Jornal Vaia edição 10

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Número 10 - Dezembro 2003

A prosa de Cazarré Nenhuma fome será castigada

Entrevista com Felipe Azevedo Os poetas Aricy Curvello e Rosália Milsztajn


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Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 -centro -90010-312 Porto Alegre - RS - BRASIL - Fone:(51)-9649-5087

Daniela Payeras, Emanuel Medeiros Vieira, Escobar Franelas, Fernando Ramos, Gustavo Zortéa da Silva, Köle, Laurene Veras, Luiz Carlos Amaro, Luiz Gustavo Insekto, Manuel Álvarez, Rosália Milsztajn, Ronaldo Cagiano, Sammis Reachers, Silvério da Costa, Vilmar Daufenbach, Wellington Lavareda,Yuri Flores Machado.

Número 10 Dezembro 2003

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Fernando Ramos

Em 1965, Paulinho participa com Elton Medeiros, Nelson Sargento, Nescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho, além das presenças especiais de Clementina de Jesus (então revelada aos 63 anos) e Aracy Côrtes (estrela do teatro de revista) do musical Rosa de Ouro, idealizado e dirigido por Hermínio, que resultou em dois esplendoros discos. Ainda em 65, Zé Keti organiza o conjunto A Voz do Morro, formado por ele mais Jair do Cavaquinho, Nelson Sargento, Elton Medeiros, Zé da Cruz, Nescarzinho, Oscar Bigode e Paulinho, que rendeu três discos. Com seu amigo e parceiro Elton Medeiros, Paulinho lança em 1966 o belo disco Samba na madrugada, que trazia músicas de Candeia, Cartola, Zé Keti, Hermínio, além de dois sambas seus que se tornariam célebres, 14 anos e Rosa de Ouro, esse em parceria com Elton e Hermínio. O final dos anos 60 é a época dos Festivais da Canção, e Paulinho participa de vários, sempre classificando-se entre os finalistas. A música Sinal Fechado, vencedora do Festival da TV Record, é emblemática desse período da história do país e também expressa a busca de novas concepções em termos de harmonia e melodia que Paulinho vinha fazendo. Essa é outra canção que já nasceu clássica. Em seu primeiro disco individual, de 1968, com arranjos do maestro Lindolfo Gaya, produção de Hermínio e do maestro e trombonista Nelsinho, já aparecem músicas que se tornariam clássicos de sua discografia, como Coisas do mundo, minha nega, uma parceria com Casquinha, e reelaborações de sambas de Nelson Cavaquinho, Cartola e Candeia. Em 1972, inicia parcerias com Capinam no disco Dança da Solidão, e grava mais sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento, e dá uma interpretação personalíssima para Meu mundo é hoje, de Wilson Batista. O disco Nervos de Aço, de novo com as presenças do maestro Gaya e Nelsinho na orquestração e regência, traz o piano de Cristóvão Bastos e, de forma peculiar, introduz o baixo elétrico no samba. Num clima de desilusão amorosa, nesse disco, a começar pela Nervos de aço, de Lupicínio Rodrigues, Paulinho grava a excelente Sentimentos, de Miginha, Não quero mais amar a ninguém, de Zé da Zilda, Cartola e Carlos Cachaça, dá uma emociante interpretação para Sonho de um Carnaval, de Chico Buarque, e fecha o disco com a maravilhosa Choro Negro, que já antecipava o disco de choro Memórias, que viria em 1976. Nos anos 70, Paulinho realiza alguns espetáculos, como Vela no Breu (música feita em parceria com Sérgio Natureza), Sarau (que tinha a intenção de fazer relembrar os antigos saraus de choro do início do século) e Zumbido (do disco homônimo, que tratava do folclore negro e misturava música e artes plásticas com elementos cênicos. E Sarau possibilitou a volta do Época de Ouro, conjunto de choro fundado por Jacob do Bandolim, que estava afastado dos palcos desde a morte do mestre Jacob. O disco duplo Memórias, cantando e chorando, é uma grande homenagem que Paulinho presta à música brasileira em especial ao choro e ao samba. Nele, atacando de cavaquinho, Paulinho imprime sua marca pessoal em músicas de Pixinguinha, Benedito Lacerda, Ary Barroso, Noel e Vadico, acompanhado pela flauta e sax de Copinha, o piano de Cristóvão Bastos, o baixo elétrico de Dininho, a bateria e percussão de Hércules Pereira e Chaplin, além de seu irmão Chiquinho, no bandolim, e de seu pai César Faria, no violão. Os discos Zumbido e Eu canto samba são os momentos mais altos da discografia de Paulinho nos anos 80. Após um longo tempo sem gravar, Paulinho apresenta em 1996 a obra-prima Bebadosamba, com dez músicas suas, outras de Candeia e Casquinha, e parcerias com Paulo César Pinheiro, Ferrreira Gullar e com Noca da Portela. Desse disco resultou o antológico Bebadachama, gravado ao vivo. Nele, como se fizesse uma antologia das duas principais vertentes formadoras da música brasileira, choro e samba, Paulinho faz o chamamento de todos os seus ídolos do samba e choro. O mais recente disco de Paulinho é a trilha do imperdível documentário sobre sua música e vida, Meu tempo é hoje, em que participam Marisa Monte, Zeca Pagodinho, Marina Lima, seu pai César Faria e toda a Velha Guarda da Portela. E não faltam (ainda bem) discos com músicas suas. Só neste ano Teresa Cristina, Galo Preto e Nó em pingo d’água gravaram a obra de Paulinho. Jards Macalé, que está sempre atento a tudo, gravou um belo disco, Amor, ordem & progresso, e não deixou de incluir uma de Paulinho, Roendo as unhas. Paulinho da Viola, ótimo poeta, excepcional harmonizador e grande melodista, canta e canta muito, sua música faz bem a alma da gente, é fonte de água pura, e quem beber dessa água não terá mais amargura. Saravá Paulo César Batista Faria.

Editor: Marco Marques Redator: Serpílio Atrabílis Projeto Gráfico: Gil Pires Jornalista: Victor Silva Capa: Marina - Foto e maquiagem: Cisco? Colaboraram nesta edição: Alexandre Florez, Andrade, Antonio Luiz Lopes, Aricy Curvello, Caio Porfírio Carneiro, Cristina Lopes, C. Ronald, Clarice Müller,

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AULINHO DA VIOLA é a memória viva da música popular brasileira. O coração musical brasileiro se deixou levar pelo rio de murmúrios da memória dos olhos de Paulinho. Sem mania de passado (”meu tempo é hoje; eu não vivo no passado, o passado é que vive em mim”) e sem querer ficar do lado de quem não quer navegar (”quando eu penso no futuro não esqueço o meu passado”) Paulinho acende a vela no breu da memória de nossa música popular. Sim, porque a maioria da população brasileira ainda não teve contato com esse acervo musical fantástico (de samba e choro), nem oportunidade de beber disso que é o que forma a consciência (e a cultura) de um povo. E a música de Paulinho da Viola é a voz povo. Ele bebe do samba e do choro, que são chama, que fazem história, e nos convida a bebermos juntos nessa fonte musical. Não podemos recusar esse convite. Bebamos do samba. Bebamos do choro também. E junto com Paulinho chamemos por Cartola, por Candeia, Paulo da Portela, por Ventura, João da Gente e Claudionor, por Mano Heitor, Ismael, Noel e Sinhô, por Pixinguinha, Donga e João da Baiana, por Nonô, Cyro Monteiro, Wilson e Geraldo Pereira, por Monsueto, Zé Com Fome e Padeirinho, por Nelson Cavaquinho, por Ataulfo, por Bide e Marçal, Buci, Raul e Arnô Canegal, por Mestre Marçal, Silas, Osório e Aniceto, por Mano Décio, por Mauro Duarte, Jorge Mexeu e Geraldo Babão, por Alvaiade, Manacéa e Chico Santana, e por todos os irmãos de samba e choro. Convivendo desde garoto com Pixinguinha, Jacob do Bandolim e outros grandes sambistas e chorões que frequentavam a casa de seu pai, o violonista César Faria, Paulinho acabou vivendo no tempo da consolidação da tradição da música brasileira. Essa tradição perenizou-se na vida e música de Paulinho. Em sua música a tradição do samba e do choro é revigorada. Paulinho é ao mesmo tempo a soma, a síntese e a reencarnação de vários compositores, gerações passadas (Paulo da Portela, João da Baiana, Sinhô, Noel Rosa e outros) voltam reinventadas na obra de Paulinho. Ouvindo uma música de Paulinho estamos ouvindo também todos esses compositores. Até os dezessete anos ele ouvia em solene atenção os grandes bambas que iam a sua casa, tocava violão em blocos carnavalescos e arriscava compor algum samba. Em 1959, um fato marcou a sua vida: conheceu o violonista Canhoto da Paraíba. Depois de ouvir fascinado o músico tocar daquele jeito invertido, Paulinho passou a estudar com esmero, tocar sem parar e pensar em compor seriamente. Por essa época, levado pelo seu primo Oscar Bigode, Paulinho é apresentado a ala de compositores da Portela. Nesse encontro ele mostrou a primeira parte dum samba que estava fazendo, e Casquinha que ouvia atento o jovem sambista gostou e acabou fazendo a outra parte da música Recado. Paulinho não tinha pretensão de seguir carreira musical até conhecer o poeta Hermínio Bello de Carvalho. Na agência em que trabalhava, o então bancário e estudante de contabilidade Paulo César Batista Faria reconheceu o poeta, tomou coragem, abordou-o e durante a conversa acabou revelando que estava trabalhando na composição de alguns sambas. Hermínio pediu pra ouvir suas músicas, gostou e aprovou de primeira. Inaugurava-se naquele momento uma amizade e parceria muito profícua para a música brasileira. Foi Hermínio quem levou Paulinho pela primeira vez ao Zicartola, restaurante de Cartola e sua mulher Dona Zica, na Rua da Carioca, centro do Rio. Por lá circulava o primeiro time do samba carioca, a começar por Zé Keti que, por sugestão de Sérgio Cabral, batizou Paulinho com o nome definitivo. Zé Keti foi também um dos maiores incentivadores de Paulinho, tinha o maior carinho pelo autor de Dança da Solidão e tratava-o de “meu pupilo”. Além de ser palco de antológicas apresentações dos maiores sambistas da época, o Zicartola proporcionou o contato da juventude bossanovista com os sambistas do morro.

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ABRE ABRE A CORTINA PASSADO A CORTINA DO DO PASSADO


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Sozinha Como monossílaba tônica... Independente? Auto-suficiente? Tão só como farol em beira de mar ando no singular feito palavra invariável. Não vejo por perto um “s” que faça meu plural. E as reticêncicas do meu olhar procuram nas entrelinhas um ponto de exclamação!

Poesia deve ser alavanca de mudanças. Deve construir. O país precisa ser remendado nos dois rasgões: fome e analfabetismo. Existem amantes da poesia, mas ela não consegue marido.

Tato Nós, os amantes, enxergamos a olho nu qualquer chance de paixão. Eles, os desatentos usam lentes grossas, pesadas e embaçadas e nada vêem. Gastam o tempo com discussões. Nós, de pele e tato, somos só percepção... Gatos alertas, canibais da malícia, carnívoros da sedução.

Há cartazes de “PRECISA-SE” espalhados pelo meu corpo. Tudo que minha boca não anuncia, meu olhar denuncia. E o mundo está cheio de bons tradutores.

MAGALI VIDAL DOMINGUES, gaúcha de Cachoeira do Sul, poeta e professora de Língua Portuguesa, entrevistada por Alexandre Florez.

“Eu queria que o mundo merecesse poesia”

VAIA - Tu dirias que a tua pessoa está de alguma forma sintetizada nos teus próprios versos? MAGALI - Exatamente. Os versos são reflexos de meus sentimentos e estados emocionais, às vezes, até opostos e contraditórios, porque assim são também as situações que a vida nos apresenta. Os versos espelham minha indignação com as injustiças sociais; análises um tanto agressivas das realidades antagônicas que devoram o ser humano. São faixas de protesto que gritam contra inúmeras desigualdades.

Há uma placa de “PROCURA-SE” fincada em meu coração.

VAIA - A poesia pra ti é vício ou ofício? MAGALI - A poesia não é um vício porque vivo bem sem ela, mas fico melhor com ela. Entre as duas alternativas, prefiro chamá-la de ofício, embora ela tenha traços mais leves que um trabalho. Pode ser chamada de ofício porque é uma ocupação saudável, útil e edificante. Poesia deve ser alavanca de mudança. Deve construir. VAIA- O gosto pela leitura nasce com a alfabetização ou surge como traço de personalidade, resultado da introspecção? MAGALI - O gosto pela leitura é tão interior, quase íntimo, que passa a ser traço da personalidade. Fazer poemas é um jeito de ser. É uma forma de contemplar o mundo - lendo - e ter uma postura diante dele, escrevendo. VAIA - O poeta, assim como o escritor em geral, é um recluso, um solitário? MAGALI - Não. O poeta, de tanto ter convivido com os seres em geral, passa a reagir ante a este contexto. De tanto viver em grupo ele acaba tendo dois caminhos: ajustar-se, aceitando, ou questionar, escrevendo. Se o poeta for um solitário, será ainda menos compreendido, menos lido, menos admirado. VAIA - Mário de Andrade, Bandeira, Gullar, Pessoa, Drummond e outros grandes poetas fizeram uma poesia politicamente engajada, sem perder o lirismo. A poesia deve ter utilidade para a vida social? MAGALI - Sim. Deve esclarecer, sacudir as pessoas, tirando-as do sono da ignorância. Se isso for demais, que ao menos ela sensibilize, instigue! Ela deve mexer com a estabilidade de tudo o que está enrolado pra presente, balançar o que estiver na monotonia do equilíbrio constante.

MULHER DOIS MIL Os canos que conduzem as gorduras das pias das cozinhas já sugaram centenas de mulheres. Roubaram de umas grandes amores, de outras, o brilho dos olhos. Algumas resistem, agarradas aos livros, aos colares e hidratantes. Persistem penduradas às cores da estação, quase arrastadas pelos tubos dos aspiradores. Muitas se entregam aos pesadelos, resvalando em detergentes, engasgadas pelos panos e novela das oito. Outras escorregam pela tentação da felicidade que mora em lençóis de seda. Para sobreviver, é preciso se morder de raiva, beijar com sabedoria, escolher o melhor vestido e a leitura mais forte. Dizer que vai dar tudo certo. Pular de fúria, trabalhar como um bicho, - nunca como um homem Amar os filhos, ter certeza, contornar a boca com mel e depois da luta investir tudo na posição número dezessete.

m famoso e erudito autor, cujo nome - e isso é tão freqüente - agora não me ocorre, disse: “Se o pão alimenta o corpo, os livros devem alimentar a alma”. Um tanto pedante, não é mesmo? Soa como aquelas inefáveis filosofias de almanaque, entretanto está ao acordo d’uma idéia mui antiga de um poeta patrício nosso que apregoava: “Livros à mão cheia”. Pois é, Castro Alves concordava com nosso obscuro autor. E se querem saber, eu também. Haveria mesmo a possibilidade de uma Fome Zero das letras para as almas ignorantes deste país que almeja a grandeza, mas nunca se deu ao trabalho de lutar por ela? Haveria chance para as minorias castigadas por quinhentos e vergonhosos anos de tirania burguesa advinda de uma elite social selvagem ao extremo? Ah! Eu penso que é tarde. Tarde para voltarem atrás e dizerem: Parem a violência, o tráfico, a rapinagem; porque agora nós, a minoria autocrática e safada deste feudo chamado Brasil, promete se comportar. Evitando a usura. Evitando o conchavo. Prometemos não roubar. Prometemos, por nosso esforço e mérito, manter na coleira banqueiros e cartéis que escorcham o povo. Ah, o povo! Talvez seja muito tarde para a Fome Zero da “barriga” e mesmo para a das letras. Quiçá tarde demais para qualquer remédio, já que os doentes moribundos andam feito zumbis e têm sede de vingança. Mas quem sabe? Um país que produziu Macunaíma - o estereótipo do brasileiro típico cujo bordão era: - Ai! Que preguiça...

VAIA - Qual a tua opinião a respeito dos estrangeirismos? Seriam uma poluição da língua? MAGALI - Eles são reflexos da dependência cultural em que vivemos com relação a outros povos. É a dominação que vem revestida com nomes suaves, mas que não passa de manipulação de um povo que é colônia por outro mais poderoso. VAIA - O Brasil tem conserto com fome zero ou com analfabetismo zero? MAGALI - O país precisa ser remendado nos dois rasgões: fome e analfabetismo. Cérebro desnutrido não lê. Corpo enfraquecido não assimila informações com a mesma agilidade, nem as utiliza. Ultrapassado o primeiro momento do “saber ler”, percebe-se que muitos leitores continuam cegos diante do que lêem. É preciso polir cada leitor como se faz com diamantes, para que extrapolem o ato de decifrar frases, chegando ao dom de ler com senso crítico. VAIA - Ainda existe no Brasil interesse pela poesia? MAGALI - Existem amantes da poesia, mas ela não consegue marido. Há um gosto informal, distante e descomprometido pela poesia. Ninguém investe nela, nem leitor, nem escritor. Não é vista com seriedade, e alguns a encaram como atividade dos sonhadores e desligados da vida prática. VAIA - Fala algo sobre poesia. MAGALI - Eu queria que o mundo merecesse poesia!

será castigada

Alexandre Florez músico e escritor

Nenhuma fome U

VAIA - Como despertar no aluno o gosto pela leitura em tempos de internet? MAGALI - Desperta-se esse gosto no contato direto com os livros. Só assim as pessoas vão descobrir se os apreciam ou não. Oferecendo variedades de assuntos aos adolescentes, levando os temas mais surpreendentes...

