JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP
ANO 17
N0 108 Abril 2017
E D I T O R I A L
PUC Pontifícia Universidade Católica DE SÃO PAULO PUC-SP
O Brasil das contrarreformas Tal qual a última PEC da qual se ouviu falar (a fatídica PEC do “fim do mundo”), a Proposta de Emenda Constitucional 287 e o Projeto de Lei da ampla terceirização configuram um combo de retrocessos sociais para os principais grupos que compõem o País: os jovens e os trabalhadores. Batizadas de “reformas”, as medidas que Michel Temer pretende sancionar neste ano são eficazes sob um aspecto: agradar à classe patronal enquanto traçam um futuro certo e decadente para a juventude brasileira. Somando-se o congelamento nos investimentos em saúde e educação às novas possibilidades de contratação não celetista, obtém-se a perspectiva de uma disputa acirrada por postos de trabalho cada vez mais precarizados. O que nos dá esperança é testemunhar essa problemática sendo pautada pelos setores da esquerda. No dia 8 de março, dia internacional de luta, mulheres de diferentes idades ocuparam as avenidas das capitais unidas sob o mote “Aposentadoria fica, Temer sai”. A nova idade fixada para a aposentadoria de ambos os sexos não leva em conta a jornada dupla desempenhada pelo gênero feminino nos lares brasileiros. Mesmo com participação expressiva no mercado de trabalho, as mulheres ainda são responsáveis por 24 horas semanais de trabalho doméstico. Na última sexta-feira de março, foi a vez das centrais de trabalhadores e das frentes populares darem a largada rumo a uma greve geral, marcada para o dia 28 deste mês. Centenas de milhares de pessoas não se resignaram frente às “reformas” trabalhistas, que na prática fazem cair por terra os direitos conquistados por meio da CLT. Durante o evento “Jornada pela Democracia”, realizado no TucArena (PUC-SP), a reitora Maria Amália Andery lembrou a importância da casa como espaço simbólico para a luta democrática da década de 1970 e se posicionou contrária ao desmonte da proteção social em curso no País. O que tudo isso quer dizer é que o Brasil está ficando pequeno para o presidente que assumiu o governo “na mão grande”. O “Brasil de Temer” – a base aliada, os ruralistas, os grandes empresários; aqueles para quem o excelentíssimo governa – não pode ser páreo para o outro Brasil; aqueles que compõem a maioria percentual da população e que detêm a força de trabalho. Enquanto os direitos do povo forem retirados e leiloados, a luta não pode parar. ÀS RUAS!
Reitora Maria Amalia Pie Abib Andery Vice-Reitor Fernando Antonio de Almeida Pró-Reitores Márcio Alves da Fonseca (Pós-Graduação) Alexandra Fogli Serpa Geraldini (Graduação) Marcia Flaire Pedroza (Plan.,Desen. e Gestão) Claudia Cahali (Educação Continuada) Antônio Carlos Malheiros (Cul. e Rel. Com.) Chefe de Gabinete Mariangela Belfiore Wanderley Faculdade de FILOSOFIA, Comunicação, LETRAS e artes faficla Diretor Ângela Brambilla P. Lessa Diretora Adjunta Regiane Miranda Nakagawa Chefe do Departamento de Jornalismo Valdir Mengardo Coordenador do Jornalismo Cristiano Burmester Vice-Coordenador do Jornalismo José Salvador Faro
EXPEDIENTE C o n t r a ponto Comitê Laboratorial Luiz Carlos Ramos, Rachel Balsalobre, Salomon Cytrynowicz, Wladyr Nader Editor José Arbex Jr. Ombudsman Rodrigo Borges Delfim Secretário de redação André Vieira
SUMÁRIO
política
sociedade
8m
manifestações
cidade
ensaio fotográfico
polêmica
cultura
literatura
eua-china
Secretária de produção Julia Castello
Mídia cria espetáculo com Operação Carne Fraca
pág. 3
“Aqui não tem ladrão, prende logo o assassino do João”
pág. 4
Em todo o mundo, um só combate
pág. 6
Paulista para contra as reformas
pág. 8
Os arredores da PUC
pág. 10
“Nós vamos gritar!”
pág. 12
Um Oscar para recordar
pág. 14
Afinal, o que é apropriação cultural?
pág. 16
Crime e Castigo no século 21
pág. 18
Um jogo perigoso no Pacífico
pág. 21
Resenha
O papel de um jornalista na ditadura militar
pág. 22
Crônica
Churrasco de Tróia
pág. 22
Antena
UOL exalta mudança na publicidade on-line
pág. 23
SPFW
Modas do futuro
pág. 24
Fale com a gente Envie suas sugestões, críticas, comentários: contrapontopuc@gmail.com
CO N T R A P O N TO
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Editor(a) de fotografia Juliana Stern e Lucas Toth
Capa: Fotos 1 - Beatriz Rogatto 2 - Beatriz Rogatto 3 - Maria E. Gulman 4 - Reprodução 5 - Lucas Toth
PUC Simetria Design Gráfico – projeto/editoração Wladimir Senise – Fone: 11 2309.6321 CONTRAPONTO é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUC-SP. Rua Monte Alegre 984 – Perdizes CEP 05.014-901 – São Paulo – SP Fone: 11 3670.8205 Número 108 – Abril de 2017 Lumen Graph Fone: 11 94708.9281
Abril 2017
CONTRAPONTO
Política
Mídia cria espetáculo com Operação Carne Fraca Por: Natália Novais, Isabela Rovaroto e Gabriel Paes
Com poucas informações e muito “barulho”, jornais desviam atenção das reformas em trâmite no congresso
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
© Reprodução: facebook
Em restaurante que serve carne importada Temer se reúne com embaixadores após deflagrada a operação da PF
Operação da PF provocou “surto” de memes e charges
© Reprodução: facebook
as últimas semanas um dos assuntos mais comentados em todo o país foi a Operação Carne Fraca deflagrada pela Polícia Federal, que colocou em foco a corrupção dentro do setor agropecuário e a qualidade da carne produzida no Brasil. A mídia repercutiu a notícia de forma sensacionalista e pouco esclarecedora, sem cuidado algum com o impacto que poderia causar. Em um dos áudios vazados, funcionários da BRF conversam sobre o uso de papelão como embalagem ao invés de plástico. Mal interpretados, em pouco tempo o boato de que colocavam papelão nas carnes viralizou. Além de desmoralizar não somente as empresas envolvidas, mas todo o mercado de carne brasileiro, a cobertura da Operação Carne Fraca pode ter um peso gigantesco na recessão em que se encontra o Brasil, maior exportador de carne bovina do mundo. Prova disso é o fato de a maioria das notícias divulgadas terem sido publicadas nas sessões de economia e mercado, diferente da Operação Lava Jato, sempre mostrada nas páginas de política. No cenário internacional, as revelações feitas pela operação não foram bem recebidas pelos jornais. O The New York Times destacou que as investigações da operação representam um novo golpe para a elite econômica brasileira, que “tem lutado para se recuperar de escândalos colossais na Petrobras” e que o escândalo “lança dúvidas sobre a indústria brasileira do agronegócio, um pilar relativamente firme da fraca economia do país”. O impacto econômico por sua vez foi praticamente imediato. Apenas nove dias após o anúncio feito pela Polícia Federal, vinte e dois países suspenderam total ou parcialmente a compra da carne brasileira. Segundo dados fornecidos pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea USP), ano passado o agronegócio, principalmente no segmento da pecuária, foi responsável por 23,46% do PIB e houve ainda um aumento de 15% nas exportações brasileiras em relação ao ano de 2015. Devido à crise criada após a operação, para os próximos meses a Cepea estima que possa haver uma perda de R$ 1 bilhão nas exportações, entre suínos e frangos. O estudo aponta uma queda de 22% nas vendas. Em nota, a Associação do Comércio Exterior do Brasil (AEB) diz lamentar a repercussão negativa do caso e aponta que não existe só o impacto sobre as grandes frigoríficas. No momento, o setor emprega mais de sete bilhões de pessoas, atingindo desde pecuaristas a produtores de ração e vacinas. O governo brasileiro tem organizado comissões e audiências públicas para debater o problema. Ainda na semana seguinte à ação da Polícia Federal, o presidente Michel Temer se reuniu com ministros e embaixadores. Na tentativa de amenizar a imagem negativa que ficou, Temer levou a comissão à uma churrascaria em Brasília, para “provar” que não havia nenhum
© Sérgio Lima
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Devido à crise criada após a operação, para os próximos meses o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea USP) estima que possa haver uma
R$ 1 bilhão nas exportações, entre suínos e frangos. O estudo aponta uma queda de 22% nas perda de
vendas
Dados da Operação Carne Fraca São mais de 4 mil estabelecimentos no Brasil n 56 empresas estão envolvidas na Justiça n 50 são alvos da Polícia Federal n 21 empresas são alvos do Ministério da Agricultura n 6 frigoríficos foram interditados.
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risco em consumir carne brasileira, o que acabou desencadeando críticas e memes por todo o país, uma vez que a churrascaria escolhida não servia cortes brasileiros, mas trabalhava apenas com cortes vindos da Austrália e Uruguai. A Polícia Federal admitiu recentemente ter cometido alguns “equívocos” em relação à operação. O alvo, segundo alguns investigadores estaria mais propriamente relacionado ao esquema de liberação de licenças e fiscalização irregulares a frigoríficos do que a qualidade da carne propriamente dita. Houve também falta de detalhamento técnico. A substância apontada como tóxica pela PF, por exemplo, se trata de ácido ascórbico que não passa de vitamina C e é utilizada na maioria de alimentos processados como uma espécie de conservante. Toda essa história trouxe à tona um problema interno na Polícia Federal. Cobrados por mais transparência nos resultados da investigação pelo Ministério Público, parte dos investigadores pedem a troca de comando da PF, chefiado atualmente por Leandro Daiello, e o afastamento do delegado responsável pela operação Maurício Moscardi Grillo. Ao longo da investigação, foram encontrados vinte e um frigoríficos de grandes corporações nacionais com irregularidades. A fragilidade da operação e da cobertura midiática diante tais erros é notória. Entretanto, um grande esquema de corrupção foi revelado. Dos vinte e um frigoríficos investigados, apenas seis foram interditados. A investigação concluiu que o esquema de corrupção, intrinsecamente ligado à qualidade do produto vendido, promovia propina para os agentes do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que por sua vez, emitiam certificados sanitários sem fiscalização. Sem detalhar os partidos políticos envolvidos Moscardi, durante coletiva, apontou que parte da propina era encaminhada ao PMDB e ao PP, partidos com grande influência no Ministério da Agricultura nos últimos mandatos. Em um áudio interceptado na operação, o nome do ministro da Justiça do governo Temer, Osmar Serraglio (PMDB/PR) foi citado. Empresas como JBS e BRF, com grande base política, nunca tiveram prejuízos temporários em seus lucros de tamanha magnitude. A Polícia Federal, após o impacto econômico, voltou atrás. Em nota a PF e o Ministério da Agricultura informaram que o sistema de controle garante a qualidade da carne brasileira. “Embora as investigações da Polícia Federal visem apurar irregularidades pontuais identificadas no Sistema de Inspeção Federal (SIF), tais fatos se relacionam diretamente a desvios de conduta profissional praticados por alguns servidores”, diz a nota. Devido aos exageros cometidos pela operação e o sensacionalismo midiático, os esquemas de corrupção revelados pela PF provavelmente serão abafados. Muitos agradecem.
CO N T R A P O N TO
CONTRAPONTO
Sociedade
“Aqui não tem ladrão, prende logo o assassino do João” genocídio negro tem raízes profundas na sociedade brasileira. Vem desde o início da história do país, com a escravidão, quando eles eram vistos como um ser inferior, secundário e indigno – ideia apoiada até mesmo por correntes científicas da época. Eles eram considerados mercadoria apenas, assim, escravizar, torturar ou matar não era nada senão algo necessário para o bom andamento da sociedade. Nem mesmo quando, em 1888, foi abolida a escravidão com a Lei Áurea, esses foram tratados com respeito. Como seres livres, essa parcela da sociedade, que não teve formação ou condições de encontrar trabalho, foi inserida, sem assistência, em uma realidade extremamente racista, onde foram obrigados a viver à margem. Assim, no fim do século XIX, eles passaram a ocupar os morros do Rio de Janeiro, o que, futuramente, daria início às maiores comunidades do país – e abrigam hoje, em sua grande maioria, pessoas negras, refletindo a herança de um país escravocrata e exclusivo. Como consequência dessa base racista na qual o Brasil foi construído, hoje os negros continuam sendo marginalizados. Esses são mortos todos os dias em confrontos com a polícia, em decorrência principalmente do preconceito. O caso de Luana dos Reis, por exemplo, apesar de chocante, não foi notícia nacional. Mulher, negra, jovem e lésbica, Luana foi espancada e morta pela polícia na frente de seu filho, quando o levava para o colégio. Ela morreu por se recusar a mostrar os documentos, ao ser solicitado pelo policial. Hoje, do total de mulheres assassinadas entre 2001 e 2011, 60% delas eram negras. Entre as maiores causas de tantas mortes, a guerra às drogas lidera o ranking. Os jovens negros, expostos ao tráfico desde cedo nas favelas, ao invés de receber auxílio e educação para não entrar no ciclo vicioso do crime, são agredidos e mortos, na justificativa da polícia de estar “protegendo a sociedade do mal da violência e das drogas”. Como é o caso de Rafael Braga, preso enquanto ia na padaria, por estar portando maconha, mesmo que em pouca quantidade. Sem confirmar se estava, de fato, traficando, o jovem de 25 anos foi preso e agredido. Em uma entrevista com Carolina do Valle, ex-aluna da PUC-SP, que realizou um TCC intitulado “Liberdade Vai Cantar: A Violência da Polícia Militar nas Periferias”, afirmou haver diferentes comportamentos policiais quando abordam negros e brancos. Segundo ela, quando surge um rapaz com caráter suspeito, no estilo “rolezeiro”, será feita a abordagem, pois este é um perfil mais frequente na cota de ocorrências dos policiais. Tais informações foram obtidas em sua entrevista com um policial. Carolina explica em seu livro que “Os números de mortos nas comunidades e bairros marginais aumentam a cada ano. A polícia entra nesses lugares procurando seu principal alvo: homens, jovens, negros ou pardos. Nessas horas, o que mais importa é o perfil de bandido bom é bandido morto”.
CO N T R A P O N TO
Cartaz e faixa denunciam a violência sistemática praticada contra a juventude negra que vive nas periferias das cidades brasileiras
Ainda em seu TCC, Carolina afirma “é engraçado pensar que o abuso de poder é uma arma amplamente utilizada contra o povo, e engana-se quem pensa que não há mais tortura e morte como na época da ditadura. O que acontece hoje é que a democracia trouxe a sensação de liberdade e a defesa dos direitos humanos se faz mais presente agora do que nos anos de chumbo. Porém, a violência persiste e ela é enorme contra as minorias da sociedade.” João Victor Souza de Carvalho, de 13 anos, morreu após sofrer agressões de dois funcionários do Habib’s em frente ao estabelecimento que fica na Vila Nova Cachoeirinha, ilustrando mais um episódio das consequências da discriminação, principal fator no genocídio da juventude negra brasileira. Em uma noite de domingo, no dia 23 de fevereiro, João Victor pedia comida em frente ao Habib’s, segundo testemunhas o garoto estava do lado de fora e não oferecia risco a ninguém. Uma câmera de segurança de um comércio próximo registrou o momento em que João Vic-
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Os números de mortos nas comunidades e
bairros marginais aumentam a cada ano.
A polícia entra
nesses lugares procurando seu principal alvo: homens, jovens, negros ou pardos.
