Jornal Lampião - Edição 34

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LAMPIÃO

ed. 34 Origem: ETIM lat. localis,e ‘de lugar, local’, der. de locus,i ‘lugar’, pelo port. arc. logar. substantivo masculino.

lugar.

1. parte delimitada de um espaço; local, sítio, região. “este sim é o meu lugar” 2. local onde se está ou se deveria estar; posto, posição, ponto. “coloque-se no seu lugar” 3. posição, posto considerado apropriado para alguém ou como lhe sendo devido. “meu lugar é onde eu quero estar” 4. local frequentado por certa classe de pessoas; roda, ambiente. “o teu lugar não é aqui” 5. espaço livre. “aqui não há lugar para todos”

6. disposição ou posição das coisas nos espaços que lhes são reservados. “este lugar é seu por direito” 7. posição relativa numa série, numa escala. “chegou em último lugar” 8. assento ou espaço que uma pessoa pode ocupar como passageiro, espectador, etc. “não é seguro estar neste lugar” 9. direção, sentido, rumo. “este é o lugar onde quero chegar”

Jornal-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto julho / 2019 ano 9 distribuição gratuita leia e repasse

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opinião

lugares “E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer”, dizia a genialidade atemporal de um nordestino notável. Se pararmos pra pensar e fizermos, de maneira breve, uma análise dos acontecimentos desde que Belchior escreveu este verso, percebemos que as mudanças no Brasil destes últimos 40 anos ainda cheiram à naftalina. O país, que ainda colhe frutos podres de um período nebuloso e perverso, vê-se entregue, mais uma vez, aos produtores do caos. Novas possibilidades já nascem velhas, novos caminhos levam exatamente aos mesmos lugares e a promessa de um “novo mundo” está, novamente, nas mãos do Messias enviado. Há séculos tomavam dos povos indígenas sua terra e suas vidas. Há décadas ainda tentamos nos curar das feridas abertas e dolorosas da escravidão. Há mais de quinze meses nos perguntamos quem mandou matar Marielle Franco. Ainda hoje estamos sob a luz do medo, do ódio e da segregação. Vivemos um período de emergência do obscurantismo. Essa palavra, que segundo o dicionário significa “oposição sistemática ao desenvolvimento da instrução e do progresso”, define bem como o país tem caminhado nos últimos anos. Regredimos a passos largos, voltando aos tempos sombrios do período da história política brasileira em que não era permitido ser, apenas obedecer. Passamos cada um dos nossos dias na busca pelos lugares que vêm, insistentemente, sendo tirados de nós. Estamos presos numa constante batalha por pertencimento, que exige de nós a provação de que esse chão também é nosso por direito. Em tempos de cortes, armas, tuítes e reformas precárias, questionar nos transforma em alvos e as críticas nos colocam num ciclo de sucateamento e descrédito. Pensar no futuro é, muitas vezes,

desanimador. Mas ao mesmo tempo em que vemos as sombras do passado deixando de ser memória e se tornando presente, encontramos coragem na luta de todos aqueles que tornaram possível a existência do hoje. Fazemos do Jornalismo nossa ferramenta de resistência, mesmo sendo, muitas vezes, encarados como inimigos. Buscamos, dia após dia, dar visibilidade àqueles que estão muito além das gravatas e mesas redondas. Trazemos de dentro nossas próprias vivências, buscando incitar diálogos diversos, inclusivos e plurais. A edição 34 do LAMPIÃO, de julho de 2019, traz consigo os lugares como principal objeto de reflexão. O lugar permitido, o proibido, o individual e o diverso. A necessidade de dar lugar a quem não tem e de respeitar o corpo do outro como seu lugar sagrado. A importância do lugar enquanto solo, casa, mundo e provedor. O lugar da conquista, da representatividade, do empoderamento e da arte. O lugar da criança, do idoso, da mulher e do negro. Da possibilidade e da conquista. Da dependência, do medo, da dor. Do dinheiro enquanto norte, e da lama enquanto memória. O lugar de fala, de escuta, de corpo e de alma. O meu, o seu, o nosso. Nas próximas páginas, e em cada uma das nossas plataformas digitais e redes sociais, conheça todos os lugares em que o LAMPIÃO esteve. Encontre histórias de vida, de laços e de afetos. Caminhos de luta, de oportunidade e de esperança. Momentos de superação, de força e de resistência. Será um prazer apresentar cada um deles a você, caro leitor, e mostrar quanta beleza há em quem faz, desses lugares, espaços tão singulares e, ao mesmo tempo, tão plurais. E ainda parafraseando a genialidade de Belchior, lembre-se, em todos os seus lugares no futuro, que “no presente, a mente, o corpo, é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

você

Fotografia: Fabrício Igbó

Editorial: Matheus Rodrigues

Cê vê? Este campo de concentração aqui? Cê vê? Toda minha vida refletida em ti? Cê vê? Roubo, tráfico e exploração. Hoje tô sem 1 real, quem sabe alguém juntou 1 milhão. Outro pronto pra morrer. Se der certo: 1 em 1 milhão. E cê vê? Cê vê? Cê vê? Meus olhos parabrisa; Molhados e limpos; Traçam rotas do destino? Que voltam e voltam. Cê vê? O olhar de quem escolhe não ver. Alguém que toco sem avisar. Cê vê? Cê vê? Cê vê?

Design Editorial: Gabriel Lage Guilherme Augusto 22, poeta ouropretano

Design da Primeira Página: Ana Miranda

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LAMPIÃO Julho de 2019

LAMPIÃO

Jornal-laboratório produzido por estudantes do curso de Jornalismo Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Ciências Sociais Aplicadas Reitora: Cláudia Mariliére de Lima Diretor do ICSA: José B. Donadon Leal Chefe de Depto.: Karina G. B. da Silva Pres. do Colegiado: Michele da S. Tavares Docentes responsáveis: Visual: Ricardo Augusto Orlando Texto: Adriana Bravin Fotografia: Ana Carolina Lima Santos Audiovisual: Evandro Medeiros Sonora: Carlos Jáuregui Web: Marcelo Freire P. de Souza Editor-chefe: Matheus Rodrigues Editor de Impresso: Gabriel Lage Editor de Visual: Fabrício Igbó Sub-editora de Visual: Ana Miranda Editora de Texto: Kelly Sousa Revisora: Yasmin Winter Editora de Fotografia: Fanny Souza Editora de Audiovisual: Paula Lima Editor de Sonora: Gabriel Ferreira Editor de Web: Pedro Gimenes Editora de Mídias Sociais: Anna Barret Repórteres Multimídias: Jéssica Augusta Ana Laura Murta Júlia Lopes Ana Luisa Lobo Karem Andrade André Silveira Larissa Gonçalves Ariane Neves Líria Barros Daniel Almeida Neto Pretti Dayara Morais Paulo Andrade Elias Fernandes Emily Soares Raiane Rezende Gabriel Cunha Ruhan Mendes Gabriela Paiva Rodolfo Simões Rodrigo Fontenelle Gabriela Telésforo Guilherme de Oliveira Sarah Rezende Victor Fagundes Gustavo Arcanjo Yasmine Feital Ingrid Achiver Monitores: Carolina Carvalho Luan Carlos Uriel Silva Agradecimentos especiais: André Mourthé de Oliveira Francisco Horácio Pereira de Oliveira José César Rodrigues Pedrosa Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro Mariana-MG CEP: 35420-000

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Tiragem: 3.000 exemplares


O

privilégio branco é comumente naturalizado e se esconde sob o mito da me­­ri­ to­cracia. Ou seja, se baseia no conceito de que todos temos as ­mesmas oportu­ nidades e conseguimos alcançar nossos objetivos por mérito. Isso destoa da re­ alidade de uma nação onde os números apontam um alto índice de favorecimento em certos segmentos da população. É o caso das pessoas brancas. A maior concentração de renda do país está nas mãos delas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geogra­ fia e Estatística (IBGE). O rendimento médio do branco, em 2017, foi de aproxi­ madamente R$ 2,8 mil, enquanto pardos ficaram com R$ 1,6 mil e pretos com R$ 1,5 mil. Em 2016, 22,2% dos brancos cursaram o ensino supe­ rior, contra 8,8% dos negros. Esse privilégio fica com uma minoria, uma vez que o Brasil tem uma maioria autodeclarada preta e parda. Para além do quantitativo, as instituições de ensino, os car­ gos públicos, os produtos midiáticos, as próprias narrati­ vas históricas sempre tiveram pessoas brancas como pro­ tagonistas. Isso pode ser entendido a partir do conceito de branquidade, que diz respeito a um padrão branco cons­ truído culturalmente no imaginário social e assentado sobre quatro pilares: Ideologia, política, direito e eco­ nomia, segundo a observação dos pesquisadores Adil­ son Pereira, Bruno Camilloto e Hermelinda Gomes. A partir daí, são atribuídos lugares marginaliza­ dos aos indivíduos não brancos. Mas essa segrega­ ção é convenientemente negligenciada tantas vezes, que o discurso do mérito e do esforço são reafirmados.

branquidade

privilégios Branco 1. Da cor neve, do leite, da cal; alvo. 2. Diz-se das coisas que tem cor mais clara que outras da mesma espécie. 3. Pálido, descorado. 4. Prateado, argênteo. 5. Diz-se de de indivíduo de pele clara. 6. Diz-se da raça humana cuja principal característica distintiva é a pouca pigmentação da pele. sm. 7. A cor branca. 8. Homem da raça branca. Negro 1. Preto (1 e 2). 2. Diz-se do indivíduo que tem a pele muito pigmentada. 3. Diz-se da raça (2) cuja principal característica distintiva é a pele escura. 4. Sombrio, lúgubre.* sm. 5. A cor preta. 6. Indivíduo de raça negra. 7. Bras. Pop. Nego. (Minidicionário Aurélio).

simbólico e material O historiador e educador Luciano Roza observa que, para compreender melhor esse contexto, é ne­cessário enxergarmos dois mundos nos quais se exerce esse poder: o simbólico e o material. Um exemplo da dimensão material reside na própria legislação. É o caso de uma das leis anteriores à abolição, que dificultava a posse de terras aos ne­ gros, o que os levou às margens da sociedade após a libertação. Não é de se estranhar que a Bahia, o último estado a revogar a escravidão, tenha que li­ dar com o alto índice de violência e pobreza, tendo pessoas negras como principais vítimas. Quanto ao simbólico, é inegável uma cultura de desvalorização do conhecimento, das crenças e tradições de origem africana. Ainda que seja vas­ ta, a compreensão e o reconhecimento dessa ma­ triz são muitas vezes omitidos ou sincretizados.

lugares reservados a negros e negras Os rankings em que os negros e negras ganham destaque no Brasil têm uma característica espe­ cífica: ninguém gostaria de estar neles. Na comu­ nidade carcerária, temos 61,7% de negros, contra 37,22% brancos, segundo dados da Câmara dos Deputados. As taxas de mortalidade por assas­ sinato quase triplicam para a população negra quando comparada à branca, amarela e indígena, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Apli­ cada (Ipea). Dados do IBGE revelam outros lu­ gares historicamente reservados para essa parcela da população, por exemplo, as taxas de analfabe­ tismo: 9,9% negros, contra 4,2% brancos, sendo que no caso dos idosos a diferença é ainda maior: 30,7% para os negros frente a 11,7% para brancos.

séculos de crime A escravidão procedeu a invasão dos europeus nas terras que anteriormente pertenciam a cerca de mil tribos indígenas. Em meados de 1540, ainda de acordo com o historiador Luciano Roza, foram trazidos os Bantus, originários da África Central, onde hoje seria a Angola, e os Nagôs e Iorubás vindos da Nigéria. Essas pessoas foram subme­ tidas a um regime de torturas, estupros, abusos, violências físicas e morais. Tiveram suas vidas e seus corpos usurpados para servirem a uma par­ cela de pessoas que exerciam poder sobre elas. O Brasil foi o último país do continente americano a abolir o regime escravocrata que, por aqui, se es­ tendeu por 388 anos e afetou mais de três milhões de pessoas. Assinada em 1888, a Lei Áurea proibiu todas as formas de trabalho compulsório, mas isso só aconteceu diante da pressão de diversos setores dentro e fora do país, além de reivindicações dos próprios negros e negras. No entanto, a princesa

Isabel ainda é vista por alguns como a redentora de quase uma nação de pessoas escravizadas.

“não existe racismo no Brasil” A discussão a respeito das ações afirmativas di­ recionadas aos pretos, pardos, amarelos e in­ dígenas só ganhou força em meados de 1990, após uma série de reivindicações do movimen­ to negro. É surpreendente como a história de crime contra negros e negras tenha demora­ do tanto para ganhar relevância. E, mesmo com a implantação de cotas em universida­ des, parece haver mais aceitação à reserva de vagas por critérios socioeconômicos do que em função de raça. Sob a ótica dos estudiosos Hélio Santos, Marcilene Garcia e Karen Sasaki, a sociedade, a política e a imprensa encararam as ações afirmativas de forma distorcida. O pretexto utilizado para embasar a oposição foi de que elas feriam a isonomia, princípio de que somos todos iguais de acordo com a Constituição.

branquitude Ressarcir toda uma história de crime im­ plica muito mais do que reservar uma pe­ quena parte de vagas nas universidades ou em cargos públicos. Vai além do resgate da ancestralidade e da exibição de um ou­ tro ângulo da história. É imprescindível o reconhecimento do racismo estrutural, que influencia diferentes âmbitos da vida social. O racismo não é natural, ninguém nasce racista, nós aprendemos a discriminar. O problema não está em reconhecer isso, pelo contrário, quando omitimos sua existência, au­ tomaticamente o perpetuamos. Daí surge a noção de branquitude. De acordo com Kassandra Muniz, pesquisadora da área da Linguagem, o termo se refere ao reconhecimento de que o branco não deve ser conside­ rado como o padrão natural da huma­ nidade, embora os relatos históricos insistam, em sua maioria, em narrar os fatos pela perspectiva do homem branco. Em outras palavras, a bran­ quitude é a percepção da existência e a desconstrução da branquidade.

políticas compensatórias A pioneira em aderir à política de co­ tas étnico-raciais foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 2001. Só em abril de 2012, as demais universidades públicas aderiram à essa política de ação afirmativa, em função da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). A Associação Nacional dos Diri­ gentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) di­ vulgou recentemente o perfil dos estudantes de universidades fede­ rais. O documento revelou um aumento no nú­ mero de alunos cotistas, de 3,1%, em 2005, para 48,3%, em 2018. Esses números são uma verda­ deira revolução, que merece visibilidade e cujos efeitos precisam ser melhor compreendidos.

Texto e Reportagem: Jéssica Augusta Design e Edição: Gustavo Arcanjo Ilustração: Rico Supervisão Editorial: Gabriel Lage

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violência

até onde você pode ir? Na calmaria das ruas desta cidade tímida, acontece muito mais do que todos os olhos conseguem ver

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idade histórica com ruas tranquilas e pouco movimentadas, Mariana parece segura e acolhedora para todos. Mas, olhares insistentes, cantadas, assobios, comentários de conotação sexual e perseguições fazem parte do cotidiano das mulheres. Na falta de dados estatísticos do município, o LAMPIÃO divulgou um questionário online e obteve respostas de 80 mulheres que vivem na cidade. Dessas, 98,8% disseram sofrer assédio sexual nas ruas, 93,8% não chegaram a denunciar e 6,3% foram revitimizadas pela polícia ao tentar registrar denúncia.

Nem todas as mulheres acreditam que sofrem assédio nas ruas. As que afirmam passar por essa situação têm ensino superior incompleto (59) e superior completo (16), somando 93,75% das respostas obtidas. O assédio sexual não se constitui apenas no contato físico as abordagens são diversas: 88,8% das mulheres receberam cantadas e olhares insistentes, 68,8% ouviram comentários de conotação sexual, 42,5% foram perseguidas, cinco foram agarradas à força e uma foi estuprada.

Texto e Reportagem: Raiane Rezende Design e Ilustração: Ruhan Mendes Supervisão Editorial: Ana Miranda

A rua é pública, o corpo das mulheres não. Assédio não é elogio, é crime de Importunação Sexual, de acordo com a Lei 13.718/18, artigo 215 - A: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Das 80 mulheres, 53,8% não sabiam da nova tipificação para assédio nas ruas.

Gostosa!

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meu deus, não vai acabar nunca essa rua.

Nossa Se eu pego ess as d u eu não largo n unc as, a m ais .

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Reflexo do assédio sexual nas ruas do Brasil

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milhões de mulheres ouviram comentários desrespeitosos em 2018. Fórum Brasileiro de Segurança Pública

% das mulheres entrevistadas não gostam de receber cantadas. Chega de Fiu Fiu

.460 casos de estupro foram

registrados no país em 2015. São 15% do total estimado. Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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% dos brasileiros já presenciaram importunação às mulheres nas ruas. Fórum Brasileiro de Segurança Pública


mulheres

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o Brasil e no mundo as mulheres ainda precisam se provar e serem aprovadas. No cenário da agropecuária, dos 27% de trabalhos permanentes na área, somente 5% são ocupados por elas. A única categoria na qual as mulheres lideram é relacionada ao trabalho não remunerado, com 30,7% delas sem expectativa de ganho, de acordo como Anuário das Mulheres Brasileiras de 2011. Esses dados evidenciam que o trabalho feminino, também no campo, deve se provar para que seja valorizado. O anuário mostra ainda que “se as condições entre homens e mulheres do campo fossem igualitárias, a produção agrícola dos países em desenvolvimento teria um acréscimo de 2,5% a 4%, o que poderia reduzir de 12% a 17% o número de pessoas famintas no mundo”. No Brasil e no mundo as mulheres ainda precisam se provar e serem aprovadas. Mesmo diante de números como esse.

Em Mariana há aproximadamente 500 produtoras rurais, segundo o secretário de Desenvolvimento Rural Wander Moreira. A maioria trabalha com a família e tem o próprio negócio. Também é possível perceber, de acordo com ele, uma predominância de mulheres negras, pobres ou de classe média, entre 18 e 70 anos. Quando perguntado sobre números mais específicos, Wander disse não saber. Outro dado da cidade é em relação ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Ele determina que 30% da merenda escolar municipal seja adquirida de agricultores. Em Mariana, cerca de 90% dessas entregas são feitas por mulheres. Foi para conhecer a história das produtoras marianenses que a equipe do LAMPIÃO conversou com Célia, Elisângela e Roberta, mulheres que têm o campo em suas lembranças de infância e contaram as dificuldades e belezas desse trabalho.

Texto e Reportagem: Yasmine Feital Design e Edição: André Silveira Fotografia: Gabriela Telésforo Supervisão Editorial: Fanny Souza

a força da mulher do campo

CÉLIA

a confiança da agricultora

Foi com um sorriso grande no rosto, café passado na hora e uma broa de milho que Célia nos contou sua história. Seu contato com a terra é tão intenso que suas memórias de infância se confundem com as memórias do plantio e cuidado dos animais. “Minha mãe mesmo conta que ela levava a gente pro campo e ‘punha’ na balaieira.” As responsabilidades chegaram naturalmente: “Primeiro eu tratava das galinhas, dos porcos, levava o almoço na roça, quando você vê já tá imersa naquele trabalho”. Célia Corcini tem 35 anos e vive da renda que suas hortaliças e outros produtos oferecem. Com ela, se dedica também sua família em um plantio agroecológico. Apesar do trabalho árduo em “produzir do jeito certo”, a produtora diz que a falta de valorização do produto é a maior barreira no campo: “[As pessoas] Não sabem o que tem por trás de um orgânico”. Outra dificuldade é

resultante do rompimento da barragem em Bento Rodrigues, que ainda atinge sua renda. “Compram menos até hoje. Mas desânimo não tem aqui.” E isso dá para perceber. Mesmo vivendo uma rotina cansativa, Célia é cheia de energia e começa a trabalhar sempre cedo, em dias de feira, às 4h: Cuida da criação, mexe na horta, planta, colhe, capina, e por aí vai. A autoconfiança dela também é uma virtude que exala. Quanto às dificuldades de ser uma mulher neste cenário, Célia diz: “infelizmente preconceito existe, mas eu, como mulher, me acho imbatível. Se um homem pode fazer, eu também posso”. Ela afirma que “essa força vem do interior, a partir do momento em que percebemos que não dependemos dos homens. Nós podemos e somos capazes. Não é preconceito que vai me impedir”. Seus olhos transbordam quando fala sobre a vida no campo. Para Célia, “poder alimentar é uma emoção única”.

ELISÂNGELA

existir e resistir no campo Elisângela dos Anjos nasceu no campo e se orgulha do aprendizado que ele lhe deu, porém, sua vida sempre foi árdua: “Feijão a gente ganhava [como troca por serviços], mas arroz a gente comia só no domingo e no Natal”, relembra. Aos nove anos aprendeu a fazer doces com a mãe, que trabalhava para fazendeiros. O dinheiro da venda desses doces contribuia para a compra de alimentos para casa. A agricultora sempre ajudou nos afazeres domésticos e na roça, mas, aos 12 anos, precisou se mudar para a cidade para trabalhar e complementar a renda da família, já que o pai a abandonou junto com a mãe e os dez irmãos. Ter responsabilidade com a casa sempre foi característica dela. Hoje, o dever e o cuidado com o campo também são. Elisângela prepara a terra sem qualquer agrotóxico. Para ela, essa é uma forma de ser honesta com aqueles que compram seus produtos. A agricultora lembra que quando

vendia verduras de outros produtores, tratadas com defensivos químicos, percebia que muitos achavam que a mercadoria era “sem remédios”. E foi por isso que começou a comercializar seus próprios produtos. Hoje ela vive da encomenda dos doces e da venda daquilo que cultiva. Apesar de não participar das feiras, costuma oferecer seus produtos em bairros diferentes. Elisângela diz que o trabalho no campo não acaba. Mesmo no domingo, ela planta, esterca e capina. “O trabalho na roça, se não tomar cuidado, acaba com a gente”, diz. Os 39 anos que a acompanham são de autonomia. “Estou acostumada desde criança a trabalhar e não gosto de depender de ninguém, nem de marido”, enfatiza. Elisângela é cheia de esperanças, não teme contratempos e tem no campo a legitimação da sua força: “Sou feliz aqui na roça. Eu gosto de mexer com terra!”.

ROBERTA

uma tradição tradiçãp de décadas Roberta, Célia e Elisângela se assemelham e diferem em alguns aspectos. Elas sempre tiveram contato com o campo e vivem do trabalho e belezas que ele oferece. Roberta Gonçalves também tem 35 anos e é mãe, mas os caminhos que a fez chegar onde está são diferentes dos de Célia e Elisângela. Roberta trabalhou com outras coisas, mas percebeu que seu lugar é no campo e, por isso, voltou à terra. Ela ajuda a irmã, Junia, no plantio do terreno arrendado. Hoje elas cultivam hortaliças, mas o intuito é começar a plantar outros alimentos. A rotina de trabalho da Roberta começa cedo. Às 6h, ela levanta e caminha por cerca de uma hora até a fazenda. Lá, ela capina, planta e lida com a terra. A agricultora diz que começou a trabalhar aos seis anos para ajudar na renda da família. Seu filho, de três anos, também vive em contato com o campo: “Eu venho pra cá e trago meu menino, aí ele vai brincando e aprendendo. Do mesmo

jeito que foi com a gente”. A proximidade entre mãe e filho é tanta que se tornam uma só silhueta. Ela conta as dificuldades que passou com um sorriso no rosto. Nada do que já viveu tirou sua alegria e paixão pelo trabalho. Quando sua família se mudou para Águas Claras, distrito de Mariana, eles não tinham onde ficar. “Moramos muito de favor na casa dos outros. Eu e alguns dos meus irmãos tivemos que largar os estudos para ajudar”, conta. Durante esse tempo, era a avó de Roberta quem sustentava a casa. “Foi uma vida difícil, porque ela tinha que cuidar de oito crianças e dos filhos da minha tia. Minha vó que foi a heroína. Trabalhou a vida toda no braço pra sustentar a gente”, conta com o orgulho enchendo os olhos. O exemplo que teve de uma mulher forte fez com que Roberta valorizasse o trabalho feminino, além de lhe dar confiança para dizer que “o que eles [homens] fazem, nós fazemos também!”.

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esportes

onde nascem os campeões o que há em comum entre os projetos sociais “Escolinha do América” e “Quem luta, não briga” é a possibilidade de transformar a vida de jovens por meio do esporte

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mizade, coletividade, empatia e respeito: Estes são alguns dos ensinamentos proporcionados pelo esporte na visão do coordenador da Escolinha Oficial de Futebol do América, Helder Santos. Quem também busca desenvolver estes valores é o idealizador do “Quem luta, não briga”, Marciano Anderson de Jesus, professor de artes marciais, que busca mudar conceitos: “Briga não tem regra, luta tem regra. Briga é individual, luta é um esportivo coletivo.” Em 2019, são atendidas cerca de 165 adolescentes de forma gratuita e, para além do desenvolvimento esportivo, as duas iniciativas se concentram em desenvolver aspectos essenciais na formação dos jovens enquanto cidadãos.

meninas em campo Em 4 de agosto de 2018 foi inaugurada a Escolinha Oficial de Futebol do América em Mariana. Inicialmente, foram selecionados 140 atletas em uma seletiva realizada nas escolas municipais de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Wilson Pimenta Ferreira e no Centro de Educação Municipal Padre Avelar. O projeto é fruto de uma ação do “América mineiro” que conta com a parceria da Fundação Renova e da Prefeitura. Aos 14 anos, a estudante Lígia Conceição Silva, que faz parte da equipe sub-15 feminina do América, disse que a escolinha mudou um pouco a sua rotina, pois ela tem que acordar mais cedo e passou a ter a maior parte do seu dia dedicada ao projeto de futebol. No entanto, Lígia garante que isso não é um problema, já que a motivação para ir aos treinos e encontrar os colegas é enorme. Outro ponto destacado pela atleta é a questão do preconceito com o futebol feminino. Ligia ressalta que muitas meninas têm um rendimento superior ao dos meninos e não têm as mesmas oportunidades. Devido à falta de apoio e estrutura do futebol feminino no país, a jovem, que sonha em ser goleira, revelou que, nas primeiras semanas do projeto, não havia tanto comprometimento por parte das meninas, pois não esperavam ter as mesmas cobranças que existem no futebol masculino. E ainda sobre este esporte, a adolescente disse que seus pais sempre gostaram de futebol e daí surgiu seu interesse: “Uma posição que eu admirava muito era a de goleiro. Eu adorava ver meu pai agarrando, pulando de um lado para o outro”, conta. Além do seu pai, a outra inspiração para atuar na posição é o goleiro Victor, do Atlético Mineiro.

Lígia Conceição Silva Idade: 14 anos Altura: 1,74m Peso: 51kg Pé: Destro Clube: América MG Títulos: Campeã de futsal nos Jogos Escolares de 2016.

Texto e Reportagem: Gabriel Cunha e Rodolfo Simões Fotografia e Design: Gabriel Cunha Supervisão Editorial: Pedro Gimenes

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entrando no ringue Atualmente o projeto coordenado por Marciano é integrado por 25 adolescentes com idades entre dez e 17 anos. De acordo com o idealizador, que é faixa preta em kickboxing, 11 deles treinam boxe olímpico, na Arena Mariana, e outros 14 jovens treinam kickboxing-K1, boxe ou muay thai, no Centro de Treinamento Marciano (CTM), no Bairro Rosário. O estudante Maicon dos Reis Estanislau, aos 17 anos, é um dos destaques do projeto e é o atual campeão mineiro de boxe pela Associação Mineira de Esporte de Contato (AMEC). Em 2018, o jovem lutador foi ganhador da Copa Mariana de Boxe Olímpico e, em 2016, havia conquistado o título da Copa Mariana. O curioso é que quando o “Quem luta, não briga” chegou na Escola Municipal Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, onde Maicon estudava, ele não foi um dos alunos selecionados para participar do projeto. Então, o adolescente teve que ir ao CTM pedir uma chance a Marciano. Hoje, há mais de quatro anos no projeto, ele exalta a mudança do próprio comportamento. Nas palavras do boxeador, a evolução não se deu apenas no rendimento escolar, mas também na relação dele com os amigos e dentro de casa. Maicon reforça essa ideia ao afirmar que “era muito ruim na escola”. E acrescenta: “Hoje em dia, eu percebo um crescimento que vai além do esporte. Em casa todo mundo me apoia e eu respeito muito eles.” Ele conta que sua maior inspiração é o bicampeão mundial de boxe na categoria peso-pesado, Mike Tyson. O jovem marianense diz se identificar com a história do norteamericano, que veio de uma família pobre e conseguiu se tornar um boxeador de sucesso.

“escolinha do América”:

“quem luta, não briga”:

Atualmente não há vagas disponíveis, mas os pais interessados em cadastrar seus filhos devem comparecer à Secretaria Municipal de Desportos e preencher uma ficha para a lista de espera. Categorias: Masculino sub11 até sub-15 e feminino sub-12 e sub-15. Os treinos acontecem às terças e quintas, no período da manhã e da tarde, no campo do Olimpic, na Avenida Manoel Leandro Correia, sem número, Barro Preto, em Mariana.

Boxe olímpico na Arena Mariana, às terças e quintas, de 18h30 às 19h45, sem custos, para todos que têm o intuito de aprender a modalidade. E também kickboxing-k1, boxe e muay thai no Centro de Treinamento Marciano (CTM): Às segundas, quartas e sextas-feiras, das 17h às 21h. O CTM funciona na Rua Ipê, número 60, Bairro Rosário.

Maicon dos Reis Estanislau Idade: 17 anos Altura: 1,80m Peso: 70kg Card: 8 vitórias e 2 derrotas Títulos: Campeão mineiro de boxe pela Associação Mineira de Esporte de Contato; Copa Mariana de Boxe Olímpico 2018 e da Copa Mariana em 2016.


presença Em meio a vida comum, um rapaz surge e amplia nosso olhar

“A

cho que não tem esse garoto aqui, não. Tem algum Wallace aqui? Com Down? Moreninho? Tem não”. Sair em busca de Walison, em Mariana, demandou um pouco de nossa paciência e nos trouxe certa confusão. Nossa missão era tratar da falta de visibilidade para pessoas negras com Síndrome de Down. No início da empreitada, parecia não existir alguém com esse perfil na cidade. Diziam que nunca haviam conhecido, visto ou sequer

imaginado uma pessoa com Síndrome de Down que fosse negra. Mas devemos confessar: Nós também não. A Síndrome de Down ocorre, na maioria dos casos, a partir de uma alteração na formação dos gametas. Em uma fecundação com esse gameta alterado, forma-se um embrião com três cromossomos 21, ao invés de dois. A síndrome é, então, uma condição genética específica e não há nenhuma relação com geografia, etnia ou cor da pele comprovada até o momento.

visibilidade afetos, natureza e encantamento É de van que vários alu­ nos chegam a Apae. Wali­ son é ágil: Desce do carro, entra no prédio e cumpri­ menta todos que ­encontra no caminho. Walison olha o mundo com um rosto arredondado. Sua pele é negra, mas não tão retin­ ta quanto esperávamos. Seu cabelo, raspadinho e… liso! De repente, Wa­ lison mostra que a missão da nossa reportagem to­ mava novos rumos. Se meio ambiente e susten­ tabilidade são imperati­­vos ­contemporâneos, tam­bém são palavras de ordem para ­Walison. Sua vida é envolvida pelo amor à na­ tureza. Na Apae, uma das atividades que mais gos­ ta é o trabalho na horta. A “roça”, como chama o grande espaço de plantio da escola, tem variados ti­ pos de hortaliças, legumes e frutas. Fica orgulhoso ao mostrar o que tem cultiva­ do lá com os amigos. Mui­ ta verdura já está no jeito para ser colhida e servida. A Apae tem todos os ri­ tos de uma escola. An­ tes de irem para a sala de aula, os alunos se organi­ zam rapidamente em filei­ ras de acordo com a tur­ ma. Walison se posiciona em um dos últimos luga­ res da fila, se balança e bate palmas enquanto seu professor de Educação Fí­ sica puxa o coro de uma música que entoa os ver­

