‘Dai-lhes vós mesmos de comer’
Para esta Quaresma de 2023, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos propõe uma Campanha da Fraternidade sobre a questão da fome, relembrando aquele “Dai-lhes vós mesmos de comer” que Cristo dirigiu aos seus discípulos (cf. Mt 14,16). O tema da fome corporal poderia, à primeira vista, aparentar ser demasiado terreno e material: afinal de contas, não é certo que a missão própria e primária da Igreja é a salus animarum, a salvação das almas?
Ora, é verdade que a matéria econômica e social não é o núcleo duro da missão da Igreja – mas isso não quer dizer que esses assuntos lhe sejam de pouca importância. Nessa arena, a Igreja “exerce uma missão diferente da que concerne às autoridades políticas: (...) preocupa-se com os aspectos temporais do bem comum em razão da sua ordenação ao Bem soberano, nosso fim último” (Catecismo da Igreja Católica, nº 2420). Em outras palavras, a missão da Igreja é, sim, levar as almas para o
Céu – e exatamente por isso ela precisa que haja, aqui na terra, certas condições materiais mínimas para a difusão do Evangelho, a conversão dos pecadores e seu progresso na vida de amor a Deus. Não é possível ensinar Catecismo ou administrar os sacramentos a multidões que morrem de inanição – e, nesse sentido, é missão da Igreja colaborar para acabar com a fome.
No fundo, para entendermos essa dimensão social da doutrina cristã, basta enxergar que a ordenação pacífica de qualquer sociedade humana supõe certas condições e leis naturais – condições e leis estas que a Igreja, tendo recebido de Deus a “revelação plena da verdade acerca do homem”, está em posição privilegiada para compreender e transmitir à humanidade (Idem, nº 2419).
Nesse sentido, uma das verdades sociais que a Igreja nos ensina é que “a vida econômica não visa somente a multiplicar os bens produzidos e aumentar o lucro ou o poder”. É dizer: embora cada indivíduo tenha sim o “direito de iniciativa
econômica” que lhe permite utilizar seus talentos e “recolher os justos frutos dos seus esforços”, a sociedade não pode ser construída num modelo de capitalismo selvagem, em que a atividade econômica não respeite os “limites da ordem moral e as normas da justiça social” (Idem, nºs. 2426, 2429).
Que haja pessoas sofrendo o flagelo da fome é, portanto, uma realidade contrária ao “desígnio de Deus sobre o homem” (Idem, nº 2426) – mas qual responsabilidade tem cada um dos agentes sociais perante este problema? Num primeiro momento, poderíamos ficar tentados a relegar a questão ao Estado: já que ele é quem faz as leis e coleta os impostos, que entregue também o pão na mesa dos cidadãos desvalidos. Mas aqui novamente a Igreja, escutando a lição do Evangelho, nos lembra a nós todos de que o “dever essencial do Estado” é assegurar “as garantias das liberdades individuais e da propriedade, sem falar de uma moeda estável e de serviços públicos eficientes”, “de modo que, quem
trabalha, possa usufruir do fruto do seu trabalho e, portanto, se sinta estimulado a realizá-lo com eficiência e honestidade” (Idem, nº 2431). Como bem lembra o tema da Campanha da Fraternidade, Cristo não disse aos seus discípulos que fossem pedir pão no pretório de Pilatos – antes, Ele lhes mandou, “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). É claro que, em situações pontuais, o Estado pode, sim, desempenhar um relevante papel de remédio às carências mais urgentes dos desvalidos – mas esse tipo de socorro emergencial não pode nos eximir de nossa responsabilidade, como cidadãos e cristãos: “Neste domínio, a primeira responsabilidade não cabe ao Estado, mas, sim, às instituições e diferentes grupos e associações que compõem a sociedade” (Idem, nº 2431). Aproveitemos, portanto, desta Quaresma que se inicia para reforçar o nosso senso de responsabilidade para com todos os nossos irmãos, filhos de Deus, de modo a lhes darmos, nós mesmos, de comer.
CARDEAL ODILO PEDRO SCHERER Arcebispo metropolitano de São Paulo
Estudos sobre a segurança alimentar no Brasil dão conta de que, em 2022, cerca de 58% dos brasileiros enfrentavam alguma situação de insegurança alimentar e nutricional, o que significa alimento insuficiente e de baixa qualidade. Destes, 15,5% conviviam com a fome, o que corresponde a cerca de 33 milhões de pessoas. O problema é mais acentuado em 18,6% de domicílios rurais, que convivem diariamente com a fome. Quase a metade dessa população com fome vive nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil.
A fome está diretamente relacionada com a questão do trabalho e do nível da renda. Como pode assegurar uma alimentação minimamente adequada a família ou o domicílio com renda inferior a um quarto de salário mínimo por pessoa? Os diversos benefícios sociais apenas conseguem mitigar essa situação, sem, contudo, resolvê-la. A pandemia de COVID-19 agravou ainda mais este quadro preocupante. Mas, depois dela, a fome persiste e até se agravou. Mesmo se a fome não consta oficialmente como causa mortis de tantas pessoas, aquelas que dela padecem
Fome outra vez
podem sofrer consequências graves, como a subnutrição crônica, danos ao desenvolvimento físico e intelectual e a fragilização da saúde, que marcam o resto de sua vida.
O problema não é somente brasileiro, mas mundial. Em alguns países da África e da Ásia, está relacionado com a baixa produção de alimentos, a desertificação, guerras e a grande concentração populacional. Mas não precisaria haver fome em nenhuma parte da Terra, que tem capacidade de produzir alimentos em quantidade abundante para nutrir toda a população mundial. Por quais motivos, então, existe o flagelo da fome? Em 2014, o papa Francisco lamentou, diante da 2.ª Conferência Internacional sobre Nutrição: “É doloroso constatar que a luta contra a fome e a subnutrição seja dificultada pelas prioridades do mercado e a primazia do lucro, que reduziram os alimentos a uma mercadoria qualquer, sujeita a especulações, até financeiras”.
A ONU reconhece que a alimentação adequada é um direito humano fundamental, a ser assegurado a todas as pessoas, uma vez que é indispensável à sobrevivência. No Brasil, esse direito também foi posto na Constituição e está garantido pela Emenda Constitucional n.º 64, de 4 de fevereiro de 2010. O problema está na efetivação desse direito humano fundamental. Nosso país voltou a figurar no mapa da fome, e isso não deveria deixar ninguém indife-
rente. Estamos muito longe de alcançar a meta da eliminação da fome no mundo até 2030, um dos objetivos do milênio.
Neste ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escolheu novamente o tema da fome para a Campanha da Fraternidade. É pela terceira vez que o faz nos 60 anos da campanha: 1975, 1985 e 2023. A fome de nossos semelhantes interpela nossa consciência e a qualidade de nossas relações sociais e fraternas. Na comemoração dos 75 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Papa Francisco observou em seu discurso: “Para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha” (16 de outubro de 2020).
O lema escolhido para a campanha – “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16) – traz as palavras de Jesus aos apóstolos no final de uma jornada. Ele está cercado de muita gente cansada e faminta e os apóstolos pedem que Ele despeça a multidão, para que as pessoas vão para casa e se alimentem. Mas Jesus surpreende os discípulos com esta ordem: “Não precisam ir. Dai-lhes vós mesmos de comer”. Alguém, então, lhe apresenta cinco pães e dois peixes, mas o que seria isso para tanta gente? Jesus manda distribuir o pão e o peixe à multidão. Todos se fartam e, no fim, sobra muito mais do que havia no início (cf. Mt 14,13-21).
Milagres assim acabariam logo
com a fome no mundo! Mas, para fazê-los, só mesmo Jesus. Com seu exemplo, no entanto, Ele nos deixou preciosas indicações, capazes de ajudar a resolver o problema. Antes de tudo, não ficou indiferente diante da fome do povo nem o despediu para que se arranjasse sozinho, mas assumiu como próprios a preocupação e o sofrimento da multidão faminta. A indiferença diante do sofrimento alheio mata, antes mesmo que a fome. Ensinou, também, que a urgência da fome se resolve mediante a partilha. Sozinhos, não conseguiremos. E a partilha precisa ser promovida mediante políticas públicas e iniciativas generosas de cada cidadão, para proporcionar trabalho, geração de renda, produção de alimentos, acesso a eles e o socorro a quem padece de fome. No final da narração da multiplicação dos pães e dos peixes, há um detalhe que poderia passar despercebido, mas é importante para o nosso tema: quando todos ficaram saciados, Jesus mandou recolher os restos que sobraram, para que nada se perdesse. E foram recolhidos bem 12 cestos cheios do precioso alimento (cf. Mt 14,20). Com a eliminação do desperdício de alimentos, daria para saciar quase todos os que passam fome no Brasil. Quase uma terça parte do alimento produzido é desperdiçada. Que fazer para diminuir esse desperdício e, assim, também a multidão faminta?
