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Para aprofundar
from A causa secreta MDP
by EdLab Press
O conto A causa secreta foi publicado originalmente em 1895 no periódico Gazeta de Notícias, e depois integrado no livro Várias histórias, de 1896, publicação esta que reúne o que para muitos são alguns dos mais geniais experimentos narrativos desta fase da trajetória artística do autor, como “A cartomante”, “Uns braços” e “Um homem célebre”. Ao colocar-se como separadas duas fases da concepção da obra de Machado de Assis, está se levando em conta a fundamental divisória representada pela publicação do romance pioneiro Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1880. É de grande importância a compreensão do que significou esta ruptura que dividiu as duas fazes da escrita machadiana.
Tida como de difícil qualificação, quase impossível restringir a uma única convenção ou escola literária para descrever ou enquadrar, a guinada de 1880 não seria possível sem as obras que antecederam as deste período aludido. Foi no período de fastio e desgaste da fase tardia do romantismo brasileiro que Machado de Assis realizou seus primeiros projetos e experimentos narrativos, tendo também se iniciado com a escrita dramatúrgica e a poesia. Será nos debates sobre realismo literário, no entanto, que a crítica encontra os melhores instrumentos para refletir e traçar apontamentos proveitosos sobre o alcance vertiginoso da prosa machadiana.
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Se tornará célebre nos meios letrados cariocas do século XIX, no entanto, através de um gênero literário europeu recente, incubado pela consolidação da ampla circulação da imprensa moderna: a crônica. Do sucesso formado pela produtiva carreira na escrita em notas em pé de páginas de jornais, encontra espaço para iniciar-se em outro gênero também filho da imprensa moderna europeia: o folhetim. Tornou-se célebre ao ponto de desbancar José de Alen-
car – o primeiro folhetinista brasileiro – em termos de circulação e procura. A escrita de alguns de seus principais romances será concebida nesta forma, assim como alguns de seus principais contos.
Na primeira fase da prosa machadiana integram-se os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), e as reuniões de contos nas publicações Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873). É de grande valia para a compreensão devida dos sentidos do projeto literário deste período a leitura de seu primeiro folhetim, de 10 de outubro de 1859, em que versa sobre os sentidos da forma folhetim como gênero literário, e surpreende com o grau de consciência que o autor, com apenas 20 anos de idade, já demonstrava ter sobre os sentidos do uso da forma de origem parisiense no Brasil. Já neste primeiro escrito folhetinesco se faz notar a facilidade do timbre paródico sobre as formas culturais brasileiras ao primarem-se pelo esforço do mero arremedo sem mediações das formas europeias. Cria em sua descrição sobre o papel do escritor folhetinista a comparação com o beija-flor, que circula por toda a floresta, observando de todos os ângulos e sob diversos pontos de vista o que a natureza oferece de suas paragens. Uma forma europeia, portanto, só ganharia sentido com a rigorosa, porém não especializada, apuração do olhar sobre a vida local, sobre a sociedade brasileira tal como ela se manifesta diante dos olhos do autor.
É das convenções do romantismo literário brasileiro que Machado colherá a inspiração para compor os procedimentos literários de sua obra de ficção deste primeiro período. O faz, no entanto, com clara ambição de romper com convencionalismos e formas dogmáticas de arremedos filosóficos e literários europeus. É desta fase o ensaio mais famoso de seus textos críticos, “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, de 1873, em que propõe, neste ardil retórico que opõe instinto de nacionalidade a sentimento íntimo, um modo de recolher as imagens do mundo de tal maneira que não reproduza apenas uma imagem superficial da coloração local nos conteúdos literários, pois é tarefa do escritor encontrar o brilho de um sentimento íntimo da forma de pertencer a seu tempo e país. Uma imagem de universalidade ao lidar com questões amplamente humanas, mas sem abandonar a cor local da concretude do plano de representação do meio social brasileiro.
Seus livros da dita “fase romântica”, portanto, afastam-se da coloração pitoresca, de tom romanesco e patriótico que se transformou em fórmula de sucesso entre o público jovem de seu tempo. É neste sentido que se deve refletir sobre a influência de obras locais de períodos anteriores. Contudo, não se deve ignorar a atualização notável de grande erudito nas influências cosmopolitas da literatura europeia na prosa de Machado de Assis, sendo possível notar técnicas reproduzidas de Stendhal, Flaubert, Balzac, Maupassant, Jonathan Swift, Henry Fielding e Laurence Sterne. Mas não serão poucas as situações, reviravoltas e arroubos parodiados dos grandes autores nacionais que o precederam, tais como Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo e o já mencionado José de Alencar. Os acertos em matéria de descrição de costumes de fôlego analítico eram reaproveitados pelo grande autor em sua oficina de trabalho, e este não é um dado menor, pois soube aproveitar os limites e as inconsistências de convenções literárias locais de então. Em termos de reprodução do gênero romanesco, o Machado des-
ta primeira fase concebia uma prosa realista de olhar arguto e de aspiração ilustrada, escrita destinada a um público “de boas famílias”. No plano do conteúdo, destrinchava relações sociais ao mesmo tempo complexas e características, sem abrir mão, no entanto, do esforço de lidar com relações herdadas da ordem colonial de tal forma que apontem para as aspirações de ordem e progresso de nações liberais de maneira conciliatória.
A partir de 1880, o alcance artístico e de análise sobre a realidade social agiganta-se, passando até mesmo a desconsiderar convenções do realismo para exprimir-se, como a crítica qualificada aponta com tanta frequência. Em Brás Cubas, descobre um novo tipo de narrador, tanto arbitrário como despeitado, que transforma a insolência e impertinência em princípio formal e processo de configuração expressiva. O desrespeito às normas, no entanto, não as desqualifica, apenas as aponta como inoperantes, redundando numa impotência cínica que ri da própria superioridade retórica improcedente desta voz culta. Machado abandona as aspirações românticas que buscavam um sentido original para a cor local e encontra uma voz que atinge as questões mais amplas e universais da vida letrada, mas atingindo-as pelo sentido negativo destas aspirações. Não há força social ou convenção que escape da lâmina retórica da ironia machadiana. Integram esta fase os romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), bem como cinco livros de contos que reúnem dezenas de narrativas breves.
Em A causa secreta está plenamente desenvolvida a compreensão machadiana sobre duas naturezas humanas, tal como preliminarmente apresentadas no capítulo IV do romance Iaiá Garcia e composta como teorema no conto O espelho, de 1882. No romance, o narrador aponta que há duas naturezas humanas, uma de convenção natural, íntima e espontânea, e uma natureza social, ou seja,
uma lei do coração e uma lei da sociedade. No conto O espelho, estas são referidas como alma interior e alma exterior. Do romance ao conto, refina-se a percepção do elemento de mediação entre uma e outra: o olhar exterior. A primeira natureza seria uma disposição com que nasce o sujeito, sua índole ou temperamento; a segunda natureza seria a máscara do sujeito forjada na aprendizagem do trato social, com as leis e convenções de convívio social. O elemento mediador seria o olhar que outros lançam sobre o sujeito e este institui como identidade. Em A causa secreta, a primeira natureza sádica de Fortunato é mascarada pela segunda natureza que a imagem social de capitalista empreendedor numa sociedade escravocrata imprime sobre o personagem e que tanto os outros personagens como a própria ordem social reforçam. Todos tornam-se cúmplices da aceitação do sadismo de Fortunato.
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