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Mergulhando na obra

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Novos caminhos

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Aprofundamento

O conto, Machado e sua época

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Ao chegar ao Ensino Médio, é necessário que os estudantes se aprofundem na compreensão das múltiplas linguagens e, sobretudo, da linguagem literária. Em relação à literatura, a BNCC traz as seguintes considerações:

[...] a leitura do texto literário, que ocupa o centro do trabalho do Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear também no Ensino Médio. Por força de certa simplificação didática, as biografias de autores, as características de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs, têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino. Assim, é importante não só (re)colocá-lo como ponto de partida para o trabalho com a literatura, como intensificar seu convívio com os estudantes. Como linguagem artisticamente organizada, a literatura enriquece nossa percepção e nossa visão de mundo. Mediante arranjos especiais das palavras, ela cria um universo que nos permite aumentar nossa capacidade de ver e sentir. Nesse sentido, a literatura possibilita uma ampliação da nossa visão de mundo, ajuda-nos não só a ver mais, mas a colocar em questão muito do que estamos vendo/vivenciando. (Brasil, 2018, p. 499)

O gênero conto

Como matéria de reflexão para aprofundar alguns conceitos sobre o gênero conto, reproduzimos mais algumas passagens da palestra de Julio Cortázar. Por exemplo, ele insiste que o conto apresenta certas constantes, independentemente de ser um conto fantástico ou realista, dramático ou humorístico. Entre essas constantes, Cortázar destaca que “o conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência”.

Sobre o papel do escritor, afirma que ele está antes e depois do tema escolhido, por mais significativo que seja o tema; o escritor está antes “com sua carga de valores humanos e literários, com sua vontade de fazer uma obra que tenha sentido; o que está depois é o tratamento literário do tema, a forma pela qual o contista, em face do tema, o ataca e situa verbal e estilisticamente, estrutura-o em forma de conto, projetando-o em último termo em direção a algo que excede o próprio conto”. E, mais adiante, sobre o ofício de escritor, considera que “esse ofício consiste entre muitas outras coisas em conseguir esse clima próprio de todo grande conto, que obriga a continuar lendo, que prende a atenção, que isola o leitor de tudo que o rodeia, para depois, terminado o conto, voltar a pô-lo em contato com o ambiente de uma maneira nova, enriquecida, mais profunda e mais bela”.

A intertextualidade

O círculo que envolve a interação pela linguagem se constrói apoiado no já dito, no já lido e no já conhecido, podendo reiterá-los, reafirmá-los, reformulá-los, refutá-los.

É muito difícil pensar na produção de um texto totalmente inédito, criado a partir do nada. É como se todo texto fosse um hipertexto que

possui links explícitos ou implícitos com outros. O termo intertextualidade foi cunhado, na década de 1960, no âmbito da teoria literária por Julia Kristeva e, nessa concepção, trata do universo dos textos literários e do diálogo entre esses textos ao longo da história da literatura. Quando a intertextualidade se dá entre dois textos literários efetivamente escritos e se manifesta de forma direta, clara, explícita, podemos dizer que se trata de intertextualidade em sentido mais restrito. Na literatura brasileira temos um exemplo significativo. O poeta romântico Gonçalves Dias escreveu, em meados do século XIX, a famosa Canção do exílio; desde então, vários outros poetas produziram intertextos, ou por simples imitação, ou para repensá-la.

O conhecimento das relações entre os textos – e dos textos utilizados como intertexto – é um poderoso recurso de produção e apreensão de significados. Quando um determinado autor recorre a vários textos para compor os próprios, certamente tem um motivo muito claro – por exemplo fazer uma crítica, uma reflexão ou uma releitura desses textos. Percorrer o caminho inverso, ou seja, buscar esse motivo e reconstruir o processo de produção leva a desvendar os significados específicos do texto produzido, já que os textos se completam, lançam luz uns sobre o outros.

Esse conhecimento, porém, não se dá por acaso nem por obra da intuição, mas por meio de um trabalho bastante específico: o exercício da leitura. Quanto mais experiente for o leitor (entenda-se como leitor experiente aquele que leu muito e bem) mais possibilidades terá de compreender os caminhos percorridos (e os textos visitados) por um outro autor em sua produção e de percorrer o próprio caminho em suas criações.

Portanto, nossos processos de leitura podem ser mais proveitosos quanto mais caminhos de leitura tivermos percorrido. Nossas produções podem aprimorar-se na medida em que incorporamos essas leituras a nossos textos. E não é exagero dizer que esses procedimentos ampliam-se de tal forma que atingem uma outra área, bem mais ampla – a que diz respeito à própria leitura do mundo.

O século de Machado: a revolução industrial e o cientificismo

A Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, entra numa nova fase em meados do século XIX (a chamada Segunda Revolução Industrial), caracterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade; ao mesmo tempo, o avanço científico leva a novas descobertas no campo da Física e da Química. O capitalismo se estrutura em moldes modernos, com o surgimento de grandes complexos industriais; por outro lado, a massa operária urbana avoluma-se, formando uma população marginalizada que não partilha os benefícios gerados pelo progresso industrial, mas, ao contrário, é explorada e sujeita a condições subumanas de trabalho.

Esse momento histórico repercute na leitura de mundo realizada pelos artistas e resulta em novas linguagens, novas formas de expressão.

Em 1865, as cidades de Coimbra e Lisboa, em Portugal, foram abaladas por uma polêmica literária conhecida como “Questão Coimbrã”, que, extrapolava os temas artísticos, como se percebe nas palavras pronunciadas por Antero de Quental, um dos líderes dos jovens realistas:

Todavia, quem pensa e sabe hoje na Europa, não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim. Não é a nossa divertida Academia de Ciências que resolve, decompõe, classifica e explica o mundo dos fatos e das ideias. É o Instituto de França, é a Academia Científica de Berlim, são as escolas de Filosofia, de História, de Matemática, de Física, de Biologia, de todas as ciências e de todas as artes, em França, Inglaterra, em Alemanha.

Nota-se que, para o poeta português, o que importava era “resolver, decompor, classificar e explicar o mundo dos fatos e das ideias”. Em outras palavras, ele defendia o pensamento científico. Essa postura intelectual é chamada de cientificismo.

Para tanto, muito contribuíram os vários “ismos” daquele momento, responsáveis por uma reinterpretação da realidade que gerou teorias de variadas posturas ideológicas. Numa sequência cronológica, surgiram: • o positivismo de Augusto Comte, preocupado com o real-sensível, com o fato, defendendo o cientificismo no pensamento filosófico e a conciliação entre “ordem e progresso” (a expressão, utilizada na bandeira republicana do Brasil, é de inspiração positivista); • o socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels, a partir da publicação do Manifesto comunista, em 1848, que define o materialismo histórico e a luta de classes (“O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral”, K. Marx); • o evolucionismo de Charles Darwin, a partir da publicação, em 1859, de A origem das espécies, livro em que são expostos os estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negando, portanto, a origem divina defendida pelo Cristianismo.

Representando essa nova ordem, é publicado na França, em 1857, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, considerado o primeiro romance realista da literatura universal. Em 1867, Émile Zola lança Thérèse Raquin, inaugurando o romance naturalista.

Machado e a introdução do realismo no Brasil

Considera-se 1881 o ano inaugural do Realismo no Brasil. De fato, esse foi um ano fértil para a literatura brasileira, com a publicação de três narrativas fundamentais, que modificaram o curso de nossas letras: O mulato, de Aluísio Azevedo, considerado o primeiro romance naturalista brasileiro; Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o primeiro romance realista de nossa literatura; e O alienista,

também de Machado, uma novela exemplar, publicada em capítulos em A Estação, de outubro de 1881 a março de 1882, e que seria incluída em Papéis avulsos.

Edição do 15 de outubro de 1881 do periódico A Estação – jornal ilustrado para a família, que iniciava a publicação dos capítulos de O alienista.

O romance realista, cultivado no Brasil por Machado de Assis, é uma narrativa que se volta para a análise psicológica dos personagens e, a partir do comportamento deles, critica a sociedade. É interessante constatar que os cinco romances da fase realista de Machado apresentam nomes próprios em seus títulos – Brás Cubas, Quincas Borba, D. Casmurro, Esaú e Jacó, Aires –, revelando inequívoca preocupação com o indivíduo. O romance machadiano analisa a sociedade através de personagens capitalistas, ou seja, pertencentes à classe dominante: Brás Cubas não produz, vive do capital, o mesmo acontecendo com Bentinho; já Quincas Borba era louco e mendigo até receber uma herança; o único dos personagens centrais de Machado que trabalhava era Rubião (professor em Minas), mas recebe a herança de Quincas Borba, muda-se para o Rio e não trabalha mais, vivendo do capital. O romance realista é documental, retrato de uma época.

Folha de rosto da primeira edição de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Memórias póstumas de Brás Cubas, ao lado de inúmeras outras qualidades, apresenta uma narrativa absolutamente inovadora, além de uma interessante revisão crítica do Romantismo.

Uma das críticas mais eficazes, e que nos interessa particularmente por opor o Realismo nascente à escola anterior, está no capítulo XIV, em que Brás Cubas, o personagem-narrador, se descreve aos dezessete anos de idade:

Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes e, por compaixão, o transportou para os seus livros.

Em outro momento, o narrador descreve Virgília, sua amante:

Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, – devoção, ou talvez medo; creio que medo. (cap. XXVII)

Para não chocar os leitores, o narrador já advertira que “isto não é romance em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas”.

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