ano 16 - edição 48
junho de 2018
revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR
Baile da saudade O Clube dos Solitários reinventa, desde 1982, histórias de amor entre pessoas da terceira idade
Corpo da matéria Ano 16 - Edição 48 - Junho de 2018 Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR REITOR
Waldemiro Gremski DECANA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
Eliane C. Francisco Maffezzolli
COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO
Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR EDITORIAL
Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL
Paulo Camargo (DRT-PR 2569)
COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO
Rafael Andrade
Alunos - 6º Período Jornalismo PUCPR Breno Henrique Machado Soares , Caroline Deina de Farias , Flávia Silveira Farhat , Heloisa Vivian Masetto , Isabel Bruder Woitowicz , Letícia Garib Machado , Luis Gustavo Ribeiro , Luiz Guilherme Ribinski Bernardo , Luiz Renato Farah Mourão , Luiza Romani Fogaça de Souza , Nicolle Heep , Patricia Helena de Ribeiro Munhoz Costa , Rafael Henrique dos Reis Bronze , Sophia Thereza Cabral , Stella Augusta Prado Alves , Vitória Gabardo de Oliveira
Imagem de capa: Heloísa Masetto 6ºP Jornalismo
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COMPORTAMENTO
Clube dos solitários
Baseado em quê?
Filhos? Melhor não tê-los!
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CIDADES Refúgio do dia a dia
EDUCAÇÃO
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Escolas são pessoas
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SOCIEDADE Eu vou sozinha, e você?
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ESPECIAL: A VIDA QUE NINGUÉM VÊ
34 40 Basta! 44 Lixo ordinário 48 De passagem
Aqueles que estão ao redor
Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Clube dos Solitários
A Matineé dançante, que acontece todos os sábados e domingos em um antigo galpão na Travessa da Lapa, completa 30 anos unindo mais de 8 mil casais Reportagem: Flávia Farhat, Heloísa Masetto e Stella Prado.
Heloísa Masetto
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A
literatura mitológica conta a história de um garotinho de asas brancas e cabelos cacheados que vaga pelo mundo disparando flechas e fazendo completos estranhos caírem de joelhos em paixão repentina uns pelos outros. Eros, na mitologia grega, ou Cupido, na romana, é o filho descuidado dos deuses Vênus e Mercúrio. Atira suas setas de forma aleatória, quase negligente, e raramente agrada seus alvos. O que pouca gente sabe é que Eros, ou Cupido, atende ainda por um terceiro nome na cidade de Curitiba. Aqui, o filho dos deuses responde por Rosaldo Pereira e se esconde no corpo de um radialista na casa dos 70 anos, de camisa social, cabelos ralos e, até onde se pode ver, nada de asas brancas. O cupido agora cumpre seu ofício de maneira muito mais cautelosa. Dono do Clube dos Solitários, um dos mais populares bailes para a terceira idade do país, seu Rosaldo de negligente também não tem nada. Nos 30 anos que se seguiram desde a inauguração do baile, já assistiu a quase mil casamentos de gente que se conheceu ali, em seu estabelecimento, e chegou até o altar.
Rosaldo e a esposa Karen
Heloisa Masetto
O ser humano precisa ter alguém pra conversar”, diz seu Rosaldo. E comprova sua teoria, observando as mais de 500 pessoas que comparecem ao baile todos os fins de semana com devoção. Ali, a ordem da casa é tomar uma cerveja bem gelada, arriscar alguns passos de dança e, quem sabe, ser atingido por uma das flechas do tal cupido brasileiro. A história do Clube dos Solitários, entretanto, nem sempre contou com um local físico para reunir os apaixonados. Inicialmente, Rosaldo Pereira conduzia um programa da rádio Colombo, o conhecido Quadro Casamenteiro, no qual se propunha a ler cartas de amor para formar novos casais. A atração, que existe desde 1982, foi idealizada e desenvolvida por ninguém menos do que o diretor de televisão global Daniel Filho, dando origem, em 1987, aos encontros semanais de pessoas até então carentes e que não tinham espaço para manifestar seus sentimentos além das ondas sonoras do rádio. Um esboço rudimentar dos aplicativos de relacionamentos da era digital. Foi a pedido dos próprios ouvintes que Rosaldo começou a procurar por um lugar onde os encontros pudessem acontecer. Depois de algumas tentativas nas praças públicas da cidade, marcaram de se reunir em um salão espaçoso, na Sociedade União Juventus, que acomodou em torno de 60 pessoas no primeiro encontro oficial do clube. Para um salão tão grande, o encontro acabou ficando pequeno. ‘’Ficou um negócio estranho, aquele silêncio no salão”, conta o idealizador do baile. Aos poucos, os participantes dos encontros propuseram melhorias. “Põe uma musiquinha pra ver se quebra o gelo”, sugeriu uma das senhoras. “E vê se arranja umas cervejinhas também.” Jornalismo PUCPR Revista CDM
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No terceiro encontro, os 60 convidados se transformaram em 200. Assim, a reunião dos solitários em nome do amor se tornou baile. Com eventos cada vez maiores, o baile transitou entre uma balada no bairro Prado Velho, passou um tempo na Sociedade Operária 13 de Maio, de lá foi para o 4.º andar do Diretório Acadêmico Nilo Cairo, até que finalmente se fixou na Travessa da Lapa.
"Forte mesmo são os ritmos gaúcho, sertanejo, valsa e bolero, ou seja, o que se pode dançar coladinho, a dois." O espaço alugado foi um sucesso, quando em 2006, um problema na fiação iniciou um incêndio. “Às duas da manhã, não teve jeito, o teto desabou com tudo”, lamenta Rosaldo. A pedido dos solitários, não foi permitindo que o baile acabasse, sendo temporariamente transferido para a Sociedade Operária 13 de Maio e posteriormente para um barracão localizado na Rua Barão Rio Branco, onde permanceu por quase cinco anos. Foi então que, em 2009, seu Rosaldo recebeu a proposta de voltar a Travessa da Lapa, naquele mesmo salão que havia pegado fogo, só que agora reformado. No primeiro dia de janeiro de 2010, o baile volta oficialmente ao seu endereço atual. Aos sábados e aos domingos, a programação começa com música mecânica. A mesa de som é operada por ninguém menos do que DJ Rosaldo Pereira. Na sequência, duplas e conjuntos musicais embalam o salão. As músicas que fazem a trilha sonora vão de Altemar Dutra a Beatles, mas o forte mesmo são os ritmos 6
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gaúcho, sertanejo, valsa e bolero, ou seja, o que pode ser dançado coladinho, a dois. Mais do que um baile semanal, o Clube é uma reunião em torno de Rosaldo. Se ele não está lá, a coisa não funciona. A marca Em Nome do Amor se deve a uma música homônima da dupla Leandro e Leonardo, pedida mais de dez vezes por baile. De tanto casamento que já aconteceu por lá, Rosaldo agradece, mas não aceita mais convite para ser padrinho. Em compensação, os casais podem fazer a festa comemorativa lá mesmo. Por sinal, ele diz que mais de mil pessoas se conheceram e casaram desde que os bailes começaram. Sem contar os 8 mil matrimônios registrados “com convite e tudo” do Quadro Casamenteiro.
Amor de Baile Das oito mil histórias de amor que começaram nos bailes está a de Niuza de Oliveira e de José Antonio Sicora. Ela frequenta o baile há 15 anos e conta quev, quando os dois ouviam os primeiros acordes de sanfona da música “Bu-
"Nem quando a gente estiver de bangala vamos deixar de vir aqui. Eu seguro a bengala dele, ele segura a minha, e a gente dança devagarinho." Marcia Gonçalves gio Roncador”, procuravam um ao outro no salão do clube para dançarem juntos. Mas eles não se conheciam oficialmente, o que sempre os unia em todos os bailes era o prazer em bailar aquela vaneira gaúcha. Até que depois Heloisa Masetto Jornalismo PUCPR Revista CDM
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de rodopiar pelo salão dançando a música favorita dos dois, ele pagou uma cerveja para ela e eles decidiram se conhecer melhor. “A dança sempre deu muito certo, dia 25 de dezembro vai fazer três anos que estamos namorando e estamos felizes da vida”, conta Niuza. A maioria dos casais que se formam no baile é porque existe uma compatibilidade na dança. Porque apesar de levar o nome de Baile dos Solitários, de solitários os participantes não têm nada. Eles conhecem todo mundo, fazem amizades com facilidade e o mais importante: dançam a noite toda.“Se não te tiram pra dançar, você vai lá e tira”, conta Lineri Afonso. Há um ano ela conheceu o namorado no baile, mas diferentemente de Niuza e José Antonio, que demoraram muitas danças para se conhecer, assim que viu o pretendente, ela mirou no alvo e acertou em cheio. Lineri já frequentava outros bailes e não estava em busca de um
relacionamento, mas acredita que aquele foi o seu dia de sorte porque, além de bom dançarino, ela e o parceiro têm muito em comum. Com 55 anos e frequentadora de bailes há pelo menos cinco anos, Lineri explica o preconceito que as pessoas têm com os casais que se formam no baile: “As pessoas acham aqui não vem gente boa, mas todo mundo aqui é decente, é um ambiente família”. Quem pode confirmar isso é Márcia Gonçalves, que conheceu o marido Ismael Galvão no Clube dos Solitários, quando já tinha desistido de “amar de novo”, porque pensava que os homens que frequentavam o baile só querem curtição. Até o dia em que viu Ismael frente a frente. “Além de lindo, ele agiu diferente: foi gentil, cuidadoso e simpático.” Foi em uma sexta-feira que os dois só foram à festa para tomar uma cerveja depois do trabalho. Ele a convidou para dançar, eles se beijaram e Márcia Stella Prado
Em um salão cheio, cada casal dança a sua maneira
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se apaixonou, mas não tinha muita esperança, porque já tinha vivido experiências parecidas anteriormente. Até que no dia seguinte ele a convidou para conhecer sua casa... Pouco tempo depois, ela se mudou para lá.
Jorna-
Marcia e Ismael definem o amor como algo a se compartilhar, seja deleitando-se em momentos felizes ou cuidando um do outro em situações mais amargas. O casal, que está junto
filha sempre agenda o táxi para buscá-la em casa, duas amigas aproveitam e pegam carona. Viúva há muito tempo, diz não se interessar por novos relacionamentos: “Quando fiquei viúva, vários homens estavam interessados em saber quanto eu ganhava”. Dona do próprio bolso, ela zomba dos interesseiros: “Se botar de cabeça para baixo, quase não cai uma moeda”.
há cinco anos, e já passou por muitas fases no relacionamento, deixa bem claro que joga limpo em qualquer assunto e se sente seguro quando eles estão juntos um do outro. “Nem quando a gente estiver de bengala vamos deixar de vir aqui. Eu seguro a bengala dele, ele segura a minha e a gente dança devagarinho”.
Para ela, o que importa é se divertir, seja como for. “Se der para dançar, eu danço. Se não der, eu assisto ao pessoal dançar, ouço a música.” Mãe de três filhos, já tem netos e bisnetos e afirma que quer aproveitar o tempo que lhe resta. “Enquanto eu tiver saúde, eu quero dançar por aqui!”
Mesmo para os que já não buscam mais a cara metade, o baile continua sendo superestimado. Dona Ivone Mathias tem 83 anos, é uma das frequentadoras mais antigas. Há mais de 20 anos, ela vem ao baile todo domingo. Sua
Todavia, o clube dos solitários não é só do amor romântico, mas de um encontro de pessoas a partilhar momentos efêmeros e primordiais da vida. Uma coisa é certa, estarão reunidos no próximo fim de semana. lismo PUCPR Revista CDM
Stella Prado
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Baseado em quê? Luiz Mourão
Nem a cura de todos os males, nem a causa da maldade no mundo. Ela divide opiniões e, por vezes, relações. Evidencia extremismos, gera tabus e instiga a curiosidade. Para uns milagre, para outros, veneno, a única certeza incontestável sobre a maconha é: O debate é necessário.
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S
ó na mesa tem quantas drogas, três?
Estas foram as palavras do diretor do Departamento de Políticas Pública sobre Drogas (DPPD), João Iensen, referindo-se às substâncias que tinha diante de si: café, açúcar e cigarros. Os dois primeiros geraram, apenas se tratando de exportações, mais de US$ 15 bilhões em 2017. O último, de acordo com Instituto Nacional do Câncer José de Alencar Gomes da Silva (Inca), foi responsável pela
arrecadação de cerca de R$13 bilhões em impostos no ano de 2015. Em comum, os produtos, que de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) enquadram-se na definição de drogas, como “substância que, introduzida no organismo, interfere no seu funcionamento”. Mas, afinal, como é que coisas tão distintas podem enquadrar-se em um significado tão próximo e ainda assim causar tipo de impressões tão diferente?
Os lados da moeda Seu Jorge é porteiro em um prédio de classe média alta. Jamais fumou maconha e não usa drogas lícitas. O que sabe sobre o “verdinho” é fruto de uma vida de experiências, que o ensinou a se manter “longe das tentações”, mas sem julgar o que age diferente. “É isso que deixa as pessoas malucas, alucinadas! A gente sempre ouve falar sobre aqueles que se perdem na vida e acabam nas ruas. Eu não sou contra quem usa, afinal, é um vício. Depois que se experimenta, não tem como largar, como cigarro e bebida. O problema é que a maconha faz parte de um processo em que, como a gente vê e ouve falar, o final é sempre trágico. Existe um momento em que se começa a fumar, fumar e fumar, o corpo fica naquela ansiedade, acaba o dinheiro e a pessoa tem que recorrer ao traficante. Aí, já sabe, por R$ 10 de maconha ele manda matar. O traficante é perigoso, na maioria das vezes não tem nada a perder e vai fazer o que tiver que fazer pelo dinheiro. É uma ambição que sempre passa dos limites e só gera situações perigosas. Hoje em dia todo mundo sabe quem vende, quem compra e onde tem. Eu sei, como que a polícia pode não descobrir? É por isso que temos que desconfiar, entender porque é que as pessoas nada
Geógrafo e professor da rede pública de ensino do estado, Julio fuma maconha desde o fim da década de 90, diariamente. Aproveita as propriedades psicoativas da canabis em seu horário livre, para relaxar, descansar e se divertir. “Eu tenho mais anos da minha vida fumando maconha do que não fumando. São 24 anos de uso e aprendizado em diferentes momentos e por diferentes razões. O discurso contra as drogas e a maconha me assusta, pois geralmente vem acompanhado de agressividade, imposição e, normalmente, tem pouco argumento. Não há fundamento em acusações tão decorrente, relacionando maconha a um comportamento assassino, por exemplo. Me expor assim, é uma forma de militar e de participar de uma conscientização sobre a droga, que embora me faça bem, não é algo apenas positivo. Para combater seus males, provenientes do uso precoce, por exemplo, temos que nos informar, debater e ouvir os especialistas. Só assim evitaremos que os jovens tenham mais problemas com seu uso, afinal ela está em todo o lugar, em todo o momento. No centro da cidade e nos terminais da região metropolitana o acesso é indiscriminado! Combater com a repressão já se mostrou uma tentativa falha.”
está sendo feito.”
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Piti Hauer, especialista em dependêncuia química, explica que embora tenham em comum o fato de alterar o sistema nervoso central, diferentes drogas fazem isso de formas características, dependendo de seu princípio ativo, do organismo do usuário e do ambiente em que são utilizadas. Entre os diferentes ângulos da discussão Hauer alerta, sobretudo, sobre a forma como o debate é conduzido. “Além da questão ideológica, que dificulta o debate, é sempre bom lembrar que há pessoas dentro do sistema com interesses econômicos”, aponta o especialista, que reitera a “ineficácia da política do álcool” e “os grandes interesses econômicos da indústria farmacêutica”. Para ele, os benefícios ou malefícios de uma droga não são representados pelo seu status legal. “O Brasil é o segundo país que mais consome Ritalina e o primeiro em Rivotril”. De acordo com Hauer, que também representa a Ordem dos Advogados do Brasil no Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas, estes são medicamentos que levam na caixa a advertência de possível dependência, mas podem ser encontrados em qualquer farmácia e “são muito mais agressivos ao organismo humano do que a maconha consumida recreativamente”. Para João Iensen, o grande vilão de toda a questão tem nome. “O nosso maior problema hoje é a droga legal, o álcool. Esta é a verdadeira porta de entrada para as drogas”, garante o diretor do departamento. A prova de seu pensamento é o folder explicativo lançado pela repartição, que descreve as drogas mais populares da atualidade de forma isonômica, perfilando lado a lado, álcool, maconha, tabaco, 12
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cocaína, crack e ecstasy. Paralelamente ao trabalho de prevenção prestado pelo DPPD, a Secretaria de Segurança Pública do Paraná também é responsável pela repressão dos atos criminosos, entre os quais o tráfico de drogas que corresponde, diretamente, a impressionantes 33% dos motivos de encarceramento no país, de acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). A Divisão Estadual de Narcóticos (Denarc), vinculada à Polícia Civil, responsável pela força de coerção, tem como delegado-titular Riad Braga Farhat, que falou acerca de seu entendimento profissional e pessoal sobre as drogas no Brasil. Farhat reforça as opiniões de que a maconha não é porta de entrada para outras drogas e também atribui o posto ao álcool. “Vemos na prática. A pessoa sob efeito da maconha não faz coisas que não faria normalmente”, alega. Este é o motivo que o faz, ao contrário da maioria dos servidores do seu meio, ser favorável à legalização. Ele acredita que, embora os fatores entorpecentes possam ser “bastante danosos à vida”, o cidadão deve ter direito de escolher. “A maconha não é inofensiva, mas não é uma droga que leva às pessoas a fazer loucura. Desconheço, em 25 anos de polícia, alguém que tenha fumado e matado alguém em virtude disso”, alega. O delegado, todavia, não acredita na legalização como forma de mitigar o tráfico devido às grandes proporções do país. “Temos que levar em consideração todo o fator cultural que cerca milhões de habitantes”, finalizou.
Marginalizado De acordo com o Levantamento Nacional de
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Álcool e Drogas (Lenad), realizado pela Universidade Federal de São Paulo, cerca de 1,5 milhão de pessoas usam maconha diariamente no Brasil. Entre eles, Julio Siqueira, que conta ser usuário desde o fim da década de 90 e se aproveita das propriedades da erva para relaxar ao fim do dia, depois de seu expediente na Secretaria Estadual de Educação. Julio, que é geógrafo e professor, diz nunca ter tido problemas com a família e costuma fumar na frente de sua mãe. Além disso, manteve no passado um relacionamento de sete anos com alguém que não partilhava de seu hábito. Encontrar-se em situações constrangedoras ou exageradas é comum aos “maconheiros” e por muitas vezes isto aconteceu ao professor. Encaminhado para delegacia por portar um baseado, Siqueira teve que frequentar encontros de psicologia em grupo e se apresentar à Justiça. Nessa ocasião, co ta ter ouvido do juiz que a maconha o faria “se prostituir e vender bens da família para comprar mais”, embora nunca tenha ouvido sobre pessoas com esse histórico, não com maconha. Jorge Fernando da Silva diz já ter visto em seu dia a dia situações delicadas envolvendo a canabis. O porteiro de 63 anos acredita que pelo fato de ser proibida, assim como outras drogas, o caminho menos traumático para reduzir sua má influência na sociedade é a repressão. Ele explica que viu “algumas vezes na vida” os reflexos da droga, em ami-
gos e conhecidos. “É um caminho sem volta, que começa com ansiedade, se transforma em agressividade e, de repente, acaba com o envolvimento com traficantes perigosos”, relata. Vindo de uma criação “relativamente rígida” e religiosa, seu Jorge diz que o fato de ser “contrário à maconha” não o torna contrário aos usuários, “afinal, essas pessoas tem um vício grave e devem ser tratadas com dignidade”. Ele não crê na legalização como forma de combate ao tráfico, pois acredita que a contrapartida é “muito complicada”. Atitudes diretas do estado, como o fortalecimento na fiscalização e coibição, parecem ser mais efetivas aos olhos do porteiro. “Se liberar, fica ainda mais fácil e vai ser mais um problema nas nossas ruas. Às pessoas já bebem e fazem tanta besteira, será que não estaremos criando outro problema, ao invés de resolver?”, conclui.
Militante Advogado, militante e organizador da Marcha da Maconha em Curitiba, André Feiges acredita que o tema deve ser abordado sob três perspectivas. Como uma droga de uso recreativo ou cultural, como objeto de um crime, e sob as possibilidades medicinais. Feiges, que se aprofunda no tema sob o ponto de vista social, acredita que legalizar a maconha e outras drogas significa regular o seu uso e proteger os cidadãos. Feiges enfatiza a deficiência da Justiça em lidar com as drogas ao explicar que, Luiz Mourão Jornalismo PUCPR Revista CDM
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atualmente, obriga-se a abstinência do usuário para que a atenção seja prestada. “É como se um médico procurado para tratar uma gripe, por exemplo, dissesse que o paciente tem que se curar para ser tratado. Isso atinge negativamente a opinião das pessoas que passam a ter a falsa impressão de que o uso ou não das substâncias é apenas uma questão moral ou de vontade”, explica.
No Paraná, de acordo com o governo do estado, alarmantes 59,3% dos encarcerados respondem por tráfico, o que o torna proporcionalmente, entre todos da união, o com mais ocorrências do tipo e demonstra a urgência do debate.
