 11º Regimento de São João Del Rei, de 04 Grupos de Artilharia, do 9º Batalhão de Engenharia da cidade de Aquidauna de Mato Grosso, de um Esquadrão de Reconhecimento (Cavalaria), do 1º Batalhão de Saúde, organizado na cidade de Valença, ao qual estiveram integrados cerca de 100 médicos e 67 enfermeiras, além das tropas especiais e de corpos auxiliares, Serviço Religioso e contingentes de ligação de Intendência. O efetivo da FEB deslocou-se para o Teatro de Operações em navios de transporte de tropa da Marinha Norte Americana, em cinco escalões sucessivos, todos eles cruzaram o oceano Atlântico e penetraram no Mar Mediterrâneo protegidos por poderosas escoltas aéro-navais em vista dos perigos da ativa guerra submarina desenvolvida pelos alemães e italianos. O embarque do 1º Escalão da FEB partiria levando saudades de mães, esposas, pais e irmãos para o front no dia 02/07/1944. Depois de um período de preparação seguido de trinta e seis horas de angustia despistando o inimigo, o grande navio americano General Mann, de 36.000 ton, com 6000 soldados, cruzava a barra do Rio de Janeiro em direção à Itália. Neste momento ainda repercutia a voz do Chefe da Nação através dos autos falantes de bordo: “Soldados da Força Expedicionária, o chefe do governo veio trazer-vos uma palavra de despedida em nome de toda a nação brasileira. Sei quanto nos custa, a todos, este momento transcendente em que vos separais dos vossos lares, do calor e do carinho dos entes CAPÍTULO V
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amados. O destino vos escolheu para a missão histórica de fazer tremula,r nos campos de luta, o pavilhão auriverde e responder com a presença do Brasil as ofensas e humilhações que tentariam nos impor. “ Dedicai-vos de corpo e alma à vossa gloriosa missão. A nação vos seguirá com pensamento ungido pelas mais fervorosas preces à Deus, certa de que a vitória será o apanágio de vossas armas. O governo não se descuidará um instante, no desvelo pelas vossas famílias. Estejais tranqüilos. È com emoção que vos deixo os meus votos de pleno êxito. Não é um adeus.É, antes, um até breve, quando ouvireis a palavra da Pátria agradecida.” O meu pai, que fazia parte do 11º R.I, só seguiria para a Itália no 2º Escalão, que foi em uma tarde do dia 20 de setembro de 1944 transportado pelo Navio americano General Meigs 116 . O 3º Escalão embarcou em 22/09/44 novamente no navio General Mann, o 4º Escalão embarcou em 23/11/44, o 5º Escalão que foi o último foi em 08/02/45. Somente na Itália puderam os três grupamentos táticos da 1ªDIE receber o equipamento bélico com que iriam lutar e realizar seu adestramento final. O navio General Meigs era um navio muito grande que tinha inclusive um salão de bar onde os soldados podiam se divertir jogando cartas, cantando, tocando alguns instrumentos musicais. Alguns usavam seu tempo para ler manuais técnicos do seu novo equipamento e tentar aprender algo do inglês e do italiano. Apesar de tentarem algum modo de descontração, todos estavam preocupados com a grande missão que tinham que enfrentar pela frente, além do perigo constante e real de um possível ataque dos perigosos submarinos alemães, apesar dos navios serem protegidos por uma frota de navios de guerra, tais como couraçados e cruzadores, além de um grande balão dirigível (tipo “zepelim”) que ficava várias horas sobre o navio, com a finalidade de protegê-los de possíveis ataques aéreos.
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A viagem que durou 16 dias e 16 noites atravessando o Oceano Atlântico, contornando a costa da África, passando pelo Estreito de Gibraltar, entrando no Mar Mediterrâneo, até Chegar na Cidade de Nápoles, foi extremamente difícil e desconfortável, os Pracinhas dormiam em beliches de lona empilhados como artigos em uma prateleira. Os compartimentos em que ficavam os beliches eram muito quentes, e fazia com que todos suassem muito, apesar de ter um sistema de ventilação e renovação do ar. Mesmo assim ao Pracinhas puderam observar as belezas do mar, as novidades de bordo, o balanço lento do navio, os coletes salva vidas e as brincadeiras foram entrando para rotina do cotidiano. As refeições, duas por dia, os treinamentos do desembarque de emergência, as longas e constantes filas, as bombas de profundidades lançadas afugentando os submarinos que rondavam o comboio, as eventuais subidas ao convés para o sol e ar fresco, mantinham a tropa ocupada com moral elevada, embora o medo de torpedeamento eminente fossem os companheiros de todos os momentos. Estes dias de viagem fundiram na personalidade dos pracinhas o sentimento do dever. Quando chegaram em Nápoles em 06 de outubro de 1944, os soldados do 1º Escalão que tinham vindo primeiro já haviam partido para a frente de Combate. De Nápoles os pracinhas foram transportados até a cidade de Livorno, que fica ao norte da Itália, em barcaças de guerra modelo 55 LCI, que eram embarcações de desembarque adequadas a operações de invasão, que haviam sido utilizadas no desembarque nas praias de Anzio, quando da invasão do território italiano pelas tropas aliadas. Essa viagem foi extremamente penosa para os brasileiros devido a forte tormenta, que causou fortes enjôos em quase a totalidade dos soldados, também teria levantado a suspeita nos serviços de informações alemães de que se tratasse de uma nova operação de desembarque, destinada CAPÍTULO V
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ao sul da França ou o mesmo ao golfo de Gênova, tal a envergadura da operação. Essas barcaças tinham capacidade para mais ou menos quarenta homens. Ao chegar em Livorno, tudo para os pracinhas era diferente: o clima, as paisagens, o povo, a língua, as comidas e os costumes daquela gente. A cidade já se encontrava quase totalmente em ruína, devido aos fortes bombardeios sofridos na expulsão dos alemães do local. A grande dificuldade do Pracinha foi adaptar-se ao frio rigoroso, pois chegaram à Itália no outono e combateram durante todo o inverno. Apesar do equipamento americano ser de ótima qualidade, com todo um aparato de roupas para resistir ao frio intenso da Itália, tais como luvas revestidas interiormente com peles de animais, roupas de lã, para usar embaixo do fardamento, capote com capuz em pelo branco, (para que os soldados quando em combate pudessem ser confundidos com a neve), meias de lã especiais, botas e galochas impermeáveis para resistir a umidade das trincheiras, houve muitos casos de congelamento dos pés, às vezes com necessidade de amputação dos dedos, ou seja, os famosos “pés de trincheiras”. A grande surpresa dos pracinhas foi a fartura de suprimentos fornecidos pelos americanos. Desde a abundancia de gasolina para os veículos até a grande quantidade de rações e cigarros que os soldados usavam como moeda de troca com a miserável população italiana, além do desprezo dos americanos pelos armamentos e munições. Enquanto no Brasil, nas instruções militares, o soldado era obrigado a catar inclusive as cascas de munições usadas nos treinamentos, os americanos diziam: “Usem tudo o que for necessário para desempenharem cada vez melhor a sua missão, pois temos milhares de fábricas construindo armas e munições na América, enquanto que um soldado demora pelo menos dezoito anos para se fazer um”.
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Com isso mudaram as táticas de treinamentos, e as preocupações passaram a ser com as aplicações das normas de combate e não muito com a manutenção dos equipamentos. Todos os dias os soldados recebiam com bastante fartura, barras de chocolates, queijos, café solúvel, açúcar, sucos de frutas variadas, cigarros, fósforo além de equipamento para diversão: como baralhos jogos etc. Quando os pracinhas estavam em campo de batalha, o frio era tão intenso que a neve cobria tudo, congelava a água dos cantis e obrigava os pracinhas a vestirem varias peças de roupas, uma por cima da outra. Nos calçados não cabiam as meias que eram obrigados a calçar, felizmente receberam as galochas muito boas e muitos abandonaram os combat-but (cuturno) e colocaram capim seco ou papel de jornal nas galochas e passaram a usa-las com as meias necessárias ao aquecimento dos pés. Os tabletes de chocolate que recebiam eram reunidos e dissolvidos para serem servidos quentes quando retornavam das missões. Chegavam a ficar até quase mês sem tomarem banho e só o faziam quando substituíam a linha de frente, pois só então tinham condições de cuidar da parte da higiene pessoal, como cortar as unhas, cabelo, fazer a barba e tomar um bom banho com trocas de roupa. Quando algum pracinha era ferido, o Comandante de linha de frente, enviava uma listagem com os nomes dos que tinham sido feridos em combate, e do material que estavam precisando para o Comandante de Retaguarda. Chegando em Livorno, os Pracinhas foram transportados até a cidade de Pizza, onde ficaram acampados no “Campo do Príncipe” próximo da tão afamada Torre de Pizza. Nesta ocasião o Cabo Moura ficou encarregado da guarda de um setor de acampamento por onde passava uma estrada que levava à igreja ao lado da torre inclinada. Um certo dia um dos soldados que fazia a guarda na estrada foi procurar o Cabo Moura, avisando que duas CAPÍTULO V
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freiras e um seminarista queriam passar pela estrada que atravessava o acampamento, coisa que era expressamente proibida por motivo de segurança. O Cabo Moura juntamente com o soldado foram ao encontro daquelas pessoas e, qual não foi a sua surpresa quando as freiras se identificaram como brasileiras, e em bom português explicaram que não puderam retornar ao Brasil devido o advento da guerra, e que necessitavam realmente de irem até a Igreja para resolverem assuntos relativos ao convento e que estavam acompanhados de um jovem seminarista por motivo de segurança. Apesar da proibição, mas com os insistentes argumentos das freiras e o fato de serem brasileiras levou o meu pai, apesar de muito relutante, ceder aos seus pedidos e depois de dar várias recomendações e marcar a hora da volta, pedindo a elas e ao rapaz que não esquecesse seu nome, caso tivessem dificuldades ao voltar. As freiras foram liberadas para irem à Igreja, passado algum tempo elas juntamente com o seminarista voltaram no horário combinado e o meu pai nunca mais teve nenhum contato com os mesmos. Este fato não teria nada demais a não ser das freiras serem brasileiras, e ficaria esquecido no tempo, não fosse o que veio a acontecer nas comemorações dos 80 anos de vida do meu pai em 12/08/200. Ocorre que para a celebração da Missa de Ação de Graças que fazia parte dos festejos do aniversário, foi solicitada a Irmã Odila, que é afilhada dos meus pais, para que providenciasse um sacerdote para a celebração da Eucaristia. No dia da festa ao encontrar com a sua afilhada, o meu pai lembrou deste fato ocorrido em Pizza a tantos anos atrás. Após a celebração da missa o sacerdote pediu que gostaria de falar com o meu pai em particular e lhe fez a seguinte pergunta:
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“O senhor é realmente o Cabo Moura que atendeu o pedido das duas freiras brasileiras e do seminarista naquela tarde no Campo do Príncipe no caminho da Igreja da Torre de Pizza ?” Depois de detalhar coisas que somente quem presenciou o evento há tanto tempo ocorrido o sacerdote abraçou o meu pai e emocionado disse: “Eu era o rapaz seminarista que acompanhava as duas freiras aquele dia, e por uma feliz coincidência vim ter o prazer de celebrar a missa do seu 80º Aniversário. Coisas como esta só Deus Nosso Senhor pode explicar”. Mostrando que a guerra separa pessoas, mas muitas vezes deixam rastros que fazem as pessoas se encontrarem e uma coisa que não teria nenhuma importância, passa a ser um fato inusitado dando um sabor especial ao que poderia ser uma, simples comemoração de um aniversário. Durante o período em que os pracinhas estavam na Itália, eles recebiam a orientação religiosa de vários capelães muitas vezes, celebravam missas, davam conselhos, auxílios para que eles não se abatessem diante dos horrores da guerra, como também davam extrema unção aqueles que infelizmente encontravam a morte nos campos da Itália. Um dos capelães que mais estava presente era o Frei Orlando, morto em um ataque dos alemães em uma estrada quando justamente voltava de uma dessas celebrações. Quando os pracinhas chegaram na Itália muitos deles que moravam em cidades do interior do Brasil, ficaram quase sem contato com os seus familiares diante da dificuldade dos correios localizarem seus endereços, então a senhora Darcy Vargas, esposa do Presidente da República Getúlio Vargas , por intermédio da Legião Brasileira de Assistência (L.B.A.) procurou informar dentro dos Regimentos, quais os pracinhas que tinham dificuldade de contato com seus familiares . CAPÍTULO V
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Com a listagem, desses nomes foi organizado no Brasil várias reuniões com senhoras e jovens da sociedade do Rio de Janeiro, formando uma rede de voluntárias, para que elas fossem madrinhas dos pracinhas na Itália. O papel da madrinha era o seguinte, que cada uma ficava com a responsabilidade de fazer com que as correspondências de seus respectivos afilhados chegassem até seus familiares e vice versa. A importância dela era muito grande, pois, a espera pela entrega das correspondências era um momento muito especial, gerando tanta expectativa que quando se ouvia a frase: “Chegou o correio” mobilizava mais gente que qualquer ordem de general aliado ou inimigo, e aqueles que não recebiam nada, sentiam-se abandonados como se estivesse em uma ilha deserta, quando vinham os companheiros lhes mostrar fotografias ou ler trechos das cartas que recebiam. A madrinha do meu pai era a jovem Lúcia da Costa, do bairro de Cascadura da Cidade do Rio de Janeiro. Ela tinha naquela época apenas 13 anos de idade, apesar da pouca idade ela escreveu várias cartas ao meu pai sempre enaltecendo a importância dos pracinhas na Itália. Tendo a Lúcia como sua madrinha, meu pai pode enviar o endereço dos seus pais que moravam em uma localidade de Carvoal, no município de Nossa Senhora de Livramento, próximo da cidade de Poconé. As correspondências eram enviadas até o endereço do Sr. Justino Francisco da Silva, amigo do meu avô Pedro, em Poconé, que fazia chegar o mais rápido possível até o endereço dos seus pais. Da mesma forma meus avôs escreviam suas cartas, endereçadas a jovem Lúcia, que através dos serviços de correio do exército chegavam as mãos de meu pai onde quer que estivesse nos campos da Itália.
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As correspondências dos pracinhas quando chegavam no Rio de Janeiro, eram abertas pelo Exército, e o que era considerado informações sigilosas era imediatamente censuradas, ou seja, era retirada parte da correspondência. Muitas vezes as correspondências chegava até os seus familiares com a seguinte tarja “Aberto pela Censura”. O meu pai disse que por muitas vezes as cartas dos seus pais eram tão censuradas que quando chegava em suas mãos era possível ler apenas a parte final da carta com os dizeres “Abraços e Benções dos seus Pais”. Quase todos os Pracinhas, para tentar acalmar os seus temores, recorriam aos seus santos de devoção, orações e amuletos, aos quais buscavam apoio nas horas de aflição. Meu pai, como todo bom pantaneiro, tinha suas orações para estes momentos, com a qual se dirigia a seu querido Santo Antônio e São Benedito, e um crucifixo de madeira com o Cristo confeccionado em metal, adquirido em uma quermesse no Bairro do Porto, em Cuiabá, quando ainda era recruta no quartel do 16° BC. O tal crucifixo foi bento pelo pároco da igreja de São Gonçalo do Porto, e meu pai o manteve junto ao seu peito desde o dia que saiu do Brasil até o dia da sua volta. Meu pai credita a este fato a manutenção de sua vida por toda a passagem pelas batalhas da guerra e de sua vida até hoje, pois o tal crucifixo encontra-se, apesar de bastante danificado, no seu oratório, que mantém em seu quarto de dormir, junto com as imagens dos outros santos e santas, e a quem dirige suas orações diárias, rogando um pedido ou agradecendo pelas graças recebidas, que para seu entender são muitas e que não param de acontecer. Para os momentos de perigo o meu pai rezava uma oração a Santo Antônio na qual tinha fé que não seria atingido pelo inimigo, que ainda hoje usa quando se sente em dificuldades. Esta oração foi-lhe ensinada por seu pai, meu CAPÍTULO V
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avô Pedro, quando ainda era um menino. Meu avô dizia que havia aprendido a tal oração de um velho pantaneiro na região de Mimoso, em tempos imemoriais. Esta oração deve ser dita com toda a fé, e depois de dita a pessoa não deve se esconder do perigo e sim ficar onde está, acreditando que o mesmo não o vai atingir, pois se acredita que ela faz a pessoa ser confundida com a paisagem do ambiente em que ela está, pois Santo Antonio protege a quem tem fé no seu poder de livra-lo do perigo e não quem foge dele. Segundo meu pai ela é assim: “Bem Aventurado Meu Padre Santo Antônio, pelos poderes e forças que vós tivestes de abrandar o ferror do Rei e a ira da justiça, assim vos peço. Meu Padre Santo Antônio, que abrandai os poderes e a raiva dos meus inimigos. (neste momento fala-se o nome da pessoa ou coisa que lhe esta ameaçando) Se virem até a mim, virão tão mansos, cordeiros e pacíficos, assim como o Nosso Senhor Jesus Cristo andou de Jerusalém a Belém. O velo que foi envolto o seu Santíssimo Filho, com ele quero ser coberto para que não seja visto pelos meus inimigos (neste momento repete-se o nome do que lhe está ameaçando). Já que eu seja visto, meu Padre Santo Antônio, peço pela alma de vosso pai, da vossa mãe e de vossa madrinha Santa Catarina, que abrandai os poderes e ira dos meus inimigos. Ficarão mansos, cordeiros e pacíficos como a sola do meu pé esquerdo (neste momento, bater o pé esquerdo no chão).
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Se tiver armas, não me levantarão. Se tiver pernas, não me alcançarão. Se tiver olhos, não me enxergarão. Eu serei visível e invisível aos meus inimigos.Amém.”
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“ O herói é herói em todos os sentidos e modos, em primeiro lugar no coração e na alma”. Anônimo
CAPITULO VI Desde que me entendi por gente eu escuto meu pai relatar as suas aventuras na 2ª Guerra Mundial, e devido a sua memória prodigiosa e sua maneira característica de contar seus “causos”, para cada batalha, cada passagem interessante, cada apuro, sempre tinha um fato especial a ser contado, e ele o faz sempre com muito prazer. Através de seus relatos tenho em meu imaginário cada paisagem, situações, até uma certa idéia da fisionomia de seus companheiros de combate. Meu pai sempre soube transmitir com bastante detalhes os sentimentos reais que um soldado sente ao estar na frente de combate, onde suas crenças religiosas são colocadas em cheque, por exemplo a situação de ter que matar um semelhante, quando sempre foi ensinado a não fazê-lo. Saber que seus companheiros e grandes amigos, podem estar mortos antes do dia se findar, e estar preparado para isto a todo momento. Saber que ele próprio pode vir a ser morto a qualquer momento. Isto misturado a clima totalmente adverso, alimentação totalmente diferente, a língua totalmente diferente, os costumes totalmente diferentes, pois mesmo seus companheiros vinham de locais variados deste nosso imenso Brasil, com costumes, culturas e sotaques estranhos a um mato-grossense pantaneiro que nunca havia ausentado da sua região natal. Em seus “causos”, meu pai, o Cabo Moura, contou fatos que não são citados nas histórias oficiais, tais como: ao chegar no campo de batalha o pracinha brasileiro se deparou CAPÍTULO VI
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com um armamento novo, fornecido pelos americanos, que era muito melhor que o utilizado pelo Exército Brasileiro, porém muito inferior ao utilizado pelos alemães. O pracinha brasileiro observou que os alemães utilizavam o fuzilmetralhadora MG-35 e MG-45, uma arma fabulosa, um prodígio da engenharia de armamentos, capaz de disparar até 1.500 tiros por minuto, enquanto o similar americano alcançava no máximo 600 tiros por minuto, e que além de ser muito eficiente, puderam observar quando conseguiram pegar uma deixada para trás pelos alemães em fuga, que era extremamente simples no manejo e manutenção. Descobriram, também, ao ver o resultado da descoberta em seus companheiros abatidos, que a terrível arma, com aquela cadencia de tiro, era capaz de dividir um homem ao meio. O pracinha brasileiro, dentro de sua capacidade de brincar com as adversidades, logo lhe deram um apelido, e passaram a chamá-la de “Lurdinha”, provavelmente em homenagem a alguma namorada deixada no Brasil, que tinha a característica de falar rápido e com a língua afiada. Observaram, também, que os alemães, ao se retirarem, deixaram para traz muitas destas armas, juntamente com farta munição. A partir daí todo soldado brasileiro que conseguia achar uma “Lurdinha”, abandonava o equipamento recebido dos americanos e adotava o equipamento alemão, pois achavam que teriam mais chance de enfrentar o inimigo fazendo-o experimentar seu próprio remédio. Segundo meu pai, os resultados foram tão bons, que o Comando fez vista grossa a transgressão e quando chegaram ao norte da Itália quase todos estavam usando a metralhadora alemã, inclusive ele. Outro caso que meu pai sempre contou foi a respeito do carinho do povo italiano para com os brasileiros, que consideravam como seus libertadores, livrando-os dos brutais alemães. Conta ele que em uma ocasião, em pleno inverno de 1.944, com temperaturas abaixo de zero, seu
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pelotão ficou estacionado em uma casa de pedra, em uma posição estratégica. O local em que lhe foi determinado a se posicionar era justamente o estábulo que existia na casa, onde ficava uma vaca leiteira, que apesar dos perigos de ser atingida por algum projétil ou explosivo, continuava no seu lugar de costume. E o mais impressionante, também o seu dono, um italiano de nome Bruno, um senhor de meia idade, continuava no local, apesar de todo o perigo eminente, e segundo meu pai, ordenhava a vaca todos os dias, distribuindo para os soldados que estavam no local. O Cabo Moura, acostumado com os trabalhos do campo, admirava a dedicação do italiano com sua única vaca, cuidando da mesma com o maior carinho e dizendo que era a única coisa que lhe havia sobrado, naquela loucura da guerra, e todo dia a cobria com um cobertor, para protegê-la do frio, e ela obediente aceitava o carinho, passando a noite toda com a coberta nas costas, contra todo o conhecimento de meu pai, que sabia por experiência própria que uma vaca brasileira jamais aceitaria uma coberta em suas costas sem tentar retirá-la. Outro fato contado pelo Cabo Moura é a solução encontrada pelos pracinhas para conduzir os prisioneiros alemães até os campos de prisioneiros, na retaguarda. Toda vez que se aprisionava um certo numero de soldados alemães, vinha o sufoco de ter de conduzi-los em segurança até a tropa da retaguarda, responsáveis pela sua guarda. Esta tarefa era sempre um pesadelo para quem tinha de cumpri-la, pois os alemães eram, geralmente, homens de grande estatura, sem contar a sua experiência de anos de guerra e uma certa falta de respeito à aqueles homens morenos e franzinos, a maioria dos soldados brasileiros. Havia, também o fato de nunca poder se dispensar muitos homens da linha de frente para estas missões. Então surgiu entre os pracinhas um problema, que tinham que resolver, sem arriscar suas vidas e sem ter que atirar em prisioneiros, rebelados, porém CAPÍTULO VI
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desarmados, criando uma questão de difícil solução. Mas, o jeitinho brasileiro prevaleceu, um povo acostumado a resolver suas questões com bom humor e criatividade, não ia se deixar abater com uma questão destas. Não se sabe quem ou quando, o fato é que alguém teve a brilhante idéia de simplesmente arrancar todos os botões da calça dos soldados prisioneiros, obrigando-o a segurá-la com as mãos para não deixá-la cair ao chão, impedindo-o de correr, pois bem se sabe que correr segurando as calças é impossível e com ela arriada, mais ainda. Uma solução simples para uma situação complicada. Isto poupou muitas vidas, tanto dos soldados alemães, já derrotados em fim de guerra, como de nossos queridos pracinha, empenhados em tão espinhosa missão. E, dentro desta presença de espírito brasileiro, acostumados a enfrentar as adversidades com bom humor, aproveitando todas as chances para se divertir, reunindo nas horas de trégua, para cantar, tocar violão, jogar baralho em divertidas partidas de sete e meio, é que o pracinha enfrentou as inúmeras batalhas nesta Campanha da Itália, e algumas delas, as mais importantes, relataremos abaixo, sempre posicionando onde estava meu pai, e os principais casos que ele me contou relativas a elas, seus problemas, suas inseguranças, seus medos, suas determinações, enfim seu heroísmo, contestado pelo mesmo que sempre diz: “Que herói, que nada, só eu sei do medo que passei, sentia meu coração bater em todo os lugares do corpo, do pé a cabeça, porém nunca me acovardei, e sempre fui em frente, tentando defender minha vida e sair vivo dali, apoiando e sendo apoiado pelos meus companheiros, obedecendo ordens de nossos comandantes e contando com a sorte de não ser atingido pelo fogo inimigo, usando a experiência aprendida na ação anterior e adquirindo experiência para a próxima . Na guerra você só tem três opções: enfrentar,
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acovardar ou ficar louco, como não acovardei, nem fiquei louco, enfrentei”.
MONTE CASTELO “È a vitória do valor moral, da tenacidade e da constância dos nossos pracinhas, vingando quatro tentativas fracassadas e quebrando o“tabu” do que já parecia impossível. A conquista do Monte Castelo passou a ser então uma questão de brio nacional.” Como acontece com toda a unidade combatente, a história da FEB na Campanha da Itália, está repleta de datas gloriosas e amargas. Entre as datas mais importantes da Campanha, há que se ressaltar a tomada de Monte Castelo, que se destacava pela sua posição estratégica. Do alto de suas grimpas, a divisão alemã tinha os olhos sobre os pracinhas acuados lá embaixo. Não fosse ele dominado seria impossível as forças do 4º Corpo do Exército Americano prosseguir a marcha em direção à Bolonha, objetivo das forças aliadas na Itália, pretendiam atingir antes de cair as primeiras neves do inverno próximo. Cabia assim aos brasileiros, naquele fim de outono e em todo inverno a responsabilidade de defender e dominar o setor talvez mais ingrato de toda a frente apenina. Para cumprir tal missão, a FEB, tropa ainda novata e mal treinada teria muito à aprender. Mas o tempo era curto e as ordens eram expressa: Bolonha teria que ser conquistada antes do Natal, e para isso Monte Castelo teria de ser removido do caminho das forças aliadas. A primeira tentativa de conquista foi feita nos dias 24 e 25 de novembro de 1944 da qual participaram o Esquadrão de reconhecimento e o 3º Batalhão do 6º RI da FEB juntamente com a Task-Force 45 americana, comandada pelo General de Brigada Paul-Rutledge, do Exército Americano, não conseguindo manter as posições CAPÍTULO VI
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conquistadas pois foram contactados por soldados alemães e tiveram que recuar ficando apenas o Monte Belvedere como resultado desta tentativa. O Cabo Moura por pertencer a outro Regimento não participou deste frustrado ataque, ficando seu Regimento na reserva, para ser utilizado em caso de necessidade. No dia 29/11/44 agora comandado pelo General Zenóbio da Costa, Comandante da infantaria Divisionária da FEB foi realizado o 2º assalto a Monte Castelo sendo este de total responsabilidade dos brasileiros contando apenas com a ajuda de 3 pelotões de Tanque americanos. Neste ataque participaram Batalhões do 1º, 6º e 11º RI ao qual pertencia o Cabo Moura, sendo que daí para frente iria participar ativamente de todos os outros ataques, até a conquista do tão afamado objetivo. Um lamentável imprevisto ocorreu na véspera deste ataque pois na noite do dia 28, um inesperado e fulminante contra ataque alemão, retomou o Monte Belvedere, Deixando `a descoberto o Flanco esquerdo das forças brasileiras e com as condições de tempo piores possíveis: chuva, céu encoberto, frio e muita lama, dificultou a participação do apoio aéreo e reduziu ao mínimo a ajuda dos tanques americanos. O ataque iniciou no começo da manhã e até o meio dia parecia que iriam conseguir o êxito da missão. Mas o contra ataque alemão e suas posições privilegiadas fizeram com que os brasileiros voltassem as posições de onde tinham iniciado os ataques. Diante do insucesso do 2º ataque e da real importância da conquista do Monte Castelo, foi determinada a 3ª tentativa de conquistá-la, no dia 12/12/44 às 6:30 horas os expedicionários brasileiros iniciaram o assalto às posições alemães, porém, voltaram a se conjugar os mesmos fatores negativos que haviam frustrado as tentativas anteriores: o céu fechado para os aviões, o frio intenso, a chuva
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persistente o lamaçal escorregadio que transformava a área em terra de ninguém impedindo a progressão dos tanques, mesmo assim as vanguardas brasileiras conseguiram chegar além da metade do caminho que levava à Monte Castelo. Este ataque de 12 de Dezembro foi o mais difícil e cruento de toda a Campanha na Itália, onde houve o tombamento de mais de 150 homens do Exército Brasileiro, sendo que mais de 20 pracinhas ficariam no local sem poderem ser resgatados e seus cadáveres enrijecidos pelo frio e só foram retirados no dia 22/02/1945, depois da conquista do Monte Castelo. Esta data de 12//12/1944 arraigou ainda mais no General Mascarenhas a convicção de que a Conquista de Monte Castelo, era uma questão de honra para os brasileiros. Os alemães de Monte Castelo teriam de ser derrotados de qualquer maneira pelos pracinhas. Enquanto isto o inverno começou a estender seu lençol branco por toda a frente italiana, sendo o mais rigoroso nos últimos cinqüenta anos, chegando `a temperatura de 10, 15 e até 19 graus negativos. Para os brasileiros aquele mar branco e gelado a sua frente era um novo e desconhecido inimigo a enfrentar e foi, portanto, com alívio a até com alegria que os pracinhas receberam a notícia de que o Comando do 5º Exército Americano havia voltado atrás na sua decisão de chegar Bolonha antes do Natal. Houve então uma trégua branca onde os dois lados se limitaram a operação de Patrulhas e duelos de Artilharia entre aliados e alemães, durante dois meses e 10 dias deu-se o compasso de espera na frente italiana só interrompida no dia 19 de fevereiro data estabelecida pelo comando para reiniciar as ofensivas contra o inimigo idealizado. Neste período foi dada a ordem de ferrar terreno, ou seja, construir trincheiras e conservar a posição já conquistada, não avançando, porém não recuando, e meu pai, o Cabo Moura relata fatos onde mostra a capacidade de adaptação e astúcia do soldado brasileiro, acostumado as CAPÍTULO VI
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lides de campo e de caçadas, usando estas experiências para se safar das tentativas de avanço alemão, principalmente através de patrulhas exploratórias, que visavam localizar posições dos aliados para posteriormente serem castigadas pela precisa artilharia alemã, que os fustigou durante todo o impasse do inverno. Uma destas estratégias era de amarrar latas, pedaços de ferro e cartuchos metálicos de varias armas, tais como metralhadora e canhões de pequeno porte e espalhá-los pela vegetação à frente das trincheiras, de modo que qualquer toque fazia com que os metais tilintasse e denunciasse a presença do inimigo. Segundo meu pai, esta estratégia surtiu efeito e por várias vezes frustraram o elemento surpresa tentado pelo inimigo, que foi recebido com intenso fogo de metralhadoras e granadas todas as vezes que tentou avançar. Em uma certa ocasião, a posição nas trincheiras em que meu pai estava localizado era a mais avançada em direção ao inimigo, sendo que por isto foi escolhida para ser visitada por vários elementos do estado maior do comando da FEB, inclusive pelo General Macarenhas de Moraes. Quando os mesmos ali chegaram para o reconhecimento, os alemães informados pelos seus espiões, desfecharam um intenso fogo de artilharia sobre o local, sendo que todos, inclusive o Comandante, teve que buscar abrigo nas mesmas condições dos pracinhas que ali estavam defendendo o lugar. Por um milagre, ninguém foi atingido, e mostrou que as instalações construídas pelos soldados eram de boa qualidade, dando uma certa segurança aos mesmos, mesmo num ataque tão intenso como foi aquele. Meu pai se disse impressionado com a calma do seu Comandante, que em nenhum momento entrou em pânico, mostrando aos seus comandados uma coragem de alguém determinado a cumprir a sua grande missão, porém, entre os que estavam acompanhando o General havia um certo
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Sargento, ajudante de ordens, cujo nome não revelaremos, por ética, que serviu com o Cabo Moura em Cáceres, e que tinha fama de ser muito durão entre os recrutas aos quais dava instruções militares, usando as vezes de atitudes agressivas que causava medo e respeito aos seus comandados, porém, naquele momento de perigo real, se mostrou extremamente medroso, não conseguindo conter suas emoções, apresentava um rosto desfigurado, corpo trêmulo e segundo meu pai, seu grande bigode, que sempre lhe impôs um aspecto de pessoa brava e severa, tremia tanto que mal conseguia falar, e ao ver o Cabo Moura, seu velho conhecido, e que teria que continuar lá depois de seu regresso para a segurança do Quartel General, balbuciando lhe confessou: “É, Moura, não sei como que você agüenta ficar tão calmo em uma situação tão perigosa, eu não tenho sangue frio suficiente para suportar isto, é melhor eu voltar para a retaguarda, onde sou mais útil”. Para meu pai, aquela situação de perigo era uma constante, pois durante todo o inverno os alemães não deram trégua, martelando as posições aliadas constantemente, e com uma precisão terrível, um mínimo vacilo que pudesse denunciar a sua posição, tais como um som mais forte, uma fumaça ou luz, logo era premiado com uma salva de morteiros, que invariavelmente caiam bem perto quando não acertava e levava preciosas vidas de companheiros descuidados. Uma pessoa como o tal sargento, realmente era melhor aproveitado na retaguarda, levando e trazendo recados dos comandantes, pois não tinha fibra para encarar a linha de frente, e logo enlouqueceria, ou faria alguma besteira que fatalmente levaria à morte a si e a seus companheiros, como algumas vezes aconteceu realmente. CAPÍTULO VI
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Durante esse período foi idealizado pelos comandantes do 4º Exército Americano do qual fazia parte a FEB um plano, chamado “Encore” com objetivo de desalojar a frente alemã para o Norte da Itália. Neste plano o papel dos brasileiros mais uma vez foi o de conquistar o Monte Castelo, sendo que desta vez prevaleceu as idéias que o General Mascarenhas sempre defendera, usar toda a Divisão brasileira ou seja os três Regimentos de Infantaria ( 1º, 6º e 11º) e a artilharia Divisionária bem como o apoio de tanque do Exército americano. Devia-se levar em conta que no período do impasse do inverno o exército alemão reforçou suas defesas ficando mais difícil ainda a sua conquista. No dia 20/02/45 as tropas brasileiras colocaram-se em posição de combate, com os três Regimentos da Divisão, prontos para convergir na direção de Monte Castelo. À esquerda dessas forças, a 10ª Divisão de Montanha americana experimentada tropa de elite devia apoderar-se do Monte Dell Torracia, garantindo assim, o flanco mais vulnerável do setor defendido pelos brasileiros. No dia 21/02//45 às 6:00horas da manhã teve início o ataque ao Monte Castelo. A estratégia do General Mascarenhas de Moraes, segundo observou o Cabo Moura, foi de colocar o 2º Batalhão do 11º RI, justamente o seu Batalhão, na parte frontal do Monte Castelo atraindo para si a atenção e a artilharia alemã enquanto o 1º e 6º RI seguiriam pelos flancos tentando surpreende-los com um ataque surpresa. Depois de inúmeras tentativas, porém com o total apoio da artilharia divisionária, tanques e finalmente o apoio aéreo, foi conseguido o intento tão esperado. Segundo o Jornalista Joel Silveira correspondente de guerra que se encontrava no Posto de Comando do General Cordeiro de Farias (da Artilharia Divisionária), as 17:30 horas daquela tarde do dia 21/02//45 escutou a voz do Tenente Coronel Franklin do 1º RI falando pelo rádio: “Estou no Cume do
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Castelo” e pedia que a artilharia hostilizasse as posições inimigas além do Monte Castelo, pois já se encontravam na Crista do afamado Monte ocupando as privilegiadas trincheiras e as formidáveis casamatas recém abandonadas pelos alemães. Estava cumprida a missão da conquista do Monte Castelo.(Pesquisado no livro Globo Expedicionário de 1985).
CASTEL NUOVO “Castel Nuovo foi o combate que o Exército Brasileiro teve a maior expressão tática, hábil manobra de isolamento do contraforte de Soprassasso e de convergência de dois ataques sobre o lugarejo.” A batalha de Castel Nuovo foi muito importante para o Cabo Moura, pois apesar de ter enfrentado perigo de morte varias vezes, foi nesta ocasião que pode senti-la verdadeiramente perto. Depois de Monte Castelo o exército alemão se encontrava em franca atividade de retirada, porém com perigosas ações de contra ataque, tentando dificultar ao máximo a ação dos soldados aliados, sendo que nesta hora os soldados alemães mostravam uma terrível eficiência, conseguida em duros cinco anos de beligerância, principalmente quando se tratava de ataques com morteiros, a mais terrível arma para um fuzileiro, pois mesmo estando dentro de uma trincheira, estes ataques vinham de cima para baixo, podendo atingir qualquer proteção, ficando o soldado, nestes momentos mais por conta da sorte de não ser o atingido do que da proteção que conseguiu no momento. Foi numa progressão contra um ponto de resistência alemã, em Castel Nuovo, que o meu pai, junto com seus companheiros de grupo de combate, Zózimo, Isidoro e Volpato, foram surpreendidos por um ataque de morteiro 81 CAPÍTULO VI
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mm, cujo projétil caiu muito perto deles, sendo que Volpato recebeu um estilhaço na mão direita, perdendo dois dedos, Zózimo foi atingido na orelha, ficando a mesma pendurada por uma pequena porção de pele, Isidoro foi atingido no braço direito, na altura do distintivo da cobra fumando, que por sorte cortou apenas músculos, sem atingir o osso e o Cabo Moura foi atingido na palma da mão esquerda. Depois do susto, e depois de certificarem que todos estavam vivos, foi dada a ordem de recuarem para receberem os cuidados médicos necessários, e depois de verificada a gravidade de cada caso foram encaminhados para o hospital de Pistóia. O hospital de campanha de Pistóia era onde todos os feridos da FEB recebiam os cuidados imediatos ao recebidos no campo de batalha, e como era de costume desde o início da participação dos pracinhas na guerra, todos os que para lá eram encaminhados não voltavam para a frente de combate, sendo que os casos mais graves eram encaminhados para hospitais de maior porte e inclusive para os Estados Unidos, quando era necessário uma intervenção mais séria, tais como próteses, por exemplo e os casos mais simples, depois de medicados eram encaminhados para a retaguarda e substituídos por outro soldado que estavam em treinamento no chamado “depósito”, que era onde ficava a reserva de contingente da FEB. No hospital de Pistóia, o Cabo Moura e seus companheiros conheceram as famosas enfermeiras brasileiras, abnegadas e corajosas mulheres que voluntariamente se apresentaram para servir a Pátria, tentando dar algum conforto aos soldados feridos em combate, e quem sabe um dos únicos motivos que levava um soldado em frente de combate ter vontade de conhecer o tão afamado hospital, pois a beleza e o carinho dispensado aos que delas precisavam corria pelas trincheiras povoando de fantasias as cabeças dos pracinhas nos momentos de
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angustias pelos quais passavam. Meu pai lá ficou por treze dias, onde recebeu os cuidados necessários, se recuperando rapidamente. Durante estes dias teve o prazer de receber a visita de dois companheiros, vizinhos de sua casa lá no Carvoal, no pantanal mato-grossense, os quais não se encontravam desde o começo das atividades na guerra, os soldados José Marcelino Vieira, o “José de Gabi” e Lício Gomes Ferreira Mendes, velhos companheiros de sua juventude, das festas de santo, do cururu, do guaraná ralado, do churrasco a beira do fogo e das duras aventuras na condução das boiadas nas paisagens do pantanal, ambos também do 11° RI, porem de outro Batalhão, que estavam de dispensa para descanso, entre uma e outra ofensiva, que juntos deram boas risadas. A lembrança daquilo tudo muito ajudou o meu pai a se recuperar do seu ferimento. Esta visita vai criar uma situação curiosa, no futuro, já no Brasil, que contarei mais a frente, quando da volta de meu pai para sua terra natal. Com sua rápida recuperação, meu pai logo se encontrou em forma, e quando já estava imaginando como seria ficar parado a espera dos acontecimentos, o Comando Geral FEB, já antevendo a proximidade do fim dos combates, tomou uma decisão de reenviar soldados recuperados novamente para a frente de combate, pois foi observado que vários homens vindos do “depósito”, por não ter a experiência de combate, apresentavam problemas de adaptação, e um soldado, como meu pai, já estando acostumado com as atividades, apresentavam melhores resultados. Assim, o Cabo Moura e seus companheiros, menos o Volpato, que perdeu os dedos da mão direita e ficou impossibilitado de combater, voltaram para suas unidades, para a alegria dos companheiros, que sempre desconfiavam de soldados sem experiência substituindo outros que já tinham passado pelo batismo de fogo, e já conheciam suas CAPÍTULO VI
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reações em combate. Por este episódio, meu pai, o Cabo Moura, por ter sido ferido em combate, recebeu a Medalha de “Cruz de Sangue”, concedida apenas para aqueles que derramaram o seu sangue pela Pátria. Este caso que será relatado agora, foi, quem sabe, o fato mais importante da participação de meu pai na guerra, e vou contá-lo em suas palavras, tentando transmitir o mais fielmente possível os acontecimentos: Era começo de abril de 1945 e havíamos finalmente transposto o tão famoso Monte Castelo. A nossa frente havia um vale que morria nas encostas de Castel Nuovo, nosso próximo objetivo, que era defendido pelos alemães com infantaria e blindados. Ao escurecer podíamos executar o ruído dos tanques inimigos ocupando ângulos mortos na encosta de Castel Nuovo para destas posições privilegiadas fazerem,fogo contra nossas linhas, fogo este que estavam realmente surtindo o efeito esperado por eles, atormentando e abatendo a nossa moral causando baixas e danos materiais na nossa tropa. A situação se agravou mais quando 1º RI , o Regimento Sampaio tentou uma investida a esta posição de uma só patrulha foram mortos 15 companheiros, justamente ao chegarem perto da localização dos tanques. Foi tentado de tudo, artilharia, bombardeio aéreo, porém, a posição alemã era realmente privilegiadas e nada surtia o efeito esperado e noite após noite éramos atormentados pelo fogo dos “ panzer” inimigo. Foi então que o comando geral resolveu levar a termo a missão da qual participei. A missão era tentar com uma patrulha de combate noturna, tomar de assalto a posição inimiga, a todo custo, pois desta missão dependia o avanço de toda tropa aliada na região. Para cumpri-la foi designado o então Ten. Bruno Wolmer, Homem de habilidade e coragem já comprovada mesmo antes de irmos para Itália, pois já havia
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participado de combates em revoluções acontecidas na década de 30 no Brasil e que tinha um conceito muito bom perante toda a tropa em campanha. A ele foi determinado que se formasse uma patrulha constituída de um pelotão e que poderia escolher os homens que quisesse dentro da nossa 6ª CIA do 11º RI, para levar a bom termo a missão. Porém o Ten Bruno disse que não achava que tivesse homens melhores que os do seu próprio pelotão, pois já vinha lutando com eles desde o Sul da Itália e nunca houve motivo para que desabonasse a sua confiança deste ou daquele e assim foi feito. O comandante de nossa companhia era o Cap. Hélio Covas Pereira, que ratificou a decisão do Ten Bruno. O Ten Bruno sabia que a missão era das mais amargas, pois os alemães não queriam perder uma posição tão preciosa como aquela e como era seu costume nos interou de toda a situação. Nosso pelotão era reforçado e pra isso havia um excesso de pessoal que deveria ser retirado para se formar um pelotão convencional nós éramos quatro cabos e só se precisaria de três, foi quando o Ten. Bruno nos disse que ia ser feito um sorteio para não ter uma maneira de proteger ou prejudicar ninguém. Foi procedido o sorteio e por duas vezes eu fiquei fora da missão, porém um dos meus companheiros me procurou dizendo se eu não queria trocar com ele, pois ele estava com gripe, e estava tossindo muito,fato este que poderia prejudicar a patrulha em uma missão noturna. Sabendo ser verdadeira as suas afirmações eu aceitei e fui procurar o Ten. Bruno para lhe comunicar que havia trocado com o companheiro e que eu iria na patrulha. O Ten. relutou em aceitar, dizendo que havia sido procedido um sorteio e deveria ir quem foi sorteado, porém quando lhe expliquei o motivo, acabou entendendo o espírito de colaboração que havia dentro de nosso pelotão. Na noite de 17 de abril recebemos as últimas CAPÍTULO VI
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instruções para cumprirmos tal missão. Éramos 40 homens assim divididos Ten. Bruno, Comandante do Pelotão, o Sargento Bento, esclarecedor do Pelotão, dois soldados das comunicações e 3 grupos de combates com doze homens cada, sendo que cada um dos grupos comandado pelos Sargentos Basileu, Otton e Gonçalves, respectivamente. A progressão através do vale foi tranqüila. A nossa frente encontrava-se um grupo de casas, sendo que uma se destacava por ser bem maior que as outras. Aos alemães se encontravam logo após o grupo de casas, o objetivo era dominar a casa maior, para dela ter apoio para o ataque sobre a posição dos alemães. Chegado ao local do assalto foram feitas as comunicações com o Cap. Covas, Comandante da Companhia, informando- o para que pudesse ser feito o fogo morteiro que antecederia o nosso assalto e enquanto aguardávamos e durante o bombardeio Ten .Bruno foi de companheiro em companheiro transmitindo as últimas ordens e levando a cada um uma palavra de apoio e de incentivo para que todos se sentissem unidos na hora da ação, dizia: Quem quiser se acovardar que se acovarde agora, pois depois que levantarmos para o ataque qualquer vacilo, que eu sentir em um de vocês não hesitarei em atirar, para que ele não atrapalhe os outros e se vocês sentirem covardia em mim façam o mesmo, pois eu também não fujo a regra. E como nunca se esquecia: “Na hora de Deus, e da Virgem Maria” dizia. Tendo a casa como objetivo nós dispomos da seguinte maneira; o meu grupo sob o comando do Sargento Basileu, à direita da casa o Grupo do Sargento Otton ao centro a do Sargento Gonçalves à esquerda cessado o fogo de morteiro foi dada a ordem de assalto e nós de baionetas caladas nos lançamos para o objetivo. Acontece que os alemães haviam progredido na posição de confronto e quando levantamos para o ataque fomos recebidos por uma
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chuva de balas e granadas que nos pegou inteiramente de surpresa. A confusão foi tanta que o pelotão se espalhou com cada um tentando se proteger como pudesse. O grupo do Otton, que ia pelo centro foi atingido em cheio pelo inimigo e neste grupo 11 soldados morreram. Nesta mistura de tiros, gritos, explosões eu me atirei em uma pequena vala junto a quina da casa grande onde eu tentava me proteger. Neste momento senti que alguém pulou sobre minhas costas, mas logo se identificou como meu companheiro, era o soldado atirador do meu grupo, o Alcides Daim, que estava armado com uma metralhadora de fita 30, eu estava armado com um fuzil com luneta, quatro granadas de mão e trazia também cruzadas no peito duas fitas de balas 30 para a metralhadora. O Alcides disse: “Cabo Moura, a situação não está boa, ouça os gritos dos companheiros, acho que acertaram muitos deles”. Ouvia-se claramente a voz do Sargento Otton chamando aos gritos o Ten Bruno: “Por favor, não me deixe morrer aqui.” Os tiros e as explosões continuavam quando eu disse ao Alcides: “A nossa posição é boa para acertarmos neles agora, pegue sua metralhadora e atire, que eu lanço minhas granadas através das janelas e do buraco na parede.” E assim foi feito, enquanto tínhamos granadas e munição na metralhadora atiramos onde nos parecia estar o inimigo. Ouvimos também explosões vindas do lado esquerdo, deviam ser do grupo do sargento Gonçalves. Pouco depois cessaram - se os tiros e as explosões, CAPÍTULO VI
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ouvia-se apenas os gritos e gemidos dos nossos companheiros feridos e agonizantes os gemidos dos alemães dentro da casa, o que nos levou a crer que tínhamos atingido o objetivo. A escuridão era maior agora, e devido a fumaça das explosões, não enxergávamos nada, quando o Alcides falou: “Cabo Moura, acho que acertamos neles, escute os gemidos e também pararam de atirar, o que vamos fazer agora?” Consultei a bússola de pulso e verifiquei a direção das nossas linhas e disse: “Para pegarmos a direção das nossas linhas temos que dar a volta na casa, nos arriscando a encontrar com os alemães, mas é o caminho mais seguro.” A nossa idéia era encontrar alguém do nosso pelotão, pois não tínhamos a mínima noção da extensão do ocorrido, podíamos ser os únicos sobreviventes, pois não conseguíamos escutar nenhum sinal de vida dos nossos companheiros, a não ser os gritos do Sargento Otton, ainda não atendidos. A situação era realmente difícil. Pois no nosso entender estávamos misturados com o inimigo, eles poderiam estar em qualquer lugar e os riscos eram muitos e grandes, mas tínhamos que sair dali de qualquer maneira, pois os tiros que demos denunciara a nossa posição ao inimigo. Fizemos então um trato, quem fosse na frente ia preparado para dar de cara com o inimigo e o de trás, que iria com a metralhadora atiraria mesmo arriscando atingir o companheiro, pois nestas alturas sair vivo desta seria um milagre, pelo menos assim levaríamos mais alguns inimigos junto conosco.
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Seguimos então, eu na frente e o Alcides logo em seguida, com a metralhadora. Chegamos no canto de trás da casa e avistamos outras casas menores no fundo e seguimos pelos fundos da casa grande com a maior cautela, quando me lembrei de um assovio já combinado entre nós para identificar. Assoviei e recebi a resposta logo em seguida, vinha do lado esquerdo da casa. Continuamos nos deslocando em direção ao assovio, na esperança de encontrarmos os companheiros que tivessem escapado da fatalidade. Finalmente vimos um vulto que a principio nos pareceu ser um inimigo, mas para nossa sorte se tratava do nosso Ten. Bruno: “A senha.” Eu disse “ Urca”, ele respondeu. “Bangu”, eu disse então a contra senha. Ele falou que também fora pego de surpresa pela presença alemã naquela posição, e que infelizmente as observações não foram suficientes para detectar o avanço inimigo. Não havia mais nada a fazer senão voltar, pois além de ter perdido muitos companheiros a patrulha se esfacelara diante da surpresa recebida. Porém resolvemos levar junto conosco o Sargento Otton que continuava a gritar por socorro e devia estar muito ferido. Com muita cautela nos aproximamos do local e verificamos que o inimigo fora realmente atingido pela nossa ação, pois no local só se encontravam mortos ou moribundos, os vivos, se haviam, já tinham se retirado. Junto ao Sargento Otton, que estava com uma das pernas decepada por uma explosão de granada, se CAPÍTULO VI
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encontrava o corpo do Sargento Bento, morto, e era a primeira vez que ele entrava em ação conosco, pois havia chegado à frente de batalha a poucos dias, e várias vezes nos mostrou a foto de sua filhinha, um lindo bebê, que havia nascido depois de sua vinda para a Itália e dizia que achava que nunca iria conhece-la, premonição que infelizmente se concretizou. Reunimos nossos onze companheiros mortos para serem recolhidos posteriormente e irem engrossar as fileiras de Pistóia, junto com tantos outros bravos que não voltaram à terra natal, dos quais me lembro com muita emoção do amigo Soldado Osvaldo, cujo maior pedaço encontrado foi seu pé e parte da perna em sua bota, pois ao ser atingido pela explosão de uma granada inimiga, as seis granadas que se encontravam penduradas em sua bandoleira, cruzando seu peito, explodiram, despedaçando totalmente seu corpo. Daí para frente nos preparamos para voltar, levando conosco o Sargento Otton. Como conhecedor deste tipo de missão o Sargento Otton sabia o quanto nos arriscávamos tentando leva-lo de volta, pois estávamos muito próximos do inimigo, porém ele soube colaborar sem soltar um gemido sequer que pudesse nos prejudicar, apesar das condições improvisadas em que o transportava, carregando-o em minhas costas. Depois de reunirmos o resto do pelotão voltamos pelo mesmo caminho que havíamos chegado, sempre na iminência de um novo encontro com o inimigo e depois de horas de tensões intermináveis chegamos felizmente a nossas linhas. Não havia até então acontecido nenhuma baixa tão numerosa com nosso pelotão, porém isto não nos abateu, com estes mesmos companheiros chegamos até o norte da Itália, até subjugarmos o inimigo, até o dia da vitória final. Devido a minha ação nesta missão eu recebi do Capitão Hélio Covas Pereira, Comandante da nossa 6ª Cia do
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11º R.I. o seguinte elogio individual: “ELOGIO O CABO ANTÔNIO DIAS DE MOURA DO 1º GRUPO DA 6ª CIA DO 11º R.I. PELA COESÃO DE ELEVADA MORAL, ESPÍRITO DE DE SACRIFÍCIOE DISCIPLINA, QUANDO FOI CONSTITUIDO UM PELOTÃO DE ASSALTO NO DIA 17 DE ABRIL DE 1945,EM CASTELNUOVO, COMANDADADO PELO 2º TEN. BRUNO WOLMER, QUANDO FOI ATINGIDO POR UM GOLPE DE FATALIDADDE, SOUBE GARANTIR A EVACUAÇÃO DE SEUS COMPANHEIROS, VÍTIMAS DE PERIGO, E PRONTO PARA O PROSSEGUIMENTO DE SUA MISSÃO, SÓ SE RETIRANDO POR ORDEM DESTE COMANDO” Após cincoenta anos do fato ocorrido, nas comemorações do Cinqüentenário do Dia da Vitória onde a Associação dos Ex-Combatentes da 2ª Guerra mundial reuniu na cidade de Aquidauana em Mato Grosso do Sul, na sede do 9º Batalhão de Engenharia, que compôs a F.E.B na Itália, um evento prestigiado por pracinhas vindos de todos os cantos do Brasil, onde o meu pai acompanhado de minha mãe Ana de Miranda Moura reencontrou vários companheiros de Campanha, de repente foi avisado que estava sendo procurado por uma pessoa que gostaria muito de vê-lo. Foi ai que o meu pai teve uma das maiores surpresas de sua vida, de repente surge a sua frente um senhor gordo e calvo e com os cabelos brancos, o sorridente Sargento Otton, o mesmo que deixara em um momento tão trágico e de grande sofrimento, ali em sua frente, em pé com uma perna mecânica colocada nos Estados Unidos. Depois daquela trágica noite de 17 de abril de 1945, foi levado, assim como os outros gravemente feridos da F.E.B aos Estados Unidos, onde recebeu o tratamento necessário e a perna mecânica, que de tão bem adaptada lhe permitia, inclusive, marchar com os companheiros, na parada militar CAPÍTULO VI
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“O importante não é viver muito e sim viver plenamente, quem não sabe porque morrer não está em condições de viver”. Martin Luther King
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Foto 1: Navio de transporte de tropas “General Meigs”, saindo da Baía de Guanabara, rumo à Itália. Transportando o 2º Escalão da F.E.B. O Cabo Moura está bordo.