sos: “Eu descobri que as coisas boas da vida são de graça / não custam nada / Eu descobri que o mun­ do inteiro pode ser o meu quintal / a minha casa”. Na fila, Walison ora can­ ta, ora se cala. Ele adora falar de folclo­ re brasileiro. Sabe as cores do cabelo da Iara e da rou­ pa do Curupira. E afirma já tê-los visto. É a televi­ são que ­consente em dar vida aos perso­na­gens para os seus olhos. O Saci, ele reconhece do Sítio do Pi­ ca-Pau Amarelo. Para des­ vendar o Cu­ru­pira, basta “olhar pro pé da pessoa”. Lucas, um de seus me­ amigos, olha com lhores ­ descrença para Walison quando ele fala dos per­ sonagens com tanto afin­ co. “Mas eles existem?”, pergunta o amigo a Wali­ son, que por sua vez não se preocupa em ­responder, mas em nos contar o quanto Lucas é inteligen­ te. Nos mostra a caligrafia do amigo: Cursiva, curvi­ línea e bem moldada. Lu­ cas sorri timidamente. Lucas faz parte de um grupo extenso de ami­ gos que Walison tem na Apae. “Aqui, todos, to­ dos são meus amigos, des­ de pequenininho”. Ao an­ dar pela escola, ele tem seu nome chamado, escu­ ta piadas, é abraçado. Há mais ou menos dois anos, Walison namora Jú­

nia, que também estuda na Apae. Os dois se pre­ ocupam em respeitar o ambiente da assossiação. ­ Lá, só beijo no ros­to e al­ guns carinhos. Wa­­lison nos diz, com a fei­ção séria, que escola é lu­gar de estu­ dar e aprender. A namorada não se can­ sa de dizer que ele é mui­ to bom para ela. Uma vez, a professora pediu para Walison entregar um bi­ lhete para que Júnia fos­ se ao dentista. Ele rasgou o papel e não passou a in­ formação, pois queria que ela não sofresse, ainda que fosse um sofrimento roti­ neiro. Desses que a vida comum nos obriga. Ainda assim, Walison nos mostra, com muito orgu­ lho, o dentista que aten­ de na Apae. Seu carinho, aliás, é para todos os fun­ cionários da associação. Todas as professoras re­ cebem dele o título de “di­ retora”. Diz que as “dire­ toras” sabem tudo: Basta perguntar que elas têm respostas para todas as in­ quietações que surgem. Walison sorri frequente­ mente enquanto está na no seu ambiente de es­ tudo. Para ele, todos ali são parte de sua família. Conhece muitos daque­ le local em que está des­ de os dois meses de idade. Quando bebê, foi levado para a escola por Marta, sua mãe biológica.

do tamanho do mundo

encontro Como quem procura acha, houve um momento em que disseram que tinha um garoto na Associa­ ção de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), mas que não era negro, não. Era “moreninho”. Ainda que a incerteza cercasse o caminho, achamos me­ lhor ir atrás dele do que permitir que se esvaísse à invisibilidade novamen­ te. Contaram que ele se

chamava Wallace, era um garotinho de apenas oito anos e de poucas palavras. Ali, na porta da Apae, por volta das sete da manhã, perguntamos por ele a uma senhora que foi in­ cisiva ao dizer que essa criança não existia na­ quele local. E ela estava certa. Não existia mesmo. Ao menos não a criança que, por ora, figurava em nossa imaginação. Mas foi

entre hesitações e receios que uma funcionária fa­ lou sobre um menino. Um menino, não. Um rapaz de 26 anos que já devia estar chegando. Enfim, avista­ mos o começo de um bri­ lho de luz que não se cha­ ma Wallace. De Wallace, nada muito além da letra “W”. Seu nome é, na ver­ dade, Walison Henrique da Silva Santos, e ele tem muita história a contar.

do batismo de Walison, o padre contou que não batizava “menino de mãe solteira”. Como ela que­ ria muito que a criança fosse batizada na Igreja Católica, uma senhora perguntou a Martim, um conhecido, se ele poderia registrar Walison como seu filho. E ele aceitou a proposta prontamente. Marta era faxineira de rua. Deixava Walison na Apae enquanto ia tra­ balhar. Quando recebeu

o diagnóstico de câncer no intestino, seu filho foi cuidado, também, pelos amigos que se revezavam para recebê-lo. Marta morreu quando Walison ainda era crian­ ça, com cinco anos. Ele foi morar com o pai que consta em seu registro de nascimento, mas não con­ seguiram ficar nem uma semana juntos. Desde então, Walison vive com Naná, a amiga de Marta que a alertou.

Walison chama Naná de “vó”, recebe a benção dos tios e brinca com os pri­ mos. Em casa, realiza as tarefas sozinho: Arruma a cama, limpa o banheiro, re­ colhe as roupas secas do va­ ral e lava o terreiro. Como diz Naná, é “tudo do jeiti­ nho dele”. Quando cai o fim de tarde, ele vai assistir te­ levisão e nunca se esquece de regar as plantas do jar­ dim e do pomar.

Em sua casa, Walison nos deu as mãos e, ansioso, nos levou até a porta de seu quarto, pequeno e sem ja­ nelas. Apesar disso, ele faz de seu canto aconchegan­ te e confortável. Pegamos a câmera para fotografá-lo e Naná pediu para que ele vestisse uma roupa mais bonita. Rapidamente, colo­ cou a camisa do Cruzeiro, seu time do coração. Na es­ crivaninha ao lado da cama,

uma fotografia dele, ainda pequeno, no colo da mãe. A nós, coube notar que a nossa missão seguia por novos caminhos. Conhece­ mos Walison, que, há mui­ to tempo, faz do mundo o seu quintal, e que mostra, em sua pele, em seus cabe­ los e em sua história, que esse quintal é amplo e com muito mais gente do que estávamos enxergando no primeiro momento.

idas e vindas Walison apareceu para o mundo no dia 19 de outu­ bro de 1992, no Hospital Monsenhor Horta, e teve seu primeiro lar no distri­ to de Passagem de Maria­ na. Foi Naná, uma amiga de Marta, sua mãe, que notou algo singular no bebê. Depois de consultas ao médico, descobriram que a criança tinha Sín­ drome de Down. Ninguém sabe quem é seu pai biológico. Quando Marta foi marcar a data