Nessas horas, o que mais importa é o perfil de bandido bom é bandido morto”
(Carolina do Valle, ex-aluna da PUC-SP, que realizou um TCC intitulado “Liberdade Vai Cantar: A Violência da Polícia Militar nas Periferias”) Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
© Morgana Damásio
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Menino morto após espancamento de funcionários do Habib’s: mais um caso da violência contra a juventude negra e periférica do Brasil © Reprodução: Geledés Instituto da Mulher
Por: Amanda Leite, Isabel Rabelo, Natália Garcia e Natália Novais
tor foi arrastado por dois funcionários trajados claramente com uniformes da rede de fast food. Segundos depois João Victor foi visto inconsciente e espumando pela boca, não aguentou muito e morreu por parada cardiorrespiratória. O caso pouco repercutido pela mídia está sendo investigado pelo 28º Departamento de Polícia, na Freguesia do Ó, familiares e testemunhas foram ouvidas, mas até agora nada foi solucionado. A família de João Victor alega que a polícia foi negligente ao fazer a ocorrência e tratou com descaso toda a situação. Ariel de Castro Alves, advogado da família e coordenador da Comissão Humana da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, explicou que uma catadora de materiais recicláveis, a senhora Silvia, testemunhou as agressões cometidas por funcionários do Habib’s. Ela quis prestar seu depoimento, procurou os policiais, queria ir para a delegacia, mas os policiais disseram que ela era moradora de rua e não serviria como testemunha. “Com a nossa intervenção, nós a levamos na delegacia e ela foi ouvida no 28º distrito policial, onde disse que viu funcionários do Habib’s cometendo agressões contra o adolescente João Victor. Depois, um motorista de ônibus que passava no local no dia também disse que viu essas agressões sendo cometidas por funcionários. Então, nós temos aí alguns depoimentos que tratam daquelas agressões”. Um laudo técnico feita pela perícia pública concluiu que a morte de João Victor decorreu de uma parada cardiorrespiratória consequente de drogas presentes no organismo do menino. No entanto, os advogados representantes da família contestam esse laudo, segundo Ariel. “Independente do laudo do IML que caracterizou como uma morte natural decorrente de infarto e até de uso de drogas, nós entendemos que é necessário a continuidade das investigações porque o laudo é uma prova que deve ser tratada em conjunto com outras e, essas outras provas tratam das agressões de funcionários do Habib’s contra a vítima. Elas precisam também ser levadas em consideração Abril 2017
em luta para que a justiça seja feita. Familiares, amigos, coletivos, jornalistas e pessoas que se solidarizaram com a causa estiveram presentes. Depoimentos de inconformidade foram coletados. Alini Cardoso, prima do menino e porta voz da família explicou que o Habib’s tentou fazer um acordo. Na manifestação feita no local da agressão, na Zona Norte, um funcionário do
© Isabel Rabelo
durante as investigações. É necessário ter outras perícias e outros laudos que possam também ser analisados em conjunto para depois formar uma convicção diante dos promotores e juízes que vão analisar a continuidade ou não do processo criminal contra os possíveis agressores”. Na escadaria da Sé, no dia 16 de março ocorreu um ato em memória ao João Victor e
Família de João Victor, morto no dia 26 de março
© Isabel Rabelo
Manifestação em repúdio ao assassinato de João Victor
O preconceito gera a morte O Brasil é o país que mais mata no mundo, por armas de fogo. A polícia brasileira também ocupa a primeira posição na violência fatal. Em 2015, o total foi de 3,5 mil mortes pela polícia, principalmente nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde os números correspondem por quase metade dessas mortes. Dados recentes da Anistia Internacional classifica o país em 10º posição que mais mata jovens negros no mundo. Segundo o relatório a militarização da polícia e o uso excessivo da lógica de combate ao inimigo, principalmente em favelas contribuem para o aumento de índices de violência no país. Embora a ideia de vivermos em um Brasil miscigenado e tolerante seja vendida, os dados comprovam o contrário. Todo ano, aproximadamente, 23 mil jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. Conforme o Mapa da Violência, a taxa de homicídios entre jovens negros é quase quatro vezes a verificada entre os brancos (36,9 a cada 100 mil habitantes, contra 9,6). Além disso, o fato de ser homem multiplica o risco de ser vítima de homicídio em quase doze vezes. Segundo dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a capital registrou em 2015 mais de três milhões de abordagens policiais: 255 mil por mês, 8 mil por dia, 300 por hora e 5 por minuto. As regiões Leste e Sul contabilizam mais de 65% das abordagens. Entre 2014 e 2016, a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo recebeu mais de 2500 denúncias relacionadas a abordagem com excesso e abuso de autoridade, em situações que envolvem constrangimento ilegal, invasão de domicílio, prisão, agressão e outros. De acordo com um relatório da CPI, Comissão Parlamentar de Inquérito, houve um crescimento da violência policial contra jovens negros, principalmente nas situações que as ações policiais são justificadas pelos autos de resistência. Esses autos são caracterizados pelo Estado brasileiro como registros de mortes ocorridas em supostos confrontos, nos quais o policial afirma ter atirado para se defender. Esse posicionamento do policial é autorizado pelo Código de Processo Penal, quando há resistência à prisão. Além disso, também é determinado que seja gravado um auto, assinado por duas testemunhas, daí o nome de auto de resistência. Porém, em muitos casos, tais registros escondem execuções em “confrontos” que nunca aconteceram.
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estabelecimento chamou Marcelo, o pai de João Victor, para conversar lá dentro. Alini o acompanhou, porém, a conversa não aconteceu. Marcelo queria seu advogado junto, mas o Habib’s não concordou. “O funcionário falou que se a gente quisesse ele levava a gente para conversar com o dono da rede para fazer um acordo [...] Ele respondeu falando que com o advogado não precisava, seria só o pai e o dono do Habib’s”. Alini acrescentou, “Eles quiseram oferecer dinheiro para acabar a justiça”. Depois disso, a rede de lanches não procurou mais a família. Fernanda de Souza, a mãe, com um microfone nas escadarias, relatou sua ida ao ao Instituto Médico Legal, “Quando eu vi meu filho ele estava naquela lata com aquele plástico azul e o rosto dele estava olhando pra mim do mesmo jeito que o pai dele tinha falado. Quando eu estava chegando perto para tocar nele, o menino do IML me afastou do meu filho. Não consegui mexer nele, não consegui nem mexer no cabelo dele. Ele mandou me tirarem de lá de dentro. Não consegui ver o corpo dele, não consegui ver ele, não consegui nada”. Aos prantos, ela ainda disse, “A única coisa que eu quero é justiça porque eu não consegui nem tocar no meu filho pela última vez, não consegui. Eles não deixaram eu encostar nele”. A irmã pequena de João Victor pegou o microfone. Chorando, ela disse, repetidamente: “Mataram meu irmão.” Após os depoimentos na Praça da Sé, o ato se dirigiu a uma filial do Habib’s próxima. Com gritos de indignação, como “esfirra de sangue” e “seu único crime foi pedir comida para matar a fome” eles exigiram o fechamento da loja. A polícia militar foi chamada e o protesto terminou só quando a porta da filial foi fechada. O enterro ocorreu no Cemitério da Vila Nova Cachoeirinha por determinação da Justiça. Até agora o caso ainda não foi resolvido e o inquérito está em aberto, os advogados da família ainda estão tentando conseguir a liberação para uma segunda autópsia do corpo de João Victor, com isso pretende-se confirmar se a causa da morte foi devido ao uso de drogas, como apontou o laudo oficial do Instituto Médico Legal (IML), ou por causa das agressões que ele sofreu dos funcionários do estabelecimento. Em busca de ouvir a outra versão da história, o Contraponto tentou diversas vezes entrar em contato com o Habib’s e o advogado para ouvir seus depoimentos sobre o caso, mas não obteve resposta.
Após os depoimentos na Praça da Sé, o ato se dirigiu a uma filial do Habib’s próxima. Com gritos de indignação, como “esfirra de sangue” e “seu único crime foi pedir comida para matar a fome” eles exigiram o fechamento da loja.
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polícia militar foi chamada e o protesto terminou só quando a porta da filial foi fechada
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CONTRAPONTO
8M
Em todo o mundo, um só combate Em 8 de março, mulheres saem às ruas para repudiar violência e exigir direitos iguais
Por: Beatriz Gimenez, Débora Araújo, Luiza Guimarães e Maria Eduarda Gulman
CO N T R A P O N TO
Ato das Mulheres na Paulista
© Maria Eduarda Gulman
intrínseca dependência da mulher com relação ao pai ou ao marido, os casamentos arranjados, a dupla jornada como resultado da conciliação do trabalho doméstico com o assalariado, principalmente nas classes mais baixas, a falta de representatividade na política e nos mais altos cargos profissionais, entre muitas outras injustiças, já ocorriam há anos, até que, no século XVIII, a reivindicação dos direitos da mulher passa a ser uma pauta concreta. Com a chegada do Iluminismo e da Revolução Francesa, prolongando-se também no século XIX com a Revolução Industrial, o trabalho da mulher nas fábricas e a consolidação de ideologias socialistas, resultou no chamado “feminismo”, inicialmente em relação às mulheres operárias. O dia 8 de março, dia internacional da mulher, é resultado de diversas lutas por melhores condições trabalhistas e direitos sociais e políticos igualitários. Em 1857 ocorreu uma greve em uma indústria têxtil de Nova Iorque por melhores condições de trabalho e igualdade dos direitos trabalhistas para as mulheres, e em 1908, para lembrar o movimento anterior, trabalhadoras de uma indústria de agulhas, também de Nova Iorque, se manifestaram a favor do voto feminino e do fim do trabalho infantil. Ambos os movimentos ocorreram dia 8 de março e foram duramente reprimidos pela polícia. Mesmo assim, após mais manifestações e catástrofes decorrentes das ruins condições de trabalho, somente em 1911 foram feitas mudanças nas leis trabalhistas e na segurança do trabalhador, e, em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) passou a considerar dia 8 de março o dia internacional das mulheres. No século XXI, diversas mudanças tomaram forma, mas ainda há muito que progredir. Existiram inúmeras mulheres que influenciaram o movimento ao redor do mundo, assim como Christine de Pisan, nascida em 1364 e considerada fonte de um dos primeiros ideais feministas, Joana D Arc, uma das grandes heroínas da França, ou escritoras já da era do feminismo como Simone de Beauvoir e Betty Friedan, além de uma das primeiras brasileiras a trazer o feminismo para o país, Nísia Floresta. Estas foram algumas das principais responsáveis pela disseminação dos ideais feministas, conceitos que, até hoje, movem as mulheres a favor de uma sociedade igualitária. O dia internacional da mulher é marcado por atos nas principais cidades do mundo e com pautas cada vez mais amplas nos campos social, político e econômico. Esse ano, os protestos no Dia Internacional da Mulher receberam uma pauta tão política quanto anteriormente, ligados a fatos pontuais que mexeram fortemente com a condição feminina. Acontecimentos marcantes ao redor do mundo levaram maior mobilização de mulheres para às ruas no final do ano passado e começo desse ano. Assim, movimentos feministas do mundo inteiro se reuniram para mostrar forças e chamar a atenção para as suas pautas. Em outubro de 2016, milhares de polonesas pararam suas atividades durante 24 horas e foram às ruas vestidas de preto para defender o
© Beatriz Rogatto
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Na Praça da Sé, mulheres protestam contra a reforma da Previdência
direito ao aborto. A Polônia tem uma das legislações europeias mais restritivas ao procedimento, sendo permitido apenas em casos de estupro, incesto ou má formação do feto. O objetivo era pressionar o governo contra uma proposta que dificultava ainda mais o acesso à interrupção da gravidez. Devido à mobilização, o projeto foi rejeitado pelo Parlamento. Já na Argentina, no mesmo mês, o brutal assassinato da adolescente de 16 anos, Lucía Perez, drogada e estuprada até a morte na cidade costeira de Mar Del Plata, chocou o país. Dias depois, centenas de milhares de mulheres se reuniram nas ruas em diversos países da América Latina sob o grito de “Ni uma menos” (“Nenhuma a menos”, em português). O continente tem índices de feminicídios considerados epidêmicos.
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Antes eu tinha receio de falar que sou feminista,
mas hoje não.
Se a gente for
ler a história vai ver que o movimento que luta pelos direitos da mulher é bem antigo.
A gente antes não
podia nem escolher se queria ou não ficar em casa, se queria ou não ser mãe, o que são hoje direitos naturais, e antes eram um impeditivo”
(Márcia Ridenti, 50)
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Neste ano, após um dia da posse do presidente Donald Trump nos Estados Unidos, cerca de 3,2 milhões de mulheres marcharam por diversas cidades estadunidenses para defender os seus direitos e o de outras minorias. A manifestação foi uma das mais expressivas do país. A partir disso, um manifesto internacional foi criado chamando as mulheres de todo o mundo para uma paralisação internacional. Publicado no jornal The Guardian e assinado por famosas teóricas feministas como Angela Davis e Nancy Fraser, a proposta ganhou forças. “Um dia de greves, marchas e bloqueios de estradas, pontes e praças; abstenção do trabalho doméstico, de cuidados e sexual; boicote e denúncia de políticos e empresas misóginas, greves em instituições educacionais”, propõe o manifesto. Já no Brasil, a manifestação com forte caráter político teve duras críticas à recente proposta da reforma na previdência, recentemente apresentada pelo presidente golpista Michel Temer. Com o tema “Aposentadoria fica, Temer sai. Paramos pela vida das mulheres”, acompanhado pelo slogan “Nenhum direito a menos”, milhares de mulheres lutaram contra medidas que avaliam ser extremamente prejudiciais. A nova reforma propõe idade mínima de 65 anos para ambos os sexos, desconsiderando a desigualdade existente entre homens e mulheres. Recebendo um terço a menos que homens, mulheres ainda possuem jornada dupla de trabalho, ao cuidar da casa e, às vezes até mesmo tripla considerando o cuidado com os filhos. Duas manifestações aconteceram na cidade de São Paulo. Uma saiu da Praça da Sé e outra do Museu de Artes de São Paulo (MASP). A segunda foi convocada nas redes sociais por coletivos feministas da mobilização internacional 8M, que teve como ponto central a luta contra Abril 2017
Estavam presentes homens também, e suas declarações foram de muito respeito ao sexo feminino. Eles não sentiram que deveriam se intrometer nas pautas do dia 8 de março, mas apoiar, pois sabiam que há muito o que se fazer quando o assunto é direito das mulheres. “É bonito o movimento, por causa da união das mulheres e porque o feminismo é mais que necessário. Minhas amigas são todas feministas militantes, convivo muito com suas ideias. Meu lugar é ser o menos protagonista possível, estou aqui só para somar e conscientizar”, Gabriel Becker, 21. “Já acompanhei minha mulher em várias manifestações feministas. Somos casados há três anos. Acho importante para minha desconstrução, aprendendo a apoiar a causa das mulheres. Sou um machista em desconstrução”, Pedro Sobral, 30. Já a manifestação na praça da Sé foi um pouco diferente. A começar, todos que ali se encontravam estavam lá pelo dia da mulher. Como também na Paulista, o ato tinha o mesmo tema central: “Aposentadoria fica, Temer sai. Paramos pela vida das mulheres”. A concentração foi na escadaria da catedral, onde se encontravam mulheres de diferentes idades, etnias e cores, mas com um mesmo objetivo, lutar contra o machismo e contra a reforma da previdência anunciada pelo atual presidente golpista Michel Temer. Com um número maior de senhoras, o ato seguiu marchando de modo pacífico pelas ruas do centro, terminando em frente à prefeitura de São Paulo, no viaduto do chá. “O ato está
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Abril 2017
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misoginia, xenofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia e racismo crescentes internacionalmente. Teve início às 16 horas. Professores das redes estaduais de ensino aproveitaram o tumulto para se reunir em frente ao MASP e fazer uma breve assembleia mobilizando todos os professores à greve geral de educação – anunciada também para o mês de março. Para quem estava lá, na hora marcada, pela mobilização das mulheres, sentiu que o intuito da luta feminina havia se perdido. Em trios elétricos, membros da CUT (Central Única dos Trabalhadores) falavam em microfones sobre as más condições dos trabalhadores brasileiros. Muitas bandeiras do grupo também eram balançadas ao vento, misturando o roxo, das camisetas de quem estava pelo dia da mulher, e o vermelho, dos trabalhadores. Mas o que mais incomodou foi o fato de serem homens, em sua maioria, falando. “Eu esperava que essa fosse uma manifestação pela causa das mulheres, mas acabou que misturou, tem muitos homens falando no microfone, assim não tem representatividade e é a primeira coisa que deve ter. Acho que com as pautas feministas as mulheres são quem deveriam estar falando. Não que deveriam vetar alguém, mas homens deveriam estar aqui mais como apoio, mas calados. Eles poderiam estar ajudando no Facebook, por exemplo. As mulheres é quem deveriam tomar voz por aqui.”, declarou, Marina Beraldo Bastos. Apesar do desânimo inicial, os trios elétricos e grupos com pautas diferentes da luta feminina tomaram seus rumos e seguiram para fora da Avenida Paulista, dando espaço a quem estava lá pelo verdadeiro significado do dia 8 de março. Do MASP ao prédio da TV Gazeta, a rua estava lotada de gente vestida de roxo, lilás e tantas outras cores que compõem o significado da luta contra o machismo. Música e frases como “nem recatada, nem do lar, a mulherada tá na rua pra lutar”, começaram a tomar volume. A variedade de pessoas com idades diferentes era animadora. Um grupo de jovens – 11 a 13 anos – , de meninas e um menino, estava com suas mães. Lúcia Muller, 51, falou um pouco sobre o que os levou àquela mobilização: “Acabaram de formar um coletivo feminista na escola (Colégio Equipe), e a cada 15 dias é aberto para meninos. Foi uma iniciativa dos alunos, primeiro das meninas mais velhas, do 9º ano, e depois as mais novas se juntaram, porque gostaram da ideia. Então hoje nos reunimos e decidimos vir”. Márcia Ridenti, 50, acompanhada de duas amigas – Lurdes campos, 56; Siomara Thomaz, 57 – contou sobre as conquistas das mulheres ao longo dos tempos: “Antes eu tinha receio de falar que sou feminista, mas hoje não. Se a gente for ler a história vai ver que o movimento que luta pelos direitos da mulher é bem antigo. A gente antes não podia nem escolher se queria ou não ficar em casa, se queria ou não ser mãe, o que são hoje direitos naturais, e antes eram um impeditivo”. No entanto, ela sabe que, nem tudo que já deveria ter sido realizado foi efetivamente, e, por isso, lutam por esse direito. “Quero o fim da nossa invisibilidade. Se prestarem atenção vão ver quantas jornalistas e livros escritos por mulheres vocês leem, pouquíssimos. Tudo que é feminino acaba ficando para o canto, aí parece que não existiu. A impressão é que não há mulheres cientistas ou matemáticas, mas isso é tudo mentira, há grandes conquistas feitas por elas. Você sabe o nome de todos os grandes homens, mas não das grandes mulheres.”
Ato das Mulheres na Paulista
muito diferente do que eu estava acostumada em outras manifestações. Há muitas mulheres mais velhas, senhoras até, com muito gás e fôlego para reivindicar sobre as mudanças da previdência”, comenta a estudante Paola Rodrigues, que achou o ato muito bem organizado e sem confusões. “A reforma da previdência é apenas mais um recurso do governo para explorar os trabalhadores para evitar o corte de gastos e privilégios àqueles que já possuem privilégios que vão muito além da maioria da população. Trabalhar sem garantias faz com que as pessoas tenham que trabalhar mais para se manter estáveis e, assim, geram menos gastos para o governo”, explica Lurdes Ribeiro, de 35 anos. Na metade do caminho, no cruzamento da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio com a rua Maria Paula, o ato encontrou-se com a outra manifestação que acontecia na Paulista, todos contra o governo atual. “Estou aqui porque não concordo com as mudanças da previdência e acredito que ir às ruas e manifestar a minha insatisfação é uma ótima maneira de exercer pressão social sobre os tomadores de decisões”, comenta Ribeiro, que acrescenta, “por ser um ato no dia internacional da mulher, ir às ruas pra mim significa mostrar a minha posição e importância na sociedade”. Cerca de mais de 40 países se mobilizaram nesse dia em prol dos direitos da mulher. No Brasil, 17 estados e o Distrito Federal, além de se mobilizarem por pautas exclusivamente femininas, protestaram também contra a reforma previdenciária e o governo de Michel Temer. A luta feminista, que anda tomando cada vez mais os espaços sociais, ganhou às ruas mais uma vez em nome de uma dignidade e igualdade ainda não conquistada por aquelas que não querem ser inferiorizadas pela sua condição de ser mulher. Através de diversas mobilizações anteriores, muitos direitos foram adquiridos como o direito ao voto, ao divórcio, ao acesso às universidades e ao mercado de trabalho. Entretanto ainda há muito que se conquistar. O dia 8 de março é marcado pela luta de mulheres operárias por melhores condições de trabalho. Hoje, ele é atrelado a uma série de reivindicações que englobam toda a conjuntura da vida de uma mulher: contra violência de gênero, a favor da liberdade sexual, liberdade de controle e escolha sobre o próprio corpo, igualdade salarial e equidade em relação aos homens. Nesse dia, símbolo de resistência, mulheres de todo o mundo se reuniram para mostrar a importância do movimento feminista até os dias de hoje, em busca de um mundo em que sejam socialmente iguais aos homens.
Polônia exige direito de escolha Polonesas de todo o país protestaram por seus direitos no dia 8 de março de 2017. A mobilização faz parte da onda de protestos que vem acontecendo no país desde que políticas anti-aborto mais rígidas foram pautadas pelo novo governo. No dia Internacional da Mulher, uma greve nacional foi protagonizada por milhões de mulheres em diferentes cidades. Na capital, dez pontos diferentes foram escolhidos para sediar os protestos. Na parte da tarde, o ponto principal ocupado por manifestantes foi a Praça da Constituição. Entre as demandas das mulheres estão: o fim da violência contra a mulher, a igualdade de direitos, a descriminalização do aborto e a diminuição da interferência da Igreja Católica nas decisões do governo, principalmente ao que concerne à liberdade de escolha da mulher. Com a bandeira “contra a violência do poder e a exploração reprodutiva”, polonesas com idade média de 30 a 60 anos ocuparam as ruas de Varsóvia. A participação de homens também foi significativa nas ruas da capital, em sua maior parte, também acima de 40 anos. Apesar da menor participação de jovens na mobilização, é unanime a opinião das mulheres que estão na luta contra a violência da autoridade do novo governo em suas vidas. (Nicole Wey)
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CONTRAPONTO
Manifestações
Paulista para contra as reformas
Por: Guilherme Queiroz, Guilherme Resck, Pedro Kosa e Victor G. Rosa
Milhares vão às ruas em repúdio a projetos que ameaçam retirar conquistas históricas
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© Kevin David/A7Press/Estadão Conteúdo
© Miguel Schincariol/AFP
ão Paulo, 15 de março. A greve dos metroviários causa uma enorme confusão no cotidiano de milhares de paulistanos, professores da rede pública deixaram de ir trabalhar assim como outras categorias de trabalhadores, e o que causou tudo isso? A Reforma da Previdência. Era quarta-feira e as pessoas voltaram a se mobilizar e protestar por mais um direito do povo, a aposentadoria. MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), CUT (Central Única dos Trabalhadores), diversos Sindicatos e os Correios marcaram forte presença no evento.
Uma massa compacta ocupa vários quarteirões da avenida, em ato que aprofunda a crise do governo e mostra que futuro é incerto
O modelo atual da aposentadoria impõe no mínimo 15 anos de contribuição. A proposta do governo na nova reforma propõe a mudança da idade mínima da aposentadoria para 65 anos para homens e mulheres e com pelo menos 25 anos de contribuição. Para receber o valor integral deve-se trabalhar 49 anos, o efeito não foi positivo. Mais de 200 mil pessoas estiveram na Avenida Paulista, de acordo com o Datafolha, contra a proposta do Presidente Michel Temer. Mesmo com as linhas de metrô operando em velocidade reduzida não era difícil chegar ao local de maior concentração inicial do protesto, o quarteirão do MASP. Às 15:34 da tarde a Avenida Paulista começou a ferver, o caminhão de som da CUT que estava parado na frente do museu se posicionou de modo a bloquear a via no sentido Consolação. Simultaneamente outro caminhão destinado à presença da imprensa começou a se movimentar de modo a ter uma melhor visão da multidão. Faixas dos Sindicatos dos Professores, dos Metalúrgicos, dos Motoboys e balões da CUT, do PSOL e do PC do B começaram a ser erguidos. Bandeiras e
“
Eu ainda vejo que as manifestações são muito
“carnaval” e cantando
musiquinhas não vamos chegar a lugar algum, também não sei qual é o caminho, mas esse sentido acaba nos tirando do lugar.”
(Paloma Rocha, atriz e produtora
cartazes com dizeres de “Fora Temer” e “Não à Reforma da Previdência” surgiam aos montes. A diversidade da manifestação era enorme,
contando com as presenças do DCE Livre da USP, e da UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) e do sindicato.
Falam os manifestantes O Jornal Contraponto entrevistou três pessoas durante a manifestação, Maria José Filha, 67 anos, professora de História e Geografia há 10 anos pelo Estado, Paloma Rocha, 32 anos, atriz e produtora de teatro e Heros Rodrigues de Moraes, 37 anos, integrante do grupo O Pavão que atua como defensor da causa LGBT na região do Alto Tietê (SP) e em Suzano (SP). Contraponto – Qual sua motivação para estar aqui hoje? Paloma – “Minha maior motivação, além de ver essa mobilização toda, são os meus filhos. Acredito que está acontecendo um desmonte de todas as políticas que já foram conquistadas; não só trabalhistas, mas também na área cultural, onde estamos passando um momento desesperador. Os movimentos trabalhistas no passado conquistaram tudo isso, quando nem estávamos aqui anda. Quando chegamos já estava tudo pronto, eu acredito que seja importante pegarmos este bastão agora e está na nossa mão essa luta.” Contraponto – Qual seu pensamento sobre a reforma da previdência? Paloma –“É um desmonte, é a visão dos empresários. Antes de ser atriz e produtora eu trabalhei em Recursos Humanos, então eu sei como os pensamentos das empresas funcionam, eu sei exatamente como funciona por dentro de toda essa “máquina”. Claro que ainda em um núcleo menor, não no macro dessa coisa, mas é a visão dos empresários, como aquela velha música nos anos noventa “O de cima sobe, o de baixo desce” e essa é a visão dos empresários. Além da Reforma, todas essas políticas são para nos tirar da rua, eles querem nos domesticar de novo, querem a gente dentro de casa, para voltar para televisão e ser manipulados por todas as mídias golpistas que temos.” Contraponto – Com a presença do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva confirmada, qual sua opinião sobre a vinda dele? O que você pensa sobre os processos judiciais contra Lula? Heros – “Eu penso que é válido, até porque antes dele se tornar presidente ele era uma figura que representava os trabalhadores. Nós não falamos mais do Lula como presidente, mas sim, da pessoa que ele é, a figura que ele representa e os movimentos no qual ele encabeça. Acredito que seja positiva sua presença, uma vez que ele esteja sendo alvo de inúmeras críticas, perseguições, injustiças, mas isso mostra que ele não fugiu da luta que ele propunha.” Maria – “Eu sou contra a prisão do Lula, porque o que ele fez pela sociedade brasileira, jamais nenhum presidente fez. Embora, que as pessoas que estavam ao lado dele cometeram muitas falhas.”
de teatro)
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© Reprodução/TV Globo
Imagem aérea mostra a manifestação do Movimento Vem Pra Rua, no dia 26 de março
Movimentos à direita voltam às ruas com menos adesão Os dois principais movimentos que nos anos de 2015 e 2016 organizaram manifestações a favor do Impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), o MBL (Movimento Brasil Livre) e o Vem Pra Rua, voltaram à Avenida Paulista para protestar, no último domingo de março (26), mas desta vez separados e contando com um número inferior de pessoas. Os atos de ambos os grupos tiveram início por volta das 14h, quando os manifestantes, trajando roupas que remetiam às cores da bandeira do Brasil, começaram a se reunir em volta dos caminhões de som. No total, havia seis destes lá, cada um pertencente a um movimento de direita, dispostos entre a Rua Joaquim Eugênio de Lima até a Alameda Casa Branca. O Vem Pra Rua se instalou à frente do MASP, distante do MBL. Ao contrário do que os organizadores esperavam, entre os caminhões de som de cada grupo direitista ficaram grandes espaços vazios. Como pautas comuns a todos os movimentos que foram à Paulista no dia 26 estavam o apoio à Operação Lava Jato, o fim do foro privilegiado e a rejeição à proposta de voto em lista fechada nas eleições. Alguns, entre eles o MBL, pediam pelo fim do estatuto de desarmamento e mostravam-se a favor também das reformas trabalhista e da Previdência, enquanto o Vem Pra Rua promovia discursos contra o aumento do Fundo Partidário. Um grupo cujo principal pedido era a intervenção militar também estava presente na Avenida. Carregados pelos manifestantes, podiam ser vistos faixas, cartazes, bandeiras do Brasil, e máscaras com os rostos do Juiz Sérgio Moro, do procurador Deltan Dallagnol e do “Lula vampiro”, que estavam sendo distribuídas em um dos caminhões de som. Estes tocaram o Hino Nacional Brasileiro e, em alguns momentos, fizeram a todos ouvirem músicas como “Que país é esse?”, do Legião Urbana. O Vem Pra Rua se vangloriou por ter pressionado pela saída do PT da presidência, e o movimento Nas Ruas inflou o boneco pixuleco, que traz a imagem do ex-presidente Lula como presidiário. Grupos menores também compareceram ao protesto. Monarquistas e Federalistas marcaram presença, no entanto, com muito pouco apoio e ignorados pela grande maioria dos manifestantes. O ato, marcado com meses de antecedência por diversos movimentos, recebeu poucos manifestantes. Em contrapartida, os protestos da esquerda que criticam fortemente o governo estão se tornando cada vez maiores. O Governo de Michel Temer, mesmo com baixa popularidade e com projetos polêmicos em trâmite no congresso, como a Reforma da Previdência, foi poupado por grande parte dos manifestantes. Por outro lado, o governo do PT e o ex-presidente Lula ainda são atacados pelas pessoas de verde e amarelo mesmo após o polêmico Impeachment da presidente Dilma Rousseff em agosto de 2016. O protesto contou com a presença dos líderes dos principais grupos de direita que estavam na paulista. Rogério Chequer, um dos criadores do Vem Pra Rua, discursou em frente ao vão do MASP. No caminhão do Movimento Brasil Livre, compareceram os responsáveis pelo grupo. Kim Kataguiri, um dos principais ativistas do MBL, e Fernando Holiday, vereador de São Paulo eleito pelo partido Democratas (DEM), e representante do movimento, falaram para centenas de manifestantes. Holiday, que sempre se posicionou contra a corrupção, é suspeito de não ter declarado gastos de sua campanha eleitoral, e deve ser investigado pela Polícia Federal nos próximos meses. Um dos pedidos de investigação foi feito pelo próprio vereador.
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Heros – “Acredito que não, porque outros grandes movimentos também tiveram as suas forças e eles acabaram sendo esquecidos. Se você pedir para qualquer pessoa citar outros dois grandes movimentos elas não irão lembrar. Então, os grandes movimentos servem apenas para o momento. Farão efeito agora. Ou seja, eles irão interferir na opinião e visão crítica das pessoas apenas nesse momento.”
Por volta das 18 horas quando começaram os discursos no caminhão da CUT, diversos líderes de movimentos sindicais e do PC do B discursavam no palco, entoando palavras contra o Presidente e os seus ministros. A população observava os políticos discursarem de modo conciso e rasgante, em todos os discursos o tema principal era a divulgação e a propagação da Greve Geral, e a luta contra a aprovação da lei da terceirização, que foi sancionada pelo Presidente na noite de 31 de março. A população ovacionou o discurso de Guilherme Boulos líder do MTST que falou sobre a luta dos trabalhadores sem teto e proferiu palavras contra o governo do PMDB. Boulos havia sido preso pela PM por acusação de incitação à violência quando foi apoiar a resistência de 700 famílias que ocupavam um terreno em São Mateus, zona leste de São Paulo, no dia 17 de janeiro deste ano, e já havia feito uma aparição na Avenida Paulista no dia em que o acampamento dos Sem Teto se retirava do local após 22 dias de ocupação e de ter tido suas exigências atendidas. Enquanto os manifestantes assistiam o comício o vereador do PT Eduardo Suplicy passava pelo meio da multidão em direção ao palco de discursos. Suplicy seguia conversando e abraçando todos que paravam para cumprimentá-lo de uma maneira breve. O Ato ganhou sua força máxima quando o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva iniciou o seu discurso contra a Reforma, durante aproximadamente 5 minutos o discurso de Lula abordou diversos aspectos da crise política do país. No retorno para casa os participantes do Ato se depararam com enormes filas para entrar no metrô que já havia voltado a circular. Na estação Trianon Masp, a população continuava a exclamar contra Temer pedindo “Diretas Já”. Além disso era ouvido o pedido de liberação da catraca, já que em passeatas contra a ex-Presidenta Dilma Rousseff no ano de 2015 a mesma foi liberada temporariamente. De acordo com a assessoria do metrô, na época, o passe livre foi concedido para “evitar tumultos e confusões”, porém o pedido não foi atendido, criando alvoroço e um longo tempo para os manifestantes conseguirem chegar na catraca e descerem para o metrô, sem mencionar as enormes filas que se formaram para a compra do bilhete único.
