Fotografar Palavras

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Fotografar Palavras Ilustração do livro Gastar Palavras de Paulo Kellerman Fotografias de Tina Azinheiro Produção Casa da Eira


O livro Gastar Palavras, de Paulo Kellerman, foi publicado em Dezembro de 2005, tendo alguns meses sido distinguido com o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores. O presente ebook representa a versão fotográfica desse livro, incluindo as fotografias originais concebidas por Tina Azinheiro para cada uma das estórias do livro, bem como quatro contos reproduzidos integralmente.


Fotografar Palavras


“Soube-me tão bem estar sozinha” Morreste outra vez


“E fico a pensar nisso. Não ver nem ser visto, ou seja: não existir” Importa-se de parar de olhar para mim?


“Fui assim, distribuindo pedaços da minha vida pelas salas do palácio – povoando-as.” Um castelo no meio do deserto


“Agora é como se namorássemos ao contrário: vamos aprendendo a desconhecer-nos; até que chegará o dia em que seremos de novo, estranhos; como no início, completaremos o ciclo. E seguiremos o nosso destino: em caixões separados”. Caixões separados


“No dia em que fiz seis anos, a minha mãe levou-me à praia, pela primeira vez. Ambos ficamos extasiados: eu pasmei perante a imensidão do mar, o conforto da areia quente, a vastidão do horizonte, a sensação da liberdade.” O dia em que comecei a odiar-te


“Quero que venhas, importa-me lá que estejas cansado de mim.” Quero que venhas


“Uma existência sem casamento nem filho, que culminara num acidente sem consequências” Amnésia


“Em cada uma das imagens insuflarei um pedaço de alma. Construirei fantasias, imaginarei existências, inventarei vidas. E depois, um dia, poderei vivê-las.” Costela


“Sou um simples anjo. Um anjo doente: um anjo que sente.” Morreste: e ainda não sabes


“Houve alturas da minha vida em que teria gostado de ser árvore, em que teria apreciado uma existência contemplativa, ser apenas uma mancha dissimulada na paisagem.” O anjo e a árvore


“Espreitava-a pela janela, em silêncio, por vezes sorria. E tranquilizado pela calma do seu respirar, pela serenidade do seu rosto, afastava-se para um canto do jardim, agarrado a um jornal.” Por vezes, consigo suportar o teu silêncio


“E encorajada pela solidão que me proporcionaste, esqueci-me de ti, esqueci-te; ergui a mão, devagar, aproximei-a do seio; toquei-me. E senti o meu caroço: agressivo e assustador.” Diz-me o teu nome, pergunta-me o meu


“Durmo, vou fugindo. Fujo da dor de pensar. Então, acordo: e eis a minha vida, à espera. É (também) como nascer: e descobrir uma cortina intransponível.” Gastar palavras


Gastar Palavras


Importa-se de parar de olhar para mim? De repente, ele diz: importa-se de parar de olhar para mim? Sinto um súbito embaraço, vergonha misturada com surpresa, vontade de fugir; ou de reagir; mas limito-me a murmurar, em tom humilde: peço desculpa. E volto a cabeça, ostensivamente. Penso que ninguém se terá apercebido desta breve troca de palavras, ou que ninguém se tenha importado, se tenha surpreendido, o que limita o meu embaraço. Mas o autocarro está cheio imagino que esteja cheio e é impossível mudar de lugar; tenho de permanecer aqui, em frente a este homem que acabou de me proibir de o olhar; e não sei bem o que fazer: olhar para a direita ou para a esquerda rapidamente me provocará dores no pescoço, e talvez na coluna; e, neste momento, já tenho dores suficientes. Por isso, penso que resta olhar para os sapatos; pergunto-me por que se terá incomodado o homem com o meu olhar; depois, tento imaginá-lo: pela voz, suponho que será alguém mais velho que eu; talvez seja um pouco atarracado, pequenino: vozes agressivas compensam, muitas vezes, estaturas minúsculas; talvez um aposentado precoce, por motivos de saúde; alguém contrariado, que se considera demasiado infeliz, injustamente maltratado pelas forças do universo; um homem dolorosamente banal, que sabe que a sua passagem pelo mundo não modificou absolutamente nada. Ou

seja: alguém que me poderia entender. Mas estou a fantasiar, como sempre faço. A sua inesperada agressividade indispôsme contra esta pessoa, que talvez até seja encantadora. Mas também tenho o direito de me indignar, de ser irracional: e apesar de não o conhecer, odeio-o. Um daqueles ódios viscerais, que por vezes me corroem e dilaceram; o ódio intemporal e genérico que transporto na minha alma, desde sempre, e que por vezes não consigo deixar de focalizar em alguém específico, como se fosse esse alguém a causa única da minha raiva. Tento distrair-me, com as divagações habituais: sendo cego, deveriam permitir que olhasse para onde desejasse; para os outros, deveria ser indiferente que os olhasse ou não, já que não os posso ver; contudo, acontece o contrário: apesar de não ver, o meu olhar parece incomodar mais que o olhar dos que podem ver. Como se imaginassem o meu olhar como uma acusação, ou um pedido de desculpas. E vou pensando nisto, remoendo os mesmos pensamentos de sempre, as mesmas lamentações de sempre, as mesmas culpas de sempre. O tempo vai passando, devagarinho e escuro. Esforçome por me manter distraído, o que é fundamental para não cair na tentação de ter pena de mim, de me chorar; penso no homem e tento odiá-lo, tranquilamente, anonimamente; na verdade, preciso de odiar os outros um outro qualquer para


não me odiar a mim, ou para esquecer que me odeio. Gostava de ser uma pessoa normal, fazer o que faz uma pessoa normal: olhar pela janela, por exemplo. E ver. Olhar lá para fora, ver a paisagem desfilar; e não pensar, não pensar em nada. Olhar, simplesmente: porque olhar e ver é fugir; e eu estou preso em mim, a mim, dentro de mim. Condenado a mim. O autocarro pára e o homem sai; sinto-o passar junto de mim, respiro o seu cheiro, a sua hostilidade, a sua pressa. Não resisto a imaginar-lhe um destino; e como sempre, os destinos que fantasio para aqueles que odeio representam os destinos que desejo para mim mas sei que nunca viverei; o que me permite aprofundar o ódio, descobrir novas nuances no ódio que preciso de ir alimentando, para que depois me alimente dele. Mais importante que tudo: é preciso distrair-me de mim. Fingir que posso fugir. Estou tão absorvido que, de início, nem reparo que a mulher que se senta ao meu lado falou para mim; mas depois, quando percebo o sentido da sua frase, compreendo que só pode estar a dirigir-se a mim. Disse ela: sabia que o senhor que acabou de sair, aquele que se chateou consigo, também era cego? Não, claro que não fazia ideia. No meu silêncio, ela adivinha a minha resposta; e não insiste no diálogo que certamente não lhe interessa , sente que já cumpriu a sua função. Deixa-me só, com a minha estupefacção. Penso no

inesperado da situação, no ridículo: dois cegos a olharem-se, sentindo que estão a ser olhados, incapazes de suspeitar que estão a ser olhados por outro cego. Olham: mas não vêem nem são vistos. E fico a pensar nisto. Não ver nem ser visto; ou seja: não existir. Fico a pensar nisto durante muito tempo. Distraído.

Um palácio, no deserto Era o fim da tarde e a luz do sol, que ia desaparecendo devagarinho, lá longe, à distância do olhar, dourava o horizonte. Caminhava há muitos dias e já desistira de encontrar; caminhava apenas porque não havia mais nada que pudesse fazer; e fechava os olhos, porque se os abrisse veria exactamente o mesmo: o vazio, perante mim. Foi, então, num desses momentos em que a minha caminhada quase cessava de fazer sentido e o desejo de desistir me corroía, que abri os olhos e vi: cúpulas. E depois: torres. E ainda: janelas. De súbito, perante mim, a meus pés: o deserto


mesclava-se com o horizonte; e dessa fusão harmoniosa, surgia uma utopia tão improvável quanto concreta, feita de tons amarelos e castanhos, que se tocavam e dissolviam e recriavam, um arco-íris feito de apenas duas cores, um arco-íris feito de infinitas variações da mesma cor. E erguendo-se no majestoso castanho amarelo da areia, tocando o longínquo amarelo castanho do céu: o esboço de um palácio. Sim: um palácio. Primeiro, havia uma enorme avenida; e depois, enormes paredes repletas de janelas. Ou melhor: singelas e discretas paredes que pareciam servir o propósito único de suportarem as janelas. Tantas, tantas janelas. E varandas. Arcadas. Escadas. Ameias. Torres, com cúpulas corde-rosa. Tudo encastrado, formando um edifício maciço mas subtil, um imenso universo harmonioso, etéreo, irreal. E lá em cima, a espreitar: nuvens brancas. Portanto: um palácio, no meio do deserto. Aproximei-me, com receio de olhar, com receio de não olhar. Tentando reunir coragem para tocar, tentando reunir coragem para acreditar. Agradecido; apaixonado. Mas, devagarinho, fui percebendo, quase intuindo: a inexistência de sombra; a inexistência de som; a inexistência de movimento; a inexistência de variação; a inexistência de vida. A inexistência de existência. E compreendi, de súbito: um palácio abandonado. Então, entrei. Caminhei vagarosamente por algumas salas, descobrindo com surpresa a ausência de portas,

descobrindo que também as paredes que delimitavam as diversas divisões se encontravam repletas de janelas. Mesmo nas profundezas do interior do palácio, se procurasse a posição adequada, poderia atravessar as paredes com o olhar e, através da sobreposição de janelas, observar o exterior, observar o amarelo saturado de castanho, o castanho disfarçado de amarelo. Espreitar o mundo, a passar. No início da minha visita, senti-me quase enfeitiçado, como se me invadisse um suave e invulgar prazer nostálgico, uma certa volúpia inconsequente. Senti, mais que tudo, conforto. Mas, com o passar do tempo, com a sucessão das salas, percebi que a tranquilidade que sentia se dissolvia lentamente, corroída por uma impressão indefinida de agressividade. De certo modo, comecei a sentir-me agredido por uma sensação opressiva, uma sensação que apesar de não me parecer malévola ou destrutiva, simplesmente incomodava, ocupava espaço. Saí, quase repentinamente; um pouco assustado. Encontrei o exterior idêntico ao que recordava, como se o tempo não tivesse avançado. Sentei-me na areia morna, com as costas voltadas para o palácio, fechei os olhos e esperei. Os pensamentos foram seguindo o seu caminho, vagarosos; retrocedendo, hesitando, mesclando-se, deixando-se morrer; procurando alcançar um pedaço de compreensão, uma


semente. E muito lentamente, de modo quase imperceptível, uma possível solução foi-se aproximando do meu consciente, insinuando-se, espreitando-me; e quando, por fim, admiti a sua presença, percebi: o palácio não fora abandonado; na verdade, o palácio nunca fora habitado. Percebi: o incómodo que sentira fora a total ausência de presença humana. Não sei quanto tempo fiquei sentado, na areia. Mas, finalmente, tomei uma decisão: ergui-me, voltei-me, abri os olhos. E ei-lo: ainda. Concreto, real, desafiador. À minha espera. Comecei na primeira sala e, depois, percorri-as todas, desordenadamente, até ter a certeza de que não deixara de visitar uma única. Em cada uma das salas, sentava-me e fechava os olhos; depois, evocava uma qualquer recordação do meu passado; revivia-a; e libertava-a. Fui, assim, distribuindo pedaços da minha vida pelas salas do palácio, povoando-as. Dando-lhes a conhecer as sensações humanas; distribuindo pedaços da minha alma. Demorei muito tempo a visitar todas as salas; por vezes, quando entrava nalguma que achava não ter visitado, sentia a presença de alguém. Então, subitamente, compreendi que as minhas recordações atravessavam as salas, através das janelas, e comunicavam entre si, dando origem a novas recordações, multiplicando-se, dando vida. Ou seja: o palácio

humanizava-se. E tendo o processo sido iniciado, a minha presença já não era necessária; mas, apesar disso, preferi continuar e percorrer todas as salas, libertando em cada uma delas algo meu: uma dor, uma alegria, um medo, um sonho, um desejo, um segredo, um ódio, um prazer, um sentimento. Assim continuei, durante muito tempo: a dar. Até dissipar o vazio. Depois, regressei ao exterior e afastei-me, caminhando na direcção do sol, que ia desaparecendo devagarinho, lá longe, à distância de um olhar. Em busca de outro palácio. E assim tenho ocupado a minha existência: a povoar.

Caixões separados Estamos deitados há bastante tempo, imóveis e sem nos tocarmos, distantes, irremediavelmente separados; incapazes de aproximarmos os nossos mundos, desinteressados em partilhar as nossas solidões. Ambos esperamos a chegada do sono, ambos entretemos a insónia


com pedacinhos de recordações. Já não falamos, porque nos une uma vida comum de trinta anos; ou seja: já dissemos tudo. Agora, apenas podemos esperar, dividindo o tempo entre o que desejamos recordar e o que não conseguimos esquecer. Desejamos adormecer; mas tememos não acordar. Por isso, vamos adiando. E o tempo passa, embrulhado em silêncio. Um carro que pára, portas que abrem e fecham. Som de passos arrastados, lentos, preguiçosos; e depois, param: mesmo por baixo da nossa varanda. Falam e riem. Duas mulheres e um homem; ele fala, elas riem. Gargalhadas. E eu, no nosso quarto escuro e silencioso: encolho-me, distraio-me; tento não ouvir. Mas as gargalhadas continuam, multiplicam-se; agridem-me. Finges dormir mas sei que também escutas, que também te incomodas. Sofremos juntos, em separado. Resigno-me, desisto de me incomodar; aproveito a distracção, ocupo o tempo. Imagino. Por exemplo: tento reconstituir as mulheres a partir dos seus risos, invento-lhes rostos, corpos, gestos; tento escutar algo da conversa, perceber o motivo de tão ruidosa felicidade; tento imaginar quanto tempo durará esta exibição de alegria; tento lembrar-me de algo mais triste; e não consigo: não há nada mais triste para um velho do que ouvir as gargalhadas de um jovem. Continuam: têm todo o tempo do mundo. E o mundo respeita-os; o mundo respeita sempre quem tem o tempo do seu lado.

Agora que o silêncio regressou, não sei que fazer dele. Mantenho-me um pouco rígido, temo tocar-te; incomodar-te. Pergunto-me se sentirás o mesmo em relação a mim; estou certo que sim. Com a idade, não veio apenas o cansaço, o fastio, o tédio; chegou também o embaraço; tantos anos juntos; e agora, de repente, envergonhamo-nos. Conhecemo-nos tão bem, tocámo-nos tantas vezes, partilhámos tanto: para nada. Amámo-nos tanto que esgotámos o amor; agora, resta a memória; resta o hábito; resta a preguiça. Resta a morte: em separado. Agora, é como se namorássemos ao contrário: vamos aprendendo a desconhecermo-nos; até que chegará o dia em que seremos, de novo, estranhos; como no início; completaremos o ciclo. E seguiremos o nosso destino: em caixões separados. É por isso que receio tocar-te: és uma estranha. Acordo abruptamente, pouco tempo depois de adormecer; assustado: há anos que não tinha um sonho erótico. Fixo os olhos no tecto, saboreio o silêncio; e recordo, revivo. Pela tua respiração, percebo que ainda estás acordada; pergunto-me se terás percebido a minha agitação. E sinto a tentação violenta de te contar, de partilhar, de conversar. Apetece-me tanto falar de sexo.


Muito tempo depois, desisto de resistir à tentação e resumo a minha dor, a minha curiosidade, a minha angústia, a minha revolta numa única questão: sabes há quanto tempo não fazemos amor? A resposta chega quando já desistira de a esperar: há nove anos, sete meses e dois dias. Mais tarde, acrescentas um murmúrio: foi numa quinta-feira. De repente, percebo que o silêncio profundo e irreversível que nos une é, afinal, uma forma de choro. E abraçote.

Gastar palavras 07h45 Custa-me tanto acordar. Antes, era um momento mágico: um mundo de possibilidades pela frente, caminhos a percorrer, aprendizagens, dores e obstáculos e incompreensões a superar, partilhas; cada acordar era um nascimento, a descoberta deslumbrada da imensidão da vida. Como olhar um mapa que incluísse todos, mas mesmo todos, os caminhos existentes no mundo, todas as pequenas estradas e atalhos e ruelas e avenidas e becos sem saída; olhá-los, sem pressa,

saboreando a indecisão, e escolher: hoje, vou por aqui. E ir. Agora, adormecer é que é o momento mágico. Adormecer significa adiar e esquecer. Durmo muito, preciso de dormir muito: são esses os únicos instantes em que não sofro. Tudo se mantém, nada muda enquanto durmo; mas dormindo, consigo não pensar nisso, consigo ignorar. É a única fuga que me resta e estou, em cada dia que passa, mais dependente dela. Durmo, vou fugindo. Fujo da dor de pensar. Então, acordo: e eis a minha vida, à espera. É (também) como nascer: e descobrir uma cortina intransponível (nem importa se transparente ou não; é indiferente se há algo para além da cortina porque a impossibilidade de a ultrapassar é uma certeza absoluta); nasce-se e não se está perante um princípio, nem sequer perante um fim; abro os olhos e tudo o que vislumbro é um impasse, uma impossibilidade, uma incongruência. Abro-os; e de imediato, volto a fechá-los. E a incapacidade de os manter assim, cerrados, causa uma dor nova, acrescenta o sofrimento. Acordo, agora. E o meu primeiro pensamento é: quando poderei voltar a dormir?

08h13 Caminho pelo apartamento. O branco das paredes agride-me, fura-me os olhos. Apetecem-me quadros, cores, janelas para a salvação; distracções. Este assobio constante


que é o ruído do silêncio causa-me dores de cabeça; e desejo barulho, agitação. Há momentos em que penso: um grito de alguém seria o suficiente para me salvar. E olho em redor, em busca de quem possa gritar. Procuro, sabendo o que encontrarei. Penso: sabemos sempre o que vamos encontrar e mesmo assim procuramos; porquê? Vou à casa de banho, porque aí as paredes são beges; sempre é um branco diferente. Depois, olho-me ao espelho. Frente a frente com alguém, que até poderei nem ser eu. E canso-me. O silêncio perseguiu-me, aí está: ruidoso. Desejo barulho; e ligo a televisão, automaticamente começo a trautear as músicas publicitárias que vou ouvindo. Sento-me a comer o pequeno-almoço, feito de cereais. Engulo com indiferença. Trauteio. Vejo como o sol vai avançando pela janela, agredindo-me com a luminosidade da sua existência. Agora, resta vestir-me e sair pelo mundo, por aí fora. Penso: tenho quase meia hora para escolher a gravata.

