Jornal Vaia edição 14

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Entrevistas com a cantora Mônica Salmaso e o escritor Barros Pinho Resenhas de Lourenço Cazarré e Fábio Lucas * Os Recados do Corpo A tsunami Edla van Steen * A poesia de Telma Scherer e Cláudio Santana


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Ele tem um fantasma. Nathanael Hawthorne, A Letra Escarlate.

Alek

Paul Harro-Harring (1840)

À Sombra da Coruja

Fragmento

OS RECADOS DO CORPO

Do do alto do morro viu a lagoa das Portas em abismo, amortalhada de coroas de aguapés. Em silêncio o menino contemplava a paisagem cinzenta e aquosa, repleta de uma vegetação estranha, em tudo diferente do mundo que, apressadamente, acabara de deixar. Sentia a palpitação da terra sob os seus pés, deixando-se embriagar pelos fluidos espermáticos da natureza algo sobrenatural. O perfume dos aguapés entontecia e dava-lhe a noção de uma espécie de vertigem misteriosa, que se assemelhava a uma pequena morte. Alek viu o despotismo de água espelhada sob o nevoeiro que deixava entrever um débil raio de sol. Caldeada dos detritos da enchente que submergiu a terra baixa do vale e pôs toda aquela gente em fuga para os tabuleiros. Sua família possuía aquela casa ali para as emergências que tiravam a vida cotidiana da órbita e os jogava de repente em Arenosa, num outro mundo, nas terras altas de um deserto onde careciam de referências e sobre o qual só podiam pensar como um exílio, hiato imposto pela natureza enlouquecida a centenas de refugiados. Logo, a população da aldeia triplicou. Abrigos foram improvisados nos alpendres. Alek acompanhou à distância o vôo dos marrecos e paturis, riscando em manobras ousadas a superfície das águas, onduladas pelo vento hostil e intermitente. Pisava o chão com cuidado em sua descida aos mundos inferiores da lagoa quieta e gelada, sempre vista do alto do morro, interditada aos seus passos pelos cuidados de uma avó onipresente. Por mais que fizesse, não conseguia escapar àquela vigilância, redobrada agora em condições excepcionais. Sabia que sob o cascalho morava o perigo. Descia o morro devagar, olhando onde pisava, parando para perscrutar a lagoa cada vez mais próxima. Detinha-se com freqüência para aspirar profundamente aquele ar que singularizava a estação chuvosa, como que tornando-a parte da memória emocional de cada um. Aquele ar puríssimo lhe resfriava de repente os pulmões e, numa reação de todo o seu organismo àquela benigna onda gelada, o sangue encalorava em suas veias, fazendo o seu coração bater descompassadamente. Alek notou que em alguns trechos do caminho a terra parecia encharcada, ameaçando desmanchar-se sob o peso de um menino. Algumas vezes escorregou no lameiro e, para não cair, agarrava-se aos galhos de velame que ladeavam a trilha esburacada pela chuva. Do atrito das folhas extraía-se um cheiro medicinal que o menino aspirava, deliciado. Ouvira dizer que na várzea toda a terra estava abrejada. Que lá embaixo a terra estava se desmanchando de tanta água. A chuva estiara, após o dilúvio, mas o sol parecia empelicado e não brilhava senão através de um filtro de nevoeiros. Em anos como este o deserto de piçarra vermelha milagrosamente enverdecia e enfriorava, submergido durante semanas numa chuva intermitente que enchia lagoas e barreiros, fazendo irromper o cálido capim onde antes havia somente areal e pedregulho. O mundo estava nascendo de novo para a gente dessa aldeia remota da Arenosa, numa encruzilhada entre os mundos distintos da várzea e do tabuleiro. Alek mergulhou na água lustral. Sentiu um arrepio que lhe sacudiu o corpo inteiro num estremecimento que lhe dava como que a consciência de sua virilidade. Sob os pés a aspereza das pedras que forravam a lagoa tornava-o mais sensível a tudo. Coração disparado, recuou, mas sem sair do lugar.

FRANKLIN JORGE autor de Ficções Fricções Africções ed. Mares do Sul, 1999

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Sodré ao afirmar “no contato uniz uniz Sodré ao afirmar que que “no contato das das culturas dadaEuropa culturas Europaeeda da África, África, provocado pela diáspora escravizada, o negro acatou o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizou ritmicamente”... deixou no ar um outro aspecto de fundamental importância na musicalidade brasileira: o rito do corpo. Só pra exemplificar, o tango brasileiro surgiu da fusão da polca (dançante) e do lundu (dançante) com a habanera cubana também dançante. A polca, no seu processo de abrasileiragem, quando chegou ao Brasil, devido ao seu aspecto dançável e festivo, virou uma verdadeira coqueluche. “Pode-se dizer que a polca constituiu-se no verdadeiro protótipo das formas dançantes da música de massas (alguém já disse, com certa propriedade hiperbólica, que do ragtime ao rock n’ roll, tudo é polca)”, diz Zé Miguel Wisnick no seu livro Sem Receita. Citando mais uma vez Zé Miguel - “falar sobre Cultura Brasileira é um convite ao erro muitas vezes irrecusável”, me arrisco irrecusavelmente a pensar que além do processo de mestiçagem, sincretismo, miscigenação e pluralização de linguagens em estado de constante mutação, a música brasileira tem o seu eixo gravitacional bastante fixado no corpo. É este corpo que muitas vezes singulariza o caráter (ethos) e a paixão (pathos) daquilo que se está tocando e cantando. É o que os músicos popularmente chamam de intenção. Dou um exemplo: Tom Jobim quando gravou com Elis Regina Águas de Março procurou, através dos acentos das estrofes ao cantar, ambientalizar aquilo que o cenário da letra propriamente se constitui. Já João Gilberto, ao interpretá-la no disco João Gilberto (o da capa branca), o tempo todo mantém um deslocamento proposital dos acentos estróficos propondo e recriando uma nova possibilidade interpretativa e de percepção do texto. No entanto, para captar estas sutilezas é imprescindível e aconselhável o ouvinte ter internalizado ou incorporado o beat do ritmo: onde que os acentos se mantêm, onde se deslocam, onde repousam e onde tensionam. Compreender estas pequenas sutilezas da musicalidade brasileira e procurar senti-las no corpo, pode fazer uma grande diferença quando se está ouvindo ou tocando a obra destes grandes mestres. Como já disse Caetano Veloso em sua canção Os meninos dançam - “a história do samba, a luta de classes, os melhores passes de Pelé: tudo é filtrado ali” Obs: Sobre a obra ÁGUAS DE MARÇO aconselho o livro “Três canções de Tom Jobim”, onde Arthur Nestrovski analisa detalhadamente os procedimentos acima citados. FELIPE AZEVEDO compositor e violonista felipaz@terra.com.br - www.felipeazevedo.com.br


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O poeta, de ordinário, vai além do impenetrável. Seja exemplo o poema de Aricy Curvello O Acampamento ( Ilha de Santa Catarina, Coleção Broquéis, 2004). Aparentemente promove o testemunho de quem tentou interpretar o mistério da Amazônia. Muitos fizeram isso, em prosa e verso. Apenas de modo ilustrativo, citemos Inglês de Souza (Contos Amazônicos, S. Paulo, Martins Fontes, 2004, 3a. Ed.; 1a. Ed.:1983), Márcio Souza (Galvez, Imperador do Acre, Folhetim, Rio, Ed. Brasília/Rio, 1977, traduzido para o alemão: Galvez, Kaiser von Amazonien, Roman, Kiepenheuer & Witsch, 1983, trad. De Ray-Gilde Mertin) e Márcia Theophilo ( Eu canto o Amazonas, traduzido ao italiano: Io Canto L’ Amazzonia, Edizioni Dell’ Elefante, 1992), só para mencionar autores não constantes do vasto painel traçado por outro grande ficcionista, Nicodemos Sena, autor de A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica (1999), em introdução ao livro de Aricy Curvello: “Amazônia: Texto e Contexto” (Florianópolis:Jayro Schmidt Ed.5ed.2004). A Amazônia, vê-se, é um mundo insólito, segundo nos mostra Nicodemos Sena, que invoca desde o Pe. Antônio Vieira (“Carta sobre o Tocantins”, 1654), a perplexidade do português John Wilkens ( A Muhraida, 1785) e o espanto de Friedrich von Martius (Frei Apolônio, S. Paulo, Brasiliense,1995, ”o primeiro romance ambientado no Norte do Brasil”), até Aricy Curvello, poeta de O Acampamento. O que se mostra nesse exercício de estranhamento? Nessa efusão poética? Paisagem fechada e, por detrás, a solerte mão do capitalismo de resultados.