Alexandre Frota se decepciona com a tímida manifestação do Movimento Vem Pra Rua
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Contraponto – Você pensa que hoje estaria sendo o começo de uma grande mudança? Paloma – “Não, não acredito. Estou com desesperança, até por não ter nenhuma memória física de luta. Eu comecei minha vida no ativismo político em 2010, foi quando eu realmente larguei tudo pra ir pro teatro e para as artes, é muito recente, as políticas já estavam aí então eu não tenho essa memória de luta física. Eu não passei por nada do que essa galera passou lá atrás e não vejo na gente essa força que havia neles, eu ainda vejo que as manifestações são muito “carnaval” e cantando musiquinhas não vamos chegar a lugar algum, também não sei qual é o caminho, mas esse sentido acaba nos tirando do lugar.”
Kim Kataguiri, jovem líder do Movimento Vem Pra Rua, discursa para poucos especatadores no protesto do dia 26 de março Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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Cidade
Os arredores da PUC Desde 2014, a vizinhança de Perdizes é palco de conflitos entre estudantes da Instituição e moradores pelo espaço comum
Por: André Vieira, Guilherme Queiroz e Paola Oliveira
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O CP também tentou contato com o grupo SOSsego Zona Oeste que declarou: “Nós temos apenas contato com moradores do entorno da PUC. Por isso, a consultoria jurídica dos Vizinhos da PUC os desaconselhou a se comunicar diretamente com os estudantes.” A informação de que os moradores foram orientados a evitar o diálogo direto com os estudantes foi confirmada também pelo morador Júlio Isnard: “Temos uma consultoria jurídica que nos impede de dar qualquer tipo de entrevista pois as mesmas são sempre formatadas de forma equivocada e parcial.” No dia 21 de fevereiro foi publicado no grupo da associação de moradores Viva Perdizes, pela presidente desta mesma associação Gisela Scheinpflug, um vídeo do trote dos calouros do vestibular de verão da Universidade, criticando o evento e os alunos envolvidos. Gisela não quis comentar sobre o vídeo, segundo ela o assunto deveria ser tratado diretamente com os Vizinhos da PUC. Falta de diálogo – Para a aluna de jornalismo e diretora financeira da Atlética de Comunicação da Pontifícia de São Paulo, Ana Luiza Menechino, um dos principais problemas
que atingem a Atlética e a vizinhança é a falta de comunicação entre as organizações de vizinhos de Perdizes e os alunos da PUC: “Algumas atléticas costumavam colocar som e fazer venda de bebidas em quase todas as sextas do mês, como uma forma de integração dos alunos da faculdade e adquirir dinheiro para pagarem dívidas e continuar fazendo o esporte existir dentro da PUC e em Perdizes. Entretanto, o barulho, lixo e a quantidade de pessoas na rua incomodou os vizinhos (que continuaram reclamando mesmo após o encerramento dos “eventos” das atléticas) ao ponto de terem criado uma página dizendo coisas absurdas sobre as atléticas e os alunos, sem ao menos tentar contato nenhuma vez”. Segundo a aluna, a falta de comunicação entre a Pontifícia e seus vizinhos faz com que a instituição tome decisões contrárias a seus próprios valores, os quais ela mesma acredita que são necessários para vida universitária: “Os vizinhos influenciaram juridicamente a PUC a fecharem o espaço físico de algumas atléticas e baterias sem nos avisar [os alunos], apenas mudando a fechadura de uma noite para a outra. Além da
Foto da vista da entrada da PUC pela rua Ministro de Godói mostra a vila localizada na Rua Curt Nimuendaju onde foi criada a associação de moradores chamada “Vizinhos da PUC”
© Fotos: Guilherme Queiroz
a Zona Oeste de São Paulo fica localizado um dos bairros mais tradicionais da vida paulistana, Perdizes. Repleto de pequenas vilas e grandes condomínios de prédios, o local também abriga uma das universidades mais prestigiadas do país, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A Instituição se encontra no coração da vizinhança e se destaca por simbolizar tanto lutas e valores progressistas quanto por sua efervescência cultural e seu projeto educacional único que transpõe as paredes da sala de aula. Contudo, por ser um grande polo de concentração de lutas, ideias e principalmente pessoas, muitas das festividades da entidade filantrópica acabam extrapolando o âmbito universitário e seguem para os restaurantes, os bares, as ruas. E por Perdizes ser um bairro essencialmente residencial, naturalmente, a grande produção de barulho não agrada a vizinhança. Esse desentendimento acabou produzindo respostas mais diretas dos moradores do bairro, que diversas vezes chamaram a Polícia Militar para interromper festas e restabelecer o silêncio e a “ordem”. De 2014 para cá a rixa entre Pontifícia e vizinhança se acentuou. Naquele ano, por decreto da própria Instituição ficou proibida a realização de festas dentro das instalações universitárias, o que ocasionou a migração das festividades do campus para a Rua Ministro Godói, palco de grandes bares. Essa mudança de localização fez com que houvesse um descontentamento geral com os moradores da região, principalmente por conta do aumento na quantidade de ruído na vizinhança e do acúmulo de lixo nas calçadas, ocasionando a criação de diversas organizações de moradores contra as festividades universitárias. Um dos grupos mais ativos no levante contra os alunos da Pontifícia é o chamado Vizinhos da PUC, que também possui uma página no Facebook para representar os moradores que participam da organização. O Contraponto tentou contato com a página, no entanto, o responsável pelo meio disse à reportagem que só concederia uma entrevista se fosse convidado diretamente pelo Pró-Reitor de Cultura e Relações Comunitárias, Antônio Carlos Malheiros. No entanto, o grupo justificou a sua resposta negativa ao convite da matéria: “foram tentados inúmeros diálogos ao longo dos anos e aprendemos a duras penas que o diálogo com os estudantes é infrutífero e em geral, se deturpam os fatos e os argumentos. Além disso, os estudantes da PUC costumam praticar a ditadura frente aos moradores. Por este motivo, nosso diálogo de um tempo pra cá acontece somente junto ao Ministério Público e demais entidades representativas de cidadãos brasileiros que querem nada mais do que as leis sendo respeitadas.” Além do posicionamento, os Vizinhos da PUC nos forneceram o contato do representante legal da organização. Até o fechamento da reportagem nenhuma de nossas ligações foi respondida.
“
Nosso diálogo de um tempo pra cá acontece somente junto ao Ministério Público e demais entidades representativas de
cidadãos brasileiros que querem nada mais do que as leis sendo respeitadas.”
(Vizinhos da PUC)
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O tom geralmente não é o dos mais amistosos, mas sempre há muito respeito, tranquilidade, por mais que
haja uma certa intolerância
Conselho. Acredito, e espero, que no
dos membros do
decorrer dessa nova gestão conseguiremos atenuar essa intolerância toda.”
(Antônio Carlos Malheiros sobre sua perspectiva de mudança na vizinhança)
© Guilherme Queiroz
presença maciça de policiais no trote do meio do ano passado, que impediram a realização de uma das maiores tradições da vida universitária”. “Além de contatarem a subprefeitura de Pinheiros e encherem completamente a rua de policiais, querem ignorar a existência da universidade e apenas agirem pelas costas, sem nenhum meio de diálogo.”, completou Ana Luiza exaltando a arbitrariedade que as diversas organizações de moradores de Perdizes impõem na universidade. Já para a residente de Perdizes, Roberta Monsanto (nome fictício, criado pela moradora por medo de represálias de seus vizinhos), a recusa da fala direta dos Vizinhos da PUC com os alunos, por conta de uma orientação dos
advogados da organização, é extremamente necessária: “Por mais que possa comprometer o diálogo entre os vizinhos e a PUC, acho que a orientação judicial serve muito mais para nos proteger e evitar que as conquistas que tivemos voltem à estaca zero.” Roberta acredita que é preciso firmar um acordo entre ambas as partes, contudo, reitera a falta de respeito dos alunos, “temos que entrar num acordo, né? Acho que falta respeito dos estudantes com os moradores: acho que eles [os alunos] têm direito de se divertir, sim, só que assim, na faculdade onde eu estudei não tínhamos bares de frente para a universidade e sabíamos muito bem dosar o tempo de estudo do tempo de lazer; coisa que não acontece com os estudantes da PUC que no horário da aula estão no bar. E acaba virando um baile funk aqui, tudo fica nojento, pela questão da sujeira, da urina, chega a dar vergonha.” “Eles têm que pensar que poderiam ser eles morando aqui, ser eles a terem o sonho perturbado e ter na porta de casa montanhas de lixo. Acho que eles não iriam gostar; eles tinham que se colocar no lugar do próximo. Não precisa deixar de se divertir, é só saber respeitar.”, insistiu Roberta, relembrando que por mais que a PUC seja uma das maiores universidades do país, seus alunos devem sempre olhar para Perdizes não como um “complemento da PUC”, mas, sim, como parte importante da vizinhança e da história da própria Instituição. Voz da Instituição – Em entrevista ao Contraponto, o Pró-Reitor de Cultura e Relações Comunitárias da Pontifícia de São Paulo, Antônio
Lixo encontrado na Rua Ministro de Godói em uma manhã de sexta-feira
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© André Vieira
Antônio Carlos Malheiros, Pró-Reitor de Cultura e Relações Comunitárias em entrevista ao Contraponto discute os desafios de estabelecer uma comunicação com a vizinhança de Perdizes
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Carlos Malheiros disse que acredita ser possível reestabelecer um diálogo com a vizinhança de Perdizes, apesar da intolerância e do tom nada amigável: “Estamos no processo para isso, tanto que uma das nossas tentativas é participar das reuniões da Conseg (Conselho Comunitário de Segurança do Estado de São Paulo). O tom geralmente não é o dos mais amistosos, mas sempre há muito respeito, tranquilidade, por mais que haja uma certa intolerância dos membros do Conselho. Acredito, e espero, que no decorrer dessa nova gestão conseguiremos atenuar essa intolerância toda.” Segundo ele, a intolerância acontece porque os vizinhos responsabilizam a universidade pelas festas, mas afirma que a Instituição não tem responsabilidade sobre o que acontece fora do campus: “Eles [os vizinhos] nos responsabilizam e eu sempre reitero que nós não temos nada a ver com isso, com as festas de rua, com a interrupção do trânsito na Rua Ministro Godói. Fora da PUC, não é com a gente. Nós não temos controle ou responsabilidade legal das pessoas que estão nas ruas nos momentos de festas.” Questionado quanto a orientação judicial dos representantes jurídicos dos Vizinhos da PUC a não dialogar com a Instituição, o Pró-Reitor afirmou desconhecer essa orientação e disse ter um contato “relativamente normal” com os vizinhos e que, inclusive, já foi convidado diversas vezes para almoços e reuniões para discutir o papel da universidade no bairro: “Já fui convidado diversas vezes para almoços e reuniões onde discutimos o papel da Pontifícia no bairro. Mesmo que o ambiente não seja sempre o mais atrativo para o diálogo, é necessário sempre manter um certo equilíbrio, propondo assim um avanço num caminho de conciliação, de diálogo.” Comentou ainda a parcialidade de matérias jornalísticas sobre a briga: “De vez em quando temos algumas matérias jornalísticas injustas, ofensivas a universidade que, claramente, estão privilegiando nossos vizinhos.” A rixa entre os alunos e os moradores é algo que assola a vizinhança há tempos. O ex-morador de Perdizes Guilherme Bertuzzi que morava nas redondezas relatou: “Me recordo de uma situação onde minha mãe jogou ovos no toldo do barzinho, porque o bar não estava respeitando [a Lei do Silêncio] e extrapolaram todos os limites de barulho e horário, não ligando muito para as reclamações.” A alta quantidade de ruído e insalubridade do local levaram a família Bertuzzi a procurar outro bairro para morar: “Meus pais não conseguiam descansar e esse foi um dos fatores mais relevantes que fez com que a gente se mudasse dali na época, não sei hoje como a situação tá, mas há seis anos a situação era bem complicada e gerava muito estresse entre os moradores.” De fato, assim como no relato de Guilherme Bertuzzi, os fatos pouco se alteraram. De 2011 para cá, os conflitos entre as comunidades só se intensificaram e episódios dramáticos como esse relatado por Bertuzzi voltam a se repetir com uma perturbadora frequência. A intensificação do patrulhamento na Rua Ministro Godói é a mais clara consequência dos processos judiciais e de causas policiais que os moradores da região moveram contra a universidade. No entanto, por mais que o poder público tenha servido como “mediador” dos dois extremos, até que ponto a terceirização dos problemas para o poder repressivo e coercitivo pode substituir o diálogo direto entre as duas comunidades?
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ensaio fotográfico
“Nós vamos gritar!”
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esde 2015, com a surpreendente vitória do partido de direita Prawo i Sprawiedliwo (PiS – Lei e Justiça), nas eleições presidenciais da Polônia, o país se encontra em um momento de retrocesso dos direitos das mulheres e do movimento LGBT. As políticas conservadoras pautadas pela intensa interferência da Igreja no governo nacional explicam parte desta crise. Diante do contexto de retrocesso, jovens, adultos e idosos se mobilizam em diferentes cidades do país para mudar a realidade. Mulheres estão sendo testemunhas de leis anti-aborto cada vez mais rígidas e que negam sua liberdade. No dia 5 de marco de 2017, uma das principais avenidas de Varsóvia foi tomada por parte dos cidadãos. Defendendo a bandeira “contra a violência do poder”, poloneses de todas as idades protestaram pela sua autonomia, pela sua liberdade de escolha e pelos direitos negligenciados. Mulheres que enfrentam esta luta defendem que a pratica de políticas profamília pelo governo PiS é uma imposição ao lugar da mulher e que, por isso, diminui sua voz e a relação aos seus direitos. Quanto ao movimento LGBT, a luta é focada na diminuição da autoridade do governo, uma vez que ele aumenta a desigualdade e a violência aos grupos marginalizados.
© Fotos: Nicole Wey
Por: Nicole Wey
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Polêmica
Um Oscar para recordar
Por: Andressa Lima, Larissa Coelho, Laura Lourenço, Marina Benini e Thiago Felix
Em noite conturbada, erro na entrega do prêmio refletiu a tensão entre duas visões dos Estados Unidos, uma harmônica e branca, e outra tensa e marcada pelo racismo
(Beatriz Seigner, cineasta)
Diversidade dos indicados – Além de este ano o filme Moonlight ter sido o ganhador da noite, tivemos outros filmes abordando temas não tão clássicos e trazendo muitos atores, diretores e roteiristas negros para as telas. Fator importante, já que eles não possuem tanta representatividade no histórico da premiação. Entre 1929 e 2016, de 1683 indicados no total apenas 66 atores são negros, segundo o infográfico do jornal O Estado de S. Paulo. Além disso, este ano foi o primeiro em que um negro foi indicado
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Pode ser que ao mesmo tempo que genuinamente
tenham se dado conta de
que precisavam modernizar
Academia e diversificar seus membros, estando mais a
em sintonia com o século que habitamos, também estivessem cientes dos boicotes proporcionados pela falta de legitimidade da premiação sem representatividade diversa em seu júri.”
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La La Land nos dá um olhar de uma Los Angeles idealizada e de um lugar onde os sonhos podem se tornar realidade, trazendo a América “mais tradicional”, com protagonistas brancos, e mais comum, já retratada em filmes anteriores. Já Moonlight conta a história de um jovem negro morador de uma comunidade pobre em Miami que tenta achar seu lugar no mundo. O filme aborda várias questões muito importantes e que merecem ser discutidas, como o bullying, a homossexualidade e as drogas. O longa traz a visão de uma América “menos tradicional” e menos questionada pela maioria, além de todo o elenco ser composto por atores negros. Portanto, pode-se dizer que a gafe é conveniente, pois expõe as duas Américas de atualmente, fazendo com que o não tradicional ganhe e tenha destaque, colocando certas questões que a sociedade não dá tanta atenção e importância à tona para serem refletidas, como a inclusão tanto no campo cinematográfico quanto no campo político e social.
às categorias de melhor diretor, filme e roteiro adaptado, sendo ele Barry Jenkins (Moonlight). Porém, baseado nesse Oscar, parece que a premiação quer reverter esses fatores, já que ano passado esta foi tão criticada por não ter nenhum negro indicado em nenhuma categoria – fato que promoveu a hashtag “Oscar so White” nas redes sociais. “A atitude da Academia é sempre regida pelo mercado – como via de regra, a produção cinematográfica americana. Isso não é bom nem ruim, é apenas uma mais característica que se vê desde que o Oscar existe. A inclusão de novos membros é genuína nesse sentido – a Academia reconheceu que havia uma urgente necessidade de renovação para que ela pudesse continuar fazendo sentido”, comenta Marco Dutra. Por enquanto, o Oscar de 2017 foi o que apresentou maior representatividade negra até hoje. Ao passo que essa edição progrediu na inclusão de indicados negros, tal progresso não se estendeu à representatividade feminina. O número de mulheres nomeadas caiu 2%, de acordo com uma análise feita pelo Women’s Media Center. No total, 80% de todos os nomeados das 19 categorias não-atuantes eram homens e pelo sétimo ano consecutivo não houve nenhuma mulher indicada à categoria de melhor diretor. Há ainda algumas conquistas como a indicação de Allison Schroeder à categoria de melhor roteiro adaptado e Mica Levi à melhor trilha sonora original por Jackie, sendo a primeira mulher a ser indicada na categoria em 17 anos, segundo a análise; fatos estes que não apagam
Gafe – O constrangimento que “deu o que falar” aconteceu na entrega do prêmio de melhor filme. Por uma troca de envelopes, a estatueta foi para La La Land, sendo que o verdadeiro ganhador da noite era Moonlight.