Foto 2: Desembarque em Nápolis.
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Foto 3: Desembarque em Livorno. Nos ombros o famoso “saco A”. O “saco B” já estava a sua espera.
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Foto 4: Acampamento de Pisa. Local dos primeiros treinamentos antes de entrarem em combate.
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Foto 5: Soldados da F.E.B. prontos para o combate em Monte Castelo. Os trajes denotam os clima no local.
Foto 6: Montese. A fachada do prĂŠdio demosntra a violĂŞncia dos combates para sua conquista.
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Foto 7: Monte Castelo. A torre em cima da montanha era um dos objetivos a ser alcanรงado.
Foto 8: Montese. Nas vielas estreitas os pracinhas mostraram o valor do soldado brasileiro na luta urbana.
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Foto 9: Acampamento de Francolise. O local da longa espera da ordem de voltar para casa.
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Fotos Foto 10: Distintivo da “Cobra Fumando” da F.E.B., que o pracinha se orgulhava em ostentar.
Foto 11: Medalha de Campanha. Só quem entrou em combate teve o direito de recebê-la.
Foto 12: Placa de identificação de combate
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Foto 13: Sr. Tรณte representando os veteranos da FEB na visita do Presidente Joรฃo Figueiredo em Cuiabรก
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Foto 14: Reencontrando velhos companheiros de guerra na terra do General Mascarenhas de Moraes.
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Foto 15: Sr. Tรณte no desfile dos veteranos da F.E.B. em Porto Alegre
Foto 16: Sr. Tรณte e Dona Branca com o amigo e expedicionรกrio Norberto Coelho e esposa em Porto Alegre.
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Fotos Foto 17: Cabo Moura e Sgt. Othon. O reencontro 50 anos depois da noite fatĂdica em Castel Nuovo.
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Foto 18: Sr. TĂłte e D. Branca com o Sgt. Othon. O companheiro ferido em combate salvo pelo Cabo Moura.
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Foto 19: Sr. Tóte com companheiros dos Correios em Cuiabá.
Foto 20: Sr. Tóte e D. Branca em frente á Associação dos Veteranos da F.E.B. em Cuiabá.
Foto 21: Sr. Tóte e D. Branca em Poconé, 1957, com as quatro primeiras filhas. Eliete, Ana Maria, Marluce e ao colo,Vera.
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Foto 22: Os pais de Antônio Dias de Moura, Sr. Pedro Dias de Moura e D. Maria Francisca Dias, “D. Mariquinha”.
Foto23: Ana de Miranda, aos 15 anos, em sua formatura no ginásio. A D. Branca no tempo em que seu Tóte a conheceu.
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Foto 24: Sr. Tรณte em uma de suas pescarias no rio Piraim - Pantanal.
Foto 25: Sr. Tรณte em frente ao curral, relembrando os velhos tempos.
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Foto 26: Sr. Tรณte e D. Branca com suas cinco filhas, Eliete, Ana Maria, Marluce, Vera e Edna.
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Foto 27: Sr. Tรณte e D. Branca com cinco de seus sete bisnetos.
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Foto 28: Carta da Associação Nacional dos Veteranos da F.E.B. Recebida pela filha Vera quando da entrega da carteira de identificação de filha de Herói da F.E.B.
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Foto 29: Certificado de Reservista do Exército Nacional comprovando a participação na Campanha da Itália.
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Foto 30: Diploma da Medalha de Campanha.
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Foto 30: Certificado do II Encontro dos Veteranos da F.E.B. - Porto Alegre/RS.
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Foto 31: Certificado do III Encontro dos Veteranos da F.E.B. - Rio de Janeiro/RJ.
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Foto 32: Certificado do VII Encontro dos Veteranos da F.E.B. - Campo Grande, Aquidauana e Corumbรก/MS.
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Foto 33: Ortem do MĂŠrito Legislativo - CuiabĂĄ/MT.
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Foto 34: Moção de Aplauso - Câmara Municipal de Cuiabá/MT.
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CAPITULO VII MONTESE “Foi o mais sangrento e o de maior valia no âmbito geral da ofensiva, pela terrível reação oposta pelos nazistas e por abrir uma das portas que levariam a terminação da guerra na Itália”. Depois de Castel Nuovo a tropa da FEB se encaminhou com bastante rapidez para Montese, sendo que o Cabo Moura e seus companheiros começaram a enfrentar varias adversidades, devido a violenta resistência do inimigo, que sentindo a garra, a força e a determinação do soldado brasileiro, começou a usar de vários artifícios para tentar impedir o avanço fulminante dos “pracinhas”. Para isso começou a deixar nos lugares de onde eram obrigados a abandonar vários tipos de armadilhas, tais como minas pessoais em praticamente tudo que pudesse atrair a curiosidade de alguém desavisado, o que infligiu inúmeras baixas na tropa, fazendo com que o medo se espalhasse entre os soldados, que só se atreviam a pegar em alguma coisa depois dos caça-minas (soldados especializados em desarmar minas) fizessem a limpeza do local. E foi neste ambiente inóspito, que se passa o um fato em que o meu pai, novamente viu a morte bem de perto. Os entreveros que antecederam a conquista de Montese, uma pequena cidade, porém um ponto estratégico de grande valia para a afirmação da supremacia dos aliados CAPÍTULO VII
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naquela posição do avanço, rumo ao norte da Itália, e por isso mesmo tão bem defendida pelos alemães, mantinha os soldados aliados sob constante fogo de artilharia e tiros de metralhadoras, e por este motivo o fornecimento de suprimentos as vezes atrasava e levava a falta de alimento em algumas ocasiões. Em um destes eventos o Cabo Moura e seu grupo de combate ficaram sem provisões por quase dois dias, e viram a fome apertar o que levou-os a procurar alternativas para resolverem o problema. Em uma pequena casa de um vilarejo próximo a Montese encontraram por acaso um porco branco e seis galinhas, deixados ali pelo antigo morador que havia abandonado a casa devido o clamor da batalha que estava em curso. Como estavam em um momento de trégua, resolveram os soldados prepararem as galinhas para se alimentarem. Verificaram em seus embornais e descobriram que tinham vários tabletes de sal, que era fornecido junto com a ração diária, e como a maioria era gente do sítio que sabiam se virar nestas ocasiões, mataram e esfolaram os frangos, temperaram com o sal e utilizando os capacetes de aço, substituindo as panelas e água, normalmente conseguida com neve derretida, mas, por acaso, nos fundos da referida casa havia uma bica natural de água aparentemente potável, com a qual cozinharam os frangos, que foram rapidamente devorados pelos soldados e oficiais que estavam por perto, apesar de terem exagerado no sal e ficado um pouco salgado. Depois de alimentados foram para a bica de água para saciarem a sede, sendo que uns beberam mais que os outros, e o meu pai, como é seu costume, muitas vezes criticado até hoje, bebe muito pouca água, e deve ter bebido menos que os outros, apesar de o frango ter sido cozinhado na mesma água. O fato é que todos que partilharam a refeição e beberam da água da bica, começaram a sentir
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dores no estomago, náuseas, sendo que dos doze, oito, um a um foram caindo ao chão e morreram rapidamente, e somente quatro, ente eles o Cabo Moura, conseguiram, não se sabe como, ficar vivo. Depois de comunicado o Comando da tragédia acorrida, descobriu-se que os alemães, ao abandonar aquela posição haviam praticado um ato criminoso e covarde, envenenando a água, com a intenção de atingir o inimigo da maneira mais torpe, mostrando a situação de desespero que já se encontravam as tropas do Eixo naquela altura da guerra. A retaguarda foi avisada do ocorrido, e providenciou para que os corpos dos companheiros mortos fossem retirados, e meu pai com os outros sobreviventes ficaram com duas opções, ou ficavam para aguardar a ajuda da retaguarda e corriam o risco de serem atingidos pela artilharia inimiga que fatalmente iria desfechar um contra golpe no local perdido para o inimigo ou agüentavam a dor na barriga e seguiam atrás de sua Companhia que já se deslocava em direção de Montese. E assim por segurança e por não querer se separar dos companheiros naquele momento de vitórias, lá foi meu pai e seus companheiros, conforme ele mesmo disse, todo encurvado de dor, andando trôpego e parando a todo momento para recuperar o fôlego, em direção a grande batalha que definiria de vez os rumos da guerra no norte da Itália. Junto com eles ia também o corajoso soldado Boanerges, ferido por uma bala que, de raspão, lhe furara o olho, e mesmo sangrando, com curativos improvisados, se recusou a abandonar os companheiros, alegando que já estava cego daquele olho mesmo e que agora iria até o fim. E neste ímpeto de homens determinados e corajosos, superando qualquer dificuldade, os brasileiros da FEB tomaram Montese, dando uma demonstração de maturidade, adquirida em pouco tempo, mas em duras batalhas, enfrentando, agora, a mais perigosa das ações de CAPÍTULO VII
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guerra que é a conquista de uma cidade, rua a rua, casa a casa, recebendo inclusive elogios dos aliados que se admiraram com a destreza dos pracinhas neste tipo de atividade. No dia 14 de abril de 1945, a lª DIE venceu uma das batalhas mais difíceis empreendidas em território europeu. Deparou com um adversário disposto a não ceder terreno e precisou atravessar terreno minado sob intensos fogos inimigos. Conquistada a posição, nossos pracinhas continuaram o ataque sobre o restante das elevações, cobrindo o flanco esquerdo da 10ª Divisão de Montanha e obrigando as forças alemãs a retrair para a margem esquerda do rio Panaro. Na manhã de 15 de abril, o comandante do IV Corpo de Exército manifestou-se com entusiasmo: “Na jornada de ontem, só os brasileiros mereceram as minhas irrestritas congratulações; com o brilho do seu feito e seu espírito ofensivo, a divisão brasileira está em condições de ensinar às outras como se conquista uma cidade”. A cidade de Bolonha era a grande porta de acesso a riquíssima planície do Pó e caminho para o Passo de Brenmer na fronteira com a Áustria. Cidade tronco rodo-ferroviário muito importante e de vital importância para o transporte de cargas dos alemães e italianos. Fica no Norte da Itália e foi duramente bombardeada pelos americanos e ingleses. Foi sem dúvida, um dos mais violentos bombardeios aéreos da 2ª Guerra Mundial, onde foi utilizado mais ou menos 1500 aviões e a cidade foi quase toda destruída. Quando o Brasil chegou na Itália os aliados já estavam tentando conquistar Bolonha a três meses, sofrendo as mais severas perdas, sendo esta cidade o principal objetivo a ser conquistado neste setor guerra, pois conquista-la significava ganhar a
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guerra da Itália. Quando a FEB começou atuar Divisões inteiras do Exército Britânico e Americano estavam necessitando de descanso, enfrentando frio, lama, sangue, desalento e dor. Meu pai foi testemunha do violento bombardeio que pôs fim nas resistências locais, proporcionadas pelos alemães e italianos, e quando junto com seus companheiros da 6ª e 5ª Companhia do 2° Batalhão do 11° RI lá chegaram, os inimigos já tinham se retirado, então eles apenas atravessaram a cidade. Mas foram testemunhas do inferno vivido no bombardeio. Onde tudo foi destruído, as casas, as estradas, os trilhos da estação revirados para o alto, os vagões espalhados pelo chão. Dando para cada um perceber a desumanidade de uma guerra, quando acontece um ataque aéreo daquela proporção.
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CASALI Cidade da Itália que fica situada ao norte, foi a 1ª cidade que os pracinhas ficaram acampados em um quartel isso porque a guerra já estava chegando ao fim. Quando lá chegaram os italianos gritavam: “BRAVO BRASILIANE, FENITÊ GUERRA”. Em Casali depois de quase um ano dormindo em trincheiras ou em acampamentos puderam finalmente poder repousar os seus corpos em uma cama limpa e confortável. Pela primeira vez, desde que chegaram à Itália, os pracinhas ouviram novamente o toque da corneta, com seus comandos característicos de “alvorada”, “reunir”, “rancho”, etc..., mesmo assim, o espírito embotado pelos combates, não os deixava alimentar esperanças de que a guerra havia terminado, e preferiam achar que a qualquer momento iriam voltar para as trincheiras e enfrentar o aguerrido inimigo que não os deixou ter um minuto de tranqüilidade desde os primeiros combates. No outro dia chegou ao quartel o comboio Americano que foram buscar os brasileiros em caminhões para levá-los para Alexandria. Apesar de meu pai não ter passado por esta cidade, sabia-se que a sua posição era em direção ao sul, e pela primeira vez, desde que começaram os combates, não teriam um rumo em direção ao norte como sempre. Chegando em Alexandria ficaram em um quartel, onde perceberam que lá já se encontravam todos os soldados componentes da s forças aliadas na Itália: Americanos, Ingleses, Sul Africanos e outros inclusive os comandantes de cada Companhia.
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E pela primeira vez, desde o início do deslocamento os pracinhas entraram em forma se preparando para uma parada, ou seja, o rítmo de quartel voltando ao normal e eles puderam pressentir que as boas novas estavam chegando. Mesmo assim, meu pai diz que o seu camarada, o soldado José de Oliveira, ao ver qualquer de uma destas evidências sempre dizia: “Qual nada, Moura, não acredito que vamos sair vivos desta, tenho certeza que nunca mais vamos ver nossa mãe e nosso pai, não tenho esperança de voltar para o Brasil”. No Pátio do quartel reuniramse em forma todos os soldados de diversas nações e em um palco em suas frentes os Generais, Comandantes das diversas forças cruzaram as bandeiras dos países componentes das forças aliadas e foi dada a palavra a cada General. Primeiramente falou o General Mascarenhas de Moraes, Comandante da F.E.B dirigiu aos soldados Brasileiros assim disse: “Meus soldados a Guerra terminou, logo estaremos no seio de nossa terra”. Dada a tão esperada notícia todos começaram a gritar, pular, alguns rolavam pelo chão. Pois era um sentimento misto de alegria, paz, alívio pelo tão esperado momento, muitos tomados por tamanha emoção começaram a disparar suas armas para cima e alguns soldados de tão transtornados atiraram granadas no meio dos companheiros e elas explodiram causando infelizmente as duas últimas baixas fatais entre os pracinhas, que ao invés de voltarem para casa foram aumentar o número daqueles que já dormiam o sono eterno nas terras úmidas e verdejantes da Itália.
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Meu pai, o Cabo Moura, junto de seus inseparáveis companheiros, José de Oliveira, Alcides Daim, Sólon Sinésio Ferreira, ficaram sentados no chão, quietos, sentindo as emoções aflorarem as faces, olhando um para o outro, com ar de espanto e incrédulo, ouvindo o companheiro José de Oliveira dizer no seu eterno pessimismo, que na verdade era sua maneira de sobreviver àquela loucura de viver o dia sem saber se veria o outro dia amanhecer: “Moura, será que é mesmo verdade, acho que não é ainda desta vez que nos vamos ver o nosso Brasil novamente. Pode ser só para nos animar e continuar lutando. Não acredito que vamos sair vivos desta”. E naquela confusão de gritos, tiros, explosões se escutava as vozes, de homens enrijecidos pelas batalhas, que muitas vezes viram a morte de perto, que não recuou frente a um inimigo forte e aguerrido, que matou e viu companheiros de longas datas morrerem ao seu lado, que muitas vezes morreu de medo sob o fogo de morteiros e rajadas de metralhadoras, mas não se acovardou e seguiu em frente, meu pai presenciou muitos deles, rolando no chão, chorando e gritando: “Mamãe, papai, me esperem que eu vou voltar para abraçá-los de novo”. No dia 11 de maio, a FEB fez rezar na Catedral de Alessandria uma solene missa em homenagem aos combatentes tombados no cumprimento do dever. Anos após terminada a guerra, os Generais Mark Clark, comandante do 5° Exército Americano e Willys Crittenberger, Comandante do 4° Corpo de Exército, reconheceram nos livros que publicaram sobre a Campanha da Itália, que à FEB fora reservado, na última fase da guerra, o mais difícil setor da frente nos Apeninos. Basta dizer que
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somente a partir do dia 22 de fevereiro de 1945, quando Monte Castelo foi conquistado, é que a cidade de PorretaTerme, sede do Q.G. avançado da 1ª DIE, pôde livrar-se da cortina artificial (cobertura de fumaça de diesel) que durante três meses a havia escondido dos alemães.
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“ A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte� Ghandi
CAPITULO VIII Apesar da guerra na Europa ter terminado oficialmente em 08/05/45,ainda não tinha chegado a tão esperada hora de voltar para a terra querida. De Alexandria a F.E.B foi transportada para Nápoles sendo que ficaram aquartelados em Francolise uma pequena cidade situada aproximadamente à 5 km ao norte de Nápoles. Em Francolise, ficaram acampados por mais de dois meses os pracinhas puderam finalmente curtir um pouco as belezas, apesar de bastante sofrida e tão interessante Itália com as suas cidades em ruínas, obras de artes destruídas, famílias em total estado de miséria, então com o tempo livre, puderam conhecer vários pontos turísticos, como Roma, Pisa. Nesse período em que ficaram em Francolise, era organizado pelos americanos vários passeios para os pracinhas em Roma. Toda semana, de cada Batalhão eram selecionados 40 soldados para irem conhecer a cidade de Roma, onde visitavam vários pontos turísticos,e também freqüentavam bares, restaurantes, como sempre, tudo pago pelo Exército Americano. Dos pontos turísticos que meu pai visitou em Roma, sem dúvida o mais importante foi a visita ao Vaticano, que culminou com a audiência com o Papa Giuseppe Pio XII, pois sendo o Brasil um pais eminentemente católico e os nossos soldados se sentindo privilegiados por terem saído vivos dos horrores da guerra, nada melhor que a benção do Santo Padre para valorizar seus agradecimentos ao Todo Poderoso pelas graças alcançadas. Meu pai pode abençoar o seu CAPÍTULO VIII
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crucifixo que o acompanhou desde Mato Grosso até aquele momento e que o acompanharia para sempre, e pode agradecer a Deus pela manutenção de sua vida, apesar de tantos riscos vividos. No Vaticano, meu pai disse que ficou maravilhado com a imponência da Basílica de São Pedro, com sua grandiosidade arquitetônica e detalhes em esculturas para onde quer que se olhasse, alem das maravilhosas pinturas, tais como a tão famosa Cúpula da Capela Cistina, com as cenas da criação do homem, pintado pelo tão famoso Miquelangêlo. Visitou a cúpula da Basílica de São Pedro, os canhões que atiravam com sal, a curiosa Guarda Suíça, as prisões de Roma, além do Coliseu e as famosas fontes de Cidade Eterna. Enquanto aguardavam na Itália a data para regressar ao Brasil, os pracinhas brasileiros muito divertiram, pois em todos os lugares que chegavam eram recebidos como grandes heróis pelos italianos e todas as sua despesas nos bares, restaurantes, e festas que freqüentavam eram pagas pelas forças americanas. Devido as forças italianas sob o comando de Benito Mussoline terem apoiado as forças alemãs e com o fracasso das forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), a situação econômica e financeira do povo italiano era caótica. A falta de dinheiro era tão evidente, que os pracinhas quando saiam para os seus passeios ficavam abismados, com a situação de penúria dos italianos. O povo italiano oferecia seus serviços, inclusive os relacionados à prostituição, em troca de qualquer quantidade de comida, dinheiro, cigarros, bolachas ou qualquer coisa. Nas ruas os pais e esposos chegavam, em troca de uma porção de comida, a oferecer as suas esposas e filhas aos soldados em geral, sem o mínimo pudor, pois se tratava de um caso extremo de sobrevivência. A Itália era naquele momento um país derrotado e desorganizado, a falta de trabalho e de alimentação fazia com que as pessoas
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perdessem a noção da moral, pois o homem adapta-se ao meio em que vive e o meio ali era a sobrevivência. Ali se via o verdadeiro retrato de um tempo pós guerra, onde as perdas morais e materiais ficaram na memória de todos que presenciaram, para sempre. Os americanos organizavam festas para os pracinhas, onde havia muita fartura de alimentos, música e danças. Nessas festas era comum as mulheres italianas serem convidadas para dançar com os soldados, enquanto do lado lá fora do ambiente da festa, deixarem seus esposos, pais e filhos aguardando o que elas conseguiriam em alimentos para depois, levarem até eles. Os Pracinhas brasileiros ficaram extremamente chocados com a condição de penúria que ficou o povo italiano, que devido à condição em que foram envolvidos pela guerra, acabaram ficando entre dois fogos, e terminaram a guerra abandonados por todos, totalmente submetidos às vontades das forças aliadas, que apesar de serem considerados seus libertadores das forças nazistas, era considerado por elas como inimigos. Ocorre que, o governo fascista de Benito Mussolini foi um aliado do governo nazista de Hitler de primeira hora, porém depois de enfrentar vários reveses, mais atrapalhando do que ajudando as forças do Eixo, a Itália se rendeu, fazendo com que ficasse o seu território exposto à eminente invasão dos aliados que já estavam vencendo as batalhas do norte da África, onde os alemães já haviam ido socorrer os italianos com os famosos tanques do “África Korps”, comandados pelo lendário General Rommel, o “Raposa do Deserto”. Nestas condições Hitler ocupou militarmente a Itália, levando muitos soldados italianos, como punição, para lutar na invasão da Rússia, onde a maioria morreu nos combates no frio glacial que foi o principal fator do revés do nazismo naquela campanha, (lembrem-se do filme “Girassóis da Rússia” com Marcelo Mastroianni e Sofia Loren), e colocando CAPÍTULO VIII
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seus soldados para defender a Itália, colocando inclusive divisões de sua guarda pessoal nesta missão. Os alemães sabiam que se os aliados dominassem a Itália, a Alemanha fatalmente seria invadida. Então o povo italiano passou a ser desprezado pelos alemães, que os tratava como um estorvo, que só serviu para atrapalhar as intenções de Hitler de espalhar o nazismo pelo mundo, sendo que o mesmo nunca foi consultado se deveria ou não entrar na guerra, sendo exclusivamente responsabilidade de um governo totalitário e brutal como era o regime fascista de Mussolini, onde a liberdade de expressão não existia, e era duramente impedida. Quando os aliados invadiram a Itália, e começou a expulsar os alemães, o povo achou que finalmente seriam libertados e exultavam de alegria a cada vitória dos mesmos, porém para as forças da democracia eles eram também considerados povo inimigo, ou pelo menos vistos com desconfiança, pois, não se poderia saber quem estava do lado dos nazi-facistas ou não, e novamente os italianos ficaram dependendo da caridade do inimigo, sem ter podido escolher de que lado estavam. Com isto ficaram por conta de sua própria sorte, sem governo, sem dinheiro e sem esperança, onde a moral e bons costumes que norteiam os rumos de uma sociedade passou a ser o que cada um decidisse que fosse, onde o egoísmo era a única salvação de sobreviver, e esperar que depois de tudo, quando as coisas voltassem ao normal, estivesse lá, vivo, para começar tudo de novo. Meu pai trouxe consigo um forte trauma de sua experiência com o contato com um povo tão sofrido, pois a alma solidária do brasileiro, principalmente do pantaneiro, onde a colaboração mútua e a política da boa vizinhança e do compadresco é a base da sobrevivência, não podia conceber de deixar uma criança perdida no meio da batalha, chorando, gritando pela mãe, com fome e frio, sem poder lhe dar
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assistência, e isto ocorreu várias vezes no decorrer da campanha da Itália, onde os brasileiros se especializaram em combates nas cidades (vide Montese), onde fatalmente as crianças estavam envolvidas. Após os bombardeios, dos aliados ou dos alemães, e que as cidades eram dominadas, os homens e mulheres adultos, mesmos feridos, sabiam que o silêncio é uma forte arma de sobrevivência, porém, as crianças não tem como entender isto, e choram e gritam de pavor como único recurso que conhecem para receberem atenção. Meu pai, até os dias de hoje, e principalmente quando suas filhas, netos e bisnetos, em seus folguedos infantis, nas reuniões de fim de semana em sua casa, gritavam em suas brincadeiras ou choravam por algum motivo, o faziam voltar à aqueles momentos de angústia, lá na Itália, e de um pulo ficava em pé, assustado, saltando de sua rede, onde costuma descansar após o almoço dominical. Depois da rendição dos alemães, em 08/05/1945, as tropas aliadas continuaram na Itália executando os serviços de ocupação da terra conquistada, enquanto os Comandantes tentavam organizar um sistema de governo que fosse controlado pelos próprios italianos, e aguardando os resultados da guerra no Pacífico, onde os japoneses relutavam em render-se. Obviamente que havia a possibilidade das tropas que compunham o 4° Exército Americano, inclusive as da FEB, por já estarem treinadas e acostumadas as durezas das batalhas, de participarem de uma possível invasão ao Japão. Por estes motivos somente em meados de julho de 1945 os brasileiros da FEB começaram finalmente a voltar para casa. Enquanto aguardavam as ordens de embarcarem de volta para o Brasil foi feito um convite das forças americanas para que 40 soldados brasileiros fossem escolhidos para desfilarem em Portugal. Então o Coronel Delmiro disse não concordar com tal idéia, pois, para ele todos os pracinhas CAPÍTULO VIII
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eram heróis, então só desfilaria em Portugal com toda a tropa completa. Com essa atitude o exército Brasileiro desobedecia a uma ordem direta dos americanos e houve um a ameaça de retaliação do comando Americano fazendo com que os brasileiros fossem os últimos a retornarem para casa. Isso criou uma grande comoção entre os pracinhas que já vislumbravam o seu rápido retorno para matar a saudade da querida terra natal. Ao saber do ocorrido o Presidente Getúlio Vargas fez o seguinte pronunciamento de apoio à volta dos pracinhas: “Comunico aos pracinhas nossos Heróis da F.E.B que fiquem descansados, pois nem que seja de um a um todos serão colocados no seio de suas famílias”. Ai o Comando do Exército Americano percebendo que o povo brasileiro ansiava pela volta dos seus heróis e que isso poderia lhes causar problemas no futuro voltou atrás em sua decisão e tratou de providenciar o mais rapidamente a volta dos pracinhas para o Brasil. A participação do Brasil na 2ª guerra foi reconhecida por estadistas como Roosevelt( Presidente dos Estados Unidos na época) e Churchil, (Primeiro Ministro da Inglaterra). Se o Brasil houvesse formado ao lado das potências do Eixo e dado aos nazi- fascistas o apoio de seus recursos naturais e de suas estratégias, provavelmente se teria aberto em nosso território, uma outra frente de operações e, de certo teriam sido imensamente maiores as dificuldades enfrentadas pelos aliados. A FEB muito contribuiu para derrotar as forças nazistas na península italiana: avançando mais de quatrocentos quilômetros, libertando meia centena de vilas e cidades, aprisionando 02 Generais, sendo um alemão e um Italiano, 892 oficiais e 19.679 praças, além de 80 canhões, 5.000 viaturas e 4.000 cavalos. Foi também expressiva a
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participação da Força aérea Brasileira, através do 1º Grupo de aviação de Caça. Em seis meses de sua direta participação, cumpriu: 445 missões, voou 6.144 horas, lançou 4.442 bombas, destruiu 2 aviões, 13 locomotivas, 1.304 transportes motorizados, 250 vagões e carros tanques, 8 carros blindados, 25 pontes, 85 posições de artilharia e 31 depósitos de combustíveis e munições e 3 refinarias. Dos 48 oficiais que realizavam missões de guerra, teve 16 baixas, sendo 5 abatidos pela artilharia antiaérea, 8 saltaram de para quedas, em território inimigo e 3 faleceram em acidentes. Dessa admirável campanha, ficaram os nomes inapagáveis nos combates vitoriosos nos campos da Itália:
Mazzarossa em 16/09/1944. Camaiore em 18/09/1944 Monte Prano em 26 /09/1944 Monte Cavalloro em 16/11 /1944 Monte Castelo em 21/02/1945 Santa Maria Villiana em 04/03/1945 Castel nuovo em 05/03/1945 Montese em 14/04/1945 Paravento em 15/04/1945 Monte Maiolo em 19/04/1945 Rivela em 20/04/1945 Zocca em 21/04/1945 Formigine em 23/04/1945 Colechio em 27/04/1945 Fornovo em 28/04/1945 Castel vetro em 28/04/1945.
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Deixamos nos campos da Itália um total de 443 brasileiros que tingiram com seu sangue aquela terra distante para garantir que a democracia fosse preservada par a nossa terra e para o resto do mundo. Ressaltamos que nossos Pracinhas principalmente os mato-grossenses saíram de nossos sertões, pantanais, cerrados chapadões. De nossas pequenas cidades daquela época, do nosso clima quente para enfrentar uma temperatura a 1500 metros de altitude, que no inverno chegou a 20 graus abaixo de zero, e a própria desconfiança do V Exército Americano, que não acreditava no potencial de nossos soldados. Enfrentou um inimigo ferrenho e com experiência de mais de quatro anos de guerra, e que no momento que o Brasil passou a participar da mesma, defendia a provável invasão da Alemanha, tornando-se ainda mais determinada as suas ações. Porém, nossos soldados souberam, com galhardia, que marcou o caráter do brasileiro, vencer todos os reveses e defender o nome da Pátria nos Campos de Batalha da 2ª Guerra Mundial. Depois de alguns sobressaltos iniciais, levou o inimigo de roldão, rumo ao norte da Itália, até culminar com a rendição para as tropas brasileiras da 148ª Divisão de Infantaria Alemã e o que restava da 90ª Divisão Blindada Alemã conhecida como a famosa África Korps e a Divisão Bersaglieri Italiana. A nossa participação no conflito e especialmente o envio da FEB para os campos da Itália, contribuíram posteriormente, para a liberdade de imprensa, para a integração nacional, pela completa eliminação das minorias nazi-fascistas, para a queda da ditadura e conseqüentemente retomada da democracia. Com esta importante passagem pela história mundial, os pracinhas brasileiros, filhos de um país pacifista, muitos deles franzinos, baixos, incultos, foram adestrados para enfrentarem soldados duros e combativos, considerados
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verdadeiros super homens, integrantes do mais fantástico complexo de guerra, jamais visto em toda a história da humanidade. Aprendeu a confiar em suas próprias possibilidades e fizeram valer os versos do nosso Hino Nacional onde diz: “Verás que um filho teu não foge à luta, não teme quem te adora a própria morte, terra adorada”.
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"A mente que se abre a uma nova idĂŠia, jamais voltarĂĄ ao seu tamanho original." Albert Einstein
CAPITULO IX O 1° Escalão de Retorno, comandado pelo General Zenóbio da Costa, a bordo do navio General Meigs chegou ao Rio de Janeiro em 18/07/1945, o 2° Escalão de retorno chegou em 22/08/1945, no navio Mariposa, o 3° Escalão, no qual veio meu pai, chegou ao Brasil em 19/09/1945, no navio General Meigs, e os últimos pracinhas brasileiros a voltarem aportaram em nossas terras em 03/10/1945. Para a turma dos pracinhas em que meu pai voltou ao Brasil tudo era alegria, pois a maioria não acreditava que aquilo era verdade, puderam apreciar a passagem pelo Estreito de Gibraltar, festejar a passagem da linha imaginária do equador, se encantarem com as belezas do mar e principalmente se divertirem com os golfinhos brincalhões que acompanhavam o navio dando saltos acrobáticos. Dentro do navio divertiam-se muito, jogando truco, sete e meio, outros tipos de jogos, ouvindo música, etc. A duração da viagem de volta foi de 14 dias, o primeiro ponto de chegada foi na cidade do Rio de Janeiro em uma manhã no dia 19/09//45.Quando o navio encostou-se ao Porto do Rio de janeiro, as autoridades já estavam esperando para homenageá-los. Pelo CAIS-10, onde foram colocados cordões para que os pracinhas pudessem desfilar para o público presente, onde foram muito aplaudidos como os novos heróis nacionais. Depois das festividades no CAIS-10, os pracinhas foram levados para Vila Militar do Rio de Janeiro, onde ficaram aguardando para a festa que foi organizada pela 1ª CAPÍTULO IX
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Dama, a Srª Darcy Vargas que fez o melhor que pode para que eles fossem recebidos da melhor forma possível. Ela organizou para que as famílias tradicionais da cidade do Rio de Janeiro recebessem em sua residência aqueles pracinhas que não tinham famílias no Rio. Os pracinhas foram recepcionados por grupos organizados para recebê-los de acordo com o seu Estado de origem, procurando relembrálos de seus costumes e tradições, para com isto tentar reintegrá-los novamente ao ambiente de paz e tranqüilidade tentando faze-los esquecer de vez os horrores da guerra. No grupo em que meu pai fazia parte ele lembra dos companheiros Sólon Ferreira Sinézio, Hugo de Freitas Macedo, Webs Pinto de Figueiredo e José de Oliveira. Eles foram recebidos pela família da Professora Adélia. A professora Adélia foi pessoalmente até a Vila Militar, onde estavam acampados, e os levou para a sua residência, dirigindo pessoalmente um belo carro conversível, fato raro 1945, e os levou para uma praça no centro da cidade, onde outros grupos de pracinhas e anfitriões aguardavam, e fazendo grande algazarra carregaram os seus heróis nos ombros gritando vivas ao Brasil e a Democracia, que os bravos “Febianos” haviam ajudado a defende-la contra a tirania do Nazi-facismo. Dali foram para a residência da Professora Adélia, onde foram recebidos em um salão de festas com mesas compostas com doces, bolos, salgados, licores tradicionais de Mato Grosso, como por exemplo, o licor de piqui. Nesse local foram homenageados com música, dança e os cumprimentos de várias pessoas pela vitória da F.E.B, na Itália. A própria professora Adélia, moça muito fina e prendada, fez questão de tocar, ao piano, músicas oferecidas a cada um dos perplexos pracinhas presentes, que nunca imaginavam ser tão bem recebidos em seu retorno à terra natal. Terminada a festa foram levados até á Vila Militar. No outro dia foram liberados para um passeio para conhecer um pouco as belezas da Cidade Maravilhosa.
136 CAPÍTULO IX
Os pracinhas que moravam no Rio de Janeiro logo que chegaram foram liberados para casa, enquanto os de outros estados iam sendo dispensados, para voltar aos seus estados de origem, à medida que iam recebendo o Fundo de Previdência (que no período em que estavam na Guerra foi depositado na conta de cada um), conforme o citado anteriormente no Capítulo IV. O período em que meu pai ficou no Rio de Janeiro foi de uma semana para finalmente partir para Mato Grosso.
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“A Saudade é um sentimento do coração, e não da razão.” Don Duarte
CAPITULO X O longo caminho de volta iniciava indo para a cidade de S. Paulo. A ida para S.Paulo foi de trem, aonde chegaram na parte da manhã, e desceram na Estação da Luz, no centro da cidade. De novo os pracinhas foram recebidos com muita festa pelos populares. Ali eles almoçaram e embarcaram em outro trem e seguiram até a cidade de Bauru interir de S.Paulo. Quando embarcaram de S.Paulo para Baurú foram acompanhados por um grupo de pessoas que seguiram até a cidade de Torrinhas, pelo simples prazer de ficarem pertos dos heróis da FEB e assim cantando, brincando, festejando prestar-lhes as merecidas homenagens. Em Bauru, os pracinhas que vinham para Mato Grosso embarcaram no trem da Noroeste do Brasil, partindo finalmente para o seu estado natal, seguindo até Porto Esperança, as margens do grande rio Paraguai, próximo da cidade de Corumbá, passando por Três Lagoas, Campo Grande, Aquidauna e Miranda, sendo que em cada uma destas cidades desembarcaram mato-grossenses que foram lutar lá do outro lado do mundo e voltaram para os seus familiares, que os recebiam sempre com muita festa e homenagens. Em Porto Esperança embarcaram no Navio Fernando Vieira, aonde chegaram até o Porto de Corumbá. Em Corumbá, o meu pai pode pela primeira vez desde que partiu para a Itália encontrar uma pessoa conhecida, era o amigo José Basileu, um cuiabano que estava morando em Corumbá, e quando soube que iriam chegar pelo navio uns pracinhas mato-grossenses resolveu ir até o Porto para CAPÍTULO X
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esperá-los. O amigo José Basileu abraçou-o e convidou-o para que ficasse hospedado em sua casa até esperar que a lancha subisse para Cuiabá. Enquanto aguardava a chegada da lancha, o meu pai aproveitou para visitar a sua prima Josefa que morava em Corumbá, sendo ela então foi a primeira pessoa da família que ele teve contato quando voltou da Itália. A Lancha, que tinha o nome de “Lancha Rio Cuiabá” só chegaria depois de cinco dias de espera e então finalmente embarcaria para a sua terra natal. Na Lancha, os pracinhas divertiram-se muito com seus jogos de baralho e brincadeiras. Da cidade de Corumbá a Lancha subiu o rio Paraguai ate a foz do Rio Cuiabá e daí, em pleno Pantanal, até o Porto de Biguasal. Durante este trajeto o Cabo Moura, diante da beleza exuberante do seu querido Pantanal, suas aves, seus animais, suas matas, os camalotes, as flores dos guapés, peixes, curvas do rio, sons característicos, os macacos nas árvores, o cheiro familiar no ar e principalmente o canto da anhuma, ave rainha do Pantanal, que quando ela canta todo animal, inclusive o boi, fica em alerta, pois algum perigo está por perto, foi voltando a ser o Tóte Dias, que também fazia parte daquela paisagem. A emoção tomou conta do pantaneiro, que muitas vezes, no meio das batalhas, lá no frio congelante dos campos da Itália, imaginou nunca mais voltar ver e sentir aquilo. A chegada no Porto foi já à noite alta, lá pelas 23:00horas. No Porto já estavam esperando há três dias, a chegada do meu pai, os seus amigos Filote, Arceu, José Honorato, Florentino, Cesário e seu irmão Davino. Eram 23:00horas do dia 05 de outubro de 1945, quando a “Lancha Rio Cuiabá” parou no meio do Rio, onde foi abordada por uma canoa onde estavam seus amigos. Parando a Lancha o Cesário, um de seus amigos, perguntou ao Comandante da Lancha, se nela estavam alguns pracinhas que vinham da cidade de Corumbá. O comandante disse que sim.
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Então o Cesário perguntou se fazia parte dessa turma um cabo com o nome de Antonio Dias de Moura. O Comandante disse que havia um tal Cabo Moura, e que o conhecia, pois seria impossível não notar sua presença, pois ele era um dos que mais falava e brincava com todo mundo. O Comandante então entrou na Lancha e disse: “Cabo Moura pode juntar as suas malas que os seus amigos esperam você na canoa aqui de lado”. Logo em seguida, o Cabo Moura, que para seus amigos era o grande amigo “Tóte Dias”, ouviu a conhecida risada do amigo Cesário, dizendo: “Tóte, estamos te esperando já há três dias”. Quando ele saiu da Lancha esperavam na canoa o Cesário, Filote e seu querido irmão mais velho, o Davino, que logo pegaram as suas malas e foram colocando na canoa, para depois chegarem até a margem do rio, onde os outros amigos, ansiosamente, lhe aguardavam. Mais tarde foram até à casa do Cesário, que era um grande fazendeiro e comerciante da região. Cesário era esposo da Srª Josefina, filha do Srº Silvério Jorge da Silva, padrinho do meu pai, que quando criança passou três anos, em sua fazenda para estudar, como foi relatado anteriormente. Na casa do Cesário e Josefina, ele passou à noite onde ficou até saborear o famoso “quebra torto”, que é o famoso café da manhã do pantaneiro, (Quebra torto é um café da manhã composto geralmente de farofa de carne, bolos ou pães caseiros, ovos cozidos ou fritos,banana verde frita ou até a famosa Maria Isabel que é a carne seca com arroz) para depois pegar a canoa para seguir até a Barra do Piraim. CAPÍTULO X
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Por todos os lugares que a canoa passava, o meu pai podia perceber o carinho com que os amigos acenavam para ele. Quando chegou à casa dos seus pais, já era quase horário do almoço, onde foi recebidos com muita alegria pelos seus pais, irmãos, moradores da vizinhança do Estirão Comprido, e os empregados da fazenda. Durante o tempo em que esteve na Itália, a minha avó Dona Mariquinha, rezava o tempo todo, chorava e vivia a fazer todo o tipo de novenas, para seus santos devotos, para o sol, lua e estrelas, pedindo à volta do filho. Orava sempre de joelhos, que quando meu pai chegou, à encontrou com os joelhos feridos, pois já fazia mais de seis meses que eles não recebiam nenhuma correspondência do filho. As únicas notícias que receberam foi através dos amigos Lício e José de Gabi, que também foram para a Itália, mas retornaram bem antes, pois eles vieram no navio que trouxe os primeiros pracinhas, e disseram que o último contato com o meu pai foi no hospital em Pistóia, fato relatado anteriormente, e daí para frente nada mais convenceu minha avó que meu pai estava vivo, dizendo que estavam mentindo para ela, pois como que os outros já haviam chegado e o seu filho não. Quando o meu pai voltou à casa dos seus pais fazia quase cinco anos que ele tinha partido para apresentar ao exército.Com a volta do meu pai foi logo programada ema festa para homenageá-lo, onde estiveram presentes os seus amigos da região e de Poconé. O tempo passado no Exército fez com que o meu pai quando saiu recebesse uma boa quantia em dinheiro, o que lhe possibilitou mais tarde construir a casa própria, comprar algumas cabeças de gado e proporcionar-lhe um pouco de lazer. Passado algum tempo após a sua volta, a vida no Carvoal voltou ao normal, até que ele teve que vir à Cuiabá, para pegar os seus documentos no quartel no antigo 16º
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Batalhão de Caçadores instalado no prédio em que atualmente é o SESC ARSENAL. Quando foi convidado pelo Capitão Cândido para continuar no Exército, devida as ótimas informações que teve a seu respeito, através do Tenente Roosevelt no período em que prestou serviços militares em Cáceres.Mas como o meu avô Pedro, não queria que ele saísse do Carvoal, pois esperava que ele ficasse à frente dos negócios, que no período em que meu pai esteve no Exército o mesmo entrou em decadência. E por outro lado a minha avó que tinha muito sofrido pela ausência do filho, não admitia em hipótese alguma essa possibilidade.Então para não contrariar seus pais resolveu ficar no Carvoal para retomar os negócios do seu pai, que estava mal. Quando ele foi para a Itália, tinha deixado um rebanho de 350 cabeças de gado e vários rebanhos de cavalos. Era ferrado a cada ano de 100 a 110 potrinhos. Quando ele voltou, só de cavalos extraviados tinha mais de 150 cabeças. Como a criação de cavalos exige mais cuidados e mais experiência que uma criação de bois e como na sua ausência estas diferenças não foram devidamente observadas, culminou quase que na extinção da criação. Então ele teve que organizar, tudo como se estivesse no começo. Meu avô, desgostoso com aquela situação, resolveu mudar do Carvoal para a localidade de Boi Morto, em uma casa que tinha construído para presentear seu filho Tóte quando ele voltasse da Itália. E com a mudança dos meus avós para a casa do Boi Morto, meu pai tomou à frente também o comando do armazém, ficando morando com a sua irmã Quini na antiga casa dos meus avós. Os seus irmãos mais novos foram para a nova residência O meu pai tomava conta do comércio, da criação dos cavalos e voltou à trabalhar com as encomendas dos arreamentos, laços, selas e outros apetrechos de montaria CAPÍTULO X
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para os fazendeiros da região e para seu próprio consumo. Essa habilidade de trabalhar com o couro, ele aprendeu com o seu pai e o seu tio João. O comércio era praticamente o mesmo tipo do meu avô, e as mercadorias eram na maioria das vezes compradas em Poconé, no comércio do Sr. Justino e em Cuiabá do comércio do Sr. Moisés Nadaf. Era fim de 1945 e em uma dessas vindas em Cuiabá, para tratar de assuntos pessoais, quando passeava com seu amigo e Procurador Othon Viegas de Pinho, na praça Alencastro é que foi apresentado a jovem Ana de Miranda que por acaso o Sr Othon também era procurador de sua mãe, que era viúva, e em segundo casamento se casara com o fazendeiro Salomé, também viúvo, o mesmo, já citado, que apoiou o meu avô Pedro, quando se deslocou de Mimoso para a região do Carvoal. Essa jovem mais tarde viria a ser sua esposa, fato que mais a frente relatarei. Ela tinha na época 16 anos de idade e respondia pelo apelido de Branca, e cursava o último ano do Ginásio, no colégio Liceu Cuiabano, que na época habilitava os formandos a serem professores do ensino fundamental.
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“A escuridão poderá esconder as árvores e as flores de nossos olhos, mas não poderá esconder o amor em nossos corações”. Anônimo
CAPÍTULO XI A jovem Branca hospedava-se na casa de sua bisavó paterna Antônia Felipa da Silva, durante um bom tempo para que pudesse concluir os seus estudos. Concluído o Ginásio a mesma começou buscar emprego para poder se sustentar, e conseguiu uma vaga de estagiária de auxiliar administrativa na Secretaria de Estado de Fazenda, quando foi avisada que a sua nomeação para o cargo já estava para se efetivar, e o seu salário seria de Cr$100,00 (cem cruzeiros). Como a sua hospedagem quase se equiparava com o seu futuro salário e como ainda teria custos com transporte, roupas e outras despesas, percebeu que teria problemas para sua manutenção, pois tendo já terminado o ginásio achou que não seria justo continuar recebendo a ajuda da sua mãe, para que continuasse residindo em Cuiabá. Resolveu então pedir para o seu visinho e amigo, o Sr. Jaime de Carvalho, que na época era Secretário de Administração do Estado que interviesse com a sua influência em seu favor. Foi quando o mesmo lhe informou que a professora lotada localidade de Carvoal havia pedido transferência para a localidade de São Pedro, e se ela assim desejasse, a sua nomeação como professora, substituindo a outra que foi transferida, sairia imediatamente, pois mesmo o salário não sendo muito bom, lá ficaria na casa de sua mãe, com o seu padrasto Salomé, e suas despesas seriam bem menores. Outra vantagem era a de ficar perto de sua mãe, pois desde que a mesma ficara viúva, teve que dela se afastar, e vir de Livramento para Cuiabá para poder concluir seus CAPÍTULO XI
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estudos. A sua nomeação saiu no dia 30/04/1946 como professora primária para lecionar na Escola Rural Mista de Carvoal, Município de Nª Srª do Livramento. Concretizada a nomeação providenciou a sua mudança para o Carvoal. Sua ida para o Carvoal foi em uma das muitas lanchas que na época faziam linha pelo rio Cuiabá, e com ela também foi seu irmão caçula, com apenas seis anos de idade, José Leocádio de Miranda, que tinha o apelido de Jéquinha. Chegando ao Carvoal, logo começou a lecionar, a escola funcionava na fazenda do Sr. Salomé, em um ranchão onde tanto as paredes como a cobertura eram de palha. Lecionava no período da manhã e tinha de 25 a 30 alunos. Na sala de aula estudavam juntos os alunos do 1º,2ºe 3º ano primário. O critério adotado para passar de um ano para outro era o seguinte, o aluno que fosse mais aplicado, era automaticamente promovido para a série seguinte, porém continuava estudando na mesma sala. Como naquela época as festas religiosas eram muito freqüentes, foi numa dessas festas, a festa de Santo Antônio é que começou o seu namoro com meu pai. O mesmo continuava tocando o seu comércio e a criação de cavalos. Com o namoro ficando mais sério, no dia 06 de janeiro de 1947, resolveram ficar noivos e no dia 12/06/1947, aproveitando os festejos da festa de Santo Antônio foi realizado o casamento civil. O casamento foi realizado no lugar chamado Biguasal, pelo Juiz de Paz, no município de Barão de Melgaço. As pessoas presentes à cerimônia civil foram meu avô Pedro, tio Davino, a amiga do casal Carmelita e o cunhado do meu pai o Sr. Palmiro. Os noivos juntamente com essas pessoas foram de lancha no período da manhã do Carvoal até o Biguasal. Terminado o casamento voltaram ao Carvoal para a fazenda do Sr. Salomé onde os festejos de Santo Antônio estava em andamento. O único presente que os
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meus pais recordam de terem recebido foi Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros), ganhos do tio de minha mãe, o Sr. Joaquim Miranda. Com o dinheiro trazido da Itália, o meu pai havia construído uma casa de alvenaria. A casa tinha uma sala, dois quartos, cozinha e uma varanda, onde o casal passou a residir. Depois do casamento a escola que a minha mãe lecionava passou à funcionar em uma sala construída especialmente para isto, vizinha a sua nova moradia. Esta casa tinha uma característica que a tornava diferente das outras na localidade e quem sabe fosse mesmo única, pois na sua construção, especificamente na execução das fundações e no muro de contenção, construido para elevar o piso em volta da casa e assim elevar o seu nível em relação ao nível das águas no período de enchente, o “travesseiro de cimento”. O “travesseiro de cimento” na verdade era sacos de cimento transportados por uma chata, que subia rebocada por uma lancha, de Corumbá com destino a Cuiabá, que naufragou no rio Cuiabá, nas proximidades da barra do rio Piraim, no começo da ilha do mesmo nome. Os sacos de cimento ficaram empedrados e com um formato de um travesseiro endurecido, para o qual meu pai teve a idéia de usá-los como material de construção de sua casa, quando voltou da Itália. Para isto reuniu vários amigos, inclusive seu irmão Davino, todos acostumados a mergulhar desde pequenos, em suas brincadeiras de meninos do pantanal, utilizando um batelão de boa capacidade de carregamento, retiraram toda a carga naufragada, uma a uma, em várias viagens, conseguindo material suficiente para as fundações da casa e para o muro de contenção em volta da mesma, solucionando o problema de todo pantaneiro que quer fazer sua residência com capacidade de enfrentar as famosas enchentes do pantanal, que fatalmente estará lá todos os anos. CAPÍTULO XI
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No mês de outubro de 1946, o Frei Salvador, que era o Pároco da Igreja de Nossa senhora do Livramento, foi ao Carvoal para realizar uma de suas missões que na época era conhecida como “Desobriga” (missão de ir para realização de casamentos, batizados e crisma para os fiéis da região). Então os meus pais resolveram aproveitar a ocasião para a realização do casamento religioso. Em 16/03/1947 nasce a 1ª filha do casal Eliete Maria de Moura. Em 26/12/50 nasce a 2ª filha do casal Ana Maria de Moura e em 07/08/52 a 3ª filha Marluce Maria de Moura,em 02/05/56 a 4ª filha Vera Maria de Moura todas de partos normais feitos com o auxílio da parteira da região a srª Maria Inês como era o costume da região do Carvoal. A parteira Maria Inês morava em uma localidade próxima ao Carvoal, chamado Retiro Novo, onde hoje ainda, na beira da baia do Coqueiro ou baia Grande, existe um local conhecido como “Porto da Marines”, onde ficava sua casa. Tinha a fama de nunca uma mãe ter perecido sob seus cuidados. Tomava cuidados especiais com as mulheres as quais acompanhava o parto, como por exemplo, ficar um mês, após o parto, na casa da parturiente, para orienta-las como proceder com o bebê, e com elas mesmas, orientando quanto aos resguardos, alimentação e amamentação das crianças. O casal continuou trabalhando em paz, sempre aumentando seu prestígio na região, o herói da FEB, comerciante, boiadeiro e amigo de todos e a professora responsável pela alfabetização e iniciação nos estudos fundamentais de todos nas proximidades, fazendo com que despertassem o interesse de políticos que atuavam na região. Isto fez com que, em meados de 1947 fossem procurados pelo então Deputado Estadual de Mato Grosso, o Sr. Licínio Monteiro que convidou o casal para trabalhar como cabos eleitorais do seu partido o P.S.D. (Partido Social Democrático). Outro partido de grande influência na época
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era a U.D.N. (União Democrática Nacional). Enquanto os meus pais trabalhavam para o P.S.D. outros trabalhavam para a U.D.N. O sistema eleitoral vigente na época era muito ligado a ação direta dos cabos eleitorais, que recebiam apoio dos políticos com objetivo de aumentarem a quantidade de eleitores nas localidades, pois, por falta de informação muitas pessoas aptas a votarem não o faziam, pois achavam muito difícil obterem documentos necessários para isto. Então o papel dos cabos eleitorais era de facilitar a aquisição dos títulos de eleitores, e a filiação dos novos eleitores ao seu partido, para criar um vínculo dos mesmos aos seus candidatos para a época das eleições. O casal Tóte e Branca desempenharam este papel com brilhantismo, pois na localidade onde trabalhavam para o Deputado Licínio Monteiro, conseguiram passar de uma urna com aproximadamente 50 (cincoenta) eleitores, para duas urnas com quase 600 (seiscentos) votos, logicamente que não só para seu partido, o P.S.D., pois a U.D.N. também trabalhava no local, porém com uma maioria absoluta, dando a certeza de vitória ao seu candidato em todas as eleições que participaram. Esta dedicação à causa do partido e à certeza dos votos para o Deputado, criou um vínculo de amizade fraterna entre os mesmos, que veio a se transformar em compadresco,pois quando do nascimento de sua primeira filha, Eliete, foi dada como afilhada ao amigo Licínio Monteiro e sua esposa Izabel (a Dona Bebé) e a terceira filha, Marluce, foi dada como afilhada para Sebastião Monteiro da Silva e sua esposa, sendo o mesmo filho do Sr. Licínio Monteiro.
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“Uma amizade verdadeira é como uma alma em dois corpos”. Aristóteles
CAPÍTULO XII Ao mesmo tempo em que trabalhava com a política, meu pai continuava com suas atividades normais de comércio, criação de cavalos e transporte de gado e por isto passou a ter contatos mais freqüentes com um fazendeiro da região de Poconé, o Sr João Godofredo da Silva, que seria uma pessoa de muita importância em sua vida, pela grande amizade que iria ter entre as duas famílias e até nas gerações seguintes. O Sr. João Godofredo ia freqüentemente à região do Carvoal para comprar gado e cavalos e observando os conhecimentos de meu pai na prática das lides com o gado e cavalos, convidou-o para trabalharem juntos na compra de gado nas diversas regiões do pantanal, que sabia que o amigo Tóte conhecia como a palma de sua mão, e tinha prestígio com a maioria dos fazendeiros para poderem fazer bons negócios naquela atividade. Como o Comércio no Carvoal já dava mostras de franca decadência, devido a mudança de várias pessoas, atraídas pelas facilidades de se morar na cidade, e por problemas da participação na política, pois alguns fornecedores em Cuiabá, que eram do partido contrário ao seu, começaram a criar restrições no fornecimento de mercadorias, meu pai vislumbrou a possibilidade de ter melhores lucros, pois a família estava crescendo rapidamente, e então se associou ao amigo João Godofredo, e partiram para a aventura de boiadear pelo pantanal. O sucesso na atividade política do casal Tóte e Branca criou CAPÍTULO XII
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problemas também para minha mãe, pois sendo o Governo Estadual na época comandada pela U.D.N., alguém que trabalhava para este partido na região do Carvoal, solicitou e conseguiu a exoneração de seu cargo de professora, e que, por quatro meses, causou um grave transtorno em suas vidas, porém com a interferência do amigo Deputado Licínio Monteiro, que contratou um advogado para resolver as questões legais pertinentes ao caso, foi restituída ao seu cargo e providenciado o pagamento dos salários atrasados. Com isto passou a viajar com freqüência, ficando varias semanas longe de casa, e minha mãe, como era professora tinha que ficar para dar aulas em sua escola, e também cuidar das filhas pequenas, sem a ajuda o esposo que antes era sempre presente. Segundo minha mãe, houve uma vez que ficou 45 (quarenta e cinco) dias sem voltar para casa, e com as dificuldades de comunicação da época, causou-lhe muitas preocupações, pois não sabia se seu marido estava vivo ou morto, pois um boiadeiro tem dia para sair, mas não tem dia para chegar, e praticando uma atividade onde o risco de vida faz parte do dia a dia, torna para quem espera uma situação angustiante. Com seu amigo Sr. João Godofredo realizaria grandes negócios no ramo de compras e vendas de gado pela região, faziam viagens à cavalo às vezes até de semanas pela região do Pantanal, conheciam todos os fazendas da região sendo com isso um ramo lucrativo para ambos. O Sr. João Godofredo pela sua amizade com os meus pais iria ter muita influência na mudança para Poconé. A amizade entre as famílias é tão grande que a forma de tratamento é a de cumprimentarem uns aos outros como compadres, pois meus pais ao mesmo tempo em que são padrinhos também são compadres da mesma pessoa, pois batizaram a filha da afilhada, fato este até não entendido por algumas pessoas. A minha irmã Ana Maria é afilhada do Sr.
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Valter e sua irmã Dione que são filhos do Sr João Godofredo e dona Ione. Os meus pais são padrinhos da Ione filha do casal João Godofredo e ao mesmo tempo padrinhos da filha da Ione, que é a neta do casal.Eu sou afilhada também do casal. Por essas e outras é que diz o filho do casal o Sr Sebastião Waldir, “compadre é a palavra chave que encerra os cumprimentos das duas famílias”. Com o meu nascimento coincidiu com uma série de fatos não muito agradáveis para os meus pais na região do Carvoal e também o fato da filhas já estarem em idade de freqüentarem uma escola melhor eles resolveram mudar para a cidade de Poconé. Isso foi em junho de 1956, a minha mãe conseguiu a sua transferência para a Escola Estadual Caetano de Albuquerque, onde ficou lecionando para a 5ª série, que correspondia ao Curso de Admissão, que funcionava como uma espécie de vestibular onde os alunos aprovados eram promovidos para o Curso Ginasial. Em Poconé, com a parceria com o Sr João Godofredo continuou com as viagens como comprador de gado, até que foi indicado pelo Sr. Justino Francisco da Silva, Prefeito da cidade, ao Sr. Lúdio Martins Coelho, grande pecuarista de Mato Grosso do Sul, como homem de confiança e conhecedor de compra de gado e principalmente na região de Poconé. Depois de algum tempo os meus pais conseguiram comprar uma casa na Rua Antônio Marques, onde eles abriram um comércio varejista de secos e molhados. Minha mãe lecionava na escola local e ele, quando não estava viajando para compra do gado, trabalhava no comércio. Foi nessa casa que em 12/03/60 nasceu a quinta e última filha do casal Edna Maria de Moura. Quando então começou a trabalhar como comprador de gado do Sr. Lúdio Coelho era considerado pelo mesmo um CAPÍTULO XII
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colaborador de absoluta confiança, a ponto de chegar na agência do Banco Financial em Poconé, que era de propriedade da família Martins Coelho e solicitar valores para compra de gado, e ser atendido na mesma hora, sem nenhuma restrição, conforme nos foi testemunhado pelo Sr. Valdez Abdala, cunhado de José Adriano, que naquela época era Gerente do Banco acima citado. Ele comprava o gado e levava até a grande fazenda Santa Lúcia, no município de Rondonópolis, as margens do rio Piquirí. O Sr. Lúdio Coelho era um pecuarista com grande visão quanto melhoria da qualidade do gado de sua propriedade, e sabia utilizar como ninguém a experiência de pessoas como meu pai, para conseguir comprar gado de qualidade à bom preço, sabendo descobrir nichos no mercado onde os pecuaristas locais estavam carentes de recurso, como era o caso de Poconé no final da década de 50 e início da década de 60. Meu pai conta que era comum ser alcançado, em suas andanças pelo Pantanal, comprando gado, por um pequeno avião monomotor, que com seus experientes pilotos pantaneiros, aterrisavam em qualquer local em que a vegetação era baixa e com um curto espaço plano, e lhe entregava uma mala cheia de dinheiro, préviamente combinado, para fechar negócio com a vantagem do dinheiro à vista, junto aos fazendeiros locais, tão necessitados de recursos. Lúdio Coelho foi protagonista de uma das mais movimentadas campanhas eleitorais para o governo do estado em 1965, quando disputou as eleições com o Eng. Pedro Pedrossiam, na época um obscuro engenheiro da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Nesta campanha era dado como certo a sua vitória, pois por ser uma pessoa muito popular e muito rica, não mediu esforço nem recursos para angariar votos para sua causa. Porém o seu adversário usou justamente este fator de diferenças econômicas, se apresentando como a opção mais moderna, que ia de encontro com as oligarquias dos pecuaristas que dominavam
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na época, e como no meio da década de 60 havia um certo ar de revolta contra o anteriormente estabelecido, o povo viu a oportunidade de protestar, e contra todas as evidências, Pedro Pedrossiam ganhou as eleições. Porém, em Poconé, onde meu pai era um dos mais influentes cabos eleitorais, ganhou com relativa folga. Observo que, em todo tempo em que meu pai se relacionou comercialmente com o Sr. Lúdio Coelho, o fio de bigode, tão respeitado pelos pantaneiros, foi o código de ética entre os dois, sendo que nenhum dos dois nunca levou vantagem sobre o outro, e meu pai, apesar de movimentar grandes quantias de dinheiro, sem nenhuma fiscalização sobre a sua utilização, nunca usufruiu destas prerrogativas, apesar de ter várias oportunidades para isto. Porém se conservou a grande amizade e respeito entre os dois, que se mantém até a presente dada, pois meu pai, de quando em quando tem notícias de que foi procurado pelo antigo parceiro de compra de gado. Neste período, onde as atividades de meu pai se concentravam na compra e transporte de gado, ele aumentou o seu conhecimento das rotas do pantanal do norte de Mato Grosso, citando, ainda hoje com incrível número de detalhes, os vários caminhos traçados pelas boiadas, naqueles tempos. É normal, antes de contar um dos seus inúmeros “causos”, que envolve seus tempos de boiadeiro, citar como quem recita um verso, os nomes dos logradouros pelo qual a história se desenrolará: “Você desce o coricho do Boizinho até chegar na baia das Trairas, daí você corta para a fazenda Cedral, depois passa pela baia Bocaiúva, atravessa o coricho dos Cavalos, passa pelo landizal do Nhoca, entra pela Pedras e sai na boca do Corichão e vai até chegar na fazenda Sapiróca”.
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Tudo isto é dito como se você fosse conferir, em alguma oportunidade que fosse transportar gado naquelas paragens, como se isto hoje ainda fosse possível. Deste tempo, meu pai recorda vários companheiros, amigos de fé, pessoas que arriscariam a vida, assim como ele, para ajudar outro em apuros, na dura lida de boiadear. Destes velhos companheiros por diversas vezes citou o João “Coisa Ruim”, chamado por ele carinhosamente de “Tio Velho”. Ele era negro, magro e alto, com mais idade que meu pai, porém nunca revelada, e era chamado de “Coisa Ruim” não por que praticava alguma maldade, muito pelo contrário, era a bondade em pessoa, companheiro leal e amigo dos amigos, porém de hábitos misteriosos, cheio de segredos e rezas que só ele sabia e entendia, sabendo todos os mistérios das plantas medicinais e das simpatias curativas para todos os males, sendo daí que todos diziam que ele era um coisa ruim, mais pelo medo do desconhecido, pois achavam que ele teria “parte” com alguma entidade do além, para ser como ele era. Como isto lhe dava destaque no seu meio, aceitava o apelido, sem se sentir ofendido, inclusive se auto denominando: “Muito prazer, João “Coisa Ruim”, a seu dispor.” Quando meu pai estava formando uma comitiva para começar uma jornada de compra e transporte de gado, sempre era o primeiro a se apresentar, e de pronto passava a ajudar nas diversas tarefas que precediam o início da aventura. Sempre bem montado, cavalo gordo, bem tratado, arreamento impecável, traias ajustadas para o que fosse necessário, bem disposto e alegre.
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Numa destas passagens, conta meu pai que aconteceu fatos que realmente deixou todos que presenciaram com certeza que ele não era uma pessoa comum, pois alguma coisa de diferente dos outros ele tinha de ter. Estavam já com a boiada formada, em algum lugar próximo à região do Carvoal, onde tinham comprado gado de vários fazendeiros do local, e estavam se preparando para começar a volta para Poconé, quando um touro preto, de chifres curvados e pontudos, parecido com estes que a gente vê em apresentações de touradas na televisão, ficou enfurecido, talvez por separá-lo de alguma vaca no cio que estava cortejando, passou a atacar quem dele se aproximasse. Quem conhece touro brabo sabe o quanto perigoso é enfrentar em animal nestas condições, pois uma vaca da chifradas a esmo, tentando se defender ou defender sua cria, porém um touro, sabe como atacar com os chifres e os coloca onde quer, da maneira mais mortífera possível. A situação apresentada logo gerou um reboliço entre os boiadeiros, pois nestes momentos é que se destacam os mais hábeis e corajosos, e que no futuro ira poder contar vantagens sobre os outros companheiros, passando a fazer parte de seu “curiculun” nas próximas jornadas. Logo apareceu dois que se aventuraram a tentar laçar o touro a traze-lo para o rebanho, tentando assim acalma-lo, junto as outras rezes. O plano era os dois laçarem o animal, cada um de um lado, e puxando em sentido contrário, domina-lo. Porém, nem tudo correu como o planejado, e um dos laços escapou, ficando o outro boiadeiro a mercê da fúria do touro enraivecido, que partiu com tudo para cima do apavorado peão. Não fosse a habilidade e experiência do mesmo, fatalmente ele ou seu cavalo seria atingido, fato que por CAPÍTULO XII
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pouco não aconteceu. Deixaram o touro onde estava, e voltaram onde estava o grupo, que os observava, admirados com a fúria do animal e com o quão perto o boiadeiro esteve de uma tragédia. Todos concluíram que era melhor deixar o touro naquele local para depois busca-lo. Foi ai que o João Coisa Ruim, com toda a sua humildade, falou a meu pai: “Tóte, posso tentar trazer o touro para a boiada?” Meu pai, com preocupado com a segurança do grupo, pelo qual era responsável, falou: “Tio Velho, é melhor deixar o touro para lá, aqui ele está em terras de gente conhecida, depois eu mando busca-lo” Mas o insistente “Coisa Ruim” disse que já tinha enfrentado outras situações como esta, e que sabia o que estava fazendo, e meu pai, mesmo relutante, concordou. Montado em seu cavalo, se dirigiu em direção do touro, que ao vê-lo aproximar já tomou posição de ataque, esperando ele chegar mais perto. Os outros companheiros se dirigiram a meu pai dizendo: “Tóte, que loucura a sua deixar um velho sozinho enfrentar aquela fera”. Meu pai ponderou sobre sua decisão, porém confiou na destreza de seu velho companheiro, que nunca tinha feito nenhuma loucura, em todos aqueles anos de trabalho juntos. Nenhum dos boiadeiros teve a coragem de acompanha-lo, e ficaram de longe observando o que iria acontecer. Ele se aproximou do touro bravio, que fungava e raspava a pata no chão, como se a qualquer momento fosse
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investir. O João Coisa Ruim parou seu cavalo a uma distancia prudente, de onde o touro ainda não investiria, retirou o chapéu de palha de aba larga, acenou em direção do touro e disse umas palavras ininteligíveis aos observadores apavorados, e foi se aproximando cada vez mais da fera. O touro, conforme ele foi chegando, para a surpresa de todos, foi tomando uma atitude menos tensa, mudando de postura, parando de bufar e até desviando o olhar do homem que aproximava com o chapéu na mão, acenando. Chegou bem perto do touro e jogou o chapéu sobre o mesmo, que levou um susto, e como se fosse uma vaca leiteira ou um boi de carro acostumado a comandos do carreiro, obedeceu ao João Coisa Ruim, indo de trote, sem fazer nenhuma ameaça, até entrar no corpo da boiada, se misturando com as outras reses. Os boiadeiros, que estavam observando, ficaram de boca aberta sem nada entender, como poderia um homem sozinho, enfrentar uma fera daquelas e não sair ferido? Que palavras misteriosas eram aquelas que ele disse e o touro obedeceu? Será que realmente ele tinha “parte” com algum ente do além, do céu ou do inferno? Vários deles fez um sinal da cruz ao ver o ocorrido, como se quisesse abençoar aquele momento ou se proteger do espírito que certamente estaria ali para ajudá-lo. O João Coisa Ruim não se vangloriou, não se enalteceu pelo feito, agiu como se fosse uma coisa totalmente normal a sua façanha. Recebeu os cumprimentos dos companheiros com humildade, dizendo que aquilo era obra da Virgem Santa Maria e de Seu Sagrado Filho e que qualquer um que tivesse fé conseguiria como ele conseguiu. O fato é que o touro, tão perigoso, continuou toda a viagem sem dar alterações, chegando a seu destino sem causar problemas.
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“A única maneira de ter amigos, é ser amigo” Ralfh Waldo Émerson
CAPÍTULO XIII Devido o negócio de compra e venda de gado entrar em uma fase muito ruim na região de Poconé, os fazendeiros viram que uma forma de sair daquela crise que o comercio da pecuária enfrentava era permitir e incentivar as caçadas em suas fazendas. Apesar da consciência de respeito à natureza, a mudança de atividade era uma questão de urgência e a procura pelas peles dos animais era muito requisitada pelas grandes capitais brasileiras e também no exterior. Então dá-se o início a fase das grandes caçadas. As caçadas de jacaré, caititu, jaguatirica, onça, capivara, lontra, ariranha pelo Pantanal, que na época era permitida, devido a enorme quantidade animais disponível na região, e o comércio de pele era, naquela época, um negócio muito lucrativo. Os grandes comerciantes de S.Paulo e Rio de Janeiro mantinham representantes em Cuiabá que compravam as peles diretamente dos caçadores. Então, o meu tio por parte de mãe, Edilberto Miranda (que responde pelo apelido de Nhole) ficou como representante da Firma Bandeirantes, de São Paulo, em Cuiabá, ficando como responsável pela compra das peles que eram caçadas e também compradas pelo grupo que meu pai comandava que também comprava de outras pessoas. A caça ficou um negócio tão interessante que os fazendeiros da região faziam parceria com equipe de caçadores para a exploração do couro em suas propriedades.O tio Nhole enviava ao meu pai o dinheiro para que ele contratasse as equipes de caçadores. Segundo meu pai, geralmente a CAPÍTULO XII
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equipe de caçada compunha em média de 10 a 12 homens, sendo um responsável pela preparação da comida e outros pela caçada. A cada dois caçadores que saiam em uma canoa, um era o responsável pela pilotagem da embarcação e o outro pela caça. A caçada do jacaré, geralmente começava no final da tarde ou à noite, pois o jacaré com a luz do sol fica muito arisco. O jacaré geralmente era morto a tiros de revólver e espingarda calibre 22, devido a munição destas armas serem a de custo mais baixo, também se usava golpes de arpão ou pauladas. O alvo para atingir o jacaré é sempre abaixo da linha do olho, pois quando atingido nessa região ele vira a barriga para cima, o que facilita ser acertado com o arpão, para depois ser recolhido na canoa. Nestas empreitadas meu pai sempre dividiu as responsabilidades com seu sócio e amigo Antônio Pinto de Queiroz, o Totico Magalhães, muito conhecido na região de Poconé, sendo até bem pouco tempo proprietário de terras no Porto Cercado, inclusive fundando lá uma pousada, muito conhecida por turistas e pescadores que procuravam as belezas do pantanal, e que foi o embrião para o grande empreendimento Sesc Pantanal, tão apreciado por todos. Sobre Seu Totico falaremos mais logo abaixo, após os relatos sobre as caçadas. Nesta época a atividade da caça ficou tão intensa que a cada dois caçadores que iam em uma canoa conseguiam matar de 80 a 100 jacarés por dia. A equipe de caçada chegava a trazer no final da empreitada um número de 2.000 à 5.000 peles de jacaré. Juntamente com o jacaré também faziam a caça à onça pintada, jaguatirica, capivara, caititu e outros bichos. Surpreendentemente o couro da onça parda, apesar de na época ser encontrada em abundância, não tinha valor comercial. Também compravam pelas fazendas que passavam, sacos de crina de cavalos que eram comercializados em Cuiabá e depois enviados para S.Paulo e
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Rio de janeiro. A fama como chefe caçador de jacaré foi logo crescendo pela região, que os fazendeiros das redondezas logo começaram a procurá-lo para fazerem parceria quanto à exploração da caça. A parceria funcionava da seguinte forma: os fazendeiros ofereciam a fazenda, as carnes, o óleo para a preparação da alimentação dos caçadores e também os carros de bois para ajudar nos transportes. Depois de terminada a temporada de caça, faziam as contas das despesas da empreitada: pessoal, transportes, alimentação, etc, e era computado o valor das peles abatidas e diminuídas o valor das despesas. O lucro era divido meio a meio entre o fazendeiro e o chefe da equipe de caça. Como a caçada geralmente acontecia durante à noite, quando eles voltavam para o acampamento no período da manhã, depois de descansarem, era retirado do animal o couro era salgado e esticado para depois ser colocado para secar. Quando chegava em Poconé, aos couros era dado um tratamento especial. Aos couros que não atingiam uma medida ideal para conseguir um preço maior, eram colocados espeques para que ele esticasse (espeque era espetos feitos de bambu, com pontas nos dois lados, usados para esticar o couro), também era feita a dedetização nos couros para que eles não fossem atacados por larvas de insetos. Apesar de minha pouca idade na época, lembro das minhas irmãs, Eliete e Ana Maria, com um borrifador de pó inseticida fazendo a dedetização dos couros. Depois desse tratamento, muitas vezes o couro atingia um preço até de 50% maior que o preço adquirido. Como dissemos acima, meu pai teve como sócio e companheiro nestas empreitadas seu grande e saudoso amigo Totico Magalhães, usava o sobrenome da mãe junto ao apelido, pois como dissemos seu nome verdadeiro era Antônio Pinto de Queiroz. Assim como meu pai, também se chamava Antônio, porém dentro da grande imaginação do CAPÍTULO XII
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pantaneiro para inventar apelidos, um era Tóte e o outro Totico. Esta amizade teve seu início ainda no período de infância dos dois companheiros, quando se encontraram pelas estradas do pantanal, ambos como carreiros, responsáveis pelos carros de bois de seus respectivos pais, meu pai com 12 anos e Seu Totico com 14 anos, e provavelmente a coincidência dos nomes e as diferenças dos apelidos aproximou os pequenos trabalhadores, que cumpriam obrigações idênticas, de transportar mercadorias adquiridas nas lanchas que transitavam pelo rio Cuiabá para Poconé, um do porto do Carvoal e outro do Porto Cercado. A partir daí sempre que puderam se encontraram, se divertiram juntos e foram solidificando uma relação de confiança, que culminou no futuro em uma sociedade, onde dividiam responsabilidades e riscos, sabendo sempre que um nunca enganaria o outro, pois em suas relações de negócios nunca houve nem um papel assinado, valia apenas a palavra empenhada, o fio de bigode. Seu Totico era uma pessoa que não conseguia aceitar a falta de atenção dos políticos com as necessidades do povo, e sempre que podia fazia suas manifestações, ao seu jeito, contra o que achava ser falta de consideração com quem deu seu voto para elegê-lo e depois ser esquecido pelo mesmo. Certa vez, conta meu pai, estavam os dois amigos caçando jacarés em um coricho próximo ao Porto Cercado, onde haviam estes animais em abundância. Desta vez não estavam caçando em comitiva, e sim apenas os dois, tentando conseguir algum dinheiro, sem ter que arcar com as despesas das grandes empreitadas. Iniciaram a caçada logo ao anoitecer, como de costume, começando a abater os animais, inicialmente em bastante quantidade, porém conforme foi entrando a noite, foram ficando mais escassos, até que já não estava mais
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valendo a pena continuar na empreitada. Seu Totico disse a meu pai: “Tóte, acho melhor pararmos por aqui, pois conheço bem este local, e acho que é melhor nós deixarmos a canoa aqui e cortarmos caminho pela mata, pois minha casa esta bem perto em linha reta, nesta direção (apontando a citada direção), se voltarmos de canoa só chegaremos no amanhecer. Vamos, jantamos, dormimos e de manhã voltamos para tirar o couro dos jacarés e voltamos com a canoa”. Acontece que enfrentar uma mata fechada, à noite, em local onde cobras, e até mesmo a onça pintada pode atravessar seu caminho, é uma temeridade até para dois pantaneiros acostumados com aquela ambiente. Porém a fome, a possibilidade de dormir com mais conforto, e a decepção com o resultado da caçada concorreu para que os dois decidissem a enfrentar a caminhada. E assim fizeram. Logo que começaram a caminhar perceberam que não ia ser nada fácil vencer os obstáculos, pois mesmo com a experiência de Totico e as lanternas a pilha que os dois possuíam, a noite estava muito escura e os cipós, espinhos, os mosquitos, os buracos e as vezes a lama no caminho mal iluminado pelas lanternas foi dificultando cada vez mais a caminhada. De repente escutou-se um urro característico de uma onça pintada, não muito longe. A reação automática dos dois companheiros foi de sacarem seus revolveres e aumentarem a atenção aos sons da mata. Nada disseram e continuaram a caminhada. Seu Totico na frente e meu pai logo atrás. Instintivamente começaram a apertar o passo, e logicamente os cipós, os espinhos os buracos e a lama começou a incomodar muito mais. Neste momento o urro da onça se fez escutar mais próximo, e no meio da escuridão, meu pai é surpreendido com o Seu Totico vindo a seu encontro e, como se diria em bom “pantanez”, de “supetão”, ou seja inesperadamente CAPÍTULO XII
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segurou com suas duas mãos em seus ombros, e falou em voz alta : “Tóte”. Meu pai sentiu um arrepio descer pela espinha e seu coração bateu acelerado e pensou: “Virgem Maria, é a onça, deve estar bem ai na frente e o Totico deu de cara com ela”. E se preparou para enfrentá-la Porém Seu Totico continuou a falar: “Tóte, veja nossa situação, dois pais de família, no escuro, no meio do mato, enfrentando cipós, espinhos, buraco, lama, mosquitos, arriscando a ser comidos de onça ou picado por uma cobra. Tóte, se nós morrermos aqui, nossa família nem sabe onde estamos, só vão saber quando verem os urubus rodeando no céu. Tudo isto para tentar ganhar o pão de cada dia, enquanto, e isto é que não me conformo, aqueles filhos da mãe daqueles políticos estão no bem bom, roubando nosso dinheiro, dormindo em colchão de molas, e na época da política ainda tem o desplante de vir falar mentiras, prometer o que não vão cumprir, e querer que a gente vote pra eles continuarem na roubalheira”. Tudo isto foi dito num só fôlego, sem interrupção, em um tom de indignação que só um homem realmente revoltado que não se conteve depois da idéia em sua cabeça ir se formando e ficando cada vez mais forte e raivosa a cada picada de mosquito, a cada tropeção ou arranhado de espinho e que veio culminar com os urros da onça, que lhe deu a certeza do risco de vida que estavam passando. Meu pai, depois de refeito da surpresa e certificado que não era o onça que fizera o Seu Totico voltar a seu encontro, escutou o discurso indignado do amigo, e na verdade dando-lhe toda a razão do mundo em suas
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CAPÍTULO XIII
considerações, porém lhe veio a mente onde estavam, e em que adiantaria tão revoltado discurso feito para ele, os mosquitos, as cobras e logicamente para a onça, que continuava a urrar. Ai meu pai falou: “Calma, Totico, estamos só nós dois aqui, não adianta se revoltar deste jeito, deixa pra mostrar pra eles na hora de votar, que é só isto que eles entendem”. Os dois amigos ainda ficaram por algum momento frente a frente, respiração ofegante, um pela surpresa e o outro pela indignação, e ao perceberem o inusitado da situação explodiram em uma gostosa gargalhada, que ecoou pela mata, provavelmente deixando sem entender nada os seus expectadores, os mosquitos, as cobras e a onça. Daí seguiram o caminho, e rapidamente chegaram a casa de Totico, onde sua esposa se apreçou em lhes preparar algo bem saboroso para comerem, para depois dormirem o sono dos justos. Em julho de 2002, fomos a Poconé com objetivo de assistir a Cavalhada, um evento anual tradicional daquela região, onde cavaleiros de duas facções, os Cristãos e os Mouros se enfrentam em uma simulação de batalha com objetivo de resgatar uma princesa cristã capturada pelos mouros, espetáculo de rara beleza e de destreza dos cavaleiros pantaneiros, que começa pela manhã e vai até à tarde. Fomos eu, Clovis, Camila, Jorge e meu pai, sendo que além do gostoso passeio, que deverá ser repetido mais vezes, a viagem tinha também o objetivo de levar minha filha Camila a conhecer o evento de grande interesse turístico, já que estava fazendo o Curso de Turismo, e era para ela importante conhecê-lo. O período da manhã transcorreu sem nenhuma surpresa adicional, a não ser a beleza do espetáculo e a satisfação de meu pai de ser cumprimentado por todos que CAPÍTULO XII
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encontrava, um lembrando os tempos de compra de gado, outros os tempos de caçadas, outros o período de Correio ou da loja comercial. Amigos, compadres, afilhados, parentes, todos alegres e satisfeitos, abraços e gargalhadas. Resultado de uma vida de uma pessoa que soube marcar pela amizade e pelo apreço. Depois do almoço, que foi no clube local, onde meu pai acabou por encontrar outras pessoas que ainda não havia encontrado e ficou sabendo notícias de outra pessoas que lá não estavam, percebemos uma mudança em seu semblante. Preocupados, procuramos saber a razão do seu entristecimento, e ele nos falou com a voz embargada de emoção: “Me encontrei com Armindo, irmão de Totico” E eu perguntei, com interesse, sabendo de sua consideração por esta pessoa, para ele tão especial: “E aí, como ele esta?” E meu pai falou: “Ele morreu, faz oito dias, e eu nem fiquei sabendo, para poder homenagear meu grande amigo, mas tenho certeza que esta em um bom lugar”.
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“Se não houver frutos, valeu a beleza das flores. Se não houver flores, Valeu a sombra das flores. Se não houver folhas, Valeu a intenção da semente”. Henfil.
