JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP
ANO 17
N0 110 Julho 2017
E D I T O R I A L
PUC Pontifícia Universidade Católica DE SÃO PAULO PUC-SP
As crônicas de Michelzinho Do grego demo= povo e cracia=governo. Democracia, governo em que o povo exerce a soberania. Assim como somos uma República Federativa na teoria, democracia também entra para a lista de palavras que tem o seu significado corrompido na política brasileira. Bem que nós avisamos, que era golpe, que Temer veio para arrancar direitos dos trabalhadores e fazer da presidência o seu escritório de interesses pessoais, mas a direita não ouviu. Dos entrevistados pela pesquisa Barômetro Político, apenas 4% aprovam a gestão de Michel Temer. Número próximo à quantidade de pessoas que saem no lucro com as reformas do golpista. As passeatas ganham volume e uma nova greve se aproxima. E, mesmo assim, Michelzinho resiste. Após a decisão do Tribunal Superior Eleitoral para a não cassação da chapa DilmaTemer, ficou claro que não existem dificuldades para o presidente se articular politicamente e ganhar mais algum tempo. Mas quanto tempo? Uma cratera vai se abrindo bem no meio do Brasil. Economia por água abaixo, desemprego a taxas altíssimas, e a insatisfação popular começa a virar fúria popular. E o narcisismo do grande presidente continua a ser mais importante, afinal, onde já se viu golpista renunciar? Golpistas se mantêm no poder, os militares em 1964, Getúlio Vargas em 1937, a história nos conta que os assassinos da democracia brasileira são orgulhosos e cheios de si. O discurso segue se repetindo, principalmente quando comparamos o Golpe sofrido pelo presidente João Goulart e o Golpe sofrido por Dilma Rousseff, afinal, o principal mote da oposição conservadora era de que eles estavam combatendo fervorosamente a corrupção, e os governos de Dilma e Jango estariam envolvidos em um mar de lama. Até quando esse teatro desastroso vai continuar? O vampiro do Planalto Central faz de tudo para manter-se no papel principal, e mesmo que a plateia invada o palco, ele diz, com orgulho: “Não renunciarei!”.
Reitora Maria Amalia Pie Abib Andery Vice-Reitor Fernando Antonio de Almeida Pró-Reitores Márcio Alves da Fonseca (Pós-Graduação) Alexandra Fogli Serpa Geraldini (Graduação) Marcia Flaire Pedroza (Plan.,Desen. e Gestão) Claudia Cahali (Educação Continuada) Antônio Carlos Malheiros (Cul. e Rel. Com.) Chefe de Gabinete Mariangela Belfiore Wanderley Faculdade de FILOSOFIA, Comunicação, LETRAS e artes faficla Diretor Ângela Brambilla P. Lessa Diretora Adjunta Regiane Miranda Nakagawa Chefe do Departamento de Jornalismo Valdir Mengardo Coordenador do Jornalismo Cristiano Burmester Vice-Coordenador do Jornalismo José Salvador Faro
EXPEDIENTE C o n t r a ponto Comitê Laboratorial Luiz Carlos Ramos, Rachel Balsalobre, Salomon Cytrynowicz, Wladyr Nader Editor José Arbex Jr. Ombudsman Rodrigo Borges Delfim Secretário de redação Júlia Castello
SUMÁRIO
tropicália
Caminhando contra o vento... e a ditadura
pág. 3
metrópole
Após ações da PM, Cracolândia se espalha pela Cidade Linda
pág. 6
futebol
Caminhada antifascista ainda é longa
pág. 8
comportamento
Tabus que cercam a maternidade
pág. 10
ensaio fotográfico
“Ei, polícia – maconha é uma delícia”
pág. 12
cultura
Protestos contra Temer e Doria marcam Virada Cultural esvaziada
pág. 14
internacional
A crise mora ao lado
pág. 16
política
Lula e Moro, cara a cara em Curitiba
pág. 18
literatura
O escrivinhador dos invisíveis
pág. 20
Resenha
O narciso balzaquiano
pág. 22
Crônica
Nós somos a própria natureza
pág. 22
Antena
Rádio da UFSCar tem seus únicos jornalistas demitidos
pág. 23
Política
“Não renunciarei”
pág. 24
Secretária de produção Débora Bandeira, Luiza Amaral, Thalita Archangelo e Letícia Sepulveda Editor(a) de fotografia Lucas Toth Capa: Resistência nos estádios Foto pública: Nelson Almeida/AFP
PUC Simetria Design Gráfico – projeto/editoração Wladimir Senise – Fone: 11 2309.6321 CONTRAPONTO é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUC-SP. Rua Monte Alegre 984 – Perdizes CEP 05.014-901 – São Paulo – SP Fone: 11 3670.8205
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CO N T R A P O N TO
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Número 110 – Julho de 2017 Lumen Graph Fone: 11 94708.9281
Julho 2017
CONTRAPONTO
Tropicália
Caminhando contra o vento...e a ditadura Por: Amanda Leite, Beatriz Gimenez, Isabel Rabelo, Luiza Amaral e Natália Novais
Nascido há 50 anos, num festival de música da Record, movimento ainda exerce grande influência no cenário artístico brasileiro
Música
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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A Tropicália transformou
também as morais e
os comportamentos relacionados ao corpo, ao sexo e ao vestuário.”
Caetano e Gil, inovadores da MPB
© Divulgação
Obra Tropicália, do neoconcretista Hélio Oiticica
© Divulgação/pinterest.com
Capa do álbum tropicalista
© Divulgação/Gazeta do Povo
urante um dos pontos mais altos de repressão e censura no país, surgiu o movimento cultural liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1967, eles gravaram seus primeiros LPs, que já tomavam rumos não muito comuns na MPB. Com um desejo de Gil, de misturar a guitarra elétrica norte-americana aos ritmos brasileiros, a Tropicália nasceu. O nome foi inspirado em uma obra do artista plástico, Hélio Oiticica. O movimento veio como uma ruptura dos comportamentos e como inovação musical da época. Inspirado pelo concretismo e o rock tocado nos Estados Unidos, foi adaptado e misturado aos elementos brasileiros, como o samba e o baião. Sua atuação quebrou diversos padrões que permaneciam na sociedade, ao experimentar ritmos novos conjuntamente a ritmos populares. A Tropicália transformou também as morais e os comportamentos relacionados ao corpo, ao sexo e ao vestuário. A moda hippie estadunidense foi assimilada e os artistas abusavam de roupas coloridas e floridas e cabelos compridos. Ela não foi bem aceita por todos, no entanto. As frentes mais nacionalistas de esquerda da MPB se confrontaram com as vanguardas da Tropicália. Ambos tinham uma mesma ideologia, contrária ao autoritarismo e a desigualdade social, mas para os tropicalistas, era igualmente importante entender as massas revolucionárias e a cultura de massas, enquanto que, para os nacionalistas, a música estrangeira era uma forma de alienação. Em 1968, o disco Tropicália ou Panis et Circencis foi lançado por Caetano, Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, com a assistência do maestro Rogério Duprat. Foi um impacto. Não havia nada na música brasileira, como aquelas composições. Os ritmos eram marcados com sons de sinos, canhões e batidas inéditas. Hoje, o álbum ainda é considerado um dos melhores da história do país e ficou em segundo lugar na lista “100 maiores discos da música brasileira” da revista Rolling Stone Brasil. Mas no mesmo ano, Gilberto Gil e Caetano Veloso sofreram uma repulsão do público no Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo. Na apresentação de Questão de Ordem de Gil acompanhado pelos Beat Boys, a plateia vaiou e eles foram desqualificados. Na vez de Caetano, ele mal começou a cantar É proibido proibir com Os Mutantes e uma furiosa vaia iniciou novamente. O artista, descontente, fez um longo e intenso discurso, com críticas aos jovens: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?” e “Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada”. Classificados para a final, o cantor se recusou a apresentar na final do festival. A vitória ficou para, também tropicalistas, Os Mutantes com Caminhante Noturno.
© Divulgação/premiodamusica.com
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Os Mutantes
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Em 1968, o disco Tropicália ou Panis et Circencis foi lançado por Caetano, Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, com a assistência do maestro Rogério Duprat. Foi um impacto.”
Julho 2017
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Cinema e teatro
A curta e fulminante Era Tropicalista não revolucionou apenas o mundo musical: nas telas do cinema e nos palcos de todo o país, a vontade e o sonho de quebrar os valores e a estética da época foram o gatilho para se construir o que se tornaria um grande marco na história da cinematografia e do teatro brasileiro. Foi durante um regime militar sanguinário que o grito e a crítica radical à política tomam forma por meio da arte – e foi deste sonho de mudança que nasceram o Cinema Novo, o Cinema Marginal, o Teatro Oficina e o Teatro Alternativo. Iniciado na metade dos anos 50, o Cinema Novo trouxe uma perspectiva crítica em relação às produções cinematográficas, querendo con-
© Divulgação: ABI - Associação Brasileira de Imprensa
Além disso, a antiga TV Tupi, atual SBT, durante o ano de 1968, abriu espaço para a Tropicália com o programa “Divino Maravilhoso”. “A criatividade de Caetano, Gil, Gal, Tom Zé e os Mutantes era destilada junto com uma dose irreverente de agressividade, em que, mais uma vez, os valores tradicionais eram mesclados com aquilo que era pejorativamente chamado de cafona”, diz Mengardo, o que reflete uma necessidade de fugir da mesmice que até hoje influencia a relação do artista com a plateia. Incêndios criminosos também foram realizados contra estúdios de emissoras de televisão da extrema direita como uma forma de negação dos costumes que lá eram pregados, assim como o conceito da família tradicional. Dessa forma, muitos arquivos de festivais foram perdidos. Com tudo isso, a música brasileira deixa seu caráter “folclórico” e passa a refletir a preocupação da sociedade, que deseja outros rumos para o país. A música, na visão de Mengardo, não fez com que a ditadura caísse, ela já no início dos anos 80, estava sem sustentação e não contava mais com o apoio popular. Portanto a Tropicália foi, na verdade, um “instrumento acessório à mudança”. Isso ia contra a noção de cultura como responsável pela mudança no modo de viver da sociedade.
Capa do documentário
Cartaz do filme Terra em Transe
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Foi durante um regime militar sanguinário que
o grito e a crítica radical
© Divulgação
Meses depois, Tom Zé conquista o IV Festival de MPB da TV Record com São, São Paulo, meu amor, Divino, maravilhoso de Gal Costa e Caetano ficam em terceiro e 2001 de Tom Zé e Rita Lee, com Os Mutantes seguiram, em quarto lugar. No entanto, a situação política do país se agravava. Com uma crescente insatisfação popular, Costa e Silva responde com o decreto do AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968. Também conhecido como “o golpe dentro do golpe”, o ato gerou uma tensão máxima no país. Era o fim das liberdades de expressão e civis e a repressão nunca foi tão grande. No dia 27 do mesmo mês, Gil e Caetano foram presos em São Paulo e levados para um quartel no Rio. Eles foram soltos em fevereiro e seguiram para Salvador, onde ficaram submetidos a um regime de confinamento até julho. Os dois artistas, após diversas tentativas de negociações com os militares, conseguiram uma autorização para realizar um show de despedida. Em contrapartida, eles deveriam sair do país após o show. Em julho, Caetano e Gil se despediram de duas mil pessoas no Teatro Castro Alves, em Salvador, que ficou registrado no disco Barra 69. Na apresentação, Gil cantou Aquele Abraço, escrita após ele deixar a prisão no Rio e hoje considerada um clássico. Em seguida, eles partiram para a Europa, passando por Lisboa, Paris e Londres, onde ficaram por quase três anos. Era o fim do movimento tropicalista, mas esse deixou uma duradoura influência no cenário musical brasileiro. O professor de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisador da história da música popular brasileira, Valdir Mengardo, viveu parte desse movimento, participando da militância estudantil principalmente em 1973. Estando em meio ao movimento de retomada do Brasil contra a ditadura, ele diz ter vivido um momento tenso e gratificante, em que “perdeu” um ano do curso de Jornalismo na Universidade de São Paulo, mas ganhou muito politicamente. Mengardo ficou dois dias preso por estar em um festival de músicas de protesto e enfrentou um processo durante um ano. Para ele, a música na Tropicália consiste apenas na “ponta do iceberg”, além de ter iniciado um discurso para o povo com uma linguagem mais direta, deixando para trás o mero discurso político e combinando-o a um estilo de vida, uma crítica aos costumes. Porém, isso não era facilmente aceito. Ele define o movimento como uma mistura, um “liquidificador”, em que a assimilação de diferentes musicalidades compõe sua principal característica e também sua principal fonte de críticas. Por mais que isso tenha resultado nos estilos musicais atuais brasileiros, na época, a Tropicália era vista pela extrema esquerda como alienação, apelação e, até mesmo, uma agressão aos brasileiros, quando interpretada como ideias forçadas no cidadão que não costuma ter aqueles elementos em seu cotidiano. Para exemplificar, Mengardo citou a “passeata contra a guitarra elétrica” que ocorreu em 1967 contra grupos como os Mutantes e os Novos Baianos, que começaram a incorporar o instrumento em sua música. Com Elis Regina como principal representante, os musicistas mais tradicionais na MPB alegavam que a guitarra elétrica, como influência principalmente dos Beatles e dos Rolling Stones, era um instrumento que vinha de fora do país e negava a real música brasileira, que deveria ser o foco principal. Não tendo êxito, o rock brasileiro é uma das principais influências da Tropicália atualmente.
à política tomam forma por meio da arte.”
Uma noite em 67
O documentário Uma Noite em 67, de 2010, conta sobre o Terceiro Festival de Música Popular Brasileira, transmitido pela TV Record anualmente. Paulinho Machado, filho do fundador da rádio Record, conta que a ideia era organizar e selecionar cantores dentro de estereótipos, para despertar maior interesse no público. A emissora era conhecida por ter o lado musical muito forte, tinha contrato com 90% da música brasileira. O programa foi uma sacada da TV Record para juntar MPB, música brasileira e Jovem Vanguarda. O programa teve grande importância na formação do movimento Tropicália, que estava nascendo na época. Chico Buarque relata ter se sentido sozinho na época, pois era considerado o da música conservadora, velha e deslocada do movimento jovem. Ele foi o único a se apresentar de smoking no programa, enquanto todo restante estava vestido de forma mais despojada e original. Era preciso ter atitude no palco, usar roupas que chamassem a atenção por suas particularidades e por enfrentar os costumes da época. “No festival você tinha que conquistar o público logo na primeira audição. E as músicas eram todas inéditas”, conta Chico. A verdadeira sacada era ser atual. Muitos cantores que subiram ao palco do festival foram vaiados. Sérgio Ricardo mal conseguiu cantar sua música Beto bom de bola. As vaias não paravam, as pessoas estavam descontentes por causa do novo arranjo que havia sido feito para sua canção. Por isso, Sérgio fez uma brincadeira irônica com o nome da música, anunciando para a plateia que o mudaria para “Beto bom de vaia”. O cantor nem terminou de cantar, logo nos primeiros versos se irritou, quebrou o violão e jogou no público. Ele diz no documentário que a atitude da plateia foi normal dentro do contexto histórico da época, pois diante da repressão da ditadura, é natural que as pessoas se manifestem de forma intensa. Muitos cantores tropicalistas se destacaram no festival, mas quem ficou em primeiro lugar na competição foi Edu Lobo, com a música Ponteio.
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Julho 2017
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No final dos anos 60, surgiu então o contraponto ao Cinema Novo, um movimento que queria mudar seu experimentalismo e sua plástica – mas que, em alguns aspectos, não foram tão divergentes. O Cinema Marginal aparece na realidade brasileira com muitos pontos em comum com o Cinema Novo, como os baixos orçamentos na fase inicial dos movimentos, a noção de autor introduzida por Glauber e personagens desesperançosos que se desestruturam. O crítico Fernão Pessoa Ramos o caracterizou, na época, como “gritos de horror gratuito, agonias prolongadas, representações disformes, imagens abjetas, tortura, sangue e dilacerações que percorrem a tela de modo reiterado. A representação do universo do desespero é detalhada e descritiva, carregada ao extremo”. Embora fossem politicamente progressistas, as preocupações dos diretores do Cinema Marginal ultrapassaram o ativismo político direto: o amor pelo cinematográfico e a subversão de sua linguagem os guiavam. Como influência, tinham o neoexpressionismo americano e o deboche das chanchadas. E, mesmo que existissem algumas características em comum entre os personagens, no Cinema Marginal estes se
O grupo privilegiou a inovação e o experimentalismo, buscando novas
linguagens para a arte teatral.”
A atriz Dina Sfat em cena de O Rei da Vela no Teatro Oficina, em São Paulo
Uma nova estética nos palcos
Localizado em São Paulo no bairro do Bixiga, a companhia teatral foi fundada em 1958 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo por Zé Celso, Carlos Queiroz Telles e Amir Haddad. O Teatro Oficina reuniu grandes artistas que passaram em seus palcos, ao longo de suas décadas de existência, como Etty Fraser, Maria Alice Vergueiro (Tapa na pantera), Leona Cavalli. Foi também local de grande parte da experiência cênica internacional, que reuniu de Brecht, Sartre ao Living Theatre. Uns dos primeiros grupos a se lançarem no Tropicalismo, eles buscavam desenvolver uma versão repaginada tanto no sentido cultural quanto estético da versão na década de sessenta do movimento antropofágico de Oswald de Andrade que influenciou músicos, poetas e outros artistas. Em 1967, o Oficina monta O Rei da Vela, atuada por outro importante elemento desta companhia, Renato Borghi, junto com Ítala Nandi e Fernando Peixoto. Segundo Renato Borghi, “a dramaturgia bombástica me fazia sentir atuando dentro da raiz e da alma brasileira; nesta peça, o Oswald de Andrade falava do Brasil de uma forma Movimento Antropofágico, devorando o que gente tinha de bom e de péssimo. O Oswald pegou o Brasil por todos os lados, devorou-o e depois o cuspiu no palco. E eu assinei em baixo, com sangue, suor e lágrimas...”. O teatro Oficina sofreu um grave incêndio em 31 de maio de 1966. Depois desse episódio o espaço cênico mudou. Antes era chamado de Sanduíche, um palco, com plateia de um lado e do outro. Depois se torna um palco italiano, com uma roda giratória grande. O Rei da Vela foi o primeiro espetáculo que estreou no novo espaço. O grupo, ainda dirigido por Zé Celso, tem uma trajetória que ultrapassa os limites estéticos, passando por várias formas de interpretação. Uma das últimas montagens do teatro foi a adaptação de Os Sertões, de Euclides da Cunha. A saga sertaneja iniciada em 2001, em toda a sua extensão tem 25 horas de encenação, em um dos projetos mais ousados das artes cênicas mundiais. A montagem da obra de Euclides da Cunha faz referência à resistência do grupo contra o projeto de construção de um shopping center, nos arredores do teatro Oficina, pelo Grupo Silvio Santos. Além de, em todas as peças, fazer uma ponte irônica entre a guerra de Canudos e os acontecimentos da época, como o Papa Bento XVI, a invasão do Iraque, o mensalão e os ataques do PCC. O Oficina sempre buscou trilhar um caminho de fomento às artes de uma forma geral, em sua trajetória possui em seu vasto currículo trabalhos de teatro, cinema, televisão, música, cursos, seminários, debates, festas, comerciais, jornais, livros, comícios e passeatas. É considerado, pelo Estado, pela classe artística e pelo público, um patrimônio cultural Brasileiro, por sua capacidade de autotransformação e resistência às constantes mudanças sociocultural e política deste país.
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trapor com novas ideias os valores estéticos de uma cultura dominada por interesses industriais. Inaugurando a “aventura da criação”, o movimento foi influenciado pelo neorrealismo italiano e pela Nouvelle Vague, e embora grandes nomes tenham aderido a sua ideologia, como Cacá Diegues e Ruy Guerra, o grande idealizador e responsável pelo Cinema Novo foi Glauber Rocha, seguidor da própria filosofia “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Baiano, Rocha produziu seu primeiro longa-metragem em 1961, chamado Barravento, mas foi só em 1964 que se tornou internacionalmente reconhecido com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, que apresenta, em uma estética inovadora, as visões e alucinações provocadas pela má condição de vida do povo no sertão brasileiro. Após a fama repentina, o cineasta ainda produziu grandes filmes, como Terra em Transe (1967), considerado uma das maiores obras da época. A história se passa na fictícia Eldorado, e é considerado uma grande e genial parábola da história do Brasil entre os anos 1960 e 1966, na medida que metaforiza em seus personagens diferentes tendências políticas presentes na época. Três anos depois do general Costa e Silva decretar o AI-5, Glauber Rocha foi exilado para Portugal e nunca chegou a retornar totalmente para o Brasil.
aproximavam mais da representação individualista, enquanto os do Cinema Novo tendiam a representar toda uma classe. Um de seus principais nomes, Rogério Sganzerla, que produziu O Bandido da Luz Vermelha (1968), fez da ironia sua marca registrada. Com uma estética revolucionária, uma subversão da narrativa clássica e uma mistura de linguagens, Sganzerla criou, com suas lentes anárquicas, obras recheadas de sarcasmo e radicalidade – um cinema de ruptura, inclusive com os próprios modelos. Enquanto o cinema renascia, em São Paulo, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, conhecido simplesmente como Zé Celso, surgia o Teatro Oficina, que pretendia explorar os limites criativos do teatro brasileiro. O grupo privilegiou a inovação e o experimentalismo, buscando novas linguagens para a arte teatral, e criaram montagens polêmicas como Na Selva das Cidades, Os Pequenos Burgueses e Roda Viva, com texto de Chico Buarque de Hollanda – em 1968, o teatro onde se realizava o espetáculo foi invadido e os atores foram espancados por radicais de direita ligados ao CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. O Oficina marcou a sua relação com o tropicalismo em 1967, quando encenou a peça “O Rei da Vela”, escrito pelo modernista Oswald de Andrade. A montagem se tornou um marco histórico no teatro brasileiro e produziu no público fascínio e revolta, inaugurando o “teatro de agressão” – um modo, de acordo com Zé Celso, de romper o estado anestésico que se encontrava a classe média “na base da porrada”. Decretado o AI-5, Zé Celso foi preso e torturado pelo regime militar, foi exilado em 1974 e permaneceu até 1978. Só em 1979, quando voltou ao Brasil, que ele reabriu o Oficina, com o espetáculo “25”. Depois de uma década marcada pela repressão e pela censura, os anos 70 se iniciam com um novo cenário e o surgimento de uma nova geração de diretores, atores e dramaturgos, que pretendiam ocupar o espaço que as grandes produções dos anos anteriores haviam conquistado, com novas referências e ideias. A geração do Teatro Alternativo ousou e encenou peças influenciadas por grupos, como o americano Living Theather, e por questões relacionadas ao teatro, à contracultura, à valorização do corpo e ao questionamento da palavra como centro da atividade teatral. Grandes nomes como Antônio Bivar, produtor de Alzira Power (1970) e Longe daqui, aqui mesmo (1971), e José Vicente, autor do espetáculo Hoje é dia de rock (1971), representaram a nova dramaturgia brasileira e mantiveram acesa a relação entre teatro e contracultura. Surgiram também as companhias que funcionavam quase de forma comunitária, em processos de criação a partir de poucos recursos – a representação de uma resistência teatral, que se mantinha em pé e superava as barreiras da censura.
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‘Teatro de agressão’ – um modo, de acordo com Zé Celso, de romper
o estado anestésico que se encontrava a classe média
‘na base da porrada’.”
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CONTRAPONTO
Metrópole
Após ações da PM, Cracolândia se espalha pela Cidade Linda e o assunto é Dória, eu vou mandando sua história/Você passa mal na cidade de São Paulo, é mais um louco em comum na massa/Então se liga, se a política chegou pra criticar/Então eu quero meu direito de resposta”. A rima em questão foi ouvida pelos estudantes que se concentraram em frente ao Centro Acadêmico Benevides Paixão, na PUC-SP, para assistir a mais uma edição da Labuta, evento de rap idealizado inteiramente por jovens ligados ao estilo musical. Dentre os temas de improvisação sugeridos, um dos mais polêmicos foi sobre o prefeito João Dória, que na mesma semana havia ordenado intervenções policiais na região da Cracolândia, no centro de São Paulo. Na madrugada do dia 21 de maio teve início a operação de destruição das moradias improvisadas, chefiada por Dória em conjunto com o governador Geraldo Alckmin, ambos do PSDB. A ação, que contou com a truculência da polícia, tinha a intenção de conter o tráfico de drogas na região central, porém apenas deixou claro o descuido do Estado com os direitos humanos. O início da guerra às drogas deu lugar ao conflito com os moradores em situação vulnerável, ao passo que barracas e mantimentos foram confiscados, pessoas foram feridas e comércios foram fechados sem nenhum aviso prévio. E então, os dependentes químicos se dispersaram para outros 32 pontos da cidade, encerrando os resultados positivos do programa “De Braços Abertos” do ex-prefeito Fernando Haddad, o qual capitava, empregava e remunerava os usuários tratando o vício como questão de saúde pública. O programa trabalhava com a ressocialização dos dependentes e o incentivo à autonomia para que eles diminuíssem o consumo, podendo, aos poucos, retornar ao convívio social e, o mais importante, resgatar sua cidadania plena. Embasado na política de redução de danos, o “De Braços Abertos” ganhou o 4º Prêmio David Capistrano e foi reconhecido internacionalmente. Após finalizar o programa atual, a prefeitura e o governo do Estado criaram o “Redenção” - o próprio nome do programa já dividiu opiniões acerca de uma possível conotação negativa -, que conta com uma participação maior da polícia militar e pretende garantir vagas aos dependentes em empresas privadas. Porém, o Ministério Público Estadual apontou “falta de referencial teórico e inconsistências” no projeto, assumindo grande preocupação com seu futuro. No momento, os chamados fluxos, pontos onde ocorre o tráfico de drogas, se concentraram na Praça Princesa Isabel, região do Campos Elísios, interrompendo a circulação de pedestres e da imprensa, salvo com o aval da prefeitura. A gestão municipal afirmou que os usuários estavam “impossibilitados de se conduzir por vontade própria” a qualquer tipo de tratamento, pois “novos fluxos impedem a aproximação assistencial, mesmo porque o domínio continua com os traficantes. Se antes a venda de drogas possuía um ponto fixo, agora as ‘bocas de fumo’
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© Reprodução: TV Globo
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Movido pelo interesse do mercado imobiliário na região central, Dória se une a Alckmin por ‘Nova Luz’ e avisa: “enquanto eu for prefeito da cidade de São Paulo, a cracolândia não vai existir”
© Reprodução
Por: Gabriel Paes, Beatriz Lourenço, Juliani Souza e Dora Scobar
Quadrilátero que funcionou como cerco da PM na região da Cracolândia
encontram-se flutuantes”, mas a nota não esclarece as medidas utilizadas na ação. Ao contrário do que foi dito, o que se viu na Cracolândia foi um ataque desproporcional, da tropa de choque armada contra os dependentes. O jornal Estado de S. Paulo teve acesso ao documento do ‘Redenção’ enviado ao Ministério Público, que mencionava “a redução do risco e da vulnerabilidade em saúde da população, salvaguardando a autonomia, o direito à saúde. (...) O cadastramento dos usuários será feito por intermédio de abordagem contínua, de caráter não impositivo”. Ainda, a Prefeitura afirmou que realizaria desapropriações e lacrações, porém sem mencionar demolições. No dia 23 de maio, no entanto, a demolição de um imóvel com três pessoas dentro evidenciou a falta de comunicação com a população, assim como mostrou a irresponsabilidade diante da situação após não haver assistência médica aos feridos da ocasião. Após o caso ter se tornado público, a Prefeitura finalmente admitiu que errou na execução do plano. Dória afirmou que a dispersão de usuários de drogas e traficantes nas ruas da Cracolândia é contínua, atacou gestões anteriores e disse que o consumo de drogas na região não acabará em “um passe de mágica”. “No passado, havia um
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A solução é oferecer diversos tipos de
alternativas, além de levar humanização e condições para que as pessoas possam se curar.”
(Valéria Palazzo, psicóloga formada pela UNIP) Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Policiais militares em ação na Praça Princesa Isabel
desinteresse da prefeitura em avançar com o programa junto a essa região. (...) Enquanto eu for prefeito da cidade de São Paulo, a Cracolândia não vai existir. Ali, a partir de agora, é o espaço Nova Luz”. Questionado se suas ações não se assemelham a outras já feitas anteriormente na cidade, o prefeito foi sucinto: “Dória é Dória, Kassab é Kassab. Há uma diferença grande”. Geraldo Alckimin, em evento que também contou com a presença de Dória na região, poucos dias depois, também se pronunciou sobre o ocorrido. “Temos que ter realidade de que não vai resolver em 24 horas. É uma questão crônica que envolve questão policial, social e de saúde pública. Demos o primeiro passo. Precisa manter”, disse o governador ao explicar que a operação policial ainda irá seguir por “algumas semanas”. A magnitude desse processo já estava sendo pensada por João Doria no início de seu mandato, que propôs a existência de programas urbanísticos no local, fazendo crescer o interesse imobiliário, além de abrir espaço e concessão às iniciativas privadas, resultando na exclusão de um grande número de pessoas na ocupação de São Paulo. A região da Luz, há algum tempo, atravessa um processo de especulação imobiliária em função da rigorosa legislação municipal para construções na área, dos poucos terrenos disponíveis para investimento e a consequente supervalorização dos imóveis. Se a região era bem vista pelo mercado por estar ocupada pela burguesia paulistana, até os anos 70, a presença dos usuários de crack certamente influenciou a desvalorização do local. Para fins econômicos, a Cracolândia virou solução para a enorme dificuldade de negociação dos especuladores, os mais interessados nos baixos preços. Essa situação serviu como justificativa para ações mais pesadas, uma vez que se a poJulho 2017
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Para fins econômicos, a Cracolândia virou
solução para a enorme
dificuldade de negociação dos especuladores, os mais interessados nos baixos
© Leonardo Benassatto/Framephoto/Estadão Conteúdo
preços”
© Rovena Rosa/Agência Brasil
© Reprodução: TV Globo
A truculência da PM era nítida contra os dependentes, que passaram a vagar entre a rua Helvétia e praça Princesa Isabel
O prefeito João Dória e o governador do estado, Geraldo Alckmin, em evento na Cracolândia dias após a investida policial
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Enquanto eu for prefeito da cidade de São Paulo, a Cracolândia não vai existir. Ali, a partir de agora, é o espaço Nova Luz.”
Paulo para exercer seu mandato de vereadora, e o secretário-adjunto Thiago Amparo, que não hesitou em se retirar da pasta. O estopim ocorreu no dia 24 de maio, quando o auditório da secretaria foi invadido por manifestantes, com o aval da então chefe da pasta. Seu afastamento se deu horas depois do protesto. Ainda no dia 24, uma série de trâmites envolvendo Doria e a Justiça teve início: as demolições de prédios habitados e as remoções compulsórias foram proibidas. Dois dias depois, a Justiça aceitou o pedido da Prefeitura e liberou as internações forçadas por um período de 30 dias. Então, o Ministério Público prometeu recorrer e, no dia 2 de junho, entrou com ação civil pública para impedir que se inicie a implementação de projeto urbanístico para a região da Cracolândia. De acordo com a Promotoria, o objetivo é que a administração municipal promova a participação popular para discutir o projeto urbanístico, por meio de um Conselho Gestor. As notícias ganhavam cada vez menos espaço nos jornais, por conta dos avanços da operação Lava-Jato e do julgamento da chapa Dilma-Temer, que tramitava no TSE e teve desfecho favorável ao governo federal. Então no dia 9 de junho, Dória anunciou a instalação de contêineres, emprestados por uma rede de laboratórios farmacêuticos, que servirão como postos de atendimento aos usuários. Ainda, o prefeito garantiu que as abordagens dos agentes municipais para conduzir os dependentes ao início do tratamento serão feitas “de forma individual, com respeito” e prometeu oferecer transporte em peruas para o deslocamento dos que aceitarem. Mas se engana quem pensa que o jogo entre gato e rato acabou. No domingo (11), logo pela manhã uma nova etapa da ação policial aconteceu e culminou com a prisão de mais dois traficantes que estavam na Praça Princesa Isabel, novo local de concentração dos usuários, que após nova investida da PM retornaram para a rua Helvétia, local do primeiro confronto em maio. Segundo Doria, “o fluxo vai diminuir”. “Não podemos proibir de circular. O que não vamos permitir é instalação de equipamentos financiados pelo PCC. Acabou o shopping center ao ar livre. A Polícia Civil, Denarc, PM e GCM vão manter a ação de combate que já proporcionou redução no volume de vendas, que era de R$ 15 milhões por mês. Isso vai continuar”, completou o prefeito, reiterando que “a intenção não é estabelecer novos endereços, é fazer ações contínuas para que as pessoas possam ser acolhidas, tratadas para garantir a sua sobrevivência. E a reurbanização de toda a área central, com habitação popular, CEU, creche e instalação hospitalar. Tudo em regime de parceria pública com investimentos privados.” No dia seguinte (12), tratores do programa Redenção iniciaram a demolição dos muros de um terreno público que servirá como unidade
(João Dória) pulação não se revolta com a repressão policial e a forma como o caso está sendo conduzido – muito em função de o problema estar sendo mascarado pelos que controlam o mercado -, então existe margem para prisões arbitrárias e internações forçadas, que não deverão permanecer por muito tempo nos noticiários. Dentre as principais sequelas negativas para o governo municipal, destacam-se as saídas da Secretária de Direitos Humanos, Patricia Bezerra, que retorna a Câmara Municipal de São Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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No momento, os chamados fluxos, pontos onde ocorre o tráfico de drogas, se concentraram na Praça Princesa Isabel, região do Campos Elísios”
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de atendimento emergencial a dependentes químicos da Cracolândia. O local fica na Rua General Rondon, a poucos metros da Praça Princesa Isabel e reforça as ações de recuperação dos dependentes. Opiniões – Em nota, o Conselho Nacional de Psicologia de São Paulo (CRP SP) se posicionou contra essa política higienista, caracterizando a ação da polícia como “opressora e violenta” e ressaltando “a incapacidade do Poder Público em enfrentar a questão”. Por outro lado, para conter a violência e auxiliar a população em situação de rua, o coletivo “A Craco Resiste” está mais ativo do que nunca, promovendo atividades culturais a fim de integrá-los à cidade e levar um pouco de alegria àqueles que estão sendo alvo de tanto sofrimento e repressão. Dentre elas, estão arrecadações de agasalhos, aulas públicas, cine debates e o forró no fluxo. Os interessados podem entrar em contato na página do Facebook “Craco Resiste” e conferir a programação completa dos eventos. A psicóloga Valéria Palazzo, formada pela Universidade Paulista (UNIP), acredita que a abordagem da polícia muitas vezes não mantém o foco nos traficantes, como deveria, prejudicando os usuários pelo fato deles serem física e psicologicamente dependentes das drogas. “A solução é oferecer diversos tipos de alternativas, além de levar humanização e condições para que as pessoas possam se curar”, afirmou Valéria. Para ela, os casos devem ser tratados de formas diferentes, já que cada indivíduo se encontra num estágio diferente da dependência. Além disso, conta que o processo essencial deveria ser dividido em diversas fases, as quais poderiam contar com profissionais da área da psicologia, saúde e, principalmente, de pessoas que já se recuperaram dessa mesma situação, pois assim seria mais fácil ganhar a confiança dessas pessoas e convencê-las a aceitar ajuda. A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Carina Vitral, se manifestou contrária às decisões tomadas pelo prefeito e pelo governador e reiterou a proposta de união das frentes de esquerda como forma de resistir a essas e outras ações, bandeira levantada por ela durante toda a sua trajetória política. “A gente tem composto todos os movimentos que são chamados para organizar a luta contra o Dória, é uma questão de cuidar da humanidade. Ele já mostrou que não se importa com as pessoas que vivem em situação de rua, e é obrigação da esquerda se unificar nesse momento difícil e apresentar um plano viável não somente para essa ação específica, mas para todo o país, tanto no âmbito político quanto econômico, em geral”, afirmou a também estudante de economia da PUC-SP, em evento da Frente Brasil Popular. 23 dias após o início da ação policial, Dória parece demonstrar mais preocupação com as implicações sociais de seu projeto higienista. Mas resta saber se ele o faz de vontade própria ou apenas para não ter a imagem – mais – suja. Talvez, o tão sonhado dia em que o mercado imobiliário iria encontrar seu messias, alguém sem vínculos com a política tradicional e membro do empresariado tenha chegado. Doria se encaixa perfeitamente no perfil e parece estar confirmando as alegações de que não investirá, como deve fazer o prefeito da maior capital do país em políticas sociais.
