7 minute read

Tráfico de crianças e adolescentes: um perigo real que requer ampla sensibilidade social

A AMPLIAÇÃO DOS

ALICIAMENTOS PELA

Advertisement

INTERNET, A FALTA DE UM CADASTRO NACIONAL UNIFICADO DE DESAPARECIDOS, A DEMORA NAS BUSCAS E A INDIFERENÇA E A CONIVÊNCIA COM OS CASOS SÃO COMPLICADORES NO ENFRENTAMENTO AO PROBLEMA

DANIEL GOMES osaopaulo@uol.com.br

A cada ano, em todo o mundo, desaparecem 1,2 milhão de crianças e adolescentes, conforme projeções da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, este número é estimado entre 30 mil e 40 mil meninos e meninas, dos quais e 10% a 15% não são mais encontrados.

Com vistas a alertar a sociedade sobre esta realidade e pensar formas para combatê-la, acontece, em 25 de maio, o Dia Internacional da Criança Desaparecida.

A ampliação do aliciamento feito pelos criminosos a crianças e adolescentes na internet, a falta de um cadastro nacional uni cado de pessoas desaparecidas, a demora das autoridades em procurar quem sumiu e a indiferença da sociedade em relação ao problema são apontados por especialistas ouvidos pelo O SÃO PAULO como os principais complicadores para o combate deste crime.

O Que Fazer Em Caso Desaparecimento

1) Em posse de uma foto atualizada do desaparecido, procure a delegacia mais próxima e registre o caso imediatamente;

2) Informe um número para contato que esteja permanentemente disponível;

3) Saiba informar quem são os amigos da pessoa e com quem ela pode estar;

4) Descreva com qual roupa a criança ou adolescente usava quando desapareceu;

5) Avise amigos e familiares sobre o sumiço;

6) Percorra locais de preferência da criança;

7) Mantenha alguém à espera no local onde ela sumiu;

8) Quando a criança ou adolescente for localizada, informe a polícia.

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

O Desaparecido E O Tr Fico Humano

Conforme a Lei de enfrentamento ao trá co de pessoas no Brasil – lei 13.344/2016 – que deu nova redação ao artigo 149-A do Código Penal – esta prática se caracteriza pelo ato de “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”, com a nalidade de adoção ilegal; exploração sexual; remoção de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo; ou submissão da pessoa a trabalho análogo à escravidão ou a qualquer tipo de servidão.

Quem comete trá co humano está sujeito à prisão de quatro a oito anos, além de pagar multa, e a pena pode ser aumentada de um terço até a metade se o ato criminoso for contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com de ciência.

No Brasil, quando alguém desaparece, compete à autoridade policial realizar o boletim de ocorrência, mas as investigações somente têm início se houver a suspeita de algum crime relacionado ao fato, como um sequestro, por exemplo. Não há, portanto, vínculo direto inicial entre desaparecimento e trá co humano. No entanto, se quem desapareceu for uma criança ou adolescente, a busca e as investigações devem começar imediatamente e o fato precisa ser comunicado aos portos, aeroportos, à Polícia Rodoviária e companhias de transporte interestaduais e internacionais, conforme determina o artigo 208 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que teve redação atualizada no ano de 2005.

Pouca Agilidade

O advogado Ariel de Castro Alves, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, recorda que embora o ECA determine que haja essa busca imediata, nem sempre a lei é cumprida. “Muitas vezes nem se abre o inquérito policial, os casos não são investigados e não se re- alizam as buscas”, lamenta. “Quanto mais se demora a fazer a busca, mas difícil ca encontrar a criança”, complementa.

Fundadora das Mães da Sé, grupo que em 27 anos de atuação já ajudou a encontrar mais de 5 mil desaparecidos, Ivanise Esperidião da Silva Santos também diz que a busca imediata prevista em lei não tem sido cumprida: “Ainda hoje, quando a mãe chega a uma delegacia para registrar a ocorrência de desaparecimento, ela dependerá da boa vontade do delegado. Muitas vezes, é orientada a voltar 24 horas depois, ou se o delegado faz o registro, não comunica o desaparecimento para as demais autoridades. Se a busca imediata fosse cumprida, evitaríamos a retirada de crianças do nosso País”.

Quando H Celeridade

E a agilidade na procura por um desaparecido faz toda a diferença. Em 30 de abril, uma criança de 2 anos de idade desapareceu em Santa Catarina e acabou sendo encontrada em um carro, em posse de um homem e uma mulher, na capital paulista, em 8 de maio, após uma abordagem policial.

As investigações iniciais dão conta de que a criança teria sido “doada” pela mãe – que tem transtornos mentais – a um aliciador, após este a ter convencido por meio de conversas via aplicativo de mensagens. A criança já retornou à sua cidade natal, São José (SC), onde está sendo mantida em um abrigo institucional.

“Este caso deu certo porque houve investigação, atuação integrada entre as polícias. As testemunhas foram ouvidas, se veri cou por onde a criança passou, e foi checado para quem ela foi entregue. Esse episódio mostra bem a necessidade de a investigação ser ágil, começar tão logo a informação chegue à Polícia em vez de car esperando um tempo para a criança voltar”, enfatiza Alves.