Um país inventor de samba & carnaval, caipirinha, filosofia de botequim, feijoada e, principalmente, a mestiçagem; sem falar na reinvenção tupiniquim do futebol. Quem sabe não reinventemos um outro tipo de cultura, onde os livros sejam mero elemento de decoração e, mesmo quando eletrônicos, nunca precisem ser abertos, acessados, lidos? No começo da história da impressão era assim. Ricas encadernações em couro, com detalhes em ouro e prata eram comprados pelos aristocratas só pela vaidade de possuírem bibliotecas sortidas de volumes com aparência maravilhosa. Volumes que eles e seus herdeiros nunca se deram o trabalho de abrir. Quem sabe nossa sociedade capitalista emergente, como sinal de progresso, não venha a fazer a mesma coisa? A seriedade e eficácia de todas as iniciativas, sejam na cultura, educação, saúde, segurança ou desenvolvimento tecnológico, passam por um julgamento de valor chamado caráter. Enquanto Lalaus e Vieirinhas (nome de molusco muitíssimo fértil e inoportuno) campearem nestas plagas debochando de um sistema que privilegia aqueles que roubam muito, não seremos felizes! Enquanto políticos corporativistas deixarem de lado o interesse público sem fazer caso das necessidades da população deste país, preocupados como são com salários, verbas de representação e vantagens de uma ofensiva (para o povo) aposentadoria que se lhes concede ao final dos mandatos, seremos vassalos temerosos no reino desses suseranos. E a fome de pão, a fome de justiça, a fome de ilustração, de cultura, educação, conforto, saúde, paz, todas as fomes tendem a aumentar


E ruminava a sua dor, se repetia, o grande ressentimento que afundava dentro dela. Autran Dourado

... finda a tarde. Fim da tarde e o arrebol traz presságios incandescentes. Mas a fogueira é em mim. É em mim que queimam os olhares enviesados, as dissimulações de alcova, os dedos apontados contra os meus pecados. O cenário é esta solidão em que a miséria humana tem seus oráculos, e nela vagueio como traste. É assim que pensam sobre mim: Madalena, aquela-uma que se perdeu com o doutor Carmeliano Sampaio e desgraçou uma família e foi viver em seu mundo de ferrugens, que deveria virar troféu em lupanar. E eu acreditei nele. Que iria largar mulher e filhos e viver comigo, desse o que desse, até debaixo da ponte, minha flor. E eu acreditei feito uma tonta, correndo os olhos pelo horizonte e ouvindo, ouvindo aquela conversa pra boi dormir. E hoje? - Arde em mim a dor do malfeito: madalenarrependida. Se alguém soubesse o que é essa agonia, o ter a ilusão de ganhar tudo, e nem bem o tendo, já perdê-lo de vez. Mãos e promessas todo mundo abre. E o meu rol já está cheio de histórias inacabadas, a terraplanagem de meus caminhos não se concluiu, os lençóis guardam segredos daquelas tumultuárias tardes de abril, tempo que durou minha paixão, na confusão de pernas que se entranhavam e tudo o mais não passava da infância de meus sonhos, tudo fluindo como num conto de fadas e eu nem sabia que nas roupas que mamãe cosia estavam meus remendos futuros. Nau sem bússola, é o que sou na incerta geografia de meus cansaços, ave de arribação no céu das paixões inúteis, o meu véu são os lençóis dos leitos ilícitos, na conjunção clandestina, e durmo intranqüila no sono flatulento das lembranças podres, na picardia chocalhante das alcoviteiras. Olho e me vejo: campo minado, flanco aberto ao acinte. Acordo e vejo que lá fora uma procissão de peles viciadas entoa uma homilia estranha, coço as pálpebras para ver o mundo que não quero ver, ouço um rumor de vozes da ladainha naquele mês de oferendas inúteis. Metralham-me cochichos novos, vejo a carranca de dona Zulmira costureira, o língua-solta do Orestes farmacêutico, o fanho do Camafeu, o Nico verdureiro, a Sultana do Adamastor, o topeira do Casimiro bicheiro, o turco agiota, o Mundico da Coletoria, o Rodopiano da Estrada-de-ferro, o João Bíblia, a Mirinha-desquitada, o Telêmaco da maçonaria, o Enoque das Casas Combate, a Leninha-pinta-brava, a Laura da charrete, o Anselmo cafetão, o Raulino cegueta, a Neneca-surda-e-muda, a Lucrécia cabeleireira, as irmãs Louzada indo pra missa, o caga-regras do doutor Lindolfo, a Judite fofoqueira, o besta-quadrada do Nettinho e sua arrogância recalcitrante, o Biluca do cartório, o porralouca do Acrísio, o Luís mentiroso... todos referenciais e apalermados, umas crianças inocentes pelas calçadas, uns desocupados que passam maquinalmente, a solidariedade etílica de uns beberrões no Bar Sport, a Madame Conchita, os puxa-sacos municipais, os baratas-de-sacristia do padre Lindoso, as virgens reprimidas, as carolas mal-amadas com suas roupinhas-de-ver-Deus, Lourdes e Corina, as irmãs cacarejantes com suas línguas quilométricas, Nelito e seus dentes estragados, Anastácio dando milho aos pombos, João Taioba morrendo de câncer, o pobre-diabo do Adão Corcunda, o Constantino tintureiro palitando os dentes, os olhares compridos do Eusébio da funerária mercantilizando a morte, a Tunica manicura, o Geraldinho Dicionário falando mil línguas, o Devair com saudades da ditadura (só voto no PT no dia em que urubu cantar), o Ladislau da Pensão, as beatas na janela do Colégio das Irmãs: plataforma de onde catapultavam seu esquadrão de olhares frios e marciais, verdadeiros anátemas àquela vida alvejada pelo julgamento coletivo que lhe trespassava as vísceras, um mundo estranho cruzando meu caminho... atravesso o resto da cidade sob essa conspícua serpentina de olhares, engrenagem de censuras fulminantes, tenho a sensação de estar num polígono lôbrego onde ouço sermões inúteis a conduzir cicatrizes ao altar. Um céu confuso e seu cardume de nuvens estranhíssimas fala mais do que tudo o que ouço e vejo. Aqui embaixo é um rio que me leva...

RONALDO CAGIANO autor de “Dezembro Indigesto”

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mírame las manos madre Con un recuerdo a Miguel Hernández

Campesinos, jornaleros, trabajadores del campo, nada importa la región. Que tristes son vuestras voces aunque alegre el corazón. Aceituneros altivos los que se ciegan de sol de mirar la tierra ajena. Porque las penas son nuestras y las tierras son aquellas. Y de tanto desearlas. Se llena el alma de pena, de tanto pedir trabajo, de tanto pedir jornales para pagar unas deudas. Mírame las manos madre que vengo de la traición y traigo un peso en el alma, y traigo los desengaños y partido el corazón. Vuestro canto, es el canto de los hombres que saben labrar la tierra. Es el canto que en los yunques es el canto que en las fraguas desean romper cadenas. Me viene más el dolor porque me viene de cerca, de un cuchillo conocido, de una palabra de amigo, de una mochila de penas. Me duele más vuestro dolor porque el la plaza he mordido esperando al capataz, esperando desengaños de parte del señorito. Mírame las manos madre, mírame hermano las manos, y sabrás por qué me atrevo a juzgarte, y llorar tus mismas penas. - Son las penas del trabajo. MANUEL GONZÁLEZ ÁLVAREZ Madrid - Espanha

“Não matarás”: não basta. Teu mandamento será este: farás tudo para que o outro viva. É vero sim o que quero: não me importa o estoque de teu capital, Brasil, mas tua capacidade de: amar lavrar aspirar compreender. Esse estatuto de miséria não é o nosso, e a tecnologia da última geração não me sacia: meu coração navegador quer mais. A Ética - cuspida, debochada, no reino do simulacro, Virou produto supérfluo porque não tem valor contábil. Tempo dessacralizado e sem utopia: a esperança é um cavalo cansado? A aventura acabou no mundo? Seremos apenas meros grãos de areia na imensa praia global? Habitantes de um mundo virtual neste mercado sem cara? Soará pomposo, eu sei: não deixemos que nos amputem a alma (e que acolhamos o outro). Ser gente: não mera massa abúlica, informe, com os olhos colados no retângulo luminoso de todas as noites. O tempo é apenas dos alpinistas sociais? Sou bom porque apareço, não apareço porque sou bom. Na internet a solidão é planetária, mas do abismo - fragmento - irrompe um menino eterno, e sentes o cheiro de uma manhã fundadora. (A Morada do Ser é mais importante que o poder/glória.) E o poema resiste, singra a eternidade, despista a morte, seu estatuto não é mercantil. Já não esqueces o essencial: Na estrada de pó e de esperança, acolhes o outro. EMANUEL MEDEIROS VIEIRA *Vencedor do Concurso Nacional de Poemas promovido pela Associação de Cultura Luso-Brasileira - Juiz de Fora - MG.

Não acreditava em amor à primeira vista. Mas o chicote endurecido daquele olhar fustigou suas coxas, surpreendente e imediatamente incendiadas. ANTONIO LUIZ TOUCHÊ

COMPULSÃO Quase todo o poeta tem compulsão suicida... Abre uma janela na parede da escuridão com a chave do poema e dá de face com a dor é esganado pela angústia sofre trauma no ouvido do grito o instante lhe fere a vista o ranger de dentes é uma tortura... Abre uma porta em si mesmo e lhe confrange a grande dúvida o porquê de uma estrada com o fim, o tenebroso fim de jornada, tão tenebroso e aziago mas com uma sedução de quase erotismo uma mistuta de dor e erotismo um convite de não espera. O grande pavor de lá chegar insinua e alicia o momento para agora.

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Luiz Nicanor

De Porto a Porto O caderno Das Artes/Das Letras, maior suplemento cultural e literário da grande mídia de Portugal, do diário “O 1o de Janeiro”, da cidade do Porto, em sua edição de 3/11/03, dedicou duas páginas a uma carta aberta do ensaísta, articulista e historiador brasileiro José Luiz Dutra Toledo intitulada “Para um Brasil mais Brasil”, dirigida ao poeta Aricy Curvello. Nela o ensaísta, além fazer um apanhado da vida e obra do poeta mineiro, expõe as suas impressões causadas pela leitura da “ótima e séria entrevista concedida ao jornal Vaia, número 8, de abril de 2003, editado em Porto Alegre, RS, na qual cumpriste muito bem o objetivo de fazer circular boa quantidade de informações sobre a sua vida e a sua criação”. É Vaia lá, ora pois!


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O eterno retorno

ENCONTRO

surtos

(Diamante)

POÉTICOS

A glória que foi Grécia. A glória que foi Roma.

Peço-te, tenhas cuidado ao me receberes.

Sombras de Roma, sombras de Atenas, algo haverá de restar (e restará a trajetória de uma pena. O significado de um nome.) Tudo retorna, algo revive, sombras de Roma, sombra de Atenas, em um frêmito, em lágrima furtiva, em torso nu de mármore, em um poema. ARICY CURVELLO Autor de “Vida Fu(n)dida”

carinhoso me faz bem ficar aqui sobretudo cinza encostadinho no batente da porta a observar a escultura que seu silêncio faz. o sarcasmo dos seus olhos( o marasmo dos meus.) o maldisfarçado acaso de certos gestos seu mínimo dedilhando o ar. me faz bem a frieza das rugas de sua tez impassível. sua barriga frugosa virando ventre balofo. sua sombra sem textura flutuando nos raios que rasgam as frestas da janela. me faz bem imaginar sua estada e partida; seu orgasmo e conhaque. me faz bem que você vai falar vai calar vai flanar ruminar; virar-se de costas, esboçar um sorriso. me faz bem ser assim. Ser seu assim. ser nada: apenas aprisionamento de homem.

Escobar Franelas “hardrockcoreNroll”, Scortecci, 1998

leitura solitária irradia a sombra da tristeza finita como a morte eterna resplandecem as chamas da vela acrata e dilui o beijo do corvo na ignorância dos livros

Luiz Gustavo Vargas

Se o frio do teu corpo atingir o meu se teus braços, rígidos, deixarem-me à distância, se teus olhos, opacos, me repelirem como a um cão cheio de sarnas, me transformarei em um objeto transparente que não tem alma, nem cor. Serei tal como uma pedra: inerte, inânime, lodosa; a semente que não germina; a árvore que não dá sombras, nem flor.

NUA A máscara está deposta desconhece-me eu sei tudo sobre seu espanto certamente não será a última, Já tendo me despido esqueço-a, máscaras morrem quando postas sobre a mesa.

Cristina Bastos “Decerto o Deserto”, Ed. Iluminuras

MUNDO MUNDO Rios correm de mim Navega o universo à minha volta embargo em minhas águas e gozo junto com os que gozam da enxurrada Nesse fluxo a doação nasce o movimento doce nascente fluvial ou mar salgado Ondas cardumes tubarões de afagos vestem meu mundo vasto

Ao contrário, se teus braços me enlaçarem, para que eu sinta o calor do teu colo; para que eu possa embebedar-me com o sumo da tua boca quando teus lábios os meus tocarem; serei teu escravo pelo resto da noite. Buscarei a imagem de nós dois no infinito, Para gravar, com ferro e fogo, ad eternum, em nossos corpos, em nossas almas, Dores o sabor dessa doce agonia que transformamos em sons As dores vão passageiras e murmúrios de amor. passam as dores com a vida A vida com dores vai do nada antes da vida ao nada que vem depois Vive a vida eternas dores em todo o palmilhar da vida Na vida sem dores a anti-vida que a vida é aura de dores São dores passageiras passageiras que são da vida Caio Porfírio Carneiro autor de Perfis de Memoráveis Autores brasileiros que não alcançaram o terceiro milênio

ROSÁLIA MILSZTAJN “Aqui dentro de mim”, Aeroplano Editora, 2003

DUPLA VISÃO Os teus ó(s)culos permitem-me ver estrelas! Silvério da Costa

RIO DO SONO a Whisner Fraga

poema da desesperança Vida, me arrasta pelo mar revolto Me leva para onde está minha sorte Se está mais para leste ou mais para norte Me leva para longe, de onde eu não volto A angústia é meu barco, meu mastro, meu leme O vento e as velas da minha empreitada No céu não me querem, na terra o chão treme Destino, é no mar que vai dar minha estrada Tantas vezes naufrágio, outras tantas fome e frio Sob sol implacável ou mais vil tormenta Sem ilha nem bote, só o mar, o vazio E a desesperança que a morte fomenta. Vida, me leva, me faz folha no vento O lugar não importa, me leva pra longe Quero ser só areia ou só pensamento

Guingnard

Wellington Lavareda autor de “Dívida de Honra”

Nem que eu seja só o limo da água da fonte.

Laurene Veras

Rio que lav(r)a-me: túmulo de anzóis no meio da corrente com suas placentas gigantes fazendo nascer em mim um mar de oferendas. No ovário desse leito dorme entre areias exaustas o menino-náufrago que um dia foi devorado por cardumes de sonhos. O chão sob essas águas me afaga (ou me afoga) entre mercúrio, bauxita e miasmas, mas a superfície trêmula apre(e)nde no meu silêncio as lições de se perder nos oceanos. Os rios de mim me levam mas não limpam a rugosa poeira dos meus anos.

Ronaldo Cagiano autor de “Canção Dentro da Noite” (poesia) e “Dezembro Indigesto” (contos)


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entrevista Uma coisa que o Guinga falou no show que vocês fizeram juntos no ano passado e que combinou com o clima do palco foi: “Dá pra sentir aqui uma presença divina. Isso que nós estamos fazendo aqui reunidos, público e músicos...o contato com o divino”. A música, quando acontece mesmo, daquele jeito é divino. O que é música pra ti? A minha vida é feita de cento e tantos por cento de música. Não consigo pensar em viver e estar vivo sem a música. Isso pode ser uma coisa meio obsessiva. Existem duas formas de se lidar com a música, falando profissionalmente: uma é ter uma busca obsessiva do conhecimento e entrar numa neurose pelo resultado perfeccionista. Quando se chega nesse ponto há duas possibilidades: ou a pessoa fica altamente frustrada, achando sempre que tudo que está fazendo não está pronto (conheço vários músicos que são vítimas desse processo e são muito infelizes) ou a pessoa se aplasta, torna-se auto-complacente. Por outro lado, existe aquela relação com a música que é a do prazer. Eu não consigo conceber música sem a relação séria que é a da pesquisa, e em determinados momentos me faço obsessivo, mas também tem de ter prazer. Como vais passar prazer para os outros se não achas prazer contigo mesmo? Quando te deste conta que a tua escolha era a música e não tinha mais jeito? A música começou na minha vida quando eu tinha seis, sete anos de idade. Dos seis aos doze toquei bateria. Só que esse processo foi muito experimental porque eu não tinha bateria e na época, em Uruguaiana, meus pais compravam enormes latas de azeite, de feijão, e de arroz da Argentina... Eu pegava aquelas latas, as empilhava, pegava tampas de panelas, e as agulhas de tricô da minha mãe e transformava aquilo tudo numa bateria. Ficava tocando e cantando. O que aconteceu? Meu pai achou que eu estava “louco ”. Disse: “Esse guri é pirado da cabeça”. E a minha avó, que era uma pessoa bem mais perceptiva observou: “Não, esse guri tem talento, é preciso dar uma bateria pra ele”. Aí, muito a contragosto do meu pai, minha avó comprou uma bateria pra mim. Ela durou uns seis meses na minha mão porque eu a demoli toda. Sabe como é criança, né? Então eles sentiram que o negócio era sério mesmo e meu pai me deu uma nova bateria. Assim comecei a estudar. Mas estudava apenas ouvindo. E esse foi meu contato percussivo com a música, porque eu acompanhava choro, rock, baladas, o que viesse. A minha escola foi ali. A minha relação com o ritmo, o processo começou aí. Começou com as latinhas argentinas... Sim. Exatamente. Mas nessa época tu não racionalizavas isso? Era tudo instintivo. Eu era muito fissurado pelo negócio. Depois, com doze anos, eu parei e fui estudar flauta doce. Toquei até os quatorze anos de idade. Hoje eu entendo que a minha relação e a percepção melódica se deu pelo fato de eu ter tocado esse intrumento. Porque passei a enxergar o elemento melódico na música e também a perceber toda parte polifônica. Primeiro tive um contato terrestre, pois o ritmo é muito terra, depois um contato mais aéreo, que é a melodia. Quando se percebe a existência de uma estrutura no meio disso, que é questão polifônica, a harmonia, se inicia a perceber isso com clareza. Virei violonista a partir daí e não parei mais.

Felipe Azevedo

por Fernando Ramos Numa tarde nublada de Domingo, o violonista, compositor e arranjador Felipe Azevedo, de maneira descontraída, empunhou o violão e, alternando-se entre a execução de músicas inéditas e um e outro trago de mate, concedeu longa entrevista ao Vaia. Nela, Felipe fala de suas origens, do seu início na música, de encontros musicais e define seu conceito de brasilidade.

E como concluíste esse aprendizado? O caminho desde o início com as latinhas até o estudo acadêmico da música, como foi? Quando eu senti a necessidade de aprender, foi uma coisa muito boa e intensa. O início, mesmo, foi com as revistinhas de cifras. Pegava o violão e ficava horas com ele nas mãos, era algo masturbatório. Mas aí comecei a compor, com mais ou menos 15 anos. Logo em seguida, conheci um músico do exército que era maestro. O cara era arranjador e tinha o ouvido absoluto e foi, de fato, o meu primeiro professor de música. Ele chegou e me disse: “Tchê, tu precisas aprender a escrever as tuas músicas, ver o que estás fazendo. Eu vou te ajudar”. Aí começou a me ensinar. Fui tendo aulas com ele. Estudei teoria, aprendi muita coisa com ele. Uma coisa que aprendi foi a questão do arranjo. Ele me pedia pra ouvir as músicas prestando atenção na linguagem e composição de cada instrumento, onde está a bateria, o baixo, o que cada um está fazendo. Aos dezoito anos, comprei um curso por correspodência pra aprender a ler partitura. Hoje, falo de todo esse processo com uma visão mais abrangente, na época isso era uma procura. Eu fazia de forma muito intuitiva. O estudo foi fundamental, porque passei a sistematizar o meu processo de criação e a registrar o meu trabalho. Quais violonistas tu ouvias à época? Tinha alguém que era referência pra ti? Sim. Foram dois e fundamentais: Baden Powel e Paulinho Nogueira. Quando eu ouvia o Baden, ficava abismado. E o Paulinho, pela questão da harmonia, a delicadeza ao tocar. Isso pra mim foi muito importante. Depois, conheci o rock progressivo. Eu era um gurizão na época, ouvia muito rock. Um grupo que curtia muito era o Yes, ouvi tudo deles. Foram marcantes porque tinha um violonista sensacional, o Steve Howe. Por causa dele, comecei a me interessar pelo violão erudito; o violão dele é muito erudito. Eu só fui ter um professor mesmo há pouco tempo, porque na faculdade cada professor tem uma formação diferente. Pouco antes de entrar na faculdade, descobri um cara que repensou todo o estudo do violão, o Abel Carlevaro. A escola dele é a grande escola no mundo do violão, hoje. Mas alguns de meus professores vinham da formação da escola tradicional e outros, afinados com Abel. Na faculdade o estudo do método do Carlevaro se deu de forma esfacelada. Apenas há um ano que realmente estudei e assimilei o seu pensamento passando a estudar com o Eduardo Castañera. Que análise tu farias da evolução do teu trabalho de compositor e do teu estudo do violão? Eu não chamo de evolução, porque acho que aquilo que fiz antes não considero pior do que o que faço agora, o que houve foi uma metamorfose. Muita coisa que fiz há muitos anos, mantenho até hoje. Então, o que fiz foi sistematizar melhor as coisas que faço hoje, e também sistematizar o que penso que seja o caminho a seguir, saber onde estou hoje. Saber do meu potencial e do meu limite.

Como um natural da fronteira, cremos que teus primeiros contatos com música foram com as coisas regionais. O que representou ouvir os músicos e folcloristas Lúcio Yanel, Cenair Maicá, Noel Guarany, Pedro Ortaça e Jayme Caetano Braun? Vamos por partes. A influência da fronteira no meu trabalho aparece principalmente quando tomo contato com elementos regionais do folclore do Rio Grande do Sul. Estabeleço uma divisão muito clara, faço uma seleção. Uma coisa é o folclore, elementos do folclore, outra coisa são as ramificações destas manifestações.

Os festivais da canção te deram muita experiência musical? Eu toquei três anos como músico acompanhante em festivais, daí aprendi a tocar vários ritmos regionalistas e passei a vivenciar essa história. O que eu acho legal no RS são as coisas que existem por si só, sem precisar de ufanismo, acho que o folclore é isso aí. Não suporto ufanismo. Achar que a música e a cultura do estado têm que se colocar de uma forma distanciada do resto do Brasil é bobagem. E a relação da grossura, da caricatura do gaúcho me faz achar isso ridículo, feio. Não me diz nada. O que me agrada na cultura regionalista é o elemento folclórico. Passo a ter contato com o lado bom disso a partir da Califórnia da Canção, onde conheci a obra dos Tapes, um grupo que trabalhava a questão da língua indígena, o guarani, e sua influência na formação do nosso vocabulário. E a importância do índio na história do RS. Isso me agrada. E tive também contato através da fronteira com a obra do Piazzola, que me influenciou muito no modo de pensar a forma musical. E quem representa o folclore gaúcho hoje? O folclore está aí entranhado na cultura, em tudo que vivenciamos. Saber enxergar estas manifestações sem ufanismo é o processo de cada um. E os próprios CTGs não acabam colaborando com uma certa exacerbação desse ufanismo? Acho que isso é muito internalizado, uma atitude errada. Por exemplo: vejo gaúchos se auto referenciarem em relação a outras manifestações regionais do Brasil num tom de supremacia, superioridade, quando na verdade o tom da troca é que deveria estar permeando estas relações. Somos brasileiros, temos que compartilhar as culturas. Tem um outro ponto que eu considero importante, e foi por isso que fiz a composição Anu pássaro preto. A temática é regionalista e inspirada no canto de um pássaro da região platina, o anu, que está em extinção e tem um canto triste. Também existe a Dança do Anu no folclore gaúcho que é muito lenta. Peguei a temática da música, trabalhei a letra e botei um ritmo moçambique e afro-cubano. Acho que existe uma coisa assim, talvez pela proximidade com a Argentina ou pela cultura açoriana, uma coisa meio de tristeza. Muito forte na cultura e no pensamento gaúcho. É legal a gente mexer com esses paradigmas. Gosto de tratar dessas coisas, de provocar. O artista tem também essa função fomentadora. E quem ouvir o meu trabalho e gostar, ótimo, meu recado então estará dado. Uma outra coisa: percepção de brasilidade, dizer o que é ser brasileiro hoje é muito complexo. Me considero compositor de música brasileira, vejo que cada região tem as suas singularidades, e que suas produções têm muito de ritmo, muito a ver com a mestiçagem brasileira. Fazer música brasileira hoje, para mim é trabalhar com as matrizes brasileiras. Em meu próximo disco, Percurssivè, estarei abordando isso.


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E o samba do RS? Por que ele não está no nível do samba carioca, baiano ou paulista? Eu discordo disso. Uma das melhores coisas do país é a diversidade, a do samba também. Nós temos a nossa forma de tocar o samba. O Giba Giba tem uma batida estupenda, um jeito de tocar samba muito bonito. Acho que o samba gaúcho é menos explorado e cultuado que o samba do resto do país. Não vejo o samba daqui, o de SP ou da Bahia menos qualificado que o carioca. Tem uma coisa mal resolvida nisso: o Brasil não precisa se relacionar com o centro do Brasil de forma colonialista, tem sim é que compartilhar diferenças. A bossa-nova bebeu na fonte do samba e a tropicália incorporou elementos da bossa nova. O samba se encaixa onde? O samba, como tudo no Brasil, é um resultado híbrido. Por que antes do samba, o que surgiu? O choro, oriundo da mescla de vários ritmos. Um estilo que se forma e que tem algumas peculiaridades: o virtuosismo e a capacidade de improvisação do músico calcados em vários ritmos como habanera, lundu, maxixe e polca. Depois, outros ritmos vieram se aglutinando, como o baião. Mas o samba é a mescla do maxixe, lundu, polca. Esses três ritmos influenciaram o surgimento da célula do samba. A questão mais importante a ser frisada é a da pureza. Não existe nada puro no Brasil. Nós somos síntese de mestiçagem. A lição que podemos dar ao mundo é assumir a nossa mestiçagem. Felipe, explica melhor a questão das matrizes. O que eu critico é o purismo na música brasileira. Tem pessoas que acham que é possível determinar o que é e o que não é MPB. Isso não dá. MPB é uma sigla que surgiu lá por 66/67, e que antes era música popular brasileira nova-MPBN. Elis Regina e Zimbo Trio começaram a designá-la assim, quase como uma tentativa de fazer algo diferente da Bossa Nova. Elis queria fazer algo novo, tem um disco dela chamado Samba eu canto assim, em que aparece essa postura. Ela sempre se posicionou, assumindo claramente as suas idéias, sempre gostei disso nela. Tem que ter atitude, e não é só o rock que tem atitude! A MPBN era uma tentativa de aglutinar a idéia de uma nova música brasileira. Por outro lado, os defensores da MPB tentavam transfomá-la em estatuto. Após, vem o Tropicalismo, e faz uma virada na música brasileira, inserindo a guitarra elétrica e a coisa pop, algo que era inevitável, porque era um fenômeno mundial. Aí surge o pensamento: o cara que faz determinada coisa é MPB, outro que não faz , não é. Outro dia, ouvi o Alceu Valença definindo o que é MPB, segundo ele: “é o cara que toca ritmos que se originaram no Brasil”. Acho que é isso. A diferença é o tratamento que se dá para as matrizes, porque tu podes usar um determinado instrumento musical que não é brasileiro ou linguagens estrangeiras aplicadas às matrizes e fazer música brasileira. Alguns críticos dizem que a MPB é uma escola, um estilo que tem suas limitações e lacunas. E eu concordo. O meu trabalho é de música brasileira. A primeira gravação, O olhar mouro, tem alguma coisa de blues, disso e daquilo. Já no Cimbalê , há elementos da cultura africana e muitos ritmos do mundo, e que tem hibridismo com coisas fotos Sete Peles

O violão de sete cordas, da forma como ele é usado no Brasil, é percussivo... Na verdade é um elemento contrapontístico no choro. Ele passou a ser usado dessa forma a partir do Dino Sete Cordas, que foi um cara que tocou muito tempo com o Pixinguinha. Ele passou a tocar assim devido ao contato com a concepção harmônica do Pixinguinha, que era outro gênio, e a pensar o contraponto polifônico, o uso do contraponto do violão de sete cordas como elemento contrapontístico. Então, comecei a fuçar esse negócio. Fui ouvir a obra do Garoto, que na década de trinta, quarenta, foi músico acompanhante da Carmem Miranda. O Garoto foi um grande achado, pois influenciou toda Bossa Nova. Influenciou profundamente João Gilberto. Também influenciou um cara que eu acho um gênio, o Radamés Gnatalli e, pelo convívio, ele influenciou o Villa Lobos. A partir daí, comecei a me dar conta que a percussividade expressa em Baden Powell também foi influenciada por Garoto. Também passei a ter contato com o trabalho dos chorões: cheguei no João Pernambuco, e num monte de caras. E vi que a percussividade do violão brasileiro é uma característica que começa quando se define a forma do choro brasileiro, quando se inicia a tocar o Lundu no violão- o compasso das notinhas dos Lundus. Aí surge essa coisa de ritmar no violão.

Quem é que dá o tom pra música brasileira hoje? É João Gilberto, ainda? Eu acho que o João Gilberto é um cara que representa a bossa nova, mas é mais do que isso: representa um estilo de tocar. Ele foi o grande cara que sacou isso. Uma forma de pensar o samba, uma recriação do samba. Quando ele inventa aquele jeito de tocar, uma outra batida, estabelece uma ruptura com a forma do samba, uma coisa mais enxuta da célula do samba, sem negar o passado. O que quer dizer isso? Que a música continua a partir daquele processo, faz um corte, porém estabelece a sua maneira de pensar o samba, e aquilo se transforma em um novo estilo. O Tropicalismo tinha esta mesma preocupação: estabelecer a ruptura, porém sem negar o que já existia, simplesmente entender sob um novo foco várias coisas que estavam acontencendo no Brasil. Eles criticavam muito a música de protesto, que nunca propunha uma solução para os problemas. Mas, enfim, acho que ninguém dá o tom. Existem várias tendências na música brasileira hoje. Existe uma tendência mais voltada para o trabalho de raiz, e existem coisas mais voltadas para a linguagem pop. A nova safra da música brasileira: Lenine, Zeca Baleiro, Pedro Luis e a Parede, Chico César, Simoninha, Rita Ribeiro... Esses nomes são o que há de melhor hoje? Acho que não. Eles conseguiram uma exposição. A característica comum a todos eles é a ênfase dada à linguagem pop nos seus trabalhos. Num ou noutro estilo usado, aparece o lado pop misturado com algum elemento das matrizes brasileiras. Hoje, o que há de melhor na música brasileira é o Guinga. Ele é o novo e o gênio.

Violões famosos... Raphael Rabello, Turíbio Santos, o próprio João Bosco. Tu notaste o trabalho dessas pessoas? O meu contato com o violão brasileiro se deu a partir do Paulinho Nogueira e do Baden Powel, mas sobretudo, em termos de composição, de tocar obras assim, eu fui ter contato com Toquinho e Vinícius, que pra mim foi um achado. Achava genial aquela dupla, acho até hoje. Conhecendo a obra do Chico Buarque, pensei a questão harmônica, a harmonia do Chico eu acho do caralho! Gosto muito do Ivan Lins, um cara que teve um peso muito forte em questão de harmonia. Comecei a pensar em termos de ritmo quando ouvi a obra do João Bosco. Ele tem dois grandes momentos: antes do Cabeça de Nego, uma coisa mais de sambista, e a partir desse disco, quando ele começa a trabalhar a percussividade do violão de outra forma. Ele passa a ter contato com a cultura árabe-afro-cubana, e passa a cantar e tocar de outra forma, desenvolvendo no violão a percussividade, que até então eu nunca tinha ouvido. Cheguei a acreditar durante algum tempo que o João era o grande inventor disso no violão brasileiro. Foi quando ouvi ele mesmo dizer que tinha aprendido isso com o Caymmi. Então fui atrás da obra do Caymmi. E lá está a percussividade...(Executa como exemplo uma canção praieira do compositor baiano).

Guinga é conhecido há pouco, mas compõe há 30 anos. Seria um exemplo da exclusão do artista pela indústria musical do Brasil? Ele teve uma série de circunstâncias que o ajudaram. Ele é divulgado por seus méritos e esforços próprios, mas não toca em rádio, exceto nas culturais ou públicas. Como Guinga conheceu o teu trabalho? Foi num primeiro workshop que ele deu em Porto Alegre. Havia lá uns 80 músicos e ninguém se encorajou a tocar. Então eu fui o primeiro. Depois que toquei “Tema para um compasso de espera”, uma modinha, ele ficou impressionado com a música e me perguntou quando a tinha composto. Falei que havia sido em 1989. “-Você tem outras assim?” -Tenho, disse. “Esse Brasil é uma caixa de surpresas”, respondeu. (Felipe executa “Tema ...”)

E teu encontro com o percussionista Marcos Suzano? Foi parecido como ocorreu com a Mônica Salmaso. Eu sempre imaginava ele tocando alguma música minha. Tenho uma grande admiração pelo seu trabalho desde o Olho de peixe. Quando ele veio a Porto Alegre para dar um workshop, me inscrevi e levei o meu violão. Todos de pandeiro e só eu com o violão. Mas fui mesmo para abordá-lo, a minha intenção era essa. Fiquei na primeira fila, com o violão colocado em pé à minha frente. Durante um dos intervalos, ele falou: “Bem, tem outras pessoas que trouxeram outros instrumentos e acho que também querem mostrar seu trabalho.” Foi a deixa. Peguei o violão e toquei Balaio de cordas. Logo ele estava com o pandeiro tocando ao meu lado. Repetimos, a seu pedido.


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entrevista - conclusão entrevista/conclusão São duas linhas que representam a música brasileira aqui no RS. Uma é aquela em que aparecem Nelson Coelho de Castro, Kleiton e Kledir, Vitor Ramil, Gelson Oliveira. Na outra, tu estás incluído. Cita mais alguém. Cláudio dos Santos, Serrote Preto, Otávio Segala, Alexandre Florez, Camerata Brasileira, Marcelo Delacroix, Batuque de Cordas, todos daqui de Porto Alegre, e com certeza há outros tantos espalhados por este estado. Têm trabalhos que vão além da cena pop, há uma diversidade cultural e produção muito grande. O que talvez falte é acesso do público, parece que há uma barreira separando esses compositores de seu público. Outra coisa que dificulta é que não temos aqui uma indústria cultural, no bom sentido, que esteja estabelecida. Por isso esta luta muito árdua do artista para conquistar o seu espaço. Muito da cultura do país tem a ver com a música. Se não houver espaço para a música verdadeiramente brasileira, a nova geração irá crescer sem ouvir um Luiz Gonzaga, um Jackson do Pandeiro, um Cartola, um Pixinguinha, um Ary Barroso ou um Tom Jobim. Tu pensas que esta geração estará fadada a ser carente culturalmente? O que aconteceu na indústria cultural brasileira foi ruim. Surge a gravadora, a indústria musical, o produto, o mercado, e aí, todos pensam: “o que é que vamos vender?” E a música no país tem muita importância, pois ela tem a ver com a identidade cultural. No momento em que ela é sufocada e até mesmo massacrada em prol de outra cultura ou do mercado, quem perde é o país.

O que deve ser feito para que a música brasileira seja reintroduzida nas rádios do país? A indústria tomou conta mesmo. O que vale é o jabá. Quem paga, toca, quem não paga, não toca. Então, tu tens que desenvolver os teus próprios mecanismos de divulgação e inserção do teu trabalho. São paliativos que tu tens que descobrir e construir para furar este cerco. Se não for assim, estás ralado. Tu te consideras um seguidor do estilo musical do Baden Powel, do menestrel que é um cronista da sociedade em que vive? Eu me considero um observador, não sei se faço crônica, mas eu procuro me colocar como alguém que enxerga e reflete sobre o seu país e sobre o mundo. E quanto à postura do músico em relação a usar a si próprio como instrumento divulgador e educador. Tu acreditas que o músico cumpre um papel fundamental na educação das pessoas no Brasil? Isso é uma decisão muito pessoal. Tem músico e compositor que se liga nisso, outros que não estão nem aí. Procuro não engajar minha produção num pensamento político, muito menos no político-partidário, porque no momento em que tu fazes isso, estarás engessando o teu trabalho. A função principal do artista é ter uma proposta estética, um propósito de fomentação, de questionamento.

disco grafia

IDENTIFICAÇÃO Eu me diluí na alma imprecisa das coisas. Rolei com a Terra pela órbita do infinito, Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas E percorri o espaço no sopro do vento; Marulhei na corrente inquietadora dos rios, Penetrei na mudez milenária das montanhas; Desci ao vácuo silencioso dos abismos; Circulei na seiva das plantas, Ardi no olhar das feras, Palpitei nas asas das pombas; Fui sublime n’alma do homem bom E desprezível no coração do mesquinho; Inebriei-me da alegria do venturoso; E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz. Nada encontrei mais doloroso, Mais eloqüente, Mais grandioso Do que a tragédia cotidiana Escrita em cada vida humana.

Arco-íris no céu. Está sorrindo o menino Que há pouco chorou.

De grinalda branca, Toda vestida de luar, A pereira sonha.

A fragância do lirismo. Assim poderíamos falar da poesia de Helena Kolody. Poética matizada de tons oníricos e telúricos, sensibilíssima na percepção do mundo, revela peculiar visão lírica do universo. Helena, evocando a infância transfigurada pela nostalgia e memória, não separa a vida da poesia. Católica de fazer sinal da cruz com os três dedos, ela busca a ascensão espiritual. De forte inspiração religiosa, seus versos simples e de alto rigor formal sintetizam os significados da passagem do tempo, da busca de um sentido elevado para a vida, da compreensão do sofrimento humano e da nostalgia do barro primevo. Sua poesia capta as coisas pequenas e delicadas do cotidiano de um ângulo muito particular capaz de nos mostrar novos sentimentos sobre a vida. Filha de imigrantes ucranianos, nasceu no Paraná em 1912, dedicou-se ao magistério em escola primária durante quase toda a sua vida, publicou a maioria de seus llivros por conta própria (só veio a ser editada profissionalmente nos anos 80 pela Criar Edições, graças ao empenho do escritor Roberto Gomes) e foi uma das primeiras a praticar o haicai no Brasil. Alheia aos holofotes da celebridade e à autopromoção, ainda não é reconhecida como deveria e merece não se sabe porquê. Helena Kolody acredita no ser humano e sobretudo no poder da palavra que para ela deve ser “uma luz no mundo, um instrumento de paz e fraternidade”.

CD “Percussivè” (inédito) Trilha do espetáculo “Lixo, lixo Severino” (2003)

TEMPLO DE OURO O coração da gente é como um templo de ouro, Onde arde a chama azul de uma eterna ansiedade E sobe em espiral o incenso dos ideais. Soberbo, ardente e claro, o sol da mocidade Inunda-lhe de luz os pálidos vitrais. Ingenuamente, um deus alçamos ao altar, Julgando-o tão perfeito, assim, como o sonhara, Num arrebatamento, a nossa fantasia: Figura singular, duma beleza rara, Aquele ser ideal que o sonho prometia. Não tarda o vendaval atroz do desengano... Nosso ídolo imortal, de tão perfeitos traços, Vacila sobre o altar e tomba em mil pedaços... O que julgamos ouro, é simples barro humano! Na amarga decepção nossa alma desespera, Embriaga-se de dor e clama e se exaspera... Vai-se o rancor, a dor se acalma, cessa o pranto. A gente recompõe o ídolo partido, Coloca-o sobre o altar do templo sem rival, Para amá-lo, depois, sem mágoa ou pessimismo, Não mais como se fora um deus do paganismo, Mas como se ele fosse apenas um mortal.

Perspectiva Olha pela janela azul do meu olhar Sereno e transparente, onde se esconde calma A misteriosa esfinge eslava que é minh’alma. Mergulha os olhos teus no mundo em perspectiva Que se adivinha atrás de uma pupila esquiva. Verás, por certo, desdobrar-se alma adentro, Na paisagem agreste, a estepe soberana. E para que não pise a estepe imaculada O duro sapatão de algum mugique alvar, Eu ando sempre alerta e trago bem guardada A paisagem de neve oculta em meu olhar.

Fernando Ramos

ARCO-ÍRIS

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DIA A D IA CADA DEDECAD ESIA POESIA A POA

Concede-me, Senhor, a graça de ser boa, De ser o coração singelo que perdoa, A solícita mão que espalha, sem medidas, Estrelas pela noite escura de outras vidas E tira d’alma alheia o espinho que magoa.

Mas as idéias colocadas no disco já estavam definidas na tua cabeça? Sim. Esse processo eu já vinha fazendo desde o Cimbalê. Eu estava passando por um amadurecimento em relação à brasilidade expressa no meu trabalho. Refletia sobre isso lendo muito autores antropólogos, sociólogos e etnomusicólogos brasileiros. E dois trabalhos foram cruciais nesse processo: o Identidades e a trilha do espetáculo Lixo, lixo Severino. Porque ali eu passei a enxergar a questão do enxugamento sonoro na minha música, e a questão das matrizes brasileiras.

Demo Fita K-7 “Olhar Mouro” CD “Cimbalê”(1998) CD “Identidades”(2002), com Olivier Forel

PEREIRA EM FLOR

PRECE

Fala do cd Identidades, gravado em parceria com o acordeonista suíço Olivier Forel. Seria definido como world music? E o que é world music? O Identidades não estava planejado. Ele resultou do encontro com o Olivier e fiquei muito feliz com o resultado, da forma como foi produzido. Foram apenas quatro noites de gravação e não teve stress. A gente fez com o maior prazer. A faixa Vorotan, do compositor africano radicado na França Solo Coulibaly, que nem entraria no disco, foi a única que nós gravamos simultaneamente, no estúdio. E, sim, ele pode ser definido como world music. Para mim, world music é a música feita com as várias matrizes do mundo: o flamenco, o tango, o reggae, etc, misturadas com o elemento de cada país. A proposta do Identidades é isso daí.


Carta aberta a um governante honrado ou VocĂŞ tem fome de quĂŞ?

Ronaldo Cagiano - ronaldo.cagiano@bol.com.br

veroverbo@ibest.com.br

Clarice Muller

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A prosa visceral de CazarrĂŠ T


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Andrade

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HORIZONTAIS - 1- Que anuncia mau presságio (pl.) - Pron. Pes. 1a. Pes. Sing. - 2- Bebida dos deuses - Raio(símb.) - Consoante3- Dissidentes cristãos seguidores de Martinho Lutero- 4- Nota musical - Artigo Def. Fem. Sing. - Escola Superior de Ilusionismo Político(o Congresso Nacional) - 5- Fósforo(símbolo.) -Dedicado6- Mulher acusada de crime - Planta da família das liliáceas Élio Rodrigues, aposentado -7- Absorve pelas vias respiratórias Pouco vulgar - 8- Dispositivo usado para localizar/ sondar alvos Partia - 9- Busca, procura - (...) Calvino, escritor - 10- Plano de sustentação de aeronaves - (...) Monteiro, general golpista do Estado Novo(30-45) - VERTICAIS - 1- Associação Nacional dos Larápios - 2- O deus maior do Olimpo - (...) Athanázio, escritor catarinense - 3- Relativa a peixes - Mamífero ungulado da ordem dos Perissodátilos - 4- Ainda, também - Auxílio em dinheiro dado a estudantes ou pesquisadores - 5- Indivíduo libidinoso, sensualPonto (...), local de grande sensibilidade erógena do corpo da mulher - 6-Fala em público - “(...) Cid”, clássico do cinema épicoA cidade maravilhosa - 7- Indeferir - Forma oblíqua do pronome da 2a. Pes. Singular - 8- Guimarães (...), escritor - Criadas - 95a. letra do alfabeto - Relativo aos astros -10- Cardinal designativo da unidade - Cada orifício da pele - Marca de absorvente.

Volta na quadra esde pequena a Marcinha mostrava a sua falta de jeito com a vida. Ela morava no apartamento em frente ao meu e depois do almoço eu ouvia os passos apressados da Marcinha e uma batucada insistente na porta de casa. - Vamos descer? - mesmo sem vontade, eu descia. Lembro que nossa diferença de idade não passava de uns dois anos, ela havia nascido depois de mim. Não importava, já que ela liderava nossas brincadeiras. Na época eu tinha uma obsessão por sapata, invarialmente substituída pela brincadeira preferida de Marcinha: dar a volta na quadra. Nosso ponto de partida era em frente ao prédio onde moro, daquele ponto, dali cinco ou dez minutos, dependendo das aventuras e percalços que encontrássemos em nossa incursão, voltaríamos ao ponto de partida/ chegada. O que excitava a mente de Marcinha é o fato de que nas voltas nas quadras o ponto de partida é o mesmo da chegada e mesmo que invertêssemos o sentido de nossas caminhadas o efeito seria o mesmo. A única regra da brincadeira era andarmos ombro a ombro, lado a lado, durante o trajeto. Havia outra regra não declarada que consistia em a Marcinha falar sem parar e eu escutar. Ela fantasiava as mais diversas situações, discursava seus projetos. Um dia ela gostaria de ser enfermeira, em outro “fabricante de filmes” e às vezes carregadora de circo, já que para Marcinha a importância de uma profissão media-se pela quantidade de aventura e vida encerrada nela.

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Na nossa quadra, lembro-me bem, havia uma casa assustadora ao nosso olhar infantil, e por extensão a sua moradora também o era. Tratava-se de uma senhora, que atura a nossa diversão diária de tocar a campanhia, esperar ela abrir, mirarmos aquela face enrrugada e sairmos correndo e gritando: - Velha bruxa! - até o nosso ponto de partida/ chegada. Durante todos aqueles anos de volta na quadra, Marcinha me obrigava a colocar a mão no seu peito para sentir a disparada de seu coração. Eu adorava aquela encenação diária, a expressão esbaforida de Marcinha, aguardando minha sentença: - Marcinha, teu coração vai saltar pela boca! - depois de ouvir minha preocupação faz-de-conta, ela discursava superior: - Isto que eu não usei nem dez por cento da minha força! outras vezes eram cinqüenta por cento. Nunca descobri como Marcinha estipulava suas percentagens. Depois de alguns anos, já na adolescência, Marcinha aflorou majestosamente para a vida e sua beleza e presença de espírito murchavam-me diariamente. Ela queria devorar tudo e o tudo tinha nome: Marcelo, que morava pouco antes do ponto partida/chegada. Apaixonaram-se, mas depois de algum tempo, Marcinha voou. O ciúme é inerente aos homens, e a memória é como uma esponja encharcada que por mais que se aperte não revela toda água de seu poroso interior. Não lembro quando separamos nossa amizade, talvez após a morte do pai de Marcinha, quando ela e a mãe mudaram-se para o subúrbio, onde o aluguel era mais barato. Um dia desses mirei Marcinha de soslaio, era madrugada, em um bairro mal afamado, ela não me viu. Eu estava em meu carro e a vi pelo espelho retrovisor, ela andava apressada contornando a esquina. Retornei, dando a volta na quadra, estacionando o carro a uma distância segura. Marcinha caminhava de um lado para o outro. A danada inventou uma nova brincadeira, onde os pontos de partida/chegada estavam separados. Quando a saudade de Marcinha aperta, dou uma volta na quadra e nosso ponto de partida/chegada, peço ao Marcelo que encoste sua mão no meu peito e fale mesmo que de faz-de-conta: - “Marcinha, teu coração vai saltar pela boca!”

YURI FLORES MACHADO

ser+SER Como ser o negro mais esclarecido sem ressuscitar o ser Castro Alves na negritude à sombra desiludida a esperar nascer que a morte salve, nesse retumbar letárgico de lírios a sepultar o negro X ativista, antípodas dos mais antigos martírios presente em todo eu maniqueísta... Emerge do sonho de claro segredo ver em negro eis a solução: mudar a premissa, amar o sujeito do medo Requer sangue na cor, até na discórdia abre internos caminhos pra reparar nesta vida ou na morte, negros acordem... LUIZ CARLOS AMARO

reservamos a calma para momentos mais graves olhem os monstros da espécie humana eles não diferem fisicamente de nós algo do inferno rompeu o insconsciente natural testículos com patas romanas é o exemplo que dou manobro a atenção para o mal que ocorrerá amanhã sintonia que arranco da negação sobreposta da moral com a vendedora de pipocas na praça de uma cidade de interior seus artifícios no primeiro ato depois que levamos a sério a falta de troco Hitler repele o ser adulto que se repete Stanlin é uma espécie de sepulturas com curvas que só servem aos que foram mortos sem rosto todos estavam esticados de repente mas basta ficar em casa com o “alter ego” clandestino de uma população em baixa até que surja um naturalista que entenda da alma esquerda e direita são simplesmente datas

C. RONALD “A razão do Nada” Scortecci, 2001

INSETICIDA COMICS Serial Killer Tupiniquim

Planeta Inseck Thox

Sanderson

Luiz Gustavo Insekto


V VI

V

11

ânsias Róseos mamilos espadados torturantes pontos paralelos avante, marchando empinados soberbos, tentadores e belos. Bússola que entesa e desnorteia mira, desalinha e apruma sufoca, levanta e tonteia alonga, entorta e desarruma.

As Invasões Bárbaras Produção: Canadá/França, 2003 Direção: Denys Arcand

Sensíveis cones convexos mirante dos olhares ardentes condutores óticos do sexo termômetro visual dos carentes.

Uns dizem que é um filme sobre a crise da pós-modernidade. Outros, que é sobre a morte, sobre a moralidade, etc. Todas as alternativas estão corretas, mas são insuficientes. O intelectual conversa com a freira, e depois de bombardeá-la com informações sobre as atrocidades cometidas pela humanidade na tentativa de ilustrar o “depoisnãomevenhafalaremdeus”, a irmã aterrorizada e com os olhos aquosos sentencia: -É por isso que creio que deve haver alguém para nos perdoar. E o ateu desabafa: -Você é uma afortunada. Mas no momento da maior solidão, o momento de entregar o óbulo ao barqueiro sombrio o descrente pode não ter deus, mas tem amigos fiéis e apaixonados por ele e pela vida. E é essa comunhão que ajuda o homem a aceitar a morte como uma possível amiga já que inadiável. As invasões bárbaras menciona os tabus, a mesquinhez, o amor, a história, a filosofia, a literatura, a política, a religião e o abandono. O abandono de deus, o abandono das utopias, o abandono de nós mesmos. A nossa perplexidade diante do mistério de se estar vivo ou não. Todas as antíteses somos nós. Somos o belo e o terrível numa mesma delicada lâmina. Sem dúvida é um filme sobre nós, escravos e senhores do mistério, perdidos no escuro de mãos dadas, cantando a canção do tempo.

Estavam deitados lado a lado. Saciados, momentaneamente. Guerreiros desobrigados após intensas batalhas. Ela lhe olhou diretamente nos olhos e perguntou: “Você me ama?”. Ele, sem olhar para ela:“O que é o amor?”. Ela se crispou, sentindo o friozinho da madrugada arrepiar sua súbita nudez. *Aldir Blanc

Considero perigosas estas rondas por Whitechapel, Gomez.

...são os pombos!

A Ronda Komiquase

.. e la. uas de e i q s a v eu õe Lá em orr s... t t a On uns r, m i a c m co açú

Já sei. Foi a mesma coisa comigo, semana passada. A danada acorda de repente e devora até as migalhas caídas na mesa da cozinha...

“A justiça brasileira não é lenta. O crime organizado é que é mais rápido. E paga bem.” JOÃO CARLOS ROCHA MATTOS Juiz Federal preso por vender sentenças

Antonio Luiz Lopes (Touché)

Depois da morte do Estripador, o único perigo, Watson, nas madrugadas de Whitechapel...

arte:

Daniela Payeras Roteiro:

Fernando Ramos e Alexandre Florez

Interfectoris

Serpílio Atrabílis - redator

Sensitíveis botões aureolados desabroches em estágio de oferta reatores e compostos ionados sincronados no estado de alerta. VILMAR DAUFENBACH

Alexandre Florez

NOTA DE AGRADECIMENTO: Congratulamo-nos com aquelas que vieram prestigiar o maior evento etílico-litero-musical já visto nas cercanias do paralelo 30. Obrigado, meninas. Vocês estavam exuberantemente belas no convescote do VAIA. Em breve, faremos outra festa para vocês e todas as que não puderam sentir o prazer desse primeiro encontro que se deu (vocês se deram?) no Bar Psicoarte.

HIDRO, o cão hidrófobo

Rena é coisa de veado!*

Sherlock Gomez

Laurene Veras

Humm...INSS...ISSQN... CPMF...Humm...IPVA... IPTU...IR... 13º... Humm...

Intocáveis volúpias sagradas imagináveis prazeres sentidos masturbáveis pontiagudas espadas ansiáveis desejos contidos.

O garoto corre atrás do caminhão-pipa quando vai pendurar-se você o detém (cônscio das responsas): A poesia morre no ato que você faz cessar Eu passo lindo e você me olha e cabisbaixa-se: A poesia morre no olhar que você cancela Alçapão armado, alpiste adoça mascarando engodo a desgraça, o “click”: A poesia morre na Liberdade do pássaro interrompida pelo teu Egoísmo

Sammis Reachers


REMINISCÊNCIAS ete horas da manhã de segunda-feira. Sonolento, levanta. Descortina-se mais um dia. Úmido, cinza, inverno: mais um dia de morrer. Mal abre os olhos, e as horas vindouras, uma a uma, abraçam-se aos afazeres. A oitava da manhã há anos marcou encontro. Só hoje decidiu cumprir o compromisso. A do almoço e as demais, disciplinadas e pontuais, são sempre as mesmas, jamais decepcionam. No caminho para o casarão, vozes balbuciadas sopram-lhe o ouvido. Não consegue identificá-las, mas, à medida em que se aproxima, tornam-se mais claras. Avista a majestosa entrada. Penetra pelos umbrais. Já pode ouvir fragmentos de frases entrecortando o hall de entrada. Aproxima o ouvido dos objetos da estante. Identifica histórias de família. Contam-se causos de diversas gerações de aristocratas que passaram pelo casarão. Os origamis, com um leve sotaque, trocando os erres pelos eles, dizem de visitas de embaixadores chineses, preocupados com políticas de boa vizinhança, tamanho fôra o poderio do reino. A vela rústica lembra os momentos de insônia dos reis e rainhas, perambulando pelos corredores em busca de soluções noturnas. A garrafa de whisky: testemunho da decadência. O único legado deixado às descendências. Durante horas, o pesquisador percorre todos os recantos do casarão. Envolto em papéis, imortaliza a tradição oral. Anota histórias e conclusões. De repente, sôfrego, guarda a caneta. Recolhe o relatório de sua pesquisa de campo. Não, não é simples pesquisa de campo, é investigação da alma. Porque o corpo começou a tremer, corre em direção ao bar. Hora de render homenagens à tradição. Um gole para o santo e uma garrafa de whisky só para ele. Costuma ir ao bar na hora do almoço, momento de maior rebuliço. Passa despercebido em meio à multidão. Senta-se na mesa detrás do pilar de sustentação do teto, espécie de arquitetura jônica corrompida pela utilidade. É invisível aos demais freqüentadores, apenas o garçom o enxerga do balcão. Com um simples aceno de cabeça, o pedido de sempre: “aquele doze anos, por favor”. Delicia-se com o primeiro gole. Deixa o álcool amortecer a língua, como quem anestesia as angústias da vida. Os outros goles são automáticos, sem sabor, com gosto de “vamos ver até onde agüento hoje”. Aos poucos aproximam-se o pai, o avô, o bisavô. Puxam as cadeiras preferidas, reservadas há anos. Esbaldam-se com lembranças. Riem das angústias e das alegrias do último descendente. Conhecem-nas uma a uma, inclusive aquelas vividas dentre quatro paredes. Não há quaisquer segredos entre eles. São capazes de comentar os momentos mais íntimos, vividos a sós pelo pesquisador. Conseguem ler pensamentos. Fazem cair os muros da censura. Gritam aos quatro ventos tudo o que, no dia-a-dia, ele não tem coragem de dizer ou recordar. Falam abertamente sobre sexo, intimidades de amantes, a primeira experiência com drogas, a luta perdida contra o álcool, tudo em alto e bom som. Permanecem até o momento da expulsão do pesquisador, esta hora jamais decepciona, sempre dispostos a voltar no dia seguinte, com a mesma elegância de quem, embora morto, não perde a majestade. “Eu não estou bêbado, só mais um golinho”, balbucia com dificuldades. É carregado pelos braços até em casa. Está quase na hora de dormir. Merecido descanso de quem amanhã morrerá mais um pouco.

Gustavo Zortéa da Silva

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