*Estetextofoipublicadooriginalmentenojornal O Estado de S. Paulo em 11 de fevereiro de 2023
MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA A QUARESMA DE 2023
Ascese quaresmal, itinerário sinodal
LEIA
Queridos irmãos e irmãs!
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em narrar o episódio da Transfiguração de Jesus. Neste acontecimento, vemos a resposta do Senhor a uma falta de compreensão manifestada pelos seus discípulos. De fato, pouco antes, registrara-se uma verdadeira divergência entre o Mestre e Simão Pedro; este começara professando a sua fé em Jesus como Cristo, o Filho de Deus, mas em seguida rejeitara o seu anúncio da paixão e da cruz. E Jesus censurara-o asperamente: “Afasta-te, satanás! Tu és para Mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens” (Mt 16,23). Por isso, “seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e levou-os, só a eles, a um alto monte” (Mt 17,1).
O Evangelho da Transfiguração é proclamado, cada ano, no 2º Domingo da Quaresma. Realmente, neste tempo litúrgico, o Senhor toma-nos consigo e conduz-nos à parte. Embora os nossos compromissos ordinários nos peçam que permaneçamos nos lugares habituais, transcorrendo uma vida cotidiana frequentemente repetitiva e por vezes enfadonha, na Quaresma somos convidados a subir “a um alto monte” com Jesus, para viver com o povo santo de Deus uma particular experiência de ascese
A ascese quaresmal é um empenho, sempre animado pela graça, no sentido de superar as nossas faltas de fé e as resistências em seguir Jesus pelo caminho da cruz. Aquilo precisamente de que Pedro e os outros discípulos tinham necessidade. Para aprofundar o nosso conhecimento do Mestre, para compreender e acolher profundamente o mistério da salvação divina, realizada no dom total de si mesmo por amor, é preciso deixar-se conduzir por Ele à parte e ao alto, rompendo com a mediocridade e as vaidades. É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha. Estes requisitos são importantes também para o caminho sinodal, que nos comprometemos, como Igreja, a realizar. Far-nos-á bem refletir sobre esta relação que existe entre a ascese quaresmal e a experiência sinodal.
Para o “retiro” no Monte Tabor, Jesus leva consigo três discípulos, escolhidos para serem testemunhas de um acontecimento singular; Ele deseja que aquela experiência de graça não seja vivida solitariamente, mas de forma compartilhada, como é aliás toda a nossa vida de fé. A Jesus, seguimo-Lo juntos; e juntos, como Igreja peregrina no tempo, vivemos o Ano Litúrgico e, nele, a Quaresma, caminhando com aqueles que o Senhor colocou ao nosso lado como companheiros de viagem. À semelhança da subida de Jesus e dos discípulos ao Monte Tabor, podemos dizer que o nosso caminho quaresmal é “sinodal”, porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho, discípulos do único Mestre. Mais ainda, sabemos que Ele próprio é o Caminho e, por conseguinte, tanto no itinerário litúrgico quanto no do Sínodo, a Igreja não faz outra coisa senão entrar cada vez mais profunda e plenamente no mistério de Cristo Salvador
E chegamos ao momento culminante. O Evangelho narra que Jesus “Se transfigurou diante deles: o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz” (Mt 17,2). Aqui aparece o “cimo”, a meta do caminho. No final da subida e enquanto estão no alto do monte com Jesus, os três discípulos recebem a graça de O verem na sua glória, resplandecente de luz sobrenatural, que não vinha de fora, mas irradiava d’Ele mesmo. A beleza divina desta visão se mostrou incomparavelmente superior a qualquer cansaço que os discípulos pudessem ter sentido quando subiam ao Tabor. Como toda a esforçada excursão de montanha, ao subir, é preciso manter os olhos bem fixos na vereda;
mas o panorama que se deslumbra no final surpreende e compensa pela sua maravilha. Com frequência, também o processo sinodal se apresenta árduo e por vezes podemos até desanimar; mas aquilo que nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do seu Reino.
A experiência dos discípulos no Monte Tabor se torna ainda mais enriquecedora quando, ao lado de Jesus transfigurado, aparecem Moisés e Elias, que personificam respetivamente a Lei e os Profetas (cf. Mt 17,3). A novidade de Cristo é cumprimento da antiga Aliança e das promessas; é inseparável da história de Deus com o seu povo, e revela o seu sentido profundo. De forma análoga, o caminho sinodal está radicado na tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada.
O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, tem como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e se realiza pela graça do seu mistério pascal. Para que, neste ano, se possa realizar em nós tal transfiguração, quero propor duas “veredas” que é necessário percorrer para subir juntamente com Jesus e chegar com Ele à meta.
A primeira diz respeito à ordem que Deus Pai dirige aos discípulos no Ta-
bor, enquanto estão a contemplar Jesus transfigurado. A voz da nuvem diz: “Escutai-O” (Mt 17,5). Assim a primeira indicação é muito clara: escutar Jesus. A Quaresma é tempo de graça na medida em que nos pusermos à escuta Dele, que nos fala. E como nos fala Ele? Antes de mais nada na Palavra de Deus, que a Igreja nos oferece na Liturgia: não a deixemos cair em saco roto; se não pudermos participar sempre na Missa, ao menos leiamos as leituras bíblicas de cada dia nos valendo até da ajuda da internet. Além da Sagrada Escritura, o Senhor fala-nos nos irmãos, sobretudo nos rostos e vicissitudes daqueles que precisam de ajuda. Mas quero acrescentar ainda outro aspecto, muito importante no processo sinodal: a escuta de Cristo passa também por meio da escuta dos irmãos e irmãs na Igreja; em algumas fases, esta escuta recíproca é o objetivo principal, mas permanece sempre indispensável no método e estilo de uma Igreja sinodal.
Ao ouvirem a voz do Pai, “os discípulos caíram com a face por terra, muito assustados. Aproximando-Se deles, Jesus tocou-lhes dizendo: ‘Levantai-vos e não tenhais medo’. Erguendo os olhos, os discípulos apenas viram Jesus e mais ninguém” (Mt 17,6-8). E aqui temos a segunda indicação para esta Quaresma: não se refugiar em uma religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de sugestivas experiências, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas diárias, as suas durezas e contradições. A luz que Jesus mostra aos seus discípulos é uma antecipação da glória pascal, e é rumo a esta que se torna necessário caminhar seguindo “apenas Jesus e mais ninguém”. A Quaresma orienta-se para a Páscoa: o “retiro” não é um fim em si mesmo, mas nos prepara para viver – com fé, esperança e amor – a paixão e a cruz, a fim de chegarmos à ressurreição. Também o percurso sinodal não nos deve iludir quanto ao termo de chegada, que não é quando Deus nos dá a graça de algumas experiências fortes de comunhão, pois aí o Senhor também nos repete: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Desçamos à planície e que a graça experimentada nos sustente para sermos artesãos de sinodalidade na vida ordinária das nossas comunidades.
Queridos irmãos e irmãs, que o Espírito Santo nos anime nesta Quaresma na subida com Jesus, para fazermos experiência do seu esplendor divino e assim, fortalecidos na fé, prosseguirmos o caminho com Ele, glória do seu povo e luz das nações.
1º DOMINGO DA QUARESMA 26 DE FEVEREIRO DE 2023
PADRE JOÃO BECHARA VENTURA
Jesus não precisava submeter-se à penitência e à tentação. O Filho de Deus jamais cometeu pecado algum! Sujeitou-se a isso para nos mostrar a necessidade da penitência e para se apresentar como o “Novo Adão”.
Adão fora seduzido pela serpente e desobedeceu a Deus no Éden. Na aridez do deserto, Jesus resistiu à tentação do demônio. Esta continuaria na Cruz, ápice de sua penitência. Ali, com a mesma instigação– “Se és o Filho de Deus…” (Mt 27,40) –, Ele seria novamente posto à prova. Mas também no Calvário, Cristo obedeceu à vontade do Pai. Assim, “a falta de um só acarretou a condenação de todos; mas o ato de justiça de um só trouxe a justificação” (Rm 5,18).
Solidários à penitência de Cristo, praticaremos atos externos de mortificação na Quaresma, para exercitar a virtude da penitência e a obediência a Deus. A penitência consiste na atitude interna de reconhecimento dos pecados, de sincera dor por causa deles e de firme propósito de não pecar mais. Somente pela penitência interna se obtém os frutos do sacramento da Confissão e a salvação que Jesus nos alcançou.
Pelas próprias forças, somos incapazes de cancelar os pecados. Todo perdão vem pelo Sangue de Cristo derramado na Cruz. Este, por sua vez, nos é aplicado por meio dos sacramentos: o Batismo e a Confissão. Afinal, todo perdão vem da Morte de Cristo e é distribuído pela Igreja, à qual Ele disse: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles aos quais retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo 20,22s). Porém, a misericórdia de Deus é reservada àqueles que se arrependem. E, para haver verdadeiro arrependimento, não é suficiente a fé; é necessária a virtude da penitência, decorrência do amor sincero a Deus.
Além disso, uma vez que recebemos o perdão na Confissão, mesmo que estejamos então libertos das penas do inferno, permanecem ainda feridas na alma. Estas são curadas pela penitência. São João Crisóstomo fazia a seguinte comparação: “Não basta arrancar a flecha do corpo; é necessário curar a ferida aberta pela flecha”. A penitência é terapêutica para a alma e para as penas temporais decorrentes de pecados já perdoados.
As obras da Quaresma têm a finalidade de promover essa cura interior. A oração sana os pecados cometidos contra Deus; a esmola, aqueles feitos contra o próximo; o jejum repara o mal que nossas faltas causam a nós mesmos. Como um remédio, elas arrefecem a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. E podemos, inclusive, orar, jejuar e dar esmolas, pedindo a conversão, santificação e cura de outras pessoas.
Portanto, além do jejum de Quarta-feira de Cinzas e da Sexta-feira Santa, bem como da abstinência de carne às sextas-feiras, pensemos em quais outras penitências ofereceremos a Deus na Quaresma! Qual ajuda material prestaremos aos pobres e às pessoas conhecidas? Quais orações faremos a mais?
Missa diária? Via-sacra? Rosário diário? Sejamos generosos!
Quaresma: convite à união com Cristo no caminho para a Páscoa
Na Quarta-feira de Cinzas, 22, os católicos iniciam a Quaresma, tempo litúrgico da Igreja em preparação para a Páscoa, celebração máxima da fé cristã. Desde o século IV, este período de 40 dias é proposto como um tempo de penitência, renovação e conversão para a toda a Igreja.
O nome deste tempo litúrgico deriva da palavra latina quadragesima. A exemplo de Jesus, que se retirou no deserto por 40 dias para orar e jejuar antes de iniciar sua vida pública, os cristãos são convidados a um “retiro e recolhimento”, em vista das celebrações dos mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor.
Para vivenciar com profundidade o processo de conversão quaresmal, a Igreja propõe um caminho baseado em três práticas que se desdobram em muitas outras: o jejum, a oração e a esmola (caridade), que exprimem a conversão, em relação a si mesmo, a Deus e aos outros.
Pelo rito penitencial da imposição das cinzas no início da Quaresma, os cristãos manifestam o desejo pessoal de conversão a Deus. Enquanto impõe as cinzas sobre a cabeça do fiel, o sacerdote diz: “Lembra-te de que és pó e ao pó voltarás”(Gn 3,19) ou “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15).
O caminho de conversão proposto pela Quaresma também incentiva o fiel a intensificar sua participação nos sacramentos da Reconciliação (Confissão) e da Eucaristia, bem como o cultivo de maior familiaridade com a Palavra de Deus. Nesse sentido, o itinerário das leituras bíblicas, proposto pela liturgia da Igreja, auxilia no caminho de recolhimento e conversão, preparando o fiel para a celebração do mistério pascal.
JEJUM
É chamada de jejum a privação voluntária de alimento, durante algum tempo, por motivo religioso, como ato de culto perante Deus. Embora seja uma prática exterior, o jejum impele a pessoa à oração, à escuta de Deus ao exercitar a virtude da temperança, do espírito de sacrifício, do equilíbrio do corpo e da mente, que leva a uma conversão interior.
Tanto na Quarta-feira de Cinzas quanto na Sexta-feira da Paixão, a Igreja prescreve o jejum e a abstinência de carne como um sacrifício em memória da Paixão de Cristo, que entregou a sua carne para a salvação da humanidade. A abstinência de carne é prescrita a todos os maiores de 14 anos, enquanto o jejum, aos maiores de 18 anos até os 59 anos. As pessoas doentes ou que estão muito debilitadas não estão obrigadas a cumprir esse preceito.
ESMOLA
A esmola é uma manifestação concreta das obras de misericórdia, isto é, as ações caritativas pelas quais o cristão socorre o próximo em suas necessidades corporais e espirituais. “Entre esses gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. E também uma prática de justiça que agrada a Deus”, destaca o Catecismo da Igreja Católica (CIC 2462).
As obras de misericórdia corporais são: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar moradia aos desabrigados, vestir os maltrapilhos, visitar os doentes e prisioneiros e sepultar os mortos.
Já instruir, aconselhar, consolar, confortar são obras de misericórdia espirituais, assim como perdoar, suportar com paciência e rogar a Deus pelos vivos e mortos.
ORAÇÃO
A oração está no centro da vida cristã e, no tempo quaresmal, adquire um destaque maior. Entre as muitas definições, a de São João Damasceno é uma das que mais abrangem seu sentido, sendo, inclusive, usada pelo Catecismo da Igreja Católica: “A oração é a elevação da alma para Deus ou o pedido feito a Deus de bens convenientes” (CIC 2559).
“Seja qual for a linguagem da oração (gestos e palavras), é o homem todo que ora. Mas, para designar o lugar do qual brota a oração, as Escrituras falam às vezes da alma ou do espírito, ou, com mais frequência, do coração (mais de mil vezes). É o coração que ora. Se ele estiver longe de Deus, a expressão da oração será vã”, acrescenta o Catecismo.
PRÁTICA AUTÊNTICA
No Evangelho proclamado na missa da Quarta-feira de Cinzas, Jesus coloca em evidência uma tentação comum nas três obras penitenciais, que podem ser resumidas justamente na hipocrisia.
“‘Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles… Quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas… Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar em pé, nas sinagogas e nas esquinas das praças, para serem vistos pelos homens… E, quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas” (Mt 6,1.2.5.16)’”, destaca o texto bíblico.
‘Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites’ (Mt 4,2)FERNANDO GERONAZZO ESPECIAL PARA O SÃO PAULO Luciney Martins/O SÃO PAULO
Dai-lhes vós mesmos de comer
A referência central de qualquer das Campanhas da Fraternidade que a Igreja promove já há tantos anos não varia, conquanto as temáticas sejam distintas. Tal referência se confunde com a precisa caracterização com que, em uma palavra, o Discípulo define o Pai, ao dizer: Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 7–8). Ora, a vida em fraternidade consiste, nada mais, nada menos, na concretização atual da projetada civilização do amor e, este, por seu turno, pulsa como supremo critério de justiça a ser observado no momento em que cada qual é examinado em seu agir concreto.
Wagner Balera*
Ao entardecer, afirma São João da Cruz, seremos julgados pelo amor. Eis, pois, a primeira interrogante lançada pelo Justo Juiz, como que esperando, contra toda a esperança (pois conhece de antemão a resposta) a atitude fraterna. A instigação que configura o mote da Campanha de 2023: “Dai-lhes vós mesmos de comer”, não é simples apelo. Configura exigência cristã a demandar o agir, aqui e agora. Pela cabal identificação de Jesus
com o pobre, a resposta negativa ou a que com ela coincide, entretanto, revestida de colorido mais grave, que é a indiferença, exige duas reações. A primeira, da Igreja e evoca o sentido educativo da Campanha. Já a segunda, por seu turno, provoca diretamente o Brasil e seu povo, notadamente quem pode e deve dar de comer.
A questão da fome na Doutrina Social da Igreja
Marli Pirozelli N. Silva*Ao longo da história, inúmeros cristãos dedicaram-se a contruir obras para aliviar o sofrimento dos que viviam na pobreza, defendê-los e promovê-los. Em 1891, particularmente provocada pela situação dos trabalhadores que viviam em situação de “miséria imerecida” devido aos efeitos da revolução industrial, a Igreja daria início a uma reflexão sistemática sobre a realidade social, com a Rerum Novarum, de Leão XIII. A preocupação com a pobreza esteve presente nos magistérios de Pio XI, Pio XII e João XXIII, bem como nos documentos do Concílio Vaticano II, em especial a Gaudium et Spes (1965), e a Populorum Progressio (1967), de São Paulo VI.