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Os organizadores da cerimônia chegaram a anunciar que o idílico musical La La Land era o vencedor, quando na verdade a distinção caberia ao Moonlight, que conta a história de um jovem negro morador de Miami
© Reprodução: ABC Television Group
89ª cerimônia do Oscar, o grande prêmio do cinema americano, que aconteceu no dia 26 de fevereiro de 2017, em Los Angeles, com certeza irá ficar marcada na história. Em uma premiação um tanto quanto surpreendente, o comediante Jimmy Kimmel foi o mestre de cerimônias da noite e teve que utilizar todo seu improviso para comandar o show. “Esta é a minha primeira vez aqui... Provavelmente a última”, disse. Esta edição do Oscar começou a fazer barulho mesmo antes das polêmicas e gafes da noite do prêmio. Os indicados foram, pela primeira vez, bastante diversificados: três atrizes e atores negros protagonizaram longas indicados a melhor filme, sendo eles Moonlight, Um limite entre nós e Estrelas além do tempo, dois deles com diretores negros. Na avaliação de Marco Dutra, diretor de Quando eu era vivo e O silêncio do céu, todo grupo se beneficia quando há diversidade e representatividade entre seus sócios. “Na Academia não é diferente: mulheres e estrangeiros e etnias variadas vão ajudar a inserir no mercado conectado ao Oscar (que é grande) filmes diferentes, novos, fortes. Pudemos ver isso na vitória de Moonlight este ano”, disse. Em contrapartida, o favorito era La La Land, um musical que teve sucesso de público e crítica, com 14 nomeações que o igualaram à marca de Titanic (1997). O filme é uma grande homenagem ao cinema norte-americano. Correndo por fora na disputa tivemos A chegada, A qualquer custo, Até o último homem, Lion e Manchester à beira-mar, que polemizou ainda mais por tratar-se de um filme que não pertence aos grandes estúdios e ter sido realizado pelo site de streaming Amazon.
© Reprodução: ABC Television Group
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© Reprodução: ABC Television Group
Atores premiados: Mahershala Ali, Emma Stone, Viola Davis e Casey Affleck
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A atitude da Academia é sempre regida pelo
mercado
– como via de regra,
a produção cinematográfica americana. Isso não é bom nem ruim, é apenas uma mais
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o passado sombrio da representatividade de mulheres nas indicações da Academia: de 2005 a 2016 as indicações femininas em categorias não-atuantes eram de apenas 19%. Na busca pela origem do problema, os dedos são apontados à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, responsável pelo Oscar, que na 88ª edição da premiação era majoritariamente masculina e branca. Segundo a revista The Hollywood Reporter, dentre os 6.261 membros que votavam no Oscar 76% eram homens e 93% brancos. “Pode ser que, ao mesmo tempo em que genuinamente tenham se dado conta de que precisavam modernizar a Academia e diversificar seus membros, estando mais em sintonia com o século que habitamos, também estivessem cientes dos boicotes proporcionados pela falta de legitimidade da premiação sem representatividade diversa em seu júri”, comenta Beatriz Seigner, diretora de Bollywood Dream. Buscando evitar as constantes críticas por falta de diversidade, o número de convidados a se tornarem membros da Academia vem crescendo. Foram 276 convidados em 2013, 271 em 2014 e 322 em 2015. Em 2016, o número bateu seu recorde com 683 convidados, dentre eles 46% são mulheres e 41% não são brancos. Entre os brasileiros convidados em 2016 estão a diretora Anna Muylaert, de Que horas ela volta?, o diretor Alê Abreu, de O menino e o mundo, o diretor de fotografia Lula Carvalho, os montadores Pedro Kos e Affonso Gonçalves, os compositores Antonio Pinto e Marcelo Zarvos, o produtor Rodrigo Teixeira, o chefe de animação Renato dos Anjos, a roteirista Vera Blasi e o designer Rodolfo Damaggio. O aumento significativo no número de convites se deve à promessa feita pela presidente da Academia, Cheryl Boone Issacs, após a 88ª edição do Oscar ser rodeada de críticas por não haver negros entre os 20 indicados por atuações pelo segundo ano seguido. Desde que assumiu o cargo em 2013, Boone Issacs, a terceira mulher e primeira negra a assumir presidência da Academia, se posiciona a favor da mudança no quadro de representatividade no Oscar e estimula a diversidade. No entanto em um comunicado publicado em 2016 assume que “a mudança não chega tão rápido quanto desejamos”.
característica que se vê desde que o
Oscar existe. A
inclusão de novos membros é genuína nesse sentido
- a Academia reconheceu que havia uma urgente necessidade de renovação
a Academia indicar Affleck para a concorrência de melhor ator. Casey, que viveu a sombra do irmão Ben Affleck, ganhou a estatueta e hoje é conhecido pelo seu nome e talento, mas também por seu caráter, sendo assim, foi realmente merecido? A responsável por entregar o prêmio nas mãos de Casey Affleck foi Brie Larson, melhor atriz pelo Oscar do ano anterior, com Quarto de Jack. Ela, que luta frente às vítimas de assédio sexual, se viu incomodada na entrega do prêmio ao ator e, em protesto, não aplaudiu o discurso de agradecimento do mesmo.
Casey Affleck – A entrega equivocada do prêmio de melhor filme foi corrigida, mas enquanto ao prêmio de melhor ator? Casey Affleck ganhou o prêmio por sua performance em Manchester à beira-mar, no papel de Lee Chandler, um homem conturbado, que se vê tendo que cuidar de seu sobrinho, após a morte de seu irmão. Apesar de sua excelente atuação, Affleck, anos antes, esteve envolvido em acusações de assédio durante as gravações do filme Ainda estou aqui. A produtora Amanda White e a diretora de fotografia Magdalena Gorka, que trabalhavam com o ator na produção do falso documentário, processaram Casey em até quatro milhões por abuso e ofensas. White relatou um episódio, em que foi agarrada pelo braço quando não aceitou as intenções dele e foi trancada para fora do próprio quarto de hotel. Enquanto Gorka era diariamente tratada por meio de ofensas, comentários e insinuações sexuais. Conta também que, enquanto dormia, o diretor deitou em sua cama apenas de cueca e seu hálito cheirava álcool. O processo, que havia terminado em um acordo, recentemente voltou à tona após
De quem é o protagonismo? – Americana e branca. Esse é o perfil que predomina no Oscar quando a categoria é a de melhor atriz, seja entre as indicadas ou entre aquelas que, de fato, levam a estatueta para casa. E esse ano não foi diferente. Emma Stone, de 28 anos, era uma das favoritas e recebeu o troféu por sua atuação em La La Land. Emma já havia sido premiada pelo Sindicato de Atores de Hollywood e levado o Globo de Ouro por esse mesmo papel. Natalie Portman e a recordista de indicações Meryl Streep, assim como Isabelle Huppert e Ruth Negga, única negra indicada na categoria em 2017, concorreram com a atriz. Emma Stone em nada foge do padrão de atriz que vem sendo premiada na categoria. Afinal, nas quase nove décadas em que o prêmio existe apenas uma mulher negra levou o troféu na categoria (Halle Barry em 2002), sendo que, desde os anos 2000, apenas seis atrizes negras foram indicadas. Nesse mesmo período, 50 diferentes atrizes brancas receberam indicações – 19 delas mais de uma vez, enquanto nesse mesmo intervalo de tempo, nenhuma das seis atrizes negras recebeu indicação uma segunda vez. “Acho importante que estejam buscando esta diversidade incluindo mais mulheres, cineastas negros, e representantes de minorias sociais”, comenta a cineasta Beatriz Seigner. “No entanto, me parece que foi um tanto quanto tímido este passo e que estamos muito longe de chegar à equidade de gênero, por exemplo, dentro da academia”, disse.
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para que ela pudesse continuar fazendo sentido.”
(Marco Dutra, diretor de cinema) Memorável discurso – Um dos momentos mais marcantes do Oscar de 2017 foi a premiação da melhor atriz coadjuvante. Pela primeira vez na história da Academia três atrizes negras concorreram em uma única categoria. Naomie Harris e Octavia Spencer disputaram com Viola Davis, que recebeu a estatueta, em meio a um discurso emocionado, por sua atuação em Um limite entre nós. “Existe um lugar em que todas as pessoas com grande potencial estão reunidas: o cemitério”, iniciou a atriz em seu discurso. Viola disse ainda que atuar é poder “exumar esses corpos e essas histórias de pessoas que sonharam grande e nunca puderam usufruir desses sonhos” e que o artista é o único que permite a celebração da vida. Em um momento crítico na vida política, o discurso mostra como é essencial manter essas por mais que as queiram apagar. Trump – O destino, ao que parece, se encarregou de surpresas nessa primeira edição em que Donald Trump está no poder dos Estados Unidos da América; afinal, o que não irá faltar são polêmicas nos próximos quatro anos em que ele estará por lá. Mas a prova de que o destino quis mesmo aprontar contra o líder americano deve-se ao fato que, pela primeira vez na história do Oscar, um muçulmano ganhou a estatueta: Mahershala Ali, indicado a ator coadjuvante pelo filme Moonlight. Além disso, o longa O apartamento, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, é do Irã, um dos países que constavam no decreto que proibia a entrada de imigrantes nos Estados Unidos, assinado por Trump. Em protesto, o diretor Asghar Farhadi, se negou a ir à premiação. “Dividir o mundo entre nós e nossos inimigos, cria o medo”, disse Farhadi. Agora resta saber se Trump irá lutar para tirar a categoria de melhor filme estrangeiro nas próximas premiações.
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CONTRAPONTO
Cultura
Afinal, o que é apropriação cultural? Por: Sofia Duarte, Thays Reis, Lara Guzzardi, Letícia Nunes e Matheus Lopes
A linha tênue entre liberdade de estilo e banalização de outra cultura
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m adereço utilizado por uma jovem branca com leucemia abriu uma discussão sobre o que pode ou não ser considerado apropriação cultural, ou seja, quando elementos de uma determinada cultura são tomados como seu por uma outra cultura dominante. Após a retaliação sofrida por Thauane Cordeiro enquanto utilizava o transporte público em Curitiba, cidade onde vive, a jovem lançou a hashtag nas redes sociais #vaitertodosdeturbantesim, promovendo um amplo debate entre o limite da liberdade de usar elementos de outras culturas e a banalização deles. O turbante, usado pela garota, é de origem oriental, mas é frequentemente usado na cultura afro, para mulheres se protegerem do sol ou, como em algumas religiões, para que ele preserve os pensamentos. Atualmente, é um símbolo de resistência dos negros contra o preconceito, ou seja, esse elemento é muito mais que um item estético para essas pessoas. A população negra defende que sua cultura sempre foi inferiorizada e criminalizada, e quando elementos como esse são introduzidos ao mercado se tornam apenas produtos comerciais, perdem sua verdadeira essência. Pensando nessa problemática da apropriação cultural, o Prof. Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (UNESP-Bauru) e coordenador do Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão (NUPE/ Unesp), desvenda as polêmicas desse tema tão atual. Foi estudante da PUC-SP em 1980 e presidente do DCE-Livre – Diretório Central dos Estudantes Livres – entre 1982 e 1984. Tem experiência em Jornalismo Especializado, atuando nos temas: afrodescendentes, fundamentos do jornalismo, mídia radical, economia criativa e gestão cultural. Contraponto – Muitas pessoas não entendem o que significa apropriação cultural e seus limites. Quais são os critérios que você acredita serem importantes para fazer essa distinção do que é ou não apropriação cultural? Prof. Juarez Xavier – Existem três aspectos importantes em relação a isso. O primeiro é o processo de apropriação industrial, que acontece quando a indústria se apropria de um determinado símbolo político de um povo e o transforma, esvaziando seu contexto de rebeldia, e coloca uma marca para lucrar em cima disso. A segunda possibilidade acontece quando um grupo social se apropria de uma linguagem cultural para descaracterizar a ação cultural de um grupo de resistência. Um exemplo disso são mulheres que não são árabes, mas se apropriam do véu árabe, de forma descontextualizada, esvaziando o caráter étnico-cultural desse símbolo. O terceiro aspecto ocorre quando há uma utilização esvaziada, sem seguir seu significado original. Exemplificando isso, temos o dread, uma forma de cabelo ligada à rebeldia política de um grupo social da Etiópia que, ao invés de ser associado ao seu real significado, é relacionado a um indivíduo irresponsável. Quando alguém se apropria disso
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Magda Moura
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Apropriação cultural e seus limites é o processo
de apropriação industrial, que acontece quando a
indústria se apropria de um determinado símbolo político de um povo e o transforma, esvaziando seu contexto de rebeldia, e coloca uma marca para lucrar em cima disso”
(Prof. Juarez Xavier)
fora do contexto, esvazia-se a posição teórica e ética dos rebeldes revolucionários. CP – Como falar sobre apropriação cultural, se cultura, apesar de ser própria de um povo, não é propriedade dele? JX – A cultura, como aspecto central, tanto do ponto de vista material como imaterial, é cultura da humanidade. Mas as manifestações culturais ligadas a grupos políticos sociais são propriedades desses povos. Existe a cultural geral, que é de fato universal e é um elemento fundamental da civilização humana, mas também existe a cultura árabe e a cultura tupi-guarani, por exemplo, que
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(...) Temos muito orgulho da nossa cultura, então deixa isso ser nosso. Sério que tudo tem que ser tão
‘colonializado’?” ( Magá Moura, blogueira)
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possuem traços característicos que as singularizam e as preservam ao representarem as formas de resistência desses povos. CP – Como ficam as pessoas miscigenadas nessa situação? JX – A miscigenação no Brasil é um discurso. Mesmo sendo uma sociedade composta pela miscigenação, a distribuição dos bens materiais simbólicos é feita a partir da cor da pele da pessoa. CP – Você acha que a apropriação da cultura africana reafirma o racismo estrutural que há quando brancos são valorizados ao usarem elementos importantes para os negros, mas os próprios negros são atacados verbal e fisicamente por utilizarem esses símbolos? JX – Sem dúvidas. Isso faz parte da história do Brasil. João Batista de Lacerda, em um texto importante, chegou a propor que a cultura negra desapareceria do Brasil em cerca de um século. O que temos a partir do discurso da miscigenação é que o branco tem direito de apropriar-se dos materiais simbólicos negros, mas a recíproca não é verdadeira. Quando um negro se apropria de um valor simbólico identificado como cultura branca, ele é discriminado. Um grupo social Abril 2017
discriminado violentamente como os negros também sofre discriminação de seus elementos culturais, que passam a ter um valor positivo ao serem usados por brancos, mas um valor negativo quando usados por negros. CP – É possível que a cultura negra perca o seu sentido ou seu real significado devido a esse “embranquecimento” causado pela indústria da moda e das mídias em geral? JX – Eu acho que é possível que os grupos negros resistam a isso, pois quando há a tentativa de apropriação, tem também a resistência a ela. Eu quero acreditar que os grupos de resistência manterão a sua força para preservar suas manifestações culturais. Mas acho que, no fundamental, ao longo do tempo a resistência vai prevalecer, porque é a resistência que permite a diversidade, que permite a criação, a qual permite a invenção. Então, quanto mais diversa uma cultura, mais criativa ela é. Por isso, preservar é importante para manter a diversidade, e eu tendo a aceitar que ela vai resistir e vai manter a riqueza dessa diversidade cultural do país. CP – Qual a diferença entre apropriação cultural e aculturação? Existem pessoas que não sabem diferenciar e acreditam ser a mesma coisa. JX – Aculturação é quando um grupo hegemônico impõe sua cultura a um grupo subalterno. Por exemplo, obrigar os indígenas a usar terno. Apropriação é quando um grupo se apropria de elementos culturais do grupo subalterno e passa a usar aquele valor como sendo um valor seu. Exemplificando, pessoas que se fantasiam de índio. Então, enquanto a submissão cultural impõe a violência de aspectos culturais sobre um grupo, na apropriação é esse grupo hegemônico que se apropria de valores culturais de um grupo para poder manter a sua dominação. Os dois são processos violentos, mas são jeitos diferentes de lidar com a cultura do outro.
Com a globalização, editores e designers do mercado da moda passaram a integrar em seus projetos fragmentos de diversas tribos, grupos e nações. Por isso, o Contraponto entrevistou duas profissionais do ramo da moda: Fernanda Ramos e Magá Moura. Em relação à cultura globalizada e às perspectivas do ramo da moda, Fernanda Ramos, 21, formada em Negócios da Moda, pela universidade Anhembi Morumbi (UAM) respondeu: “A moda, em geral, junta a cultura de vários países; sendo assim, vários elementos – de vários lugares – incorporam um editorial. Todos têm o direito de se vestir como desejarem. É um direito individual”. E completa “A forma de expressão individual, como direito, coroa uma democratização de conceitos nessa união de distintas culturas – em catálogos e eventos fashions, por exemplo. É complicado falar sobre apropriação cultural quando o mundo se vê inserido em uma globalização”. Já Magá Moura, mulher negra, blogueira de moda e empreendedora, diz “Essa questão vai além de dizer o que você pode ou não usar de acordo com a sua cor. Eu não acredito que haja uma regra que dite isso, você é livre independente das suas origens. Porém, existe muito mais por trás disso, questões como a falta de conhecimento sobre a ancestralidade dos negros, das nossas próprias origens, e esses elementos simbolizam essa raiz. Então, se outras pessoas
CP – Nas passarelas, por exemplo, uma modelo branca utiliza algum símbolo negro. O certo então seria colocar uma modelo negra para desfilar? JX – É, que se tivesse uma modelo negra, designers negros, estilistas negros... que houvesse a possibilidade de alguém que é negro. Então, ao invés de uma representação ser levada, a melhor coisa seria o representado se auto representar, porque aí teria de fato o respeito à diversidade desses grupos.
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CP – Existem marcas de beleza que usam símbolos afros ou indígenas, como tranças e turbantes, como adereços estéticos. Você acha que isso é revertido se houver explicação do significado desses símbolos? Existe alguma solução para a apropriação cultural? Qual seria o melhor jeito de conscientizar as pessoas sobre esse assunto? JX – Uma forma seria respeitar as manifestações culturais desses grupos e ao invés de usarem adereços como representação cultural, tivessem essas pessoas trabalhando ao lado. Ao invés de existir uma representação, eu preferia que os próprios povos se auto representassem. Aí, você teria a diversidade. Essa seria a forma mais interessante de respeito à cultura do outro.
É complicado falar sobre apropriação cultural quando o mundo se vê inserido em uma globalização.”
( Fernanda Ramos, formada em moda pela Universidade Anhembi Morumbi)
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quiserem usar isso, que elas não se apropriem da nossa cultura. Por exemplo, na moda, esses elementos podem ser usados em modelos negras, contando a história de onde veio aquele símbolo. Mas, ao invés das pessoas perguntarem para algum negro se podem ou não usar determinados símbolos, como o turbante ou as tranças, acredito que elas devessem se questionar por que querem usar. Se for só por estilo, acho que podem encontrar outros elementos, que não necessariamente precisam ser de suas culturas, para passar o que sentem ou para expor seu estilo. É uma questão de respeito, identidade e significado”. Sobre o caso da garota abordada por negras em relação ao uso do turbante, Magá aponta: “A mídia pegou esse caso para deslegitimar o movimento negro, de pessoas que não são negras e nem conhecem o movimento. Além disso, não ouvi o depoimento da garota, nem das mulheres que supostamente a abordaram. Tudo o que eu vi foi um texto na internet, onde muitas histórias são contadas, mas quais são verídicas? É um caso desses de internet que viralizam, pelo fato de a agressão ter sido com uma garota branca. Eu sofro preconceito pela minha cor, pelo meu estilo, pelo meu cabelo sempre e não só eu, todos os negros sofrem racismo diariamente, algo que brancos jamais vão saber o que é. E esse tipo de notícia não viraliza. Então, quando batemos no peito pra dizer “Você não pode se apropriar do que é nosso” é porque temos muito orgulho da nossa cultura, então deixa isso ser nosso. Sério que tudo tem que ser tão ‘colonializado’?” A visão de Vinicius Castro, 18, estudante de Rádio e TV, é a defesa do livre arbítrio de seu estilo, dizendo que ninguém nunca se mostrou ofendido por usar dreads, mesmo sendo branco. “As pessoas devem ter liberdade para usar o que elas querem, porque o estilo expressa a personalidade de cada um e só a própria pessoa pode definir com que adereço ou símbolo ela se sente melhor”. E ainda defende “uso os dreads porque me identifico muito com a cultura rastafári e com o reggae, então procurei conhecer cada vez mais. Os dreads são muito importantes pra mim, eles têm um significado de resistência não só na cultura negra, mas contra os padrões estéticos, contra o que é imposto e disseminado como o jeito certo de se vestir, do que é bonito ou não, na minha visão.” Portanto, existem versões diferentes sobre o assunto apropriação cultural. Diante desse contexto, os negros, por exemplo, defendem o uso consciente dos elementos representantes de sua cultura, de modo que seus significados não sejam esvaziados, banalizados e desconhecidos. Em contrapartida, pessoas adeptas do uso de símbolos de diferentes culturas argumentam que o mundo globalizado permite a troca de objetos pertencentes a outras realidades, pois o que prevalece, segundo elas, é o desejo individual de cada um de se vestir como quiser.
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CONTRAPONTO
Literatura
Crime e Castigo no século 21
Por: Julia Castello Goulart, Lucas Mendes e Gabriel Paes Velloso
Clássico russo de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866, é o mais lido entre os detentos brasileiros
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Além de Crime e Castigo (Dostoiévski), as obras preferidas são Ensaio Sobre a Cegueira (José Saramago), Através do Espelho (Jostein Gaarder), Dom Casmurro (Machado de Assis), Sagarana e Grande Sertão Veredas (Guimarães Rosa)
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m 14 de fevereiro de 2017 foi noticiado em vários veículos de comunicação, como a Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal Opção, entre outros, que o Ministério da Justiça e a Segurança Pública indicaram o ranking dos livros mais lidos por detentos brasileiros. Esse ranking surgiu, posteriormente, à criação do “Projeto Remição pela Leitura” que acontece em quatro prisões de segurança máxima no país, nos estados de Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Norte e Rondônia. O projeto consiste que a cada livro lido, o detento faça uma resenha que será avaliada por pedagogos, psicólogos, e possuem os critérios de letra legível e a própria coerência do tema com a obra. Cada resenha feita e avaliada, pode diminuir até 4 dias de sua pena. Segundo a Agência Brasil, os presos têm até 30 dias para ler cada obra e podem participar 12 vezes por ano do projeto, podendo diminuir até 48 dias de sua pena anualmente. Ainda segundo a Agência Brasil, desde 2010 foram entregues 6.004 resenhas e 5.383 foram aprovadas pela equipe avaliativa. Segundo o ranking, o livro mais escolhido e lido pelos detentos dessas penitenciárias, foi Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski. Posteriormente a primeira posição, se encontra: Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, Através do Espelho, de Jostein Gaarder (mesmo autor de O mundo de Sofia), seguidos por Dom Casmurro, Machado de Assis, Sagarana e Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa. Os principais meios de comunicação noticiaram o ranking, mas raros foram os que se dispuseram a englobar esse assunto por uma análise mais profunda, para além de posições de obras divulgadas por esse projeto. Por que o livro Crime e Castigo, um clássico da literatura russa e uma das obras mais conhecidas de Dostoiévski, é o livro mais lido pelos detentos brasileiros que participam desse projeto? Crime e Castigo se passa em um contexto do século XIX na Rússia, como pode os brasileiros se interessarem tanto por essa obra em pleno século XXI? Respondendo exatamente essas questões em entrevista para o Contraponto, Elena Nikolaevna Vassina afirma: “Na época de Dostoiévski existiam muitos outros escritores que refletiram sobre o concreto período histórico, os problemas da sociedade e da Rússia, naquele momento... Mas hoje, ninguém mais lê eles. Já Dostoiévski é um grande gênio da literatura universal, um dos escritores mais lidos no mundo. Ele ultrapassa a interpretação sistêmica sociológica. Ele em primeiro lugar, trata do ser humano e os problemas do ser humano. Esses problemas são eternas questões internas e malditas, e isso faz do escritor um escritor universal”. Elena Vassina é uma pesquisadora e professora russa, formada na Faculdade de Letras da Universidade Estatal de Moscou Lomonóssov (MGU). Atualmente é professora das Letras Russas na Universidade de São Paulo (USP). Mas quais serão essas questões malditas que Dostoiévski trata em Crime e Castigo que o faz Universal? A obra Crime e Castigo, não foi sua primeira obra publicada, muito menos escrita. Dostoiévski começou a escrever
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Comumente, entende-se que um ato criminoso representa uma descarga do que não foi possível ser contido psiquicamente.
O ato criminoso rompe o laço social, enquanto atentado às proibições fundadas na cultura.” (Marli Martins de Assis, psicóloga judicial)
logo que se formou em Engenharia, largando a profissão para se dedicar à literatura. Mas Crime e Castigo foi escrito em um momento importante na vida de Dostoiévski, já que foi posterior a sua prisão e sua volta para a Rússia. Ele foi preso por participar de um grupo intelectual e revolucionário, acusado de conspirar contra o Imperador Nicolau I, conhecido pelo seu conservadorismo e autoritarismo. Sua pena seria o fuzilamento, mas pouco antes de acontecer, o Czar decidiu que a pena fosse comutada para a prisão e trabalhos forçados e, é quando Dostoiévski vai para a Sibéria. Contudo, suas experiências na prisão e como soldado foram importantes para vários livros que ele escreveu depois, como Crime e Castigo. Para Elena Vassina sua inspiração para o personagem principal: Rodion Românovitch Raskólnikov foi construído através de características de presos que Dostoiévski conheceu na prisão. Raskólnikov, o personagem principal da obra, sai de uma pequena cidade do interior da Rússia e vai para São Petesburgo, estudar direito. No início da obra, o personagem já havia abandonado o curso, pois não estava conseguindo pagar. Começou a passar fome, ficou devendo o aluguel do seu apartamento e foi quando começou a penhorar objetos com uma senhora. Quem lhe sustentava era a irmã e a mãe que permaneceram na sua cidade natal e mandavam dinheiro sempre que podiam. Isolado no seu apartamento, praticamente na miséria, ele cria uma teoria. O mundo era dividido entre os ordinários e os extraordinários. Existiram para ele, grandes nomes na história, que apesar de come-
terem vários crimes, ao contrário dos ordinários que eram punidos pelas leis dos homens, eram considerados heróis. Ele cita em várias passagens o exemplo de Napoleão. Para a Doutora em Literatura Russa, Vassina, o homem “extraordinário” da teoria de Raskólnikov escrito por Dostoiévski possui relação com o “Super-homem” de Nietzsche: “A ideia de super-homem de Nietzsche começou a ser divulgada na Europa na época em que Dostoiévski escreve Crime e Castigo e começa a se tornar muito popular. A ideia de que um tipo de ser humano, é superior aos outros e esse, seria o modelo a ser seguido. Nessa época também foi o nascimento do terrorismo, infelizmente, o meu país, (Rússia) era a pátria do terrorismo. Qual é a ideia do terrorismo? Eu vou matar, fazer o mal, para fazer um bem maior”. O personagem queria testar sua teoria: Ele era um homem (o HOMEM de Nietzsche) ou uma pulga? Seu plano era matar a velha de penhores a machadadas, roubar o dinheiro e os objetos por uma causa maior. Usar o dinheiro para voltar aos estudos, ajudar a mãe e a irmã e assim, poder fazer o bem. Mas na prática, não é isso que acontece. Raskólnikov mata a velha e por circunstâncias inesperadas, tem que matar Lisavieta, a irmã da velha, que chega ao apartamento no momento do assassinato. Raskólnikov atordoado com medo de ser pego pelo crime, acaba roubando apenas uma bolsa com alguns objetos e ao invés de usá-los para concretizar seus planos, ele esconde tudo debaixo de uma pedra, não gastando nenhuma moeda do que rouba. Raskólnikov ao longo de
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Não acredito que a punição seja a melhor maneira possível para combater o crime, mas ao mesmo tempo não consigo
pensar em maneiras alternativas e viáveis para a sociedade atual.
A proposta de reinserção dos indivíduos na sociedade livre é muito bonita no papel, assim como o SUS, mas na prática brasileira, não ocorre como o planejado, e a proposta inicial torna-se na minha opinião, praticamente utópica.”
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(Otávio Loyola Martins, psicólogo)
É obrigação do Estado condicionar o egresso a uma situação onde ele possa ser reinserido na sociedade,
pleitear um bom emprego e prepará-lo para o convívio social fora da criminalidade.
Claro que em se tratando da nossa realidade, a lei foi muito além, estabelecendo um padrão de primeiro mundo em um país de terceiro.” (Paulo de Tarsso, juiz) toda a narrativa se tortura com o medo de ser pego, ao mesmo tempo que se orgulha do feito e quase se entrega ao delegado, Porfiri. Para o psicólogo, Otávio Loyola Martins formado pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), existe em muitas pessoas que cometem
um crime a vontade, quase uma necessidade de se entregar, mesmo não querendo ser preso: “Muitas pessoas procuram e encontram maneiras de se redimir perante à própria condição de ‘mau’. A opção por deixar rastros do que fez de errado, se entregar ou facilitar estes meios
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podem, na minha opinião, representar uma tentativa de aliviamento da carga que o arrependimento ou o medo das consequências podem trazer ao indivíduo”. Raskólnikov ao confessar seu crime à Sônia Marmeladova, prostituta por quem se apaixona, não o vê como criminoso, já que havia cometido o crime para provar sua teoria. Mas Sônia aponta para uma questão interessante na obra: Será que ele não cometeu o crime porque estava na miséria, porque estava com fome, não tinha outros meios além de roubar? Entrando na discussão já tão discutida na sociologia, a forma como os indivíduos são e se comportam, sofre influências do meio em que vivem e suas circunstâncias. Será que a pobreza e a violência podem influenciar o indivíduo a cometer um crime? Para a psicóloga judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), especialista em psicologia jurídica e psicoterapia psicanalítica pela USP-São Paulo, Marli Martins de Assis, até a forma como nos relacionamos com os outros, principalmente com os familiares na infância, pode influenciar: “A falta de continência afetiva nas primeiras relações objetais, vivenciadas com os pais e/ou cuidadores, pode comprometer a estruturação psíquica e emocional, repercutindo em necessidades do “Eu” e numa incessante busca de sua realização no meio externo. Nas cenas cotidianas, o sujeito projetará a idealização e perseguição originárias e, em caso de não contenção e/ou acolhimento em referido meio, este também passará a ser alvo de ataques de ódio. Tais processos escapam à consciência e persistem motivando cenas de violência, entre elas o crime. Entretanto, não apenas nas primeiras relações objetais e na dinâmica familiar se estrutura o psiquismo. Existe uma identificação com os referenciais de cultura. Privações de toda espécie também comprometem a organização mental e podem ser responsáveis pela ruptura no laço social. Comumente, entende-se que um ato criminoso representa uma descarga do que não foi possível ser contido psiquicamente. O ato criminoso rompe o laço social, enquanto atentado às proibições fundadas na cultura.”. Mas como afirma o psicólogo Otávio Martins, é necessário destacar que o meio possui um papel fundamental na forma como nos constituímos, mas cada indivíduo constrói de maneira diferente a sua resiliência e subjetividade, não sendo apenas o meio e suas experiências determinantes no processo de construção da subjetivação. No fim do livro, Raskólnikov confessa o crime à polícia. “ ‘Claro, nesse caso até muitos benfeitores da humanidade, que não herdaram mas tomaram o poder, deveriam ser executados ao darem seus primeiros passos. No entanto, aqueles homens aguentaram os seus passos e por isso estavam certos, mas eu não aguentei e, portanto, não tinha o direito de me permitir esse passo”. Eis em que ele não reconhecia o seu crime: apenas no fato de não o ter aguentado e ter confessado a culpa’.” Esse trecho do livro apresenta a comparação que Raskólnikov faz com seu próprio crime e sua teoria dos homens extraordinários da história. Mas como o narrador nos apresenta, ele não se sentia um criminoso. Não se sentia culpado pelo próprio crime, mas, por não ter aguentado e confessado, fazendo-o ser um homem comum, como os outros. Para a psicóloga judicial, Marli Assis, muitas pessoas que cometeram crimes não se consideram “criminosas” e como não se consideram, não acham que deveriam ser punidas. Mas quando são afastadas da sociedade, normalmente se sentem vítimas:
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atual. A proposta de reinserção dos indivíduos na sociedade livre é muito bonita no papel, assim como o SUS, mas na prática brasileira, não ocorre como o planejado, e a proposta inicial torna-se na minha opinião, praticamente utópica”. Já para o juiz Paulo de Tarsso, há sim outras saídas: “Existem penas alternativas para alguns crimes, é preciso que haja sempre um diferencial para o sujeito. Não os que entram já esperando o dia em que vão sair e pensando no próximo crime que irão cometer, mas os que realmente querem responder por seus atos e percebe-se um sentimento de culpa nesses indivíduos. Esses sim foram recuperados pelo sistema”. Tarsso ainda reitera a importância das atividades complementares: “São muito eficazes e contribuem muito. A lei permite a reinserção e fornece assistência material e educacional, dentre outras. É obrigação do Estado condicionar o egresso a uma situação onde ele possa ser reinserido na sociedade, pleitear um bom emprego e prepará-
lo para o convívio social fora da criminalidade. Claro que se tratando da nossa realidade, a lei foi muito além, estabelecendo um padrão de primeiro mundo em um país de terceiro. E é tanto nosso objetivo, quanto dificuldade – esbarrando na questão estrutural –, deixar o indivíduo apto para o convívio social”. Comparando a história de Raskólnikov, fictícia, com a vida real, como se fez ao longo da matéria, é possível perceber como muitos brasileiros e muitos indivíduos em diversos países, podem ser um “Raskólnikov”. Pois Dostoiévski trata de questões existenciais humanas, como a consciência, culpa, leis, crime, castigo e ressurreição que já faziam parte do imaginário de pessoas do século XIX e ainda se enquadram muito bem às questões discutidas em nosso próprio século. O “cidadão de bem” quer cada vez mais punir o “criminoso” mesmo que não seja a solução mais eficiente...tanto para o que comete o crime, como para toda uma sociedade.
© Reprodução
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“Avalia-se que, poucos são os sujeitos que se identificam com a condição social imposta, como criminosos. Se não existe uma responsabilização e necessidade de reparação do ato delinquente e, uma vez que que as atitudes e escolhas são normalmente associadas à uma busca entendida como de direito, dificilmente referido sujeito se submeteria passivamente à condenação e à exclusão do convívio social. Notadamente pelas condições precárias na estrutura penitenciária, às quais é exposto no cumprimento de medida judicial, o sujeito se desloca de uma participação responsável na consecução do ato criminoso e se identifica na condição de vítima e injustiçado. Na referida condição, os sujeitos persistem buscando a criminalidade, e, as cenas de violência encontram novos espaços e novos objetos. O formato das penitenciárias no Brasil, podem estruturar o sujeito autor de práticas delinquenciais cada vez mais no ressentimento, em suas fantasias torturantes de vingança. Numa compreensão psicanalítica, referidos sujeitos podem se orientar por um dos caminhos: ‘o sujeito se organiza no papel de vítima privilegiada ou no de vingador’ – frase de Moguillansky”. Ou seja, muitas vezes ser afastado da sociedade, ser preso, quando não se possui a consciência de que é culpado, torna-o mais violento, persistindo na criminalidade. Mas, o que fazer então, quando um indivíduo comete um crime? Qual a melhor forma de fazer com ele possa ter, depois do seu cumprimento de pena, uma segunda chance? O fim da obra, que termina em aberto, passa a impressão para o leitor que por meio do amor de Sônia e após ter lido um pedaço do evangelho da Bíblia, ele passa por uma “ressurreição”, possui uma segunda chance, de viver posteriormente uma vida diferente. Assim, como Lázaro, um personagem bíblico, que é ressuscitado por Jesus Cristo, e possui sua segunda chance. Mas na vida real, como possuir uma segunda chance? O Castigo é a melhor forma de se solucionar um problema como o Crime? Para Marli Assis, vivemos em um momento que buscamos cada vez mais a punição como forma de resolver nossos problemas: “Estamos na era do extravasamento do ódio a qualquer custo e em modalidades cada vez mais sofisticadas. Em contrapartida, também vivenciamos uma incansável busca punitiva aos comportamentos que desviam da normatividade, numa dinâmica incansável e justificada para fazer prevalecer o bem sobre o mal. Surgem os heróis, cumpridores da Lei e, uma doutrinação pela coerção e punição, mesmo que na imposição de medidas arbitrárias e em distonia com os dispositivos constitucionais. Decisões judiciais, que carregam o estigma da coerção em sua essência meramente punitiva, estão no centro dos debates políticos e dos conflitos sociais. Referido contexto pode ser assim representado: ‘vivemos a carnavalização do Direito’ – frase do professor Luis Alberto Warat. Nunca se apresentou com tanta imponência uma prática de perseguição ao crime, chegando mesmo à despersonalização dos sujeitos envolvidos, quando se coloca no centro do debate a punição do ato a qualquer custo. Não será por referidos meios, com afronta aos direitos garantidos constitucionalmente, que o judiciário conseguirá resgatar o processo civilizatório dentro dos limites democráticos”. Questionado sobre a melhor forma de diminuir o crime, o psicólogo Otávio Loyola, responde: “Não acredito que a punição seja a melhor maneira possível para combater o crime, mas ao mesmo tempo não consigo pensar em maneiras alternativas e viáveis para a sociedade
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A ideia de super-homem de Nietzsche começou a ser divulgada na Europa na época em que Dostoiévski escreve Crime e Castigo e começa a se tornar muito popular. A ideia de que um tipo de ser humano, é superior aos outros e esse seria o modelo a ser seguido. Nessa época também foi o nascimento do terrorismo, infelizmente, o meu país, (Rússia) era a pátria do terrorismo. Qual é a ideia do terrorismo? Eu vou matar, fazer o mal, para fazer um bem maior.” (Elena Vassina, pesquisadora e professora russa)
Os detentos escolhem os livros, ou os livros são impostos? Durante a entrevista do Contraponto com a psicóloga judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Marli Martins de Assis, nos deparamos com certa questão: “Quanto à referida constatação de que Crime e Castigo representa a obra comumente escolhida pelos detentos nas penitenciárias, uma ponderação: representa uma escolha livre de ideologias e de imposições ou, lado outro, representa uma leitura direcionada? Na obra Precisamos falar sobre Direito, Literatura e Psicanálise, Alexandre Morais da Rosa e André Karam Trindade, em capítulo intitulado ‘A remissão da pena através da leitura neopentecostal’, retratam o lançamento da obra do bispo Edir Macedo (Nada a Perder) no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, com justificativa em preceito constitucional, o de fomentar a leitura e a informação, mas na verdade objetivando atender aos interesses econômicos e aos conchavos políticos. Ainda, explicitam o projeto ‘Remição Pela Leitura’, que se encontra em funcionamento no sistema penitenciário federal. No referido projeto existe uma delimitação de número de obras mensais a serem computadas para a pretensa remição, e o requisito de elaboração de resenhas das obras. Quais seriam as obras direcionadas e com que fim? Seriam obras do Bispo Edir Macedo e como restaria a autonomia do sujeito na escolha? O sistema penal e suas instituições expõem o sujeito à ‘vida nua’ (Agabem), favorecida pela ruptura com o laço social. Promove um estado de desumanização, num processo de uniformização e despersonalização”. O Contraponto tentou entrar em contato via email e telefone com o Ministério da Justiça e de Segurança Pública referente aos critérios de escolha da bibliografia do projeto “Remição Pela Leitura” e em relação à liberdade de escolha por parte dos presidiários, quanto ao livro lido, mas não obteve resposta. Na ligação realizada no dia 22 de março às 12h:40min, o Ministério solicitou o envio de um e-mail que foi encaminhado às 15h:17min da mesma data e até a resolução desta matéria, 03 de abril, não obteve resposta.
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CONTRAPONTO
EUA-China
Um jogo perigoso no Pacífico
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China tem grande influência sobre a Coreia do Norte. A China é que vai decidir se nos ajuda com a Coreia do Norte ou não. Se o fizer, será muito bom para a China, e se não o fizer, não será bom para ninguém. Se a China não resolver [a questão com a] Coreia do Norte, nós vamos”, afirmou Donald Trump, no dia 2 de abril, às vésperas de um encontro com o presidente chinês Xi Jinping, no seu clube privado de Mar-a-Lago, na Flórida. A declaração do presidente americano adquire um novo peso, após o ataque à base aérea síria, realizado no dia 6, enquanto Trump recebia Xi. A Casa Branca mostra-se disposta a promover ações militares unilaterais em defesa de seus interesses, mesmo diante da oposição de outras potências nucleares poderosas, como a Rússia e a China. Começa um novo momento na complexa relação de Washington com Pequim, cada vez mais tensa e perigosa. O “x” da equação reside em saber como a China se posicionará, pois disso depende a definição de seu papel como potência no mundo. A “questão” da Coreia do Norte é apenas mais um fragmento, um detalhe do xadrez jogado pelas duas potências na região do Pacífico. Em 13 de janeiro, ao ser questionado pelo Comitê de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, o então candidato a secretário de Estado (depois confirmado) Rex Tillerson fez uma clara ameaça a Pequim, ao condenar a crescente presença militar do país no Mar da China Meridional. Os Estados Unidos, disse Tillerson, devem “enviar um claro sinal de que, em primeiro lugar, a construção de ilhas deve terminar imediatamente”, acrescentando que “o acesso às ilhas não será permitido”. As ilhas artificiais a que se refere Tillerson são bases navais construídas pela China sobre recifes de corais e pequenas rochas localizados nas ilhas Spratly (Nansha, em chinês, cuja soberania é também reclamada pelas Filipinas, Taiwan, Vietnã e Malásia), além de plataformas de lançamento de mísseis, pistas de pouso e radares nas ilhas Paracel (Xisha), cuja posse é disputada pelo Vietnã. Pequim também reivindica a soberania sobre as ilhas Diaoyu, em braço de ferro com o Japão (que lhes dá o nome de Senkaku). Para a Casa Branca, esse processo configura a construção de uma “muralha marítima”, cujo objetivo é permitir a anexação das regiões em disputa. Em 2013, Pequim proclamou seus supostos direitos históricos sobre uma vasta região que abrange 85% do mar do sul da China, em detrimento de reivindicações feitas por Taiwan, Vietnã, Malásia, Brunei e Filipinas. As reivindicações foram rejeitadas pelo Tribunal de Haia, por falta de consistência histórica. Para além dos óbvios interesses econômicos (a região é rica em petróleo, gás e pescado), a principal preocupação de Pequim é a segurança militar, ameaçada pela presença ostensiva de bases militares dos Estados Unidos na área. O ministério das Relações Exteriores da China reagiu com cautela às declarações de Tillerson – que, se levadas ao pé da letra, constituiriam um ato de guerra. Pequim preferiu delegar a resposta aos jornais sob seu controle, Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Visita do líder chinês Xi Jinping a Donald Trump ocorre num momento de tensões crescentes entre as duas maiores economias do planeta O ex-presidente americano, Barack Obama comandou um processo de concentração acelerada de armas e pessoal (intitulado Asia Pivot) em todas as suas mais de 400 bases no Pacífico, incluindo as de Okinawa (Japão) e Guam (Micronésia). Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, tropas de marines foram deslocadas para a Austrália e, em março de 2016, o Pentágono enviou à região bombardeiros B-2 com capacidade de transportar e lançar ogivas nucleares. Obama combinou a silenciosa ofensiva militar com uma tentativa de criar um cordão de isolamento econômico contra a China, por meio da Parceria Transpacífica (TPP), um acordo com inúmeros países da Ásia/Pacífico que disciplinaria o sistema de trocas de capitais, bens e serviços nos termos determinados pelos Estados Unidos. Mas o processo foi abortado por Donald Trump, que promoveu uma campanha eleitoral concentrada em ataques e ameaças a China, além de ter rompido unilateralmente com o TPP. Se, ao lançar mísseis contra a Síria, Trump envia uma mensagem de que fala a sério sobre promover ações unilaterais contra a Coreia do Norte (e, portanto, mobilizar tropas e forças em áreas consideradas como sua “área de influência” pela China), Pequim já deu várias demonstrações de que não recuará diante de um ataque à sua soberania. Prova disso foi a recente captura de um drone submarino americano, enviado a partir das Filipinas, com a missão de coletar dados sobre as dimensões e localização das instalações submarinas chinesas. Além disso, foram registrados vários episódios em que o exército chinês disparou contra voos de reconhecimento lançados pelos Estados Unidos. Pequim, aliás, não tem escolha, caso queira se projetar como potência mundial. O país é particularmente vulnerável a um eventual bloqueio naval, já que cerca de 80% de seus suprimentos de energia passam pelo oceano Índico e pelo Mar da China Meridional, por rotas controladas diretamente pelos Estados Unidos ou países aliados, como Índia e Indonésia. A vulnerabilidade explica, em grande parte, os esforços expansionistas da China. Os dirigentes chineses não pode ensaiar um recuo diante da ofensiva de Trump, mesmo se o desejarem. Por outro lado, um bloqueio em grande escala e um eventual colapso da economia chinesa não interessam aos Estados Unidos, pois levaria a um desastre mundial de proporções incalculáveis, ainda mais no atual estado de crise global da economia. A equação torna-se cada vez mais complexa, e cria uma lógica de testes de força que, no limite, pode levar ao inimaginável. © Reprodução
Da Redação
O presidente da China Xi Jinping cumprimenta Donald Trump, presidente dos Estados Unidos
como o nacionalista Global Times, que ameaçou com uma “guerra em grande escala” se a Casa Branca realmente tentar cumprir com a ameaça, e o China Daily, para o qual uma tentativa de bloqueio do acesso às ilhas poderia levar a um “confronto devastador entre China e Estados Unidos”. Não existe a menor chance de os dois jornais terem assumido posições tão dramáticas sem o total consentimento de Pequim. Rixa histórica – As tensões entre China e Estados Unidos acumulam-se há décadas, e ganharam novo significado com a extraordinária projeção recente do país na economia mundial. A China exibe um PIB de US$ 11 trilhões, só perdendo para o americano, de US$ 18 trilhões; juntos, somam 40% do PIB mundial. O crescimento chinês acendeu todos os sinais de alerta na Casa Branca que, crescentemente, vê a China como maior inimigo potencial na disputa pelo controle do mercado mundial.
As tensões entre China e Estados Unidos acumulamse há décadas, e ganharam novo significado com a extraordinária projeção recente do país na economia mundial.
A China exibe um PIB de US$ 11 trilhões, só perdendo para o americano, de US$ 18 trilhões; juntos, somam 40% do PIB mundial
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Por: Laura Lourenço
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ano de 1964 não foi um ano fácil deixou de querer mudar a opinião da população sobre para aqueles que o presenciaram. as ocorrências no desenrolar do Golpe. Sobre a crônica Inicialmente, naquele mês de abril, a poputitulada “Revolução dos caranguejos” diz abertamente lação não sabia o que esperar da tomada do no Correio: “Já que o Alto Comando Militar insiste em poder pelos militares e quais as consequências chamar isso que aí está de Revolução- sejamos generoo Golpe de 64 acarretaria para a mesma. Mas sos: aceitemos a classificação. Mas devemos completáo jornalista Carlos Heitor Cony teve a sensibilila: é uma Revolução sim, mas de caranguejos. Revolução dade, desde o dia 1° de abril daquele mesmo que anda pra trás”, e acrescenta sua opinião sobre os ano, de entender os fatos que realmente militares, dizendo não compreendê-los por quererem aconteceriam no país. impor tamanho retrocesso. O autor também faz comO livro O ato e o fato: O som da fúria parações da Revolução Russa com os acontecimentos do que se viu no Golpe de 1964 reúne todas no Brasil, relata o quão importante é a participação crônicas políticas de Cony escritas neste dos estudantes na época, questionando os leitores a mesmo ano no jornal Correio da Manhã, em questão de que “Se os militares podem participar da que trabalhou sendo cronista, editor, editovida nacional [...] porque os estudantes não podem dar rialista e redator. Ele escreveu crônicas que suas opiniões e promover suas lutas?” e conversa com claramente expunham sua opinião sobre a os intelectuais, dizendo que eles deveriam ter tomado situação política do Brasil e serviram de insposição em face ao regime opressor que ali tinha se piração para que o povo brasileiro pudesse instalado no país. lavar a face e levantar a cabeça diante de O ato e o fato: O som da fúria do O livro expressa uma crítica muito grande sobre uma “Revolução dos caranguejos” como ele que se viu no Golpe de 1964 todos os acontecimentos ocorridos naquele ano, e próprio a caracteriza. Nesta última edição Autor: Carlos Heitor Cony consequentemente, de certa forma, uma crítica sobre do livro, publicada no ano de 2004, além Editora: Nova Fronteira - São Paulo o governo dos dias atuais. É um livro interessante, de possuir texto de apresentação escrito por pois narra os acontecimentos de forma cronológica Luís Fernando Veríssimo e textos na parte do Apêndice escritos por Edmundo Moniz, encontra-se em suas últimas e de certa forma momentânea, pois o autor escrevia seus relatos no dia páginas relatos feitos pelo próprio autor, 40 anos depois da publicação em que os acontecimentos eram noticiados pelas autoridades. Com as de suas crônicas, em que ele rememora fatos e experiências relacionadas crônicas sendo sucintas e objetivas, é um livro ótimo para aprofundar um pouco mais no assunto da Ditadura Militar e para refletir, em meio de suas ao Golpe Militar. No livro, o autor escreve suas crônicas com afirmações muito comparações, o desespero do autor em fazer com que a população não marcantes e opiniões que chocam os leitores, não se importando com a se tornasse cega aos olhos dos militares e marechais, transformando-se censura e repressão que ocorria na imprensa e nos jornais da época, pois ele em um panfletário, exigindo alguma resposta da nação brasileira por mesmo sendo processado e ameaçado de morte com seus escritos, não meio de ações imediatas. © Divulgação
RESENHA
O papel de um jornalista na ditadura militar
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stamos todos passados. O filme queimou junto com a carne, desta vez. Depois do escândalo da Operação Carne Fraca – envolvendo as mais populares marcas de consumo alimentício do Brasil –, a Bancada BBB¹, especificamente o Boi da nomenclatura, ficou com sangue nos olhos e, como de costume, está tentando manobrar, através dos engravatados, vendar os olhos da população. Mas o olfato é impossível de censurar, sentimos o fumacê desse fiasco de longe. Picanhetagem! Sobrou até para o Tony Ramos, maldosos! Enquanto uns ou outros, vestindo a couraça da discórdia, o colarinho branco do golpismo, jantam às custas do povo um belo Angus Argentino: “Deixa ele tocar a boiada; afinal, são todos gados! ”. Porém, o termo “gado”, desta vez, foi descoberto. Primeira página dos jornais. E os “gados cativos” estouraram em uma tourada! Ou seja: corta importação. Bye Bye Brazil. Boicote já! Se é presunto é... Sai dessa! Depois da famosa lenda urbana do “Hambúrguer de minhoca”, de uma rede fast food americana, o embrulho estomacal se concretizou com várias manchetes de jornal. Não mecha no prato, afinal: Comida é sagrada no país laico graças a Deus! E, como se não bastasse a negligência geral para com a sociedade civil, nem a merenda escapou dessa putrefação esquematizada; covardia geral. Que papelão fizeram – literalmente. E, para citar alguns ingredientes dessa Vaca Atolada² trágica: os produtos vencidos eram tratados com ácido ascórbico, uma substância cancerígena e, de praxe, eram adulterados e voltavam às gôndolas dos mercados.
Por: Matheus Lopes Osso duro de roer foi ver o presidente, legítimo igual a carne, saborear a carnificina midiática em uma churrascaria de carnes importadas. Vai Brasil. Pátria educadora. Assem o pato da Fiesp agora. Já aviso: a ave é dura! Bon Appétit... Mas antes, digo: A vaca foi pro brejo!
© IReprodução
CRÔNICA
Churrasco de Tróia
¹ O termo “BBB” é usado para designar “Boi, bala e bíblia” – Bancada dos: Ruralistas, Forças Armadas e Bancada Evangélica. ² Famoso prato da culinária caipira.
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ANTENA
Por André Vieira
Em carta aberta divulgada na última sexta-feira de março, o Portal UOL ratificou a grande importância que a mídia virtual possui para a publicidade, principalmente por sua precisão, sofisticação e diversidade de formatos que tornando assim o formato digital o “santo graal” da publicidade moderna. No entanto, de acordo com o portal de notícias, devido ao avanço desenfreado das notícias falsas e conteúdos ilegais pela web, grandes anunciantes, de uma hora para outra, suspenderam contratos com grandes plataformas onNuma tentativa de recuperar a line. Isto porque, principalmente, não se havia o controle sobre o onde tais credibilidade perdida com os diversos propagandas seriam vinculadas e se preocuparia apenas com os dados de “escorregões” desde as Jornadas de audiência, ou seja o número total de pessoas que veriam aquele anúncio. Junho, o Grupo Folha tenta por meio de O remédio segundo o tradicional site de notícias, seria apostar mais “onde” a seu novo editorial, se reinventar como a publicidade iria circular e não se contentar apenas como o número total de nova vanguarda do “tempo das telas” pessoas atingidas. “[Nós] Nos apresentamos como empresa confiável para audiência e anunciantes, uma alternativa segura, com alcance, escala em produção de conteúdo e soluções publicitárias nos mais diversos formatos (display, native e video), com baixíssimo risco em associação com conteúdo indesejado, tráfego fraudulento ou discrepância entre o que é contratado e o que foi efetivamente veiculado, ainda mais se comparando com investimento em “mar aberto”. Em outras palavras, é voltar no tempo e voltar a velha máxima publicitária “Content is King”, a crença que conteúdo-anúncio formam um par perfeito.
Em editorial escrito para o dia 31 de março, última sexta-feira do mês, o jornal Estado de S.Paulo defendeu a tese que, para a volta do crescimento do país e melhores condições financeiras e garantias jurídicas para cada cidadão, seria necessário revogarmos a atual Constituição em vigor e iniciarmos um novo processo de constituinte, mais branda e de acordo com as diretrizes do mercado internacional. “O texto de 1988 é hoje incapaz de fornecer um marco jurídico, administrativo e político adequado ao desenvolvimento econômico e social do País.”, afirma o Segundo a linha editorial do Estadão, a atual Constituição é prolixa e texto do jornal que não representa plenamente o ainda reitera que “desenvolvimento econômico e além ineficiente social” que o país almeja e prolixa, a atual Constituição é muitas vezes contraditória, e dá amplos poderes ao Poder Judiciário e, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF). Nas palavras do veículo, é nessa alta instância poder que é imposto todo o dever de “resolver e normatizar tudo”, diferentemente dos Poderes Executivo e Legislativo que não representariam satisfatoriamente a vontade popular e o livre árbitro da Democracia. O jornal ainda afirma que, “a Constituição de 1988 já cumpriu suas funções, e a principal delas foi servir de lastro para a consolidação do processo democrático que então se iniciava”, e que o tempo urge por uma nova Constituição, “realista e funcional”, de uma “sociedade madura” que se já deu conta que há diferenças entre os direitos impressos no papel da Carta Magna e aqueles, de fato, empenhados na sociedade democrática de direito.
■ Projeto Gráfico da Folha na era da pós-verdade Num dos momentos mais críticos encontrados pela profissão jornalística nos tempos atuais, principalmente com a consolidação do FakeNews como forma de divulgação de informações pela internet, o jornal Folha de S.Paulo propôs uma nova mudança em seu projeto gráfico, isto é em seus pretextos e valores para elaboração e apuração do bom jornalismo.
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© Leonardo Sá/Agência Senado
■ Uma nova Carta Magna?
© Karine Xavier/Folhapress
■ UOL exalta mudança na publicidade on-line
Em uma série de textos postados em sua plataforma on-line, o principal veículo impresso paulista ressalta 12 valores que serão adotados pela empresa para a retomada da credibilidade e intolerância no meio jornalístico. Entre eles estão a máxima da “pauta propositiva e texto conclusivo”, que em outras palavras significa “otimizar a experiência do leitor e valorizar seu tempo, cada vez mais escasso e disputado por diversas fontes de conteúdo, noticioso ou não”, e o conceito de “ notícia que vai até o leitor” que representa a “adaptação da notícia” ao leitor do tempo das telas, suprimindo tendências sensacionalistas e técnicas obsoletas de emocionar o leitor e apostando num formato que ao mesmo consiga atrair atenção do consumidor das notícias e mantenha um certo padrão de qualidade no Jornal. Por mais essas mudanças não apresentem nada de inovador no cenário atual do webjornalismo, é a primeira vez que um veículo tradicionalmente brasileiro aposta numa reciclagem de seu projeto gráfico, principalmente na parte digital, para o enfrentamento da crise na profissão. Talvez seja o começo de uma nova fase no jornalismo do Grupo Folha.
■ Denuncia de assédio de José Mayer é tirada do ar No dia 31 de março, no espaço reservado à discussões, debates e lutas de cunho feminista, o blog #AgoraÉQueSãoEles, hospedado na página da Folha de S.Paulo postou uma denúncia da figurinista Suellen Tonani contra o ator global José Mayer. O texto que acusa o ator de assédio sexual e o aponta como “criminoso” foi retirado do ar site do veículo por volta das 15h, mas voltou a ficar em circulação às 17h30 com mesmo dia, logo após que a própria Folha ter publicado uma matéria dando voz de defesa a Mayer. Em nota, o periódico afirmou que: “O conteúdo foi retirado do ar porque desrespeitou o princípio editorial da Folha de só publicar acusação após ouvir e registrar os argumentos da parte acusada, salvo nos casos em isso não for possível”. Em carta aberta ao público, o global admitiu que “Errei no que fiz, no que falei, e no que pensava.”, e suas atitudes são frutos de uma cultura onde brincadeiras invasivas e abusivas são se caracterizam como machismo. A carta vai na contramão do que incialmente foi dito pelo ator que afirmou que as palavras e atitudes a ele atribuídas são próprias de seu personagem da novela, Tião Bezerra e não de cunho pessoal. Atualmente José Mayer está suspenso de todas as suas atividades em sua emissora. De acordo com a acusação de Tonani, o ator teria colocado sua mão esquerda nas partes íntimas da figurinista enquanto ela dividia o camarim com outras duas funcionárias da produção da teledramaturgia, e a teria chamado de “vaca” no meio do set de filmagem por ter aceitar mais falar com Mayer e não levar o ato como uma “brincadeira”.
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CONTRAPONTO
SPFW
s grandes revoluções atuais ocasionadas pelas forma de se portar e vestir, jamais seriam possíveis se as inovações técnicas das fábricas de seda da Inglaterra não tivessem tomado seu lugar na história. No surgimento do primeiro tear automático para confecção de tecidos padronizados, as indústrias têxteis começaram a ganhar força em outras regiões da Europa, como por exemplo, Espanha, Holanda e Bélgica fazendo da atividade fabril um marco na produção econômica e abrindo as portas para uma atividade humana que ditaria o comportamento da sociedade. Ou seja, a moda sofreu o reflexo da tecnologia desde os primórdios da Primeira Revolução Industrial até hoje, com o desenvolvimento das marcas “Pret à Porter”, que valorizam a confecção em baixa escala, com materiais escassos e roupas feitas sob medida. A globalização e a tecnologia influenciaram o mercado da moda, uma vez que o “Fast Fashion” tomou conta do ritmo de produção têxtil. Com as novas tecnologias, as roupas passam a ser produzidas de forma cada vez mais rápida, com preços mais baixos, não levando em conta o impacto ambiental e social que isso pode causar. A indústria têxtil é a segunda mais poluente do mundo, só perde para a do petróleo, já que as fibras de poliéster usadas nos tecidos demoram cerca de 200 anos para se degradar. As marcas mudam de coleção em um curto espaço de tempo, e o que estava “na moda”, em poucos dias se torna ultrapassado. As roupas passam a se tornar quase que descartáveis, e em meio a esta realidade, a tecnologia pode atuar como solução ou como um dos fatores de agravamento do quadro. O tema inspirou o talk do último dia do evento, realizado na Fundação Bienal de São Paulo. Roberto Martini, CEO da Holding, FLAGCX, que une tecnologia e comunicação, Caio Tulio Costa, jornalista, fundador do “Torabit”, sistema de monitoramento digital e Fabio Scoppetta, diretor de Transformação Digital, Nuvem e Inteligência Artificial da Microsoft, discutiram as perspectivas de transformação da moda no cenário de desenvolvimento tecnológico. Empresas como a Microsoft, a FLAGCX e a Torabit, começaram a dialogar com esta realidade nos últimos anos. Fabio Scoppetta acredita que os sistemas cognitivos podem propor estampas, cores e tecidos. Esses elementos podem aparecer de maneira mais sustentável. Além disso, a tecnologia tem o papel fundamental que se relaciona com a inclusão social. Durante a palestra, o jornalista Caio Tulio Costa, ressaltou que “essa é uma questão relativa a alfabetização digital. Hoje para você ter poder de mídia, você não precisa necessariamente de poder econômico. Como precisava até alguns anos. Quanto mais as grandes empresas vão ganhando em escala, mais elas podem ofertar produtos capazes de nos dar esse poder de forma gratuita”. Para ele a questão da inserção social vai mais além, “hoje o acesso à tecnologia está fácil. O problema é muito mais econômico, no sentido de democratizá-la do que da acessibilidade das novas plataformas”.
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Em sua 43a temporada, a São Paulo Fashion Week abriu-se à influência da tecnologia e à pluralidade de narrativas
© Pablo Saborido
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Modas do futuro
Alex Santos com os nove modelos convidados
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[num futuro próximo] podemos ter estilistas © Fotos: Zé Takahashi
Por: Leticia Sepulveda
trabalhando com modelos que são hologramas, usando tecidos e texturas digitais, trabalhando de uma forma muito natural, sem ter o custo da produção têxtil que ele teria atualmente.”
( Fabio Scoppetta, diretor do setor de transformação digital da
Microsoft)
O jornalista ainda ressaltou: “a mídia tradicional ainda não conseguiu fazer a passagem para o virtual, como deveria estar fazendo ou já ter feito”. Essa realidade também dificulta a inserção das parcelas mais excluídas da sociedade, uma vez que o conteúdo virtual das mídias tradicionais poderia ser acessado de maneira gratuita. Já para Roberto Martini “a inserção vai acontecer de qualquer forma. O tempo não vai passar mais devagar, ele é feito por interrupção e a lógica de rede é conectar mais pontos, com mais interrupções e isso faz com que o seu tempo se acelere e as coisas se transformam muito mais rápido. Não precisamos forçar essa transformação, só precisamos preparar as pessoas para que elas se adaptem”. Para Fabio Scoppetta, em um futuro próximo “podemos ter estilistas trabalhando com modelos que são hologramas, usando tecidos e texturas digitais, trabalhando de uma forma muito natural, sem ter o custo da produção têxtil que ele teria atualmente”. Neste futuro, os danos ambientais seriam bem menores. A internet ajudou na inclusão social no meio jornalístico. É comum nos depararmos com a falta de representatividade nas revistas de moda brasileiras. Os periódicos insistem em importar seu padrão norte-americano e europeu, mesmo em suas versões brasileiras. Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Desfile de Renato Ratier Quando uma brasileira compra uma revista de moda, muitas vezes não se vê representada pelo “padrão de beleza” exposto. Existe também a falta de modelos negras, indígenas ou “plus size” em destaque. As mulheres também sofrem a exclusão socioeconômica, uma vez que os preços das roupas apresentadas nos ensaios de moda não são acessíveis. Os blogs e sites relacionados à moda e comportamento vieram para mudar essa realidade. A mídia alternativa possuiu alta reponsabilidade quando o assunto é inclusão social. As mulheres passaram a se sentir mais representadas quando acessavam este conteúdo pela internet de maneira gratuita. A São Paulo Fashion Week passou a dialogar com essa realidade. Em sua quadragésima terceira temporada, barreiras e padrões foram quebrados. Em um dos palcos do evento, o TNT lab, teve como atrações a “Squad”, agência de modelos que não obedecem aos padrões da moda, a “Roupa Livre”, projeto que propõe mudanças criativas e sustentáveis para a indústria têxtil, a “Modefica”, plataforma que problematiza os problemas consequentes dos setores da moda e o “PIM” (Periferia Inventando Moda). Todos os projetos estavam pela primeira vez no SPFW, como prova de que as barreiras estão sendo quebradas. Alex Santos, estilista que faz parte do “PIM”, levou nove modelos da comunidade de Paraisópolis, localizada na zona sul da cidade de São Paulo, vestindo roupas de estilistas que fazem parte do seu projeto. Em entrevista para a Revista Trip, ele ressaltou: “Moda não é só para as classes A e B. A gente também sabe fazer e existem pessoas bonitas na periferia”.
Abril 2017