Fora desta estatística, Gordinho, de 28 anos, tira do comércio da maconha uma renda, que Embora a legalização não seja o “solucionador ao contrário de seu salário, permite que ele possua uma casa confortável e sustente com de todos os problemas”, o advogado acredita que a legalização diminuiria os crimes relacio- qualidade a si e sua esposa. Conta já ter sido encaminhado a delegacia quando mais novo, nados ao tráfico, já que a regulamentação da atividade, possibilitaria aos envolvidos, contar pois “se arriscava mais”. Atualmente, acredita com o amparo da justiça para resolver as situa- na diplomacia para com os que deveriam perseguí-lo. “Às situações variam, mas depois de já ções de desacordo. ter tido a casa invadida, hoje consigo negociar “Existe contrabando de cigarros e bebida no e manter as coisas tranquilas”, conta. Brasil, o que não existem são assassinatos que constituem um problema social relacionados a Em outros tempos diz ter passado por probleestes dois fatores”, diz ele. “Quando o comér- mas reais “com drogas de verdade”. “Eu era cio é clandestino, se alguém quer cobrar uma novo, conhecendo as novidades, tinha dinheiro dívida não pode recorrer aos meios normais, e bons contatos porque vendia de tudo. Em um carnaval, após cinco dias acordado, a base como alguém que, por exemplo, vende um carregamento de bebidas e não recebe por isso. de cocaína e LSD, tive a primeira convulsão.” Como isso se resolve? Como tudo o que não é Gordinho teve uma overdose que gerou outras duas nos meses seguintes. Com uma veia esregrado, por meio da violência.” tourada, passou por um tratamento que durou Luiz Mourão
A maconha contém quantidades nocivas de alcatrão, que aumentam as chances de desenvolvimento de doenças pulmonares. 14
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dois anos. “Neste período, fiquei longe do álcool e drogas, eu tomava medicações e só fumava maconha mesmo”, relembra Gordinho.
familiar, déficits de atenção e alterações no pensamento, mesmo que de forma muito sutil.
A síndrome do pânico também pode ter Em busca de uma vida sem complicações, fortes laços com o uso da maconha. Em duas Gordinho reduziu sua carteira de clientes e direções distintas e controversas ela pode, agora dedica-se a um público restrito. “Por em alguns casos, ser a única causadora deswhatsapp, Facebook ou ligação, eu atendo os se transtorno, como pode também ajudar a clientes, normalmente amigos, pessoas que controlá-lo. “Acompanhei o caso de um jovem tenho outro tipo de contato também”, afirma. para quem recomendei ,como forma de tratamento, abandonar totalmente o hábito. Sem Gordinho, que tomar remédio tem o pai falecido, Se há uma ideia bem estanenhum, apenas diz ter uma boa
“
com a interrupção relação com sua belecida é a relação do uso da do consumo, ele mãe baseando-se na ideia de que “a maconha na adolescência com praticamente se curou”, afirma. verdade é sempre melhor que a men- a esquizofrenia Por outro lado, tira”. Seu primeiro muitas pessoas contato de com alrecorrem ao canaVauto Alves Mendes Filho gum tipo de droga binóide devido ao foi na quarta série seu efeito ansiolítide uma escola pública em Curitiba, quando co, entretanto, reitera o especialista, “cabe anaexperimentou clorofórmio e, pouco tempo lisar casos individuais”. Ele, inclusive, afirma depois, maconha. ser este o grande desafio da sua função, já que qualquer tema que envolva o uso de drogas De acordo com Vauto Alves Mendes Filho, deve ser tratado levando em consideração que médico psiquiatra e doutor na área, embora
”
muitas pessoas a utilizem, muitas vezes durante toda a vida, sem maiores problemas, a erva pode causar dependência química, psicológica e outros danos mentais irreversíveis. “Se há uma ideia bem estabelecida, atualmente, é a relação do uso da maconha, em grande quantidade e na adolescência, com a esquizofrenia”, esclarece. Segundo o psiquiatra, não existem meios seguros para o consumo da cannabis. Os fatores de risco que elevam os riscos de transtornos psiquiátricos são, principalmente, histórico 7
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diferentes drogas, causam diferentes efeitos em diferentes pessoas.
Mendes Filho afirma que o abuso de drogas altera o “circuito da recompensa”, o que faz com que o organismo “peça a reposição de fontes de prazer”, devido a necessidades desenvolvidas pela corpo “Existem circunstâncias em que pacientes acabam por fazer o uso da maconha em detrimento de drogas mais pesadas, para aliviar a tensão e ansiedades causadas pela abstinência do crack e da cocaína, por exemplo”, finaliza. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Filhos?
Melhor não tê-los!
Em uma sociedade com mudanças, a decisão de não ser mãe ou pai torna-se cada vez mais frequente Caroline Deina e Sophia Cabral
Crédito: Sophia Cabral
O mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas Cezar Bueno de Lima acredita que, no futuro, a pressão sofrida pelos casais que optam por não ter filhos será cada vez menor.
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untos há dez anos, o casal Vanessa e Julio Antunes decidiu que, apesar de adorarem crianças, ter filhos não era uma opção. Após lidar com os pequenos o dia inteiro na escola, a professora gosta de ter seu momento de tranquilidade e sossego, e acredita que um bebê pode mudar completamente sua rotina. Já o metalúrgico diz não ter aptidão nem vontade de ser pai. Mesmo assim, há uma forte relação com as crianças, principalmente os sobrinhos. Com a consultora em organização Monique
gostar de crianças, ela não quer abrir mão de sua liberdade e independência. Além de tudo, falta a vontade. “Você não pode colocar uma criança no mundo, porque a sociedade exige que você faça isso, ou porque sua mãe quer ser avó, ou porque você acha bonitinho. Então eu acho que a vontade de ter filho deve partir do desejo. Mas quando esse desejo não existe, não há exigência nenhuma que justifique ter filhos”, afirma a consultora. Mesmo assim, a longo prazo, Monique admite que esse pensamento pode mudar.
França e o executivo Igor Castro, a decisão não é diferente. O que muda são os motivos. Quando se casaram, ela tinha 21 anos, sem vontade de ter uma criança, e ele 46, com dois filhos do relacionamento anterior. “Eu tinha um pouco de pânico de casar com um homem
No Brasil, a proporção de famílias sem filhos não para de crescer. De acordo com os últimos dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2004, 13,5% dos casais não tinha filhos. Em 2014, esse número saltou para 18,8%.
“É uma condição biológica? Sim! O corpo da mulher se prepara para isso, mas quando a maternidade não acontece, não significa que algo está faltando na vida da pessoa.”
Jamile Nascimento, psicóloga e sexóloga da minha idade, porque eu achava que ia sofrer muita pressão, que ia ter que ter uma criança. Como ele já tem os filhos dele, sempre foi assim: ‘Se você quiser ter filhos eu topo’, mas nunca existiu essa vontade”, relata Monique. Para a consultora, ter filhos é uma responsabilidade muito grande, já que você deve promover saúde e educação em um cenário pouco favorável. Outro fator de peso na decisão de Monique é o fato de não querer deixar de ser a prioridade em sua própria vida. Apesar de
Entre os motivos analisados pela psicóloga e sexóloga Jamile Nascimento, as famílias não têm crianças sobretudo pela questão financeira, além da pressão da responsabilidade de cuidar de uma vida e pelo medo de perder a liberdade. Outra razão pontuada pela psicóloga é a condição da mulher nesse cenário, que passou a ser mais empoderada, mais consciente do seu corpo e dos seus direitos. “É uma condição biológica? Sim! O corpo da mulher se prepara Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Foto: arquivo pessoal
carro novo, a mulher só pode “ser completa” por meio de uma criança. “Claro que o amor por um filho é diferente, mas não acho que a mulher só experimenta o verdadeiro amor, incondicional, quando ela é mãe.” Após ser diagnosticada com endometriose profunda – doença que pode prejudicar a fertilidade –, Monique relata que as pessoas só se preocuparam com o fato de ela ter dificuldade para engravidar, e não pelo seu bem estar. ”As pessoas esquecem que eu sinto muita dor, que tive que parar de trabalhar, que não durmo direito,
Juliane e Carlos
Rio Claro - SP para isso, mas quando a maternidade não acontece, não significa que algo está faltando na vida da pessoa. Vai ser uma opção, de não ver mais o fato de ter filhos como algo natural”, destaca.
porque elas acham que o mais importante é que não vou poder engravidar.” Casada há 12 anos, a dona de casa Juliane Paulino também diz sofrer uma maior pressão do que seu marido pelo fato de não terem filhos. “Sempre me perguntam por que não fiz filhos ainda, já que sou casada há mais de dez anos, ou se tenho algum problema de saúde. Como se esse fosse o único motivo.” Em relação à família, Juliane explica que nunca foi incentivada a ter filhos. “Minha mãe nunca fez questão de ter netos. Sempre falou para eu
“Você não pode colocar uma criança no mundo, porque a sociedade exige que você faça isso (...). Então eu acho que a vontade de de ter filho deve partir do desejo.”
Monique França, consultora em organização Para Monique, é exatamente isso que acontece. A consultora explica que, desde a infância, nunca sentiu vontade de engravidar, mas que isso, de modo algum, a desqualifica como mulher. Ainda assim, para ela, a sociedade enxerga a situação de uma maneira diferente. Enquanto o homem pode trabalhar ou comprar um 18
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ir curtir, conhecer o mundo e até isso pode ter influenciado na minha decisão de não ter um filho.” Por outro lado, não são apenas as mulheres que sofrem com os questionamentos. Nem as inúmeras razões existentes ou simplesmente a
comportamento Fotos: arquivo pessoal
falta de vontade de ter filhos é suficiente para que o casal não se sinta pressionado, seja pela sociedade, amigos ou família. O operador de reatores químicos Carlos Paulino, marido de Juliane, conta que a relação com outros casais de amigos mudou com o tempo. Aqueles que tinham filhos acabaram se afastando e agora eles se relacionam mais com os que também não têm crianças. “Eles nos chamam para as atividades de dia, as festas de aniversário, mas para sair à noite ficou a cúpula dos amigos sem filhos.” Para essas situações, Vanessa explica que sempre tem “uma boa resposta na ponta da língua”, já que ela e seu marido estão acostumados a responder esses tipos de questionamentos. Durante um casamento, uma senhora perguntou ao casal qual a razão de não terem filhos. Todas as respostas dadas pela professora eram rebatidas insistentemente pela senhora. “Ela falava ‘Mas quem vai cuidar de vocês na velhice? Você vai se sentir sozinha!’ Então, eu respondi a ela que não teria filho se fosse para minha mãe cuidar. Como aquela senhora cuidava da neta dela, não falou mais nada.” De acordo com o mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas Cezar Bueno de Lima, o mundo está passando por muitas transformações no quesito de relacionamentos. Porém, a pressão sofrida pelos casais será cada vez mais desprezível, visto que nos próximos anos essas famílias estarão diante de uma sociedade mais ampla, com forte tendência de individualização, o que pode ser um fator para as pessoas pensarem cada vez mais na opção de não terem filhos.