São João Paulo II, em suas várias encíclicas sociais, aprofundou a compreensão dos sistemas econômicos e políticos, de tal forma que a Doutrina Social, sem ignorar a responsabilidade moral de cada pessoa, foi incorporando também a análise das consequências das “estruturas de pecado”, aquelas situações e contextos sociais injustos e que aviltam a dignidade da pessoa humana (Sollicitudo Rei Socialis, SRS 36-40; CDSI 119). Na Evangelium vitae (EV), obra maior da defesa da vida, ele escreveu: “Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres
Oflagelodafome,quecondenamilharesdepessoasaviveremcondições subumanas,nummundorepletodealimentos,bensesofisticadas tecnologias,continuapresenteaindahoje.Osproblemassociais tornaram-semaiscomplexos,masafomenãoesperaerequeruma respostaurgente.ReconhecerCristonospobresesofredoreseservi-Lo fazpartedamissãodaIgreja,desdeoinício(Lumen Getium, LG8). Nasprimeirascomunidadescristãs,nãohavialugarparaaindiferença: todospartilhavamosbens(cf.At4,34-35)ecomainstituiçãoda diaconiaorganizou-seaassistênciacontinuaàsviúvas,órfãos,doentes, presoseforasteiros(cf.At6,1-5).“ OamordaIgrejapelospobres inspira-senoEvangelhodasbem-aventuranças,napobrezadeJesuse naSuaatençãoaospobres,nãosóda pobrezamaterial”(Compêndioda DoutrinaSocialdaIgreja,CDSI184).
AosPadresdaIgreja,avisãodospobres,queperambulavamem situaçãodeindigênciaaoladodaquelesqueviviamcomopulência, sempregerouindignação.Adesigualdadeeratidacomofrutodopecado individualeosricoseramexortadosacompartilharemseusbens, comoadministradoresdosdonsrecebidos,ideiaqueviriaa constituirumelementoessencialdaDoutrinaSocial–adestinação universaldosbens(CDSI182ss).
humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais?” (EV 10).
Com as mudanças econômicas, as revoluções políticas e o desenvolvimento tecnológico, a pobreza adquiriu novas formas. Em resposta aos novos desafios, a Igreja continuou a denunciar a pobreza extrema, ques-
tionando os mecanismos econômicos geradores de exclusão e propondo a reformulação dos sistemas vigentes por meio de ações concretas de solidariedade, como fez Bento XVI na Caritas in Veritate (2009), reafirmando a opção preferencial pelos pobres “implícita na fé cristológica”.
Esta opção é uma forma de caridade fundada na Tradição da Igreja, como “imitação da vida de Cristo;
mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais, como acerca da propriedade e do uso dos bens” (SRS 42), cuja finalidade última é o bem comum, pois Deus destinou a terra para uso de todos, sem excluir ninguém (cf. CDSI 171).
O Papa Francisco lembra-nos que “o princípio do uso comum dos bens criados para todos é o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’, é um direito natural, primordial e prioritário” (Fratelli Tutti, FT 120).
Traz à luz a situação de milhares de humanos invisíveis aos olhos de uma sociedade indiferente, vítimas de sistemas econômicos que promovem a exclusão e o descarte de bens e pessoas, acentuando a desigualdade.
Assim, não deve causar estranheza a indignação daqueles que, com realismo, denunciam a existência de pessoas sem acesso à alimentação. São Gregório Nazianzeno já conclamava os cristãos a irem além das palavras.
Seu apelo era radical e direto: “Visitar a Cristo, servir Cristo, alimentar, vestir, recolher Cristo nas pessoas dos indigentes” (Sermão XIV, O amor aos pobres, 40).
A fome, um desafio que pode ser vencido
Num mundo cada vez mais rico e opulento, a permanência da fome é um escândalo ético e um desafio social e político. A Organização das Nações Unidas consideraaerradicaçãodafomeemtodooplanetacomo o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável do Milênio. Em 2015, os países que fazem parte da ONU se
comprometeram a acabar com a fome até 2030. Apesar das dificuldades e das incertezas, um olhar sobre as experiências bem-sucedidas recentes aponta para caminhos factíveis e que devem ser trilhados por todas as nações, independentemente de convicções ideológicas e opções partidárias
Núcleo Fé e Cultura
A maior parte dos especialistas no assunto concorda que, atualmente, a produção global de alimentos seria suficiente para alimentar toda a população mundial. Somos cerca de 8 bilhões de pessoas, cada uma necessitando de cerca de 1,4 kg de comida por dia, ou seja, seriam necessários 3,8 bilhões de toneladas de alimentos por ano para alimentar toda essa gente – enquanto a produção mundial de alimentos está avaliada em 4 bilhões de toneladas por ano, estimando-se que as tecnologias existentes, se bem aplicadas em todas as terras agrícolas já disponíveis, permitiriam que a produção mais que dobrasse (e sem desmatar nenhum território a mais). Contudo, a perda de alimentos por desperdício é estimada entre 33% e 44%: a maior parte no consumo, nos países ricos; ou na produção, devido a limitações de conservação e armazenamento, nos países pobres.
De qualquer modo, em termos mundiais, o problema da fome não é de pouca produção de alimento, mas sim, de muita concentração de riqueza. Por isso, acreditava-se que a erradicação da fome no mundo, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Milênio, pactuado por todos os países-membros da
ONU, seria um alvo bastante factível, mas que vai se revelando cada vez mais difícil. As Nações Unidas estimaram que um décimo da população global, cerca de 828 milhões de pessoas, estava subalimentada em 2021. Particularmente na África e no Sul e Sudeste da Ásia, a quantidade de pessoas em condições de insegurança alimentar permanece tragicamente grande. Guerras, catástrofes climáticas e desigualdade de renda são as principais causas do problema. As guerras destroem tanto a estrutura produtiva quanto os canais de distribuição dos produtos, particularmente nos países pobres, dificultando o acesso da população aos alimentos. A guerra da Ucrânia, por exemplo, comprometeu o fornecimento de insumos agrícolas para a maioria dos países, levando a um aumento dos preços dos alimentos e afetando os mais pobres. Catástrofes climáticas, como as grandes secas que têm sido cada vez mais frequentes em várias regiões do globo, também prejudicam as safras e, mais uma vez, afetam os mais pobres.
Ações bem-sucedidas. Nem tudo é má notícia neste campo. Muitos países conseguiram bons resultados em
seus esforços para erradicar a fome. Essas ações irão depender, obviamente, da realidade de cada país e dos desafios que enfrenta. Países em guerra, por exemplo, precisam de paz – e aqui temos um dos maiores problemas do cenário internacional, pois o caminho para a paz é sempre difícil e exige grande habilidade de negociação.
Em regiões em que a produção de alimentos é deficitária, estudos mostram a importância dos programas de desenvolvimento que priorizem a agricultura familiar sustentável, associados a sólidas políticas de promoção humana. Com diferentes enfoques, em função das peculiaridades históricas e ambientais de cada país, ações dessa natureza foram responsáveis por sensíveis reduções da fome em países como China, Camarões, Etiópia, Gabão, Gâmbia, Irã, Kiribati, Malásia, Mauritânia, Maurício, México, Filipinas e Uruguai.
Não se pode, contudo, minimizar a importância do combate à pobreza, dos programas de renda mínima e de criação de empregos. Numa realidade como a brasileira, na qual a produção agrícola é abundante, por exemplo, as desigualdades sociais –particularmente no quesito renda –
e a desocupação são os “grandes vilões” responsáveis pela fome e pela desnutrição.
Saindo do Mapa da Fome. O Brasil foi considerado, em 2010, o país emergente com maior sucesso no combate à fome. Os números são expressivos: em 2002, 19 milhões de brasileiros (10,5% da população) eram considerados subnutridos, em 2013 eram 3,4 milhões (cerca de 1,7% da população) – uma redução de 82,1%! nesse período, a pobreza extrema, causa direta da situação de fome e desnutrição, foi reduzida em 75%! Com isso, o Brasil comemorou sua saída do “Mapa da Fome”, um relatório produzido pelas Nações Unidas que acompanha a situação alimentar da população nos países com maior insegurança alimentar.
Muitos fatores podem ser elencados para explicar esse sucesso, contudo dois pontos essenciais não podem ser desprezados...
Em primeiro lugar, a erradicação da fome no Brasil consolidou-se como um objetivo fundamental do governo, orientando as políticas públicas e definindo prioridades. Preferências partidárias e avaliações políticas podem nos colocar a favor
ou contra determinado governo, mas temos que ter claro que, para vencer a fome e a pobreza, é necessária uma determinação firme na gestão do Estado. A vontade política, por si só, não é suficiente, sem dúvida é preciso uma gestão eficiente, um olhar realista sobre os limites e o funcionamento das estruturas econômicas. Mas, sem essa vontade decisiva, a eficiência da máquina pública e a boa gestão da economia são canalizados para o aumento dos ganhos de uns poucos ou, na melhor das hipóteses, para o lento crescimento de um bolo que nunca será dividido, conforme uma analogia que foi muito conhecida no passado (teríamos que fazer “o bolo crescer” para depois dividi-lo).
Em segundo lugar, temos que reconhecer o papel indispensável dos programas de renda mínima, como o Bolsa Família e o Auxílio Brasil. Tais programas não são apenas estratégias eleitoreiras, adotadas pelos mandatários para ganhar votos da população pobre. São ferramentas indispensáveis para a redução da pobreza e para o combate à fome. Não é à toa que foram adotados por gestões com posições programáticas radicalmente opostas. Num país relativamente rico, mas que ostenta uma das maiores desigualdades socioeconômicas do planeta, como o Brasil, esses programas não são facultativos – e ainda teremos que conviver com eles por muito tempo até termos uma situação social mais justa.
A volta da fome. Em 2020, lamentavelmente, o Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome da ONU. A pandemia do coronavírus teve muito a ver com isso, mas o problema já havia começado a retornar. Segundo os relatórios das Nações Unidas, já entre 2018 e 2020, a situação de insegurança alimentar grave havia pulado de 1,7% para 3,5% da população, passando para 7,3% (15,4 milhões de brasileiros) 2019-2020. Um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Pensann), feito em parceria com seis entidades e ONGs, publicado em 2022, estimou que 33,1 milhões de brasileiros enfrentavam uma situação de insegurança alimentar grave (15,5% da população).
Este retorno da fome está em grande parte associado à crise econômica brasileira na década passada e ao aumento do desemprego – agravadíssimos pela pandemia. Além disso, reflete as desigualdades já bem conhecidas da sociedade brasileira: evidentemente é muito maior entre os mais pobres, afeta mais as populações pretas e pardas do que as brancas, é mais grave nas regiões Norte e Nordeste. Um dado significativo é que a insegurança alimentar é maior na zona rural (onde há 35,5% dos domicílios com insegurança alimentar grave ou moderada) do que nas cidades (31,8% dos domicílios com insegurança alimentar grave ou moderada). Trata-se de populações que vivem junto à terra, mas não conseguem obter dela o alimento necessário – seja por razões sociais, como a posse da terra ou de recursos mínimos para cultivá-la, seja por razões ambientais, como períodos de seca, solos pouco produtivos etc.
A responsabilidade do Estado. A pandemia mostrou, para todos os países, que o Estado é fundamental no enfrentamento
de crises e situações extremas. Ainda que vários arranjos institucionais sejam possíveis, ficou claro que, na resposta a esses contextos, a possibilidade de uma total ausência do Estado é uma ilusão. Nesse sentido, é importante lembrar que o Estado subsidiário, proposto pela Doutrina Social da Igreja, é um Estado que apoia as iniciativas que vêm da sociedade para a resolução dos problemas, mas não um Estado que se omite diante dos problemas da sociedade.
Observando o que já deu certo e o que já deu errado tanto no Brasil quanto em outros países, a responsabilidade estatal no combate à fome implica em pelo menos quatro pontos:
1) A consolidação de programas eficientes de renda mínima, que garantam que mesmo as populações mais pobres tenham condições de adquirir o necessário para se alimentar.
2) No campo, programas de desenvolvimento para a agricultura familiar, focados naquelas áreas em que as famílias não conseguem obter alimento suficientes.
3) Na gestão pública, manter e até aumentar, quando necessário, os mecanismos de proteção social e apoio aos mais pobres, atuando com responsabilidade fiscal, pois está visto que os desequilíbrios das contas públicas (reais ou fabricados) acabam prejudicando justamente os mais pobres.
4) Na economia, estimular um desenvolvimento humano integral, realmente a serviço da qualidade de vida da população e não apenas do lucro privado.
Além dessas grandes linhas de ação, existem muitas medidas pontuais, que no conjunto podem trazer ganhos significativos para a qualidade de vida da população. Por exemplo: manter programas de combate à desnutrição infantil nos primeiros anos de vida; garantir programas de alimentação escolar de qualidade; manter os estoques reguladores de alimentos, que garantem o abastecimento e os preços nas entressafras; facilitar a comercialização da produção agrícola, reduzindo a intermediação e permitindo a redução de preços; apoiar programas educativos e ações da coletividade para enfrentar a desnutrição.
A contribuição de cada um. Sem minimizar a importância das políticas públicas, existe também uma responsabilidade de cada um de nós diante do problema da fome. A Igreja tem uma larga tradição de ações sociais nessa perspectiva. Quando bem orientadas, representam não apenas um auxílio emergencial para os que estão em situação mais vulnerável, mas também um importante instrumento de promoção humana.
Neste período de Quaresma, a Campanha da Fraternidade nos convida a uma conversão pessoal, nos comprometendo sempre mais tanto em ações individuais quanto em projetos sociais que minimizem a fome de nossos irmãos, e a um empenho coletivo, que crie espaços de acolhida e apoio em nossas comunidades.
Quantos brasileiros passam fome?
Redação
Comapandemiaeacriseeconômica,háindicações segurasdequegrandepartedapopulaçãobrasileira nãotemsegurançaalimentarequealgoporvoltade33 milhõesdepessoasestão“passandofome” noBrasil(isto é,sofrendodeumainsegurançaalimentargrave).
A polarização partidária e o uso ideológico de informações, muitas vezes distorcidas, têm levado muita gente a duvidar dos dados sobre o retorno da fome ao cenário brasileiro. O termo “fome” é impreciso e a comunidade científica prefere falar em níveis de insegurança alimentar, esses claramente definidos. No Brasil, adotou-se uma Escala de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia), que se baseia no acesso das famílias aos alimentos, com quatro categorias:
Segurança alimentar: acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente.
Insegurança alimentar leve: receio de falta de alimentos, recorre-se a alimentos com menor qualidade nutricional para se manter a quantidade necessária.
Insegurança alimentar moderada: existe falta de alimentos, mesmo que de baixo valor nutricional, em quantidade necessária para os adultos.
Insegurança alimentar grave: o problema se agrava e inclusive as crianças passam a sofrer a privação de alimentos.
Ainda que a condição de “estar passando fome” seja aplicado apenas à insegurança alimentar grave, a fome já se manifesta numa situação de insegurança alimentar moderada. Deve-se entender também que as pessoas normalmente não “morrem de fome” literalmente. A subnutrição acarreta problemas graves de desenvolvimento, que frequentemente nunca serão superados, nas crianças e uma debilidade geral no organismo que pode levar à morte por várias doenças. Por isso, é difícil encontrar pessoas que literalmente “morreram de fome”.
O estudo sobre o quadro de insegurança alimentar no Brasil mais frequentemente citado atualmente é o levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Pensann), feito em parceria por seis entidades e ONGs, publicado em 2022. Os resultados nacionais estão na tabela abaixo:
Distribuição porcentual dos domicílios brasileiros em função da segurança alimentar. Fonte:
II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil
Níveis Geral Urbano Rural
Em segurança 41,3 % 42,2 % 36,2 %
Insegurança leve 28,0 % 27,9 % 28,3 %
Insegurança moderada 15,2 % 14,9% 16,9 % Insegurança grave 15,5 % 15,0 % 18,6 %
A pergunta que surge naturalmente, ainda mais se considerarmos os desacertos dos institutos de pesquisa nas últimas eleições, é se esses resultados são confiáveis. Como em todo estudo amostral, existe uma possibilidade de erro estimado: intervalo de confiança de 95% e margem de erro máxima para o total da amostra de 0,9 ponto percentual para mais ou para menos. Isso significa que os pesquisadores acreditam que os resultados reais na população brasileira total não devem variar em mais de 1,0% em relação aos valores aqui apresentados.
Mas, voltemos à pergunta: esses resultados não podem estar totalmente errados? Retomando o exemplo das pesquisas eleitorais, veremos que damos muita importância aos casos em que as estimativas foram muito diferentes dos resultados reais, mas essas são situações relativamente raras – se consideramos a quantidade de projeções feitas nas eleições para presidente, governadores, prefeitos e senadores. Em outras palavras, esse quadro aqui apresentado tem altíssima probabilidade de ser verdadeiro... Uma probabilidade mais do que suficiente para orientar a todos aqueles que estão realmente interessados no bem comum e não apenas em fortalecer suas convicções partidárias.
