5 minute read

Evento é vento!

Lourenço Stelio Rega

Lembro de diversos alunos contarem que a sua Igreja era movida a eventos; um deles chegou a comentar com seu pastor que evento é como vento, vem e some. Isso me acendeu uma forte preocupação e acabou dando título a este artigo.

Advertisement

Ao longo destas mais de quatro décadas de ministério, de fato, tenho percebido que muitas Igrejas acabam sendo movidas mesmo por eventos. Aliás, até que não é difícil gerenciar (isso não seria pastorear) uma Igreja assim, dou a dica para você: basta fazer uma reunião com todos os líderes antes de findar o ano, elaborar um calendário repleto de atividades semana após semana. A você caberá “cobrar” antecipadamente ao responsável que tome providências para que a atividade programada seja cumprida. Seja rigoroso. Tire fotos, faça relatórios, coloque tudo no site e perfil das redes sociais da Igreja e mostre que o “palco” está em movimento. Se alguém ficar doente no meio do caminho é só falar que a pessoa responsável pelo evento tem de dar um jeito e se sacrificar para o “reino”, pois, o show não pode parar.

Do ponto de vista histórico é possível levantar um dado curioso que, em geral, as denominações históricas no Brasil foram organizadas por missionários norte-americanos que realizaram um enorme trabalho e nos deixaram uma herança teológica e ministerial a quem necessitamos agradecer. Foi um ponto de partida em que muito esforço foi desenvolvido e que nos deram impulso para nosso percurso histórico.

A nós, na linha do tempo, cabe a necessidade de considerar o que é possível levar em conta e avaliar o quanto será preciso compreender dos impulsores de nossa origem que poderão contribuir para a nossa continuidade. Mas, repito, sempre com o espírito de gratidão pela atuação de nossos precursores.

O maior contingente de missionários que para cá vieram foi nas primeiras décadas do século passado e, naturalmente, trouxeram a visão pragmática tão comum na sua própria cultura e mais ainda com possível influência da administração científica modelada por Frederick Taylor e pela visão de linha de produção fabril de Henry Ford. Todo esse movimento veio reforçar o pragmatismo, que já vinha sendo um dos impulsores da cultura da América do Norte.

O pragmatismo foi especialmente desenvolvido pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (18391914) e mais amplamente desenvolvido, também por outro norte-americano William James (1842-1910). É uma corrente de ideias que prega que a validade de uma doutrina é determinada pelo seu bom êxito prático, é a consideração das coisas de um ponto de vista prático, a sua utilidade prática.

No passado, a ênfase era no que chamamos na Filosofia de Ontologia, isto é, a valorização da essência das coisas, do SER em si. O pragmatismo, de forma diferente, valoriza o FAZER. Depois da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, uma outra abordagem filosófica que veio para regular a vida foi o Existencialismo, onde o impulsor era a EXISTÊNCIA, a experiência no aqui e no agora.

Queiramos ou não, esses movimentos vão germinando e influenciando o modo como enxergamos o mundo, nele agimos, legitimamos nosso modo de ser. É o que chamamos na Filosofia de Zeitgeist ou “espírito da época”. Por exemplo, os movimentos carismáticos vieram especialmente após a Segunda Guerra Mundial, em que a ênfase já não era mais no Pragmatismo, de modo que o foco já não era mais na instituição, na doutrina, mas na experiência pessoal com Deus, com o Espírito Santo, bem ao sabor dos ideais do Existencialismo. Se o espaço permitisse daria até para chegar hoje demonstrando as influências da Pós-modernidade ou, como prefiro, Hipermodernidade, redes sociais etc., e descrever o que já fiz em resumo em um artigo intitulado “A geração TikTok chegou!” (OJB, 08JAN2023).

Nosso papel como líderes é ter o cuidado de avaliar o caminho que estamos palmilhando e levando nossos liderados, considerando o quanto desses impulsores culturais, filosóficos, vão modelando nossa maneira de legitimar nosso modo de pensar e agir. Não há como deixar isso de lado ou corremos o risco de sermos como que “vítimas” ou subproduto destes movimentos, entrando em um cenário confortável e prosseguindo nosso caminho, sem mesmo agir como os cristãos de Bereia, que conferiam nas Escrituras tudo o que ouviam (Atos 17.11ss). Como podemos dizer que “quem não reflete se torna vítima das ideologias!”.

Esse caminho que nos leva a conferir nas Escrituras o que de fato é o caminho que devemos seguir, em muito contribuirá para podermos ouvir de tudo e reter o que é bom (I Tessalonicenses 5.21). A Palavra de Deus se torna, assim, a métrica validadora e legitimadora de tudo o que podemos decidir, encaminhar, FAZER, SENTIR, SER, CONVIVER, PENSAR/REFLETIR e tudo o mais. Deus e Sua Palavra se tornam assim nosso ponto de partir e validador de tudo o que somos.

O Pragmatismo nos ajuda muito, pois nos leva da teoria à prática, nos leva da doutrina para a ação, para o servir. Nada de errado com isso, o dilema é se tornarmos o Pragmatismo nosso ponto de partida, o legitimador e validador do que seja o real Cristianismo. Quando colocamos o Pragmatismo como esse ponto central poderemos estar reduzindo o Cristianismo a atividades eclesiásticas, programas, estruturas, estratégias, eventos, de modo que ser cristão significa simples e meramente trabalhar na Igreja, estar envolvido, produzindo como que em uma linha fabril de produção.

Nesse sentido, o pastor da Igreja passa a ser gerente de calendário em vez de pastorear, cuidar do rebanho. O afeto, tão caro ao espírito do pastoreio, é substituído pelo poder, pelo comando, pela visão fabril e produtiva.

Já poderemos não ser mais Igreja, mas vamos à Igreja. A Igreja pela qual Jesus deu a Sua vida, passou a ser um espaço de trabalho, de atuação, em geral, dominical. Ser Igreja no mundo, como Jesus nos desafiou como sal e luz me parece que ficou assim reduzido em ir a um lugar que estabelecemos como sagrado em um dia da semana, que era para ser um dia de descanso e celebração, e tem se tornado em dia do cansaço e entretenimento em muitos casos.

A conversa de Jesus e a mulher samaritana (João 4.19ss) de que Deus estaria procurando verdadeiros adoradores que o adorassem em espírito e em verdade, em vez de haver preocupação com um local externo (que foi o centro da pergunta dela). O que Jesus faz é um “upgrade” na concepção de adoração dentro do que chamamos na Teologia de “revelação progressiva”. Mas, me parece, que o Pragmatismo nos tem feito esquecer desta doutrina e de outras não menos importantes.

Precisamos de ação, de prática, mas tudo revestido de fundamentação nas Escrituras, de forma que estruturas, programas, atividades e até mesmo eventos, sejam meio e não o fim de tudo.

Será necessário recuperar o lado relacional, convivencial, terapêutico, piedoso e amigo do pastoreio. Infelizmente, ao longo do tempo, confundiu-se o dom pastoral com a função da gestão eclesiástica e muitos pastores acabam tendo de investir tempo nisso, pouco sobrando para o cuidado das vidas e não apenas da utilidade do trabalho na Igreja.

Será também necessário recuperar a profundidade da vida cristã, a espiritualidade, o modo de ser como cristão, que vai cimentar a ação, as atividades como produto de vida transformada e não meio de nos legitimar se somos bons crentes ou não.

Mais ainda, será necessário recuperar o papel de cada cristão no meio ambiente em que vive de modo a ser sal, luz, embaixador do Reino, demonstrando o Evangelho não apenas em palavra, mas também, e principalmente em ação, em obra, no exercício de uma ética responsiva, como alguém transformado pelo Evangelho e com testemunho transformador em uma dimensão missional.

Igreja é muito mais do que evento, é uma comunidade terapêutica, provedora de acolhimento, de comunhão, compartilhamento, de socorro, de serviço, de testemunho, de aprendizagem, de disciplina também, de capacitação de seus membros a serem sal e luz diante de um mundo cruel e sem Deus. É um ambiente fértil para o desenvolvimento da vida em adoração e glorificação a Deus. O resto é vento

Contatos

E-mail: rega@batistas.org

Instagram: @lourencosteliorega

This article is from: