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Dois

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Quatro

Quatro

DOIS

Mas sim, importava. Importava mais do que qualquer coisa que já importara antes.

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Que amargura! Tanto que aquele temor, aquela insegurança que ela havia sentido, a ânsia de Brian de ir para outro lugar, parecia agora para ela uma trivialidade infantil! E com ela, a coragem e a resolução para enfrentar tal temor. Das possibilidades e dos perigos dos quais ela percebe agora que fugiu. Para esses ela não tinha qualquer remédio ou coragem. Desesperadamente, ela tentou abafar o conhecimento que gerou essa tempestade, a qual ela não tinha poder algum para moderar ou aquietar dentro de si. E nisso foi semi bem-sucedida.

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Por que, raciocinou, o que houve lá, o que haveria, para demonstrar que ela estava meio correta na ideia que a atormentava? Nada. Não havia visto nada, ouvido nada. Não tinha fatos ou provas. Estava apenas deixando-se despedaçar por uma suspeita infundada. Tinha sido um desses casos nos quais quem procura por problemas acaba encontrando. Somente isso. Com esta autoafirmação, a de que não tinha conhecimento concreto, redobrou seus esforços para afastar da mente aqueles pensamentos angustiantes de fidelidades rompidas e confianças traídas que toda a visão mental de Clare, ou de Brian, a trazia. Ela não poderia, ela não iria, passar de novo pela agonia que acabara de deixar para trás. Ela precisava, disse a si mesma, ser justa. Em toda sua vida de casada não tivera a menor causa para suspeitar de seu marido ou de qualquer infidelidade, ou mesmo de flertes sérios. Se — e ela duvidava disso — ele tivera suas horas de conduta errática lá fora, ela os desconhecia. E por que começar a assumir que elas ocorreram? E baseando-se em nada mais concreto que uma ideia que brotou em sua mente, só porque ele lhe dissera que havia convidado uma amiga, uma amiga dela, para uma festa em sua casa. E em uma hora em que ela estava, provavelmente, mais dormindo que desperta. Como é então que ela, sem nada ter sido feito ou dito, ou desfeito ou desdito, acreditava tão facilmente que ele era culpado? Como ela se dispunha tão pronta-

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mente a renunciar a toda a confiança no valor de suas vidas juntas?

E se, por acaso, houvesse alguma coisinha — bem, o que isso significaria? Nada. Tinha os meninos. Tinha John Bellew. Pensar nesses três dava a ela um certo alívio. Mas ela não encarava o futuro. Queria não sentir nada, pensar em nada; simplesmente acreditar que não passava de uma tola invenção por parte dela. Ainda assim ela não conseguia. Não muito.

O Natal, com sua irrealidade, sua correria febril, sua falsa alegria, veio e se foi. Irene estava grata pela inquietação confusa dessa época. Sua irritação, suas multidões, sua frívola e dissimulada repetição de cordialidades, a mantiveram longe da contemplação da própria infelicidade crescente.

Estava agradecida também pela contínua ausência de Clare, a quem, John Bellew, de volta de longa temporada no Canadá, havia carregado para a outra vida dela, remota e inacessível. Mas martelando na prisão emparedada dos pensamentos de Irene estava a desprezada noção de que, ainda que ausente, Clare estava bem presente, estava por perto.

Brian também havia se retirado. A casa continha seu ser exterior e seus pertences. Ele vinha e ia na sua habitual irregularidade silenciosa. Sentava-se na outra ponta da mesa. Dormia no quarto ao lado do dela. Mas estava distante e inacessível. De nada adiantava fingir que ele estava feliz, que as coisas

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estavam como sempre foram. Ele não estava; elas não estavam. No entanto, ela afirmava a si mesma que isso não necessariamente tinha a ver com Clare. Era, ou devia ser, outra manifestação daquela velha ânsia.

Contudo ela desejava, sim, que já fosse a primavera, março, para que Clare estivesse navegando para fora da vida dela e de Brian. Ainda que ela quase tenha conseguido acreditar que não houvesse nada mais que amizade generosa entre os dois, estava muito cansada de Clare Kendry. Queria se livrar dela e das suas furtivas chegadas e partidas. Se ao menos alguma coisa acontecesse, alguma coisa que fizesse John Bellew decidir-se por partir mais cedo, ou algo que removesse Clare. Qualquer coisa. Ela não se importava com o que fosse. Nem mesmo que a Margery de Clare estivesse doente ou para morrer. Nem mesmo que John Bellew fosse descobrir que Clare…

Ela inspirou o ar rapidamente. Por um longo tempo permaneceu sentada olhando para suas mãos sobre o colo. Que estranho, ela nunca antes se dera conta de como seria fácil tirar Clare de sua vida. Tudo o que teria de fazer era contar a John Bellew que a esposa dele… Não! Isso não! Mas se ele de alguma forma viesse a saber daquelas visitas ao Harlem… Por que ela hesitaria? Para que poupar Clare?

Entretanto ela recuou da ideia de contar àquele homem, ao marido branco de Clare Kendry, nada que o levasse a suspeitar que sua esposa era uma

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negra. Também não poderia escrever, ou telefonar, ou contar a alguém que pudesse contar a ele.

Estava presa entre dois compromissos morais, diferentes, porém o mesmo. Consigo mesma. E com sua raça. Raça! A coisa que a amarrava e a sufocava. Qualquer passo que desse, se viesse a dar algum passo, iria arrasar alguma coisa. A pessoa ou a raça. Clare, ela mesma, ou a raça. Ou, quem sabe, as três. Nada, ela imaginou, era mais tragicamente irônico.

Sentada sozinha, na sala silenciosa, à agradável luz da lareira, Irene Redfield desejou, pela primeira vez na vida, não ter nascido uma negra. Pela primeira vez ela sofreu e rebelou-se por não poder ignorar o fardo da raça. Já era suficiente, gritou em silêncio, sofrer como mulher, um indivíduo, por conta própria, sem ter de sofrer pela raça também. Era uma brutalidade, e imerecida. Certamente, não havia povo mais amaldiçoado que os filhos escuros de Cam.

Não obstante sua fraqueza, sua retração, sua própria incapacidade de enfrentar a situação, não a impediu de desejar com fervor que, de alguma maneira que não a envolvesse, John Bellew viesse a descobrir que sua esposa tinha um “pé na cozinha” — Irene não queria isso —, mas que ela estava passando todo o tempo, enquanto ele estava fora, no Harlem negro. Somente isso. Seria o suficiente para ela se livrar para sempre de Clare Kendry.

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