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CONTRAPONTO
Futebol
Caminhada antifascista ainda é longa Por: Antonio Gaspar, Dora Scobar, Gabriel Paes, Luca de Oliveira Machado, Marjorie Rodrigues e Tiago Félix
Ascensão de movimentos nas arquibancadas têm crescido cada vez mais; torcedores defendem respeito a grupos minoritários dentro e fora dos gramados
origem do futebol é incerta até hoje, mas o mais confiável relato é que Charles Miller trouxe para o Brasil duas bolas na bagagem de sua viagem para a Inglaterra, em 1895. Inicialmente, o futebol era praticado apenas por quem fosse alfabetizado, branco e não tivesse uma ocupação ligada à força física – o primeiro jogo introduzido por Miller aconteceu apenas sete anos depois da abolição da escravatura no Brasil. Não importava o nome do grande pioneiro do esporte em solo brasileiro, já que seria um membro da aristocracia. Somente uma década após a partida pioneira foi que o primeiro negro praticou futebol no país. Era Francisco Carregal, que jogou pelo Bangu contra o Fluminense, vencido pelo alvirrubro por 5 a 3. Em 1907, proibiram a inscrição de negros no campeonato e o Bangu se recusou a jogar. O Vasco reforçou a luta dos cariocas, ao conquistar o campeonato estadual de 1923 com um plantel de maioria negra, muitos vindos do Bangu. Em meio a ataques segregacionistas da elite e contra-ataques dos atletas por direitos, nos anos 30 teve início a regularização do futebol no Brasil. Apesar de ainda primitivo, se comparado a hoje, o esporte já apresentava um pouco mais de estrutura e lançou, na Copa de 1938, Leônidas para o mundo. O inventor da “bicicleta” foi campeão mundial pelo Brasil apenas quarenta anos depois do surgimento do futebol brasileiro e o país começava a mostrar sua veia futebolística. Da mudança dos nomes de clubes como Palmeiras, Cruzeiro e Coritiba, que antes se chamavam Palestra Italia, até a CPI do futebol, passando pela Democracia Corintiana, muito se discutiu sobre o esporte no Brasil. Porém agora não é mais questão de fazer parecer abrangente, mas sim de fato abraçar a todos os grupos sociais que buscam um pouco mais de espaço nas mesas de debate. O que antes era tido como religião, agora passa a ser visto, em várias frentes, com a razão. Brasil: preconceito dentro e fora dos gramados – Com a recente chegada de Richarlyson ao Guarani e as represálias que sofreu, volta à tona um grande problema do futebol brasileiro e mundial: a homofobia. Ao longo de sua carreira, vitoriosa em times como São Paulo e Atlético-MG, Richarlyson sofreu muito com os boatos de que seria homossexual, apesar de sempre declarar-se heterossexual. O atual jogador do Bugre chegou a ter seu nome omitido nos cantos proferidos pela torcida tricolor, sendo sempre um alvo de “piadas” e ofensas homofóbicas vindas dos rivais e até dos próprios torcedores do time que defendia. Na mesma toada, ainda encontramos o racismo em estádios mundo afora. O caso mais recente foi contra o jogador ganense Sulley Muntari, do Pescara (ITA), que teve reação elogiável: ele abandonou a partida após ouvir os xingamentos racistas que vinham da torcida do Cagliari. No entanto, na maioria das vezes, há grande impunidade em casos como esse, como afirma
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um dos criadores do Palmeiras Antifascista, que preferiu ser identificado como A.T.: “Acho bem válida a atitude dele, mas acho que tinha que ser uma coisa que tinha que partir do Estado, das autoridades. Tipo o Daniel Alves comer a banana, (...), ficou por isso mesmo, não aconteceu nada. O time também acaba não sendo punido.” Além disso, em idas ao estádio – ambiente extremamente hostil –, ainda vemos atitudes machistas. Para lutar por mais respeito nas arquibancadas, alguns grupos feministas, como o“Movimento Toda Poderosa Corintiana”, tem ganhado mais espaço nas redes sociais, mas continuam muito menores do que deveriam ser. Querendo ou não, o futebol é um reflexo da sociedade em que vivemos. Torcidas antifascistas – O fascismo no futebol é quase tão antigo quanto o fascismo em si. Na Itália de Benito Mussolini, o futebol foi uma das ferramentas usadas para promover a imagem de seu governo ditatorial. Mussolini, em um primeiro momento, rejeitou o futebol em
razão de suas raízes inglesas, mas o esporte já havia contagiado os italianos. Mussolini, percebendo que a paixão do povo pelo futebol era irreversível, favoreceu-se do fato o quanto pode e no final da década de 20 o governo começou a usar a Prima Divisione, o principal torneio nacional da época, como meio para difundir suas ideologias. Mussolini que de início rejeitou o futebol, agora passaria a incentiva-lo país afora. O regime passou a agir sobre clubes de cidades estratégicas. Roma acolhia quatro clubes competitivos, mas todos muito fracos para figurarem na elite do futebol italiano. Um deles foi preservado, o Lazio, enquanto os outros três juntaram-se e fundaram a AC Roma, em 1927. O período de ascensão do fascismo na política e no futebol foi contemporâneo ao período de maior imigração italiana do Brasil. O Juventus da Mooca, time operário fundado em 1924, foi erguido por Rodolfo Crespi, o maior empregador do bairro na época, grande amigo de Mussolini e coroado como Conde pelo então Rei da Itália. Nem o Palmeiras, maior clube fruto
Resistência cresce nos estádios “Atualmente, além de Palmeiras, torcedores de pelo menos 27 clubes já se reúnem em coletivos ativos que defendem pautas antifascistas: ABC-RN, América-RN, Atlético Mineiro, Bangu, Botafogo-RJ, Botafogo-SP, Corinthians, CRB, Cruzeiro, Ferroviário-CE, Flamengo, Fluminense, Fortaleza, Grêmio, Guarani-SP, Internacional, Joinville, Londrina, Náutico, Paysandu, Remo, Santa Cruz, Santos, São José-SP, São Paulo, Vasco e Vitória. ‘Tanto no Brasil, quanto na Europa, houve uma profusão de torcidas antifascistas nos últimos anos”, diz Victor de Leonardo Figols, doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná. “Essas torcidas mais progressistas e antifascistas são muito importantes no cenário futebolístico atual, pois, ao se posicionarem, passam a disputar espaço nas arquibancadas com os grupos conservadores que destilam preconceitos. Elas começam a marcar território e passam a mensagem que certos comportamentos não serão aceitos ou tolerados no ambiente futebolístico e na sociedade.’” (Trecho de um texto de Matheus Medeiros na revista Vice Sports, 31.mai.2017)
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da imigração italiana no Brasil, deixou de sofrer a influência fascista em seu desenvolvimento. O antigo Palestra Itália mudou seu nome original para, entre outras razões, apagar uma parte do passado do qual não se orgulhava. Apesar de todos os clubes de origem italiana do Brasil terem seu berço no fascismo, isso não significa que os torcedores desses clubes sejam majoritariamente fascistas. Apesar do Juventus ter sido fundado por um adepto desse posicionamento político, construiu sua história fazendo oposição a suas raízes. Diversos clubes que surgiram do fascismo são hoje os clubes que possuem seguidores mais engajados em movimentos antifascistas.
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Manifestação de apoio ao Jair Bolsonaro – Casos de discriminação resultado do fascismo no futebol são comuns, contudo, a maioria dos jogadores tenta não cometer atos como este para não perder apoio de torcedores. Recentemente os jogadores Felipe Melo, do
Palmeiras e Jadson, do Corinthians declararam apoio ao deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) que ficou conhecido por seu posicionamento de extrema direita e por atos preconceituosos contra mulheres, gays e outras minorias sociais. O palmeirense declarou seu apoio no Dia do Trabalhador (1º de maio) em um vídeo no qual afirmou: “Deus abençoe todos os trabalhadores, p* nos vagabundos. Bolsonaro neles.” Por conta da polêmica que sua declaração gerou na internet, Felipe Melo, que já fez outras declarações como esta, reafirmou seu apoio ao político. Além disso, tentou se explicar dizendo que ao falar de vagabundos se referiu a quem quer tumultuar o país. O jogador retirou o vídeo da internet. Jadson, que nunca havia se manifestado politicamente, durante uma entrevista ao Uol afirmou: “Essas questões de Lava-Jato, investigações, eu acho que o lado da política está complicado, um pouco sem credibilidade. Mas o Bolsonaro eu já vi algumas entrevistas dele
O time alemão de futebol, Fusball – Club Sankt Pauli von 1910, conhecido mundialmente como St. Pauli, tem uma legião de fãs ao redor do mundo. Mas como é possível um time centenário que tem sua maior conquista nos gramados, uma vitória contra o Bayern de Munique e com apenas oito campeonatos da primeira divisão no currículo, seja tão querido? Oriundo da cidade alemã, Hamburgo, o clube herda o nome de um bairro boêmio. Nos anos 80, as arquibancadas de futebol da Europa, inclusive na Alemanha, estavam vivendo o auge da onda conservadora e dos neonazistas. Foi neste momento que o St. Pauli se tornou um expoente da contracultura e um refúgio de ideias contrárias a essa linha de pensamento de extrema-direita. O símbolo do clube é uma caveira com dois ossos, típica bandeira do pirata, referência a localização em uma cidade portuária. O clube antifascista mais famoso de mundo, utilizou na sua última temporada, uma bandeira do orgulho gay em sua camisa oficial. Um dos seus últimos presidentes, Cornelius Littman, é assumidamente homossexual. No estatuto do clube, uma das pautas principais têm como base a luta contra o racismo, machismo e homofobia. Nas arquibancadas do Millerntor, estádio com capacidade aproximada de 30 mil torcedores, fica a maior torcida feminina da Alemanha. Quando surge no gramado, St. Pauli sempre está acompanhado da música Hells Bells da banda de rock australiana AC/DC. Ao balançar as redes, a música Song 2 do Blur ecoa pelo alto-falante do estádio, para festejar o gol do time da casa. Em meio à crise de refugiados da Europa é possível avistar uma faixa sustentada pelos torcedores – Say it Louder Say it Clear Refugees are Welcome Here (diga isso alto, diga isso claro, refugiados são bem-vindos aqui). O clube também organiza o festival, ANTIRA, um evento contra o racismo, que reúne outras torcidas antifas da Europa. A equipe é responsável por campanhas para arrecadar água para África. Com tudo isso, o principal debate latente entre os torcedores do clube hoje é: como manter um time competitivo e como não deixar que a globalização e o capital, deturpem a ideia inicial do clube, já que hoje em dia o clube é uma das maiores atrações turísticas da cidade de Hamburgo?
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no Youtube, parece ser um cara correto. Se ele se candidatar a presidente, eu vou votar nele, porque briga pelos valores da família. Isso pra mim é fundamental”. O jogador recebeu diversas críticas de torcedores, que se surpreenderam com tal posicionamento. Alguns até afirmaram que isso já era esperado do Felipe Melo (por conta de seu jeito agressivo), mas não de Jadson. Segundo A.T. “os caras [Jadson e Felipe Melo] são cidadãos políticos. Eles estão inseridos, votam, participam. Então eles deveriam certamente se posicionar”. Ele afirmou também que isso não é bem quisto, tanto pela diretoria dos clubes quanto pelo torcedor. A declaração dos jogadores gerou discussões e, consequentemente, reflexões sobre a extrema direita, que cresce no Brasil. Torcidas de extrema direita na Europa – O ditado de que política e futebol não se misturam não condiz com o que nos revela a história. Um breve estudo sobre formação dos clubes deixa claro como, no início, as agremiações se davam não só por motivos geográficos, mas também políticos e partidários. O maior reflexo de tais preferências pode ser observado na capital da Itália, Roma, onde surgiram tanto o time de mesmo nome como o rival, a Lazio. A Società Sportiva Lazio surgiu nos anos 1900 com forte ligação com o fascismo e com o governo de Benito Mussolini. Parte da torcida laziale abriga, inclusive, um setor denominado Irriducibili, que compactua até hoje com os ideais dos camisas negras. Dentre as inúmeras manifestações de nazi-fascismo protagonizadas pelo setor da Curva Nord do Estádio Olímpico, a mais famosa pode ter sido a saudação fascista prestada a eles pelo atacante Paolo Di Canio ao comemorar um gol. Outro exemplo digno de repulsa foi a faixa estendida pelos mesmos torcedores, em que se lia “Auschwitz vossa Pátria, os fornos vossas casas”, fazendo referência à ideologia antissemita. Os conceitos de antissemitismo, pureza de raça, racismo e xenofobia, no entanto, não são uma exclusividade da Lazio. O estádio do Zenit, da Rússia, também foi palco de algumas demonstrações de ódio, como o caso do atacante brasileiro Hulk, que foi recebido pela torcida com sons que imitavam o de macacos. Também foram os torcedores do Zenit, o grupo Seleção 12, que em 2012 publicaram um manifesto abominando a contratação de negros e homossexuais. As manifestações fascistas partem dos torcedores, mas não somente deles como foi o caso do Real Madrid. O clube espanhol teve seu discurso de superioridade racial e supremacia endossado pelos dirigentes do clube e pelo ditador Franco, quando esteve no poder (1939-1975). Grande parte da ascensão do time merengue deve-se ao poder de negociação que ganharam devido à simpatia do franquismo. Outro ponto foi a proibição, pelo General, do uso do idioma catalão, inclusive dentro dos estádios. Com isso, a torcida do rival, o Barcelona, perdia voz nos jogos. Os torcedores de extrema direita do Real são os Ultra Sur, até hoje, portam as bandeiras franquistas, suásticas e cruzes celtas para as arquibancadas, mantendo forte ligação com os Irriducibili e com as Brigadas Branquiazules. O fascismo ainda está presente nos estádios, muitas vezes mascarado, muitas vezes parecendo não se alastrar, mas isso é porque há resistência. O futebol resiste. A causa antifascista resiste. E o jogo segue.
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Comportamento
Tabus que cercam a maternidade
Por: Andressa Lima, Diana Ribeiro, Thalita Archangelo e Yasmin Sousa
O papel de mãe é idealizado e cobrado pela sociedade desde a gravidez, entretanto nem sempre as expectativas são atendidas e quem sofre as consequências da frustação é a mulher
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Foto do momento de amamentação removida pelo Facebook, sob alegação de nudez
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A mulher sofre pressão para atender ao ideal de mãe perfeita
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tabu da amamentação em público -Muitas mulheres são repreendidas todos os dias por amamentarem seus filhos em locais públicos. Além disso, fotos de momentos entre mães e seus filhos em redes sociais são censuradas tanto pelos usuários quanto pelas próprias companhias. Em novembro de 2015, uma mulher publicou uma foto no Facebook que mostrava uma mãe amamentando sua filha enquanto andava de bicicleta. O caso ganhou muita polêmica, mas pelo motivo errado. O que gerou desconforto nas pessoas foi o fato da mulher estar alimentando sua filha em público e não o fato de isso estar sendo feito em cima de uma bicicleta, o que coloca em risco a mãe e a criança. Além disso, a mulher que fez a publicação (que não é a mesma que amamentava a criança) foi preconceituosa dizendo: “Isso é coisa de pobre”, e equivocada dizendo: “O governo incentiva o aleitamento materno apenas para não ter de gastar com a compra do leite em pó, que teria as mesmas características do leite produzido pela mãe”. Outro caso que gerou bastante repercussão aconteceu em 2014, quando o Facebook removeu uma foto de uma mãe amamentando seu bebê. Emma Bond, 24, teve sua foto retirada do ar depois de alegarem nudez enquanto alimentava sua filha recém-nascida. Apesar desses casos e de outros que surgem todos os dias, o Facebook afirma pela política do site: “A amamentação no peito é algo natural e bonito. Ficamos contentes em saber que é importante para as mães compartilharem suas experiências com outras pessoas no Facebook. A grande maioria dessas fotos está de acordo com as nossas políticas. Observe que as fotos que analisamos são enviadas exclusivamente por outros membros do Facebook que se incomodam com o que é compartilhado”. Essa não foi a primeira vez – nem a última – que mulheres que amamentam o filho em público, ou publicam essas fotos em redes sociais, são censuradas. Segundo o site vix.com, em 2011, Marina Barão foi proibida de amamentar seu filho, que na época tinham três meses, no espaço do Itaú Cultural. Ainda segundo a publicação, em 2013, Geovana Cleres foi impedida de alimentar sua filha, até então com um ano e quatro meses, no Sesc Belenzinho em São Paulo. Mãe de Isac, de 2 anos, e grávida de 4 meses de seu segundo filho, Graça Ramos, 36, diz que sempre fez a amamentação antes de sair de casa, mas quando houve necessidade, alimentou seu filho em público. Apesar de já ter se sentido repreendida por olhares, Graça declarou que tinha consciência de que não estava fazendo nada de errado: “Ignorei. Estou fazendo o melhor papel de mãe. A importância da amamentação é muito maior que qualquer cara feia”. A censura à amamentação em público ainda é um tabu na sociedade. Isso é resultado do machismo, assim como afirmou Graça Ramos ao jornal Contraponto: “Os homens costumam ver os seios das mulheres como objeto sexual.
Se quisermos que o assunto pare de ser tabu, precisamos tratá-lo com naturalidade. Se arrepender de ser mãe, não é a mesma coisa de não amar o seu filho. Então, se essa mulher sentir a necessidade
de dividir as angústias e renúncias que a maternidade nos impõe todos os dias, não vejo problema algum.
Porém, essa conversa não pode cair na culpabilização, nem da mãe e muito menos do filho.” (Bianca Amorim, psicóloga perinatal)
Então muitas mães, principalmente mães de primeira viagem, se sentem constrangidas quando estão amamentando em público”. Uma pesquisa realizada pela Lansinoh mostrou que 55% das brasileiras acha perfeitamente natural amamentar em público, 22% considera inevitável, 21% considera constrangedor e apenas 2% acha errado. O estudo foi realizado com 13.169 mães e gestantes, em nove países no primeiro semestre de 2014. No Brasil, foram entrevistadas 2 mil pessoas. Apesar desses dados, sabe-se que as mães ainda se sentem muito censuradas quando vão amamentar seus filhos, sofrendo inclusive agressões verbais por conta disso. Diante dos diversos casos em que as mães foram constrangidas por alimentarem seus filhos pequenos, o governo teve que tomar atitudes para que o machismo impregnado na sociedade fosse minimizado – pelo menos no que diz respeito à naturalidade da amamentação em público. Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Minas Gerais já possuem legislação que garante o direito de amamentação em locais públicos ou privados. Sem qualquer tipo de constrangimento ou desaprovação. Em São Paulo, por exemplo, a multa para quem constrange ou desaprova a mãe por amamentar é de R$ 500 e em caso de persistência em atitudes que prejudiquem a mãe e/ou a criança, o valor pode dobrar. O mesmo vale para Minas Gerais, onde a multa é de R$ 975,42 se dobrada. O mito da mãe perfeita – Existe uma pressão social muito forte para que a mulher atenda ao padrão ideal do que é ser uma boa mãe. Priorizar a maternidade em detrimento de uma carreira profissional, ficar com o filho ao invés de deixá-lo em uma creche, e até mesmo optar pelo tipo “certo” de parto, são apenas alguns exemplos que mostram como há uma forma política e socialmente correta de ser mãe.
Essa cobrança externa, no entanto, não é maior do que a internalização desse mito da mãe perfeita pela própria mulher. De acordo com Marcia Neder, psicanalista com pós-doutorado e doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, a imagem da mãe devotada à criança, que é reproduzida ainda nos dias de hoje como algo natural, surgiu no final do século XVIII. Em seu livro Os filhos da mãe (Leya, 2016), Neder mostra como ser boa mãe se tornou uma obrigação para a mulher e conta como se dá o triunfo da criança enquanto figura central na família. “Hoje a pergunta não é mais se você quer ter filhos, mas, sim, quando vai tê-los”, explica. Além disso, a responsabilidade pela criança pesa mais sobre a figura da mãe do que a do pai. “Há uma exigência para que o filho seja um anexo, um apêndice da mãe. Assim, se ele vai bem ou mal, isso é cobrado da mulher”. Para a psicóloga perinatal Maria Cecília Mattos, a cobrança para corresponder ao papel da mãe perfeita persegue as mulheres e impede, em muitos casos, que haja satisfação na maternidade. “No consultório e no meu dia-a-dia, percebo que as mães atuais sentem-se muito culpadas, pois sempre percebem-se falhando ou deixando a desejar, seja no trabalho, com os filhos ou em casa”, conta. Na sociedade atual, onde grande parte das mulheres acumula funções dentro e fora de casa, o exercício da maternidade acaba dividindo lugar com outras responsabilidades, como trabalho, estudos e até mesmo os cuidados com a casa. Isso faz com que dedicar-se apenas ao papel de mãe nem sempre seja uma possibilidade. Mesmo quando a ausência dessa opção é perceptível, a pressão sobre a mulher em relação à maternidade permanece a mesma. É como se a mulher que existia antes da chegada do filho fosse automaticamente anulada por um instinto biológico que não permite o erro.
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Youtuber Helen Ramos, do canal Hel Mother, aborda em seus vídeos temas considerados tabus quando o assunto é maternidade © Reprodução: Getty Images
A romantização da maternidade – A maternidade é tão idealizada que pouco se fala de sua realidade e das questões que as mães enfrentam. Quando a mulher engravida, depois dos julgamentos morais a depender de sua situação social, é vista como santa e a maternidade é tida como algo perfeito. Carol Rocha, publicitária e mãe de Valentin, de 2 anos, é conhecida na internet como Tchulim e fala sobre os tabus da maternidade: “Percebi que a sociedade considera a mulher pública a partir do momento que engravida, como se todos pudessem, desde opinar sobre o sexo do filho, roupa e forma de criar, até tocar no corpo de uma grávida.” As mães são cobradas antes mesmo de se tornarem mães. As dificuldades são romantizadas e muitas mulheres se sentem culpadas por serem quem são. Há um padrão do que é desejável para uma mulher quando se tem filho. A mídia é forte influenciadora nesse papel e o retrato do que é ser mãe é completamente romantizado. O modelo de mãe que a sociedade impõe não pode ter falhas, não pode ter dúvidas e muitos menos medos. Um sentimento de frustação é sentido quando há a percepção que as expectativas são inalcançáveis. Tchulim comenta: “Eu sentia um certo incômodo ao ler e ao perceber as pessoas falando sobre gravidez romantizada e sobre ser mãe de forma absoluta. Eu comecei a buscar sobre uma maternidade que fosse mais a minha cara, sem deixar a pessoa que eu era de lado por causa da gravidez/maternidade. Busquei ler relatos de mães que se abriam e se expunham para que outras mulheres pudessem ter contato com seu dia a dia de maternidade não floreada. Os grupos no Facebook me ajudaram muito.” O dualismo entre ser uma “boa mãe” ou uma “mãe ruim” é contrastado o tempo inteiro, como se fosse possível uma mulher só errar ou só acertar nos cuidados com seus filhos. Tchulim acrescenta: “A mulher boa é a mulher que vive para o filho, mas se vive demais tem que tomar cuidado para não se deixar de lado, e se se cuida demais, pode ser que não esteja priorizando o filho. Se amamenta, tem que ter limite, se não amamenta, não ama como deveria.” O puerpério é o período após o parto – não há um consenso entre o tempo exato de sua duração – no qual a mulher passa por profundas modificações físicas e emocionais. O corpo não é o mesmo, os hormônios estão abalados, a rotina mudou completamente e daquele momento em diante há um ser humano totalmente dependente dela. Muitas vezes esse período é conturbado, sem boas noites de sono, sentimentos diversos e isso raramente é discutido. Ninguém fala sobre o puerpério. Falar das dificuldades da maternidade é um tabu, mas é necessário.
A youtuber Helen Ramos, em seu canal Hel Mother, traz a desromantização da maternidade: “Amo meu filho, mas odeio ser mãe”. Em um dos vídeos comenta sobre como foi julgada por ser mãe solteira, e fala, também, sobre violência obstétrica, a exclusão da mulher da vida social após a maternidade e a dificuldade em retornar ao mercado de trabalho. Além disso, pontua a depressão pós-parto, a necessidade de descontruir os mitos da maternidade, o machismo, a importância do feminismo nessa fase da vida e a importância de lutar por direitos. E cita um proverbio africano: “Criança é responsabilidade de todo mundo, não só da mãe”. A desromantização da maternidade é necessária para que a mãe não se sinta culpada e sobrecarregada com as tarefas da criança. Tchulim comenta como a romantização da maternidade prejudica as mulheres: “A romantização nos coloca em um lugar impossível de alcançar: a mãe perfeita. É preciso falar sobre mulheres que se tornam mães, pois antes de qualquer coisa estamos falando de uma pessoa carregada de sentimentos, vivências e experiências como qualquer outra, e não falar de mães de forma isolada, pois é justamente isso que prejudica e nos joga para algo que não é real. Ser uma pessoa real num mundo idealizado é uma tortura.” É essencial discutir esse tema para ajudar outras mulheres a decidirem se querem ou não ser mães e, sobretudo, fortalecer e libertar a mulher da “obrigatória” função de ser mãe.
A depressão pós parto e o arrependimento por ter se tornado mãe ainda são pouco discutidos
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É preciso falar sobre mulheres que se tornam
mães, pois antes de qualquer coisa estamos falando de uma pessoa carregada de sentimentos, vivências e experiências como qualquer outra e não falar de mães de forma isolada,
Arrependimento – Com toda a romantização que gira em torno da maternidade e com as expectativas que são colocadas sobre as mulheres que estão prestes a terem filhos, é comum que a frustração surja e que mães sejam levadas a acreditar que todo seu esforço não é suficiente. O desencantamento pela maternidade leva muitas mulheres a repensarem sua decisão de engravidar, isso quando a gravidez é planejada, e em algumas vezes trazendo à tona o sentimento de arrependimento. A gravidez não planejada, por sua vez, é capaz de trazer esse sentimento assim que a mulher descobre que está grávida. Embora seja algo natural repensar decisões tomadas, e até se arrepender de algumas, ainda é um tabu quando se trata de maternidade. Se arrepender diante de uma gravidez implica uma série de julgamentos, dentre eles o de não ser um bom ser humano, já que, de acordo com grande parte da sociedade, é inerente à mulher amar seu filho. Porém, poucas pessoas sabem que é possível arrepender-se de ser mãe e mesmo assim amar a criança que foi gerada. É essencial diferenciar o amor materno do instinto materno. O primeiro diz respeito ao carinho construído através da relação que a mulher possui com seu filho. Já o segundo, representa ações impulsivas e naturais que levam uma mãe a querer proteger seu filho. Para Bianca Amorim, 31, psicóloga perinatal: “Este instinto não se refere somente ao gênero feminino, mas também ao masculino”. A falta de discussão em torno desse assunto tem perpetuado a ideia de que mulheres nasceram e nascem para serem mães. No entanto, é importante que essa escolha seja feita baseada nas condições físicas e psicológicas da mulher e do desejo que ela tem ou não de procriar. O psicológico da criança também pode ser afetado. Em alguns casos, o filho não sabe lidar com o arrependimento da mãe por ser levado a acreditar que a mesma não o ama. A saúde mental da mulher é comprometida por conta da gravidez, por exemplo, em casos em que a mulher passa a ter depressão, ansiedade e, até mesmo, quadros de surto psicótico. No entanto, nem sempre esconder essas angústias é a melhor saída. Bianca explica: “Se quisermos que o assunto pare de ser tabu, precisamos tratá-lo com naturalidade. Se arrepender de ser mãe não é a mesma coisa de não amar o seu filho. Então, se essa mulher sentir a necessidade de dividir as angústias e renúncias que a maternidade nos impõe todos os dias, não vejo problema algum. Porém, essa conversa não pode cair na culpabilização, nem da mãe e muito menos do filho”. O acompanhamento com profissionais pode ajudar tanto o filho como a mãe a lidar com possíveis problemas, e a aceitar os fatos. Para Bianca, um bom jeito de lidar com a situação é: “Compreender quais foram as transformações que a maternidade propiciou em suas vidas e o que fazer a partir desse ponto”. Além disso, também: “Naturalizar aquilo que é difícil admitir”, o que é possível através da discussão aberta sobre o tema. Dessa maneira, podese levar indivíduos a compreender os sentimentos das mulheres que se arrependeram e também fazer com que elas se sintam acolhidas.
pois é justamente isso que prejudica e nos joga para algo que não é real.
Ser
uma pessoa real num mundo idealizado é uma tortura.”
© Divulgação
Na busca de alternativas que ajudem na quebra desse mito, Maria Cecília Mattos aponta a psicoterapia como uma forma de ajudar as mães a lidarem com esses conflitos. “Como psicóloga perinatal, busco permitir um espaço de escuta e acolhimento, onde elas possam expressar seus medos, desejos e culpas sem julgamento”, diz. Para Marcia Neder, além de uma luta individual contra esse padrão, há a necessidade de maneiras coletivas e sociais de trabalhar a questão. “Embora existam limites pessoais, geracionais e de identificação, cada uma precisa trabalhar essa questão consigo mesma. Para lidar com a questão de forma social é preciso trazer a história da maternidade à tona, seja através livros, debates ou reflexões que tornem isso tudo objeto de conversa”.
Os filhos da mãe, quarto livro da psicanalista Marcia Neder
(Carol Rocha, publicitária) Julho 2017
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CONTRAPONTO
ensaio fotográfico
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Por: Gabriel Paes
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O problema é quem proíbe”.
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A gente
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© Fotos: Gabriel Paes
problema é quem proíbe”. Assim como Karen, que protestava na linha de frente da marcha, quase todo mundo já viu, ouviu falar ou fumou maconha, mas pouca gente admite publicamente. O tabu em torno da erva vai sendo quebrado, ano após ano, através de debates e manifestações que ocorrem por todo o planeta. Em mais de dez cidades brasileiras, ocorreu no dia 6 de maio, a marcha da maconha, que reuniu milhares de pessoas para lutar pela regulamentação da substância, hoje considerada uma droga ilícita no país. Wesley Rosa, ativista do movimento, aponta que o principal problema da criminalização da droga é a superlotação dos presídios: “A marcha destaca que a guerra às drogas é uma guerra falida, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo e não há um vencedor desse conflito”. Para quem é contra a legalização, o argumento é o oposto, de que o usuário é quem financia o tráfico e, portanto, o sustenta. “O problema é quem proíbe”, afirmou Karen, que protestava na linha de frente da marcha. No início de 2017, no plenário do STF, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a liberação da planta, tanto para fins medicinais quanto para recreação: “A gente deve legalizar a maconha. Produção, distribuição e consumo. Tratar como se trata o cigarro, uma atividade comercial. Ou seja: paga imposto, tem regulação, não pode fazer publicidade, tem contrapropaganda, tem controle. Isso quebra o poder do tráfico. Porque o que dá poder ao tráfico é a ilegalidade. E, se der certo com a maconha, aí eu acho que deve passar para a cocaína e quebrar o tráfico mesmo”. Também no STF, está Alexandre Moraes, ex-secretário de segurança pública de São Paulo no governo Alckmin, e ex-ministro da Justiça de Temer. Ele é contra a legalização e quer “erradicar a maconha do continente”, por isso, foi lembrado por um boneco com seu rosto, que era carregado no meio da multidão com a palavra “racista” escrita em seu paletó. O Uruguai, membro do Mercosul e país vizinho do Brasil, legalizou o mercado da erva em 2014. Mas o uso da substância não é somente recreativo, como a maioria pensa. Do ponto de vista medicinal, a maconha é usada no tratamento de diversas doenças graves, incluindo AIDS, câncer, epilepsia, anorexia e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Algumas famílias presentes no evento reivindicavam o direito de plantar a cannabis como recurso terapêutico para seus filhos, mostrando que a causa é muito mais importante e não é tratada com a devida
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delícia“
em torno da erva vai sendo quebrado, ano após ano,
Do ponto de vista medicinal, a maconha é usada no tratamento de diversas doenças graves, incluindo AIDS, câncer, epilepsia, anorexia e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade).
de debates e manifestações que ocorrem por todo o planeta.
deve legalizar a maconha.
Produção, distribuição mo. Tratar como se trata o cigarro, uma atividade comercial.
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Cultura
Protestos contra Temer e Doria marcam Virada Cultural esvaziada
Por: Carolina Zenzen, Diana Ribeiro, Gabriela Gaspar, Gabrielle Senne, Júlia Forbes, Kenya Marques e Paola Oliveira
Claramente menor do que nos anos anteriores, evento deixou a desejar tanto pela programação espalhada por pontos distantes pela cidade, quanto pela estrutura precária
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A pluralidade que a Virada Cultural já teve, com artistas de rua, com atrações no meio da rua, no centro, na periferia, não existe mais].”
(Lenon Farias, militante do coletivo RUA)
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© Kenya Marques e Paola Oliveira
Virada Cultural paulistana ao estilo da cidade, a terra da garoa Esvaziada, Virada Cultural 2017 é criticada pela programação e distribuição dos palcos © Reprodução: UOL
13ª edição da Virada Cultural de São Paulo já começou com polêmica quando o prefeito da, João Doria, afirmou que iria concentrá-la em apenas um lugar. Algumas semanas depois o cronograma foi revelado dando certo alívio aos defensores da Virada, porém o conceito da vez era a descentralização e a segurança. O que a organização não previu foram muitas falhas técnicas, chuva com risco de alagamento e palcos vazios que dominaram durante às 18h do dia 20, sábado, até às 18h do dia 21, domingo. O evento contou com metade do público do ano anterior. Mais uma vez, os protestos políticos marcaram a noite paulistana, com manifestações em grande parte dos palcos e por parte de diversos artistas. A proposta da gestão municipal para a edição deste ano era realizar uma virada cultural descentralizada, mas não da maneira com que o antigo prefeito Fernando Haddad (PT) havia tentado implementar. O objetivo no ano passado era de levar atrações a locais periféricos, para que as pessoas não apenas pudessem assistir a shows, mas também participarem enquanto atores culturais com seus coletivos locais. A lógica de descentralização imposta por Doria foi outra. A atual gestão levou os eventos para espaços distantes, como a Chácara do Jockey (zona oeste), Sambódromo do Anhembi (zona norte) e Autódromo de Interlagos (zona sul). Do ponto de vista da democratização da cultura, a Virada Cultural foi um fracasso, não somente pela localização de difícil acesso, mas também pela distância entre os palcos. O público teve de escolher qual show valeria mais a pena de acordo com o que já conhecia. Além disso, teria que permanecer lá por toda a noite, impossibilitando, desta forma, a experiência de andar pela cidade e surpreender-se com uma atração inesperada. A oportunidade de descobrir um artista diferente se entrasse em outra rua foi inviabilizada. O acesso amplo à cultura pela Virada Cultural se perdeu. As críticas vieram tanto dos artistas quanto do público. As apresentações do centro da cidade, como no Centro Cultural de São Paulo, receberam reclamações pela mudança da distribuição dos palcos, como sintetizou Naná Rizinni, que
© Kenya Marques e paola Oliveira
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tocou com a cantora Tiê às 2h da manhã: “Eu acho que no centro tinha mais acessibilidade, as pessoas conseguiam chegar com mais facilidade nos lugares”, disse. A Prefeitura também foi criticada por problemas na montagem dos palcos principalmente pelo cantor Mano Brown, que acabou não se apresentando no Centro Cultural Palhaço Carequinha, no Grajaú. A princípio, a Secretaria de Cultura divulgou que, além de problemas com a chuva, o próprio artista teria cancelado a apresentação. Em nota no Facebook, o rapper negou e criticou duramente a organização da Virada. Outra crítica apontada foi a diminuição do evento nas periferias da cidade. Muitos dos pal-
Palco do Autódromo de Interlagos recebe a Viradinha, que compete com corrida de carros antigos cos montados nos bairros foram retirados da programação, restando apenas aqueles próximos às casas de cultura, com grandes nomes de artistas conhecidos e convidados. Os editais abertos para produtores de cultura independentes conseguirem entrar na programação foram prejudicados pelos critérios difíceis. Outro fator negativo foi a confusa divulgação do formato que a virada teria esse ano. Até o mês de abril, ainda circulavam boatos de que o evento seria centralizado em apenas um espaço ou ainda que seria cobrada entrada. Para o militante Lenon Farias, do coletivo RUA – Juventude Anticapitalista, que atua no movimento de cultura da Zona Sul, essa posição
Prefeitura não monta palco e prejudica músicos Os DJs de soul music, Talco Bells, estavam programados para tocarem no “Palco Festas” no Coreto da Bolsa de Valores, na praça Antônio Prado, centro de São Paulo. Mas ao chegarem ao local tiveram uma desagradável surpresa ao perceberem que o palco da apresentação não estava montado. Nas redes sociais, os músicos pediram desculpas e alegaram falha de comunicação com a prefeitura: “Senhoras e senhores, houve um problema de comunicação da Prefeitura que não montou a estrutura com os equipamentos combinados. Infelizmente, pedimos desculpas mas não foi possível realizar a festa. Viemos até aqui com a intenção de fazer uma noite memorável mas não foi possível. Esperamos que possam curtir o restante da Virada.” Em resposta, o secretário de cultura André Sturm, alegou que foi um erro da produção: “O produtor responsável trouxe um equipamento errado, e os primeiros DJs não conseguiram tocar. Foi uma falha nossa.”
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Sei que assim falando pensas que esse
desespero é moda em
2017,
mas ando mesmo descontente, desesperadamente, eu grito em português.”
© Reprodução: UOL
(Di Melo, durante sua apresentação)
Assucena Assucena, da banda As baianas e a cozinha mineira, protesta contra Temer e pede por diretas
© Reprodução: UOL
da prefeitura prejudicou artistas que, até esse ano, encontravam no evento um espaço importante para se manterem na ativa. “O difícil pra nós é que para um grupo independente, em sua maioria jovens negros, LGBTs, indígenas e periféricos, o dinheiro que a Virada Cultural pagava servia para o resto do ano todinho. Nos ajudava, e muito, em várias questões, pois quem faz cultura passa uns perrengues gigantescos”, afirma. Ele relembra que, muitas vezes, os próprios artistas não tem nem ao menos como pagar sua própria alimentação nas apresentações. A lógica da produção cultural na cidade, portanto, começa a se modificar. As mudanças da gestão Doria vão deixar um legado terrível para a cultura paulistana. “A pluralidade que a Virada Cultural já teve, com artistas de rua, com atrações no meio da rua, no centro, na periferia, não existe mais”, conclui Farias. A grande promessa nesta edição eram, justamente, os grandes shows que ocorreriam nos palcos descentralizados. Mas, apesar de nomes importantes como o de Daniela Mercury, que se apresentou no Anhembi, a plateia era pequena. A baiana foi, contudo, uma das maiores atrações do evento, reunindo cerca de 3 mil pessoas. As outras atrações desse mesmo palco contaram com plateias ainda mais esvaziadas e problemas técnicos que ajudaram a dispersar o público. A apresentação do Circo Zanni, fundado pelo já falecido ator Domingos Montagner, foi interrompida por um apagão, que a suspendeu por cerca de vinte minutos. Já o show de Fafá de Belém, programado para meia-noite, foi cancelado, devido à indisposição da cantora. A artista, contudo, compensou a falta se apresentando conjuntamente com Alcione às 17h de domingo. O fechamento do palco ficou com a banda Titãs que, mesmo sob chuva, cativou a plateia com um show repleto de nostalgia e talento. Na Chácara do Jockey, logo após os shows de Liniker e As Bahias e a Cozinha Mineira, o local foi esvaziado por volta das 21h, pequenos palcos foram montados ao redor do principal, mas as atrações não convidaram o público a permanecer. Os palcos não receberam o público esperado e a baixa infraestrutura, como falhas no som e iluminação precária, foram percebidas em diversas atrações. Mesmo assim, esse palco deve ter sido o que menos sentiu a queda do público da edição, concentrando o maior número de pessoas ao longo das 24 horas. A Viradinha Cultural, parte do evento dedicada ao público infantil, foi realizada no Autódromo de Interlagos e também passou todo evento bastante esvaziado. Mesmo o maior show do palco, o fechamento de MC Gui às 15h, não contou com uma plateia maior do que 100 pessoas, segundo reportagem do portal UOL. A chuva e o frio com certeza afastaram o público infantil do evento, além da localização pouco favorável. As atrações aconteceram simultaneamente a Old Stock Race, uma corrida de carros antigos. Tanto as apresentações quanto as corridas impediram que ambos os eventos fossem bem apreciados pelos seus respectivos públicos, bastante diferentes entre si. No centro da cidade o clima de dispersão se mantinha. Com poucos shows grandes, diversas falhas técnicas e com uma programação pouco atrativa, o fluxo de pessoas na região foi consideravelmente menor do que nos outros anos.
Wanderléa se apresenta no palco Musicais, no Vale do Anhangabaú
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Eu acho que no centro tinha mais acessibilidade, as pessoas conseguiam
chegar com mais facilidade nos lugares.”
(Naná Rizinni, artista)
Um dos grandes destaques da Virada Cultural, desde sua criação, era o contato entre a população e o espaço público promovido pelo evento, o que não foi visto esse ano. Até mesmo os maiores palcos do centro estavam esvaziados, com grande parte das pessoas ficando sem rumo após o fim das principais atrações. A região central como um todo estava pouco movimentada, com baixa circulação entre os palcos. A maior exceção era em torno dos blocos e cortejos que circularam pelo centro, no início da madrugada. Mesmo com esses problemas identificados pelo público, a mobilidade no centro da cidade estava garantida. Doria liberou o funcionamento ininterrupto de trens e metrôs na cidade, como nos anos anteriores. Contudo, a chegada ao Anhangabaú de carro foi comprometida, pois pela manhã de domingo, a Polícia fez uma operação na Cracolândia e, por isso, parte da população que ocupa o local estava dispersa nas ruas e avenidas do centro da cidade, dificultando a circulação. Mas uma coisa foi constante em todos os palcos. Tanto no centro quanto nos grandes espaços descentralizados, a Virada foi marcada por protestos contra João Doria e Michel Temer. O prefeito de São Paulo foi criticado por tentar retirar a Virada Cultural das ruas da cidade, sobretudo do centro. Cartazes escrito “Doria mente” eram distribuídos e exibidos em grande parte dos palcos. Já Temer, que na mesma semana teve um áudio divulgado no qual era evidente seu comprometimento com corrupção, teve sua ilegitimidade no poder amplamente questionada. Palavras de ordem como “Fora Temer” e “Diretas já!” foram entoadas em muitas atrações culturais, não somente pelo público, mas pelos artistas também. Di Melo, em sua apresentação na abertura do palco da República, de Soul Funk, foi uma das figuras que não perdeu a oportunidade de pontuar o momento que vivemos no país. Em sua homenagem ao músico Belchior, falecido em abril desse ano e lembrado por suas letras profundamente políticos, Melo declamou a canção “A Palo Seco”: “Sei que assim falando pensas que esse desespero é moda em 2017, mas ando mesmo descontente, desesperadamente, eu grito em português”. Já Daniela Mercury, fez uma fala contra a homofobia e a transfobia, além de bradar “Renúncia já!” durante sua apresentação de músicas de Legião Urbana e Belchior.
Wanderléa, uma estrela de musical sobre os anos 60 no Brasil Um dos destaques da programação da região central foi o palco do Vale do Anhangabaú, de Musicais, onde a trajetória da cantora Wanderléa foi apresentada na peça “60! Década de Arromba”. Marcada pela incessante chuva, a única solução para esse problema era a compra de uma capa, já que o guarda-chuva não era permitido no local. Muitas pessoas gritavam e jogavam objetos nas pessoas que, por algum motivo, ficavam em pé durante a apresentação, o que dificultou a boa convivência no espaço. A apresentação, infelizmente, não aconteceu na íntegra. Apenas o segundo ato foi encenado, o que ocorreu devido ao curto tempo disponível para tal. O espetáculo, por sua vez, foi incrível. Os atores, simpáticos. O figurino maravilhoso. A produção do musical fez uso de roupas da moda atual e os readaptou, a fim de encaixar no estilo de roupas dos anos 60, temática da apresentação. O repertório musical foi muito bem escolhido, misturando cantores brasileiros clássicos e estrangeiros. A coreografia, apesar de previsível, estava perfeitamente sincronizada, prendendo a atenção do público. Diversos temas presentes nos anos 60 foram abordados, como, por exemplo, a ditadura militar, relembrando o caráter crítico da Virada Cultural.
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Internacional
A crise mora ao lado
Por: Débora Bandeira e Natália Novais
Situação crítica venezuelana vai além do âmbito econômico, é também política e humanitária
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Milhares de pessoas foram às ruas de Caracas para protestar contra o governo chavista
Líder da oposição Henrique Capriles © Reprodução: Federico Parra/AFP
uperta é uma elefanta africana que vive há 12 anos no Zoológico de Caracas. Acostumada a ser umas das principais atrações do parque, hoje ela pesa menos de quatro toneladas, quando seu peso ideal deveria ser no mínimo sete. Seu estado de desnutrição aguda deixou em alerta biólogos de todo o mundo, pois, o animal acabou desmaiando de fome, exigindo assim uma operação complicada e cautelosa para aplicar-lhe cuidados médicos. A saúde de um animal robusto como Ruperta tem a ver com a profunda crise econômica de um país como a Venezuela justamente pelo tamanho. Os problemas econômicos deles estão tão agravados com a baixa no câmbio e a desvalorização da moeda local – o Bolívar, que o Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou ano passado que a sua inflação era a maior do mundo. A Venezuela é o sexto maior país do América Latina, seu Produto Interno Bruto (PIB) já foi considerado o quarto melhor da região e é membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) com uma das maiores reservas petrolíferas do globo. Entretanto, hoje enfrenta umas das piores crises econômicas já vistas. Com economia centrada apenas na exportação e importação de petróleo, ela não tem conseguido acompanhar grandes concorrentes como Arábia Saudita e Estados Unidos. Sua economia entrou em recessão oficialmente em 2014. Segundo especialistas, o “erro” do governo venezuelano foi justamente a falta de diversificação na produção de bens nacionais. Como o país é extremamente dependente do petróleo, sua economia ficou à deriva das altas e baixas do preço do mesmo. Outro problema apontado foi que optou-se por fazer um “controle” artificial da inflação, causando assim efeito contrário, elevando ainda mais os índices negativos. Há mais de um ano a Venezuela decretou estado de calamidade pública em todo o país e, afirma estar passando por umas das piores crises humanitárias da América Latina. O povo saiu às ruas protestando contra a escassez de produtos básicos como alimentos, remédios e até mesmo papel higiênico. O papel atualmente é algo tão raro e caro por lá que jornais de grande circulação nacional como o El País, Notidiario e El Impulso suspenderam as vendas de suas edições impressas e passaram a operar apenas online. O atual presidente Nicolás Maduro é acusado de ser o responsável pelo mau momento que o país atravessa. Desde 2013, logo após a morte de Hugo Chávez, até então considerado um líder e herói nacional, foi Maduro, aliado do partido chavista, quem assumiu a presidência estabelecendo uma política de intensa exportação do petróleo e forte controle estatal da produção e distribuição de produtos primários. Os protestos, que começaram no país no primeiro semestre de 2014, se intensificaram no dia 31 de março de 2017, dois dias após a suspensão do poder legislativo. As manifestações da oposição exigem respeito ao parlamento e aceitação da doação internacional de alimentos e remédios. Além disso, pedem a realização das
© Reprodução: Miguel Gutierrez/Efe
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eleições regionais, que deveriam ter acontecido em Outubro do ano passado, mas foram canceladas sob o pretexto de falta de verbas. Manifestações a favor do governo chavista também vem acontecendo, porém em menor número. A violência tem se tornado um ponto marcante desde a nova onda de protestos deste ano. A polícia atua com forte repressão, usando bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Segundo dados do Ministério Público, entre 1º de abril e 3 de junho deste ano foram registradas 62 mortes e mais de 1100 feridos. “Mais da metade das pessoas foram feridas devido ao uso da força pelas organizações de
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Mais da metade das pessoas foram feridas
devido ao uso da força pelas organizações de segurança do
Estado.”
(Luísa Ortega Díaz, ProcuradoraGeral da Venezuela)
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
segurança do Estado”, denunciou a Procuradora-Geral da Venezuela (PGR) Luísa Ortega Díaz, durante uma coletiva de imprensa em Caracas, capital do país. A Imprensa venezuelana também tem sido coibida. Em maio, o Ministério Público enviou à Justiça um pedido para que haja proteção aos jornalistas que cobrem os protestos. No mesmo mês, o fotógrafo Luis Robayo denunciou uma tentativa de censura por parte dos militares, ao ser golpeado enquanto tirava fotos dos confrontos entre manifestantes e a Guarda Nacional. Além disso, cenas de saques e atos de vandalismo têm sido cada vez mais frequentes. Apoiadores do governo e da oposição trocam acusações quanto a isso. De um lado, governistas acusam a oposição de promoverem “selvageria” contra o povo; do outro, oposicionistas acusam o governo de infiltrar pessoas com o objetivo de tirar a legitimidade das reivindicações. A situação é a mais violenta desde a posse de Maduro. Antes disso, a maior repressão havia sido no primeiro semestre em 2014, durante as manifestações organizadas pelo hoje preso político Leopoldo López, que queria o fim do governo chavista. Em quatro meses, houve 43 mortos. Entretanto, os protestos eram menores, Julho 2017
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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Em meio aos fortes protestos, Nicolás
Maduro assinou um decreto no dia 1º de maio convocando uma Assembleia Constituinte com o objetivo de “reformar o Estado e redigir uma nova Constituição.”
© Reprodução: Miguel Gutierres/Efe
do município e morarem nele há, pelo menos, 5 anos. Já os dos campos sociais terão que recolher o mesmo número de assinaturas de eleitores correspondentes aos setores que representam. Maduro anunciou que a aprovação da Constituição passará por um referendo. “Ao final do processo, com certeza vou propor de maneira expressa, aberta e taxativa, a nova Constituição. Sairá o referendo consultivo para que seja o povo que diga se está de acordo com a nova Constituição reforçada ou não está de acordo”, disse. As eleições para a Assembleia estão previstas para o fim de julho. Michel Temer, desde sua chegada ao poder, declarou ser contra o governo de Nicolás Maduro. Após o fechamento de Assembleia Legislativa, o presidente brasileiro disse ter “preocupação profunda” em relação ao “povo vene-
Mulher participa do protesto contra o presidente Nicolás Maduro, em Caracas alertando sobre a falta de comida
© Reprodução: AVN
pois a oposição se encontrava dividida. Hoje, durante os 53 primeiros dias de conflito, 53 pessoas morreram. Em janeiro de 2016, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) declarou ilegalidade no funcionamento da Assembleia Legislativa no país, cuja oposição detém maioria absoluta. A declaração se sustentou após a mesma não acatar a ordem do TSJ e dar posse a três deputados eleitos pelo Estado do Amazonas que teriam feito compra de votos. A decisão de empossá-los veio ao entender que a ordem se tratava de uma tentativa de barrar a posse de 112 cadeiras da oposição, que havia conquistado dois terços delas pela primeira vez em 16 anos. No mesmo dia, a base do Governo pediu para que a Assembleia fosse considerada irregular. Assim, o TSJ considerou suas ações nulas. Em março de 2017, as coisas se tornaram ainda mais difíceis para o país. Devido ao desdobramento do desacato do parlamento, a Suprema Corte da Venezuela destituiu a Assembleia Legislativa, dissolvendo-a temporariamente. “Enquanto persistir a situação de desacato e invalidade dos atos da Assembleia Nacional, o Tribunal Constitucional garantirá que os poderes parlamentares sejam exercidos diretamente por esta corte ou pelo órgão que ela disponha”, anunciou a corte. Desde então, a oposição vem acusando Nicolás Maduro de dar um “golpe de Estado” dentro do próprio governo. “É um golpe de Estado. Até agora, o Tribunal anulava as decisões da Assembleia, mas agora assumiu as competências do Legislativo. Fechou o Parlamento. Não é o mesmo, é completamente diferente”, disse Henrique Capriles, líder da oposição à BBC. Como se já não bastasse todo esse caos, o país enfrenta ainda uma seca terrível, causada pelo fenômeno do El Niño: a escassez de água está impactando diretamente o setor de energia elétrica, uma vez que mais de 80% das fontes energéticas são provenientes das hidrelétricas. Sem água, os apagões nos grandes centros urbanos são constantes. O resultado disso foi um drástico aumento na criminalidade, o que levou Caracas a ser considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a cidade mais violenta do continente americano. Em meio aos fortes protestos, Nicolás Maduro assinou um decreto no último 1º de maio convocando uma Assembleia Constituinte com o objetivo de “reformar o Estado e redigir uma nova Constituição”. A medida é considerada radical por muitos e aprofunda as divisões internas no país. A atual Constituição da Venezuela, de 1999, aprovada no governo de Hugo Chávez prevê que o Presidente da República pode convocar uma nova Assembleia Constituinte a qualquer momento, porém não pode barrar o resultado alcançado no processo. A oposição considera a decisão de Maduro como “a consumação do golpe de Estado”. Já o presidente desafiou os opositores dizendo que “se são maioria, que lancem seus candidatos à Assembleia Constituinte”. Serão escolhidos 545 legisladores para trabalhar na nova Constituição. Desses, 364 serão eleitos pelo voto territorial (municípios e estados), 173 por setores sociais (estudantes, trabalhadores, camponeses, pescadores, deficientes, aposentados e empresários) e oito por comunidades indígenas. A inscrição poderá ser por iniciativa própria, de grupos de eleitores ou dos diferentes setores. Os candidatos territoriais precisarão colher assinaturas equivalente a 3% dos eleitores
Presidente Nicolás Maduro
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É um golpe de Estado. Até agora, o Tribunal
anulava as decisões da
Assembleia, mas agora assumiu as competências
Legislativo. Fechou o Parlamento. Não é o mesmo, é completamente diferente” do
(Henrique Capriles, líder da oposição) Julho 2017
zuelano” e espera que, “muito proximamente, haja uma solução pacificadora na Venezuela por meio de eleições livres e com aplicação plena dos princípios democráticos”. Maurício Macri, presidente da Argentina, disse em fevereiro deste ano que “basta de eufemismos. A Venezuela não é uma democracia , estimulando a expulsão do país do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Já o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, apoiou a convocação de novas eleições em busca de “acordos que permitam a expressão popular livre e soberana do povo venezuelano” Ministros da União Europeia pediram, em uma reunião em Bruxelas, para que a Venezuela libere os opositores políticos e respeite os direitos constitucionais. “A violência e o uso da força não resolverão a crise do país. Devem ser respeitados os direitos fundamentais do povo venezuelano, incluindo o direito a se manifestar pacificamente”, disseram. Todo esse cenário negativo culminou na fuga dos venezuelanos de seu país. Sem emprego, eles buscaram refúgio nos países vizinhos e o Brasil é o principal alvo desta retirada em massa. Pacaraíba, uma cidadezinha pacata no norte do estado de Roraima, recebe cerca de 170 refugiados por dia. Dados da Defesa Civil mostram que desde 2014 a imigração aumentou em mais de 124%. Um caso bastante curioso que deixou as autoridades sem reação foi a chegada de uma tribo indígena inteira em janeiro. A “nação” Warao atravessou a fronteira em busca de alimento e está alojada em um Centro de Refugiados localizado em Boa Vista, aguardando a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) analisar a possibilidade da integração dessa etnia com os índios brasileiros. Nem todos os refugiados têm centros de acolhimento para ficarem em Boa Vista. A maioria está morando nas ruas e vivendo de subempregos, já que não possuem visto para trabalho no Brasil. Os poucos que conseguem trabalhar aqui tentam mandar algum dinheiro para os familiares que ainda estão na Venezuela. Inês Porto Guzmán vive em São Paulo há mais de cinco anos. Casada com um brasileiro, ela afirma que só é possível estar trabalhando legalmente no Brasil, porque veio antes do agravamento da crise. Segundo ela, “a Polícia Federal não está facilitando a entrada do povo venezuelano aqui. Fala-se muito de Trump e suas políticas anti-imigração, mas aqui no Brasil a gente sabe que milhares de pessoas são mandadas de volta todos os dias”. Inês tem mãe e irmãos que moram na cidade de Cantaura na Venezuela. Ela manda cerca de R$700 todo mês para a família e diz que desde junho do ano passado não consegue visitá-los porque a TAM, única companhia aérea que fazia voo para Caracas, suspendeu suas operações. “Fica difícil ir de ônibus, são mais de três dias e no momento está muito perigoso atravessar a fronteira, tenho medo de ir e não me deixarem voltar”, justifica. Entender as disputas políticas que impactam a economia e geram crise na Venezuela, é como poder observar o retrato da sociedade de todo o continente abaixo do trópico de câncer. Certa vez o jornalista uruguaio Eduardo Galeano escreveu em um de seus artigos: “Na luta do bem contra o mal, é sempre o pobre que morre.” Diante de tantas outras peculiaridades, que só existem na América Latina, pode-se afirmar que também morrem os elefantes.
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CONTRAPONTO
Política
Lula e Moro, cara a cara em Curitiba Por: Pedro Kosa, Dora Scobar e Thiago Felix
Na capital paranaense, ex-presidente depõe sobre caso do triplex e discursa para manifestantes
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Movimentos que apoiam Sérgio Moro usaram outdoors para protestar na ida do ex-presidente à Curitiba
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Segurança foi reforçada para depoimento do ex-presidente na sede da Justiça Federal de Curitiba
No dia 20 de junho, a defesa do ex-presidente apresentou suas alegações finais quanto ao processo em que é acusado. O caso agora está nas mãos do juiz Sérgio Moro, que pode pedir novas diligências ou publicar a sentença. O
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ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, investigado pelo ministério público em uma ação que faz parte da operação Lava Jato, foi chamado para prestar depoimento ao Juiz Sérgio Moro, no dia 10 de maio, em Curitiba, na sede da Justiça Federal. O encontro dos dois parou a capital Paranaense e repercutiu no resto do Brasil e até na imprensa internacional. Milhares de manifestantes se deslocaram para a cidade para acompanhar de perto o encontro e apoiar um dos lados, do juiz ou do acusado. No entanto, a grande maioria daqueles que foram às ruas na cidade é contra a condenação e a prisão do ex-presidente Lula. Já os movimentos pró Lava-Jato e Sérgio Moro, que lotaram as ruas das principais capitais do país em 2015 e 2016, perderam força em Curitiba. O protesto dos manifestantes caracterizados pelas camisas verde e amarela aconteceu na frente do Museu Oscar Niemeyer e reuniu apenas algumas dezenas de manifestantes com cartazes contra o ex-presidente. Muitos militantes de diversas centrais sindicais em defesa de Lula chegaram em caravanas e acamparam dias antes em frente à sede do INCRA na cidade. Na madrugada antes da data do depoimento, o acampamento foi alvo de rojões que atingiram quatro barracas, ferindo alguns adultos e uma criança. Na quarta-feira, 10, dia do depoimento, os acampantes se deslocaram até os arredores da Justiça Federal, que estava com segurança reforçada – um grande contingente de policiais cercando o local, contando, até mesmo, com atiradores de elite do alto de alguns de edifícios. O ex-presidente chegou no bairro do Ahu, onde fica a sede da Justiça Federal, por volta das 14h, desceu do carro e caminhou junto aos militantes por alguns metros, até o bloqueio da Polícia Militar, onde entrou em outro carro e seguiu para o depoimento. Às 14h30 a assessoria do presidente informou que o depoimento já havia sido iniciado. O ex-presidente é acusado de ter recebido propina da empreitera OAS, por meio de reserva e reforma de um triplex no Guarujá (Litoral de São Paulo), que supostamente seria do petista. No entanto, Lula sempre negou todas as acusações. Embora o depoimento não tenha sido transmitido ao vivo, foi veiculado na íntegra, apenas após o seu término, e o assunto repercutiu nas redes sociais durante o momento. Tanto no Twitter como no Facebook, foram criadas campanhas a favor de Sérgio Moro, e outras a favor do expresidente. Enquanto isso, em Curitiba, milhares de manifestantes a favor do petista se dirigiram para a Praça Santos Andrade no centro da cidade para protestar. Após o fim do depoimento, que durou cinco horas, Luiz Inácio se dirigiu à praça, que estava completamente lotada por militantes, e discursou para todos os presentes. De acordo com o político, sua vontade de governar o país é maior agora do que jamais foi. Durante sua fala, Lula se emocionou e agradeceu a presença de todos que compareceram em seu suporte, pela solidariedade e companhia na luta. Em seu discurso, Lula afirmou novamente que não recebeu propina da empreiteira AOS: “Se tem um brasileiro que está em busca da verdade, sou eu”.
advogado de Lula apresentou documentos que livram o presidente de qualquer ligação com o imóvel. Cristiano Zanin Martins, que apresentou os arquivos, alegou em entrevista que o triplex não é de posse do petista pois a empreiteira
“Não é só um juiz, é um marqueteiro”
Entrevistamos a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) Carina Vitral, aluna do curso de Economia da PUC-SP. CP – Carina, você como representante da UNE, estava em Curitiba a favor do que? Os movimentos sociais foram para Curitiba defender a justiça, porque nós achamos que todos os cidadãos devem ser julgados por seus atos e que a justiça significa preservar o direito de defesa de cada um, inclusive de Lula. O ex-presidente é um cidadão como qualquer outro, que precisa pagar por tudo que possa ter feito, mas que tenha todos direitos de defesa, de justiça, de contraditório, que são da nossa democracia. Então, acho que foi uma coisa muito positiva. Acho também que uma das coisas mais simbólicas foi que Sérgio Moro chegou escoltado pela polícia e Lula chegou andando, caminhando com os movimentos. CP – Você acredita que a Operação Lava Jato tenha alguma parcialidade em relação a tendências político-partidárias? Eu acho que a Operação é completamente parcial. Acho que ela foi instrumentalizada por parte da política que queria derrubar a Dilma e fazer daquilo uma campanha. Ela prova que é parcial quando o juiz tem treinamento de marketing, de coletiva de imprensa, quando grava vídeo para o Facebook, quando convoca a população a se manifestar. Tudo isso mostra que não é só um juiz, é um militante político. CP – Durante esse encontro teve muita polarização, as pessoas em favor de Lula presencialmente em Curitiba, e as em favor do juiz Sérgio Moro um pouco mais pelo Facebook. Você acha que essa polarização já adianta um pouco como vai ser no ano da eleição? Eu acho que tudo o que acontecer até 2018 pode influenciar. Que a sociedade está polarizada, isso ninguém tem dúvidas. Mas até mesmo o que a gente achava que ia ser o grande fato desse final de semestre, o depoimento de Lula, acabou sendo substituído, uma semana depois, pela delação da JBS e o fato do ex-presidente acabou sendo ofuscado por isso. Tem muita coisa pra acontecer até 2018.
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Julho 2017
OAS teria repassado o local para a Caixa Econômica Federal. Mesmo se for condenado por Moro, Lula ainda precisaria ser condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal de Porto Alegre para uma possível prisão. No entanto, o próprio Ministério Público reconhece que é pequena a chance de seu encarceramento, pois poucas provas foram encontradas pelos promotores. Lula é réu em outros quatro processos, inclusive com ligação com a Operação LavaJato. Mesmo com todas acusações, o presidente permanece tranquilo. Em declarações recentes, afirmou não acreditar que será preso por suposta
relação com esquemas investigados na operação Lava-Jato. No entanto, três acusações contra ele, que tiveram origem nas delações da Odebrecht, foram retirados das mãos do juiz Sérgio Moro pelo Ministro do STF Edson Fachin. Os casos foram passados para a justiça do Distrito Federal. Em entrevista a uma rádio, o ex-presidente disse que os procuradores e a mídia inventaram uma grande mentira e agora não sabem sair disso. Sobre sua possível candidatura em 2018, Lula afirmou: “Precisa ter convenção partidária, estamos fora de época. E eu sei que tem gente no Ministério Público tentando abrir processo contra mim por antecipação de campanha”.
Dentre as repercussões do depoimento, cabe também destacar a polêmica envolvendo o nome de Dona Marisa, citada nas declarações de Lula que foram deturpadas de modo irônico para a criação de uma campanha publicitária para o Dia das Mães. Durante o depoimento, a ex-primeira dama, Dona Marisa Letícia, falecida em fevereiro, teve seu nome citado diversas vezes. Ironizando essa parte do depoimento de forma maldosa, as Lojas Marisa lançaram um slogan para sua campanha de Dia das Mães que fazia referência a ela: “Se sua mãe ficar sem presente do dia das mães, a culpa não é da Marisa”. Indignados com a insensibilidade da rede de varejo, grupos se reuniram para protestar em frente a algumas de suas lojas em São Paulo e em São Bernardo do Campo. Pela internet, também houve pedidos de respeito a memória da ex-primeira dama e protestos em relação ao caráter misógino da campanha.
Lula se juntou a manifestantes antes de depor ao juiz Sérgio Moro
Fotógrafo descarta parcialidade do juiz Vagner Leal do Rosário, enviado da revista Veja, fotografou as ruas de Curitiba no dia do depoimento. Registramos, em seguida, algumas de suas opiniões. CP – Da visão de quem estava como repórter nas ruas, o clima das pessoas mudou de antes para depois do depoimento, quando Lula saiu às ruas? Você presenciou algum tipo de conflito entre manifestantes? Não presenciei e nem fiquei sabendo de conflito entre manifestantes. O único momento em que houve um princípio de tumulto, foi quando apoiadores do ex- presidente furaram um bloqueio policial nas proximidades da justiça federal. Momentos depois Lula resolveu descer do carro e saudar seus apoiadores, mas isso não durou mais do que 5 minutos, apesar dos empurrões entre jornalistas e apoiadores, não houve nenhum tipo de conflito. CP – O perfil dos manifestantes simpatizantes do juiz Sérgio Moro e da Lava-Jato divergia muito do perfil dos apoiadores de Lula? Fazendo uma analogia na grande massa apoiadora, sim. A maior parte dos apoiadores do ex-presidente é composta por pessoas simples, pessoas que vivem do trabalho no campo. As pessoas que vieram para Curitiba dormiram no chão em barracas de lona. Porém, os organizadores dessa logística são pessoas mais instruídas, pessoas que sabem como levantar grandes movimentos, essas pessoas por outro lado, ficaram hospedadas em hotéis, alguns em hotéis de luxo. No que tange aos apoiadores da Lava Jato, a grande parte das pessoas são mais instruídas, entendem a Lava Jato por um parâmetro voltado a dados e até mesmo por pareceres jurídicos. Em algumas manifestações no ano de 2016, tive contato com médicos, advogados, engenheiros etc, essas pessoas manifestavam seu apoio e o justificavam sob um ponto de vista mais técnico. O número de manifestantes que prestaram apoio ao ex-presidente Lula, na última quarta-feira (10), foi estimado em 50 mil pessoas, porém elas vieram de diferentes partes do Brasil. Nas manifestações de apoio a Lava Jato o público médio era de 45 mil pessoas, e era público local de Curitiba e região metropolitana. CP – Como você enxerga o posicionamento da revista Veja de publicar na foto da capa de sua última edição a foto de Dona Marisa? No meu ponto de vista, a capa foi baseada nas declarações do ex-presidente. Se ele tivesse falado que o possível comprador foi um de seus filhos, eu acredito que a imagem da capa seria a de um dos filhos. CP – Você acredita que a pressão popular e opinião pública podem influenciar a decisão de Moro em seu veredicto? De forma nenhuma, eu acredito que se o juiz Moro estivesse sendo parcial ele já teria decretado a prisão do ex presidente.
