JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP
ANO 18
N0 116 Junho 2018
E D I T O R I A L
PUC Pontifícia Universidade Católica DE SÃO PAULO PUC-SP
Uma embaixada para a tragédia No dia 14 de maio, a embaixada norte-americana de Israel foi transferida da capital Tel Aviv, para a cidade sagrada de Jerusalém. Consequentemente, palestinos e grupos israelenses pacifistas se manifestaram. 58 palestinos foram mortos e cerca de 2.700 pessoas foram feridas, mais da metade por armas de fogo. O confronto entre Israel e Palestina se estende ao longo dos anos deixando diversas mortes. Mortes essas que, se forem postas numa balança, transformam a mesma numa catapulta, devido ao tamanho desequilíbrio. Resoluções justas e equilibradas para ambas nações são quase incogitáveis, pois o mediador dos empasses veste a camisa branca e azul de Israel. Os Estados Unidos, ao transferir sua embaixada para Jerusalém escancara sua preferência e evidencia a necessidade de encontrar um mediador imparcial para a resolução do conflito, que hoje caminha rumo à consolidação de um Estado único judeu, que estrangula as poucas áreas palestinas por meio de seus assentamentos. A transferência da embaixada norte-americana não foi o único motivo para mais de 40 mil palestinos tomarem as ruas. Gaza sofre com a pior crise econômica de sua história, a população enfrenta altos índices de desemprego e passa por um racionamento de energia, que limita os moradores a apenas quatro horas de eletricidade diárias. O episódio não pode ser considerado apenas mais um impasse da conciliação entre Israel e Palestina, e sim mais um episódio do genocídio que é realizado contra os palestinos. Não se pode aceitar que 58 pessoas sejam mortas em um dia de manifestações e que o mediador dos conflitos seja favorável a apenas um lado da moeda. Como disse o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, “o direito a vida deve ser respeitado”.
Reitora Maria Amalia Pie Abib Andery Vice-Reitor Fernando Antonio de Almeida Pró-Reitores Márcio Alves da Fonseca (Pós-Graduação) Alexandra Fogli Serpa Geraldini (Graduação) Marcia Flaire Pedroza (Plan.,Desen. e Gestão) Claudia Cahali (Educação Continuada) Antônio Carlos Malheiros (Cul. e Rel. Com.) Chefe de Gabinete Mariangela Belfiore Wanderley Faculdade de FILOSOFIA, Comunicação, LETRAS e artes faficla Diretor Ângela Brambilla P. Lessa Diretor Adjunto Christiano Burmester Chefe do Departamento de Jornalismo Anna Feldmann Coordenador do Jornalismo Fabio Cypriano
EXPEDIENTE C o n t r a ponto Comitê Laboratorial Luiz Carlos Ramos, Rachel Balsalobre, Salomon Cytrynowicz, Wladyr Nader Editor José Arbex Jr. Ombudsman Victoria Azevedo
SUMÁRIO
truculência
política
jürgen Habernas
Secretário de redação Matheus Lopes Quirino
Trump incendeia o Oriente Médio
pág. 3
“Fake News” são armas políticas e ideológicas ...
pág. 4
A tensa relação entre mídia, esfera pública e Estado
pág. 6
revolta
Movimento estudantil volta à cena nos Estados Unidos
pág. 7
são Paulo
Tragédia no Paisandú deixa moradores sem perspectivas
pág. 8
são paulo
Déficit habitacional atinge 385 mil famílias
pág. 9
virada cultural
Evento anual celebra a diversidade brasileira ...
pág. 10
ensaio fotográfico
“10 anos queimando tudo”
pág. 12
monteiro Lobato
Um país se faz com homens e livros
pág. 14
cannes 2018
Feminismo made in Hollywood chega à França
pág. 16
comportamento
Spotted: o cupido dos puquianos
pág. 18
permanência
Parir não é parar
pág. 19
ocupação
Estudantes paralizam a PUC, por cotas raciais ...
pág. 20
relato
Precisamos de mais humildade mesmo, Juliana
pág. 21
resenha
Pequenas Epifânias dá ao leitor “Lado B” da crônica brasileira
pág. 22
Crônica
Angustia em realidade
pág. 22
Antena
13º congresso do Abraji
pág. 23
contra-ataque
Uma outra festa no subúrbio de Madrid
pág. 24
Fale com a gente Envie suas sugestões, críticas, comentários: contrapontopuc@gmail.com
CO N T R A P O N TO
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Secretaria de produção Débora Bandeira, Thalita Archangelo, Maria Clara Vieira, Raul Vitor e João Abel Editor(a) de fotografia Nádya Duarte
Capa: Ativista leva seu filho à luta na Marcha da Maconha, av. Paulista, São Paulo. Foto: Julia Pestana
PUC Simetria Design Gráfico – projeto/editoração Wladimir Senise – Fone: 11 2309.6321 CONTRAPONTO é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUC-SP. Rua Monte Alegre 984 – Perdizes CEP 05.014-901 – São Paulo – SP Fone: 11 3670.8205 Número 116 – Junho de 2018 Lumen Graph Fone: 11 94708.5762
Junho 2018
CONTRAPONTO
Truculência
Trump incendeia o Oriente Médio Por: Daniel Gateno
Ruptura unilateral do acordo nuclear com o Irã, contra a vontade dos demais integrantes do Conselho de Segurança da ONU, ameaça levar a região a um confronto catastrófico
O
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou no último dia 8 de maio que retirou o país do acordo nuclear com o Irã. O acordo, que segue vigente com França, Reino Unido, Alemanha, China e Rússia diminui as atividades de Teerã para enriquecimento de urânio e alivia as sanções econômicas contra o regime na ONU (Organização das Nações Unidas). A iniciativa segue a promessa do republicano de acabar com o legado do ex-presidente americano Barack Obama, que firmou o acordo com o Irã, considerado uma histórica iniciativa do democrata para acabar com a chance de o regime iraniano possuir armas nucleares. O presidente Donald Trump afirmou, no Twitter, que o acordo deveria servir como proteção para os EUA e seus aliados no Oriente médio, fato que não está acontecendo segundo a casa branca. A decisão de Trump teve acentuada influência do Primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que uma semana antes do anuncio da retirada americana do acordo nuclear fez um pronunciamento onde garantia ter provas do enriquecimento de urânio iraniano com 55 mil arquivos documentados, fotos e vídeos da suposta irregularidade de Teerã. A tensão entre Irã e Israel envolve a fronteira que os israelenses têm com a Síria, no norte do país, onde o regime iraniano tem bases militares e é grande aliado das forças de Bashar Al Assad e da Rússia. Israel afirma ser o principal alvo do Irã numa suposta corrida armamentista no Oriente médio, por isso, quer garantir que Teerã não consiga construir uma bomba atômica. Em vídeo, nas redes sociais, Netanyahu falou sobre a ameaça iraniana: “Há dois dias o aiatolá Khamenei, guia supremo iraniano, expressou a intenção de destruir o Estado de Israel, por isso impediremos que o Irã produza armas atômicas”. Segundo o editorial do jornal americano The Washington Post, o Presidente Donald Trump não agiu de maneira correta ao sair do acordo nuclear com o Irã e apoiado por diversas potencias mundiais: “se Netanyahu tivesse evidencias sobre irregularidades do Irã ele teria exposto completamente para a mídia internacional e não criado um mistério non-sense, mas ele não o fez pois não tem essas evidencias”. O jornal continuou afirmando que Israel não apresentou nada de novo ao serviço de inteligência americano e que o acordo não iria acabar com o enriquecimento de urânio iraniano, apenas diminuí-lo, afirmando que Teerã não infringiu as regras do acordo. Em meio a esta polêmica, Israel atacou quase todas as instalações nucleares iranianas na Síria em resposta a um ataque militar da Guarda revolucionária (exército iraniano) perto das Colinas do Golan, lugar anexado pelos israelenses durante a guerra dos seis dias em 1967. Em análise para o Instituto Brasil-Israel, Samuel Felberg, professor de relações internacionais da USP (Universidade de São Paulo), afirmou que o Irã vem construindo instalações secretas para enriquecimento de Urânio desde 2011: “naquela época, o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica enfatizou os esforços do Irã no
sentido de avançar na obtenção de tecnologia que lhe permitiria produzir um artefato nuclear. Não faltavam indícios de que o programa nuclear do Irã não se destinava exclusivamente ao enriquecimento de urânio para a geração de energia, ou alimentação de equipamentos médicos. O ritmo da produção e a construção de instalações secretas há muito apontavam para atividades que, ao não ser monitoradas pela comunidade internacional, feriam o espírito do Tratado de não- proliferação”. Após a saída do Presidente americano, Donald Trump, do acordo nuclear, o Premiê israelense quer o rompimento unilateral de Reino Unido, Alemanha e França com Teerã. Em recente visita a Berlim, Netanyahu conversou com sua Chanceler alemã, Angela Merkel, e ouviu que a Alemanha não tem intenções de sair do acordo, pois acredita que esta seja a melhor maneira de segurar o ímpeto iraniano em relação a armas nucleares, além disso, segundo o último relatório da Agência de Energia Atômica, o Irã tem cumprido o acordo. A população do estado de Israel está em alerta com possíveis enfrentamentos com o Irã na fronteira com a Síria e com o Hamas (Organização Terrorista Palestina) na região da Faixa de Gaza, porém ocorrem muitas especulações dentro de Israel. Isto é o que pensa Aron Beder,
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Junho 2018
“
O Presidente Donald
Trump não agiu
© Fotos: Reprodução
de maneira correta ao sair do acordo nuclear com o Irã
(...) Se
Netanyahu tivesse evidencias sobre
Estudantes em conflito durante a Batalha da Maria Antônia
irregularidades do Irã ele teria exposto completamente para a mídia internacional e não criado um mistério nonsense, mas ele não o fez pois não tem essas evidencias”
(The Washington Post) israelense de 26 anos que mora em Jerusalém: “Sempre se espalham boatos por aqui, quando estava servindo o exército israelense sempre falavam que iríamos estar em guerra, fato que não passou em nenhum momento durante o meu serviço militar”. Beder afirma que a saída dos EUA do acordo com o Irã pode levar a uma escalada militar na região: “Os Estados Unidos prejudicaram a situação do Oriente médio, se o Irã e a Síria decidirem atacar Israel essa conjuntura pode provocar uma corrida armamentista que só irá dificultar a vida de todos”. Após o anuncio de Trump, o Irã afirmou em carta para a ONU que irá aumentar sua capacidade de enriquecer urânio. A medida foi vista pela comunidade internacional como uma forma de prejudicar os EUA, embora Teerã afirme que esta ação não infringe o acordo que ainda é vigente com França, Inglaterra, Alemanha, China e Rússia. Estes países, que fazem parte do conselho de segurança da ONU junto aos Estados Unidos querem manter a resolução junto ao Irã, contudo temem as sanções do governo americano contra as empresas que negociarem com companhias iranianas e sabem que dificilmente continuarão neste acordo sem negociar novos termos com Teerã.
CO N T R A P O N TO
CONTRAPONTO
Política
“Fake news” são armas políticas e ideológicas de amplo alcance
O
mundo virtual atrai cada vez mais usuários de todas as idades. A velocidade e o volume de informações produzidas e reproduzidas a todo instante são notáveis. Apesar da acessibilidade da internet, há desvantagens que impactam diretamente a realidade social, como as notícias falsas, ou “fake news”, amplamente discutidas atualmente. Desde portais especializados e remunerados por esse tipo de produção até às mídias sociais, com perfis falsos ou páginas tendenciosas, usuários estão sujeitos a interagirem de diversas formas com esse tipo de “desinformação”. Quando compartilhada e direcionada para amigos online com interesses em comum, por exemplo, o alcance de publicações falsas aumenta consideravelmente. “As pessoas propagam mais o que elas acreditam do que os fatos em si. E elas costumam ‘conviver’ apenas entre aquelas que compartilham dos mesmos interesses e posições políticas, econômicas, de direitos humanos ou não”, afirma Pollyana Ferrari, jornalista e autora do livro Como Sair das Bolhas em entrevista ao jornal O Tempo em 8 de abril. A junção das “bolhas” com as notícias falsas foi um dos fatores que levou o jornal Folha de S. Paulo a deixar de publicar em sua página no Facebook em fevereiro deste ano. Segundo o jornal: “Isso [o privilégio à conteúdos de interação pessoal] reforça a tendência do usuário a consumir cada vez mais conteúdo com o qual tem afinidade, favorecendo a criação de bolhas de opiniões e convicções, e a propagação das ‘fake news’”. Qualquer área ou pessoa pode tornarse ambiente e vítima da circulação de notícias falsas. Um exemplo disso é o boato no fim de 2017 que afirmava que a cantora Pabllo Vittar receberia R$ 5 milhões em 2018 por meio da Lei Rouanet. O fato sustentou argumentos políticos contra a lei em questão. “Quando eu comecei a pesquisa, imaginei que a maior parte das ‘fake news’ seria ligada à política, mas elas são uma prática disseminada. Não importa o segmento.”, afirma Ferrari. Essa prática tem reflexos diretos no mundo real, como a decisão e polarização de eleitores. Segundo o relatório “dfndr lab” divulgado neste ano pelo laboratório da PSAFE, “Além de causar prejuízo moral, as informações falsas e distorcidas são capazes de influenciar debates políticos”. Histórico nas eleições – As eleições de 2014 tiveram grande influência das “fake news”. Afetando ambos os lados da corrida presidencial, tanto a esquerda, representada por Dilma Rousseff, como a direita, com Aécio Neves, a decisão que ficou para o segundo turno apoiou-se na internet. Segundo um estudo da DAPP/FGV (Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas), “Robôs, Redes Sociais e Políticas no Brasil”, feito em agosto de 2017, foram identificados mais de mil perfis atuando em prol dos principais campos políticos, via
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Prática atinge esferas políticas, econômicas e sociais com agilidade maior do que são desmentidas por meio de atitudes intencionais ou não Twitter. Para Aécio e Marina Silva, atribui-se 699 perfis, destes, 508 foram criados em dois dias, entre 2 e 3 de agosto. Durante o período de eleição, essas contas geraram mais de 773.703 publicações, uma média de 419 postagens por usuário. A ligação entre candidatos e perfis está configurada segundo o site do Tribunal Superior Eleitoral, que confirma o pagamento de 168 mil reais à empresa Storm Security para prestação de serviços de tecnologia, vinculando a prestadora e o site cujos conteúdos foram compartilhados por robôs. Os serviços contratados por Aécio, segundo o estudo, informam uma origem estrangeira, principalmente vindos da Rússia. Durante a investigação dos perfis associados a divulgação de conteúdo eleitoral foi constatado um padrão de uso de imagens que se associam ao Leste
Europeu, como personagens de filmes, locações e inscrições em russo. Para concorrer à reeleição, a campanha de Dilma Roussef também utilizou dessa “botnet” (rede de robôs) para alavancar sua campanha eleitoral. Após uma decisão liminar do TSE, requisitada por Marina Silva e sua coligação, foi comprovado vínculo entre a empresa Digital Polis, detentora do site “www.dilma.com.br”, e a Polis Propaganda, dona do “www.mudamais.com”. Também foram vinculados à ex-presidente 430 perfis que compartilharam o link do “Muda Mais” e 79 que divulgaram o link de “Dilma”. No entanto, segundo o próprio estudo da FGV, “a análise não identifica a compra de robôs pela campanha de Dilma Rousseff, mas revela a difusão, pelos robôs, de conteúdos de uma empresa prestadora ligada à sua campanha”.
© Reprodução: Jornal O Globo
Por: Larissa Teixeira e Letícia Assis
Marcelo Hodgle Crivella apaga notícia fake após publica-la em sua conta no Instagram
Em números Além das eleições, um estudo da DAPP/FGV (Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas) mostrou que 20% das interações sobre a greve geral de 2017 foram feitas por meio de robôs. A inteligência artificial atua em plataformas, ou mídias sociais, que oferecem uma ligação direta com os usuários. De acordo o relatório sobre segurança digital divulgada pela PSAFE, 2,9 milhões de notícias falsas foram acessadas no primeiro trimestre de 2018. O número representa um aumento de quase 12% em relação ao último trimestre de 2017. A maior circulação, 95,7% dos casos, ocorreu via WhatsApp. A Folha de S. Paulo, em fevereiro de 2018, analisou páginas de notícias falsas e jornalismo profissional no Facebook e quantificou que no período estudado, o engajamento com “fake news” aumentou 61,6% enquanto o outro lado apresentou queda de 17%. Segundo o levantamento, as maiores propagadoras de “fake news”, em média de interações por post, foram “Apoiamos a Operação Lava Jato”, “Partido Anti-PT” e “Folha Política”, as três situadas na esfera política. Em março deste ano, uma pesquisa da Aos Fatos revelou que para os 42,7% dos entrevistados o fator predominantemente duvidoso em notícias é a ausência de fontes ou citações. Além disso, foi constatado também que a motivação para geração de “fake news” baseava-se em audiência (38,6%), seguida de ganho político ou financeiro (36,5%).
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Junho 2018
“No Brasil, no estudo da FGV, não foram encontradas postagens com fake news. Os tuítes analisados tinham outro tipo de informação: frases positivas sobre Dilma, Aécio e Marina, e, também, reproduções de links de sites de campanha dos três candidatos. Ou seja, os robôs falavam bem dos políticos que eles ‘defendiam’”, afirma Marco Aurélio Reudiger, diretor de Análise de Políticas Públicas de Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esses perfis automatizados, ao compartilhar conteúdos manipulatórios nas redes sociais, conseguem inflamar os posicionamentos mais radicais e orientar a opinião pública para o debate em torno de questões sociopolíticas. Através da distorção dos fatos, divulgaram publicações elogiando seus candidatos e os colocando nos “trending topic”, aumentando sua popularidade. Uma investigação da BBC Brasil revelou o uso de pessoas reais para controlar os perfis falsos por parte de uma empresa situada no Rio de Janeiro, a fim de manipular a opinião pública. Em entrevista, um jovem relatou ao jornal que recebia cerca de 1,2 mil por mês para controlar essas contas e divulgar, via Facebook e Twitter, conteúdo relacionado à campanha eleitoral dos candidatos. Ainda segundo o entrevistado, os perfis eram feitos com fotos roubadas, nomes e cotidianos inventados para se passarem por reais e influenciar ativamente o debate político durante as eleições de 2014.
“
Após quase quatro anos da última eleição, os efeitos dessas notícias falsas ainda inflamam debates. Marina Silva, candidata pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) em 2014, declarou em abril deste ano, em um debate com líderes sindicais da UGT (União Geral dos Trabalhadores), seu descontentamento com a postura da ex-presidente Dilma na última disputa presidencial: “Costumo brincar que as ‘fake news’ não foi o [presidente dos EUA, Donald] Trump que inventou. Foi João Santana, na campanha da Dilma, porque me pintaram como se fosse uma exterminadora do futuro”. Para 2018, a legislação já prevê a regulamentação a respeito da campanha eleitoral na internet. Com o financiamento público previsto para essas eleições, tal determinação pode abrir caminho para a utilização de robôs, comprometendo o debate público e o processo político-eleitoral. As respostas – A possibilidade de impulsionar publicações financeiramente para públicos específicos é parte do debate sobre o mercado online que lucra a cada clique. Mudanças recentes em redes sociais visam combater as notícias falsas com base em denúncias e checagens de publicações. Pollyana Ferrari, em entrevista para a Época Negócios no dia 2 de abril, destaca a utilização de robôs em resposta à disseminação rápida desses conteúdos: “Ao mesmo tempo em que bots são usados para propagar ‘fake news’,
existem os bots de checagem e os algoritmos que nos ajudam a checar mais rápido. Quantos checadores humanos precisaríamos para dar conta de um debate ao vivo? É preciso uma máquina, com inteligência artificial envolvida”. O Facebook divulgou em março uma parceria com as agências de checagem de notícias Aos Fatos e Lupa para verificar denúncias de notícias e remover perfis falsos da rede social mais utilizada no mundo. A segunda maior, o WhatsApp, ainda não tem uma solução direta. Depois da justiça brasileira suspender o uso do aplicativo algumas vezes, não há uma atividade que verifique as mensagens criptografadas trocadas pelos usuários. A privacidade é um dos pilares do aplicativo hospedeiro de tantas informações pessoais e boatos transmitidos individualmente ou em grupos. Em relação ao governo, o Tribunal Superior Eleitoral montou um conselho, que tem entre seus objetivos estabelecer um projeto de lei para tratar sobre “fake news”. Um representante do Centro de Defesa Cibernética do Exército, um representante da Agência Brasileira de Inteligência e uma equipe da Polícia Federal compõem as operações. Além disso, o jornal O Globo divulgou em abril que o TSE lançará um portal para combater notícias falsas nos próximos meses. A atitude contará com a colaboração de agências de checagem de fatos, que ainda não foram reveladas.
As pessoas propagam mais o que elas acreditam
do que os fatos em si.
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elas costumam ‘conviver’ apenas entre aquelas que compartilham dos mesmos interesses e posições © Pesquisa Aos Fatos
políticas, econômicas, de direitos humanos ou não.”
(Pollyana Ferrari, jornalista e autora do livro Como Sair das Bolhas) Números relacionados a origem de informação e motivação das “fake news”
Donald Trump: um dos maiores beneficiados das ”fake news”
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Além de causar prejuízo moral, as informações falsas
e distorcidas são capazes de
influenciar debates políticos.”
(Relatório do laboratório da PSAFE, “dfndr lab”)
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A vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton nas eleições de 2016, se devem graças à propagação das “fake news”. A campanha que deu vitória ao republicano, contou com notícias falsas que ocuparam grande espaço no debate eleitoral, beneficiando Trump e prejudicando Hillary Clinton. Segundo o estudo “Selective Exposure to Misinformation: Evidence from the consumption of fake news during the 2016 U.S. presidential campaign”, feito por três cientistas políticos dos EUA, publicado em 2018, mostra que as notícias falsas possuem maior aderência entre eleitores com posicionamento mais extremos. Dos 2.525 usuários que aceitaram ser monitorados anonimamente, 65% dos visitantes são conservadores. Paul Horner, conhecido por ser um dos maiores difusores de notícias falsas que beneficiaram Trump, lucrava cerca de US$ 10.000 por mês divulgando esse tipo de conteúdo. Em entrevista ao jornal norte-americano Washington Post, Horner afirma: “Ninguém checa os fatos atualmente, e foi assim que Trump foi Eleito [...] ele só falava tudo que queria, e as pessoas acreditavam, e quando as coisas que ele falava se mostraram falsas, ninguém se importava porque eles já haviam aceitado aquilo. Isso é realmente assustador. Eu nunca vi nada como isso”.
Junho 2018
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CONTRAPONTO
Jürgen Habernas
A tensa relação entre mídia, esfera pública e Estado Por: Vitor Hugo Gonçalves
Obra do filósofo alemão, que completa 89 anos, permite compreender melhor a influência exercida pelos meios de comunicação no processo de formação da opinião pública e a sua relação com a democracia
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O governo vinha manipulando o
povo e seus domínios em respeito ao © Reprodução
desenvolvimento da guerra. Interesses particulares confrontando diretamente a opinião pública, na qual elementos de manipulações e mentiras geradas por um grupo restrito, enganavam a uma nação” © Reprodução
esfera pública, dimensão na qual assuntos de interesses gerais, públicos são discutidos por agentes privados e sociais, é a responsável direta pela formação da opinião pública. Ela é a expressão máxima da participação popular na criação, controle, execução e crítica das diretrizes de uma sociedade. Sua atuação se legitima através da força oriunda de todo o corpo social-civil em direção ao governo, pressionandoo de acordo com seus anseios. Para Jürgen Habermas, filósofo alemão e último representante da Escola de Frankfurt que completa 89 anos dia 18 de junho deste ano, a esfera pública é de fato uma dimensão do social que atua como mediadora entre o Estado e os cidadãos – isso se as concepções e análises forem julgadas mediante contextos sócio históricos e culturais, como, por exemplo mais recente, a sociedade burguesa. Esse meio, diz o filósofo, continua a ser um princípio organizador de nossa ordem política. A noção de corpo público, assim sendo, só funcionará integralmente quando houver, de maneira irrestrita, a comunicação e o diálogo entre todos os indivíduos. Para isso, a transmissão de informações em grandes dimensões é dada por um meio específico: a mídia. Através dos meios de veiculação de informações e mensagens, sobretudo do jornalismo, os pareceres públicos são disseminados rapidamente, alcançando distintas audiências e colocando a discussão dos fatos em foco, em pleno progresso. Hoje, os jornais, revistas, rádios, programas televisivos e a internet (redes sociais, blogs e afins) conformam o que se chama de “mídia da esfera pública”, capaz de estimular debates, levantes e convenções sobre qualquer assunto pertencente ao âmbito comunitário. Para que todo esse processo ocorra, tem de haver liberdade de expressão, de reunião e de associação. Isto posto, o acesso a tais direitos deve ser garantido a todos os cidadãos. Para elucidar a realidade e compreendê-la efetivamente, pode-se tomar como experiência o filme norte-americano, dirigido por Steven Spielberg, The Post – A guerra secreta. A trama desenrola-se no ano de 1971, onde o jornal The Washington Post, seguindo o The New York Times, publica documentos secretos do governo estadunidense, vazados por um de seus analistas, em relação à Guerra do Vietnã, sendo possível depreender, claramente, como o governo vinha manipulando o povo e seus domínios em respeito ao desenvolvimento da guerra. Interesses particulares confrontando diretamente a opinião pública, na qual elementos de manipulações e mentiras geradas por um grupo restrito, enganavam a uma nação. A defrontação no espaço social é retratada também em uma disputa jurídica entre a Justiça Federal – gravemente afrontada pelas denúncias – e os jornais. Uma mostra valiosa sobre a imprensa a serviço da informação social e da laboriosa luta pela liberdade de expressão, atendendo, assim, necessidades reais, relevantes, a todo o setor comunitário. Pode-se dizer que os elementos retratados, conflituosos entre as duas esferas, representam
© Reprodução
A
uma atual conjuntura mundial. Consolidando-se no fim da Idade Média, sobretudo com o crescimento da classe burguesa (consequência de um longo e profundo processo de transformação social), a esfera pública é o resultado de uma luta pela descentralização total do absolutismo, objetivando a modificação de um governo autoritário em um sistema administrativo racional, impulsionado pelo Iluminismo e pela argumentação política. Para Habermas, as duas esferas são como lâminas sobrepostas, onde uma articula e reflete na outra, não havendo uma demarcação de conjuntos fixos que definam ambas, apenas interesses. São esses interesses que as colocam em conflito. Reiteradamente, vive-se em uma sociedade repleta de elementos midiáticos (bem comum), responsáveis por conduzir e moldar interesses. Em determinadas ocasiões, visões gananciosas, fundamentadas em um sistema capitalista, utilizam-se desses fundamentos, à princípios públicos, para a promoção de aplicações particulares. Uma inversão sutil, onde,
exemplificando, um jornal preocupa-se mais em defender anseios de seus editores, do que realizar sua função de comunicador social. A mídia é, simultaneamente, o maior modelo do conflito direto da dicotomia entre o privado e o público. Aí está a real importância dos princípios de argumentação, alegação e discurso que, tomados pela liberdade de expressão, fornecem uma troca justa e interessante a todos. Mais que corpo, ela é espírito. A esfera pública denomina-se como a essência da democracia, um verdadeiro “termômetro”. Sua força é capaz de modificar as mais profundas e clássicas pilastras sociais. Habermas sintetizou essa esfera social como experiências que primeiro afetam o âmbito pessoal, as histórias de vida. Depois, elas afetam os círculos familiares, os grupos de amigos, a vida cotidiana, e então elas ecoam no domínio público, numa discussão pública acerca de uma problemática em comum. Ela é, de fato, o coração da progressividade social.
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CONTRAPONTO
Revolta
Movimento estudantil volta à cena nos Estados Unidos Jovens protestam contra a liberdade irrestrita de portar armas, retornando uma tradição de luta pela democracia
Por: Lais Morais e Giordana Velluto
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Estudantes da UC Berkeley em manifestação contra a guerra, 1968
Estudantes rezam pelas vítimas do massacre no Colégio Parkland, na Flórida, 2017
Panteras Negras em protesto contra a guerra do Vietnã, Washington, 1969
© Fotos: Reprodução
© Saul Loeb/14.mar.2018/AFP
© Reprodução: Carolyn Cole/Los Angeles Times
ovimentos estudantis são considerados tradicionalmente forma de ativismo dos jovens em busca de uma mudança no sistema educacional e na sociedade, tendo, assim, sua origem junto ao ensino público. Nos Estados Unidos o primeiro se deu em 1920 no campus da faculdade Fisk, onde as regras impostas tinham o intuito de eliminar a identidade negra. Os estudantes protestaram contra o presidente, fazendo o mesmo renunciar. Esse primeiro movimento conquistou uma repercussão tão grande que fez com que jovens negros de outras instituições estudantis questionassem seus posicionamentos também, dando início ao movimento estudantil estadunidense que é crescente até hoje. Foi em 1968 que o movimento estudantil se deu em uma das maiores escalas já vistas, com o espírito contestador da geração militante daquele ano e impulsionou uma contracultura radical entre estudantes: realizou-se a mais longa greve estudantil na história do país, de 6 de novembro de 1968 a 21 de março de 1969, no Colégio Estadual de San Francisco. Com o objetivo de aumentar o acesso ao ensino público, atingindo também jovens do terceiro setor. Essa atmosfera revolucionária, de protestos e reivindicações se deu até meados de 1970 quando o movimento Black Power inspirou a segunda onda do feminismo e do movimento LGBT. Essas lutas militantes foram resultado da colisão de forças sociais que contestavam social e economicamente, e por sua vez se desencadearam a partir do enorme crescimento econômico dos Estados Unidos no período pós-guerra. Os atuantes eram alunos e povos oprimidos, bem como o principal grupo era o Estudantes para uma Sociedade Democrática (SDS), que se organizou para lutar pelos direitos civis e que fazia trabalho voluntário para o desenvolvimento econômico de comunidades pobres, além de impulsionar os protestos contra a guerra do Vietnã. A história dos movimentos estudantis nos Estados Unidos é extensa e impactante, e, com o aumento do número de faculdades a partir de 1960, isso só se intensificou, pois pessoas das camadas mais populares tiveram acesso à esse tipo de ambiente, onde se pode criar um forte senso comum, crítico e gerar ações coletivas. Com a ocupação do escritório do Presidente da Universidade Columbia – Nova Iorque, em 1968 foi apresentado o espírito contestador entre estudantes naquele ano de rebelião. Outra corrente de extrema importância foi o movimento negro em apoio ao estudante Jack Weinberg, que havia sido preso em uma das manifestações que aconteceram no campus, levantando a bandeira “Movimento pela Livre Expressão”. E quanto mais as universidades tentavam conter os protestos, de forma até a suspender os líderes dos movimentos, mais os alunos lutavam, até conquistar a vitória, sem pensar em voltar atrás. Os movimentos estudantis inspiraram artistas, políticos, jornalistas e esportistas a se posicionarem contra a guerra, tendo 61% da população norte-americana sendo contra. E apesar de nem
© Blogoosfero
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Protesto contra armas nos Estados Unidos, 2018
todas as lutas serem vencidas, a liberdade política e intelectual no meio universitário foi conquistada: o movimento antiguerra retirou os Estados Unidos do conflito do Vietnã e muitos setores oprimidos se rebelaram contra o establishment. Essa herança histórica de ativismo, engajamento e luta faz com que os estudantes dos dias atuais se inspirem e tragam forças desses época para reivindicar por uma sociedade mais justa e em paz. Atualmente, há um número crescente de tiroteios nas escolas norte-americanas: desde 2013, foram 300 casos, sendo 44 deles apenas nos primeiros cinco meses de 2018, segundo a Everytown Research. Esses dados geram uma onda de reflexão sobre o debate de armas, dividindo a população dos Estados Unidos. Após o massacre no colégio Parkland, na Flórida, que teve 17 mortes, estudantes em um movimento descomunal protestam em todo o país contra as armas, marchando às Assembleias, Congressos, e até a Casa Branca e com gritos ensurdecedores que dizem “Chega de armas” e “Já é suficiente”, buscam incessantemente finalizar a cultura de morte nos EUA. Trazendo à tona uma onda de revoluções e manifestações, principalmente antiarmas, mas que incluem também reivindicações antiguerra e ambientalista, contra um governo extremista e conservador. Hoje, os jovens estão determinados a mudar essa realidade, com os sobreviventes desses casos colocando uma face bem humana ao ataque, desejando o fim da violência e se juntando a grupos ativistas, fazendo manifestações em todo o país, obtendo uma grande e importante visibiliJunho 2018
Manifestantes em frente do Capitólio, contra a guerra do Vietnã, 1971
dade. O abandono social de comunidades pobres é visto como componente da violência armada e o desarmamento da população norte-americana é uma solução de política pública. A situação entre os estudantes norteamericanos é preocupante e comove toda a população do país, fazendo com que surjam casos extremos, como o da aluna Kaitlin Bennet, que abalada com essas situações de violência, compareceu em sua formatura portando uma arma e gerou grande debate sobre liberdade e armamento. Ela alegou em suas redes sociais que promove o direito de se defender vai contra o movimento que milhares de jovens promovem pelo fim do armamento civil. Bennet publicou em seu Twitter: “Como mulher, eu me recuso a ser uma vítima e a Segunda Emenda da Constituição garante que eu não preciso ser uma”. Estudantes seguem não só revoltados e indignados, pelo fato de que os ataques acontecem ano após ano e as autoridades não se posicionam, mas também com medo, como o caso dos jovens que se esconderam dentro de seus armários em uma escola mandando mensagens de texto para os pais “se eu morrer, não esqueça que te amo”, sensibilizando milhares de alunos e famílias. E após todas essas chacinas, estudantes do país inteiro estão determinados a mudar essa situação, fazendo uso da poderosa ferramenta que são as mídias sociais, e, decididos que podem melhorar o mundo, marcam mais uma vez a história do movimento estudantil estadunidense.