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Brasilia - DF
Julio e Vanessa
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Refúgio do dia a dia Pessoas, que moram em regiões metropolitanas, buscam uma vida com mais qualidade Patricia Muhoz
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ega a estrada da Ribeira sentido Bocaiúva do Sul, passa a Embrapa e, depois, o restaurante É da Pam. Quando passar pela curva, com uma mureta de contenção, entra a próxima esquerda em uma estrada de chão e vai reto por mais ou menos 1.800
onde é o campo, mas dá cinco minutos de casa”, diz a mãe de Guilherme Rubik. O terreno de Cris são oito hectares que a mãe dela, Aparecida de Fátima Bianchini, comprou com o marido pensando em realizar o sonho
de voltar a morar em chácara, como era na sua infância. Cada qual com seus planos, o pai de pedagoga voltou do exterior cheio de ideias Num domingo ensolarado, as crianças brinpara formar uma comunidade no terreno e a cando na piscina e o Biscoito – cachorro de mãe queria fazer uma vinícola. Mas o tempo Cris – que aparece todo alvoroçado, louco para foi passando, a família iniciou uma plantação saber o que está acontecendo. Antes mesmo de tomate e morango para comércio e, nesse de entrar na casa, Cris já se entrega; “Aqui é caminho, Cris decidiu deixar Curitiba e morar um refúgio. Quando vem para a roça, não sai em Colombo na chácara. mais”. Já Rubik – como é chamado por todos – nem Enquanto isso, em São José dos Pinhais um sabe mais o que é morar em Curitiba, pois a rapaz de 19 anos aproveita esse domingo de sol família se mudou para região metropolitana para jogar bola com os amigos, “Não sei bem quando ele tinha 3 anos. Agora que entrou metros. Pronto, chega-se à casa da Cristiane Bianchini.
Cris chega em casa final de tarde e Biscoito já se agita, quer a atenção da dona. Patricia Munhoz
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Rubik só volta para casa nos finais de semana e é quando consegue jogar um futebol com os amigos.
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para o Exército, achou melhor ficar durante a semana no quartel que fica no Bacacheri e ir para faculdade de Educação Física à noite, e voltar para casa apenas nos finais de semana. Hoje, Cris diz que o mais importante é a qualidade de vida que as filhas, Mahara, de 8 anos, e Maile, de 6 anos, têm ao estarem em contato com a natureza, com tranquilidade, sem o agito da “cidade grande”, porq ue “saí do ambiente urbano que tudo te chama para o consumo. Aqui você se programa, o shopping se tornou algo esporádico”, conta Cris enquanto dá algumas olhadas para a janela de vidro, que mostra as crianças brincando na piscina. O dia a dia é corrido, até porque Cris ainda não se aposentou. Então, ela trabalha na Escola Municipal Anísio Teixeira e, desde 2015, Cris assumiu os projetos da mãe. Já que Aparecida de Fátima morreu antes de concluir o sonho de ter uma vinícola. “Ainda estou naquela de cidade dormitório”, ela afirma. São 25 minutos de casa para o trabalho e mais 30 minutos para voltar, depende do trânsito, e 17h30 Cris já está em casa. Apesar de ter gasto com combustível, ela conta que isso não impactou tanto na sua vida ao
se mudar para uma metrópole. “Se estivesse trabalhando no Pilarzinho, ainda, daí daria o dobro de gasto”. A correria também está presente na vida de Rubik, ainda mais agora com a mudança de rotina devido ao Exército, pois teve que se acostumar a não estar em casa durante a semana com a família. Um rapaz tranquilo que sabe o que quer, “Ele se esforça, não fica reclamando”, conta a mãe ao falar sobre o transporte público de região metropolitana para Curitiba. Guilherme e Cristiane são exemplos de milhões de pessoas que moram em regiões metropolitanas, mas trabalham, estudam e até possuem uma vida social em Curitiba. Portanto, a mobilidade pendular está presente no dia a dia deles. Toda vez que tem que ir a Curitiba, ele pega o ônibus Curitiba/Quissiana e para no terminal da Guadalupe e, de lá, pega outro ônibus. Mesmo com a dificuldade da distância entre sua casa e os compromissos que tem, diz gostar de morar lá: “É muito bom”, fala Rubik, olhando para o campo, já que logo começa o jogo de futebol com os amigos. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Leticia Garib
Ele ainda não tem tantos compromissos. Em compensação, Cris tem muitas responsabilidades com a casa e suas filhas. Ela trabalha, faz a compra do mês, vai ao banco, ao shopping, à panificadora, tudo de Curitiba. Mas as filhas estudam em Colombo, até porque o colégio é muito bom, avisa a pedagoga Cris.
decidiu continuar votando em Curitiba. Isso porque ela sempre morou na capital e continua usufruindo os serviços do munícipio e também, porque seu chefe é o prefeito de Curitiba, já que trabalha em escola pública municipal. O caso de Rubik é diferente, como ele se mudou com 3 anos, é quase a vida inteira em São
“Aqui é uma comunidade solidária, todo mundo se ajuda.” Inclusive, como para ela é complicado levar e buscar as filhas na escola, as meninas pegam carona com a vizinha que tem um filho no mesmo colégio. E se um vizinho precisar de carona até o ponto de ônibus, alguém se prontifica - “porque aqui (a rua da casa) não tem ponto, tem que ir até a Estrada da Ribeira, e nos comunicamos por WhatsApp, pelo grupo dos vizinhos”.
José. Por isso, a família inteira decidiu mudar o título de eleitor.
Cris também não mudou o título de eleitor, 22
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O economista Wilhelm Milward aponta que a maior questão sobre pessoas que vivem em regiões metropolitanas e possuem atividades na metrópole é justamente o institucional, ou seja, “Onde essas pessoas votam, usam os serviços da onde?”. Isso pode impactar na economia do local, mas hoje com o crescimento das regiões, o economista afirma que esse impacto não é mais tão significativo.
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Mobilidade Pendular Prática é refletida em mais de 139 mil viagens por dia útil Curitiba é metrópole e tem vários municípios em seu entorno. O Núcleo Urbano Central da Região Metropolitana de Curitiba (NUC) tem 14 cidades, contando com a capital e 3,2 milhões de pessoas vivem na região, sendo que 1,9 milhão está em Curitiba, informa a assessoria do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). Portanto, 1,3 milhão residem na região metropolitana e, para muitas dessas pessoas, assim como para Cristiane Bianchini e Guilherme Rubik, a locomoção em direção da capital e vice-versa é algo rotineiro. Segundo dados do IPPUC, esse ir e vir equivale a 139 mil viagens por dia útil, sendo o trabalho e o estudo os principais motivos. E apenas 82,6 mil viagens são de Curitiba para os outros municípios.
Essa mobilidade ocorre devido à geração de renda da região metropolitana, que muitas vezes está vinculada a Curitiba; assim como o trabalho e a melhor infraestrutura que se concentram na capital. Porém, houve algumas mudanças, segundo o economista Wilhelm Milward “Por exemplo, São José dos Pinhais passou a ser um grande polo automobilístico e da indústria de agregação de valor a essa cadeia produtiva, o que dela fez a segunda maior economia da região, atrás apenas de Curitiba.” Com a grande expansão da mobilidade pendular, o compartilhamento de soluções pelo planejamento de Curitiba e das regiões metropolitanas se tornou necessário. O urbanista Carlos Hardt diz que, no início, o primeiro plano de
O terreno de Cris são quatro hectares de área social, uma de plantio, que tem as estufas de tomate e morango, e outra área de preservação ecológica. Mesmo sendo um terreno grande e até pouco tempo atrás não ter cerca, Cris afirma que nunca tiveram problemas de invasão. O mesmo acontece com a família de Rubik. Sua mãe afirma: “Graças a Deus, nunca invadiram nossa casa, é bem tranquilo”. Lívia, mãe de Rubik, conta que na época que compraram o terreno em São José dos Pinhais era mais barato que adquirir uma casa em
Curitiba, o Plano Agache, de 1943, não prévia a expansão dos municípios. Portanto, a integração não existia. Hoje, muitas das normas urbanísticas já estão previstas no Plano Diretor de Curitiba, desde 1996, informa a assessoria do IPPUC. Há o Estatuto da Metrópole, que prevê avanços como a estruturação de um plano de desenvolvimento urbano integrado e o instrumento da governança interfederativa, que é sobrepor o interesse comum ao individual. No último plano, dos anos 2000, já havia a região metropolitana como um diagnóstico do futuro. Contudo, o urbanista aponta um problema “ainda falta à integração nas gestões, pois cada qual tem seus interesses e não há um consenso entre esses interesses”.
Curitiba. Hoje, ela acredita que regiões como a dela estão mais caras, pois cresceram muito nos últimos anos. São 18 horas e o sol ainda está forte, Cris que rega as plantas, lê um livro na rede e cuida da plantação. Ela confessa: “Nunca me vi em chácara, mas depois o pensamento começa a mudar e tem que gostar para se adaptar”. Enquanto isso, lá em São José dos Pinhais, o futebol de Guilherme deve estar no fim, até porque segunda-feira é dia de ir para o quartel. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Escola são pessoas
Fundador da Escola da Ponte teve uma formação educacional difícil e hoje tenta evitar que mais jovens passem pela educaçào vigente, que não atende às necessidades e novos paradigmas da sociedade Nicolle Heep Vitória Gabardo
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le não imaginava que fosse tão lon-
ge. Um garoto pobre, insignificante, nascido em Porto, Portugal, teve uma infância difícil. “Educado” a pontapés e murros, José Pacheco era tratado como escória na escola. Que interesse teriam os professores em um menino favelado, com piolhos que não tinha nem um sapato para calçar? Numa sala de 68 alunos, Pacheco foi um dos poucos que superou essa realidade hostil. Grande parte dos seus colegas não terminou a 4ª série, e a outra não completou nem 30 anos de vida. Pacheco foi o único da turma que fez faculdade. Trabalhou como eletricista e seguiu na área de engenharia. O salário era bom, mas ele foi levado a outro caminho. O da educação. Pacheco costuma afirmar que esse caminho te chama por duas razões: amor ou vingança. A sua razão foi a vingança. Vingança contra a educação tradicional. E amor. Amor pelas crianças e jovens. Na época, o país havia saído de 48 anos de ditadura e pesquisas sobre a
José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, enumera os problemas educacionais no paradigma da Instrução.
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educação eram escassas. Tornou-se pedagogo, educador e professor. Começou a trabalhar em uma instituição escolar. O professor planejava as aulas com antecedência, se esforçava para se fazer entendido, mas percebeu que mesmo assim os alunos não aprendiam. Isso causou desânimo e o desânimo se transformou em uma inquietação. Como poderia ele,
obedecendo a todas as regras que aprendeu na sua formação de professor, não conseguir ensinar os alunos? O paradigma da instrução, ensinado no mundo todo confirmava que dar aulas, ter provas, uma sala de aula e um professor hierárquico era a melhor forma de ensinar. Afinal, o pró Nicolle Heep
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prio pedagogo foi instruído em uma educação tradicional. Mas isso não o satisfazia mais. O professor via que a educação convencional formava pessoas ignorantes, violentas e corruptas. São cada vez mais professores violentados, mortos, desrespeitados.
lhores pedagogos e educadores. Algumas escolas seguiram esse exemplo, mas a maioria continuou apegada ao paradigma da instrução
Na Constituição, educação é um direito para todos, e ele percebeu que esse direito não estava sendo cumprido nem para quem frequentava uma instituição de ensino. Então ele começou a se sentir antiético, uma vez que muitos dos seus alunos não estavam aprendendo.
ra o paradigma da aprendizagem já estava obsoleto e não atendia às necessidades da nova geração. Depois de mais pesquisas e vivência, ele entendeu que a educação agora deveria se situar no Paradigma da Comunicação, em que o foco não é nem professor nem aluno, mas a mensagem dada.
José Pacheco descobriu que essa inquietação estava sendo compartilhada com mais professores da escola. Com isso, a inquietação gerou uma ação. O educador começou um grupo semanal com os professores que concordavam
Na Escola da Ponte, sua nova ideia não foi acatada, e como um homem que não tenta impor suas ideias, Pacheco saiu da instituição e forma de ensino que ele mesmo fundou, para difundir sua nova descoberta. A mudança proposta
com seu pensamento, para trazerem novas ideias de ensino, para realmente ensinar os alunos. Uma hora por semana foi o necessário para eles perceberem que a educação não se trata do Paradigma da Instrução, em que o foco é o mestre e professor, mas sim no paradigma da aprendizagem, no qual o foco é o aluno. Com essa nova descoberta, eles começaram a colocar a teoria em prática até que em meados da década de 90, a Escola da Ponte, como foi chamada, foi considerada a melhor de Portugal e a melhor do mundo. E José Pacheco tornou-se conhecido como um dos me-
pelo professor teve início aqui no Brasil com a Comunidade de Aprendizagem do Paranoá, a CAP, que se baseia em um modelo de educação comunitária que busca levar a educação para fora dos muros da escola.
Mas como o professor não conseguia se acomodar com a inovação tecnológica, ele percebeu que ago-
“A reeducação pessoal é tão importante e tão difícil quanto a reeducação prática do sistema que sabemos.” - Cecília Pinheiro, professora
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Aqui no Brasil, José Pacheco conheceu Cláudia Passos Sant’Anna, designer de sistemas sustentáveis, Arquiteta, Educadora e Empreendedora Social. Os dois perceberam ter interesses em comum, principalmente com a questão educacional e acabaram por se casar. Hoje, Cláudia é a responsável pela criação da Ecohabitare, uma
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empresa social que existe há dez anos envolvida no desenvolvimento de projetos de sustentabilidade como, por exemplo, a CAP, que nasceu dentro do “Gaia Escola”, e o “Escolas em Transição” e procura criar novas construções sociais de aprendizagem. Juntamente com Pacheco, a designer trabalha para mudar a ideia de educação como um todo e envolver, por meio dessas comunidades, de forma geral, para impactar o processo de educar indivíduos. Ela acredita que inovação é transformar o contexto que vivemos a partir da nossa cultura e do que sabemos. Mas essa nova realidade precisa beneficiar o máximo de pessoas numa comunidade. A inovação começa no pessoal, mas para realmente ter qualidade e ser denominada como tal precisa gerar uma mudança em larga escala.
Resistência e dificuldades Apesar da sua teoria e prática ter fundamento científico, José Pacheco conta que os empecilhos encontrados ao longo de sua jornada para uma educação inovadora são muitos. O principal é a oposição das secretarias e ministérios da educação que colocando em prática o paradigma da instrução, acabam por influenciar e instigar os pais dos alunos com campanhas contra as ideias desse novo projeto. Os pais, habituados com um ensino tradicional, duvidam da capacidade de haver potencial em outros modos. Eles acreditam que se os filhos não tiverem o ensino tradicional, não vão conseguir se inserir no mercado de trabalho nem passar no Enem ou vestibular. E há legitimidade nesse tipo de pensamento. Afinal, esse
“O que afinal é educação inovadora: uma educação de todos, para todos e com todos.” - José Pacheco, educador A professora da rede municipal de ensino de
sempre foi o modelo de educação vigente no
Petrópolis, no Rio de Janeiro, Cecília Pinheiro, participou da imersão feita pelo projeto Gaia Escola, e percebeu que uma mudança na educação depende muito da mudança pessoal. “A reeducação pessoal é tão importante e tão difícil quanto a reeducação prática do sistema, das tarefas do dia a dia da escola, e passar por essas mudanças é a prática para que o mesmo acontece nas escolas. O Gaia me fez ver uma transformação pessoal que, futuramente, tenho certeza, vou conseguir aplicar no núcleo que estou atuando.”
Brasil. Mas a realidade mostra o contrário. De acordo com pesquisas realizadas pelo educador, os melhores alunos no Enem e vestibular são os alunos dessas escolas inovadoras. Na Escola da Ponte, Pacheco se deparou com os mesmos tipos de oposições. O professor pediu aos pais dos alunos um voto de confiança. Eles aceitaram e hoje todos que estudaram nessa escola se adaptaram e entraram em universidades. “Não estou falando de um projetinho de dois ou três anos, estou falando de um projeto de 42 anos”, explica Pacheco. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Outro obstáculo são as leis que exigem que as salas de aula sejam planejadas e construídas de forma específica. Enquanto o projeto proposto pelo educador é de não existir mais salas de aula. De acordo com o artigo 205 da Constituição, a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. Um dos normativos dessa lei afirma que a escola no Brasil é democrática, quando na realidade é autocrática, pois há uma hierarquia de diretor, professor e aluno
Há mais de 50 anos comprometido em mudar o sistema educacional, Pacheco explica por que fez dessa sua missão de vida. “Acredito que, daqui a uns dez anos, a CAP será a diferença maior no mundo da educação porque vai mostrar a possibilidade de todos
Nas escolas inovadoras, a organização é totalmente diferente. A escola é da comunidade e é dirigida por ela. Não tem diretor, nem coordenador, há um contrato de autonomia com o poder público. Essa realidade é exclusiva desse novo modelo no Brasil. Diante da atual conjuntura do cenário da educação brasileira, a estudante Jaqueline Lopes conta sua experiência: “Pensar em uma outra prática da educação, para mim, que estou estudando pedagogia é um desafio.” Já existem alguns projetos em andamento no país e, agora, o pedagogo está em negociação para criar condições em Curitiba, para que a cidade molde a educação no paradigma da comunicação e um novo projeto seja implementado. A educadora voluntária em um dos núcleos de projeto que iniciou o processo como percursora no Gaia Escola, Daniele Maia, conta que o acompanhamento com os facilitadores do processo é fundamental: “O interessante é que, aqui, todos os educadores inquietos encontram o coletivo. E as práticas são orientadas pra que essa ruptura seja gradativa é responsável. É inspirador.” 28
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Grupo da CAP em processo de formação na Bahia.
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aprenderem, de serem felizes, de se cumprir todo o currículo, de se fazer desenvolvimento
Em meio a uma dúvida extremamente comum, José Pacheco explica de ma-
local sustentável. Então, eu fico por aí porque isso me satisfaz e posso morrer tranquilo, pois fiz a minha parte.”
neira bem sucinta o que afinal é educação inovadora: uma educação de todos, para todos e com todos.
Amanda Mann
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Eu vou sozinha, e você? Apesar da luta feminina pela independência ao longo dos anos, viajar sozinha ainda é um grande tabu na sociedade. Mas algumas mulheres estão dispostas a mudar isso. Isabel Woitowicz
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nde já se viu mulher viajar sozinha?” Essa indezação, apesar de ser muito comum para os ouvidos das viajantes solitárias, não faz o menor sentido para elas. “Onde já se viu deixar de viajar só porque está sozinha?” é muito mais adequada para esse grupo de mulheres que passaram por cima de medos e preconceitos, e saíram em direção ao mundo.
Apesar de pouca idade, e de não ter nenhuma experiência com viagens, não sentiu medo. “Na época, eu não via como uma decisão tão séria assim. Para mim, me pareceu normal ir sozinha. Hoje em dia, vejo que outras mulheres, mesmo adultas, acham super arriscado e morrem de medo. Eu acho que não tive essa
“Na época, eu não via como uma
decisão tão seria assim, me pareceu normal ir sozinha”Maryani Fuzetti, Publicitária Com apenas 15 anos, Maryani Fuzetti já sabia muito bem o que queria fazer quando atingisse
malícia, só fui”, comenta.
a maioridade. Não quis festa de debutante, e muito menos um carro. Queria viajar. “Durante o ensino médio, combinei com alguns amigos de fazer um mochilão, porém, todos abandonaram a ideia. No fim das contas, não ia desistir de ir por causa deles”, conta a publicitária de 25 anos.
lançamento do filme Busca Implacável, estrelado por Liam Nelson, no qual a filha do protagonista é sequestrada em Paris e vendida como escrava sexual para um sheik árabe.
Maryani conta que economizou durante todo o ensino médio para a realização do sonho. Pioneira da família em sair do país, com 18 anos ela embarcou num avião rumo à Europa para uma viagem que duraria dois meses. 30
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A viagem da adolescente coincidiu com o
Por causa disso, ela conta que foi mais cuidadosa, e deixou de sair a noite e consumir bebidas alcoólicas.
Experiências transformadoras A literatura feminina está repleta de personagens que largaram tudo, fizeram as malas,
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passaram uma temporada fora e voltaram novas, revigoradas. Mas será que isso realmente acontece? Para a estudante de Relações Públicas, Giovanna Salvatti, cada viagem é uma renovação. “Eu vou uma Giovanna e volto outra”, conta. Com apenas 21 anos, a estudante coleciona fotos e carimbos no passaporte, e admite ter uma paixão por lugares pouco comuns ou “mal falados”. Em umas de suas
que ia bloquear meu cartão caso eu fosse. Não estava nem aí, tirei dinheiro e fui.” Em uma das muitas conexões em que passou horas sentada no aeroporto, Giovanna conta que conheceu, por acaso, uma senhora, que mudou sua maneira
“É bizarro olhar a Giovanna antes e a Giovanna agora”
Giovanna Salvatti, Estudante de ver
viagens pela Europa, ouviu comentários extremamente negativos sobre a Albânia, país do Leste Europeu. Contrariando todos, decidiu descobrir a verdade. “Eu ouvia tanta coisa e pensava, ‘Meu Deus, não pode ser verdade, eu vou lá ver’. Quando contou pra mãe da decisão, ouviu o que já esperava. “Ela ficou louca (risos), falou
o mundo. A senhora da história estava com câncer terminal, e contou que tinha apenas alguns meses de vida, mas que ainda não havia desistido, e estava viajando para realizar um tratamento. “Ela estava tão feliz de estar viajando, que aquilo me marcou muito. Quando Foto: Luís Ribeiro
Giovanna costuma guardar as fotos feitas em suas viagens
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voltei para o Brasil, cortei o cabelo e doei pra uma instituição que faz perucas para mulheres com câncer. Foi minha forma de homenagem”, lembra a estudante. Giovanna tem certeza que só conheceu a senhora porque estava sozinha. “Se eu estivesse acompanhada, provavelmente ia estar distraída conversando, e nunca ia ter a chance de ouvir uma história dessas”, conta. Além das pessoas, dos lugares, e das memórias, Giovanna tem certeza de que viajar sozinha a transformou em outra pessoa. Uma versão melhor dela mesma, como gosta de pensar. “É bizarro olhar a Giovanna antes e a Giovanna agora. Eu era uma patricinha chata, ficava duas horas me arrumando antes de sair de casa, só queria saber de comprar. Eu não me aceitava, eu precisava de aprovação. Agora eu estou bem em qualquer lugar ,e bem comigo mesma. Eu posso sair de chinelo e não me importo. É questão de se entregar, não ter medo, e levar tudo como experiência”, finaliza. Em uma de suas aventuras mais recentes, Giovanna passou um mês inteiro na Amazônia. “Eu fui pesquisando, fui perguntando às pessoas o que tinha pra fazer por aonde eu ia passando. Não gosto de planejar, gosto de descobrir”, comenta. Para 2019, está planejando uma viagem de trailer pelo Brasil, com dois amigos que conheceu em uma viagem para o Alasca.
Espírito Aventureiro Uma pesquisa realizada em 2017 pelo Airbnb (aplicativo de hospedagem) revelou que a mulher brasileira é uma das mais aventureiras do mundo, perdendo apenas para as japonesas, que lideram o ranking de viajantes solitárias. No Brasil, o Ministério do Turismo 32
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confirma: 14% das entrevistadas pela Sondagem do Consumidor em 2017 pretendem viajar sozinhas em algum momento próximo, número superior ao de anos anteriores. Em 2015, o site TripAdvisor já estava de olho na tendência, e constatou que 25% das usuárias brasileiras já tinham realizado uma viagem solo. Nas viagens de longa duração, como intercâmbios, as mulheres são maioria. Na Agência English First (EF), 63% do público que busca morar fora é feminino. Cida Perão faz parte dessas estatísticas. Com 71 anos, fez a primeira viagem sozinha em 2008, dez anos mais jovem. Sem nunca ter saído do país, fez um passaporte, comprou passagens, reservou os hotéis sozinha e só contou para os filhos um dia antes: “E preparei um almoço na minha casa, e na hora de servir a sobremesa, eu trouxe o meu passaporte e as passagens. Acharam que eu estava louca”, conta rindo da lembrança. A primeira parada foi Portugal, e durante dois meses viajando, Cida passou pela França, Espanha, Itália, Holanda, Bélgica e Grécia. Sem internet e sabendo falar apenas algumas palavras em inglês, ela conta que a comunicação era toda a base de gestos e escrita. Para falar com os filhos e imprimir mapas das cidades que estava, Cida frequentava Cyber Cafés, e se virava como conseguia. A experiência foi tão boa que em 2013, repetiu a viagem para a Grécia, e resolveu se aventurar em Praga, na República Tcheca. Naquele ano, a senhora conta que começou a estudar inglês sozinha, pela internet, e que conheceu um casal de italianos em uma rede social que a ajudaram durante a viagem e, inclusive, lhe ofereceram hospedagem em Lago di Como, no norte da Itália. “Eu fiquei com medo de ficar na casa de pessoas que eu não conhecia e, por
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isso, não aceitei logo de cara”, lembra Cida. Apesar do receio, aceitou quando o casal se ofereceu para buscá-la no aeroporto de Milão. “Eu pensei: ‘Meu Deus, se forem pessoas boas, tomara que eles me encontrem. Se não, tomara que a gente se perca’”, comenta. Em meio a tantas memórias, a experiência mais marcante para Cida foi em San Gemignano, cidade italiana da região da Toscana. Ao passar pelo portal da cidade murada, Cida conta que sentiu uma energia completamente diferente. “Eu senti como se já tivesse estado
“Quero durar até os 100 anos para poder continuar viajando” Cida Perão, Aposentatada
Livros para te inspirar Aos 22 anos, Cheryl Strayed achou que tivesse perdido tudo. Após a repentina morte da mãe, a família se distanciou e seu casamento desmoronou. Quatro anos depois , tomou a decisão mais impulsiva da vida: caminhar 1.770 quilômetros da Pacific Crest Trail (PCT) – trilha que atravessa a costa oeste dos Estados Unidos, em direção ao estado de Washington – sem qualquer companhia.
nada.
lá antes. Eu já conhecia aquele lugar, andei por tudo sozinha e não me perdi”, conta emocionada. “Eu mudei na maneira de ver a vida. Aprendi que certas coisas não merecem tanta importância, nós só vivemos uma vez”. Apesar da idade, Cida ainda tem muitos planos e lugares que gostaria de conhecer. Para este ano, os destinos escolhidos são França, Polônia e Hungria. “Quero durar até os 100 anos. Enquanto puder, eu vou viajar. Eu gosto de ver coisas que agradam meus olhos.
Robyn Davidson, uma mulher de 27
anos, conta sua trajetória pelo hostil deserto australiano, tendo apenas como companhia quatro camelos e sua cadela de estimação. Seguir viagem mesmo com o calor, cobras venenosas, e tendo que correr atrás dos camelos em fuga, Robyn surge como uma heroína extraordinariamente corajosa. Trilhas é a eloquente e sincera história de sua odisseia de descoberta e transformação. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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De passagem Eles não têm um lugar fixo. De cidade em cidade, eles controem sua própria história Caroline Deina e Sophia Cabral
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Crédito: Sophia Cabral
Seja de ônibus, carona, de bicicleta ou a pé, eles estão sempre em movimento.
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“A
nossa casa é onde a gente está. A nossa casa é em todo lugar.” A letra pode até ser do cantor e compositor Antônio Antunes, mas, para Moisés, essa pode ser a sua música. De nome bíblico, cristão praticante, ele saiu de Sinop, sua cidade de origem, no estado do Mato Grosso, à procura de sua Terra Prometida aos 17 anos. Hoje, com 44 anos e mais de 20 estados percorridos, ele continua sua busca. Não porque não tenha encontrado nenhum lugar para chamar de casa, mas sim porque se identificou com muitos. Sempre há uma região nova para conhecer e sempre deve-se voltar para as já conhecidos. Sua última viagem teve Curitiba como destino. Saindo de Goiânia, mais de 1.300 km percorridos. De avião, nada muito demorado: em cerca de 3h30 de voo é possível completar o trajeto. Contudo, para Moisés a viagem foi bem mais longa. Ele fez o caminho entre as capitais com um meio de transporte bem menos convencional: de bicicleta. Foram alguns longos dias de estrada, com paradas em cidades que ficavam pelo caminho. “Às vezes, eu viajo de ônibus, peço carona na rua ou vou de bicicleta”, conta Moisés. Atualmente, ele mora nas ruas da cidade, ajudando a contabilizar os cerca de 1.700 moradores em situação de rua, de acordo com dados da Fundação de Ação Social (FAS), em 2016. Seu José, de 55 anos, também é, atualmente, um morador das ruas de Curitiba. O ex-militar do Exército, primeiro sargento, de cabelo cortado estilo “milico” e de bigode bem feito, está na cidade há seis anos. Por conta de “um, dois, três ou mais canecos” no horário de serviço, como ele mesmo conta, acabou tendo que sair 36
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do lugar onde trabalhava. Preferiu deixar sua cidade chamada Taquara, no Rio Grande do Sul, escolhendo a fria capital paranaense como lar, pelo menos por enquanto. Muito bom em serviços de construção, é bem requisitado e por um preço bem mais em conta, de acordo com ele. A cidade, atualmente, oferece muitas oportunidades de trabalho e, por isso, seu José não tem previsão de saída. Mas, ao mesmo tempo, não existe nada que o prenda aqui. Se outras chances aparecerem, vai embora. Quanto a morar nas ruas, seu José explica que “os três canecos” ainda o atrapalham muito. “Eu consigo dinheiro, trabalho bem. O problema é a bebida, não consigo parar”. A assistente social Regina Gonçalves conta que a bebida e as drogas são a principal pedra no caminho das pessoas em situação de rua. Apesar dos esforços
“Às vezes, eu viajo de ônibus, peço carona na rua ou vou de bicicleta”
Moisés, pessoa em situação de rua
para incentivar o trabalho e uma vida de qualidade, muitos homens e mulheres não conseguem deixar o vício de lado e procurar uma estrada mais sossegada. “Eu já cansei de ver gente deixando as ruas, conseguindo emprego, pagando o primeiro aluguel na pensão e semanas depois morando na rua de novo, porque não conseguiu largar o vício e perdeu tudo, outra vez”. De acordo com a assistente social, 60% das pessoas que conseguem sair dessa realidade acabam voltando para as ruas.
Sophia Cabral
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Todos jĂĄ tiveram uma vida antes das ruas. Alguns querem essa vida de volta, outros preferem nĂŁo ter um lugar fixo e viver onde quiser.
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Quanto a Moisés, essa não é mais uma questão para ele. Sempre frequentou a igreja, estilo tradicional. “Sou cristão, vou à igreja e mesmo que não acreditem, nunca dependi de bebida ou de alguma droga.” Em pouco tempo, o viajante consegue citar diversas histórias da bíblia, de diversos personagens, sobretudo a de seu xará Moisés, que, assim como ele, explorou muitas terras. O fato de viajar muito é para conhecer diversos lugares, pessoas, histórias,
em cidade. “Prefiro não criar a minha filha do que deixar ela ter uma má influência por perto. Um dia eu vou me recuperar e quando isso acontecer, eu volto para os braços dela”, conta, com as lágrimas transbordando. Como não conseguiu um emprego desde que chegou à Curitiba, Neuza fica nos sinaleiros, fazendo malabarismo, habilidade que ela aprendeu com uma amiga de estrada. O dinheiro que ela consegue como pedinte ajuda no almoço e nos
conhecer seu país e mundo. “O Brasil é muito grande”, fala ele. Por isso, seu próximo destino é o nordeste, conhecer as praias e tomar sol. E quando o Brasil acabar? “Daí eu estou pensando na Europa. E o que fazer lá, a gente descobre quando chegar”, conta Moisés.
“golinhos” do fim do dia, que ainda não tem previsão de acabar. “Eu quero parar de beber, mas eu passo por cada coisa que só a cachaça consegue apagar”.