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Julho 2017
No início de maio, o Departamento de Jornalismo da PUC-SP aprovou uma moção de repúdio à revista Veja, em reação à capa de sua edição 2.530 (17.mai.2017). Seguem trechos da moção: “A capa traz a reprodução de uma foto em preto e branco de dona Marisa Letícia, ex-primeira-dama e esposa do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, morta em 3 de fevereiro de 2017, com a manchete ‘A morte dupla’ e uma legenda ‘explicativa’: ‘Em seu depoimento ao juiz Moro, Lula atribui as decisões sobre o tríplex no Guarujá à ex-primeira-dama, falecida há três meses’. O que há de errado em atribuir à própria esposa e companheira uma decisão qualquer que afete a vida da família? Nada, absolutamente nada – a menos, é claro, que a revista parta da premissa de que as supostas “decisões” atribuídas a dona Marisa tenham envolvido ações ilegais, e que Lula tenha se aproveitado do fato de que sua mulher está morta para jogar-lhe o peso da responsabilidade por tais supostas ações. A revista, portanto, já fez o seu julgamento. Já lavrou a sentença condenatória: Lula adquiriu o tríplex como propina, e para se livrar da cadeia manchou a reputação de dona Marisa. Não contente com se antecipar à Justiça, assumindo o lugar do júri e do carrasco, a revista ainda se arroga o direito de interpretar as motivações mais íntimas de Lula, e expor a sua figura à execração pública da forma mais vil, covarde, inaceitável e desumana. (...) Quando todos achavam que nenhuma vileza superaria a capa da própria revista Veja de 26 de abril de 1989, dedicada ao cantor Cazuza – “uma vítima da Aids agoniza em praça pública” –, a revista prova, mais uma vez, que não há limites para a patifaria, para a infâmia e a ignomínia.”
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Jornalismo da PUC repudia a revista Veja
CONTRAPONTO
Literatura
O escrevinhador dos invisíveis
Por: André Vieira, Giulia Villa Real Seabra e Julia Castello Goulart
Grande filósofo da literatura moderna, Antonio Candido lutou durante toda sua vida por um país menos desigual
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Antonio Candido, um homem que revolucionou a crítica literária no Brasil Davi Arrigucci Jr., amigo pessoal de Candido, faz discurso na USP em sua homenagem
© Davi Arrigucci Jr.
oi na fria madrugada do dia 12 de maio, em São Paulo, que o grande sociólogo, político, crítico literário, pai, amigo e companheiro, Antonio Candido, nos deixou aos 98 anos. De acordo com Marina de Mello e Souza, uma de suas filhas, em declaração dada ao jornal Folha de S. Paulo, Antonio Candido tinha uma hérnia de hiato no estômago e havia sido hospitalizado por não ter se sentindo bem. O velório aconteceu no mesmo dia do falecimento do crítico literário, no Hospital Albert Einstein, e sua cremação aconteceu em uma cerimônia particular reservada aos familiares. Antonio Candido foi sociólogo e crítico literário prestigiado no país, tornando-se livre-docente de Literatura em 1945 e doutor em Ciências Sociais em 1954. Passou quatro anos como professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), cargo que foi ocupado por ele em 1974. Foi também professor-emérito da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor honoris na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor honorário do Instituto de Estudos Avançados na USP. Além da sua influência na área acadêmica e política, Antonio também é colecionador de importantes prêmios literários: Prêmio Camões (1998), Prêmio Internacional Alfonso Reyes (2005, México) e também foi vencedor em quatro ocasiões do Prêmio Jabuti, de grande importância nacional (1960, 1965, 1993, 1966). Para muitos que estavam na cerimônia em sua homenagem na última sexta-feira de maio, no auditório Nicolau Sevcenko (USP), Antonio Candido era um intelectual completo e um ser humano singular. O escritor e também crítico literário, Davi Arrigucci Jr., um dos que compartilharam suas vivências com o escritor, leu um relato preparado especialmente para o evento. “A esta altura, dizer que Antonio Candido foi um grande homem e um dos intelectuais mais completos que o Brasil já teve exprime apenas o reconhecimento geral. Pela lucidez, pelo vasto saber, pela escrita fina e clara, pela fala clara, pela coerência das ideias, pela retidão da conduta, pelo empenho contra as desigualdades sociais, pela luta pelo socialismo democrático, pelo desprendimento pessoal, pela força humanizadora que imprimiu tudo que fez pela cultura e pela educação no país, é de fato o portador dos mais altos valores que atingiu o espírito crítico na universidade brasileira a qual dedicou à sua vida”. Crítico literário – Uma das maiores obras e mais conhecidas de sua crítica literária, foi o livro Formação da Literatura Brasileira (1959) que traça o caminho e os principais momentos decisivos que deram origem à literatura nacional. A edição completa do livro, que também pode ser encontrada por volumes, contém 800 páginas. Além de apresentar as fases da literatura brasileira, como o romantismo, o realismo e o modernismo, o pensador também cita escritores importantes para a nossa literatura como Machado de Assis, expondo seus conceitos propostos para seus estudos e seleções que o proporcionaram compor essa obra.
© Davi Arrigucci Jr.
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... sua própria obra e sua personalidade crítica encarnam a síntese histórica do que houve e há de melhor em nossa
Machado de Assis. Soube perceber não só as linhas de força vivas e atuantes de nosso sistema literário, desde sua formação, mas também os valores novos do presente em notável equilíbrio e agudeza: nele a justa medida do justo parece emanar do exato poder de iluminação.” tradição desde
(Davi Arrigucci Jr, crítico literário e professor)
Para o seu amigo íntimo e também crítico literário, Davi Arrigucci Jr., suas obras de teorias literária são incomparáveis: “Em primeiro lugar porque é um leitor fora do comum, cujo olhar sensível e implacável capta todo detalhe significativo do texto, sem perder a mobilidade que lhe dão a memória e a compreensão histórica (...). Depois, porque sua própria obra e sua personalidade crítica encarnam a síntese histórica do que houve e há de melhor em nossa tradição desde Machado de Assis, de modo que soube perceber não só as linhas de força vivas e atuantes de nosso sistema literário, desde sua formação, mas também os valores novos do presente em notável equilíbrio e agudeza: nele a justa medida do justo parece emanar do exato poder de iluminação”. Muitos dos que acreditam que o essencial das críticas literárias de Antonio Candido é seu dom especial, quase um “poder de iluminação”, de tentar entender a literatura de escritores clássicos, se surpreendem. O músico e compositor brasileiro, José Miguel Wisnik que também estava presente na cerimônia em sua homenagem na USP, afirmou sobre Antonio Candido que “ele começava a falar como Mário de Andrade e aí fazia seu “módulo” de Mário de Andrade”. Wisnik ainda completou: “são coisas incríveis de sua dimensão ‘romanesca’ que,
no entanto, ele mesmo dizia não possuir essa ‘transfiguração’ propriamente ficcional, mas na verdade se tratava de uma capacidade de uma observação muito singela e incorporada”. Para a professora de Literatura Francesa na Universidade do Chile, Ana Pizarro, que também esteve presente na homenagem, as obras de Antonio Candido já fazem parte e ficarão na história da literatura brasileira e de toda a América Latina: “Acredito que a ausência de Antonio Candido é algo que se sente no mundo porque ele era um ‘ponto certo’ do problema, ele se situava exatamente onde se deveria situar e propunha as mais mirabolantes propostas e soluções”. Pizzaro ainda lembra que “por ser um homem excelentíssimo em diversas áreas, as expectativas que giravam em seu entorno - as cobranças - eram muito altas e, ele nem sempre podia agradar a todos, no entanto, era crítico, fino e muitíssimo inteligente. É imprescindível dizer que seus pensamentos e suas obras terão um lugar permanente na história humana e na sociedade brasileira de um modo geral, ressaltando o grande homem que foi e as ferramentas que forneceu a seu povo e à humanidade.”
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Julho 2017
Vida política – Além de sua agitada vida como intelectual e acadêmico no Brasil e na
que dois anos mais tarde ficaria conhecido como o Partido Social Brasileiro (PSB). Crítico assíduo do capitalismo “desumano” e grande entusiasta das conquistas sociais adquiridas pela lógica socialista, Candido acreditava que “o pequeno grau de igualdade conquistado no mundo foi obtido graças às lutas do socialismo e à organização própria das pessoas, a exemplo de direitos trabalhistas como as férias e a jornada diária de oito horas”. Para Ana Pizarro, Candido constituiu, por meio de suas obras e críticas literárias, uma intensa resistência ao regime de exceção presente na ditadura brasileira. “É evidente que Antonio Candido teve uma grande importância em sua militância política tanto para o Brasil quanto na América Latina, principalmente por fazer uma literatura não mais a exemplo de um espelho imutável da realidade, mas sim como um símbolo da realidade que causa empatia sobre diversas causas sociais, que põe problemas com profundidade e emoção. No entanto, não se tratava unicamente de uma literatura militante do tipo ‘pátria ou morte’, se
trata na verdade de uma literatura como uma forma de análise da realidade, de como a arte põe seu olhar sobre o mundo.” Já o Deputado Federal, Ivan Valente (PSOL) que acompanhou a homenagem a Candido nos seus instantes finais e também foi um de seus companheiros de militância vai além e declara: “Acho que o mais importante na figura de Antonio foi ter feito da literatura uma interpretação do Brasil. Ele é o intérprete do Brasil. Ele na literatura e Florestan [Fernandes] na sociologia. Os dois são importantíssimas figuras para o país porque além de um enorme cabedal do conhecimento da literatura e na sociologia, eles foram políticos altamente engajados nas causas sociais.” Ainda segundo Valente, a curiosa figura de Candido, que foi desde um dos fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores) até crítico literário, configura aquilo que podemos chamar de “intelectual orgânico”: “Candido é aquela pessoa que consegue ser um intelectual de porte e ser, ao mesmo tempo, um baluarte da defesa de uma universidade pública gratuita, de qualidade e laica”.
O Deputado ainda aponta que “além dele [Antonio Candido] ter um imenso conhecimento sobre literatura e a interpretação da literatura ligada a um país marcado pela escravidão, ele fortalece aquilo que você pode chamar de um intelectual orgânico: os intérpretes da história, os conhecedores de nosso imaginário. A magnitude de Antonio Candido está na sua capacidade de ter formado gerações de pensadores, de maneira crítica, de maneira ampla e de maneira não sectária nesse quase um século de vida”, completa o deputado. A vida de Antonio Candido revelou um intelectual pioneiro em diversas áreas do pensamento, com um espírito revolucionário e irrefreável, buscando incansavelmente novas formas de explicar nossa sociedade. Um espírito que raramente podemos ter o prazer de conviver, e que não raramente sentimos falta no atual mundo acadêmico, político e sobretudo, da crítica literária. Com essa matéria, o jornal Contraponto faz sua homenagem a Antonio Candido.
© Davi Arrigucci Jr.
USP promove evento para homenagear o crítico literário Antonio Candido
“
A magnitude de Antonio Candido está na sua
capacidade de ter formado
gerações de pensadores, de maneira crítica, de maneira ampla e de maneira não sectária nesse quase um século e vida.”
(Ivan Valente Deputado Federal pelo PSOL e amigo pessoal de Candido)
América Latina, Antonio Candido teve grande importância na intifada política contra o Estado Novo de Getúlio Vargas. Empreendeu grande resistência, por meio da literatura e do meio universitário, contra ditadura e seus temerosos Anos de Chumbo. Foi uma figura fundamental no período da reabertura democrática brasileira, tomando não só o protagonismo em causas sociais Brasil afora, mas, também, apoiando diversos intelectuais do mundo universitário como Paulo Freire e Florestan Fernandes e outras grandes figuras da mídia e da resistência contra a ditadura. Seu caminhar político começa logo ao ingressar na USP, no fim da década de 40, quando à época ainda sonhava em ser “doutor” e advogar por aqueles que pouco tinham. Ainda em 1939, Candido desiste de seguir o sonho do pai e se matricula em Ciências Sociais, onde conhece Paulo Emílio Salles Gomes, Germinal Feijó, Paulo Zingg e Antônio Costa Correia. Filiou-se ao Grupo Radical de Ação Popular, coletivo que tinha um jornal intitulado Resistência que era amplamente contra o regime ditatorial de Getúlio e as políticas empregadas pelo Estado Novo. Em 1945, após o fim do Estado Getulista, funda juntamente com outros intelectuais da época o Esquerda Democrática, Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Entre a política e a literatura Antonio Candido de Mello e Souza foi um professor universitário, escritor, sociólogo, com uma queda assumida por política e crítico literário, preferindo sempre que se referissem a ele por esse último, que revolucionou a forma de se pensar nossa sociedade. Nascido no Rio de Janeiro, dia 24 de julho de 1918, se mudou com apenas três anos para a cidade de Santa Rita de Cássia, Minas Gerais, onde viveu até seus 11 anos, quando se mudou para Poços de Calda também em Minas. Filho do médico Aristides Candido de Mello e Souza e de Clarisse Tolentino de Mello e Souza, o futuro intelectual não frequentou a escola durante o primário tendo aulas em casa com sua mãe. Passou a frequentar o ensino regular apenas quando iniciou o antigo ginásio em Poços de Calda, concluído em 1935, no interior de São Paulo, em São João da Boa Vista. O já formado Antonio Candido iniciou sua incidência em política, que passou a ser intrinsecamente ligada à sua obra e vida pessoal, enquanto fazia um curso preparatório entre 1937 e 1938 no Colégio Universitário da Universidade de São Paulo (USP). Em pleno governo de Getúlio Vargas, militou através do grupo clandestino Grupo Radical de Ação Popular, o qual colaborou para a fundação, contra a política varguista do Estado Novo. Em 1939 Candido ingressou na Faculdade de Direito da USP, que não finalizou, porém era exigida pelo pai para que ao mesmo tempo pudesse fazer o curso que realmente queria, o de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Iniciou sua carreira como crítico literário em 1941, com a criação da revista Clima, em conjunto com, entre outros, o crítico de teatro Décio de Almeida Prato, o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes e a ensaísta Gilda de Mello e Souza. A revista produziu 16 números entre o ano de sua criação e 1944 e revelou um grupo de intelectuais de peso, que, juntamente a Candido, iniciaram uma linha de pensamento cultural que influencia gerações até os dias de hoje. Candido casou-se com Gilda em 1943, com quem teve três filhas: Ana Luisa e as atuais professoras de história da USP, Laura e Marina de Mello e Souza. Gilda faleceu em 2005. Ainda nos anos 40, seu nome como crítico literário passou a ser mais conhecido quando começou a escrever para jornais como a Folha da Manhã e o Diário de São Paulo. Sua longa e marcante carreira universitária teve início em 1942, quando foi assistente do professor de sociologia Fernando de Azevedo. A partir daí, o intelectual se aprofundou na área acadêmica, se tornando livre-docente em Literatura Brasileira pela USP no ano de 1945, com a tese “Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero” e doutor em Ciências Sociais em 1954 com a tese “Os Parceiros do Rio Bonito”. Lecionou em diversas importantes instituições: Faculdade de Filosofia de Assis, atual Unesp, de 1958 a 1960 como professor de Teoria Literária, Universidade de Paris, de 1964 à 1966, Universidade de Yale em 1968 e a própria FFLCH, onde se formou e se aposentou, de 1960 a 1978, como professor de Teoria Literária e Literatura Comparada. Posteriormente a sua aposentadoria continuou a ser orientador de pós-graduação na FFLCH. Em 1959 escreveu sua mais conhecida obra, Formação da Literatura Brasileira em que mostra com fervor sua genialidade não só como crítico literário, mas como um verdadeiro pensador da formação dos sistemas culturais brasileiros, usando de sua destreza para ligar fatos históricos à forma de produção da estética moderna, no âmbito da literatura. A índole política de Candido, indispensável para captar plenamente sua personalidade, levou sua militância ativa à criação da União Democrática Socialista e à adesão à Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro (PSB), juntamente com seu companheiro de militância e amigo Sérgio Buarque de Holanda. Candido chegou a se candidatar a deputado pelo PSB em 1950, recebendo pouco mais de 500 votos. Por fim, em 1980, também ao lado de Buarque, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).