A Urg Ncia De Um Cadastro Unificado

Segundo o advogado, o fato de não existir no Brasil um cadastro nacional de pessoas desaparecidas – previsto na lei 13.812/2019, mas que ainda não foi operacionalizado – é um complicador: “O ideal seria que tão logo ocorresse o desaparecimento, a família zesse o boletim de ocorrência na delegacia, levando a foto da criança desaparecida, e esta imediatamente faria parte de um cadastro nacional, a partir do qual poderia haver a divulgação ampla dos casos, inclusive pela imprensa, o que facilitaria a procura”. Castro lembra que em alguns países, como os Estados Unidos, existe o alerta Amber, “que é um sistema nacional relacionado à busca e localização de crianças desaparecidas, bem como um cadastro nacional, com a divulgação da foto das crianças nos aeroportos, rodoviárias e rodovias, envio para os aplicativos de mensagens. E quando estes sistemas funcionam, os êxitos são grandes para a localização de desaparecidos”.

O especialista também avalia ser fundamental que haja mais scalização em veículos particulares nas rodovias brasileiras, bem como um maior controle sobre o transporte de menores de idade em carros por aplicativos de mobilidade, especialmente nas viagens de uma cidade a outra. Castro enfatiza que para o esclarecimento dos casos também é indispensável uma escuta quali cada dos familiares do desaparecido: “Seria importante que essa família recebesse mais assistência social ou psicológica por parte do Estado, pois somente ouvindo adequadamente essas mães e pais é que eles poderão ajudar nas investigações, dando informações importantes sobre onde a criança desapareceu e se havia alguém interessado em levá-la para algum lugar”.

O QUE FACILITA OS DESAPARECIMENTOS?

Irmã Eurides Alves de Oliveira, da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, tem estudado a questão do desaparecimento de pessoas e do tráco humano no Brasil desde 2006. Para ela, há três fatores principais para os casos de crianças e adolescentes: a vulnerabilidade das famílias, a violência intrafamiliar e o aliciamento feito pela internet.

A Religiosa destaca que uma parcela signi cativa de casos ocorrem em famílias cujos pais precisam permanecer a maior parte do tempo fora de casa para trabalhar ou naquelas em que as crianças desde cedo vão para a rua em busca de algum rendimento: “Na rua, estarão sujeitas à exploração laboral, ao sequestro, ao rapto para adoção irregular, à exploração sexual, entre outros riscos”.

Socióloga, mestra em Ciências da Religião e integrante da Comissão Episcopal

Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Trá co Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Irmã lembra que muitas vezes as situações de violência intrafamiliar também fazem com que as crianças e adolescentes pre ram permanecer mais tempo na rua a carem em casa “e, assim, se tornam presas fáceis de promessas enganosas”.

Entretanto, mesmo quando os pais estão próximos e há um ambiente familiar pací co, as crianças podem ser alvo das redes de trá co humano, especialmente para a adoção ilegal.

“É quase como se fosse um ritual em muitos casos. A criança, geralmente muito pequena, estava brincando em uma área aberta da casa, como o quintal, ou estava na porta de casa. A mãe se ausentou por alguns instantes, como para ver algo na cozinha, e ao voltar não a encontrou mais. Isso nos leva a deduzir que essas crianças já estavam sendo observadas e que na primeira oportunidade o sequestrador as raptou”, a rma a fundadora das Mães da Sé, cuja lha, Fabiana, desapareceu em dezembro de 1995 e até hoje não foi encontrada.

“Essas crianças desaparecidas e que não voltam geralmente são de famílias de uma classe social muito baixa. São crianças bem afeiçoadas e em sua grande maioria tem pele clara. E como são raptadas muito pequenas, se adaptam muito facilmente a um novo convívio familiar, aprendem rápido uma língua estrangeira, o que di culta que sejam encontradas”, observa Ivanise.

Um Crime Potencializado Pela Internet

Irmã Eurides a rma que a internet tem lugar de destaque como ambiente de aliciamento para o trá co de crianças e adolescentes, com os criminosos usando diferentes técnicas para conquistar a conança da vítima.

“O aliciador vai às redes de relacionamento pessoal. Para as crianças, ele se apresenta como o ‘tio bom’. Já para os adolescentes, oferece trabalhos, testes de imagem, pede vídeo para apresentar a uma agência, cria relacionamentos afetivos pelos sites e em diversos aplicativos. Alguns se valem de per s falsos, usando a imagem de artistas e de in uencers digitais para criar a nidades com os adolescentes e crianças”, exempli ca a religiosa, recomendando que os pais sempre monitorem os conteúdos acessados pelos lhos.

“Já nos chegaram alguns casos de adolescentes meninas que estavam conversando há muito tempo com alguém que achavam que possuía a mesma idade delas, mas ao marcar encontro com essa pessoa, viram que não era nada daquilo e sofreram violência sexual ou foram mantidas em situação de cárcere”, detalha Ivanise.

Na avaliação de Castro, as autoridades brasileiras não estão preparadas su cientemente bem para combater os aliciadores na internet, haja vista que, por exemplo, há poucas delegacias especializadas no enfrentamento de crimes cibernéticos. “Existem muito grupos na internet, no Facebook, no Whatsapp que tratam de compra de crianças e adolescentes, mas pouco se investiga ou se atua para o enfrentamento dessas práticas”, assegura.

This article is from: