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Três

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Quatro

Quatro

TRÊS

Como se em resposta a seu desejo, no dia seguinte Irene ficou face a face com Bellew.

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Ela tinha ido para o centro com Felise Freeland para fazer compras. O dia estava excepcionalmente frio, com um vento forte que marcara de vermelho-tijolo as faces suaves e douradas de Felise e umedecera os olhos castanhos de Irene.

Agarrando-se uma à outra, com as cabeças abaixadas para se proteger do vento, dobraram a Avenida em direção à rua Cinquenta e Sete. Uma súbita rajada as varreu na esquina com inesperada rapidez e elas colidiram com um homem.

“Perdão”, Irene pediu, rindo, e olhou para o rosto do marido de Clare Kendry.

“Senhora Redfield!”

Tirou o chapéu. Estendeu a mão sorrindo cordial.

Mas o sorriso se apagou de vez. Surpresa, incredulidade e — seria percepção? — passaram pelo seu rosto.

Ele havia, e Irene sabia, se dado conta de Felise, dourada, com cabelo cacheado de negro, cujo braço estava colado ao dela. Teve então certeza da percepção no rosto dele, quando voltou a olhar para ela e de novo para Felise. E do desprazer.

Ele, no entanto, não recolheu sua mão estendida. Não imediatamente.

Porém Irene não tomou sua mão. Instintivamente, ao primeiro sinal de reconhecimento, o rosto dela tornou-se uma máscara. Agora ela lançava para ele um olhar de quem nada entendia, um olhar interrogador. Vendo que ele ainda permanecia com a mão estendida, deu-lhe o olhar frio e avaliador que ela reservava aos tarados, e puxou Felise.

Felise falou lentamente: “A-ha! Estava se ‘passando’, não é? Bem que estava desconfiada.”

“Sim, estou vendo que você estava.”

“Puxa, Irene Redfield! Parece que você se importa muito com isso. Me desculpe.”

“Me importo, mas não pelo motivo que você está pensando. Acho que nunca me passei por nativa na minha vida, a não ser quando era conveniente: restaurantes, ingressos para o teatro, e coisas assim. Quero dizer, nunca fiz isso socialmente, somente uma vez. Você acaba de passar pela primeira pessoa

que conheci enquanto estava disfarçada de mulher branca.”

“Sinto muito. ‘Não escapareis jamais ao castigo de vossos próprios pecados’7 e tudo mais. Mas me conta!”

“Bem que eu gostaria. E você iria achar divertido. Mas não posso.”

A risada de Felise foi lânguida e blasé como sua voz serena. “Será que a honesta Irene… Oh, olha para aquele casaco. Aquele, o vermelho. Não é um sonho?”

Irene pensava: “Tive a oportunidade e não aproveitei. Só precisa falar com ele e o apresentar a Felise, com a observação casual de que ele era o marido de Clare. Só isso. Estúpida. Estúpida.”Aquela lealdade instintiva à raça. Por que ela não conseguia se livrar disso? E por que proteger Clare? Clare, que tinha demonstrado tão pouca consideração para com ela, e com os dela. O que ela sentia não era nem tanto um ressentimento, estava mais para um desespero amorfo porque ela não conseguia mudar esse aspecto em si, não conseguia separar os indivíduos da raça, ela mesma de Clare Kendry.

“Vamos para casa, Felise. Estou tão cansada que poderia desabar.”

“O quê? Não fizemos nem metade das coisas que planejamos.”

7 Números 32:23.

“Eu sei, mas está frio demais para ficar batendo perna pela cidade. Mas você fique se quiser.”

“Acho que é o que vou fazer, isso se você não se incomodar.”

Agora Irene se defrontava com outro problema. Precisava contar a Clare sobre aquele encontro. Alertá-la. Mas como? Não a via há dias. Escrever ou telefonar eram igualmente arriscados. E mesmo que fosse possível entrar em contato com ela, que bem isso faria? Se Bellew não tivesse concluído que havia se enganado, se ele estava certo da identidade dela — e não era tolo — contar a Clare não evitaria os resultados do encontro. Além disso, já era tarde demais. O que quer que viesse acontecer a Clare, já não lhe cabia mudar.

Irene tinha consciência de sentir uma aliviada gratidão ao pensar que estaria provavelmente livre de Clare, sem ter de erguer um dedo ou pronunciar uma palavra.

Contudo ela tinha a intenção de contar a Brian sobre o encontro com John Bellew.

Porém isso, ao que parece, era impossível. Estranho. Algo a prendia. A cada vez que estava prestes a dizer “Esbarrei com o marido de Clare em uma rua do centro hoje. Tenho certeza de que ele me reconheceu, e Felise estava comigo”, não conseguiria falar. Soava demasiadamente como o alerta que ela queria que fosse. Nem mesmo na presença dos

meninos no jantar ela conseguiria fazer a simples declaração.

A noite arrastou-se. Por fim, ela disse boa noite e subiu as escadas, as palavras por dizer.

Pensou: “Por que não contei a ele? Por que não? Se isso der problemas, nunca vou me perdoar. Vou contar a ele quando subir.”

Pegou um livro, mas não conseguia ler, tão oprimida que estava por pressentimento inominável.

E se Bellew se divorciasse de Clare?

Ele poderia. Bem, tinha o caso Rhinelander.8 Mas na França, em Paris, essas coisas eram muito fáceis. Se ele se divorciasse… se Clare ficasse livre… Mas, de todas as coisas que poderiam acontecer, essa era

8 Célebre e polêmico caso de divórcio nos Estados Unidos, nos anos 1920. O jovem milionário Kip Rhinelander, de uma das famílias mais tradicionais do país, casou-se com Alice Jones, da classe trabalhadora. Ao saber que ela era negra (tinha uma avó negra), a família pediu a anulação do casamento, alegando que ela havia “se passado” por branca, portanto enganado o noivo para casar-se. O julgamento agitou a opinião pública e proporcionou cenas absurdas, como a de Alice sendo obrigada a mostrar suas partes íntimas ao júri, composto somente de homens brancos, para comprovar que o Rhinelander estava bem ciente de que ela era uma mulher “de cor”. Uma vez que no estado de Nova York não era proibido o casamento interracial (embora fosse extremamente raro), o juiz deu ganho de causa a Alice, ainda que mais tarde ela viesse a pedir o divórcio quando Rhinelander, sob pressão da família, fugiu para Nevada. O caso todo suscitou a discussão, ética e legal, sobre as identidades raciais e a questão do “passar-se”.

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a que ela menos queria. Ela precisava afastar da sua mente essa possibilidade. Precisava.

Veio-lhe então um pensamento que ela tentou afugentar. E se Clare morresse! Então… ah, isso era vil! Pensar, sim, desejar isso! Sentiu-se fraca e nauseada. Mas o pensamento permaneceu com ela. Não conseguia livrar-se.

Ouviu a porta de casa se abrir. E se fechar. Brian saíra. Ela virou o rosto para o travesseiro para chorar. Mas as lágrimas não vieram.

Permaneceu lá, acordada, pensando no que se passou. O namoro, o casamento e o nascimento de Junior. Da vez em que compraram a casa na qual viviam há tanto tempo e foram tão felizes. Da vez em que Ted havia vencido a crise de pneumonia e souberam que ele iria viver. E de outras doces e dolorosas memórias que não mais voltariam.

Acima de tudo, ela queria, lutava, para manter imperturbável a agradável rotina de sua vida. E agora Clare Kendry entrara com sua ameaça de impermanência.

“Deus”, rezou, “faça com que março chegue logo.”

Com o tempo, adormeceu.

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