CO N T R A P O N TO
CONTRAPONTO
São Paulo
Tragédia no Paissandú deixa moradores sem perspectivas
CO N T R A P O N TO
para mudar a situação das pessoas acampadas. “O que o governo está fazendo não é suficiente”, afirma Antônio. Além dele, muitos estudantes também estiveram no local, prontos para ajudar. Dentre eles, estava a estudante universitária Natália Souza, ao ser questionada por que havia decidido ajudar, disse que, como não conseguia se imaginar vivendo daquela forma, resolveu ajudar para mudar essa realidade. Muitos professores aproveitaram a situação para dar uma “aula viva” sobre a situação das ocupações em São Paulo. Rosana Francisco é professora de línguas de uma escola púbica na Zona Leste da cidade e levou suas diversas turmas do ensino médio para conhecer o acampamento provisório. “Eu acredito que, sendo professora de línguas, a gente não aprende se não fizer sentido na nossa vida”, disse ao explicar a razão de estar lá com os alunos. Rosana reforçou também, que era preciso que os estudantes conhecessem essa realidade para que pudessem mudá-la. Dentre as ações da professora, um chá de bebê comunitário se destacou. Rosana decidiu promover uma reunião para, de acordo com suas palavras, celebrar a vida apesar das adversidades. Na ocupação, 12 mulheres grávidas perderam toda sua estrutura de vida e a ação pretende reverter esse quadro. Ao ser questionada sobre
o seu posicionamento em relação às ocupações, Rosana contou que acha que a cidade de São Paulo foi baseada num processo de desumanização, que expurgou os pobres para a periferia e cedeu o disputado espaço de convivência social para máquinas, avenidas e poucos proprietários. “O problema só vai ser resolvido quando todos tiverem sua dignidade reconhecida”, disse a professora A perda de moradia com a queda do prédio e as mortes são problemas que não terão solução. Mais de cem famílias estão desabrigadas num momento em que o inverno, estação mais rigorosa com os moradores de rua, se aproxima. A administração da cidade paulista, que é a 10ª maior cidade do mundo, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), está se portando de maneira excludente e desrespeitosa com os ex-moradores do prédio central. Mesmo com uma situação deprimente como essa, é possível encontrar esperança em pessoas como Leonardo e Tatiane, e no sorriso encantador de seus filhos. “Quem faz nosso país somos nós mesmos”, afirmou Tatiane ao se despedir, esperando que algo mude na situação atual de sua família, na atenção que deve ser dada aos demais ex-moradores do prédio abalado e também aos quase 20 mil moradores de rua da cidade de São Paulo.
Cartaz confeccionado durante a Virada Cultural alternativa na Ocupação Nove de Julho
Moradia provisória dos ex-moradores do prédio
© Leticia Manso
ais de um mês depois do incêndio e da queda do edifício Wilton Paes Almeida, localizado na Rua Antônio de Godoy, no Largo do Paissandú, centro da capital paulista, as famílias que lá viviam continuam acampadas no entorno da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. O prédio destruído na madrugada do dia 1º de maio era uma das várias ocupações de São Paulo e contava com cerca de 370 moradores. Na tragédia, 4 pessoas morreram e aproximadamente 50 ficaram feridas. Não bastasse a fatalidade ocorrida com as famílias, soma-se ao ocorrido, a falta de interesse público da prefeitura em realocar devidamente os ex-moradores e resolver em definitivo seus problemas habitacionais. No meio do acampamento, que conta com cerca de 100 barracas, encontra-se o casal Tatiane Souza, 35 anos, e Leonardo Silva, 32. Eles se conheceram quando eram moradores de rua e estão juntos há 13 anos. “A prefeitura está sendo superficial com a gente”, contou a mulher. “Acha que somente dinheiro resolverá nossa situação”. A proposta do atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), é doar inicialmente R$ 1.200,00 para cada família buscar uma nova habitação e, a partir dai, doar mais R$ 400,00 mensais como suporte por até um ano. Tatiane, que tem seis filhos com idades entre 3 e 15 anos, descreveu a dificuldade que é encontrar um lugar que comporte minimamente a família de oito pessoas e que se ajuste ao orçamento. “Ninguém quer aceitar uma família tão grande assim”, disse ela referindo-se aos locatários. Leonardo, que é auxiliar de limpeza, contou que a proposta da Prefeitura, rechaçada de pronto, incluía a realocação dos ex-moradores do edifício abalado antes da Virada Cultural, que aconteceu nos dias 19 e 20 de maio. O evento é conhecido nacionalmente por reunir diversos artistas e proporcionar apresentações gratuitas ao público. “Queriam tirar a gente para não atrapalhar a Virada”, disse. Leonardo acrescentou ainda que se sentia descartável diante da falta de humanidade que a administração estava tendo quando tratava dos assuntos ligados aos ex-moradores do edifício. Para exemplificar, contou a história de seu filho mais novo, de apenas 3 anos. No dia da tragédia, o garoto na correria caiu no interior do prédio e machucou a boca. Somente após duas semanas o problema foi resolvido e o menino teve seus cinco dentes frontais removidos diante da gravidade. No entanto, os remédios para tratar do filho de Leonardo não foram doados pela prefeitura e ele foi obrigado a arrumar dinheiro para comprá-los. Mesmo que a administração de Bruno Covas não se mostre presente, a população está se mobilizando para tentar amenizar as perdas irreparáveis. Escolas, ONG’s e outras organizações estão unindo forças nessa luta. Dentre essas pessoas e instituições está Antônio Camilo, um atuante membro da Igreja Católica na Zona Norte da cidade. Ele se propôs a levar comida, água, roupas, produtos de higiene básica e boas conversas às famílias. Ele procurou se mostrar ativo
© Beatriz Cripa
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Com falta de políticas públicas eficientes, famílias que habitavam o edifício Wilton Paes de Almeida continuam abandonadas no centro da capital
© Beatriz Cripa
Por: Beatriz Cripa
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Leonardo e Tatiane, moradores que se encontram acampados
Junho 2018
CONTRAPONTO
São Paulo
Déficit habitacional atinge 385 mil famílias Apesar da grande demanda por moradia, 209 mil imóveis paulistanos encontram-se ociosos, refletindo o descaso da administração pública
Por: Letícia Manso
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58 mil famílias estão no déficit habitacional de São Paulo. Esse índice inclui domicílios em que há despesa excessiva com aluguel, estrutura precária, superlotação, coabitação de famílias diferentes ou localização de risco. Ao mesmo tempo, 209 mil imóveis paulistanos encontram-se ociosos. Esses dados alarmantes fornecem a dimensão da crise habitacional na maior cidade da América Latina. Os movimentos sociais de moradia representam uma solução alternativa e coletivista à questão, por meio do uso desses locais inativos. Atualmente, existem 206 ocupações na cidade, nas quais vivem mais de 45 mil famílias. Setenta delas localizam-se na região central. Segundo diversas legislações, como o Plano Diretor Estratégico, o Estatuto da Cidade e a Constituição Federal, é dever do proprietário garantir o cumprimento da função social da propriedade - ou seja, o uso para moradia, atividades econômicas ou atividades socioculturais. São ocupadas somente as áreas que não seguem esses regulamentos, onde há evidente abandono. “Nós damos uma função social a um local ocioso, cheio de lixo, com falta de segurança e totalmente deteriorado”, afirma Carmem Silva, líder da Frente de Luta por Moradia. “Não queremos nada de graça, nem suplantar a nossa
vontade acima dos outros, do direito ou da justiça. A única coisa que queremos é viver numa sociedade justa e ter o direito de sustentar uma casa digna”, completa. Os ocupantes, em sua maioria, são trabalhadores de baixa renda, que não tem possibilidade de pagar aluguel ou financiar a casa própria. Com a crise financeira em que o país está imerso, o acesso à moradia tornou-se ainda mais difícil para esse grupo, graças ao aumento do desemprego, à diminuição dos recursos de políticas públicas – como o programa Minha Casa Minha Vida – e à alta do setor imobiliário. A última, porém, deve-se menos à crise e mais à transformação da cidade em mercadoria. A especulação imobiliária supervaloriza os preços dos imóveis, beneficiando-se das áreas vazias para diminuir a oferta. Por isso, segundo Carmem, a criminalização dos movimentos sociais de moradia é de responsabilidade do setor imobiliário e dos latifundiários urbanos. “Nos chamam de criminosos, mas nós temos nossos impostos em dia e pagamos para registrar nossos documentos em cartórios e fóruns. O Estado recebe dinheiro ilegal, então?”, brinca. A líder ressalta o trabalho conjunto dos movimentos e do poder público, por meio da participação efetiva em conselhos e audiências. Enquanto isso, “os maiores devedores de impostos dessa cidade têm um acúmulo de centenas de prédios e milhares de hectares de terra no perímetro urbano de São Paulo. Como eles conseguiram isso? Qual cidadão que trabalha honestamente consegue acumular tudo isso? E de-
vendo impostos, que se fossem cobrados de fato, trariam grande riqueza para o município.” Grande parte desses imóveis ociosos localiza-se na zona central, que sofreu uma desvalorização a partir da década de 70. Há maior concentração de ocupações nessa região, pois o acesso aos outros direitos sociais básicos, como saúde, educação, cultura e mobilidade, é facilitado em comparação à periferia. O centro de São Paulo beneficia-se desse movimento. “Nós o devolvemos vida e moradores”, diz Carmem. Além disso, a revitalização dos edifícios promovida pelos ocupantes diminui o acúmulo de entulho, insetos e animais peçonhentos ou causadores de doenças no ambiente urbano. Fora as reformas estruturais necessárias para tornar o ambiente habitável, todo o sistema elétrico, hidráulico e de segurança é providenciado e mantido pelos moradores, sempre com auxílio do movimento responsável. O custo dessa manutenção é dividido entre as famílias, resultando em um valor a ser cobrado pelo movimento. Carmem reitera: “Aquele dinheiro que a mídia está falando tanto, 200 reais por família, é justamente para dar qualidade de vida”. Ocupar mostrou-se uma ação mais efetiva que as políticas públicas. Requalificar propriedades privadas abandonadas de maneira política, social e coletiva, garantindo um direito social a milhares de pessoas parece utópico, mas é o que ocorre nas ocupações. “Quando eu ocupei pela primeira vez, me tornei cidadã. Deixei para lá o eu e o meu para pensar no coletivo e no nosso”, termina a líder.
© Beatriz Cripa
Autoridades tentam criminalizar os movimentos sociais
© Leticia Manso
Resquícios do edifício e da Igreja abalados na queda
Após a tragédia ocorrida na Ocupação do Largo Paissandu, houve uma grande tentativa de criminalização dos movimentos sociais e das famílias ocupantes por parte da mídia e de autoridades governamentais. O ex-prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), afirmou que o prédio havia sido invadido por facções criminosas que o transformaram em um centro de distribuição de drogas, sem fornecer detalhes ou provas que justificassem sua acusação. Bruno Covas (PSDB), seu sucessor, buscou isentar a prefeitura de qualquer responsabilidade com o episódio, alegando que foram realizadas reuniões com os moradores para alertá-los dos riscos. Na mesma linha, o governador do estado, Márcio França (PSB), classificou o caso como uma “tragédia anunciada”. Além disso, diversas notícias falsas e sensacionalistas circularam nas redes sociais, causando a desinformação da população sobre o assunto. A difamação foi feita principalmente acerca da forma de organização das ocupações e condição dos imóveis ocupados. Nesse contexto, as ocupações paulistanas viram-se ameaçadas. Na manhã seguinte ao incidente, a ocupação artística independente, Ouvidor 63 recebeu funcionários da Eletropaulo escalados para desligar a energia do edifício. Os técnicos informaram que havia ordem para corte de água e energia em diversos prédios ocupados, concedida pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, órgão estadual. Segundo os moradores, “o corte de luz e água, ainda mais em um feriado, é o primeiro passo para uma reintegração”. Porém, por meio de um acordo com a Polícia Militar, a ação foi interrompida. A Ocupação Luana Barbosa, coordenada pelo Movimento Popular Terra Livre, teve paredes quebradas por seguranças contratados pelo governo que tentavam criar uma passagem irregular para o prédio. A situação, ocorrida três dias depois do incêndio, também é um prenúncio para uma reintegração de posse. Diante disso, as ocupações resistem e buscam solidariedade. Estão ocorrendo diversos eventos que buscam levar a população a conhecer essa realidade e arrecadar recursos para reformas, na tentativa de evitar reintegrações. O maior deles foi a manifestação realizada em 09 de maio, que uniu diversos movimentos e homenageou as vítimas do desastre.
Vista da Ocupação Nove de Julho Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Junho 2018
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CONTRAPONTO
Virada Cultural
Evento anual celebra a diversidade brasileira e denuncia os problemas e tensões de São Paulo 14º edição do evento ocorreu no fim de semana dos dias 19 e 20 de maio e recebeu mais de 900 artistas, além dos 105 palcos, das intervenções artísticas, cinema, teatro, parques de diversão e outras atrações. As novidades foram a descentralização, com núcleos fora do centro de São Paulo e, refletindo o tema deste ano, inclusão, o conteúdo em libras e audiodescrição. Anual e gratuito, organizado pela Prefeitura de São Paulo, o festival apresenta conteúdo cultural variado, do Jazz ao Rap, indo da primeira à terceira idade. Contudo, os espaços utilizados para a locação dos núcleos e o contraste entre os que saíram para as festas e os moradores de rua são questões que denunciam a difícil realidade político-social paulistana. A Prefeitura disponibilizou um site e um aplicativo para facilitar a escolha de roteiro dos transeuntes. O mapa podia ser baixado no site ou visualizado pelo aplicativo. Além disso, haviam diversos deles em forma de folder ou em prismas triangulares, por volta de três metros de altura, nas esquinas. Ao sair da estação República do metrô, logo no começo da noite, se encontrava o palco Brasil 360 e em seguida, na própria praça, os palcos Cabaré e Queer, além de fileiras de barracas brancas de comida. Numa caminhada tranquila pelas ruas ao redor era possível curtir uma variedade de ritmos, como Marcelo D2 no palco do Skate, Samba de Rainha no cruzamento entre a Av. São João e a Av. Ipiranga e a Dança do Dragão e Leão no palco Oriental. No Vale do Anhangabaú um parque de diversões foi montado, além das apresentações de Rouge, Gretchen e Valesca Popozuda, Ultraje a Rigor e Balão Mágico. Já no vão do MASP e na XV de Novembro o cinema atraiu o público. Enquanto no centro, os filmes de terror como Sexta Feira 13 e O Massacre da Serra Elétrica passavam, na Av. Paulista o espaço foi para documentários de Nina Vieira – Quem te penteia – e Ivan 3P – Sabotage: Maestro do Canão –, entre outros. Entre os cortejos do cruzamento da Consolação com a Rua Sergipe, o “Agora é que são elas” com Pitty, Baby do Brasil e Tulipa Ruiz, abria as atividades da Virada. No palco Cultura Popular, os sons da dança popular brasileira se espalharam no cruzamento entre a Rua Xavier de Toledo e a Sete de Abril com uma Roda de Coco do Abaçaí Balé Folclórico e com a batida do Maracatu Arrastão do Beco. No palco Oriental, durante a Performance Tekkyon e Capoeira, lutas e acrobacias atraiam as pessoas que paravam nas barracas de comida oriental. Fora do Centro, na zona norte, no Parque da Juventude, além de Contação de Histórias na Biblioteca de São Paulo, o Tablado de Artes trazia apresentações de teatro e música, inclusive de alunos da Etec de Artes. Para os religiosos, uma zona Gospel no Centro Esportivo do Tietê marcava presença. Na zona Oeste, nos palcos da Chácara do Jockey, muitos cantores conhecidos se apresenta-
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Valesca Popozuda no palco do Chacrinha
© Diego Miguel
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Apesar das mensagens em defesa da inclusão – tema da edição de 2018 –, deficientes visuais e auditivos enfrentaram grandes dificuldades para chegar aos locais de sua preferência, por falta de políticas públicas capazes de garantir o acesso e a mobilidade urbana
© Diego Miguel
Por: Natasha Meneguelli
Double You no palco dos Anos 90 ram: Karol Conka, Nação Zumbi, Projota, Liniker e Jota Quest. Para as crianças, os espaços chamados Viradinhas, todos fora do Centro, apesar de algumas intervenções isoladas e do espaço do Circo também serem adequados. Ademais, os Centros e Casas de Cultura, Bibliotecas, Teatros Independes ou do Estado, como o Teatro Municipal – com a “Ópera La Traviata” como abertura” – trouxeram espetáculos de teatro, música e dança diversos. As intervenções ocorreram por toda parte, como a do Viaduto do Chá – “A Rua é Clássica” – que teve a participação de dois percussionistas do grupo afro “Ilu Oba di Mim” e uma violinista, produzido e orientado por Débora Veneziani. Toda essa mistura de culturas e espaços traz para a cidade uma diversidade necessária e muito bem-vinda. Mesmo com a chuva de sábado e com o tempo extremamente frio as pessoas saíram de casa para curtir o fim de semana nos dias considerados como alguns dos mais frios do ano, o que traduz uma demanda para eventos como esse. Tendo alguns palcos mais cheios que outros ou não, é importante refletir sobre a disposição dos que transitaram pela Virada nos dias 19 e 20. Apesar da maioria jovem nas ruas, bebês, crianças e idosos se divertiam, mesmo
na frente de palcos movimentados. Ainda que o conteúdo cultural em si fosse gratuito, vale lembrar também os gastos com alimentação e transporte, assim como os ônus que podem ser ligados ao evento. Apesar da variedade cultural, houve claras preferências e prioridades em relação aos tamanhos e localização dos palcos e outras atrações. Tendo sido pela preferência do público ou não, a falta de engajamento com os palcos de Cultura Popular e Oriental, por exemplo, podem indicar um desinteresse motivado pela ignorância, ou até mesmo por uma desvalorização desses grupos. Afinal, a quantidade de pessoas que conhece, no caso, os ritmos de dança da cultura brasileira são menores do que outras internacionalizadas com mais facilidade, como o samba, ou com as que tem origem em outros países, como rock e rap. De acordo com a Prefeitura, as únicas ocorrências graves foram alguns prédios e viaturas danificados durante a madrugada de sábado para domingo. Contudo, além dos já conhecidos cuidados com segurança que devem ser tomados em momentos como esse, por conta de roubos e furtos facilitados pelas multidões, o incêndio e queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em primeiro de maio deste
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Junho 2018
© Debora Veneziani
© Debora Veneziani
© Debora Veneziani
© Fábio Teixeira
© Fábio Teixeira
Multidão
Viaduto do Chá: A Rua é Clássica” teve a participação de dois percussionistas do grupo afro “Ilu Oba di Mim” e uma violinista, produzido e orientado por Débora Veneziani ano, nos faz pensar no outro lado da Virada Cultural. O lado daqueles que têm a rua como sua “casa”, ou dos que habitam os tantos prédios precários e abandonados das ruas do centro. Num passeio pelo centro, em um dia normal, os moradores de rua estão por toda parte. No dia da Virada não foi diferente. Dezenas deles buscavam latas nos lixos e no chão, com um saco plástico jogado nas costas. Perto das barracas de comida, além do alumínio, restos de comida eram procurados e encontrados. No meio das multidões frente aos palcos, passando por entre as pessoas, homens catavam latas de cerveja e outras bebidas do chão, parecendo invisíveis para quem curtia a música. Raramente um olhar os encontrava. Durante a noite e a madrugada, muitos dormiam em cantos ou em ruas mais vazias, vários tampando a luz e o som com tecidos surrados, que obviamente não davam conta do frio da mesma forma que os casacos grossos dos que passavam por eles. A não visibilidade dessas pessoas contrastava com o divertimento e com as preocupações em se ter postos policiais e de enfermeiros em diversos pontos. Na Av. Paulista, na tarde de domingo, não se precisava andar muito para ver algum homem com uma placa de papelão com um pedido por comida.
O tema “Inclusão”, relacionado aos deficientes visuais e auditivos, é uma ironia quando se pensa sobre a dificuldade desse grupo e de outros na questão da mobilidade urbana. São Paulo, uma das metrópoles mais importantes do mundo não está adaptada para diminuir essas dificuldades. Os semáforos com avisos sonoros, a falta de sinalização tátil nas calçadas e de rampas para cadeirantes são apenas algumas das medidas que realmente permitiriam essa inclusão. Sendo um evento de grande porte, as manifestações e protestos políticos e sociais também estiveram presentes. No ano passado, o Ministério Público do Estado “recomendaram” que os artistas não se manifestassem politicamente. Com acusações de tentativa de censura, se defenderam com uma justificativa que envolvia os telões com os dizeres “Fora Temer” nos palcos de 2016. O documento não serviu de nada em 2017 e não esteve presente neste ano. O vocalista do grupo Nação Zumbi gritou um “Lula Livre” no meio de sua apresentação. Já Caetano Veloso, cantando juntamente com o bloco de carnaval “Tarado Ni Você”, criticou o “Pacote de Veneno”, como é chamado o Projeto de Lei que propõe alterações no controle do uso dos agrotóxicos. Fora do universo dos artistas, um grupo mobilizado pela Igreja Universal re-
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alizou uma mobilização nacional pelo combate do suicídio, e diversas manifestações isoladas e menores pediam conscientização em relação ao racismo e ao câncer de mama, por exemplo, além de alguns “Fora Temer” estampados em camisetas e muros. Definitivamente, a Virada Cultural é um evento de extrema importância para espalhar cultura, e o ideal é que ocorresse mais de uma única vez no ano, principalmente quando se considera que a gratuidade consegue atrair um público que muitas vezes não tem acesso a esses conteúdos, ou que não consegue pagar por eles com certa frequência. Contudo, muito se deve refletir sobre outras prioridades, que merecem atenção somadas às culturais. A infraestrutura paulistana não é adequada quando se pensa no tamanho de sua importância social, política e econômica e, portanto, medidas para melhorá-la, assim como para atender as demandas de quem não tem sequer onde morar devem ser tomadas. A cultura e o lazer não devem ser deixados de lado, e outras questões de direitos básicos também devem se tornar pautas recorrentes da Prefeitura, tendo campanhas e divulgação tão empenhadas e efetivas quanto as que vimos sobre a Virada.
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CONTRAPONTO
“10 anos que
ensaio fotográfico
© Julia Pestana © Vittória Burattini
Concentração no vão do Masp
© Julia Pestana
Manisfestante Adrian Ativistas satirizando quem alega que maconha é uma droga mas consome bebidas alcólicas e remédios tarja preta
© Vittória Burattini
0 anos queimando tudo”, este foi o tema da Marcha da Maconha, ocorrida sábado, 26 de maio. Além dos manifestantes protestarem a favor da legalização da substância, também comemoraram o aniversário de 10 anos da passeata. A manifestação abrange vários assuntos como seu uso recreativo, medicinal e religioso, informando e quebrando o tabu em torno da erva. Os ativistas se reuniram no vão livre do Masp, na Avenida Paulista. Às 16:20 a passeata iniciou, seguindo caminho para a Av. Brigadeiro Luís Antônio e finalizando na Praça da Sé. É possível perceber que as substâncias estão cada vez mais potentes, diversas, acessíveis e baratas, enquanto o número de mortos e encarcerados em consequência destas políticas cresceu exponencialmente. A parcela de assassinatos decorrentes do tráfico e as prisões são muito maiores que o número de mortos e dependentes do consumo dessa substância. Ou seja, o maior paradoxo das políticas de defesa à saúde pública se dá através da lógica de guerra, assim, matam-se pessoas para que estas não comprem, vendam ou usem drogas. Muitos pensam apenas em seu uso recreativo, mas diversos medicamentos utilizam o princípio da cannabis para epilepsia, aliviar dores, glaucoma, entre outros. Os avanços no uso medicinal são lentos, como o primeiro remédio a base de maconha, Mevatyl, foi aprovado no Brasil em junho de 2017, e registrado pela Anvisa para o uso em sintomas da esclerose múltipla, havendo melhoras. Logo, o próximo passo, é a conquista de decisões que permitam o plantio coletivo por família de pacientes, justificando a frase “Proibição mata. Legalize a vida!”, vista em cartazes na Marcha. Eventos como esse são importantíssimos no cenário político brasileiro, englobando não só o tema da legalização das drogas, mas também o racismo, já que é possível perceber a discrepância na seletividade racial do poder policial em abordagens. Sendo assim, a luta pela regulamentação da substância, hoje ilícita no Brasil, se trata de como nosso corpo e hábitos são controlados pelo Estado e uma luta contra o preconceito, essa base perpassa por assuntos diversos que envolvem o direito do ser humano sobre sua vida e sua liberdade.
© Julia Pestana
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© Julia Pestana
Por: Vittoria Burattini
Manifestante ocupando ruas da Avenida Paulista
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© Vittória Burattini
eimando tudo”
© Vittória Burattini
© Vittória Burattini
Casal em frente à faixa
“Ei, policia! maconha é uma delicia”
© Vittória Burattini
na apoiando a legalização
Botons à venda para manifestantes
Manifestantes lutando contra guerras às drogas
© Vittória Burattini
Ativista fantasiada de “fada da maconha”
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“Qual o crime em um adulto plantar e usar maconha em sua casa se não afeta os outros?”
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CONTRAPONTO
Monteiro Lobato
Um país se faz com homens e livros Há 70 anos, em 4 de julho, morria o escritor, editor, polemista e autor nacionalista de uma obra que deixou marcas profundas na cultura brasileira, incluindo o inesquecível Sítio do Picapau Amarelo
Por: Helena B. Lorga
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Início da fama na literatura – Em 1914, aconteceu um fato que mudaria para sempre a sua vida: com o inverno seco e as constantes queimadas praticadas pelos caboclos em sua fazenda, Monteiro Lobato escreveu uma reclamação para o jornal O Estado de S. Paulo, com o título de Velha Praga. O Estadão, percebendo o valor literário daquela carta, publicou-a em outra seção, acertando na escolha, pois o texto provocou polêmica. Isso fez com que Lobato escrevesse outros artigos, como Urupês, dando vida a um de seus personagens mais famosos, o Jeca Tatu.
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Jeca Tatuzinho: segunda versão do Jeca Tatu
© site: overdadeirositiodapicapau
Monteiro Lobato em seu escritório
© Divulgação
Infância e juventude – José Renato Monteiro Lobato, nome de batismo de Monteiro Lobato, nasceu em 18 de abril de 1882, na cidade de Taubaté, interior da cidade de São Paulo. Foi criado em um sítio, alfabetizado por sua mãe Olímpia Augusta Lobato e só aos sete anos entrou no colégio. Descobriu o mundo da literatura através da grande biblioteca de seu avô materno, o Visconde de Tremembé, que ficava no interior da casa. Isso o ajudou a começar a escrever seus primeiros contos para os jornais das escolas que frequentou. Quando adolescente, prestou exames para o curso preparatório em São Paulo e foi aprovado, tornando-se estudante interno do Instituto Ciências e Letras. Quando teve de fazer sua opção de graduação, seu sonho era a Escola de Belas-Artes, mas, por contrariedade de seu avô, que queria que seu neto fosse um sucessor na administração de seus negócios, Lobato acabou ingressando na Faculdade do Largo São Francisco para cursar Direito, mas não deixou de colaborar em inúmeros jornais. Na faculdade, Lobato já se mostrava como anticonvencional, além de defender as suas ideias firmemente, dizia o que pensava sem se importar com a opinião alheia. Formou-se em Direito em 1904 e voltou para sua cidade natal, onde passou a ocupar interinamente a promotoria de Taubaté. Foi nessa época que conheceu Purezinha, com quem se casou em 1908 e teve quatro filhos. Além disso, seu nome foi modificado de José Renato para José Bento, porque ele queria usar a bengala de seu pai, que foi uma herança antecipada e tinha as iniciais JBML. Continuou escrevendo paralelamente para jornais e revistas, como A Tribuna de Santos e a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, além de mandar caricaturas e desenhos para a revista Fon-Fon. Traduzia artigos do Weekly Times para o jornal O Estado de S. Paulo, bem como obras da literatura universal. Seu avô, o Visconde de Tremembé, faleceu quando Lobato tinha 29 anos, tornando-o herdeiro da Fazenda Buquira. Mudou-se com sua família para lá e passou a viver como fazendeiro, largando a profissão de promotor e dedicando-se à modernização da lavoura e à criação.
© Divulgação
á 70 anos, o escritor Monteiro Lobato faleceu, mas seu legado se mantém eterno. Nesta matéria, confira a história desse paulista que marcou a literatura brasileira.
A antiga Fazenda Buquira, hoje chamada de “O Verdadeiro Sítio do Picapau Amarelo”, serviu de inspiração para Lobato e é aberta à visitação. Seu endereço fica na Estrada Municipal Monteiro Lobato, 8000, em Caçapava, zona rural do município de Monteiro Lobato, em São Paulo
Urupês e as versões do caboclo paulista – Urupês, publicado em 1918 e considerada a sua obra-prima, é uma coletânea de contos e crônicas que trata de um regionalismo crítico, com uma visão depreciativa do caboclo brasileiro, caracterizando-o como um “fazedor de desertos”. Isso chocou o público, que estava acostumado com uma visão heroica do caboclo pelo Romancismo. “Considero que Monteiro Lobato, ao retratar o Jeca Tatu, tomou como referência sua experiência de proprietário das fazendas herdadas do avô. Foi o contato com o caboclo do interior de São Paulo que o levou a caracterizá-lo como preguiçoso e indolente. Lobato inova na linguagem, ao reproduzir nos seus textos a riqueza da fala brasileira da zona rural, com seus coloquialismos e neologismos tipicamente orais, até então considerados uma forma de expressão não prestigiada e dizia que o trabalhador do campo era a melhor coisa que o Brasil possuía”, afirma a professora de Letras da PUC-SP Dieli Palma. Jeca Tatuzinho, lançada em 1924, é a segunda versão do Jeca Tatu, com uma visão mais amistosa, afirmando que o problema da indolência do caboclo era a ancilostomose, ou amarelão, da qual era portador por andar descalço. Isso gerava o desânimo, a verminose e a anemia.
Zé Brasil, publicado em 1947, é a terceira versão do caboclo, e retrata que sua situação de amarelão não havia se modificado. Nessa obra, o personagem é influenciado pelas ideias do Comunismo e da reforma agrária. Porém, com o avanço da geada e das dificuldades financeiras, Lobato partiu com a sua família para São Paulo em 1916, com a ideia de se tornar um escritor-jornalista. Nessa época, organizou para o jornal O Estado de S. Paulo uma detalhada pesquisa sobre o Saci. Em 20 de dezembro de 1917, publicou Paranoia ou Mistificação? , famosa crítica contra a exposição de Anita Malfatti que culminaria na Semana de Arte Moderna de 1922. Embora admitindo que ela fosse talentosa, Lobato era a favor de uma arte brasileira e do nacionalismo. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia, a qual privilegiava autores estreantes, como a escritora Maria José Dupré, com o sucesso Éramos Seis. Também foi nesse ano que publicou sua primeira obra infantil A Menina do Narizinho Arrebitado, que se tornou um grande sucesso. Porém, como na época o presidente Artur Bernardes desvalorizou a moeda e suspendeu o redesconto de títulos pelo Banco do Brasil, a editora de Lobato entrou com pedido de falência em 1925. Mas, no mesmo ano, abriu a Companhia Editora Nacional e transferiu-se para o Rio e Janeiro.
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A menina do narizinho arrebitado – Primeiro livro infantil de Monteiro Lobato, lançado em 1920, conta o início das aventuras dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo, lugar interiorano que tem personagens carismáticos e eternizados na cultura brasileira. As aventuras, além de transmitirem costumes da roça e lendas do folclore, se passam de duas formas: ou em um mundo de fantasias inventados pelas crianças, ou em histórias contadas por Dona Benta. “No Brasil, os autores de literatura infantil, que antecederam Lobato, deram a suas obras um cunho fortemente educacional. A Menina do Narizinho Arrebitado rompeu com essa tradição e criou em seus textos infantis um maravilhoso mundo imaginário de diversão e aprendizado para as crianças”, comenta Palma.
Depois de muitos contratempos, conseguiu implantar a Companhia Petróleos do Brasil, em 1931, durante a presidência de Getúlio Vargas, com quem tinha certa antipatia. Como havia interesse oficial em afirmar que não existia petróleo no Brasil, Lobato apresentou um dossiê de sua campanha, intitulado “O Escândalo do Petróleo”, de 1936, no qual acusava o governo de “não perfurar e não deixar que se perfure”. Isso desagradou o Getúlio, que proibiu o livro e mandou recolher todas as edições. Infeliz com esse fato, Lobato escreveu uma carta ao presidente, na qual fez severas críticas à política brasileira de minérios. Isso foi considerado um desrespeito ao Estado Novo, e Lobato foi condenado a 6 meses de prisão em março de 1941. Porém, ficou apenas 3 meses, graças a uma campanha promovida por intelectuais e amigos para o seu indulto, mas continuou sendo perseguido e suas ideias abafadas pelo governo. A professora Dieli Vesaro Palma, em uma entrevista para o jornal Contraponto, explica esse episódio: “Por defender a modernização do Brasil, Monteiro Lobato acreditava que o governo brasileiro precisava investir em ferro, nas estradas e na busca pelo petróleo. Em relação a essa busca, ele criou empresas para perfurar e encontrar o óleo em território nacional, porém teve que lutar contra o interesse de grandes empresas e do governo, além de sofrer várias acusações. Vê-se, assim, que suas ideias não foram bem recebidas nem pelo Estado, nem pelo povo”.
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A menina do narizinho arrebitado: 1º livro infantil de Monteiro Lobato
“Fascinação” (1902): pintura de Pedro José Pinto Peres (18501923), que ilustra o conto Negrinha
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O Poço do Visconde: livro infantil que explica como se forma e extrai o petróelo
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Questões do petróleo e nacionalismo – Ao enviar uma carta ao recém empossado Washington Luís, em 1927, defendendo os interesses da indústria editorial, o presidente reconheceu em Monteiro Lobato um bom representante dos interesses culturais do país e o nomeou adido comercial nos Estados Unidos. Lobato mudou-se para Nova York e ficou surpreso com o grande progresso econômico. Queria implementar esses avanços no Brasil, e, então, planejou a fundação da Tupy Publishing Company, que tinha como base as questões do petróleo, ferro e estradas, o chamado tripé de desenvolvimento.
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O Poço do Visconde – Livro infantil, da coleção do Sítio do Picapau Amarelo, publicado em 1937, que trata da possibilidade da exploração dos poços de petróleo brasileiro. Tem uma linguagem infantil, é muito didático e explica passo a passo questões de geologia, como se forma o petróleo, como funciona a sua retirada, além de seus possíveis usos. Fim da sua vida e direitos autorais – Em 1943, foi fundada a Editora Brasiliense por Caio Prado Júnior, na qual Monteiro Lobato autorizou que publicassem as suas obras completas. Ele também foi indicado à Academia Brasileira de Letras, mas recusou o pedido. Em maio de 1945, pela primeira vez, a obra A Menina do Narizinho Arrebitado é apresentada nos meios de comunicação e transformada em radionovela para crianças pela Rádio Globo, no Rio de Janeiro. Monteiro Lobato faleceu no dia 4 de julho de 1948, aos 66 anos, depois de sofrer um segundo espasmo cerebral. Sob forte comoção nacional, seu corpo foi velado na Biblioteca Municipal de São Paulo e enterrado no Cemitério da Consolação. Anos depois, em 1996, os herdeiros do escritor sugeriram à Editora Brasiliense, até então única detentora das obras, que reformulasse o visual dos livros para algo mais moderno e colorido, o que foi negado. Com isso, em 1998, houve uma grande polêmica entre a Brasiliense e os herdeiros, que moveram ações na justiça para conceder a cessão a terceiros. Por outro lado, a Brasiliense alegou ter contrato ad infinitum das obras. Essa situação foi resolvida em 2007, quando a justiça concedeu aos herdeiros a permissão de passarem os direitos das obras à Editora Globo. Porém, isso só dura até 2018, ano em que se completa 70 anos da morte de Lobato, e seu legado entra em domínio público. As obras de Monteiro Lobato são eternas por sua qualidade e originalidade. “Em sua literatura para adultos, ele mostrou o desprezo pela injustiça, pela deslealdade, destacou os valores humanos, a liberdade e a verdade e exaltou a brasilidade, tal como na literatura infantil. Logo, considero também que essas obras tenham contribuído para o desenvolvimento do espírito crítico dos leitores”, complementa a professora Dieli Palma. Conto Negrinha e repúdio ao racismo – Negrinha, livro de contos ficcionais publicado em 1920, tem uma história com o mesmo título, que fala sobre Negrinha, uma menina negra e filha órfã de uma escrava, que vive com uma senhora branca que a trata muito mal. Isso até a chegada das sobrinhas loiras e ricas, que muda para sempre a vida da garota. Com essa comovente história, Lobato denuncia resquícios e traços cruéis de uma sociedade escravocrata. Apesar de Monteiro Lobato ser considerado racista por algumas pessoas, não foi isso que ele demonstrou no conto Negrinha, bem como nos livros do Sítio do Picapau Amarelo. “Monteiro Lobato apresenta a figura de Tia Anastácia integrada na família de Dona Benta. Foi com ela que Pedrinho e Narizinho conheceram as fábulas populares. Assim, ela representa a cultura e o saber popular, valorizados pelo autor. Portanto, não vejo preconceito na obra de Lobato, que deve, como qualquer texto literário, ser analisada no contexto da época em que foi escrito, sendo sempre preciso levar-se em conta a estética da linguagem nele presente”, comenta a professora Dieli Palma.
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CONTRAPONTO
Cannes 2018
Feminismo made in Hollywood chega à França Criado para denunciar a prática do sexismo na indústria cinematográfica, movimento #MeToo agita o principal festival de cinema europeu
Por: Maria Eduarda Cury
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criação do festival – Cannes sofria com as marcas dos regime fascistas italiano e alemão, no final da década de 1930, demonstrava a dificuldade de exibir filmes cencurados em outros festivais. Tal fato fez com que Jean Zay, ministro da Instrução Pública e de Belas Artes, propusesse a criação de um festival cinematográfico de cunho internacional e sem interferência política, o atual Festival de Cannes – anteriormente chamado de Festival Internacional de Filmes. Tendo em vista a razão do nascimento do festival – que se tornou o mais relevante anualmente –, a liberdade de expressão e ideias virou lema, como um dos principais atrativos do evento, que reúne, por uma semana, mentes dos mais variados gêneros cinematográficos. Embora Zay tenha tentado realizar o festival desde 1939 – que teria Louis Lumière, um dos pais do cinema como o conhecemos hoje, a primeira edição do Festival de Cannes teve início no dia 20 de setembro de 1946, em um cassino da cidade: 20 filmes foram apresentados, sendo a maioria sobre a Segunda Guerra Mundial, que havia terminado no ano anterior. Apesar das crises financeiras e estruturais que vieram nos anos seguintes – especialmente de 1948 até o final da década de 50 –, o festival se restabeleceu a partir de 1960, quando o glamour e a fama voltaram a marcar presença no mundo cinematográfico, com nomes como Doris Day, Elizabeth Taylor, Cary Grant e Kirk Douglas.
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Cartaz da primeira edição do Festival de Cannes
Cidade de Cannes em 1946, quando ocorria o Festival Elizabeth Taylor e seu marido, Mike Todd, no Festival de Cannes em 1957
Grace Kelly, Cary Grant e Brigitte Auber em Cannes, 1955
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As 82 mulheres de Cannes – Que o universo cinematográfico é um ambiente sexista, não é novidade: com o movimento #MeToo – que trouxe à tona a quantidade gritante de assédio e violência que acontece nos bastidores de Hollywood –, popularizado pela atriz norte Americana Alyssa Milano (44) ao postar em seu twitter a hashtag, diversas denúncias – inicialmente anônimas – começaram a surgir, e a grande maioria destas, cerca de 20, faziam
homens e mulheres.” Além de Blanchett, também preenchem a mesa do júri as atrizes Kristen Stewart (Personal Shopper) e Léa Seydoux (Azul é a cor mais quente), a cineasta Ava Duvernay (Uma Dobra no Tempo) e a cantora burundina Khadja Nin, completando a mesa de 2018 que apresenta um número de mulheres superior ao número de homens. De todos os momentos marcantes das mulheres em Cannes este ano, o que mais deixou feridas foi o discurso da atriz italiana Asia Argento; Argento, que já havia denunciado Weinstein anteriormente – juntamente com atrizes como Gwynelth Paltrow e Uma Thurman –, utilizou seu
Kristen Stewart, Léa Seydoux, Cate Blanchett, Ava DuVernay e Khadja Nin
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Os três focos de Cannes – O evento é dividido entre três mostras, para que seja possível abranger e classificar com mais coerência os mais diversos tipos de obras que são enviados para apresentação: na mostra Competitiva, os filmes que competem são os que foram produzidos no ano anterior e inéditos, tendo sua primeira exibição na semana da mostra, como o filme BlacKkKsman, de Spike Lee, de 2018; estes filmes são produzidos, especialmente, com foco em receberem a Palma de Ouro, maior prêmio de Cannes. A segunda mostra, Um Certo Olhar, é focada nos filmes de diretores menos ligados ao mundo comercial de Hollywood, e com um enfoque mais alternativo e independente. A terceira – e última – mostra chama-se Cinéfondation, e nela concorrem os filmes produzidos por estudantes de cinema, sendo, assim, exibidas obras um pouco mais experimentais e que os gêneros podem variar muito
menção ao comportamento abusivo do produtor Harvey Weinstein, até então uma das figuras mais respeitadas no cinema. Durante a 71ª edição do Festival de Cannes, que ocorreu durante os dias 8 e 19 de maio de 2018, um dos fatos mais marcantes foi o pronunciamento de grandes atrizes, como Cate Blanchett e Asia Argento. Cate, que foi presidente do júri esse ano, disse, durante a coletiva: “Mudanças não acontecem da noite para o dia, mas a partir de ações específicas e duradouras. É preciso trabalhar muito e observar o que está sendo feito no sentido de estimular a diversidade e a igualdade de oportunidades entre
Mudanças não acontecem da noite para o dia, mas a partir de ações específicas e duradouras. É preciso trabalhar
muito e observar o que está sendo feito no sentido de estimular a diversidade e a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres”
(Cate Blanchett) Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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momento de fala para proferir a seguinte mensagem: “Em 1997, eu fui estuprada por Harvey Weinstein aqui em Cannes. Eu tinha 21 anos de idade. Este festival era a sua área de caça. Quero fazer uma previsão: Harvey Weinstein nunca mais será bem-vindo aqui. Ele viverá em desgraça, isolado de uma comunidade cinematográfica que um dia o abraçou e acobertou seus crimes.” Dirigindo-se para, majoritariamente, uma plateia de homens, Asia disse depois que o único que lhe mostrou solidariedade foi o diretor Spike Lee, e afirma que ainda existem pessoas presentes no Festival de Cannes que necessitam pagar pelos seus crimes, deixando claro que as denúncias precisam continuar acontecendo: “Vocês sabem quem são. Mas ainda mais importante, nós sabemos quem vocês são. E não deixaremos vocês impunes por muito tempo.” Seguindo o protesto de Cate, mais 81 mulheres, que trabalham nas mais variadas áreas do cinema no mundo todo, juntaram-se à ela – incluindo a francesa Agnes Vàrda – para um silencioso manifesto na escada do tapete vermelho do evento, em que protestavam contra
a diferença salarial entre homens e mulheres no meio. O número de mulheres que participou do protesto, 82, faz referência ao número de produções cinematográficas dirigidas por pessoas do gênero feminino indicados, em qualquer categoria; em 71 anos do evento, apenas 82 filmes dirigidos por cineastas mulheres foram indicados, enquanto de diretores homens, o número é de 1.645 obras, no mesmo período de tempo. A disputa pela Palma de Ouro – Apesar de o Brasil ter ficado fora da disputa pelo prêmio principal deste ano, a lista de indicados – que foi divulgada na manhã do dia 12 de abril de 2018 – apresentou bastante variedade, incluindo trabalhos de diretores renomados como Spike Lee (que, com BlacKkKsman, retornava ao cinema) e Jean-Luc Godard. A seguir, a lista completa de indicados: Ash is purest white, de Jia Zhang-Ke (China) Asako I&II, de Ryusuke Hamaguchi (Japão) At war, de Stephane Brizé (França) BlacKkKlansman, de Spike Lee (EUA) Capernaum, de Nadine Labaki (Líbano) Cold war, de Pawel Pawlikowski (Polônia) Burning, de Lee-Chang Dong (Coreia do Sul) Dogman, de Matteo Garrone (Itália) Girls of the sun, de Eva Husson (França) Lazzaro felice, de Alice Rohrwacher (Itália) Le livre d’image, de Jean-Luc Godard (França) Leto, de Kirill Serebrennikov (Rússia) Shoplifters, de Hirokazu Kore-Eda (Japão) Sorry angel, de Christophe Honoré (França) Three faces, de Jafar Panahi (Irã) Todos lo sabem, de Asghar Farhadi (Espanha/ França/Itália) n Under the silver lake, de David Robert Mitchell (EUA) n Yomeddine, de A.B Shawky (Egito)
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Asia Argento fazendo gesto que remete ao poder feminino após seu discurso na Cerimônia de Encerramento
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Pôster do filme BlacKkKsman
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Pôster do filme The House That Jack Built
Captura do filme vencedor da Palma de Ouro , Shoplifters Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
A obra vencedora foi a película do cineasta japonês Hirokazu Kore-eda, ultrapassando os favoritos da temporada e também nomes como Spike Lee e Jean-Luc Godard. O filme, ambientado no Japão, conta a história de um casal sem condições financeiras que adota uma garotinha que havia sofrido maus-tratos de seus pais biológicos; o nome do filme – Shoplifters – se dá devido ao fato de que o pai adotivo da menina, Lin, ensina tanto à ela como aos seus outros filhos a roubar itens de supermercado. O drama, que possui um tom humorístico, deve chegar ao Brasil no segundo semestre de 2018 e seu título será traduzido – assim como na França – para Assuntos de Família, o que, devido ao enredo, pode defini-lo um pouco melhor, visto que o assunto principal é o que realmente forma uma família. Demais destaques – Embora Kore-eda tenha ido para casa com a Palma de Ouro, quem chamou atenção durante a mostra foram os cineastas Spike Lee, Lars Von Trier e Asghard Farhadi, com os respectivos BlacKkKsman, The House that Jack Built e Todos Lo Saben. Como nem só de obras voltadas para o público cult vive o cinema mundial atual, Solo: Uma História Star Wars, de Ron Howard, também foi apresentada para o público durante o festival francês de maneira inédita, chamando tanta atenção quanto os demais filmes. Spike Lee, diretor já reconhecido por sua recorrente luta contra o racismo, volta para as telonas com um drama policial que conta a história real de Ron Stallworth (John David Washington), Junho 2018
policial negro que foi capaz de infiltrar-se, disfarçado, no movimento Ku Klux Klan e enganar o líder a ponto de ele mesmo tornar-se líder. No elenco, juntam-se à Washington nomes como Laura Harrier (Homem-Aranha: De Volta ao Lar), Topher Grace (Interestelar) e Adam Driver (Star Wars: Os Últimos Jedi). Representando o cinema iraniano, Asghar Farhadi exibe o filme Todos Lo Saben, ambientado entre os territórios da Argentina e da Espanha: trabalhando com questões familiares e sociais – visões que está acostumado a explorar em suas obras –, Farhadi dirige a história de Carolina, interpretada por Penélope Cruz, uma jovem que retorna de Buenos Aires para a Espanha, a fim de reencontrar suas raízes, como familiares, amigos e amores. No entanto, um acontecimento trágico acaba por mudar o rumo da história. Junto com Cruz, Javier Bardem também brilha no aclamado filme. Um nome mais recente e menos conhecido, David Robert Mitchell, vem chamando a atenção desde o Festival de 2014, onde estreou no evento com seu longa-metragem de terror Corrente do Mal. Agora, em 2018, o cineasta retorna à França para exibir seu terceiro filme desde que iniciou a carreira, competindo pela Palma de Ouro. Estrelado por Andrew Garfield (O Espetacular Homem-Aranha), Under the Silver Lake conta a história de Sam, um jovem que encontra-se obcecado pelo misterioso desaparecimento de sua vizinha, pela qual se apaixona. O rapaz começa a enxergar pistas que, supostamente, levariam ao encontro da garota e envolve-se por completo na busca. Ainda não há data de estreia prevista para o Brasil. O dinamarquês Lars von Trier, previamente banido do evento francês por realizar uma piada de humor negro, que também teve conotação nazista, pelo cineasta ter dito que entendia o ditador alemão Hitler. Fora da disputa pela Palma de Ouro, ele apresenta um longa – denominado The House that Jack Built – com a presença de nomes como Matt Dilon e Uma Thurman. O filme, que deve ser considerado o mais chocante de sua carreira, conta a história de um serial killer e apresenta cenas completamente frias, o que fez com que muitas pessoas deixassem o local antes que o filme tivesse terminado, e trouxe à tona o debate sobre os limites da arte. No gênero biográfico, Kevin Macdonald traz uma película que retrata a vida da cantora Whitney Houston, investigando tanto sua vida diante dos holofotes quanto sua vida privada, reunindo canções e cenas inéditas da artista. Durante o longa, Macdonald procura fazer com que o espectador sinta-se mais próximo da figura retratada na tela, levantando questionamentos do porquê alguém que, supostamente, teria tudo, tivesse vontade de tirar sua própria vida? O longa não participa da disputa pela Palma de Ouro.
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foram indicados, enquanto de diretores homens, o número é de 1645 obras, no mesmo período de tempo.
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CONTRAPONTO
Comportamento
Spotted: o cupido dos puquianos
Por: Maria Clara Vieira
O misterioso administrador da página revela histórias peculiares
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elos corredores e bares da Pontifícia, o que não falta é flerte e muita paquera. Muitos relacionamentos sérios surgiram na descontração entre um copo e outro de cerveja. Porém, para os mais tímidos, chegar em alguém e começar uma conversa pode ser bem difícil. Para isso, o Spotted, grande cúpido da galera, aparece como um facilitador na hora de conhecer pessoas e, até mesmo, para descobrir o nome daquele (a) @ que te chamou atenção pela PUC. Para os mais alienados que não conhecem como funciona o “jogo”, é o seguinte: basta enviar uma foto daquela pessoa (sabemos que essa pode ser uma difícil missão) com uma legenda que lhe agrada para o direct da página do Facebook “Spotted: PUC-SP”, que fará a postagem. Depois é só esperar esperar para que alguém o(a) reconheça ou que a própria pessoa veja a publicação e faça algum comentário na imagem. E voilà. O Contraponto conversou cara a cara com o misterioso administrador do Spotted: PUCSP – que pede que sua verdadeira identidade se mantenha em segredo – e descobriu algumas histórias peculiares. Ele, que é o único a dirigir a página, contou que ao entrar na PUC em 2012 conheceu um Spotted extremamente ativo e que com o passar do tempo foi perdendo a força. Depois de trancar a faculdade por um ano, ele retornou e resolveu criar um novo Spotted. Passou a fazer posts patrocinados no Facebook para chamar a atenção dos alunos, além de fazer mil panfletos e espalhá-los pela PUC. Segundo ele, teve um gasto de aproximadamente R$500 para que tudo isso acontecesse. Seu propósito era criar uma comodidade para que os alunos pudessem interagir entre si. “Eu queria integrar mais a comunidade puquiana, coisa que nenhum Centro Acadêmico conseguiu fazer até agora”, completa. Ele conta que, para isso, foi atrás de parcerias com festas e até com motéis. Quando perguntado sobre qual a história mais estranha que viu por lá, o misterioso administrador não titubeou ao responder: “Divulgação de grupo de orgia. Pediram para colocar na página e uma outra administradora que na época estava fazendo as publicações comigo colocou”. Ele conta, ainda, que sua ajudante ficou cerca duas semanas na página, mas acabou não dando certo, e foi “mandada embora” depois de fazer uma publicação de cunho machista que, segundo o atual administrador, vai contra as diretrizes da página. O Spotted: PUC-SP possui hoje cerca de 12.500 seguidores, entre alunos e ex-alunos. Para o administrador da página, esse número é significativo e faz com que o Spotted realmente funcione. “A galera, querendo ou não, se conhece, interage, marca e vira até um pouco de zueira. É bem legal”, disse. Para conhecer um pouco sobre histórias reais de quem mandou ou recebeu um Spotted, o Contraponto, com a ajuda da própria página (que realizou um sorteio de um vale-motel para quem nos ajudasse a encontrar o “casal do amor Spotted”) foi atrás de depoimentos que retratassem a magia (ou não) desse cupido virtual.
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Anônimo – “Certo dia, meus amigos me marcaram no Spotted, porque eu nem tinha visto a publicação. E estava uma foto lá, que era eu e um outro cara e a legenda era: ‘Que tal algo a três?’. E eu não dei muita bola, não fui atrás, porque eu estava ficando sério com uma menina. Um mês depois, eu fui numa festa da ESPM com essa menina que eu estava ficando e com uns amigos. Uma hora, a minha ficante saiu com as amigas dela e eu fiquei com os meus amigos. A gente estava numa fila e vi duas meninas me encarando, me observando. Eu fui trocar ideia com elas, e uma delas perguntou: ‘Você que é o José?’. Eu falei que sim e perguntei de onde ela me conhecia. E ela falou: ‘Fui eu que te marquei no Spotted’. Eu peguei o whats e o instagram dela, mas nunca deu em nada, porque logo depois comecei a namorar”. Obs: Os nomes dessa história foram trocados para manter o anonimato dos envolvidos. Alice Simi, estudante de Jornalismo da PUC-SP – “Foi uma sexta-feira meio atípica na PUC, no ano passado. Ele estava num canto, com uns amigos. Quem tirou a foto dele não fui eu, foi um amigo meu, e a gente postou lá no Spotted. Isso a noite, quem postou foi a Ju (uma amiga), ela que mandou pra mim. Ai no dia seguinte, comentaram na foto o nome dele, e ele não tinha Facebook, mas os amigos dele mostraram pra ele e eu procurei ele no instagram e comecei a seguir. Ele me chamou no direct e a gente começou a conversar. Foi meio rápido, a gente conversou uma semana e, numa sextafeira, a gente combinou de ir no bar. Por coincidência, ele é amigo de um outro menino que a Ju
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Um dia, eu estava no bar e o vi. A gente deu uma troca de olhares, só que eu estava com muita vergonha de chegar. Então eu pedi pra um amigo tirar uma foto dele e minha amiga postou no Spotted”
mandou no Spotted também. Ela já tinha ficado com esse amigo dele, e um dia, saímos eu, a Ju e nossos respectivos “pares”, a gente fez esse match no bar. Depois de uns dias, a gente ficou de novo e depois disso não ficou mais. A gente só se falou algumas outras vezes. E, assim, deu muito certo, eu achei que não fosse dar, mas deu muito certo”. Obs: Os nomes dessa história foram trocados para manter o anonimato dos envolvidos. Anônima – “Um dia, eu estava no bar e o vi. A gente deu uma troca de olhares, só que eu estava com muita vergonha de chegar. Então eu pedi pra um amigo tirar uma foto dele e minha amiga postou no Spotted. No dia que eles postaram, algumas horas depois, os amigos dele comentaram. Eu o achei no insta, comecei a seguir e ele me seguiu de volta e eu mandei um direct falando “Nossa, eu consegui te encontrar”. A gente trocou maior ideia e na mesma semana a gente já se trombou no hostel pra conversar e tomar uma ‘breja’. A gente se viu uns dois, três dias e foi ficar só no quarto dia. Desde então foi normal como se fosse qualquer outro ‘contatinho’. Ele é um cara bem legal, gosto dele bastante, e se ele quisesse se tornar meu namorado, eu não ia ligar não (risos). Mas foi bem legal, e depois disso a gente saiu várias vezes, já fui na casa dele, conheci a mãe dele. E agora ele tá fazendo intercâmbio, a gente se fala às vezes, e, quando ele voltar, a gente pretende continuar ficando. Não sei o que vai dar. Mas ‘deixa a vida me levar, vida leva eu’”. Obs: Os nomes dessa história foram trocados para manter o anonimato dos envolvidos.
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A galera, querendo ou não, se conhece, interage, marca e vira até um pouco de zueira. É bem legal” (Administrador da página do Facebook Spotted: PUC-SP)
(Anônima) Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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Permanência
Parir não é parar Os desafios enfrentados pelas mães que estudam, trabalham e resistem dentro da PUC
Por: Laura Pancini e Giordana Velluto anaína Silva, 30 anos, teve sua filha em 2014 no início do seu curso de Pedagogia na PUC-SP. Como muitas outras mães estudantes, ela concilia trabalho, estudo e maternidade quase sem nenhuma ajuda: “O trabalho e a demanda do estudo roubam o tempo para a maternidade, e a maternidade, além da demanda de tempo, exige foco e imersão, que acaba me tirando dos espaços e comprometendo minha vida acadêmica”. Apesar das dificuldades já enfrentadas no dia a dia, Janaína e sua filha sofreram uma discriminação em sala de aula no dia 27 de abril de 2018. O professor Jorge Cláudio Ribeiro, durante sua aula de Introdução ao Pensamento Teológico III, notou a presença da criança de 4 anos na sala e mostrou pouca empatia pela situação. De acordo com uma postagem feita pela própria aluna, o professor teria dito: “Essa criança está atrapalhando a minha aula. Você deveria estar em casa cuidando dela e, ao invés disso, a trouxe para jogar em mim sua responsabilidade”. Ao ser perguntada sobre o ocorrido, a estudante respondeu não ter uma rede de apoio, precisando, assim, levar sua filha à faculdade: “Tenho que me virar, e muitas vezes isso significa ter que levar minha filha para a PUC comigo”. Esse ataque em sala de aula inspirou a estudante a protestar em prol de todas as estudantes e suas crianças. O Contraponto fez várias tentativas, todas infrutíferas, de ouvir a versão oferecida pelo próprio professor Jorge Cláudio Ribeiro. “A maternidade nos coloca numa condição de vulnerabilidade com a criança que nós parimos. Vemos e sentimos na pele as violências do sistema, dos padrões sociais, do modo como as instituições criam seus regulamentos e estruturam seus cursos. Tudo fica evidenciado de modo mais escancarado”, afirma. Em entrevista ao Contraponto, Janaína deixa claro que o problema é muito maior do que somente um professor. A PUC-SP, apesar de oferecer auxílio-creche para professores e funcionários, teve sua própria creche fechada há mais de dez anos e, com isso, acabou tirando a oportunidade de muitas mães que buscavam concluir seus estudos. Essa falta de estrutura da universidade evidencia uma permanência do pensamento patriarcal que visa nossa sociedade. Com regulamentos que não incluem e nem consideram a possibilidade de uma mãe estudante, a instituição as priva de uma experiência universitária justa. “Para quem não tem filhos ou para quem não é pobre entender onde é que a universidade entra como responsável nisso, chega a ser bem complexo. Se nós achamos que é direito da mulher parir ou não, também deveríamos achar direito de a criança poder se sentir segura em seu espaço, que a mãe possa escolher a melhor maneira de estar com sua cria e que a responsabilidade não caia apenas nela. Isso é responsabilidade social e pública e por tanto, também da universidade”, diz Janaína. Os alunos também podem ajudar a fazer o espaço universitário mais receptivo e agradável para as mães e seus filhos. Refletir sobre a sobrecarga da mãe, se propor a conviver com crianças Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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Antes achava que seria tranquilo levá-la comigo para a faculdade, mas
agora que ela está ficando maiorzinha, demanda uma atenção maior.
Se eu realmente tivesse essa necessidade, óbvio que eu levaria” (Catharina Figueiredo, estudante de Jornalismo)
em um campus que as exclui, e ajudar quando necessário são pequenos gestos que, de acordo com Janaína, já ajudariam a transformar a PUC-SP em um lugar verdadeiramente para todos. Essa precariedade nos direitos das mães acabou inspirando a estudante a criar dois coletivos dentro da universidade. O primeiro, chamado “Parir não é parar”, foi criado meses após o nascimento de sua filha em 2014, com o intuito de discutir a “maternidade real, numa dimensão pública e coletiva” por meio de rodas, discussões e o ativismo na Internet. Já o segundo, “As PUC que pariu”, foi criado logo após a discriminação à Janaína e sua filha dentro da sala de aula, com o intuito de fortalecer e formalizar as pautas e demandas das mães de inúmeros outros cursos dentro da faculdade. Apesar do foco ser a maternidade, a maioria do coletivo é formado por alunas que não são mães. “Nós queremos manter essa pauta ativa dentro da PUC. Precisamos entender quem são essas mães, quais suas demandas, nos informar quanto aos nossos direitos e quais as responsabilidades da universidade, que não vem sendo cumpridas e nem sequer pensadas ou discutidas. Temos muita coisa para fazer e mudar, o importante agora é que essa pauta seja levada para todos os cursos, já que cada um possui uma demanda diferente e cria perfis de mulheres mães com aspectos particulares”, afirma Janaína. Outra mãe aluna da Pontifícia, Catharina Figueiredo, cursa jornalismo. Apesar de apresentar um perfil distinto de Janaína, ela encontra em sua rotina dificuldades similares. Por um lado, engravidou jovem, por outro, tem condições de bancar
“
Se nós achamos que é direito da mulher parir ou não, também
deveríamos achar direito a mãe
possa escolher a melhor maneira de estar com sua cria e que a responsabilidade não caia apenas nela. Isso é responsabilidade social e pública e por tanto, também da universidade”
uma babá para lhe auxiliar e, por conta disso, não teve a necessidade de levar sua filha, Marcella, de 4 meses, para dentro da sala de aula. “Antes achava que seria tranquilo levá-la comigo para a faculdade, mas agora que ela está ficando maiorzinha, demanda uma atenção maior. Se eu realmente tivesse essa necessidade, óbvio que eu levaria, mas chega um ponto que fica ainda mais difícil. Por mais que a Marcella não dê trabalho e meus colegas de classe gostem dela, ela quer brincar, quer ver e interagir. Então, eu acredito que não conseguiria focar na aula, até porque, quando estou com a minha filha, eu realmente me entrego somente a ela”, relata Catharina. Mas pensando em quem não tem alguém para ajudar, Catharina sugere que a PUC-SP poderia disponibilizar um berçário para quem se encontra nessa situação como uma alternativa, “Ainda mais uma universidade cara como essa”. Ela faz, ainda, uma comparação com empresas que apresentam esse tipo de auxílio, sendo algo viável, até porque o número de mulheres que engravidam e não fazem ou dão continuação à faculdade, na maioria das vezes, é por não terem auxílio para cuidar da criança. “Reconheço que sou um ponto fora da curva e o quão privilegiada eu sou, porque a maioria das adolescentes que passam por isso não recebem o apoio dos próprios pais e, até mesmo, do pai da criança. Por esse motivo, muitas vezes, têm que abrir mão dos estudos ou do emprego, e se dedicarem exclusivamente à maternidade”. Além disso, outro fator que dificulta ainda mais todo esse processo é o fato da mulher ainda ser vista como a responsável da criação dos filhos, enquanto o homem é apenas o provedor, não há uma igualdade de gênero. O pai não tem problema algum em continuar ou até ingressar na faculdade, ele não amamenta e não carrega o “peso social” de criar a criança, como a mãe. Assim, o feminismo tem um papel importante nessa luta. As mães estudantes, principalmente da PUC-SP, vêm sendo negligenciadas há muito tempo e esse é o momento para fortalecer o debate e criar uma consciência coletiva de grande relevância.