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Romance francês nunca mais foi o mesmo. Em Ilusões Perdidas, Honoré de Balzac conta, de forma meticulosa e verossímil, os meandros da vida privada aristocrata francesa do século XIX a partir da ótica e das experiências do jovem Lucien Chardon, na província e na capital francesa. Uma forte narrativa em terceira pessoa em que os costumes são tecidos no conjunto de três capítulos: “Os dois poetas”, “Um grande homem da província em Paris”, e “Ève e David”. Além deles, as sensações, a trama psicológica e temas que bordeiam um certo “orgulho e preconceito” traquejam o célebre livro de Balzac. A questão da imprensa na obra é atemporal. Atualíssima. Os jogos de poder exercidos nas corporações de mídia, além dos riscos e dos percalços que englobam em toda uma manipulação esquematizada, explicitando com minúcias a questão ética do indivíduo como um todo – e também da figuIlusões Perdidas ra do próprio jornalista. A explanação sobre o Autor: Honoré de Balzac universo jornalístico é deveras detalhada – se Editora: Cia das Letras alongando por centenas de páginas do livro –, mostrando os porquês e as particularidades de diversos pontos da profissão; suas complicações e “vantagens”. Balzac identificou, de forma precursora, os rumos da imprensa e suas burocracias, talhando uma crítica consistente. De © Divulgação/Cia das Letras
RESENHA
O narciso balzaquiano Por: Matheus Lopes certa forma, uma previsão para o que a imprensa se tornou hoje em dia. As entranhas do ofício, o glamour da profissão, o ego do jornalista, a vida na cidade grande; todos esses são aspectos tratados na história. O anseio de tornar-se alguém, acompanhado pela glória irremediável, segue o espírito do personagem Lucien Chardon em sua jornada à Paris das Luzes. Na mesma cidade, berço de tantos poetas e poetisas, o provinciano – travestido pela alcunha “de Rubempré” – envolve-se e, com facilidade, contamina-se pelo desejo de pertencer à aristocracia metropolitana. Porém, esse mesmo desejo já repousava no coração do jovem poeta de L’Houmeau. Aos pequenos passos, Lucien desaflorou seus objetivos e, ao mesmo tempo, quase se afogou na volúpia da fama inglória de seu caminho tortuoso; no qual perdeu suas ilusões várias vezes. Ao flertar com a fama, observando a opulência do cotidiano parisiense, o Sr. de Rubempré, rapidamente enganou-se ao negar sua essência. A busca frenética por uma máscara, de diversas maneiras, coroa o célebre trabalho trazido por Honoré de Balzac. Autor de várias crônicas de costumes, Balzac construiu uma obra clássica, antológica.
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u sou o índio Guaraci, que vive nas terras brasileiras, no meio das matas. Moro com o meu povo e somos autossuficientes: caçamos, pescamos, plantamos e construímos nossos próprios instrumentos e moradias. Somos um só corpo, um só espírito. Mas, desde que o homem branco colocou seus pés sob nosso chão, nunca mais tivemos paz e descanso, sempre somos ameaçados de morte ou de perder nossas terras. Nós nos sentimos em constante perigo. O que o branco não entende é que nós somos unos com a Mãe Terra, membros de seu único corpo, e não conseguimos sobreviver sem ela. Até podemos escolher viver na civilização e sermos autônomos da natureza, mas assim só teríamos nossos corpos, pois morreríamos em espírito. Gostamos de ver os curumins brincando na água, os animais nas árvores, bem como todos vivendo em harmonia na mata. Temos o costume de reverenciar todos os seres, abençoar a tudo o que nos cerca e sempre agradecer à Mãe Terra pelo que nos dá diariamente. Acreditamos que nossas energias circulam nela e a dela na gente, numa perfeita comunhão que faz nos conectarmos com a divindade. Essa é nossa verdadeira alegria! Mas sempre chega o homem branco junto com a destruição: suas máquinas, seus instrumentos, suas portas e cercas, seus monstros chamados de hidrelétricas, todas as suas parafernálias que devastam tudo pela
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Por: Helena B Lorga frente, nos expulsam de nossas terras e acabam por deixar tanto a natureza, quanto os povos indígenas semimortos. Isso não pode! Ele não entende que tem que respeitar e cuidar da Mãe Terra, que é a própria Vida. Nós somos a própria natureza, e quando alguém a machuca, na verdade agride a todos, inclusive a si mesmo. Há um mito, do povo Guarani-Kaiowá, que diz que nós reencarnamos várias vezes, em muitas espécies animais e em forma humana, até chegar numa formiga. Ela finalmente sobe na árvore e voa para o céu. Mas como chegaremos até o céu se tirarem nossas terras e árvores? Sem a natureza, nossa vida fica sem sentido e significado.
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CRÔNICA
Nós somos a própria natureza
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ANTENA
Por André Vieira
© Reprodução: Universidade UFScar
■ Rádio da UFSCar tem seus únicos jornalistas demitidos Motivada por uma decisão unilateral da reitoria, a Universidade Federal de São Carlos exonerou, no começo do mês de abril, todos os profissionais da comunicação da rádio da universidade. De acordo com Daniel Monteiro, um dos jornalistas atingidos pela decisão autoritária da direção da faculdade, um dos agravantes do fim do jornalismo na rádio foi a mudança de direção da FAI (Fundação de Apoio Institucional), principal mantenedora da universidade. Monteiro diz: “Desde o princípio, a nova gestão da Universidade Desde 2006, Simone Bezerra e Daniel deu a entender que a comunicação estaria no centro das ações. Monteiro foram responsáveis pela pluralidade Assim, a Rádio UFSCar passou a estar na pauta das discussões. de conteúdo presente na rádio universitária Contudo, essa nova gestão da FAI aparenta possuir uma visão extremamente mercadológica da comunicação, dando ênfase na busca pela audiência e no retorno financeiro que pode ocorrer, em detrimento de valores estabelecidos no projeto editorial da Rádio ou até mesmo da própria identidade que a emissora, ao longo dos últimos nove anos, lutou para estabelecer.” Segundo as diretrizes editoriais da rádio construídas coletivamente pela universidade e a sociedade civil de São Carlos, desde 2006, os objetivos a serem alcançados por meio de uma programação plural e concreta deve ser: “A prática da pauta fundada nas demandas e interesses públicos; da apuração plural e compromissada eticamente; da pesquisa intensa e multifocal; da interpretação informada e transparente”. No entanto, devido à falta de programação jornalística na emissora local 95.3khz, a “nova grade do rádio” oferece hoje apenas a leitura de realeases para a informação do público no começo da manhã e à tarde, e programas humorísticos e de música para o restante do dia.
■ Gazeta do Povo se torna primeira plataforma “mobile first” da América Latina
Em sua 12º edição, o prêmio que prestigia o árduo trabalho realizado pelas comunicadoras nas diversas áreas da profissão, assim como nas diferentes mídias, teve, nesse ano, um total de 36 mil votantes para apontar. RecebeCom mais de 36 mil ram destaque as mulheres mais votos de internautas, notáveis em seus setores de atua 12a edição do Troféu ação ou projeto próprio. Antes Mulher Imprensa da votação ter passado a crivo reconheceu a importância popular, o processo de seleção delas na mídia
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
© Reprodução: Portal da Imprensa
■ Troféu Mulher Imprensa divulga suas vencedoras
das finalistas foi decidido por um júri de excelência, composto de cerca de 30 profissionais de relevância no mercado, que analisaram com paciência e cautela todas as principais jornalistas do ano 2016, até chegarem a um consenso único. As ganhadoras do Troféu Mulher Imprensa 2017 foram: Flávia Meirelles (Forma RP) – assessoria de comunicação, agência; Neivia Justa (Johnson & Johnson) – assessoria de comunicação, corporativa; Adriana Carranca (O Globo/ Estado de S.Paulo) – correspondente internacional; Betina Humeres (Diário Catarinense) – Fotojornalista; Eliane Cantanhêde (Estado de S.Paulo) – colunista jornalismo impresso; Eliane Brum (El País) – como repórter de jornal e como jornalista independente; Naiara Bertão (Exame) – repórter de revista; Andréia Sadi (GloboNews) – repórter de Telejornal; Cecilia Malan (Globo) – comentarista ou colunista de TV; Elisa Veeck (TV Vanguarda); âncora de TV; Vera Magalhães (Jovem Pan) – comentarista de rádio ou colunista de rádio; Marilu Cabañas (Rede Brasil Atual) – repórter de rádio; Carla Bigatto (BandNews FM) – âncora de rádio; Mari Palma (G1) – repórter de site de notícias; AzMina – projeto jornalístico; e por fim Sheila Magalães (Band FM) – diretora ou editora de redação.
Considerado como um dos jornais mais antigos e mais importantes do Paraná, a Gazeta do Povo encerrou seu formato impresso na última quinta-feira de maio e inaugurou, por meio da parceria com a EidosMedia, o primeiro veículo de informações da América Latina centrado na interface do celular. A exemplo da revista Independent, a direção do jornal decidiu inverter a lógica de arrecadação de recursos com anúncios em seu produto “físico” e migrar para a publicidade digital, meio onde o consagrado Fundado em jornal americano New York Times tem aposta- 1919, o popular do e obtido grandes resultados financeiros. jornal do Paraná De acordo com Ana Amélia Filizola, diretora da põe fim as suas unidade de jornais do grupo GRPCOM, do publicações qual a Gazeta do Povo faz parte: “Somos a físicas e aposta primeira plataforma da América Latina a recriar na tendência o jornalismo de impacto, e pensar no mobile se do mobile para adaptando ao desktop em todo o processo de atrair público confecção da notícia”. O grupo afirma que já investiu cerca de R$ 23 milhões com o acordo firmado com a EidosMedia, e que espera obter resultados semelhantes aos outros grandes jornais filiados à matriz Italiana como o Financial Times, Le Figaro, Le Monde e Corriere Della Sera.
Julho 2017
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Antes do término do segundo turno do pleito francês ao Palácio do Eliseu, no dia 7 de maio, diversas agências de notícias francesas, como Le Monde e Libération, todos os grandes canais da televisão aberta da rede France Télévision, e os demais sites de notícias online, formaram uma aliança. Reuniram-se cerca de 250 jornalistas para apuração de “verdades alternativas” que distorcem o debate público. Batizado de CrossCheck, a ferramenta de análise de stream das redes contou com grande ajuda da organização FirstDraftNews e do Google Labs para mapear, analisar e apurar as inverdades contidas em cada canto da web. Entre o fim de fevereiro e começo de maio, a tática envolveu analisar o “GoogleTrends”, ou seja, os temas mais pesquisados pelos internautas em determinado momento. Identificou-se mais de 60 informações falsas, em Composta por mais sua maioria relacionadas à difade 250 jornalistas mações de candidatos durante a da grande mídia corrida presidencial, e fatos polífrancesa, o CrossCheck ticos e sociais que beneficiavam foi fundamental para diretamente a representante da desmentir boatos extrema direita francesa, Maricaluniosos durante a ne Le Pen. Um dos casos mais corrida presidencial curiosos encontrados pela Crossfrancesa Check foi o compartilhamento no Facebook, por mais de 200.000 pessoas, de um vídeo onde há a suposta agressão, na França, de um estrangeiro a duas francesas num hospital. Por mais que o vídeo tenha sido real, havia apenas uma “pequena” desinformação de onde foram tiradas as imagens: aparentemente se tratava de agressão na cidade russa de Novgorod, e não em Paris, como supunha originalmente o vídeo.
© Reprodução: FirstDraft
■ Mídias francesas se unem contra as fake News
CONTRAPONTO
Política
“Não renunciarei”
Por: Por Carolina Zenzen, Emily Moura, Isabella Marzolla e Lucas Freitas
A crítica situação de Temer e as repercussões contra seu governo
Ato no Tuca com a presença do exprefeito Fernando Haddad
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Estamos todos muito preocupados com o
desfecho dessa crise, porque
há várias maneiras de terminar com uma crise”
radas de que houve irregularidades, Temer ainda vai enfrentar uma longa batalha com a justiça, já que a delação da JBS promete revelar outros fatos que podem complicar o presidente mais ainda. O caso da mala de R$ 500 mil entregue ao deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) é o escândalo que pode derrubar o presidente. Além dessa mala de dinheiro, esconder por trás dela um valor de propina infinitamente maior, representa como o país tem um sistema de governo que possibilita inúmeras fraudes e corrupções. Segundo Joesley, os R$ 500 mil eram só uma parte do montante de R$ 480 milhões que seriam pagos ao presidente durante 20 anos, como uma “aposentadoria”. E agora vem a questão: como Michel Temer quer que a população engula a reforma da Previdência com um escândalo desses? E até quando os seus escassos aliados permanecerão ao seu lado? Talvez seja mais fácil se aposentar com essa mesada milionária. Vale ainda lembrar para que lado e como os políticos geralmente jogam no sistema de governo brasileiro; normalmente através de troca de favores, por promessas de mais poder,
Um olhar militante Contraponto – Você acha que a manifestação de hoje, aqui na paulista, vai surtir algum efeito no congresso? Militante – Não tenho dúvida! O congresso está em uma crise gigantesca, e hoje é só o primeiro dia de uma série de atividades que a gente tem que colocar nas ruas para derrubar o governo. CP – Qual você acha que será a atitude do Temer após essas polêmicas que foram soltas ontem, dará uma recuada ou ele vai simplesmente passar por cima? M – Acho que qualquer previsão agora é um pouco precipitada, então, na verdade, acho que vamos esperar para ver a repercussão dos atos. CP – Já tem uma próxima manifestação marcada? M – Então, conforme a organizações em geral, haverá manifestações todos os dias. Já tem uma convocada para um domingo, mas aparentemente são todos os dias. Mas a manifestação central que terá vai ser no dia 24, em Brasília. CP – Se houver eleições gerais, você acha que já tem um possível candidato do PSTU, do PSOL ou do PT? M – Do ponto de vista político, a possibilidade de um outsider na atual situação é grande. Mas posso falar pelo PSTU que, provavelmente, será o Zé Maria levando um programa socialista e no PT, provavelmente, será o Lula. No PSOL eu não sei.
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CO N T R A P O N TO
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
© Carolina Zenzen
om um cenário político caótico há alguns anos, e o vazamento da delação de Joesley Batista, no dia 17 de maio, o Brasil novamente presenciou uma das maiores reviravolta de todos os tempos. O Presidente ilegítimo Michel Temer (PMDB) teve seu frágil poder atingido com manifestações instantâneas que se propagaram por todo o país e pediram pela democracia e pelas “Diretas Já!”. Manifestações em favor de eleições diretas e a saída do presidente Michel Temer foram quase instantâneas ao momento da revelação de seus áudios. Na mesma noite a Avenida Paulista recebeu mais de cinco mil pessoas, que pacificamente reuniram-se em favor da democracia. A mobilização não ocorreu apenas em São Paulo, mas também em Brasília. No teatro Tuca houve o “Ato Pelas Diretas Já!”, organizado pela frente Brasil Popular, que contou com importantes representantes políticos, como o ex-prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad; a atual presidente da UNE, Karina Vitral; João Pedro Stedile, representante do MST; e representantes da CUT. O evento foi aberto ao público e com um grande número de espectadores, sendo o tema central a democracia e a participação do povo. Antes das revelações das irregularidades de Michel Temer, já havia sido convocada uma manifestação em Brasília contra as reformas da previdência e trabalhista, porém, só depois da delação de Joesley foi que a mobilização ganhou mais força e visibilidade. Durante o protesto, manifestantes de vários lugares do país ocuparam Brasília, expressando o descontentamento com o atual presidente. Diante da força do protesto, houve violenta repressão policial e também do exército. As gravações das conversas entre Joesley Batista e Michel Temer revelam fatos estarrecedores e escancaram a relação promíscua entre políticos e empresários que existe no Brasil há muito tempo. O presidente deu o seu aval para um empresário que revela crimes gravíssimos, e tudo isso na calada da noite e sem horário na agenda oficial. Tal acontecimento deveria ser mais do que suficiente para afastar o presidente. Mas no Brasil as coisas não funcionam assim, não está previsto na Constituição um afastamento, e o presidente golpista continua no comando do país. Mesmo tendo sido absolvido no julgamento da chapa Dilma-Temer, apesar das provas escanca-
© Isabella Marzolla
C
Manifestação no dia 18 de maio na paulista contra o presidente Temer
“
Nós acreditamos que a forma correta de
superar a crise é ouvindo a população”
ou por propinas entre políticos, partidos e empresas. Em momentos de decisões importantes, principalmente, isso acaba afetando o futuro e a integridade do país e de seus cidadãos. Por enquanto, Temer continua se agarrando ao apoio mais significativo que lhe resta: o do mercado e de seus aliados, que cada vez mais “pulam fora” de qualquer possível associação ao presidente e seu governo. A sinalização de melhora na economia é a única coisa que ainda o mantém de pé. Mas se o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) tiver mais a falar, não haverá milagre na economia que sustente o tão frágil governo de Michel Temer.
Só o povo resolve a crise Declaração de Haddad sobre o evento no TUCA e a atual situação política: “Brasileiros comprometidos com a democracia. Estamos todos muito preocupados com o desfecho dessa crise, porque há várias maneiras de terminar com uma crise. Há as formas artificiais, inibindo a participação popular e evitando que a população dê a última palavra sobre os importantes temas que estão na agenda política. A outra é a forma democrática: ouvindo a população sabendo quais os rumos que ela própria escolhe para superar esse momento de dificuldade. O que está em jogo hoje não é apenas questão de conteúdo, é a questão da forma. Nós acreditamos que a forma correta de superar a crise é ouvindo a população, portanto, para evitar essa sucessão interminável de escândalos e de crises recorrentes, deve-se chamar a população para opinar sobre as reformas no referendo, ou sobre quem deve ser o presidente da república. Nós entendemos que a crise é tão profunda, e que só o povo tem a legitimidade para resolvê-la. Está tudo sendo resolvido em gabinete e isso não vai solucionar o problema. ”
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