Texto e Reportagem: Karem Andrade e Júlia Lopes Fotografia: Ana Miranda e Júlia Lopes Design e Edição: Júlia Lopes Supervisão Editorial: Gabriel Lage

LAMPIÃO

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resistência

nosso cabelo, nossa história H

á, entre mim e eles, muitas histórias em comum. A começar pelos cabelos... Todos nós não nos encaixávamos em certo padrão: O dos lisos. Por isso, frustrada, um dia resolvi ir ao salão e fazer a tão famosa escova progressiva. Me senti, naquele momento, dentro do que era imposto. Cabelo alisado, franja de lado. Algumas pessoas até me criticaram porque eu tinha tirado os cachos: “Você estragou seu cabelo”, “ele nunca mais será o mesmo”. Porém, eu não me importava com o que diziam. Eu queria ter o cabelo liso! Um cabelo com o qual não nasci, mas que fazia eu me sentir bem, me sentir aceita. Bruna Sudário, uma mulher negra como eu, tem uma experiência parecida com a minha. Ela disse que “associava

muito a beleza com o cabelo alisado”. E eu pensava

como ela. Através dessa associação de beleza, foram longos anos à mercê do secador e da chapinha. Meu cabelo estava abaixo da cintura, tipo Rapunzel, uma princesa que nem sequer me representa. Mas um dia as coisas mudaram. Certa vez, assistindo TV, comecei a reparar nas meninas de cabelo cacheado e também fui observando outras ao meu redor. Então, percebi que poderia usar meu cabelo natural, sim! Porém,

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eu ainda tinha algumas incertezas: Será que eu tento? E se eu não gostar? Como é que vai ficar? Resolvi cortar o cabelo um pouco acima do ombro, o que já foi uma mudança e tanto. Fiquei sem fazer qualquer tipo de tratamento químico por três meses e parecia uma eternidade. Mais tarde, resolvi fazer um corte novamente. Dessa vez, decidi que usaria um cabelo quase natural. Passei a fazer chapinha somente na franja e, atrás, ele já estava completamente cacheado. Mas, ainda não era o que eu queria; afinal, redescobrir nossas raízes não é um processo fácil. Um dia, na frente do espelho, peguei a tesoura e cortei a última parte que tinha química. Me livrei, de uma vez, daquilo que me perseguiu por longos anos. Senti que ali era a hora de voltar a ser eu. De me amar do jeito eu nasci, com cabelo “tóin óin óin”: Baixinho ou com volumão. Não me enxergava como antes. Comecei um processo de autoaceitação, de amor próprio. Por mim e pelo cabelo. “O

cabelo cacheado me trouxe uma autoestima diferente”, essa fala

poderia ser minha, mas é da Aline Lopes, outra pessoa que assim como eu, passou por esse difícil processo de aceitação. Foram anos num cabelo que mantive por status.

Após a mudança, me aceitar não foi fácil, ser aceita pelos outros também não. Olhares e buchichos me acompanhavam. Tudo isso me fez amadurecer. E, mais, fez eu começar a me enxergar, a me conhecer de um jeito novo e a me sentir mais bonita. Outra frase que não é minha, mas que facilmente caberia na minha história:

“Me olhar no espelho e sentir que não preciso me enquadrar em nenhum padrão é libertador”. Essa

é a visão da Pamella Rosa, e de muitas outras negras e negros que se permitiram encontrar suas identidades, e que se empoderaram através de suas ancestralidades. Ao libertar meus cachos, na frente do espelho comecei a ver uma mulher que não conhecia. Mesmo ouvindo de algumas pessoas que o cabelo liso combinava mais comigo, eu estava decidida a usar o cabelo natural. Meu cabelo agora é totalmente do jeito que eu nasci! Passei a me ver mais forte com ele, e foi através dele que busquei e descobri a minha identidade. Nossos cabelos e nossas histórias se entrelaçam em diversos sentidos. Eu, a Bruna, a Aline, a Pamella, além do Júlio de Sá, do Grego Teixeira, da Andrêa Ferreira, da Débora Fernandes, da Millena Hipólito (representados nas fotos), e de tantos

outros, pensávamos que ter cabelo liso nos deixava mais bonitos, e, talvez ali, naqueles fios alisados, em meio a tanta química e pressão social, achávamos também que nossa autoestima seria alcançada. Mas hoje eu percebo que, se as pessoas negras soubessem o quanto elas podem ser elas mesmas, a começar pelos cabelos, jamais entravam na onda do liso. Como disse Bruna Sudário: “O nosso

cabelo é, sim,uma independência. É um grito de liberdade. É um grito político. Mostra que queremos ser aceitos. Que também estamos aqui”. E eu estou aqui!

Quando vi meu cabelo de um jeito que eu jamais havia visto, me emocionei. Era como se eu tivesse tirado um peso de mim. Peso de um padrão que nos é imposto e que fere a nossa raça. Hoje acordo com meu cabelo “sarará” e acho o máximo! A cada dia, sinto que fiz a escolha certa. Agora vejo que nosso cabelo enrolado é lindo, chama a atenção, é um símbolo da nossa essência e da nossa resistência. Por isso, faço das palavras da Pamella as minhas e, de certo modo, as nossas:

“O cabelo é a arma do empoderamento”.

E, com ele, nós ocupamos o universo inteiro.

Texto e Reportagem: Larissa Gonçalves Foto, Design e Edição: Líria Barros Supervisão Editorial: Gabriel Ferreira


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