CAPÍTULO XIV O período áureo das caçadas no Pantanal foi por volta de 1960 à 1963, quando então foi sancionada uma lei Federal que proibia a caça aos animais selvagens no Brasil. Nesse período, mudamos para a Rua Salvador Marques, e foi o tempo que tivemos uma situação financeira tranqüila. A casa era muito espaçosa, tinha os quartos grandes, dois quintais cheios de arvores frutíferas, e era bem localizada, ficando bem na área central da cidade. Por causa da grande amizade com o casal João Godofredo e D. Ione foram apresentados a todos na cidade e com isso fizeram grandes amigos, e muitos deles continuam assim até os dias atuais. Devida a grande fé cristã, que sempre acompanhou o meu pai, ele foi convidado a pertencer a Irmandade de S. Benedito, fato que continua acontecendo até hoje, isto nos proporcionou participar de todas as festividades da cidade. O tempo que vivemos em Poconé, que foi de junho de 1956 até janeiro de 1966, posso dizer, pelo menos da minha visão, que foi sem dúvida o mais alegre, mais livre e despreocupados que passei na minha infância, pois lembro de participar, junto com as minhas irmãs e amigas da cidade em todos os tipos de brincadeiras da época, tipo: batizados de bonecas, andar de bicicletas, subir em árvores para pegar frutas, tomar banhos de chuva, esconde- esconde, jogar Sete Marias, fazer barquinhos de papel para depois soltá-lo na água da chuva que escorria pelas ruas, pular corda, sapeiro (brincadeira que em outros lugares é conhecido por brincar CAPÍTULO XIV
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de pegador), sem falar nos grandes e inesquecíveis quitutes que promovíamos na casa da madrinha Ione, sempre à sombra de uma frondosa árvore. Como a cidade era muito pequena e tranqüila, podíamos sair sozinhas com outras crianças pela cidade sem nenhuma preocupação, pois todas as pessoas da cidade se conheciam. Acredito ser esse período da minha vida, onde tive muito contato com a natureza, tipo: banhos de rio, o meu pai com a sua criação de passarinhos, sempre vendo galinhas no nosso quintal, papagaios nas árvores, sempre tínhamos um cachorro de estimação, a comer frutas pegas direto dos pés, à colher o alface, tomate, cebolinhas da nossa própria horta, foi responsável para que hoje, eu tenha um pouco da consciência ecológica, que penso estar insuficiente nos jovens de hoje. A vida continuava tranqüila em Poconé até que veio a Lei Federal, proibindo a caça ao couro dos animais e então meu pai, que nunca admitiu fazer algo fora da lei, teve que procurar outra atividade para trabalhar. Neste período meu pai voltou a comprar gado, agora por conta própria, se valendo de um pouco de recurso que sobrou das caçadas e de crédito que tinha com fazendeiros e compradores. Comprava gado na região de Poconé e Livramento e vendia para matadouros de Várzea Grande, principalmente na região conhecida como Capão. Então a minha mãe resolveu escrever uma carta ao Presidente da República, o Sr João Goulart, pedindo uma vaga de emprego para meu pai, expondo que ele era um expedicionário da F.E.B, que lutou pelo Brasil, nos campos da Itália e estava desempregado e com cinco filhas para educar. Enquanto esperava a resposta da carta, ele resolveu ir até Corumbá, pois lá estavam inscrevendo expedicionários para vagas em empregos federais. A resposta da carta, não demorou a chegar, dizendo que ele deveria aguardar que a nomeação coletiva dos expedicionários já estava sendo providenciada.
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Em novembro de 1963, saiu a nomeação coletiva dos ex-combatentes da F.E.B, para trabalharem, e a do meu pai, foi para prestar serviços na Agência de Correios e Telégrafos em Poconé. Um mês após começar a para trabalhar nos Correios, saiu a nomeação da Receita Federal, resultado da sua viagem à Corumbá. O mais coerente era dar preferência à vaga na Receita Federal, mas quando ele foi tomar posse neste cargo, descobriu que ela tinha sido suspensa, pelo fato da sua nomeação do Correio já estar concretizada. Começou à trabalhar no Correio, desempenhando a função de carteiro, mas logo foi promovido para trabalhar na própria agência trabalhando em outras funções, onde aprendeu um pouco de tudo. Em Poconé, a vida era muito divertida para todos nós e como meu pai sempre gostou de também usar suas horas de laser jogando canastra e truco espanhol, logo formou uma turma de amigos para jogarem 0no bar do Sr Juvenal, à noite sempre no horário das 19.00 às 21.00horas, pois o fornecimento da luz elétrica terminava nesse horário, então eles eram obrigados a encerrar o jogo, pois caso contrário ficavam no escuro. Os companheiros mais freqüentes nestas reuniões eram: Heráclito, Neco Falcão, José Procópio, Antonio Eubank, Pinduca, Donisete do Prado, e mesmo não jogando com o pessoal, havia sempre a presença do amigo Valdez Abdalla, que se contentava apenas assistindo as animadas rodadas de baralho. Enquanto ele se reunia para seus animados jogos com os amigos, a mamãe com as filhas, costumava ficar na casa da madrinha Ione, esposa do Sr. João Godofredo, sentada em cadeiras na calçada, como é a tradição nas cidades pequenas, para colocar os assuntos em dia. Por causa desses constantes encontros, essa amizade foi sempre crescendo, e continuou mesmo após a mudança para Cuiabá, só terminando com o falecimento da minha madrinha no ano de 2001. Não poderia deixar de ressaltar aqui, o exemplo que tive da madrinha Ione, presenciando e CAPÍTULO XIV
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sentindo como desempenhar o papel de madrinha cristã, dando carinho, apoio e orientação aos seus afilhados. A vida em Poconé transcorria sem muitos sobressaltos, parecendo estar tudo em seu lugar, porém algo estava acontecendo e que de imediato não se poderia perceber, porém, iria causar graves conseqüências na economia da cidade, afetando de alguma forma a vida de todos. Com a proibição do comércio de couro de animais selvagens e problemas com o comércio de gado, fizeram com que muitos dos grandes fazendeiros da região se endividassem, e com o advento começo do período dos governos militares, após 31 de março de 1.964, alguns privilégios conseguidos pelos mesmos foram retirados, principalmente nas facilidades nos créditos bancários, fazendo com que muitos, para honrar suas dívidas, necessitassem diminuir suas atividades em seus negócios e muitos até mesmo desfazer de suas fazendas, obrigando muitos a procurar outro ramo de atividade fora da cidade. Houve então em grande êxodo de pessoas de Poconé para Cuiabá, buscando na Capital novos horizontes. Como as filhas já estavam crescendo a filha Eliete já tinha terminado o ginásio e havendo a necessidade de estudar em uma escola de melhor qualidade, o comércio do couro estava proibido, a cidade começando a entrar em crise, meus pais então resolveram mudar para Cuiabá. A mamãe conseguiu a sua transferência como professora, para lecionar na Escola Espírita Kardenciana, que era administrada pelo Centro Espírita de Cuiabá, que além da função pedagógica, também tinha uma função social, sendo que os professores eram fornecidos pela rede estadual de ensino. A escola era dirigida preferencialmente para a população de baixa renda, fornecendo aos alunos material escolar, inclusive uniforme, além de dar apoio social e espiritual as suas famílias. A mudança para Cuiabá aconteceu em janeiro de 1966, quando então fomos morar em uma casa, situada na
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Rua Filinto Muller, no antigo Bairro Popular, hoje denominado Bairro Goiabeiras. O meu pai foi transferido para Cuiabá para exercer a função de Carteiro na Agência dos Correios e Telégrafos localizada na Praça da República. Porém ficou nesta atividade somente um mês, pois como já tinha bastante prática de outras funções, adquiridas na Agência de Poconé, que por ser uma agência pequena, exercia várias atividades ao mesmo tempo, foi trabalhar como Operador Postal e depois no Setor de Registro, mais tarde no Setor de Tesouraria, no Setor de Abertura de Malas. Durante o tempo em que esteve no Correio, procurou aprender tudo que o seu trabalho podia lhe proporcionar, e como sempre, adquiriu além de experiências, confiança e amizade de seus colegas e superiores. Trabalhou nestas atividades até que em 1.975 quando o Correio foi transformado nacionalmente em Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, fazendo com que várias atividades fossem revistas, eliminando muitos cargos, e os funcionários oriundos da FEB foram colocados a disposição do D.A.S.P. para posterior recolocação em órgãos da administração direta. Com a mudança para Cuiabá houve muitas transformações em nossa vida, pois nós passamos a viver exclusivamente das rendas do papai e da mamãe, como funcionários públicos, sem ter os ganhos extras que meu pai conseguia em Poconé, com a compra e venda de gado e no comércio de secos e molhados e couro de animais selvagens. As minhas irmãs Eliete e Ana Maria, começarem a trabalhar, ajudando meus pais nas despesas da casa. Lembrando que antes morávamos em uma cidade pequena e a liberdade de sair sozinha à rua era natural e tudo era muito próximo. Quando chegamos em Cuiabá, e como a mamãe vivia sempre com receio dos problemas de segurança de uma cidade maior, perdemos muito da nossa liberdade. Moramos em duas residências até que o Governo CAPÍTULO XIV
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Estadual criou a COHAB, e com o financiamento do BNH iniciou a construção de casas populares em Mato Grosso, sendo o núcleo Habitacional Cidade Verde conhecido como COHAB VELHA, que foi o primeiro a ser construído em Cuiabá e meus pais se inscreveram e foram contemplados com uma casa neste local. Na nova residência, embora tinha a grande vantagem de ser casa própria, tinha uma desvantagem que era a distancia em relação ao centro da cidade. Pois o transporte urbano, naquele tempo, era muito precário, com poucos ônibus e algumas Kombis, que eram chamadas de lotações. Para chegar até o centro muitas vezes tínhamos que esperar por mais de uma hora no ponto do ônibus. Na COHAB, os meus pais fizeram várias amizades, e logo o Sr Tóte, já tinha vários companheiros para as suas partidas de canastra e truco espanhol, sendo os mais frequentes: O Sr Florizel, Nelsolino, Joãozinho, conhecido como Cuca, Borralho, José Dias e outros. Foi morando nessa casa que a mamãe, depois de 22 anos fora dos bancos escolares resolveu voltar à estudar para fazer o 2º grau, ou seja, o Curso Normal para melhorar o seu nível como professora e em 17/12/70 concluiu o seu Curso de Normalista. Em 24 de maio de 1969, casa-se sua primeira filha Eliete, com José Adriano de Moraes, um filho de Poconé. Como uma pessoa ativa em de tudo que participa, papai logo começou a fazer parte da diretoria da Associação de Bairro, ajudando a comunidade em várias atividades de interesse de todos, tais como, ajuda na organização de festas e encaminhamento de reivindicações do bairro junto às autoridades, colaborando em muito no desenvolvimento social daquela localidade. No seu trabalho no Correio ficou sabendo das mudas de rosas que poderia pedir por correspondência de Roselândia, uma produtora de rosas do interior de São Paulo
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e com isso fez um jardim na frente da nossa casa, onde tínhamos rosas de quase todas as cores, inclusive uma rosa com o nome da apresentadora Hebe Camargo, bastante grande e vermelha que chamava a atenção de todos que a avistavam. Tínhamos também vários passarinhos em gaiolas que nos alegravam com seus lindos cantos, uma horta no quintal, uma pequena criação de galinhas e como não poderia faltar, um cachorro de estimação para cuidar da casa. Conto essa parte para sempre ressaltar a ligação do papai sempre com tudo que for ligado à natureza. Em 06/05/72, casa-se sua segunda filha Ana Maria com Rachid Herbert Pereira Mamed. Em 19/01/1974, casa-se a sua terceira filha, Marluce, com Oduvaldo Raimundo Fabiano Alho Cardoso. Em 19/01/1980 casa-se a sua quarta filha, ou seja, eu, Vera, com Clovis Pereira Mendes Filho. Em 26/12/1981 casa-se a sua quinta filha, Edna, com Nilson Martins Marques. Sua filha Eliete lhe deu três netas: Adriana, Andréa e Laura Sua filha Ana Maria lhe mais três netas: Letícia, Érika e Samira. Sua filha Marluce lhe deu três netos: Fabiano, Marcelo e Rafael. Sua filha Vera lhe deu o 1° casal de netos: Camila e Jorge. Sua filha Edna lhe deu outro casal de netos: Mônica e Nilson. Sua neta Adriana lhe deu dois bisnetos: Murilo e Felipe. Sua neta Andréa lhe deu duas bisnetas: Ana Clara e Júlia. Sua neta Letícia lhe deu um casal de bisnetos: Natália e Yuri. Sua neta Érika lhe deu uma bisneta: Caroline. Depois que saiu do Correio, meu pai ficou a disposição do D.A.S.P. por dois anos, aguardando a sua recolocação em outro órgão público, recebendo CAPÍTULO XIV
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normalmente seus salários, e teve, mesmo que forçadamente, um período de relativa calma, ficando em casa, porém nunca ficando parado, pois sempre arrumava alguma atividade para fazer, tais como, Em 17/02/77 exatamente às 12:00 horas ele se apresenta para trabalhar na Receita Federal, onde ficou lotado no NIEF Núcleo de Informação Econômica e Fiscal,trabalhou posteriormente em outros setores, inclusive no Arquivo do DIEF Divisão de Informação Econômica e Fiscal. Trabalhando na Receita mais uma vez honrou a sua tradicional característica de homem pantaneiro, a honestidade e a seriedade, quando saiu a sua aposentadoria recebeu várias homenagens dos seus colegas e superiores, onde trabalhou até 1982. Desde o tempo em que morávamos em Poconé, meu pai, por motivos profissionais, transportando gado ou caçando ou com o pretexto de visitar a sua irmã Cândi, que mantinha sua residência as margens do rio Piraim, próximo ao Carvoal. Dona Cândi era chamada pelo meu pai de “Madrinha”, pois quando ele nasceu ela tinha então nove anos e pediu que queria ser sua madrinha de batismo e quando isto aconteceu ela ajudou a segurá-lo junto com os verdadeiros padrinhos, no momento que o padre procedeu o sacramento. Para ela tinha naquele momento assumido a responsabilidade de uma verdadeira madrinha e desempenhou seu papel ajudando a cuidar do pequeno irmão e meu pai a respeitava como tal. Com este contato permanente com o Carvoal e o rio Piraim, logicamente isto sempre se transformou em pretexto para gostosas pescarias, aliás, uma atividade que meu pai tem verdadeira paixão e que leva a tão a sério que toda vez que pesca tem-se a impressão que depende daquela atividade para alimentar a família, pois trata de tudo com extremo profissionalismo. Quando mudamos para Cuiabá, junto com vários
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amigos, tais como Nelson Lino, Joãozinho (o Cuca), e com seu genro José Adriano e Valdez Abdalla (cunhado de José Adriano), organizaram várias pescarias no rio Piraim, naquela época, década de 60 e 70, bastante piscoso. Inicialmente ficavam hospedados na residência da Tia Cândi, porém como as pescarias ficavam cada vez mais freqüentes, o meu cunhado José Adriano resolveu comprar uma área de terras que eram remanescentes das terras pertencentes ao meu avo Pedro Dias. A área media 23 hectares e pertencia aos herdeiros de meu avô. Meu pai dispensou a parte que teria que receber e meu cunhado adquiriu a pequena porção de terras de meus tios e ai começou uma outra história do relacionamento de meu pai com a região do Carvoal. Além das pecarias, que passaram a ser mais freqüentes, meu cunhado José Adriano passou a formar no local uma fazenda de criação de gado, inicialmente arrendando campos dos vizinhos e posteriormente adquirindo mais terras para a dar sustentação as suas pretensões de desenvolver uma atividade pecuária sustentável na região. Meu pai passou a ter a oportunidade de novamente praticar as suas atividades preferidas, a criação de gado e cavalo e o contato mais freqüente com a lides do campo, podendo temperar com as atividades, que cumpria com toda a competência possível, a de funcionário público e a de homem do sítio. Perto do Carvoal existe um local chamado Retiro Novo, onde se forma uma pequena comunidade de pessoas aparentadas, sendo vários irmãos e primos herdeiros de uma porção de terra que usam em comum, sem dividir, criando o gado a maneira de seus ancestrais, solto no campo e todos sendo responsáveis pela sua guarda. Na época certa, quando as vacas dão cria, se reúnem e arrebanham o gado para marcar as novas reses e poderem conhecer o desenvolvimento do rebanho. Lá também se criam cavalos CAPÍTULO XIV
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para corrida de cancha, modalidade onde dois participantes correm uma certa distancia em linha reta, sendo um esporte muito disputado entre as pessoas do local e das redondezas, por vezes causadoras de sérias desavenças, devido as quantias apostadas no evento. Neste local, o Retiro Novo, é festejado o dia de Santo Antônio, no qual meu pai fez promessa, desde a mocidade, de participar como festeiro ou como um dos organizadores, sendo para ele um compromisso inviolável, e sempre que pode doou uma rês bem gorda para o churrasco da festa. Nesta festa ele tem oportunidade de reviver as suas tradições, tais como: cantar e dançar o “cururu”, tocar a viola de cocho, organizar o levantamento de mastro, ao som das modinhas de “cururu” em louvor ao Santo, cantar as cantigas do “siriri”, onde homens e mulheres cantam e dançam alegremente. Tomar uma cachaça com os velhos amigos, que a sua volta fazem roda para escutar e contar histórias, e darem boas gargalhadas de pura felicidade. Até hoje esta tradição é mantida e todos os anos meu pai volta ao Retiro Novo para homenagear o Santo de sua devoção e reencontrar seus velhos companheiros. È impressionante ver como o povo daquelas paragem tem respeito pelo meu velho pai, é comum pessoas de cabeça branca, porem décadas mais novo que ele, se aproximar e lhe pedir a benção.
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“Conspira contra a sua grandeza,o povo que não cultiva os seus feitos heróicos”
Lema da Associação Nacional dos Veteranos da F.E.B.
CAPÍTULO XV Em 1985 foi criada a sede da Associação dos Veteranos da FEB em Cuiabá e o primeiro Presidente foi o Major Raul Ribeiro Teixeira, a sede foi construída no Bairro C.P.A IV, cujo terreno e despesas com a construção foram doações de um expedicionário o Sr Antônio Moreira da Costa, que por ter uma situação financeira bem superior à maioria dos seus companheiros da F.E.B. e resolveu contribuir para que a Associação tivesse sucesso. As reuniões da Associação aconteciam mensalmente, sempre em um domingo pela manhã, onde eram discutidas as reivindicações dos associados e os interesses da classe e onde podiam reencontrar velhos companheiros e relembrar as façanhas vividas durante a guerra. O papai ocupou a posição de secretário por três gestões, a do Major Raul, do Major Franchi, do Antonio Moreira. Meu pai foi escolhido por três vezes para ser Secretário da Associação por ser conhecido por ter o costume de anotar tudo o que lhe parece importante. Ele sempre manteve um livro tipo “Livro de Ata”, onde anota tudo o que ocorre com ele e sua família, tanto os mais próximos, quanto alguns mais distantes e conhecidos, quando o fato é realmente interessante. Nestes livros, pois chegaram a ser vários volumes, está anotado todos os nascimentos, casamentos e falecimentos, batisados, com data, hora, número de registro em cartório, e curiosidades de toda a família, amigos e conhecidos, bem como aquisições de bens importantes, tais como casa, terras, gado e fatos CAPÍTULO XV
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importantes, tais como, enchentes, acidentes, cirurgias e doenças graves, tudo relatado como um fato jornalístico. É comum na família e nas pessoas de seu relacionamento o procurarem para em uma pesquisa em seus livros de apontamentos, buscar informações sobre os fatos relatados, que muitas vezes eles próprios que são os diretamente interessados, perderam ou esqueceram os detalhes do ocorrido. Infelizmente, em 1983, quando se encontrava no II Encontro dos Expedicionários da FEB, em Porto Alegre, RS, sua residência foi assaltada e os ladrões levaram vários volumes de seus apontamentos, perdendo para sempre as valiosas informações neles contidos. Estas informações perdidas poderiam em muito ter ajudado a elaboração deste livro. Este costume de escrever sobre o que acontece em sua vida pode ser percebido, também, nos relatos em forma de verso e prosa de suas viagens com seus companheiros da FEB, conforme poderá ser apreciado, nos relatos que virão a seguir.
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CAPÍTULO XV
A Associação do Veteranos da FEB de Mato Grosso chegou a ter em 1985, o número de 78 associados, conforme a lista abaixo :
Relação nominal dos Veteranos da FEB associados em 1985 Nº
Nº Mat.
Nome dos Veteranos da FEB
O1 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25
4199 4495 4686 4688 4729 4835 6527 6939 6945 7035 7378 7645 7655 7669 7753 7803 7808 8003 8004 8073 8074 8087 8097 8252 8302
Elias de Figueiredo Manoel Ciriaco de Almeida Joaquim de Almeida Nicolino R. Nepunoceno Egidio Benedito Carlos Gaudêncio da C Meira Manoel Maria Proença José Lacerda Cintra Feliciano Moreira da Costa Antônio Moreira da Costa Licio Gomes Ferreira Mendes Maurício Avelino de Moraes Davino Leopoldino de franca Joaquim Sergio dos Santos Joaquim Antunes Ferraz Gabriel Ferreira de Jesus Antônio Rodriques Nogueira Manoel Freire de Campos Aleixo Marcelo de Campos José Calazans de Queiroz José Esperidião de Campos Romão Baicere Terreolo Cesário da Costa Ernestino Santana de Arruda João Venâncio Coimbra e Silva CAPÍTULO XV
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26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60
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8303 8314 8413 8437 8438 8464 8479 8529 8530 8533 8534 8535 8536 8537 8553 8555 8557 8575 8576 8577 8633 8641 8730 8740 8757 8825 8826 8845 8934 8935 8936 8986 8987 8988 9018
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Samuel Infantino Aurelino Gomes da Silva João Franchi João Bem Dias De Moura Filho Ranulfo Pana Martines André Corsino De Freitas Nivaldo Costa Arruda Mario De Souza Domingos Sarubbi José Marcelino Vieira Filogônio De Moraes Rutênio DA Silva Rondon Raul Ribeiro Teixeira Armindo Santana Dias Adelino Augusto de Araújo Norberto Ferreira Coelho Zeferino Santana Ribeiro Tibúrcio da Silva José Benedito Alves Martins Gabriel De Souza Guimarães Oscar Coutinho Antônio Abdon Sátiro Lopes de Magalhães Eugênio Augusto Serra Raul Fortunato de Campos Mário Pinto de Arruda Leonel de Freitas Lucialdo José da Silva Curvo Cleto Rodrigues da Silva Antônio Dias de Moura João de Deus de Souza Francisco Martins de Santos Sebastião Rodrigues de Carvalho Raimundo Rodrigues de Amorim Benedito Aniceto
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9019 9049 9050 9051 9570 10344 10346 10347 10509 10548 10792 10793 10822 10836
Ismael da Costa Neves Manoel Bruno de Carvalho Paulo Bispo de Oliveira Demetrio Pereira Padilha Gabriel José Pereira Aristides da Silva Lopes Damião da Silva Gomes Juliano Gonçalves Neto Jorge Messias Bispo Carmindo Marques Acácio deluque Benedito Nunes Rodrigues Vitor Arruda Antônio Pedro P. de Miranda Antônio Pessoa de Lucena Pedro da Silva Taques
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Em 1982, por ocasião da visita do Presidente João Batista de Figueiredo, o papai foi escolhido para ser o representante dos Expedicionários no encontro com o chefe da nação. No período de 8 a 13 de novembro de 1983 participou do II Encontro Nacional de Veteranos da Campanha na Itália, realizado na cidade de Porto Alegre. Transcreveremos abaixo, as observações feitas por meu pai, em seu livro de apontamentos, sobre a viagem de Porto Alegre:
II Encontro Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira. Local: Porto Alegre e São Gabriel Rio Grande do Sul Dias 08 a 13 de Novembro de 1983 “Tocha” de Cuiabá Embarque no dia 06 de Novembro de 1983 Local : Residência do sr Major Raul rua Profª Tereza lobo Quadra 2 Casa 08- Consil. Saímos as 6:50 horas em um ônibus especial da empresa “Cascavel Eucatur”, com 29 pessoas, sendo os veteranos da F. E. B e família. Chegamos em Rondonópolis as 10: 15 horas onde os colegas almoçaram no Restaurante Espeto de Ouro. As 11:30 horas prosseguimos viagem, passando por Coxim. Chegamos em Rio Verde as 14:35, paramos alguns minutos em um Restaurante Local, dali partimos as 14:45. Passamos em Campo Grande as 17:10 mas não entramos pelo centro da cidade. Chegamos em Cascavel as 7horas onde tomamos banho café da manhã, enquanto o ônibus fazia revisão. As 11:30 chegamos em Pato branco, onde almoçamos as 13horas entrando em santa Catarina as 2:50 horas e fomos chegar ao Rio grande do Sul as 4;50horas da tarde.
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As 8horas chegamos em Passo fundo, ali fizemos um paradeiro em um restaurante para um lanche, as 9;15 horas, deixando aquela cidade gaúcha terra do Teixeirinha e partimos para porto alegre, ainda faltavam 298 Km, naquelas alturas estávamos muito cansados de tanta chuva , carro fechado, muito calor e excessivo nervoso do pracinha moura que queria que o ônibus parasse.Enfrentamos uma rodovia muito ruim e devido as chuvas atrasamos um pouco a viagem,mas graças a deus vencemos todos os obstáculos, chegando em Porto Alegre as 4 horas da manhã no dia 8 de Novembro de 83.No dia 9 as 10horas teve a sessão solene de Abertura, no Anfiteatro da Universidade Federal de porto Alegre, estando presente as autoridades locais, e também o representante do Presidente da República, Danilo Venturine, fazendo uso da palavra o Presidente da Anfeb de Porto Alegre, o governador Jair soares e demais companheiros veteranos, onde do nosso Estado fez uso da palavra, o nosso vice- presidente Major João Franchi, que enalteceu os feitos da Força Expedicionária Brasileira em território europeu, lembrando os bravos veteranos de Mato- Grosso como Iporã de Oliveira, Plínio Pitaluga de Moura ,Zenóbio da Costa e demais companheiros.frisou em sua oração que estávamos ali com a ajuda do governador Júlio campos que nos doou um ônibus para aquele evento. Finalizou dizendo para os companheiros que aqui ,estão os meus abraços e para os que ficaram nossas saudades.Onde o nosso representante foi muito aplaudido e causou emoção aos que ali estavam, onde muitos não foram capazes de conter as lágrimas. Dia 10 as 9:30 horas Ato Ecumênico foi realizada missa em frente do Monumento dos pracinhas e em seguida o desfile e deslocamento para os Quartéis para o almoço. Dia 11às 18 horas coquetel de confraternização. Apresentação no CTG com danças típicas da região. Dia 12 no período da manhã até o almoço foi livre. As 18:00 horas CAPÍTULO XV
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sessão solene de encerramento no plenário da Assembléia Legislativa. às 24 horas Embarque para são Gabriel, onde ficamos alojados no Quartel do 9º R.C.BID.Às 10 horas missa, desfile dos veteranos em homenagem ao Centenário do Marechal Mascarenhas de Moraes. Às 12 horas almoço servido: tainha assada ,farofa, molho e pão.Às 15 horas retorno à cidade de origem. Em 4 a 08 de maio de 1985 do III Encontro, realizado na cidade do Rio de Janeiro. Neste encontro do Rio de Janeiro, meu pai, ao visitar o Monumento à FEB no aterro de Flamengo, onde fica o mausoléu dos mortos na Campanha da Itália, um local cheio lembranças e emoções estampadas em frases de efeito escritas nas paredes e as urnas mortuárias dos que não voltaram e que foram removidos de Pistóia e trazidos para este local, inclusive os restos mortais de treze pracinhas que não foi possível a identificação e onde está escrito: “ Estes, só Deus sabe seus verdadeiros nomes”. De repente meu pai se viu entre as urnas mortuárias de seus companheiros que morreram naquela fatídica noite em Castelnuovo, ocasião em que salvara a vida do Sgt. Otton, e lá estavam o Soldado Osvaldo, o Sgt. Bento e outros e por um instante, como se fosse uma viagem em espírito, se transportou para o momento da batalha, escutando os tiros e explosões, sentindo o escuro e o frio, ouvindo os gritos e gemidos, sentindo o cheiro de pólvora e o tinir das balas ao seu redor, e sentindo as lágrimas a rolar pela face e com um intenso tremor pelo corpo, dali se afastou, trôpego, apoiado em outro pracinha que lá se encontrava, que lhe dizia: “Vamos sair daqui, Moura, isto não é lugar para nós, que sabemos o que passamos lá na Itália, não dá para explicar, ninguém entenderia” Meu pai prometeu que nunca mais voltaria a visitar
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aquele lugar. Sobre esta viagem meu pai descreveu, a sua maneira e em forma de versos, os fatos pitorescos que aconteceram durante o evento, que foi muito apreciado pelos seus companheiros de viagem e de quem não teve a oportunidade de ir com eles, conforme segue abaixo:
III- Encontro dos Ex- Combatentes da FEB Rio de Janeiro No dia 1º de Maio Dia do Trabalhador A nossa disposição Na praça estacionou Um confortável transporte Que Dr Júlio mandou. Foi da Empresa Eucatur O ônibus que nos levou Mandado por Dr Júlio Que o mesmo patrocinou Mostrando o patriotismo Do grande Governador. Para às 6:00 horas da tarde Major Franchi marcou Embarque dos veteranos Ali ninguém atrasou Naquele exato momento A nossa turma vibrou. CAPÍTULO XV
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Seguimos nosso destino Todos alegres e contentes Do glorioso Bom Jesus Lembramos primeiramente Por onde for que passamos Iluminai nossa mente. O nosso chefe que foi Um homem bem competente Bastante capacitado Também muito inteligente O senhor Major João Franchi Nosso Ilustre Presidente. No outro dia às 13:00 horas Todos nós já bem cansados Paramos para o almoço Num restaurante ao lado Já no Estado de São Paulo Bem longe do nosso Estado Fomos logo perguntando Tem almoço meu prezado Ele a nós se respondeu Já esta tudo preparado Tem P.F. bem sortido E churrasco bem assado
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No bom papo desse moço Outra coisa eu não quis Mandei trazer o churrasco Mas não fui muito feliz Ele gritava no dente Como canto de Perdiz Estiquei quanto podia Rebentar ele não quis Frouxou minha dentadura Sujou todo meu nariz Perguntei que carne é essa esta É contra filé de Assis Logo fomos levantando Seguindo nossa missão Passamos vários lugares Que chamou nossa atenção Fazendas lindas demais Lotado de gado bom Na cidade de São Paulo A noite fica bonita Trânsito muito perigoso Ali ninguém facilita Às 7:30 foras chegamos No restaurante Cumbica
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Quando o ônibus parava Todos desciam ligeiro Um ligado atrás do outro Querendo sair primeiro Logo iam perguntando Onde fica o banheiro Logo alguém já indicava O banheiro fica ali Daquele lado é dos homens Das mulheres este aqui Entravam todas de vez Não queriam mais sair Finalmente conseguimos Reunir a lotação Prosseguimos a viagem Com dois motoristas bons Chegamos de madrugada Sem nenhuma alteração No rio era esperado A nossa delegação Já estava concentrado Posto de recepção Naquele grande Aeroporto Chamado Santos Dumont
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Dia 3 ás 7:30 horas Fizeram determinação Vão para o hotel Guanabara Fazer acomodação Ali está reservado As suas disposições Elias como mais prático Na frente com o motorista Para chegar no hotel Entrou errado na pista Tentou dar 2ª volta O hotel sumiu de vista Dia 4 às 10:00 horas Numa linda Catedral Lá no Rio de janeiro Fomos à missa rezar Como abertura do Encontro Este ato em 1º lugar Dia 5 assistimos Aquela grande parada Banda do 1º Exército Ali estava formada Em frente do monumento Pra assistir troca de guarda
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Depois fomos conhecer Dos mortos o monumento Primeiro percorremos fora Depois visitamos lá dentro Logo que lá entramos Foi dando aborrecimento Treze túmulos contei Desses valiosos homens Bem em cima estava escrito Com letras que nunca somem Os dizeres eram estes “Só Deus sabe seu nome” Caminhei mais à frente Já bastante emocionado Logo encontrei o túmulo Do Sargento Luiz Geraldo De Almeida e Wilson Abel Também estava a seu lado Ali me representou A feição desses três rapazes As lágrimas foram caindo Controlar não fui capaz Saí daquele recinto Deus te descansa em paz
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Baía da Guanabara Dia 6 fomos para lá Em dois barcos passageiros Saímos a passear Conhecendo-a toda Até a Ilha de Paquetá Dia 7 Aeronáutica Aos veteranos fez jus Ofereceram um churrasco Na Base de Santa Cruz Com chopp e refrigerante E música que nos seduz No Campo dos Afonsos Sendo este o primeiro ponto Para nos receber Ali estava tudo pronto Pois constava no programa Do nosso III Encontro A noite mais um programa No Tênis Club da Tijuca Foi ai que nós caímos Direitinho na arapuca Entramos em tantos túneis Bem longe da Tijuca.
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Franchi gritava a Elias Pergunta e alguém ensina Mais tinha um tal Coronel Metido a “gente fina” Diz, já viemos por cima Agora vamos por cima. Tocou pra cima do morro O motorista “fundou o pé” Eu dizia aos companheiros “Seja lá o que Deus quiser, Valei Nossa Senhora, Bom Jesus de Nazaré”. Dia 8 o desfile As 3 Armas ali formadas Com as mais altas autoridades Pracinhas de todos os Estados As bandas também tocavam Aqueles tristes dobrados. 21 Tiros de canhão Ali foram disparados Comemorando a vitória Dos 40 anos passados
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Com o batido do bombo O desfile iniciou Perante as autoridades Todos em forma passou Prestando continências O desfile se acabou. As 4:30 horas da tarde Lá no Hotel Nacional Teatro D. Pedro I Junto à beira mar Pra fazer o enceramento O Presidente Sarney foi lá. Naquele ato solene Para o encontro encerar Uma figura importante Queremos parabenizar O Presidente da ANFEB Coronel Rivemar. Dia 9, as 8:30 horas Viemos de recolhida As 11:00 horas do dia Chegamos em Aparecida Fomos visitar a igreja Da Senhora Mãe Querida Padroeira do Brasil A Senhora Aparecida.
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Depois fomos a um restaurante Ali em Aparecida do Norte Lá encontramos dois garçons De cara muito cumprida Um servia o almoço O outro servia a bebida. Nós pedimos frango assado Mas erramos na pedida Pois trouxeram um frango cru Com a perna bem comprida Só estava depenado Ainda estava com vida. Apertava ele com um garfo Ele achava outra saída As mulheres vendo aquilo Ficaram aborrecidas Diziam vamos pagar as despesas E fazer a despedida Certo fez o Calazans Que não foi nesta corrida Sentado modestamente Em uma mesa bem comprida Logo atolou num P.F. E ficou feliz da vida. Dali tocamos direto Viemos jantar em Itu A turma já comentava Aqui também é frango cru Alguns só tomaram café Outros comeram Bauru.
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Viajamos em carro bom Em ônibus da Eucatur Cinco horas da manhã Chegamos em Posto Zuzu Pertinho de Campo Grande Em ato Grosso do Sul. Chegamos em Rondonópolis Bem depois do meio-dia Procuramos um restaurante Que os motoristas sabiam Almoçamos a valer Deixando a barriga em dia. Terminou nossa viagem Com muita felicidade Chegamos em Cuiabá Ás 5 horas da tarde Com ajuda do Bom Jesus Padroeiro da Cidade. Em nome dos veteranos Que para o Rio viajou Queremos agradecer Quem muito nos ajudou Obrigado, Dr. Júlio Ilustre Governador. Aqui vou finalizando Meu endereço vou dar Moro na Comandante Costa No Centro de Cuiabá Se quiser falar comigo Escreva ou chegue até lá.
Antônio Dias de Moura. CAPÍTULO XV
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“Os elementos essenciais para a felicidade sĂŁo algo que fazer, algo para amar e algo a esperar.â€? Chalners
CAPÍTULO XVI Quando meu pai completou 83 anos de idade, em 12 de agosto de 2003, surpreendeu a todos ao dizer que compraria uma canoa. Algumas pessoas acharam que seria apenas um capricho de meu pai, para que ele, naquela idade, iria adquirir uma canoa? Será que ele achava que tinha força e disposição para remá-la ? Alguns até riam, dizendo que estava finalmente caducando. Porém, a despeito de todas as posições em contrário, meu pai levou seu projeto adiante. Primeiro buscou o Clovis, para desenhar a canoa, da maneira como ele desejava para verificar quanto ficaria a mesma construída em alumínio, pois ele achava que seria mais durável e mais leve, além de nunca ter sido feita uma canoa, nos moldes tradicionais, naquele material. Feito o desenho, com todos os detalhes por ele orientado, procurou um fabricante de barcos de alumínio, na cidade de Várzea Grande, porém o orçamento se mostrou muito alto para o que pretendia gastar com seu projeto. Passou, então, a verificar a possibilidade de se construir uma canoa de taboas, depois de ver uma, muito bem construída, em um passeio dominical que fizemos à localidade de Passagem da Conceição, em Várzea Grande, porém quando estava investigando quem poderia construíla, chegou a ele um recado do “Tìche”, apelido do funcionário da chácara de minha irmã Edna, lá no Valo Verde, localidade situada rio abaixo, próximo a Santo Antônio do Leverger, que havia localizado uma canoa, construída na madeira cambará, CAPÍTULO XVI
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feita, como se diz no Pantanal, “de um pau só”, nos moldes e medidas que ele havia comentado, quando esteve lá. Pronto, estava decidido, era esta a canoa que seria adquirida. Daí para frente passou a planejar como buscá-la, pois a mesma se encontrava em uma fazenda muitos quilômetros à frente do Valo Verde. Conseguiu uma caminhonete emprestada, um motorista, e junto com o “Tiche”, foi buscar a tão sonhada canoa. Depois de alguma dificuldade, pois o caminho era muito mais difícil e esburacado que o informado, sendo que a canoa corria risco de ser danificada, porém depois de todo o cuidado tomado, finalmente a canoa chegou, sã e salva a sua casa, na Morada do Ouro. Daí para frente meu pai passou a cuidar do acabamento da canoa, pois ele classificou a mesma, como muito bem alinhada e com as medidas e dimensões corretas, porém mal acabada, na questão de calafetamento, pintura e outros detalhes que só ele entendia. Eu fiquei encarregada de misturar a tinta que seria pintada a canoa, para que ela não ficasse muito visível, no ponto de vista do peixe. Foi escolhida uma cor marrom claro, parecida com a cor turva da água do rio. Com a canoa pronta para navegar, faltava o remo, que ele também fez questão de confeccionar, comprando taboas, desenhando e esculpindo o mesmo, com ferramentas de carpintaria, tipo serrote, formão, encho, plaina e outras. Depois de acabado os remos ficaram perfeitos, parecendo peças de artesanato. Agora só faltava a pescaria para inaugurar a tão falada canoa, pois nestes quase dois meses este era o assunto que predominava todas as conversas. A pescaria foi marcada para um fim de semana, do dia 10 a 12 de outubro de 2003, alguns dias antes de se iniciar a “piracema”, período em que fica proibida a pesca. Nesta pescaria foi convidado a participar o seu genro e compadre
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José Adriano, Seu amigo Valdez Abdala e outro genro e meu esposo Clovis. A partir deste momento deixarei meu esposo Clovis descrever como foi a tal pescaria, já que dela ele participou: Participar de uma pescaria com meu sogro nunca é uma coisa simples. Os detalhes serão mil vezes verificados e checados novamente, pois como já foi dito anteriormente, Seu Tóte sempre pesca como se dependesse daquilo para sobreviver, levando tudo muito a sério. Tudo foi providenciado, como pescar , o que comer, o que beber, como conservar o peixe, como dormir e o transporte para levar os pescadores e a canoa. Fez uma deliciosa “paçoca de pilão” para a matula, antes de ter peixe para comer, pois certamente não ficaríamos sem pescá-los. O local escolhido para a pesca, foi obviamente o Carvoal, mas também não poderia ser escolhido melhor local, devido o nível de preservação que se encontra aquele pedaço do Pantanal, pois ao contrario de outros locais, lá a população foi diminuindo com o tempo e toda a área foi adquirida por uma pessoa que tenta manter o local mais natural possível, principalmente preservando as matas ciliares nas proximidades do rio Piraim. Saímos de Cuiabá no dia 15 de outubro, no período da tarde, com objetivo de chegar ainda com a luz do sol no local da pescaria, porém alguns contratempos, tais como, compra de gelo, pegar o Valdez, com o motor de popa e comprar certas coisas lembradas de última hora, acabou por nos atrasar e quando saímos já era bem tarde, já nos prenunciando que chegaríamos á noite no Carvoal. Este fato não nos preocupou, pois tanto Seu Tote, quanto José Adriano, conhecem aquelas paragens como a palma de suas mãos, e na verdade dava um novo sabor de aventura a nossa pescaria. CAPÍTULO XVI
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Quando saímos da cidade pude testemunhar uma transformação, meu sogro vai se relaxando, ficando mais alegre, e a olhos vivos rejuvenesce no mínimo uns 30 anos, não aparentando em nada os 83 anos bem vividos que lhe pesam sobre suas costas. A expectativa de ter novamente o contato com o campo e com seu querido Carvoal é para ele como um elixir da juventude. Daí para frente ele lembra casos engraçados para cada curva da estrada, para cada porteira de fazenda ou cada córrego que a gente transpassava. Lembra velhas canções, piadas e de pessoas que por ali viveram e passaram com ele pelas inúmeras vezes que percorreu aqueles caminhos transportando gado ou conduzindo um carro de boi. Passamos pelo Pirisal, pequeno vilarejo pertencente ao Município de Livramento, onde mora parentes de meu sogro, tais como os filhos de seu falecido irmão Juquinha, o seu sobrinho “Peró” e sua irmã “Mariínha”, que tem problemas mentais, porém reconhece e respeita Seu Tóte como se fosse sua filha. Depois do Pirizal nos dirigimos para a sede da fazenda Aparecida, de propriedade do Sr “Titi”, amigo de velhos tempos de seu Tote e de meu compadre Zezinho, que atualmente é proprietário de toda a extensão de terras que anteriormente pertenceu ao Salomé e ao Seu Pedro Dias, portanto da área do Carvoal. Passamos pela sede da fazenda para confirmar com o administrador a autorização permanente que meu sogro tem para pescar ali. Daí encaminhamos para o local da pescaria por caminhos que só mesmo meu sogro e meu compadre Zezinho são capazes de encontrar, conhecendo cada curva, cada buraco, cada árvore, cujas características vão descrevendo numa espécie de competição de quem se lembra mais do local, tantas vezes percorridos, mesmo considerando que estávamos na mais absoluta escuridão. De repente, ao avistarem uma árvore frondosa que se destacava
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das outras, comentaram: “É aqui.” E imediatamente, meu compadre Zezinho, virou a caminhonete em direção a uma moita de capim alto, que disfarçava uma trilha antiga que conduzia ao ponto à beira do rio Piraim. O local escolhido para fazer o acampamento foi a Poça Fria. A Poça Fria é um local especial no rio Piraim, pois diferente de outros lugares, a beira do rio não é enlameada e sim coberto por um fino pedregulho, não se tornando escorregadio, nem mesmo com fortes chuvas, sendo propício para a ancoragem de canoas e barcos. Naquela noite armamos nossas redes nas árvores à beira do rio, ao relento, dormimos sentindo a brisa fria da noite, vendo as estrelas e escutando os sons noturnos do pantanal. Antes acendemos uma fogueira, indispensável em qualquer acampamento que se preze e comemos a paçoca de pilão levada em uma lata pelo Seu Tote, e tomamos um delicioso chá adoçado com rapadura, feito de folha de Cambará, colhido no caminho entre a sede da fazenda e a Poça Fria. Acordamos bem cedo, com o nascer do sol, ao som de milhares de pássaros que ecoavam seus sons característicos, ao qual meu sogro nomeava cada um, dizendo: “Este é um aranquã, agora é uma curicaca, escuta só a anhuma, a rainha do Pantanal, quanta coisa me faz lembrar...” Daí geralmente tinha uma história para contar sobre um fato incluindo estes pássaros em alguma passagem de sua vida, que nós nos deliciávamos em escutar. Armamos as barracas, arrumamos o local para a CAPÍTULO XVI
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cozinha, construindo com forquilhas e madeira fina uma armação, para servir de mesa de apoio, pegamos lenha para que o Zezinho, nosso “Mestre Cuca”, pudesse nos preparar uma “Maria Izabel” (carne com arroz), que comeríamos no almoço. De “quebra torto” comemos mais uma vez a paçoca que Seu Tóte levou para estas ocasiões, acompanhado do chá de folhas de Cambará, adoçado com rapadura. Depois de descarregarmos a canoa da caminhonete e a levarmos para o rio, o Zezinho foi buscar um barco de alumínio que se encontrava na casa do Janjo, um pequeno proprietário, vizinho da fazenda Aparecida, e velho morador do local, muito amigo de seu Tote, e que com muito gosto emprestou o seu barco para podermos pescar. Com o motor de popa trazido pelo Valdez colocado no barco de alumínio e e seu Tote instalado em sua querida canoa, iniciamos a nossa sonhada pescaria. Descemos o rio parando em cada local que achávamos que teríamos alguma chance de pegarmos algum peixe. Confesso que eu estava mais prestando atenção nas belezas da natureza a minha volta, que me apresentava espetáculos contínuos que me enchiam os olhos, com revoadas de garças, biguás mergulhando e saindo da água com um peixe no bico, bandos de Cardeais, com suas cabeças vermelhas, sentados nos sarans, fazendo algazarra, Martins pescadores, voando rente à água, batendo levemente a ponta de suas asas na superfície, deixando para trás um rastro pontilhado no rio. Para mim, a pescaria estava em segundo plano, a sensação de paz que aquilo tudo me dava não tinha preço. Seu Tote, sozinho em sua canoa, estava sempre por perto, sem se afastar de nossas vistas, logo começou a pegar peixes, tais como pacu peva, piraputanga, e pacus, que era a presa mais esperada, apesar de estarmos pegando alguns pacus de pequeno porte que eram chamados de “murilinho” ou de “murilete”, quando o mesmo é de médio porte, pois se dizia que eram resultantes da grande quantidade de alevinos
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de pacus lançados ao rio pelo político Murilo Domingos, na sua campanha “Salve o peixe, salve o rio Cuiabá”. Pude também presenciar a destreza de meu sogro em sua canoa, mesmo com seus 83 anos, conseguia imprimir boa velocidade e por um longo trecho, e rio acima, fazendo sua embarcação deslizar graciosamente pela superfície da água, mostrando para nós que observávamos, que remar é mais uma questão de jeito e prática do que aplicação de força física simplesmente, ou então vê-lo sentado na popa da canoa, com as pernas cruzadas, o remo em uma das mãos e vara de pescar na outra, ao mesmo tempo controlando a direção e velocidade da embarcação e altura da linha na água, e fisgando quando necessário os tão procurados pacus, que porventura caiam em sua armadilha, sem perder a harmonia dos movimentos. E assim vai descendo o rio, ao sabor da correnteza, como se homem, canoa e água fossem um só elemento. Neste ritmo pescamos por dois dias, tomando nossa cervejinha bem gelada e bebendo tragos de cachaça com “Raiz de Bugre”, que é a raiz de um arbusto da região, que colore a bebida com cor de vinho e lhe da um sabor meio amargo mas muito gostoso, que dizem que serve para curar vários males, sem que saibamos quais, porém nos dá uma justificativa para beber a pinga. Vendo Seu Tóte em sua canoa, feliz da vida, cortando as águas do rio Piraim, pude entender o por que de seu empenho em adquirir a mesma e levá-la para a pescaria. É que meu sogro, apesar de sua idade considerada avançada, ainda continua a fazer planos como se fosse um adolescente, no princípio da vida, com todo o tempo do mundo a seu dispor. È a sua maneira de fazer a vida valer a pena ser vivida, sorvendo o que ela tem de melhor em toda oportunidade que ele se apresentar. Depois de deixarmos a canoa sob a guarda de seu amigo Janjo, voltamos para Cuiabá, cansados, porem com a CAPÍTULO XVI
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alma feliz e prontos para enfrentar o dia a dia da dura batalha de “correr atrás do dinheiro e o dinheiro correr da gente”. Seu Tóte realizou mais um de seus planos e tenho a certeza que já esta elaborando algum outro, para que sua vida continue sendo interessante, e tomara que eu esteja incluído na execução da próxima aventura também. Em, 24 de novembro de 2003, meu pai recebe a homenagem concedida pela Câmara Municipal de Cuiabá, Monção de Aplausos. Nesta ocasião, foi enaltecido os feitos dos heróis mato-grossenses na Campanha da Itália, na 2ª Guerra Mundial, sendo que a Câmara Municipal de Cuiabá, mostrou, que mesmo depois de tanto tempo, eles continuam na lembrança e na gratidão do povo de 0homenagem foi concedida a todos os expedicionários vivos e aos que já se foram, através de suas viúvas e filhos. Lá,meu pai, encontrou seus envelhecidos companheiros, todos com mais de oitenta anos de idade, envergando o distintivo da “Cobra Fumando”, orgulhosos e altivos, como se fossem os jovens, que embarcaram nos navios General Mann e General Meigs, no Cais 10 do porto do Rio de Janeiro, para tão incerta viagem, porém com a determinação de quem vai defender a honra de seu país. Para estes nossos tão caros heróis, nenhuma homenagem é pouca e toda manifestação de carinho é bem vinda. As festas do fim de ano, em nossa família, é sempre comemorada em casa, reunindo os parentes e amigos, para confraternizar e agradecer ao Criador as bênçãos e graças recebidas durante o ano que passou. Para meu pai a festa principal sempre foi a do Natal, deixando a do Ano Novo como segundo plano, freqüentando, geralmente, festas que o convidam para participar e às vezes prefere até mesmo ficar em casa sem comemoração especial, apenas vendo o ano terminar e outro começar. Porém, neste ano de 2003, nos avisou que gostaria de
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comemorar a passagem do ano, e de uma maneira diferente para nós, pois segundo suas palavras : “à moda do sítio”, ou seja, ele queria matar um boi e aproveitar todas as delícias que o mesmo poderia proporcionar a um velho pantaneiro, um grande e tradicional churrasco, com costela assada, mandioca cozida, acompanhado de um revirado, feito do miúdo do tal boi, bem como assar a cabeça, e reunir todos a volta dela e devorá-la, daquele modo primitivo que só os iniciados em comer cabeça de boi assada sabem apreciar. Para viabilizar o acontecimento meu pai tratou logo de convocar seu parceiro de confiança para estes casos, o seu genro José Adriano, sem dúvida, dos genros o mais experiente para assuntos de churrascos a moda pantaneira. O local escolhido para a festa de fim de ano foi a pousada na Chapada dos Guimarães, de propriedade de sua filha Ana Maria e seu esposo Rachid, que todos chamamos de Beto, e executor da deliciosa “batidinha tropical”, que é uma mistura de frutas (kiwi, maracujá, laranja), vodka, açúcar e gelo, que todos esperamos com ansiedade para provar e aprovar. Os convidados foram todos aqueles, parentes e amigos, que se dispusessem a comer um boi inteiro. Com antecedência, de quem planeja tudo com cuidado, foi a Chapada com duas semanas para o evento, junto com o genro e compadre Zezinho, escolheram uma novilha bem gorda, compraram, pagaram e a deixaram na fazenda, aguardando o dia da festa. Estas duas semanas que antecederam foram para meu pai de intenso preparativo e expectativa, afiou as facas, preparou os espetos, arrumou e conferiu seu equipamento que seria utilizado no abate da rês, e este passou a ser o assunto predominante em todas as conversas entre os familiares que participariam do tão esperado churrasco. Um dia antes, ou seja no dia 30 de dezembro, se CAPÍTULO XVI
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deslocou para Chapada, juntamente com o Zezinho e o Beto, foram ao local onde estava a novilha escolhida, a abateram, cortaram-na em pedaços para facilitar o transporte e a levaram para a pousada onde seria realizada a festa. Penduraram as partes retiradas da novilha em uma goiabeira que fica bem em frente à cozinha e começaram a retirar os pedaços da mesma para preparar para o churrasco. Para cada pedaço retirado é dito o nome e para que será destinado, tais como: “Esta é a picanha, vamos assá-la am pedaços pequenos, com a gordura para fora e servi-la em fatias bem finas, tipo hóstia de missa, vai ser de comer rezando” ou então: “Corta bem aqui, tirando a ponta da costela, com três ripas, depois de assada vou comê-la a moda do sítio, com as mãos tocando gaita” ou seja, pegar o osso da costela e comer levando diretamente a boca tirando os pedaços na base da mordida. E assim foi que meu pai e seus colaboradores esquartejaram a novilha, rodeado de netos e bisnetos curiosos, que nunca haviam visto algo deste tipo, talvez só agora entendendo de onde que vem o bife que eles comem no dia a dia. Tudo isto, logicamente regado a latinhas de cerveja bem gelada ou da batidinha tropical do Beto, que estava uma delícia. A cabeça da novilha foi devidamente lavada e preparada para ser assada. Os miúdos foram retirados, cozidos e cortados em pedacinhos bem pequenos, para depois de misturados, fígado, coração, rim, temperos, pimenta e farinha de mandioca fazer o tão esperado e delicioso “revirado”. Meu pai queria que acrescentassem o “fufu”, ou seja, o pulmão do boi, como se faz nas festas de santo do sítio, mas foi voto vencido, pois nem todos gostam
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do seu sabor, bem característico, não agradando a todo mundo. Lá fora, em baixo da goiabeira, Seu Tóte recomenda ao Zezinho para retirar o “osso do corredor” (o fêmur do boi), com bastante carne em sua volta, para secá-lo ao sol, junto com outras partes menos nobres da rês, tais como, o músculo e o “granito” (carne do pescoço), para depois fazer uma feijoada pantaneira, da qual faz parte o “tutano”, ou seja, a gordura que existe dentro do “osso do corredor”. Ficamos imaginando a tal feijoada, e apesar de a maioria considerá-la exagerada no colesterol, todos lamberam os “beiços” ao pensar em degustá-la. E assim o boi foi repartido, com seus pedaços sempre nomeados a moda do sítio pelo meu pai, explicando como se deveria consumi-lo, por exemplo: “Este aqui é o “catuni” (patinho), esta é a “posta gorda”, esta é a “leiteira” (a ubre da novilha, que depois de seca vai compor a tal feijoada) e etc...”. Continuamos o resto do dia nos divertindo, escutando a boa música do repertório do Beto e degustando alguns pedaços da novilha assados para o almoço e naturalmente, muita cerveja gelada e a batidinha tropical. Quando a noite chegou, chegou também os primeiros convidados, e como meu pai havia planejado, vieram vários representantes da família de seus queridos compadres, os saudosos João Godofredo e Ione. Estavam lá presentes o Valdir, Lucione, Ioninha e Vânia, todos acompanhados de seus esposos e filhos, felizes por terem sido convidados, pois sabiam que ali estavam em casa, e que a descontração e a amizade, que só existe entre compadres e verdadeiros amigos estariam presentes. Filhos, netos, bisnetos, amigos e compadres, todos reunidos em uma linda confraternização, para comer um boi inteiro, como uma boa festa de fazenda pantaneira. Tudo estava correndo exatamente como o planejado pelo meu pai, que explodia de felicidade, recebendo a todos com seu abraço sincero e seu riso de alegria, tendo sempre uma CAPÍTULO XVI
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observação engraçada ou uma lembrança de algum fato curioso para se comentar com cada convidado que chegava. A cabeça da novilha foi colocada dentro de uma lata de 18 litros, tipo lata de tinta, enterrada em um buraco no chão, colocando bastante lenha em sua volta, e depois de aceso o fogo foi tampada a abertura com telhas para concentrar o calor e assim assá-la, para ser consumida no outro dia na hora do almoço de dia 1º do ano. Durante a noite a festa transcorreu na maior paz, onde todos se alegraram, comeram e beberam com fartura, como manda a tradição das festas de fim de ano. Nem mesmo uma garoa fina que às vezes caia e ia embora, atrapalhou a nossa festa. Nem mesmo um cheiro estranho que às vezes sentíamos, conforme a vento mudava de direção, e que tentávamos decifrar o que era, entre uma cerveja gelada ou uma batidinha tropical e outra, posteriormente complementada com champanhe e vinhos na hora da passagem do ano, que bebemos nos maravilhando com o show de fogos de artifício que iluminou o céu naquele momento. Mais tarde, no fim da festa, resolveram ir conferir como estava a cabeça da novilha, que estava assando enterrada no chão, nos fundos da pousada, para retirá-la e deixá-la para ser consumida durante o almoço de 1º do ano. Todos já fazíamos planos de que parte da cabeça iria dar preferência, uns preferiam a parte da bochecha, carne macia que é comida passando em um molho feito com água, sal, cebola e cheiro verde, outros preferiam a língua, outros o miolo ou a carne em volta do olho, que por mais estranho que possa parecer a quem não tem o costume de comer cabeça assada, é realmente delicioso. Chegaram ao local e perceberam que algo não estava certo, o tal cheiro estranho que sentíamos de vez em quando estava bastante presente próximo ao buraco onde a cabeça estava sendo assada. Retiraram a telha que protegia o assado e depararam com a tão esperada cabeça de novilha
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transformada em carvão. Os responsáveis pela tarefa havia errado na quantidade de fogo para assar a cabeça, que foi feita sem a supervisão de meu pai, que estava ocupado com outros afazeres. Foi uma grande decepção e tratamos logo de colocar a culpa na pouca prática dos genros de Seu Tote, acostumados com a vida na cidade e naturalmente na cervejinha bem gelada e na “batida tropical” que deliciamos a vontade durante todo o dia e durante a festa. O resultado foi uma grande risada geral e demos graças a Deus de termos perdido apenas a cabeça da novilha, porém tínhamos o resto dela, inteirinha para ser comida, e ela não faria falta para complementar a nossa alegria, que perdurou pelo dia afora, compartilhando a felicidade de meu pai, junto das pessoas que ele tanto ama e que também o amam muito e não se fazem de rogado para isto demonstrar. Para mim falar de alguém a quem amo e admiro é sempre fácil pois só sei escrever com emoção. Dos princípios que aprendi com meu pai todos são importantes e procuro sempre aplicá-los em meu dia a dia e também repassá-los na educação de meus filhos, principalmente os de justiça com o próximo, honestidade e simplicidade. Das qualidades do meu pai, sem dúvida a mais marcante e seu amor pela vida e pela natureza. Uma pessoa que nos seus oitenta e três anos de vida, não perdeu a admiração pelas rosas do seu jardim e ainda se encantar com seu perfume. Meu pai sempre me impressionou pela sua maneira de abordar as situações que a vida lhe apresentou de uma forma muito especial, como por exemprlo: De fazer planos para sua próxima pescaria como se estivesse na esplendor de sua juventude. De sua memória invejável, pois apesar de sua idade, lembrar com detalhes causos de sua infância e juventude sendo assim possível reconstituir a sua admirável história. CAPÍTULO XVI
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De se emocionar e chegar às lágrimas quando percebeu que estava presente à celebração da Primeira Eucaristia de seu bisneto. De ter pessoas em seu convívio familiar em classes sociais e capacidade econômica/financeira das mais variadas possíveis e conseguir não fazer distinção, em hipótese nenhuma, entre elas. De saber apreciar e dar boas risadas, quando ouve uma anedota e ainda guardar algumas em seus apontamentos, para poder se divertir posteriormente. De saber cativar as pessoas e com isso sempre adquirir mais e mais amigos. De não esquecer as suas raízes e todos os dias tomar o seu guaraná ralado como todo bom pantaneiro. De poder apreciar um bom doce caseiro e poder saber saboreá-lo sem restrições, por ter sabido se conservar saudável. De saber fazer e comer um bom churrasco e mesmo com a sua idade, saborear a gordurinha de picanha mal passada à noite. De seu gosto pelo uso de perfumes e nunca esquecer de usá-los após o banho, ou quando vai sair. De seu amor pela Pátria, nunca esquecendo que um dia ela o chamou para defendê-la, e lá estava ele pronto para cumprir seu dever e cumpriu com galhardia e voltaria a defendê-la se preciso fosse. De sua maneira especial de manter os bons costumes militares, de respeito a hierarquia, respeitando seus comandantes e comandando com respeito seus comandados. De, principalmente, nunca perder sua fé e agradecer todos os dias a Deus e seus santos de devoção, pela sua saúde e pelo bem de sua família. Isto é o retrato de como vejo meu pai, e agradeço e peço a Deus que o conserve assim por muito tempo.
218 CAPÍTULO XVI
HOMENAGENS ESPECIAIS O aniversário do pracinha Oitenta anos completou o herói brasileiro da segunda guerra mundial! Antonio Dias de Moura, o Tote Dias, mimosiano de nascimento, papa banana , poconeano e cuiabano de coração. A família fez- lhe em festa, linda cerimônia, missa rezada, cantada e falada, palavras e atos de reconhecimento dos filhos ao grande pai e avô. Calor humano e homenagens, também dos demais parentes e muitos amigos ás vésperas do dia de todos os pais, baile e jantar a moda das grandes famílias pantaneiras, com bebidas e comidas com fartura nas mesas. Local aplausível em bela chácara às margens do rio Cuiabá, em Praia Grande, isto em Várzea Grande. Dizem que não existe um grande homem sem a companhia de uma grande mulher, a sua companheira é a professora D. branca, os filhos, melhor as filhas são cinco, seguiram, herdaram, a simpatia, a personalidade e o caráter dos pais.Isto posso dizer de cadeira, por algum tempo fui pensionista e sou dileto amigo desse maravilhoso casal. Nas homenagens que durante a festa lhe fizeram, enalteceram todas as ações e reconhecimento do grande pai e herói brasileiro, do grande público desconhecido. A nação, às vezes exalta o imerecido e relega os bravos porque são simples e humildes. Desculpe Tote Dias, neste instante tocou a campainha de minha casa, relembrando hoje é 13 de agosto dia dos pais, e me foi feita uma entrega de uma cesta de café
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da manhã, encomendada pelo meu filho mais velho, hoje trabalhando em uma capital distante, e eu estou em lágrimas, no cartão diz” para o melhor pai dói mundo, com amor do seu filho ª C.”. Para todos os filhos o seu pai é o melhor, pelo menos os nossos, nos tem assim. Mas sabemos que merecemos, pois grande também foram os meus, o berço e vários outros em vivência. Mas a homenagem aqui é sua e volto lá ... Antes vou saborear o meu presente. Desculpe- me de novo, enquanto saboreava o o laudo desjejum, par nós pantaneiros “ quebra- torto”, o filho caçula presenteou- me um boné, em sua parte frontal gravado” Waldir Paizão e de novo as lágrimas vieram. Bem vamos a sua homenagem que quase roubo . Lembranças, Desculpe- me novamente, adentrou ao escritório onde redijo esta sua homenagem o terceiro filho e ganhei mais uma calça jeans, também bem vindas, minhas prediletas. Mas como dizia, ontem em sua festa foram lembradas algumas das passagens de sua vida durante a guerra em campos da Itália, com atos e conseqüências de bravura e heroísmo, algumas eu disse, pois muitas foram as que eu escutei ao longo de nossa convivência pelo forte laço de amizade entre nossas famílias, tanto que por fatos verdadeiros e registrados de com meus pais e de com alguns dos meus irmãos são compadres e compadre, nosso tratamento entre os membros das duas famílias, que os mais jovens não sabem ao certo quem de quem é compadre verdadeiramente, por isso compadre e a palavra chave que encerra nossos cumprimentos, verdadeiro e carinhoso apreço entre todos nós. Pois de tudo dito, e pelo dito, as maiores, mais fortes e mais carinhosas homenagens foram dos seus familiares, esposa, filhas, genros e netos. A nossa, que não poderia deixar de registrar, pois na memória temos gravada, é a sua constante alegria, humor carinhoso e fraterno, constante.
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Não consigo recordar em toda minha vida outra pessoa de tamanha capacidade de demonstrar e praticar alegria e humor que Tote Dias, histórias, contos, cantos e piadas, muitas ouvi, de gargalhadas participei, também de manifestações festivas muito presenciei. Além dos relatos sérios de determinação e dinamismo do herói brasileiro. Soldado, vaqueiro, comerciante, agente do correio, aposentado, aos oitenta anos homem ativo, não parado. Invejável atitude. Ao humor e alegria de Tote Dias eu busco, neste dia dos pais, esperanças e desejo de melhores dias ao povo brasileiro, a quem convido segui-lo.
Sebastião Waldir da Silva Amigo
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“Sei em quem acreditei” (2 Tm 1, 12) Falar de alguém é falar da própria vida, do amor, da experiência vivida, das conquistas do passado e do presente, das alegrias e lutas, do caminhar entre flores e espinhos, enfrentando perigos e mortes, desafios e esperanças. Estou falando do meu padrinho “Tote”, homem apaixonado pela vida, pela família, pela pátria. Consciente de sua identidade de filho de Deus, traz em seu corpo as marcas de um cidadão que lutou com companheirismo para que a paz se fizesse presente em um mundo tão desumano, violento e esmagador. Nesta altura de sua vida carregada de gratidão, valorização, positividade, agradeço a Deus pela história de amor com minha madrinha “ Branca” e é para toda sociedade mato-grossense testemunho de amor e compromisso em defesa da vida e do reino de Deus, colhendo os fruto que plantou ao longo de sua vida.
Da sua afilhada Ir. Denize Ferreira Mendes Da Congregação das irmãs da Imaculada Conceição Irmãs Azuis
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Da sua primeira neta, Adriana Falar do vovô Tote, é falar de um ser humano ILUMINADO. ILUMINADO, porque é cristão, amante da vida e humilde de coração. ILUMINADO, porque vive numa íntima união com Deus, através da sua fé inabalável, da sua caridade ilimitada, do seu amor incondicional, do seu trabalho árduo e da sua coragem para enfrentar a vida e zelar pela de seu próximo. ILUMINADO, porque é seguidor dos bons princípios que valoram o homem, como dignidade, simplicidade, respeito, honestidade, entre muitos outros... ILUMINADO, porque consegue cativar todos ao seu redor, com sua simpatia, simplicidade e alegria, virtudes natas de um bom prozador. Guerreiro, pantaneiro, pescador, pai, avô, bisavô, vovô TOTE. O seu exemplo de amor, de fé e de retidão, ficarão vivos eternamente em nossos corações. Obrigada pelo seu amor, carinho, compreensão e por fazer parte da minha vida e da minha família. EU TE AMO, NANA
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Ao meu querido pai:
Quando ouço ou falo em honestidade, sinceridade e confiança em ser humano, sempre me vêm a mente a figura do meu querido pai, qualidades indiscutíveis e unânimes entre os familiares e amigos. Líder de um clã com 32 pessoas entre filhas, genros, netos e bisnetos é um verdadeiro exemplo de vida. Criado com a natureza, no nosso exuberante e fascinante pantanal, é um homem de costumes simples, que se viu em um certo momento de sua vida, por força do destino na segunda guerra mundial. O que seria motivo suficiente par modificar o seu temperamento e humor, pois ali enfrentou todo tipo de violência; mas não, papai continuou a confiar nas pessoas e a manter a integridade moral. Nunca usou a guerra como desculpa, sempre olhou par frente, alegre e contador de casos. Ele tem algo muito maior, que mora no seu coração: a capacidade de superação e a fé inabalável em Deus : fé esta, que todos da família, nos amparamos e confiamos em suas orações. Papai, o meu reconhecimento eterno, pois embora não tendo curso superior soube nos ensinar ( ao lado da mamãe ), pelo seu “exemplo de vida”. Que nosso senhor “Jesus Cristo” proteja e guarde a todos. Este é o nosso desejo e a nossa oração, com carinho de seus filhos, Edna, Nilson e netos Mônica e Nilsinho.
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Da sua filha Marluce. Meu pai Tóte é homem de caráter e exemplar, de costumes, simples e de uma generosidade ímpar para com todos que dele necessitem. Bom de prosa e de cantiga de viola de cocho, contador de anedotas, é grande facilitador de amizades duradouras e valiosas. Artesão na arte de desenho em couro, na confecção da rede de pescaria, no preparo do peixe e da paçoca de pilão. Vitorioso na constituição de uma família bonita, é motivo de orgulho para todos nós, suas filhas, netos, genros e demais familiares. Exemplar na organização do seu “escritório tem-de-tudo” e curioso em entender um pouco dos consertos dos mais variados objetos que entregam em suas mãos. Porém o que mais nos emociona é saber que aos 83 anos de vida conserva o amor e a paixão da mulher que escolheu para esposa e companheira de sua vida, nossa querida Mamãe Branca, tão cúmplice na condução dos destinos da nossa família. Receba muitos beijos da sua filha, Marluce Maria
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Papai Tóte,
Um exemplo de vida para todos que com ele convive. Homem alegre, brincalhão, não deixando de lado sua responsabilidade. Para nós filhos é orgulho tê-lo como chefe de nossa família, contando hoje com seus 83 anos, continua a fazer amigos e admiradores. A você pai, os nossos agradecimentos pelos ensinamentos que nos proporcionou e em especial a sua fé. Que Deus te abençoe sempre.
Ana Maria, filhas e netos.
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De um colega dos Correios e Telégrafos.
Tote Dias, uma pessoa amiga! Sempre tinha um caso a contar, a guerra, a caça, não importava o assunto,era uma boa conversa, e sempre alegre.Trabalhamos juntos no Correios e Telégrafos em Poconé. Quando lá ele chegou, acho que eu era o APT (Agente Postal Telegráfico) - como um gerente da repartição. Tote chegou, não me lembro quando, como ex combatente da II Guerra. Não importa a data, o interessante e, o que importa é que Tote chegou e, não determinou mesmo o quando(tempo)...pois, com seu modo amigo, sua amizade e coleguismo, parecia que sempre ele ali esteve, que sempre fez parte daquela repartição. Isso demonstrou sua grande dedicação ao trabalho e amizade com os colegas. Marcou presença entre os colegas.Tote Dias de Moura, grande colega e bom vizinho. Meu grande abraço
Décio de Figueiredo
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Meu amigo Tóte Dias. Eu sempre admirei o meu amigo “Batista” pela sua grande alegria de viver e de viver sempre com muita responsabilidade. Este apelido de “Batista” é a maneira com que nos chamamos desde as partidas de baralho no Bar do Juvenal, em Poconé, a qual eu não jogava, mas assistia como expectador. Desde esta época, em 1956 nós só nos chamamos assim, de “Batista”. Eu me sinto um privilegiado por conhecê-lo e por ter sido incluído por ele em seu rol de amigos leais, e até hoje não podemos, nem eu, nem ele, acusar o outro de ter traído esta confiança mutua. Quando eu era Gerente do Banco Financial, em Poconé, o Tóte era recomendado pelos proprietários do banco como uma das poucas pessoas que podiam chegar e solicitar qualquer quantia de dinheiro, para fazer negócio de gado em nome do Seu Lúdio Coelho, e ser atendido sem restrições, pois era pessoa de absoluta confiança do mesmo. Também sou muito feliz por ser lembrado por ele toda vez que vai pescar, e por conta disto, quanta pescaria gostosa já fizemos, todas sempre inesquecíveis, quando regadas pelos casos e piadas engraçadas contados pelo meu caro amigo. Realmente o “Batista” é a pessoa que eu conheço que mais demonstra que a vida deve ser vivida com alegria, esperança, responsabilidade e aproveitando tudo de bom que ela lhe possa oferecer. Eu considero o “Batista” como se fosse meu segundo pai. Que Deus o proteja e guarde. Valdez Abdala O “BATISTA”
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sua filha Eliete
Falar do Papai Tóte é falar de uma pessoa feliz e realizada. Realizada, porque soube transmitir a sua família a sua fé, sua honestidade e o sentido do cumprimento do dever. Feliz porque soube cativar amizades duradouras e sempre aproveitou e olhou a vida pelo lado positivo. Feliz, porque nunca deixou de se emocionar. Feliz, porque nunca deixou de confiar nos poderes de Deus. Feliz, porque sempre contou com o amor e a companheirismo da mamãe Branca.
Ao Papai Tóte, o nosso carinho e o respeito para sempre. Eliete Maria Moura Moraes e Família
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Ao esposo Tóte O meu esposo Tóte sempre, foi um grande companheiro e amigo constante. O bom filho, que sempre honrou e apoiou os seus pais. O homem, bem humorado, caridoso e cumpridor de seus deveres, como cidadão. O homem de fé, sempre devoto de S.Benedito e S. Antônio O pai amoroso e sempre orgulhoso da sua família. O homem que ama a terra em que nasceu, a sua família e a sua Pátria. Este é o meu esposo Tóte, que em 12 de junho de 1947, eu me casei e que faremos neste ano, se Deus quiser, 57 anos de casados. Com carinho da sua esposa Branca.
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HOMENAGEM AOS PRACINHA SOBREVIVENTES Qualquer homenagem que se quiser fazer aos heróis brasileiros da 2ª Guerra Mundial, os nossos queridos pracinhas da FEB, tem que ser feita agora, já, urgente, ou então estaremos cometendo os mesmos erros das nossas autoridades, que simplesmente os desmobilizou depois da volta festiva da Itália, como se não tivesse nenhuma responsabilidade sobre seus destinos. Não os preparou para levá-los para tão perigosa aventura, onde tiveram que aprender na marra, no clamor da batalha, pela técnica dos erros e acertos. Quem acertou, viveu, quem errou, não teve outra chance. Por conseguinte, não os preparou para voltar à vida normal, pagou seus soldos, liberou o Fundo de Pensão, e os mandou para o lugar de onde vieram, como se não fossem pessoas especiais, depois de passar por toda aquela traumática experiência, que não conseguiriam explicar nem aos que lhes perguntavam como foi o acontecido, a não ser algumas lembranças, algumas façanhas que quase lhes custaram a vida, e que nem sempre teve o crédito necessário de quem escutou. Para as pessoas era muito mais fácil observar certas esquisitices que muitos deles trouxeram, tais como: reagir violentamente a qualquer ameaça premente, muitas vezes se jogar ao chão ao escutar uma explosão de fogos de artifício, ficar alerta ao escutar gritos de criança, lembrando os “bambinos” abandonados nas cidades bombardeadas, que cortava o coração do brasileiro, que nada podia fazer por elas, a não ser dar-lhes sua ração e encaminhá-las para onde
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pensavam estar seus patrícios. Muitas pessoas, talvez com inveja e despeito de não ter tido a oportunidade de ir a uma guerra, ter a coragem de enfrentá-la e voltar vivo, chegavam a ridicularizá-los e dizer que eram mentirosos e que estavam apenas contando fanfarronices, que não podiam provar ser verdadeiras. A maioria dos pracinhas não se adaptou totalmente a vida normal e muitos ficaram em dificuldade para administrar suas vidas, pois a maioria pertenciam a uma sociedade rural que começava a se extinguir em nosso pais. A volta dos pracinhas da Itália foi entre julho a outubro de 1945 e somente em 1963, ou seja, 18 anos depois é que o governo resolveu tomar alguma atitude a respeito de ajudar os seus heróis que se encontravam extraviados por este Brasil afora, ofereceu ao pracinha que quisesse um emprego nas repartições públicas federais, sendo que a maioria foi trabalhar nos Correios, Receita Federal e como funcionário civil do Ministério do Exército. Nesta mesma época, ou seja em 16 de julho de 1963 foi fundada, no Rio de Janeiro, a Associação Nacional dos Veteranos da FEB, que começou a reunir, finalmente, em uma organização, os nossos queridos heróis, onde podiam relembrar seus feitos e congraçar entre os seus suas alegrias e tristezas. Devido ao movimento desta associação puderam finalmente os nossos pracinhas passaram a receber uma pensão especial com valor equivalente ao soldo de 2º Tenente do Exército. Finalmente um pouco de justiça aos nossos defensores da Pátria, porém, tarde demais para muitos. A exemplo da Associação Nacional dos Veteranos da FEB, todos os estados onde residiam os pracinhas fundaram também as suas Associações Estaduais, e assim foi fundada a Associação Mato-grossense dos Veteranos da FEB, começando suas atividades em meados da década de 1970,
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sendo que em 1985, em dados pesquisados na lista de presença da Associação pode ser contado 78 associados, todos na época com uma média de 60 anos de idade, porem hoje, em abril de 2004, em um levantamento de quantos ainda sobrevivem, temos aproximadamente 30 associados, todos com idade de no mínimo 80 anos e alguns com quase 90 anos, ou seja, a maioria já sem condições inclusive de administrar a sua tão querida Associação. Baseados nestes fatos citados é que reafirmo, todas as homenagens aos pracinhas tem urgência, devem ser lembradas agora, já, pois senão, daqui a pouco será tarde demais. Abaixo listarei os nomes dos nossos heróis febianos, que com muito orgulho, até hoje, vestem seus uniformes, com a “Cobra Fumando” em sua braçadeira, com sua boina de lado na cabeça, e estão presentes em todas as solenidades em que são lembrados e convidados, e se emocionam ao escutar o Hino Nacional ou ao hasteamento da Bandeira Nacional,e marcham solenemente nos desfiles de 7 de Setembro, pois só eles sabem o que é colocar a sua própria vida a sua disposição, e a colocaria de novo se preciso fosse: Antônio Dias de Moura, Aleixo Marcelo de Campos , André Corsino de Freitas, Armindo Santana Dias, Aurelino Gomes da Silva, Antero da Silva, Benedito Nunes Rodrigues, Benedito Aniceto, Davino Leopoldino de França, Egídio Benedito Carlos, Elias de Figueiredo (se encontra desaparecido há um ano), Feliciano Moreira da Costa, Filogênio de Moraes de Souza Guimarães, Gabriel José Pereira, Gabriel Ferreira de Jesus, Ismael da Costa Neves, Iporã Nunes de Oliveira, Joaquim Sérgio dos Santos, Joaquim Antunes Ferraz, José Esperidião de Campos, José Marcelino Vieira, Lício Gomes Ferreira Mendes, Norberto Ferreira Coelho, Orlando Sena, Samuel Infantino,
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Satiro Lopes de Magalhães, Sebastião Rodrigues de Carvalho, Vicente de Paula e Zeferino Santana Ribeiro Quando leio os nomes destes admiráveis homens, fico imaginando cada um deles com seu fuzil na mão, dentro de uma trincheira, na neve do inverno italiano, aguardando um contra ataque do inimigo e lembrando de sua terra natal tão distante, repassando pela mente as letras da Canção ao Expedicionário, que tão bem retrata o orgulho e a saudade do brasileiro que esta longe de casa:
Canção do Expedicionário Letra: Guilherme de Almeida Música: Spartaco Rossi
Você sabe de onde eu venho ? Venho do morro, do Engenho, Das selvas, dos cafezais, Da boa terra do coco, Da choupana onde um é pouco, Dois é bom, três é demais, Venho das praias sedosas, Das montanhas alterosas, Dos pampas, do seringal, Das margens crespas dos rios, Dos verdes mares bravios Da minha terra natal. (Estribilho) Por mais terras que eu percorra, Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá; Sem que leve por divisa Esse "V" que simboliza A vitória que virá:
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Nossa vitória final, Que é a mira do meu fuzil, A ração do meu bornal, A água do meu cantil, As asas do meu ideal, A glória do meu Brasil. Eu venho da minha terra, Da casa branca da serra E do luar do meu sertão; Venho da minha Maria Cujo nome principia Na palma da minha mão, Braços mornos de Moema, Lábios de mel de Iracema Estendidos para mim. Ó minha terra querida Da Senhora Aparecida E do Senhor do Bonfim! (Estribilho) Por mais terra que eu percorra Não permita Deus que eu morra... Você sabe de onde eu venho ? E de uma Pátria que eu tenho No bôjo do meu violão; Que de viver em meu peito Foi até tomando jeito De um enorme coração. Deixei lá atrás meu terreno, Meu limão, meu limoeiro, Meu pé de jacaranda, Minha casa pequenina Lá no alto da colina,
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Onde canta o sabiá. (Estribilho) Por mais terras que eu percorra, Não permita Deus que eu morra... Venho do além desse monte Que ainda azula o horizonte, Onde o nosso amor nasceu; Do rancho que tinha ao lado Um coqueiro que, coitado, De saudade já morreu. Venho do verde mais belo, Do mais dourado amarelo, Do azul mais cheio de luz, Cheio de estrelas prateadas Que se ajoelham deslumbradas, Fazendo o sinal da Cruz !
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- CARVALHO, Murilo; CHAVES, Maria Luiza Paiva; COUTINHO, Amélia Rosa Maria e PEREIRA, Vera Lúcia Alves - O GLOBO EXPEDICIONÁRIO O Brasil na II Guerra Mundial - Ed. Agência O Globo -Rio de Janeiro -RJ - p.175- 1985. - REVISTA “O EXPEDICIONÁRIO” Nº 105 ANO 9 SET/1982. - REVISTA “O EXPEDICIONÁRIO” Nº 110 ANO 10 FEV/1983 - SIQUEIRA, Elizabeth Madureira - HISTÓRIA DE MATO GROSSO: Da ancestralidade aos dias atuais - Cuiabá-MT-Ed. Entrelinhas, p.272, 2002 - Gusmão, Aldo M. Cotidiano dos pracinhas da FEB durante a campanha da Itália opcit Braga, Rubem Crônicas da Guerra na Itália; Record, 1985, p14; p28, p278. Bonalume, Neto A nossa segunda guerra, os brasileiros em combate p119; p125; p128. - SEBRAE (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Mato Grosso). Elementos da Icionografia de Mato Grosso: manual aplicativo./SEBRAE; PROSOL. Cuiabá: SEBRAE: 2002. Designers: Giulio Vinaccia e Valério Vinaccia - http://raulgraciani.sites.uol.com.br/ -
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http://www.terrasbrasileiras.hpg.ig.com.br/2@war/guerra00. htm - http://www.geocities.com/academiamontese/pasta_1.htm - http://www.cfh.ufsc.br/~feb/ - www.rudnei.cunha.nom.br/FEB/2gm.html - www.rudnei.cunha.nom.br/FEB/fotos.html
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ìndice Dedicatória Agradecimentos Introdução Capítulo I Capítulo II Capítulo III Capítulo VI Capítulo V Capítulo VI Fotos Capítulo VII Capítulo VIII Capítulo IX Capítulo X Capítulo XI Capítulo XII Capítulo XIII Capítulo XIV Capítulo XV Capítulo XVI Homenagens Especiais Homenagens aos pracinhas sobreviventes Referências Bibliográficas
3 5 7 11 21 29 51 59 73 95 115 125 135 139 177 153 163 173 185 205 219 231 237
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