(Janaína Silva, estudante de Pedagogia) Junho 2018
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CONTRAPONTO
Ocupação
Estudantes paralizam a PUC, por cotas raciais para contratar docentes Por: Bruna de Rezende Braz Carmagnani
Movimento iniciado pelo curso de Serviço Social denuncia a quase inexistência de professores negros nos quadros da universidade
s alunos da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) ocuparam no dia 22/05/2018 o espaço universitário no campus Perdizes após a reitoria afirmar que não contrataria a professora negra, Marcia Eurico, no curso de Serviço Social. A professora seria a primeira docente negra no curso em 80 anos de sua existência. Os alunos do CASS (Centro Acadêmico do curso de Serviço Social) ocuparam na noite do dia 22 o prédio velho da universidade e, às 5h da manhã do dia 23/05/2018, emitiram uma nota de que o prédio novo estava ocupado, confirmando a paralisação da PUC-SP campus Perdizes. “Informamos por meio dessa nota que hoje, dia 23 de maio de 2018 a partir das 5 horas da manhã ocorreu a ocupação total do prédio novo, somando também com o prédio velho. Desse modo, estabelecendo a paralisação total da PUC-SP no campus Perdizes. Entendemos a ação como uma resposta às agressões sofridas durante a ocupação, ameaçando a resistência, a segurança dos alunos e o atendimento das pautas exigidas”, redigiram os alunos do CASS sobre a ocupação. A demanda pela contratação da professora substituta vai além disso. É sobre o confronto com um racismo estrutural vigente na universidade, em que, ainda hoje, nota-se uma minoria de docentes negros na instituição. Nas primeiras horas de ocupação, o professor Luis Volpato, docente da FEA (Faculdade de Economia e Administração) ameaçou verbalmente e fisicamente uma das alunas que compunham a ocupação. Em nota, o CASS ressalta que a agressão física não ocorreu uma vez que os próprios alunos fizeram uma barreira humana. Eles pediam pela não criminalização daqueles que ocuparam a universidade por um total de 5 dias. Demais cursos da PUCSP emitiram notas em apoio à ocupação, como o CA 22 de Agosto (do curso de direito), a Assembleia de estudantes de Psicologia, o CA Benevides Paixão, de jornalismo, entre outros. As aulas foram suspensas nos dias 23, 24 e 25/05, em prol das negociações com os estudantes. Esses reivindicavam seis itens: 1. A revisão curricular a ser desenvolvida, ainda esse ano, e implementada no ano de 2019, já com a inclusão de uma disciplina obrigatória para a questão de Raça e Etnia na graduação de Serviço Social; bem como, abrir uma linha de pesquisa sobre relações étnico raciais na Pós Graduação em Serviço Social (tal ato já foi sinalizado e acordado com a coordenação da graduação e pós-graduação) 2. A reformulação curricular do curso deverá ser realizada pelos docentes e discentes; 3. O processo seletivo com cotas raciais no primeiro semestre de 2019, para contratação de docente referente à disciplina obrigatória de Raça e Etnia; 4. Exigência de que a disciplina obrigatória proposta pela reitoria a ser implementada no segundo semestre de 2018 a ser ministrada pela professora Márcia Campos Eurico e, consequentemente, que sua contratação seja de caráter permanente e não temporário; 5. A implementação de cotas raciais para con-
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© Guilherme Queiroz
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Ministro Godói interditada
tratação de docentes em toda a graduação; 6. Não criminalização por parte da Reitoria e Fundação São Paulo dos estudantes que construíram a ocupação. A reitoria, em carta, no dia 24/05 acatou os itens 1, 2 e 3 da reivindicação dizendo que a competência é do curso de Serviço Social e seria tratada pela Faculdade de Ciências Sociais. O item 4 não foi contemplado totalmente, alegando que a professora poderia ministrar uma optativa no segundo semestre de 2018. Porém, tal condição não impede que a professora candidate-se para o processo seletivo de docentes conforme as regras vigentes, esclarecendo que esta é a única maneira de se ingressar como docente na PUCSP e que a disciplina optativa será mantida em todos os semestres, com diferentes temáticas, como requisitaram os alunos. Quanto ao item 5, foi dito: “(...)reiteramos que a proposta de cotas étnicos-raciais para docentes irá tramitar junto aos órgãos colegiados, durante o segundo semestre de 2018.” E por fim, quanto ao item 6, a reitoria se posicionou contra a criminalização dos alunos. Ao final da carta, disse que chegou ao limite das negociações e que esperaria o final da ocupação para dar continuidade às mesmas. Em resposta, no dia 24/05 os alunos redigiram um novo documento de acordo com os itens propostos à reitoria (itens 1, 2 e 3). Quanto ao item
5, pediram que as negociações fossem feitas, além dos órgãos representativos, com o coletivo Negrasô. Pediram, também, maiores informações sobre a disciplina que seria ministrada, como: a qual departamento essa disciplina estaria vinculada; se a disciplina seria permanente na universidade; qual seria o regime de contratação da professora em relação a lecionar a disciplina optativa; como essa disciplina seria colocada a fim de atender todos os interessados. Reiteraram que estavam abertos ao diálogo, mas que não desocupariam enquanto as exigências não fossem atendidas. A reitoria, por sua vez, deu um ultimato aos estudantes dizendo que havia chegado ao limite das negociações, no dia 24/05 as 22h28. No dia 25/05, um último documento foi redigido, com as propostas esclarecidas. Quanto ao item 3, foi anunciado que a professora Marcia Eurico terá uma disciplina de 4 créditos, turnos matutino e noturno, compondo um total de 8 créditos e um contrato de regime parcial de 15 horas/aula, para o segundo semestre de 2018. No final do documento, foi dado um ultimato para que a desocupação acontecesse até as 18h do dia 25/05. Em nota, após o documento redigido, os alunos do CASS se propuseram a desocupar a universidade.
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Junho 2018
CONTRAPONTO
Relato
Precisamos de mais humildade mesmo, Juliana Por: Luiza Vilela
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tamanhos e complexidades. Além da Uber, hoje é gerente de negócios de uma empresa de cosméticos. A Juliana possui graduação em Processos Gerenciais pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), Especialização LATO SENSU em Gestão Empresarial pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), LATO SENSU Master of Business Administration (MBA) em Gestão de Pessoas pelo Centro Universitário Anhanguera (ANHANGUERA). A Juliana já viajou pra tudo quanto é canto do Brasil e para vários países do mundo. Já fez orientação de TCC de um monte de alunos. A Juliana tem o nome gravado no Google com suas conquistas, classificada como estudiosa no Escavador, um nome de referência e importância dentro do mercado. Ela foi me contando tudo o que já fez. Era tanta coisa que eu me perdi no meio do caminho. No começo da viagem eu estava me sentindo minimamente importante por fazer uma faculdade legal, já ter um estágio, saber escrever e ter alguém pra conversar e compartilhar tudo isso. É legal quando alguém se dispõe a entender o que você faz e te respeita por isso, e foi o que eu senti da Juliana no começo da viagem, antes de saber do currículo dela. A Juliana, que vai fazer doutorado fora do país, prestou atenção em tudo o que eu disse e manteve o respeito por mim. No começo da viagem eu tive um pré-julgamento que tinha uma boa profissão e um currículo legal. No meio dela, eu me senti uma formiga sem formigueiro dentro do carro. Eu fiquei perplexa. A Juliana é brilhante, é um gênio. E eu... bem, quem era eu? Sem perceber, aquilo foi se tornando uma entrevista. Eu perguntava, ela respondia da maneira mais profissional possível. Até que, em um dado momento, a pergunta inevitável veio à tona. “Juliana, por que Uber?” A Juliana olhou pelo retrovisor e explicou todas as coisas que fez durante a vida. “Passei minha vida inteira estudando, me profissionalizando e hoje não quero nada disso. Eu dei aula em faculdade e, bem, estudando do jeito que eu estudo, sempre reconheci que a gente sempre tem a aprender. Na universidade, os alunos eram muito arrogantes. Eu vim pra Uber porque aqui, ninguém manda no meu serviço, eu mesma faço meu horário... Eu gosto de analisar personalidades, e cada passageiro sempre tem uma história pra contar. Você, como jornalista, deve entender isso né? Haha. Pago minhas contas, tenho uma folguinha com meus dois empregos e consigo bancar tudo o que preciso, principalmente para o meu noivo. Eu estou muito feliz com minha vida agora, Luiza. E nunca mais quero dar aula, pela arrogância dos alunos. Não tenho mais paciência pra quem mal sabe da vida e já se acha um Deus”. A Juliana estava me analisando e a única coisa que eu conseguia exprimir naquele momento era admiração por uma mulher como ela. Estava quase em choque. Que mulher, meus caros. Fiquei com vergonha de mim. “Sabe Luiza, a gente precisa de mais humildade. Todo mundo que senta aqui acha que eu não sei de nada, que não tenho conhecimento, que tô desempregada e, por isso, trabalho com Uber. Ninguém nem imagina o tamanho da minha experiência. E eu prefiro nem dizer, é engraçado ver o pessoal falando como se soubesse de tudo. Você como jornalista deve ter passado por isso né?” “Ainda não, Juliana. Eu tô estudando ainda... não fiz tanta coisa. Ainda tenho muito pra conhecer da vida”. “Tem mesmo” Eu me encolhi no banco de trás. Eu fazia parte das pessoas sentadas que não acreditavam no que estava acontecendo.
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oje acordei tão atrasada para ir a aula que precisei pedir um Uber. Veja bem, meu dia estava fadado a dar errado logo de manhã: eu atrasei para a aula, estava pagando a mais pra ir para faculdade, com sono e de saco cheio da vida. A única coisa que eu não queria, durante o trajeto, era conversar. Estava sem paciência. Foi logo no começo da viagem que minha impaciência matinal se amenizou. Me senti despreocupada: “Juliana está chegando”. Uma motorista mulher. São raras as mulheres que trabalham com Uber e toda vez que aparecem, me dão um ar de segurança muito maior: o medo de estupro e de assédio diminui em 100%, e o prazer de ver uma mulher ocupando um papel teoricamente masculino também me tira um sorriso. Olhando para a placa do carro, uma coisa a mais surpreendeu: a nota. Todos os motoristas são avaliados pelos passageiros, e a nota da Juliana era 4.98. Fun fact: a nota máxima é 5.00. Profissional desde o começo, quando abri a porta do carro, a Juliana já me alertou: “Olá, Luiza, tudo bem? Seu destino é tal, você está compartilhando a viagem com fulano. A previsão de chegada hoje é em x minutos. Posso seguir pelo caminho do aplicativo ou a senhora tem um caminho de preferência?” Até me surpreendi com o tratamento tão formal. “Obrigada, Juliana. Vamos seguir pelo aplicativo”. Seguimos viagem, então, eu, Juliana e um outro cara, sentado no banco da frente. Estavam conversando sobre religiões islâmicas. Fiquei quietinha porque não queria conversar, mas senti uma pulga atrás da orelha. Como a boa semi-jornalista curiosa que sou, virei a cabeça para ouvir um pouco da conversa. No começo, achei baboseira. Como peguei o assunto no meio do caminho, me pareceu que a Juliana estava mais concordando e falando do amor a Deus, enquanto o passageiro falava um glossário de explicações sobre o islamismo e suas inúmeras linhas de pensamento. Ouvi com atenção: Juliana só ouvia, concordava, fazia algumas perguntas. Pra quem estava do banco de trás, parecia mesmo que ela não tinha muita noção do que estava ouvindo. Afinal, é isso, né? A Juliana trabalha com Uber. Não dá pra esperar muito disso. Quando o passageiro foi embora, Juliana me pediu desculpas pela faladeira. Disse que tem que conversar para não parecer mal-educada, e deixa sempre o passageiro falar. Comentei que a temática parecia importante e ela desatou a falar sobre o islamismo. Quando o assunto morreu, porque eu estava com pouca vontade de conversar, ela virou e perguntou: “A senhora está indo para a PUC?” “Tô sim” “Estuda o quê?” “Jornalismo” Minha vontade de ficar quieta foi sumindo enquanto eu falava e começamos, então, a conversar sobre a profissão, eu falando e ela apenas ouvindo, concordando e comentando algumas coisas. Falei dos projetos acadêmicos que fiz na faculdade, do estágio, da profissão em si. A Juliana ouvia como se soubesse muito pouco de tudo aquilo. A conversa evoluiu. E foi aí que eu tomei um grande susto. “Já que a senhora é quase uma jornalista, deve gostar de histórias né? Sabe... As pessoas precisam ser mais humildes. Eu sou formada em educação, sabia?” “É mesmo? Por onde?” E aí a Juliana falou. Aquilo se desenvolveu como uma entrevista. Ela falou que é formada em educação, que já deu aula em universidade, que tem um currículo lattes de mais de cinco folhas, estudos em MBA, fluente em quatro línguas, estágio avançado em árabe. Ela comentou que queria aprender mandarim. A Juliana, que trabalha na Uber, com nota de excelência, que só atende Uber Select e, por coincidência do mundo, aceitou uma viagem no Uber Pool justo comigo, já concluiu 77 cursos livres e estudou a vida inteira. Durante anos exerceu diversas funções, teve atuação no desenvolvimento de grandes projetos especiais em diversas empresas de diferentes
Enchi a Juliana de perguntas. Adorei ouvir as respostas e deixei minha curiosidade satisfeita. Mas ainda faltava algo. Em um dado momento, questionei: “E quando é que você vai se casar?” A Juliana parou de falar. Ficou quietinha, dirigiu mais um pouco e me olhou pelo retrovisor meio desconfiada. Se antes ela falava com a precisão de um palestrante, agora estava com os ombros encolhidos. “Eu não sei... depende de muita coisa.” Dava pra ver as lágrimas se formando nos olhos da Juliana. “Desculpa, me emocionei... É que é tão difícil... Meu noivo tem 23 anos, eu tenho 39. Nos gostamos muito, sabe? Ele é sírio, refugiado. Eu tenho um pouco de ciúmes dele haha... Parece um modelo... Eu sou muçulmana. Queremos nos casar, mas a mãe dele está no Líbano.” Não dava pra acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. “Uma vez me confundiram com a mãe dele. Fiquei arrasada, sabe? As pessoas não conseguem aceitar, mas a gente se gosta muito.” Parei um pouco pra pensar. 23 anos para 39 é uma diferença muito grande... Meu namorado tem 24. Que história, Juliana, que história. Nem conseguia responder direito. “E vocês pretendem se casar fora?” “Sim, numa mesquita. Eu ajudo ele a pagar as contas. Ele mora comigo, no meu apartamento, e eu ajudo a pagar quase tudo. Menos a aliança... Ele vai me dar uma aliança, acredita? Com o dinheiro dele. Não me deixou ajudar, disse que tinha guardado pra isso.” “Isso que é a amor hein?” “É sim, Luiza. Mas também é muito difícil. Essa semana fui assaltada no Uber e perdi 1000 reais.” Juliana parou de falar por um minuto pra limpar as lágrimas dos olhos. “Sabe Luiza, é muito difícil. Esse dinheiro eu tava usando pra pagar a passagem da mãe dele.... Eu tinha guardado há tanto tempo, ia enviar para ela. Faz mais de um ano que os dois não se vêm. Mas eu vou conseguir tudo de novo, se deus quiser. Não ver a mãe é muito triste” “Você ama ele, Juliana?” “Amo... Amo muito meu noivo. Falta de amor entre nós nunca aconteceu. Mas a gente vai conseguir. Eu vou conseguir. Eu amo meu noivo, ele já passou por tanta coisa no país dele, que fica difícil não querer ajudar. Eu não posso deixar ele aqui sozinho, sabe? E ele também me ama. Ele tem como me deixar, tem os documentos todos certinhos de refugiados, mas nunca me deixou porque me ama também”. No final da viagem, a Juliana me deixou na frente da faculdade com lágrimas nos olhos. Eu fiquei sem reação. “Desculpa, não queria fazer você chorar” “Tudo bem. Eu perdi meus pais muito cedo, sabe? Sou uma pessoa que não chora por quase nada... mas quando me falam da minha sogra, eu simplesmente não consigo. Espera um minutinho aqui pra acompanhar a finalização da sua viagem tá? Aqui, avaliada e viagem finalizada. Tchau, Luiza, boa sorte na vida e bom dia. Obrigada por me ouvir” “Magina, Juliana. Boa sorte com a sua luta, tenho certeza que tudo vai dar certo. Com amor e sacrifício, tudo acontece, te garanto. Você é uma pessoa incrível, tudo vai dar certo” “Obrigada. Eu vou conseguir, eu sei. Vai com deus, menina, amém”. “Amém”. Assim que a Juliana virou o carro, eu fiquei olhando até ela ir embora. Ela me falou tantas coisas que foi difícil de processar tudo. As pessoas têm uma história de vida que vai muito além do que a gente pensa, não é mesmo? Bem... A Juliana me lembrou de um trecho da música da Elis Regina: “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Olha o tamanho da vida da Juliana. A Juliana do Uber. A Juliana formada em quase tudo. A Juliana que vai se casar. Vai com Deus, Juliana. As coisas vão dar certo pra você. Por agora, fico com a sua mensagem. A gente precisa mesmo ter mais humildade.
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entre as galerias de fel que pingam Por: Matheus Lopes Quirino nas originais Pequenas Epifanias, Em Pequenas Epifanias, na homônima crônidestacam-se exímios relatos sobre a compreca, a precoce disparada explicita o estado de espírito ensão da arte de amar. No livro póstumo de do cronista constantemente aturdido pelos próprios crônicas do jornalista e escritor Caio Fernando sentimentos, já nos primeiros versos: “Há alguns dias, Abreu (1948-1996), diretamente dos trópicos Deus [...] enviou-me certo presente ambíguo: uma sul-americanos, o gênero literário, pelas mãos possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, com nodosas do gaúcho, sofre mutáveis baques descuido e alguma pressa, de amor”. estilísticos, encarnando dores e angústias Tão delicado quanto profundo, o estilo de refinadas por miudezas ou grandiloquências cronista é comparado à introspecção lispectoriana. – quando não, pela antítese que a condição No carteado das angústias, sempre munido de humana dá à criatura –, ou as duas de uma só um fabuloso jogo de referências e condecorações vez. Caio Fernando Abreu cravou uma crônica literárias, na crônica Carlos chega ao céu, por uma ao estilo “lado b”. bela homenagem, brinda-se a memória do poeta “Andaram falando que minhas crônicas Carlos Drummond de Andrade. Do itinerário crôniestavam tristes demais. Aí escrevi esta, pra variar co de Caio Fernando, por uma série de elementos um pouco. Pois como já dizia Cecília/Mia Farreferenciais, são postos diálogos entre a cultura row em A Rosa púrpura do Cairo: “Encontrei o pop, boa literatura, clássicas inspirações, notáveis amor. Ele não é real, mas que se há de fazer? A em crônicas como O mistério do cavalo de Édipo gente não pode ter tudo na vida...”, escreveu e Para ler ao som de Vinicius de Moraes. Caio Fernando Abreu, em Quando Setembro Indubitavelmente, a singularidade e o estilo Vier, crônica publicada no Caderno 2, no jornal pungem questões acerca do âmago de seus próO Estado de S. Paulo, em agosto de 1986. Pequenas Epifânias ximos ao detalhado “autorretrato”; impulsionado Polemista, genioso e genial, ele fotograAutor: Caio Fernando Abreu por paixões aterradoras, mágicas e trágicas, Caio fou com exatidão pontos, vírgulas, travessões, 1996, várias edições Fernando cultivou, além de girassóis – vale conferir silêncios e vazios em diálogos com o leitor a crônica A morte dos girassóis –, um diário aberto sobre solidão, amor e, por altos e baixos, imde sua alma, por excelentes metáforas e sacadas, pressões sociais do Baixo Augusta ao Paraíso (o de artigo definido mesmo) no auge dos anos 1970 e 1980. Ainda que das ligeiras e ferinas ao etéreo. A seleção de tônicas brinda o leitor com como cronista tenha obtido demasiada notoriedade, foi com a coletânea uma tônica noir (geral), como um dos últimos drinks amargos apreciado por de contos Morangos Mofados (Editora Agir, 1982) que o sucesso como canudinho; ao final do baque, infere-se uma pitada de doçura como corpo de fundo de um café preto tomado em jejum. escritor foi iminente, sendo o livro considerado o seu Magnum opus. © London December 15 2017 (60) National Gallery Vincent Van Gogh (by David Holt)
RESENHA
Pequenas Epifanias dá ao leitor “lado b” da crônica brasileira
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epousei a cabeça no braço do sofá. A fadiga já havia tomado posse do meu ser e, para completar, chovia. Um cenário sublime. O monótono escritório acabou com esperança qualquer de atividade para aquele dia. Ansiava, categoricamente, por uma ducha, um jantar – nada refinado, longe disso – e o beijo dela, apenas. Quinto andar. O corredor estava silencioso. Nenhuma nota de Tim Maia ou Caetano, costumeiras, ecoava pelo pequeno saguão. Os cinco ou seis passos até a porta causaram-me um mal-estar, como se anunciassem uma crueldade. Percebi, ao entrar e deparar-me com o apartamento enclausurado na escuridão da noite, que, de fato, estava diante de uma. Acendi as luzes, procurei-a, mas não obtive o retorno esperado. Tomei o celular, e nenhuma notificação. Sobre a mesa, preso entre laranjas dispersas pela fruteira, um bilhete grafado com letras apressadas: “as ilusões de tuas ideias levaram-te a isto. Esquece-me, nunca pertenci a ti”. Corri para o quarto. As prateleiras, assim como meu coração, estavam vazias, empoeiradas. Pensei em ligar, mandar uma mensagem, transmitir qualquer sinal de vida ou interesse, mas o pensamento estagnado não sabia a quem recorrer. A ação repentina, entretanto, não me pegou de surpresa. Nosso contato esfriava a cada novo dia, não nos conhecíamos mais. Às vezes ela saía, não me certificava para onde ou o porquê, e demorava a retornar. Dias, semanas. Sua intensidade e excitação eram evidentes, diferentemente de mim. Não a merecia. Subitamente, acordei. Um trovão retumbante jogou-me para o outro lado do sofá. Passei as mãos no rosto e a consciência voltou a processar o mundo. Olhei ao redor, tudo não passou de um sonho. Esforcei-me até a cozinha. A música ainda não tocava, nenhuma luz estava acesa e eu ainda me encontrava só. Tomei um copo d’água
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Por: Vitor Hugo Gonçalves
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CRÔNICA
Angústia em realidade
“de tua ausente conhecida. Felicidade” e olhei para a fruteira. O sonho passou pelo meu imaginário e, como um déjà vu, recordei o bilhete. Abaixo da angustiante mensagem, havia, com letras miúdas, uma assinatura: “de tua ausente conhecida, Felicidade”. Penso em sair, dar uma volta para espairecer, interagir. Cogitei, mas não fui adiante. Falta-me, acima de tudo, ânimo. Volto para o sofá, salto entre alguns canais e, opressivo, meu íntimo cobra-me. Já não sei o que me é mais triste: o sonho que tive ou minha singular realidade.
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Junho 2018
ANTENA
Por: Matheus Lopes Quirino *
■ 13ª Congresso da Abraji
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Com cerca de 70 palestras, painéis e cursos práticos, o 13ª Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo ocorrerá em São Paulo nos dias 28, 29 e 30 de junho, no campus Vila Olímpia da Universidade Anhembi Morumbi. Patrocinado pelo GrupoGlobo, Google News Initiative e Facebook Journalism Project, as inscrições para o evento permanecerão abertas até o dia 25 de junho, com preços que vão de R$ 215 à R$ 490. Os participantes podem escolher para quais eventos se direcionar por meio de um “cardápio” das programações disponível no site do congresso. O cronograma do evento preenche todo o dia e conta com muitas atrações. Na quinta-feira (28), haverá palestras sobre jornalismo de dados, em que será discutida a utilização de dados públicos e truques com planilhas, além de cursos sobre negócios jornalísticos, onde os participantes serão orientados como fazer seu conteúdo chegar ao público sem depender das redes sociais. Na sexta (29), é a vez de cursos sobre as dificuldades e recompensas de pequenas iniciativas de mídia no Brasil e palestras sobre como jornalistas podem se tornar empreendedores e líderes da mudança.
No sábado (30), haverá oficinas de CrowdTangle, onde os participantes aprenderão a descobrir histórias e acompanhar candidatos nas redes sociais, palestras sobre como planejar seu produto jornalístico, numa oficina de design thinking e um debate sobre os erros e acertos da cobertura da Lava Jato. (* Colaborou Raul Vito) assim como checagem de informação, a importância das notícias além do fenômeno do “hard news”, a entrega dos profissionais à fonte, e uma séria de questões éticas e primorosas na confecção de boas reportagens.
■ O Jornalismo Literário perde
■ Debates Da reportagem local – Ocorreu na Casa Guilherme de Almeida (rua Macapá) o debate Jornalismo Literário em pauta. Abordando o futuro das grandes reportagens em um panorama pouco animador para o jornalismo minucioso, inventivo e, excepcionalmente, mais lento, os debatedores, jornalistas, Christian Carvalho, autor de Entretanto, foi assim que aconteceu (Arquipélago, 2011), Vitor Hugo Brandalise, autor de O último abraço (Record, 2017) e Monica Martinez, autora de Professor de Ilusões (Prumo, 2012) deram ao público os bastidores por trás de suas próprias reportagens. O futuro da “instituição” jornalismo foi provocado pelos debatedores que, atualmente, atuam como frilas fora da lógica da grande imprensa. Discutiu-se, idem, o enlace entre as técnicas literárias na quentura da apuração jornalística,
■ Revista Veredas vem aí! A Revista Veredas é uma publicação impressa que aborda de literatura à arte, tendo em seu cardápio mensal contos, crônicas, poesia, reportagens, entrevistas, colunas e mais uma série de conteúdos envolvendo convidados ilustres e “ilustres desconhecidos”. O projeto não tem fins lucrativos, e é tocado por alunos de Jornalismo e Letras da PUC-SP e USP. Você pode adquirir uma revista mandando um e-mail para veredas. revista@gmail.com, apoiando esse projeto independente.
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Aos 88 anos, o jornalista norte-americano Tom Wolfe faleceu no dia 14 de maio, em Nova York. Na efervescência jornalística da década de 1960, Wolfe trouxe às suas reportagens lirismo e técnicas do, até então novíssimo em folha, new journalism. Ao lado de Truman Capote, autor de A Sangue Frio, Gay Talese, Voyeur e Norman Mailer, Os nus e os mortos, Wolfe foi um dos precursores da popularização do gênero nos Estados Unidos e no mundo. Pupilo da escola do realismo literário, escola de grandes ícones como Gustave Flaubert, Charles Dickens, Honoré de Balzac e, no Brasil, Machado de Assis, Tom Wolfe constituiu meticulosas descrições O jornalista e escritor Tom acerca da crônica social e de perfis; Wolfe sua obra de maior repercussão foi Fogueira das Vaidades, 1987. Após um iminente fracasso cinematográfico na adaptação da Fogueira de Wolfe, seu estilo galgou fãs de diversas tribos; Tom Wolfe não deixou uma vasta obra, mas destacam-se, dentre os bons romances, Eu sou Charlotte Simmons e O Reino da fala, lançados em 2004 e 2016 no Brasil, ambos pela Editora Rocco. Tom Wolfe tinha duas marcas registradas: a prosa cirúrgica e os ternos brancos e engomados.
Post-it poético A covardia se apossa dos corpos. A covardia se faz dos corpos. Covarde são eles próprios. Que sentem. O mar distante. O vento próximo. O vento é dor certeira de uma vida cega.– ele refresca e massageia cada camada de pele pertencente ao corpo. Mas quando o olho sensível se encontra com o vento. Cria-se um doloroso poder sobre o corpo. O mar é o sonho de um corpo consciente. O vento surge do mar. Mas o mar é a coalescência dos sonhos insubstituíveis. Dos corpos. Somos covardes o suficiente para aceitar essa condição andar de encontro ao vento e crer que essa é nossa potência. Sofrer. Correr. Morrer. E finalmente, Nadar. Por: Mariana Ribas
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Junho 2018
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CONTRAPONTO
Por: João Abel
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cair da noite do sábado, 26 de maio, trouxe (mais uma vez) alegria às ruas de Madrid. A 13ª taça europeia do Real fez a capital espanhola festejar novamente uma conquista continental. Mas para lá da Ponte de Vallecas, já no subúrbio madrilenho, outros apaixonados por futebol mal conseguiam pegar no sono de tanta ansiedade. E o motivo passava bem longe da final da Champions League: eram os torcedores do Rayo Vallecano, à espera de um jogo decisivo pela segunda divisão do Campeonato Espanhol. O domingo chegou e, com ele, a partida tão esperada entre Rayo e Lugo, pela 41ª (e penúltima) rodada do torneio nacional. Era dia de ‘volver’ à elite, da qual os vallecanos se despediram na temporada 2015/16. O acanhado estádio Teresa Rivero viu seus 15 mil lugares tomados de gente. De gente com a esperança de ver um time suburbano retornando ao palco dos grandes clubes espanhóis. O atacante Álex Moreno fez a torcida explodir de emoção aos 40 minutos do primeiro tempo. O único gol do jogo, mas suficiente para a vitória e classificação do Rayo Vallecano a ‘La Liga’ 2018/19. Três pontos que levaram o time a 76 no total e à liderança da ‘série B’ espanhola. O Huesca, com 75, também voltou ao primeiro escalão nacional. A terceira vaga de acesso é disputada em um play-off envolvendo do terceiro ao sexto colocados da Segunda Divisão Espanhola: Sporting Gijón, Zaragoza, Numancia e Valladolid. Rayo Vallecano: um clube político – Mais do que esportiva, a vitória do Rayo é também um triunfo das causas sociais, sempre levantadas pelo clube de origem operária. O time jamais escondeu seu caráter esquerdista e o apoio às bandeiras feministas, raciais e LGBTs. O bairro de Vallecas, sede do time, é considerado um dos mais humildes de Madrid, bem longe de toda a pompa de distritos como o Hispanoamérica, onde está o estádio Santiago Bernabéu, ou de Canillejas, casa da arena Wanda Metropolitano. Repleto de conjuntos habitacionais, a região suburbana se tornou abrigo para migrantes de outros países ou regiões espanholas, e é uma das zonas com maior índice de desemprego na cidade. Um lugar em que o futebol se tornou meio de dar voz aos problemas sociais. O Rayo foi o primeiro time da Espanha a ser presidido por uma mulher, Teresa Rivero, e se considera o verdadeiro clube operário da capital espanhola, figura que, em geral, é associada ao Atlético de Madrid. Mas os vallecanos contestam, lembrando da existência do grupo organizado ‘Frente Atlético’ e sua conduta supostamente fascista, além da situação econômica mais favorável dos torcedores ‘colchoneros’. Dentro e fora de campo, o Rayo Vallecano já deu diversas demonstrações de engajamento. Em 2017, por exemplo, torcedores organizados protestaram contra a contratação do ucraniano Roman Zozulya, que tinha vínculos com organizações neonazistas no país-natal. A diretoria acolheu o pedido e desfez as negociações com o atleta. Mais do que isso, os dirigentes do clube também mostraram, por diversas vezes o alinhamento com importantes bandeiras, como fizeram
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CO N T R A P O N TO
Uma outra festa no subúrbio de Madrid Enquanto a ‘cidade alta’ comemorava Champions League, o progressista time do bairro de Vallecas celebrou retorno à Primeira Divisão
Festa dos torcedores vallecanos com o time
Jogadores comemoram o gol de Álex Moreno, que recolocou o Rayo na elite espanhola
© Fotos: Reprodução
Contra-ataque
Camisa do time que incorporou causas sociais como a luta contra o câncer de mama e a bandeira do orgulho LGBT
(fotos acima) Faixas de cunho político e social da torcida organizada do Rayo
ao trocar a característica faixa vermelha do uniforme pelas cores do orgulho LGBT e pelo rosa, em alerta à prevenção do câncer de mama. Curiosamente, a equipe feminina do Rayo tem resultados esportivos bem mais expressivos que a masculina. São três títulos da Primeira Divisão Espanhola, além de ter contado com a brasileira Milene Domingues no elenco no ano de 2002. Uma das críticas da torcida ao atual presidente Raul Martín Presa foi a tentativa de acabar com o departamento feminino. Os próprios torcedores, pressionaram para impedir que isso acontecesse e montaram um crowdfunding [campanha de financiamento coletivo] para financiar o time.
À Sombra de Gigantes – No Brasil, o Rayo já ganhou até espaço literário. O clube é protagonista do capítulo 2 do livro À Sombra de Gigantes, escrito pelo jornalista Leandro Vignoli e lançado no ano passado. A publicação traz a história de 13 times pequenos e emblemáticos da Europa como o St. Pauli, da Alemanha, e o Millwall, da Inglaterra. Vale a leitura. Viva Vallecas. Viva el Rayo!
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Junho 2018