08h53 Por vezes, julgo-me especial. Penso: sou especial. E acredito. Nada de extraordinário, essa especialidade. É apenas uma consciência não muito racional que por vezes vem e se insinua, murmura junto ao ouvido: tens, em ti, lá dentro, lá fundo, algo para dar. Algo que até pode ser muito. Mas algo, para oferecer. Quero dar, sinto que posso dar. Nem sei o quê, na

verdade não importa muito. Poderá ser apenas companhia ou compreensão ou carinho ou amor. Mas quero tanto dar. Provocar sorrisos. Ou até recolher lágrimas (as lágrimas são sempre pedaços de alma, provas de libertação, de entrega, de confiança; rastos de amor. Gostaria de andar pelo mundo e provocar choro; então, recolheria as lágrimas, e com elas formaria um oceano, um novo oceano. E esse oceano, constituído por pedacitos das almas de todos os homens, formaria uma alma gigantesca, que seria a alma do mundo; que seria, em simultâneo, de todos e todos.) É isso que penso, que desejo: apetece-me dar; e sinto que posso. Depois, olho em redor, pergunto: mas quem receberá? (Novamente: uma cortina.) Muitas vezes, sinto-me pateta: como se fosse um daqueles loucos que percorrem as ruas das cidades com tabuletas penduradas ao peito, anunciando o fim do mundo; a minha tabuleta diria: dá-se amor. E andaria pelas cidades, exibindo-a, esfregando-a nos olhos de quem passasse. Para nada; porque ninguém diria: dá-me amor, que eu preciso. E então, penso: não, não sou especial. E acredito.

10h37 O que mais me custa neste emprego de vendedor de automóveis é ter de sorrir tanto. Aquela velha conversa pateta do palhaço que tem de mostrar alegria estridente quando sente


dor lancinante. Sorrio, muito sorrio eu. E esta gente cega deverá pensar: que alegre e feliz é este homem. Ouço os lamentos, detecto os sonhos. Tagarelices inconsequentes. E falo das cilindradas e das cores metalizadas e das jantes em liga leve. Digo: hoje em dia, os carros são feitos para durarem uma vida. E recebo a resposta em forma de acenos de cabeça. Passo horas a repetir cassetes, com indiferença, disfarçando o ódio com sorrisos. Por vezes, dizem-me: que gravata tão bonita. Sorrio e falo da minha colecção de gravatas. Faço-o com entusiasmo, invento entusiasmo. E tenho a certeza que toda esta gente pensa: que rapaz tão feliz. E eu grito-lhes, em silêncio: cegos dum caralho.

13h01 Almoço todos os dias no mesmo restaurante. Já me conhecem, aqui. Sorriem-me muito. E eu sei: para eles, é só trabalho, é um sorriso profissional; o sorriso que exibem quando me dão o prato com as batatas e a carne e o ovo e a alface é o mesmo, exactamente o mesmo, que eu exibo, quando falo de suspensões e consumos e alarmes. Penso: agora, sou eu o cego. Finjo não perceber. Todos aceitámos esta regra primária da civilização: fingir não perceber o sofrimento dos outros. Ignorar. E então, rio alto. Eles sorriem e eu rio. Falamos, somos joviais. Espirituosos. Eles dizem: és um tipo mesmo porreiro. E eu concordo. Mas sei o que eles pensam, na verdade: cego dum

caralho. É o que eu também penso, deles, de mim. Somos sempre os mesmos, o mesmo, dia após dia. Sorrimo-nos tanto; e nada sabemos uns dos outros. Não sei porquê mas nem curiosidade sentimos. Representamos as nossas comédias, falamos de banalidades, sorrimos tanto. Mas não conhecemos nada, não partilhamos nada. Podemos estar a morrer de dor, de solidão, de desespero; mas enrolamos sempre as batatas fritas em sorrisos e engolimo-las com a nossa dor. Dor que amarga, sempre; mas que disfarçamos: com mais sorrisos. Tão estranho, isto. O que precisamos, todos nós, é de um simples abraço. Mas recusamos pedi-lo, dá-lo. Sentimos vergonha, embaraço. Não encontramos conforto no facto de partilharmos as mesmas dúvidas, as mesmas angústias. Somos incapazes de estender a mão, abrir a mão. Todos sentimos que temos algo para dar, queremos dar, queremos desesperadamente dar, qualquer coisa, a alguém. Mas temos medo, somos tolhidos por um estranho e dilacerante medo, que nos inibe, que nos controla. E então, tudo o que fazemos é sorrir. Sorrimos. Disfarçamos o medo. E aprendemos a odiar, odiar com todas as nossas forças, as pessoas que nos sorriem. É também uma maneira de nos odiarmos.

16h42 Isto é o que sinto, ultimamente: que a minha alma diminui. Que vai encolhendo e encolhendo e encolhendo.


Tenho medo que, assim, desapareça. E pergunto-me o que será de mim, sem alma. Depois, há alturas em que me revolto. E penso: mas se eu já sou um simples pedaço de carne... e sou incapaz de completar o pensamento. Sim, admito: a minha vida é pouco diferente da existência de um poste de electricidade. Ergo os meus braços, segurando os fios que conduzem a electricidade que alimenta o mundo; momentos de arrogância, em que me julgo útil. Mas, na verdade, sei, admito: que a electricidade existe sem mim, para além de mim; que sou apenas um instrumento, facilmente substituível. Há acontecimentos que passam através de mim, pequenas banalidades angustiosamente irrelevantes (acuso-me: sou um instrumento da banalidade; ou nem isso, menos que instrumento, menos que veículo.); mas, se eu não estivesse lá, estaria outro poste, o que mais existe são postes. Mas preocupa-me, isto. Ainda me preocupa. Há camadas de alma que vou perdendo, isso sinto. Devagarinho, suavemente. Sem dor (e isto, espanta-me um pouco). Como se a alma fosse feita de translúcidas camadas de água; e por vezes, uma camada desaparecesse, assim, simplesmente. Evaporou. Transformou-se noutra coisa. Era substância, agora é... não sei: vapor. Ou fantasma. Sim, talvez isso: aos poucos, a minha alma morre, transforma-se em espírito de alma, fantasma de alma. Sinto isso: e perturbo-me. Custa-me, ser assim

habitado por fantasmas. Custa-me, estar assim a evaporar, aos poucos. E se alguém perguntasse: quem és? Responderia: um poste de electricidade com um fantasma de alma dentro?

21h17 O pior é não apetecer. Não ter vontade nem desejo, não querer nada. Acontece-me muito, agora. Não apetece. Nada apetece. Não sinto vontade de nada. Espero, apenas. Ou nem isso: por vezes, não espero nada. Basta a passagem do tempo. No máximo, espero nada; e esperar nada é estar morto, vegetando. Como morto: é assim que me sinto, tanta vez. Prisioneiro da indiferença; pior: apreciando a indiferença. Sinto-me doente, sei que é uma doença; mas sou incapaz de me contrariar. Pergunto-me, sempre, tanta e tanta vez: para quê? Forço-me. Tento pensar em coisas boas. Pedaços de felicidade. Nada de especial, porque a felicidade não é nada de especial; a felicidade é, muitas vezes, simplesmente conseguir sentir, derrotar por momentos a indiferença, a anestesia, o torpor. A felicidade pode ser, tantas vezes, apenas conseguir sentir. E então, evoco recordações. Momentos em que consegui sentir qualquer coisa. Banalidades: o sabor de um gelado, o brilho do sol num fim de tarde de Verão, uma carícia


na perna, o som de um riso, um passeio na beira de um rio, o ladrar de um cão, a sensualidade de uma palavra escrita à mão numa folha de papel, o toque ansiado de um telemóvel, um passeio de carro sem destino nem objectivo nem fim, um olhar que não se desvia, crianças a brincar, ter um jornal na mão. Coisitas que me encheram, preencheram o vazio. Penso nelas, tento recuperar a sua consistência. Faço força. Mas não resulta, já não resulta. Apenas memórias indefinidas, voláteis. Perdidas. Tento tocar-lhes, mas elas passam-me através dos dedos; fantasmas. E volta a não apetecer. Nada, nem sequer tentar.

23h37 Acabei de fazer amor. Comecei por despir-lhe a lingerie, aquela azul e semi-transparente, depois fui percorrendo-lhe o corpo com a língua, acariciando, molhando, provando. Movimentos frenéticos, gestos desastrados. Passou muito tempo; e agora há cheiros insinuados e nuances de escuridão, movimentos tímidos, simulacros de partilha. Dantes, dava importância a isto: a minha vida dependia disto. Agora, há apenas cansaço. Ou nem isso: resignação. Ela adormeceu, enroscada em mim. De repente, ressona. E acho isto bonito. É bom descobrir imperfeições nos outros: lembramo-nos assim que também somos imperfeitos. E partilhar os defeitos é uma forma superior de amor. Imagino-me a dizer, não sei a quem, não

importa a quem: amo-te porque ressonas, porque tens manchas na pele, porque és egoísta. De qualquer modo, penso que ainda a amo. Muito. Ou o suficiente. Penso nisto, durante muito tempo; depois, adormeço.

01h13 Custa-me falar. Custa-me dizer palavras que não conduzam a lado nenhum, que não originem intimidade, que não toquem; E por vezes, penso: vou gastando as minhas palavras, assim, desapaixonadamente, desinteressadamente; e quando precisar mesmo delas ainda acredito que esse dia chegará , descobrirei que se me acabaram; procurarei dentro de mim e não encontrarei; apenas o vazio estará lá: maior que hoje. E preocupo-me: porque não sei onde se podem ir buscar palavras, não sei se é possível obter e usar mais palavras que aquelas que nos dão à nascença (nascemos apenas com dois olhos, e assim temos de sobreviver; nunca ninguém pensou partir pelo mundo, em busca de mais olhos, por achar que dois são insuficientes). Por vezes, gosto de imaginar que as palavras nascem nos ramos de uma árvore misteriosa, uma árvore milenar que existe desde o início dos tempos, que nunca morre (árvores


que são, também colunas: que de algum modo sustentam o mundo); gosto de imaginar que há planícies imensas serpenteadas destas árvores e que, por vezes, algumas pessoas podem passear-se entre elas e colher as palavras que desejam. Como meninos, brincando num laranjal, num fim de tarde de Primavera. Também já houve alturas em que pensei: as palavras vêm do mar. Existiriam entre as ondas, envolvidas pela água. Como bebés, nas placentas das mães. Nascendo, a todo o momento: formas invisíveis soltando-se com ternura da água, sacudindo a espuma, e flutuando nas costas do vento, por aí. A atmosfera estaria repleta delas, infinidades de palavras virgens, ansiosas por serem ditas, gritadas, segredadas; ou adiando o propósito da sua existência, o momento em que alguém as pega e, envolvendo-as na humidade da garganta (outra placenta), extrai o som que é a sua essência, esvaziando-as. Penso (pensar não consome as palavras) muitas coisas, assim. E tenho pena de não poder falar disto a ninguém, não ter as palavras necessárias em mim. Sinto-me deficiente: nasci com défice de palavras. Não percebo para que estou a gastá-las contigo.


Agradecimentos: (Tina) Ao Paulo, pelo enorme desafio para fotografar palavras, por me deixar recontar algumas das suas mais fantásticas estórias... À família da Zaira, pela disponibilidade na produção Ao Rui, pelo apoio de imagem À Ana David, pelo olhar atento e sempre esclarecedor (Paulo) À Tina, por tudo A toda a gente que a Tina conseguiu envolver no projecto, pela generosidade Ao Manuel Leiria, porque sim


Visitas: Gaveta do Paulo: www.agavetadopaulo.blogspot.com Deriva Editores (compra de livros): http://www.derivaeditores.pt/ Região de Leiria (visualização e download de ebooks): http://www.regiaodeleiria.pt/blog/category/noticias/cultura/e-books-de-paulo-kellerman/ Casa da Eira: http://casadatina.wordpress.com DF Creations: ruiazinheiro@gmail.com

fotografar palavras dezembro de 2012

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