Enquanto uns trocam de cidade por diversão, para explorar novos horizontes, Neuza não tem lar fixo por questões de segurança. Ela e a filha Melissa, de 7 anos, saíram de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, para fugir das ameaças do ex-marido. Cássio ficou desempregado e procurou os bares para distrair a preocupação com o dinheiro. Se endividou. Neuza começou
Pedir dinheiro é algo que Marcelo se recusa a fazer. Há mais de 20 anos morando nas ruas, Marcelo não tem rumo, não tem horário, não tem compromissos, não tem que agradar a ninguém. É “a vida que pedi a Deus”, segundo o artesão. Marcelo chega a fazer sete pares de brincos por dia, feitos de EVA, arame e alguns produtos naturais, como sementes, folhas e frutos. Nunca é a mesma composição. Ele roda a Região Sul e Sudeste em busca da sua maté-
a trabalhar escondido para ajudar a família e, no segundo dia, não pode mais ir à firma, com vergonha das marcas no rosto. Nesta data, fez parte do grupo de 503 mulheres vítimas da violência física por hora no Brasil, de acordo com o levantamento de 2017 do datafolha. Foi assim no dia seguinte, no outro e no próximo. Até que cansou. Juntou as coisas e partiu com a filha, rumo à casa da mãe em Araraquara, São Paulo. Mas dessa vez, foi Neuza quem procurou a bebida. Com vergonha, ela deixou a família e há dois anos pula de cidade
ria-prima. Esta é a sua segunda vez em Curitiba. Quer aproveitar a época do ano para fazer brinco derivados do pinhão e depois partir para Minas Gerais, onde as sementes são mais variadas. Marcelo pensa em aumentar a gama de objetos e partir para os colares, pulseiras e até outros tipos de artesanatos, já que normalmente ele consegue tirar pouco mais de R$ 10 por dia, enquanto ele já viu pedintes conseguirem R$ 100. Ele não pensa em desistir, em largar a sua arte. Quer conquistar porque merece, não porque pediu.
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sociedade
A estrada é sempre o início e o fim de uma nova história.
Caroline Deina
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saúde
Aqueles que estão ao redor
A esquizofrenia é uma doença incurável que afeta, não apenas o doente, mas também as pessoas próximas. A síndrome atinge mais homens que mulheres e torna a vida dessas pessoas e de suas famílias instável Nicolle Heep Vitória Gabrdo
F
ábio Paiva foi uma criança como todas as outras, era o mais novo de uma família com seis irmãos. Cresceu no Rio de Janeiro, terminou o ensino médio e começou a cursar Economia na PUCRJ. Durante esse período, ele conheceu Marta que passou a ser sua namorada. Tudo na sua vida estava certo e planejado. Ele estava com 24 anos, tinha muitos amigos, ia muito bem na faculdade, faltando apenas um ano para se formar, com planos de casamento. Nilce Paiva, uma de suas irmãs,
Passaram-se algumas semanas desde essa ocasião, quando a família não encontrava mais Fábio. Depois de alguns dias eles receberam uma ligação de uma amiga dizendo que encontrou ele na Bahia em um terreno baldio, que era de uma das suas outras irmãs, dormindo no chão. Ele pegara o cartão de sua mãe e comprara um voo para lá. A mãe de Fábio foi até onde ele estava junto com um dos melhores amigos. Quando chegaram, ele reagiu com violência, pois não queria voltar para sua cida-
“Ele estava com 24 anos, tinha muitos amigos, ia muito bem na faculdade.” - Nilce Paiva, artista. era muito próxima dele, eles sempre conversavam. E nessa mesma época, Fábio pediu para conversar com ela e Nilce percebeu que ele falava coisas sem coerência e que algo estava errado. Ela alertou sua mãe e sua família, mas ninguém achou que era algo sério. 40
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de. Depois de algumas tentativas conseguiram levá-lo de volta. Esse foi seu primeiro surto. No Rio, Fábio foi internado e tratado com o diagnóstico de esquizofrenia. As características psicóticas da esquizofrenia costumam surgir no fim da adolescência e me-
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ados dos 30 anos, trazendo um grande prejuízo funcional e social ao paciente e afetando todos os que com ele convivem. Geralmente, há uma perda da atividade laboral, sendo incapaz de trabalhar para o próprio sustento, ou mesmo terminar de cursar a faculdade e há uma alteração global na interação social.
sidade. Depois começou a afirmar que a esposa tivera um caso com o porteiro e que aquele filho não era dele. Por isso, seu casamento também acabou.
Gabriela Bonissoni, psiquiatra, explica que no período de surto o paciente perde sua funcionalidade, pois sofre uma quebra nas Passados dois anos, ele recomeçou a estudar e associações dos pensamentos, se desorgase casou com Marta, sua namorada de faculda- niza – geralmente tem alucinações e delíde. Mas, quando ela engravidou e eles teriam rios, irritabilidade, alterações do padrão do um filho, Fábio teve seu segundo surto. Achava sono, que interferem nas suas vivencias e que estava sendo perseguido e largou a univer- relações interpessoais. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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saúde
Depois disso, seu psiquiatra receitou um remédio mais forte e, por um longo período, Fábio não teve mais nenhum surto. Apesar disso, ele não conseguiu mais trabalhar e começou a frequentar uma igreja católica, pois ele e a família são católicos. Nilce conta que isso acabou virando uma obsessão religiosa. Neste ano, ele surtou novamente e começou a enxergar demônios nas pessoas. Agora, a única pessoa que Fábio permite que se aproxime, é seu melhor amigo. Ele não aceita ficar no mesmo recinto que sua mãe, por acreditar que ela tem o demônio.
esquizofrenia depende muito do momento em que ela se encontra. No início é muito desafiador e é como viver em uma montanha russa, por isso cuidar de alguém que tem transtorno mental requer paciência e muito amor”. Sarah criou um grupo no Facebook chamado Filhos Amados e com Esquizofrenia, com o objetivo de ajudar outras mães com filhos que sofrem do transtorno. “Muitos familiares não aceitam o diagnóstico, e levam para o lado espiritual ou da preguiça, e isso acaba por afetar ainda mais na piora deles. Quanto mais tardio o tratamento, pior.” No grupo, ela dissemina
“Conviver com a doença pode ser mais difícil e desafiador para os amigos e familiares.” - Juliana Spesatto, psicóloga A psiquiatra explicou que apesar da medicação
informações sobre a síndrome com artigos e
contínua, não existe a garantia de não ocorrer mais surtos, pois o tratamento e manutenção da qualidade de vida do paciente esquizofrênico vai muito além de apenas tomar os medicamentos adequadamente. Envolve um ambiente social favorável, com terapias ocupacionais, apoio e compreensão familiar, fatores ambientais e individuais. E, mesmo assim, ainda há chance de uma recaída.
experiências pessoais.
Sarah Nicolleli, servidora pública de 54 anos, tem um filho que sofre com essa síndrome. Ela conta que “conviver com alguém que tem 42
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A criadora do grupo explica que fez isso, pois quando seu filho, Cainã Nicolleli, teve seu primeiro surto, ela não tinha nenhuma informação sobre a síndrome, e a única referência que ela tinha sobre esquizofrenia era o tabu da loucura. Cainã estava no início da faculdade, quando acordou um dia pedindo para a mãe levá-lo ao hospital, pois acreditava estar com um chip que haviam implantado em sua cabeça para monitorá-lo. Depois começou a quebrar todos os espelhos da casa, dizendo
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que se olhar no espelho é vaidade, e vaidade é pecado. Então, ele não dormia mais e tinha picos emocionais. Sarah não sabia o que fazer e chamou o SAMU. Cainã foi diagnosticado com esquizofrenia aos 19 anos. Logo, sua mãe
gue acesso a tratamento adequado, não possuí suporte familiar, ambiental ou social, vivendo em situação de rua, tornando-se ameaçadora e agressiva, devido aos sintomas e prejuízos da própria doença.
passou a fazer muitas pesquisas e ler livros para se informar sobre a síndrome. “Infelizmente, não se fala muito sobre a doença, pois os familiares têm vergonha e ainda existe um preconceito muito grande.”
Por essa razão, a psicóloga Juliana Spesatto explica que conviver com a doença pode ser mais difícil e desafiador para os amigos e familiares do que para os esquizofrênicos que, na maioria das vezes, nem entendem o que está acontecendo. Em razão disso, a psicóloga afirma que o tratamento precisa ser para a família como um todo, não somente para o indivíduo.
Bonissoni aponta que o preconceito existe, porque a esquizofrenia é um transtorno que envolve um intenso prejuízo funcional e social. Logo, grande parte desses pacientes não conse-
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comportamento
BASTA!
A luta contra o assédio em ambientes profissionais e até mesmo dentro da sala de aula é constante na vida de muitas mulheres. Conheça as histórias de quem passou por isso, e saiba que você nåo está sozinha Isabel Woitowicz
As mulheres ainda buscam seu espaço em ambiente de trabalho. 44
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Luís Ribeiro
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A
ssédio, substantivo masculino. 1. operação militar, ou mesmo conjunto de sinais ao redor ou em frente a um local determinado, estabelecendo um cerco com a finalidade de exercer o domínio.2. fig. insistência impertinente, perseguição, sugestão ou pretensão constantes em relação a alguém. Insistência impertinente e perseguição. Segundo o próprio dicionário, essas duas palavras explicam melhor que ninguém o que a sensação de ser assediada. Segundo pesquisa do instituto de pesquisas Datafolha (2018), quatro em cada dez mulheres relatam ter sofrido algum tipo de assedio sexual. Desse numero, 15% dos casos ocorreram na faculdade ou ambiente de trabalho. Mas o assédio vai muito além das insinuações e atos não consentidos. Se sentir coagida, perseguida ou com medo por causa de gestos, ações ou palavras de alguém, também e uma forma de assedio. Em pleno século XXI, muitas mulheres ainda sofrem preconceito por estarem numa profissão ou ambiente predominantemente masculino. Em algumas escolas e cursos universitários, ou estágios e trabalhos, as queixas são mais comuns do que se imagina. Durante a faculdade de direito, K., de 23 anos, conta que apesar do grande numero de mulheres no mundo jurídico, já ouviu comentários machistas e inapropriados sobre as roupas que usava. “No último ano da faculdade, consegui gabaritar uma prova. Quando fui pegar a nota, o professor se mostrou surpreso, e disse que eu era bem inteligente para uma mulher, mas deveria repensar minhas roupas, que não passavam credibilidade nenhuma”, lembra. Além dessa situação, K. lembra que já teve o
celular jogado em um copo de cerveja quando se recusou a beijar o homem que servia as bebidas no balcão do bar em uma festa do curso. Dentro da sala de aula, a moça já ouviu comentários do tipo “vou explicar duas vezes porque tem muitas mulheres na sala“, saídos da boca dos mestres. Apesar disso, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dos mais de um milhão de advogados no país, praticamente metade (48%) são mulheres. A estimativa é que, em 2020, esse número ultrapasse a porcentagem masculina. Nas áreas de exata, historicamente predominadas por homens, a situação e semelhante. No Paraná, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), registra um crescimento de 35% no número de engenheiras no estado entre 2011 e 2017. Atualmente, são mais de 11mil mulheres contra 79 mil homens. C. , de 21 anos, cursou Engenharia de Produção em uma universidade privada de Curitiba, e apesar de não ter tido problemas durante a graduação, percebeu que ser mulher poderia atrapalhar a carreira que havia escolhido. “A primeira vez que percebi isso foi na minha segunda entrevista de estagio. Cheguei à fase final com um outro menino, e a justificativa do RH por não ter sido escolhida, foi porque eles preferiam ter um homem na vaga”, conta. Num ambiente com 13 colegas e chefes homens, e apenas mais uma mulher, infelizmente C. já esta acostumada a ouvir comentários machistas e preconceituosos em relação às mulheres. “Uma situação horrível que eu passei, foi enquanto eu subia as escadas. Dois homens do meu time de trabalho fizeram comentários sobre a minha bunda e ainda ficaram dando risada da minha cara. Na hora não tive rea Jornalismo PUCPR Revista CDM
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ção, mas me senti muito desconfortável”. Em outra situação, um homem mais velho chegou a fazer comentários sobre os seios da menina. “Eu sempre uso roupas adequadas e sem decote nenhum, mesmo assim, ele disse que estava chocado com os meus peitos, que para ele, eram “muito grandes’.
que o homem começou a falar sobre assuntos sexuais, como ejaculação precoce, remédios para ereção, e como apenas pessoas mais velhas sabem valorizar a beleza de uma menina nova. “Foram 20 minutos que eu fiquei em choque, escutando vários absurdos, ate que eu resolvi falar que precisava ir embora “, conta.