Economia de Francisco e Clara na Quaresma
Alan Faria Andrade SilvaNaQuaresma,aIgrejanoBrasil,comaConferênciaNacionaldos BisposdoBrasil–CNBB,pormeiodaCampanhadaFraternidade,nos chamaa“despertaroespíritocomunitárioecristãonopovodeDeus, comprometendo,emparticular,oscristãosnabuscadobemcomum; educarparaavidaemfraternidade,apartirdajustiçaedoamor,exigência centraldoEvangelho;renovaraconsciênciadaresponsabilidadedetodos pelaaçãodaIgrejanaevangelização,napromoçãohumana,emvistade umasociedadejustaesolidária”. Nesteano,aCFvoltaarefletirsobrea fomequeassolanossopaís,reduzidanopassado,masquehojevoltaaser realidade em nosso cotidiano.
Somosinterpeladosaencontraremnossasvidaserealidades,momentos paraorar,jejuarepraticaratosdecaridadeemrelação“aocombateà fome”.ComobemnoslembraBentoXVI,“apartilhadosbenserecursos, daqualderivaoautênticodesenvolvimento,nãoéasseguradapelosimples progressotécnicoepormerasrelaçõesdeconveniência,maspelopotencial doamorquevenceomalcomobem(cf.Rm12,21)eabreàreciprocidade das consciências e das liberdades.” (Caritas in Veritate, CV 9).
Agricultura familiar no Brasil
Rodrigo Gastalho Moreira*A produção agrícola familiar é a forma predominante de produção alimentar e agrícola nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, produzindo mais de 80% dos alimentos do mundo. A agricultura e a família, a produção de alimentos e a vida dessas famílias estão interligados.
A agricultura familiar implica um modo de viver, transmitir o conhecimento, preservar uma trama de relações e o meio ambiente. A sustentabilidade da agricultura familiar depende não somente de fatores econômicos e da gestão ambiental, mas também da transferência intergeracional de conhecimentos locais e práticas tradicionais, recursos, vínculos e identidade social e religiosa.
Muitos pequenos agricultores familiares são pobres e têm acesso limitado a mercados e serviços. Eles cultivam em suas próprias terras e, além da agricultura, assumem várias atividades econômicas (geralmente informais) para contribuir com suas receitas.
Para assegurar a sustentabilidade da agricultura de base familiar, temos o imenso desafio de buscar soluções para diminuir a saída dos mais jovens do campo. É preciso fortalecer suas relações intrafamiliares, enfrentar os desafios vinculados à problemática de sucessão familiar e herança de propriedade; da transmissão de conhecimento aos familiares e à comunidade. Esses fatores, aliados aos problemas estruturais não resolvidos no campo, promovem desestruturação familiar, conflitos e falência das formas tradicionais da agricultura familiar.
Faz-se necessário pensar políticas públicas que, alinhadas com o Plano de Ação Global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), possam ajudar os agricultores familiares a aumentar sua produtividade. Mas, isso ainda não é suficiente. É preciso apoiar, fortalecer e promover sua estrutura familiar, potencializando seus vínculos intergeracionais e suas capacidades. Deve-se preservar seus valores e tradição, apoiando ações que assegurem os direitos das mulheres na produção alimentar e agrícola, fortalecendo as organizações femininas no campo, promovendo sua autonomia, a fim de permitir sua plena participação no desenvolvimento da agricultura familiar.
Agindo assim, se considera e se valoriza todas as suas dimensões, não somente econômicas ou de mercado, pois a agricultura familiar é, antes de tudo, uma unidade de vida, de vida familiar.
É nesse sentido que encontramos a atual proposta do Papa Francisco, da Economy of Francesco ou, como chamamos no Brasil, da Economia de Francisco e Clara (ABEFC), de alterar a economia, construindo aquela do amanhã, inclusiva, humana, que gera vida e conserva o meio ambiente. Nessa perspectiva, vemos que o desafio da fome passa por questões econômicas-sociais-ambientais, principalmente pela superação da desigualdade social que atinge todos os cantões do planeta. Como Francisco nos lembra, trata-se de alterar a economia “olhando para o mundo por meio dos olhos dos mais pobres”, “fazendo com os pobres”, pois estes sabem a dor e a realidade da pobreza e de passar fome. Além disso, é possível repensarmos como nos relacionamos com a comida, como podemos evitar o desperdício e optar por alimentos que favorecem mais a vida, e como podemos compartilhar nossos alimentos ou fazer doação para instituições que combatem a fome (como o Sefras – Serviço Franciscano de Solidariedade).
O combate à fome implica decisões nas quais a caridade se realiza como ato concreto do aprofundamento do encontro com Deus. Precisamos nos abrir à graça e pedir para reencontrar Cristo na oração, no jejum e no ato de caridade para combatermos a fome.
Migração e fome
Padre Alfredo José Gonçalves, CS *
No contexto dos debates sobre a Campanha da Fraternidade, migração e fome com frequência são companheiras de viagem. Não que o flagelo da fome seja provocado diretamente pela migração, mas porque esta última representa, não raro, a fuga de uma série de carências, entre as quais destaca-se a impossibilidade de garantir “o pão nosso de cada dia” com o próprio trabalho. A mobilidade geográfica tem como anseio e horizonte a mobilidade social. a pessoa busca, por meio da mudança de lugar, região ou país, um nível de vida melhor, para si mesmo e para os familiares.
Nas chamadas “migrações históricas”, essa melhora de vida se revelou real para não poucos migrantes. Durante o século XIX e início do XX, milhares de europeus recomeçaram a vida nos Estados Unidos, Argentina, Brasil etc. Boa parte deles logrou uma efetiva ascensão socioeconômica e até política. O mesmo ocorreu com outros milhares e milhões de migrantes brasileiros que, entre as décadas de 1930-70, trocaram o Nordeste ou Minas Gerais pelo centro-sul, de modo particular São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal.
Tanto no caso das migrações intercontinentais quanto dos deslocamentos internos, em geral a mobilidade humana foi seguida, a médio e longo prazo, por uma concreta mobilidade social ascendente. Em certo grau, o binômio migração e trabalho praticamente se complementavam. O desenraizamento provisório na Europa ou no Nordeste era seguido de um enraizamento minimamente seguro.
Muito diferente é o que vem acontecendo com as migrações atuais, seja em termos de novo enraizamento no local de destino, seja quanto a encontrar um emprego mais ou menos estável, se tornaram muito mais incertas e inseguras. Ocorre um acentuado divórcio entre o fenômeno migratório e a possibilidade de trabalho, entre migração e futuro mais promissor. A migração com origem e destino relativamente predeterminados, no passado, cedeu lugar a um vaivém sem rumo e sem a certeza de fixar os pés em um novo solo pátrio e acolhedor. É comum se percorrer vários países, tropeçando nas fronteiras que os dividem, nas leis cada vez mais rígidas, no preconceito e na intolerância – situação escancarada e agravada pela pandemia de COVID-19.
As nações, e claro, o Brasil, necessitam de uma legislação mais flexível, sem o estigma da segurança nacional, acompanhada de políticas públicas destinadas a acolher os migrantes que batem à porta. Ao longo dos tempos, a diversidade de rostos, valores e culturas enriquecem a civilização.
CF 2023 propõe ações nos âmbitos pessoal, comunitário e sociopolítico para o combate à fome no Brasil
CAMPANHA DA FRATERNIDADE COMEÇA NA QUARTA-FEIRA DE CINZAS, 22, COM
O LEMA ‘DAI-LHES VÓS MESMOS DE COMER’ (MT 14,16)
DANIEL GOMES osaopaulo@uol.com.br“Um instrumento de comunhão eclesial, de formação das consciências e do comportamento cristão e de edificação de uma verdadeira fraternidade cristã entre os brasileiros” (texto-base da CF 2023, nº173). Assim é a Campanha da Fraternidade, promovida anualmente pela Igreja no Brasil durante o período da Quaresma.
Realizada pela primeira vez em 1962 na Arquidiocese de Natal (RN), a Campanha da Fraternidade (CF) tem abrangência nacional desde 1964, sendo organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A Campanha “questiona cada pessoa de boa vontade,
grupos eclesiais e instituições civis acerca de seu envolvimento com as transformações espirituais, sociais, político-econômicas e ecológicas, a fim de verificar a coerência com o projeto do Reino de Deus mediante a escuta mais atenta e comprometida do Evangelho” (texto-base, nº3).
Pela terceira vez em suas 60 edições, o combate à fome é o tema em destaque, assim como foi nos anos de 1975 e 1985, sendo refletido em 2023 à luz do lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
A CF 2023, com início na Quarta-feira de Cinzas, 22, tem como objetivo geral sensibilizar a sociedade e a Igreja para o enfrentamento do flagelo da fome, por meio de compromissos que transformem esta realidade a partir do Evangelho.
A FOME E O COMPROMISSO DO CRISTÃO
De acordo com o texto-base da CF deste ano, o lema escolhido – “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16) –, ao mesmo tempo em que expressa a compaixão de Jesus pela multidão faminta, também lembra que a mudança desse panorama depende do empenho de cada pessoa em favor dos que passam
fome: “Jesus compromete os discípulos. É necessário que se sintam responsáveis diante das necessidades dos outros. A comunidade cristã não pode assistir indiferente à fome no mundo” (nº22).
Assim, ao ordenar aos seus discípulos – ‘Dai-lhes vós mesmos de comer!’ – Cristo os conclama à responsabilidade diante do flagelo da fome: “Jesus, o Novo Moisés, nos ensina que Deus continua a alimentar seus filhos e o faz não mais com o Maná que cai dos céus, mas por intermédio da responsabilidade fraterna daqueles que se fazem discípulos. À diferença de Moisés, Jesus não age sozinho. Ele convida os discípulos a participarem do que Ele realiza, ordena que os discípulos reconheçam e ocupem seus lugares” (nº138).
No texto-base da Campanha, também é apontado que “não participa efetivamente da comunhão que a Eucaristia constrói aquele que não está disposto a assumir para si a compaixão com a qual Jesus se comprometeu ou a entrega de si que Ele realizou, ou mesmo a profecia que Ele assumiu, na radicalidade de suas palavras e de sua indignação diante da injustiça” (nº154).
“Há que se dizer que, diante da fome, a profecia começa sendo compaixão para depois tornar-se algum tipo de ação
concreta, individual, comunitária, eclesial e socioambiental” (nº156).
AS RAZÕES PARA
A FOME NO BRASIL
No texto de apresentação da CF 2023, os bispos da Presidência da CNBB ressaltam que a fome do ser humano se dá em múltiplas dimensões. Por primeiro, está a fome de Deus – “desejamos estar com Ele e poder participar de seu amor e de sua misericórdia”; há, também, a fome por paz, fraternidade, verdade e concórdia; e, claro, a fome decorrente da necessidade de alimentos: “Cada ser humano que não encontra o necessário para se alimentar é, em si, um questionamento a respeito dos rumos que estamos dando a nós mesmos e à nossa sociedade”, apontam os bispos.
No subsídio da CF 2023 também se aponta que a fome é um contratestemunho que não reconhece de forma prática a dignidade integral das pessoas; é sinal de que não se considera a primazia do bem comum como o conjunto de todos os bens necessários para cada ser humano; e lembra que aquele que passa fome não participa efetivamente da sociedade, sendo considerado como indigente ou invisível (cf. nº7).
Também são apresentados alguns
dados do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil (II Vigisan), da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, entre os quais o fato de que, em 58,1% dos domicílios do País, há algum nível de insegurança alimentar; e que, em 15,5% destes, os moradores convivem com a fome, o equivalente a cerca de 33 milhões de pessoas.
Diante dos dados e fatos, a CF 2023 conclama não apenas à solidariedade pontual com quem está faminto, mas ao enfrentamento das causas da fome.
“Na origem deste drama estão, sobretudo, a falta de compaixão, o desinteresse de muitos e uma escassa vontade social e política de responder às obriga çõ es internacionais” (nº9), além do fato de o alimento ser tratado como mais uma entre as tantas mercadorias, atendendo à “prioridade de mercado” e à primazia do lucro (cf. nº10).
Também são apontadas como razões para a fome no Brasil a histórica estrutura agrária centrada em estabelecimentos fundiários, a supervalorização do agronegócio, a pouca atenção à agricultura familiar, o
fato de o sistema produtivo agrícola ser mais voltado às exportações do que ao mercado interno (cf. nº46-47), e o alto preço dos alimentos em relação ao salário dos trabalhadores.
Comportamentos morais lamentáveis também são mencionados como desencadeadores da fome no Brasil: “A busca egoísta do dinheiro, do poder e da imagem pública; a perda do sentido de serviço à comunidade em benefício exclusivo de pessoas ou de grupos; sem esquecer o importante grau de corrupção, sob as mais diversas formas” (nº52).
COMO MUDAR ESTE PANORAMA?
A CF 2023, à luz do compromisso de cada cristão com as obras de misericórdia, faz um amplo chamado para que se reverta o flagelo da fome no Brasil, a partir de ações nos níveis assistencial, promocional e sociopolítico.
“O faminto precisa, sobretudo, recuperar a dignidade, o que só acontece quando lhe é devolvida a capacidade de ganhar o pão com o suor do seu rosto. Ações assistenciais são importantes na medida em que respondem a situações emergenciais. Não podem, entretanto, ser as únicas no enfrentamento da fome. São necessárias políticas públicas, principalmente de Estado, e investimentos a
partir da responsabilidade social das empresas. Mais ainda, é preciso que as ações mudem a realidade social, trazendo para o centro a pessoa humana e a sua dignidade, buscando a superação de uma sociedade de famintos” (nº160).
É lembrado, ainda, que a Igreja, por meio de sua Pastoral Social, deve dar acolhida e acompanhar as pessoas excluídas, valendo-se, para tal, de criatividade pastoral e de mobilizações em prol de políticas públicas voltadas aos mais necessitados (cf. nº163).
No subsídio da CF 2023, são apresentadas sugestões de ação em âmbito pessoal, comunitário-eclesial e sociopolítico com o objetivo de combater a fome.
O QUE CADA UM PODE FAZER? (nº166)
Partilhar o que tem, ainda que seja pouco, com aqueles que mais necessitam, sendo especialmente solidário com quem passa fome de forma mais aguda; Jejuar em atitude solidária com aqueles que passam fome, e converter o resultado do seu jejum e penitência quaresmal em alimentos para essas pessoas;
Questionar o próprio estilo de vida e de alimentação; Colaborar com entidades sérias e transparentes que arrecadam alimentos;
Abolir o desperdício de alimentos, estabelecendo práticas de alimentação saudável;
Realizar um doação significativa para a Coleta Nacional da Solidariedade, no Domingo de Ramos, cujos recursos serão destinados a projetos ligados ao tema da CF 2023;
Praticar o voluntariado e envolver-se nos trabalhos e nas ações que já existem na comunidade, como as realizadas pela Sociedade São Vicente de Paulo (Vicentinos), o Serviço da Caridade, as Pastorais Sociais, a Caritas etc.;
Participar mais ativamente das discussões sociais de políticas públicas e se envolver nas iniciativas públicas (governamentais ou não) de combate à fome e à pobreza.
O QUE NÓS, COMO IGREJA, PODEMOS FAZER? (nº167)
Motivar a participação dos fiéis na Coleta Nacional da Solidariedade; Fazer um levantamento das pessoas e famílias que passam fome ou alguma necessidade, observando suas condições de vida, buscando entender o que as levou a essa situação, iluminando-as com a Palavra de Deus; Articular os meios de comunicação e as mídias digitais de inspiração católica para divulgar ações inspiradoras que já estão sendo feitas para a superação da miséria e da fome; Promover rodas de conversa com quem já sentiu na própria pele o flagelo da fome; Realizar seminários de partilha do que já está sendo feito para combater a fome; Acolher, implementar e valorizar iniciativas em favor de uma alimentação saudável e compartilhada, como as hortas comunitárias;
Avaliar os serviços caritativos a partir das seguintes questões: “O pobre é respeitado em sua dignidade? É beneficiário passivo de ajuda? Qual a sua margem de participação e corresponsabilidade? Nesse serviço, há algum resquício de superioridade ou prepotência? Além da ajuda concreta, é feito algum estudo sobre as causas da pobreza neste lugar?”; Realizar encontros com os agentes das mais diversas pastorais sobre a relação Eucaristia e fome;
Envolver-se em iniciativas ecumênicas e inter-religiosas que visam à superação da miséria e da fome, e à promoção da agricultura familiar agroecológica;
Levar pessoas e grupos religiosos para realizar ações concretas em áreas de exclusão;
Planejar o Dia Mundial dos Pobres (no 33o Domingo do Tempo Comum); Educar para a solidariedade permanente e não apenas para a ocasional; Manter as portas das igrejas abertas para o acolhimento imediato e o cuidado sistêmico dos mais pobres e necessitados.
O QUE A SOCIEDADE PODE FAZER E COBRAR DOS QUE GOVERNAM? (nº168)
Despertar em todos o desejo de estancar a continuidade da miséria e da fome;
Ouvir os pobres e famintos; Promover ações de voluntariado no campo da assistência social; Realizar pesquisas que levem à produção e comercialização de alimentos sadios, mais baratos e abundantes para a mesa do pobre; Fiscalizar a aplicação do orçamento público, especialmente no que tange à ação social;
Organizar grupos de orientação e educação alimentar, economia doméstica, horta em casa etc., que ofereçam dicas práticas sobre como conservar alimentos, prepará-los mantendo seu valor nutricional e comprá-los sem gastar muito;
Promover audiências públicas que discutam a situação da fome, suas causas e consequências e como solucioná-la; Desenvolver atividades interdisciplinares nas escolas sobre o tema da fome;
Cobrar as três esferas de governo –municipal, estadual e federal – para que:
Implementem políticas públicas eficazes para a erradicação da fome; Invistam na alimentação escolar saudável;
Incentivem a produção diversificada de alimentos na agricultura familiar;
Estimulem o pequeno produtor e o pequeno comércio;
Especificamente do governo federal, cobrar que:
Retome programas de aquisição de alimentos e os estoques públicos reguladores e estratégicos;
Crie uma agência nacional que regule a alimentação, para garantir que seja saudável;
Garanta uma política de preços para que a cesta básica seja acessível a todos;
Realize uma reforma do sistema tri-
butário nacional que não pese sobre os mais pobres; Corrija o valor per capita repassado pelo Fundo Nacional de Educação para os municípios, a fim de ampliar a capacidade das escolas de prover a alimentação escolar e assegurar uma melhor qualidade dos alimentos adquiridos.
CONFIRA OS 9 OBJETIVOS ESPECÍFICOS DA CF 2023
1) Compreender a realidade da fome à luz da fé em Jesus Cristo;
2) Desvelar as causas estruturais da fome no Brasil;
3) Indicar as contradições de uma economia que mata pela fome;
4) Aprofundar o conhecimento e a compreensão das exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome;
5) Acolher o imperativo da Palavra de Deus, que nos conduz ao compromisso e à corresponsabilidade fraterna;
6) Investir esforços concretos em iniciativas individuais, comunitárias e sociais que levem à superação da miséria e da fome no Brasil;
7) Estimular iniciativas de agricultura familiar agroecológica e a produção de alimentos saudáveis;
8) Reconhecer e fomentar iniciativas conjuntas entre a comunidade de fé e outras instituições da sociedade civil organizada;
9) Mobilizar a sociedade para uma sólida política de alimentação no Brasil, garantindo que todos tenham vida.
Campanha da Fraternidade já mobiliza regiões, paróquias e comunidades
DANIEL GOMES osaopaulo@uol.com.br“Sem verdadeiro envolvimento de todos os atores eclesiais na organização, formação e divulgação, não há CF. Para tanto, todos os batizados e batizadas –animadores fundamentais da CF – devem se unir neste serviço à comunhão da Igreja no Brasil. Todos nós, caminhando juntos, motivaremos nossas comunidades a assumir suas responsabilidades ante a situação de fome que persiste no nosso Brasil.”
O chamado do texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano (nº172) já repercute nas paróquias, comunidades e regiões episcopais da Arquidiocese de São Paulo, nas quais têm acontecido formações sobre o tema da CF 2023 – “Fraternidade e fome” – e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
FORMAÇÕES E MISSAS
Na Região Brasilândia, a formação sobre a CF 2023 foi no dia 4. Na ocasião, mais de 300 pessoas refletiram sobre a temática da fome e conheceram projetos de paróquias e pastorais, como as cozinhas comunitárias e as ações de distribuição de refeições e de cestas básicas.
No domingo, 26, às 14h, ocorrerá a abertura regional da CF, no Santuário Sião do Jaraguá (Rua Galvão Bueno Trigueirinho, 764). As paróquias, conforme seus setores pastorais, estão chamadas a fazer doações de alimentos não perecíveis, como óleo de cozinha, açúcar, café, bolacha, enlatados, arroz, feijão, macarrão e molho de tomate, que serão entregues às conferências vicentinas da Região Brasilândia, as quais atendem famílias em situação de vulnerabilidade social.
Na Região Ipiranga, a formação sobre a CF ocorreu no dia 15, na cúria regional. Na sexta-feira, 24, às 19h30, haverá a missa de abertura regional da Campanha, na Paróquia Imaculada Conceição (Avenida Nazaré, 993), presidida por Dom Ângelo Ademir Mezzari, RCJ.
Também a Região Lapa já realizou nos setores pastorais um momento for-
mativo sobre a CF no último dia 11. Na Região Belém, a formação ocorreu no dia 4, organizada pelo Fórum das Pastorais Sociais, com a participação de cerca de 200 pessoas. Houve reflexões sobre as múltiplas causas da fome no Brasil e seus impactos na qualidade de vida das pessoas.
Na Região Santana, boa parte das paróquias já realizou ou tem agendadas formações sobre a CF 2023. Cada uma recebeu um roteiro com sugestões para a missa de abertura da Campanha, na Quarta-feira de Cinzas, 22. Nesta data, às 20h, o Cardeal Odilo Pedro Scherer presidirá missa na Paróquia Natividade do Senhor (Rua Augusto Rodrigues, 683, Jardim Fontalis). Antes, às 15h, na Catedral da Sé, o Arcebispo Metropolitano presidirá a missa de abertura da Quaresma na Arquidiocese, com o rito de imposição das cinzas (veja detalhes na arte acima).
Na quinta-feira, 23, às 19h, está prevista a participação de Dom Odilo na solenidade de abertura da CF 2023 na Câmara Municipal de São Paulo (Viaduto Jacareí, 100 – Plenário 1o de Maio).
A CAMPANHA NAS PARÓQUIAS
Em entrevista ao O SÃO PAULO, o Padre Andrés Gustavo Marengo, Coordenador da Campanha da Fraternidade na Arquidiocese, enfatizou que nas paróquias e comunidades a CF 2023 precisa provocar reflexões e ações concretas.
“Nossas comunidades podem ver quais famílias carentes estão sendo ajudadas; fazer um levantamento sobre as condições de vida das pessoas; produzir murais na igreja sobre o aproveitamento de alimentos e alimentação saudável; divulgar pelas redes sociais os trabalhos que já vêm sendo feitos. A Campanha da Fraternidade não é só para os grupos que trabalham com a questão social nas paróquias. Essa conscientização deve ser de todos”, comentou o Sacerdote.
Dom Rogério Augusto das Neves, Bispo Auxiliar da Arquidiocese na Região Sé e Referencial da CF na Arquidiocese, afirmou que o texto-base da CF 2023 menciona que a Igreja distribui a Eucaristia e partilha compaixão: “Isso quer dizer que a Eucaristia tem sua dimensão comunitária, eclesial e social.
E como a Eucaristia faz a Igreja, tanto quanto a Igreja faz a Eucaristia, entendemos que se trata de uma consequência eclesial. O texto-base faz questão de enumerar as iniciativas para combater e superar a fome empreendidas no seio da Igreja. Penso que a Arquidiocese, por meio de suas paróquias e novas comunidades, tem uma longa página de assistência às pessoas atingidas pela fome que merece ser considerada. Talvez uma explicitação maior desse elenco de iniciativas já fosse uma grande inspiração. Acho que deveria haver mais visibilidade dessas iniciativas, porque são muitas, mas nem sempre conhecidas”. Questionado sobre como o católico nesta Quaresma pode alcançar a conversão pessoal, comunitária e social, que é um chamado permanente da Campanha da Fraternidade, o Bispo lembrou que a primeira atitude é a de não banalizar o problema da desigualdade social e da miséria. “É preciso sentir algum incômodo, para que desejemos realizar alguma conversão. Nesse sentido, a proposta de tema para reflexão na Quaresma já nos ajuda a pensar nas situações que precisam de conversão. Nós somos sempre pecadores, por isso, a conversão é permanente. Não se trata de tematizar de maneira monolítica a nossa vida, mas de abrir os horizontes da nossa visão. É claro que, apesar dos problemas serem sociais, a conversão só é possível se for assumida de maneira pessoal”, disse Dom Rogério.
Padre Andrés destacou que a grande meta da CF 2023 é indicar as causas estruturais da fome no Brasil e, a partir dessa conscientização, erradicá-la: “Trata de tomar consciência de que a fome existe e de que fazer alguma ação caritativa é importante, mas que é preciso também avaliar o próprio estilo de vida, pensar em propostas de ação sociopolítica para ir à raiz do problema da fome no Brasil. Não podemos lavar as mãos como Pôncio Pilatos, mas, sim, nos engajarmos. Corrigir o drama da fome é um grande desafio e precisamos discuti-lo, é nossa tarefa, pois o próprio Jesus disse ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mt 14,16)”.