Em alguns casos, a situação pode ser tão extrema a ponto de fazer a assediada desistir do emprego ou acabar optando pela demissão. No inicio de 2017, F., de 21 anos, conseguiu o primeiro emprego em uma instituição filantrópi-
A experiencia foi tão traumatizante, que na mesma semana F. decidiu sair do emprego que havia lutado tanto para conseguir. “A principio eu me senti muito culpada, eu tinha certeza que eu tinha causado aquela situação
ca, na qual seu trabalho era promover reuniões
toda. Mas não é assim, eu não tenho culpa
“Cheguei à fase final com um outro menino, e a justificativa do RH por não ter sido escolhida, foi porque eles preferiram ter um homem na vaga.” C., estudante com empresas e executivos, com o objetivo de arrecadar doações e patrocínios para os projetos do local em pleno ambiente profissional.
de nada”, comenta. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, 52% das mulheres economicamente ativas no mundo,
Na segunda reunião, F. se encontrou com um homem dono de um estabelecimento gastronômico. Chegando lá, sentou à mesa, pegou seus materiais de trabalho, e iniciou seu trabalho, como já havia feito antes. “No meio da minha explicação sobre os projetos, ele me olhou e falou: ‘Nossa moça, seu trabalho deve ser muito difícil, porque ou o cara diz não, ou ele quer ficar com você’. Enquanto isso, ele começou a roçar a perna dele na minha por baixo da mesa”, comenta F.
já sofreram algum tipo de assédio no ambiente profissional.
Além do contato físico inapropriado, F. lembra 46
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Dentre os diversos coletivos e grupos feministas que existem dentro das faculdades, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) é uma das mais ativas nessa área. O Coletivo Maria Falce de Macedo surgiu em novembro de 2016 da união das alunas de medicina, e é um dos mais ativos com constantes atualizações nas redes sociais e mais de 1,5 mil curtidas na página do Facebook. O nome é uma homenagem à primeira aluna de medicina da universidade.
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Apesar de ter mais contato com a escola de saúde, o coletivo recebe meninas de todas as áreas que queiram participar de eventos, debates, ou que estejam em busca de ajuda em casos de assédio dentro da universidade: “Oferecemos apoio no sentido de encaminhar a vitima para instâncias dentro da UFPR (caso seja algo passível de processo administrativo disciplinar). Também temos tentado fazer
quebrado, tanto pelos alunos, em especial as mulheres, que têm questionado fortemente várias atitudes machistas, quando da ascensão das mulheres e a mais cargos de professores e preceptoras. Isso tem fortalecido as mulheres dentro da medicina, mas ainda há um caminho muito longo pela frente até conquistarmos um espaço adequado e de respeito dentro da universidade”, explica a aluna.
“É necessário quebrar a cultura machista.” Julia Bona, representante do Coletivo eventos para discutirmos, entre mulheres e homens, o machismo arraigado na sociedade”, comenta Julia Bona, aluna de medicina e uma das administradoras do Coletivo. Dentro da medicina, Julia conta que existem diversas áreas predominantemente masculinas, como a cirúrgica, por exemplo, e que em praticamente todos os períodos, existem casos de assédio muitas vezes não denunciados, já que existe uma cultura de soberania dos professores e médicos homens: “Esse estigma vem sendo
Apesar de ser senso comum que as mulheres ainda têm uma grande luta pela frente, relatar casos de machismo e assédio, seja no ambiente de trabalho, dentro de universidades ou em qualquer outro lugar é essencial, principalmente para que outras mulheres percebam que não estão sozinhas: “É necessário quebrar a normalização da cultura machista e ,para isso, é preciso expor suas manifestações mais proeminentes, como o assédio”, comenta Julia.
• Quatro em cada dez mulheres relatam ter sofrido algum tipo de assédio sexual.
• 15% dos casos ocorreram na faculdade ou ambiente de trabalho.
• 48% dos Advogados nos Brasil são mulheres. A estimativa é
que, em 2020, esse número ultrapasse a porcentagem masculina.
• Aumentou em 35% o número de Engenheiras no Paraná
entre 2011 e 2017. Atualmente, são mais de 11 mil mulheres contra 79 mil homens. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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cidades
Lixo ordinário Os trabalhadores da limpeza pública descrevem os desafios que encontram no dia a dia de sua profissão Luiz Guilherme Ribinski
J
á pensou em uma realidade em que toda obrigação pudesse ser delegada a outra pessoa? Se essa responsabilidade não
fosse mais sua? Parece impensável, mas é o que rotineiramente acontece no caso da limpeza. Muitas vezes por negligência ou falta de educação algumas pessoas produzem lixo e simplesmente não dão a destinação correta. São quase 4h30 da manhã, e J. S. (a Cavo não autoriza que seus funcionários deem entrevistas) acorda para mais um dia de trabalho. Mora na cidade de Itaperuçu, aproximadamente 38 km distante da capital, e 6h50 precisa bater o ponto. Leva uma hora e meia para chegar ao seu destino, e precisa cumprir a meta de varrição de 2000 m² por dia. Trabalha seis dias na semana, ou seja, 12 km² ao todo
Diz já ter passado por situações desagradáveis durante o trabalho, como por exemplo no dia em que estava nos arredores da praça do Japão e uma pessoa de dentro do ônibus jogou lixo próximo de J. “Se pelo menos a pessoa avisasse que iria jogar no chão (...) algumas pessoas nos tratam como lixeiros, como se tivéssemos a obrigação de juntar o lixo delas. Muitas pessoas não dão valor para o nosso trabalho”, lamenta. Outra situação enfrentada pelos varredores é a falta de banheiros públicos. Recorrem aos banheiros de terminais de ônibus e mercados. Dificilmente há pessoas solícitas nessa questão. J. afirma que raramente um morador ou comerciante o deixa usar o banheiro. “Sempre dão alguma desculpa, falam que o banheiro
na jornada semanal.
está quebrado, em reforma…”
Natural do interior do estado, está há 13 anos no ofício. Conta sem muitos detalhes que precisou ajudar a família trabalhando cedo, e não teve oportunidades de estudar. Mesmo assim J. diz que gosta do que faz, e, apesar da rotina intensa, sente-se feliz com o trabalho e afirma que não o trocaria. Durante todo o tempo de nossa conversa J. não tirou o sorriso do rosto e se mostrou descontraído.
Como usualmente trabalha na mesma região acabou conhecendo “muitas pessoas bacanas” e
Apesar do esforço diário, J. S. sente na pele o resultado da negligência de algumas pessoas. 48
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Luiz Guilherme Ribinski
W.P. se prepara para mais uma jornada de trabalho.
cidades
criando uma relação respeitosa com a maioria dos que o conhecem. “A gente acaba criando amizade né? Tem gente que conheço desde que comecei a trabalhar. Há pessoas muito boas por aí também.” A boa relação com a vizinhança não é diferente no caso dos coletores. W. P. também trabalha durante o dia, e diz que, pelo convívio com os moradores, não é incomum receber um mimo, como ser chamado para tomar
diversas vezes pessoas fecharem os vidros ou tamparem o nariz ao passar próximo do caminhão da coleta de lixo. “As pessoas esquecem que quem produz este cheiro são elas mesmas.”
“Ainda há muita brincadeira objetivando discriminar a pessoa e o trabalho dela.” Manassés Oliveira, presidente do Siemaco
café ou comer bolo (prática proibida pela empresa). “É uma proposta que não dá para recusar”, brinca. A Cavo emprega aproximadamente 2.500 pessoas, sendo na maioria homens. Esse número contrasta com a estimativa do sindicato, de que, de toda a categoria, 70% são mulheres. É fácil reconhecer um trabalhador da limpeza pública. A cor do uniforme representa a função exercida, como o laranja para os varredores, amarelo para os roçadores e o verde para os coletores, mas talvez isso não seja algo bom para os profissionais. O coletor V. T. aponta que o uniforme, ou talvez o odor que nele fica impregnado, influencia negativamente o comportamento de algumas pessoas, e que depois de passar por uma situação constrangedora no transporte público prefere caminhar para o trabalho. “Estava com mais dois colegas de trabalho. Como não pagamos a passagem entramos pela última porta, e percebemos que depois de nossa chegada as pessoas que estavam na parte de trás do ônibus foram para as cadeiras da frente”, lembra. Outra situação que, segundo T., mostra falta de respeito é no trânsito, quando viu por
Pressão no trabalho O presidente do Siemaco (Sindicato de Empresas em Asseio e Conservação), Manassés Oliveira, observa que há diversas irregularidades cometidas pelas empresas terceirizadas, como atraso de salários e negligências dos tomadores de serviço. Mas, na opinião de Oliveira, uma das faltas mais graves é a coação e o assédio moral. “ Ainda há muita brincadeira objetivando discriminar a pessoa e o trabalho dela, e nós temos buscado na justiça do trabalho, por intermédio de nossos advogados, proteger o direito dos nossos trabalhadores. O sindicato precisa estar sempre presente nas empresas para que o trabalhador não seja prejudicado”, afirma. Dois coletores que não quiseram se identificar denunciam sofrer pressão por parte dos fiscais, que usam colete azul para a identificação. Um deles afirma que constantemente ouve dos fiscais que “se não trabalhar direito” pode perder o emprego e que a “fila do desemprego está grande.” A Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA) foi contatada e até o fechamento desta reportagem não havia respondido aos nossos questionamentos. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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