Aricy Curvello: poesia além do impenetrável

Jayro Schmidt

poesia, nos dias de hoje, procura ater-se mais às coisas concretas e às relações humanas perceptíveis. Necessita de referencialidade intensiva, sem, todavia, deixar-se apanhar na crônica dos dias, território mais adequado à prosa. A forma poética, deslocada de seu meio, hermética e distante, cria por vezes enfado e rejeição. Quem busca motivar-se esteticamente com a leitura, deleitar-se e instruir-se com as palavras, tem preferido antes os poetas do passado e autores de quem possa colher citações ou passagens ilustrativas de estados emocionais. Comumente não se deixa envolver pelos anedóticos jogos verbais ou pela contemplação de painéis publicitários que se tomam por verdadeira poesia, mas que não passam de sucedâneo da expressão artística. O verso cadenciado, denso, emocional e educativo, vem-lhe nos momentos de procura de si e dos outros. É parte de seu conhecimento do mundo. Poesia e declamação nasceram juntas na velha Grécia. A função da poesia, hoje e sempre, tem sido a de despertar no leitor reações extremas de cunho intelectual, que compreendam razão e emoção, gosto pelo saber e atração amorosa. Conjuga o entusiasmo pela verdade com o êxtase da iluminação, instaura a epifania, um estado de espírito culminante, limítrofe da transcendência.

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As falsas pegadas do “progresso”. Não se trata de um texto panfletário. Ao contrário, é autêntica poesia, traz o mistério e a complexidade da selva, que se denuncia pelas cores - da escuridão até à luz e pelos sons (do silêncio aos gritos inusitados). Aricy Curvello traça a gramática dos signos imperfeitos, sujos de gestos humanos gratuitos e de disfarçada cobiça. Ali, a seu ver, tudo se mistura sob o império do provisório. Inclusive o acampamento: “Nenhum céu, nenhum, tetos de alumínio e uma Floresta de chagas.” As perguntas que ficam na consciência do leitor: Quem constrói barracões de alumínio? Para que? O poeta indaga a seu modo, ao falar do infinito da Amazônia. Progredir na leitura do poema é inteirar-se do que há de evocação nas duas paisagens chocantes: a floresta e os acampados. Natureza e cultura. Primitivamente, “chão noturno, mais noite que a noite.” Depois, o vislumbrar da claridade entre penumbra, do tempo aderido ao meio hostil: “o ar a ferocidade do ar caem do céu antes da chuva esse inarticulado grito parece a voz da luz.”

Sem que se perceba, o poeta começa a responder à questão: “Para que?”. Diz no terceiro segmento do poema: “No princípio do mundo, a madeira atroz”. O adjetivo de força própria, “atroz”, substantiva a presença do bicho da terra tão pequeno” (Camões). Que enxerga o poeta? “Vinte casas interminadas, barracões de tábuas, um embarcadouro de nada, os sonhos passam.” Sim, “Sobre o rio a cor balançava ainda os caminhos/ da luz”. De repente, outro adjetivo completa o segmento quarto: “...mundo verdeal rangente na alfombra, oficina de barulhos e marcenaria de pregos cantantes.” Para quem cantam os pregos? A serviço de quem? O poeta apenas aponta o fenômeno e segue. A combinação de imagens visuais e sonoras prossegue. Assim, no quinto segmento, o poeta invoca o “poder imponderável da luz: “A verdeluz, a luz que brilhava na luz, poder imponderável.” Também ali, no quinto segmento, surpreendemos o leve murmúrio do pasmo, talvez do protesto: “Os homens não buscam a luz do rio. Querem apenas bauxita bauxita bauxita - e alumínio. O Governo quer alumínio ferro ouro cobre cassiterita chumbo níquel. Aqui, até aqui, o horror veio tecer diademas de injúrias, meu salário.” Observe-se a astúcia verbal do poeta, a palavra “bauxita” repetida três vezes. E, depois, o valor “salário” associado a injúria... A paisagem, entre o “verde” onipresente e a variada dispersão do ser humano, associa-se à incerteza deste e à voraz força da vida, à busca infindável no território movediço: “Verde mover-se no grande ir-se de tudo, no fruto das casas de tábuas, nos galpões de sujos instrumentos, núcleos esparsos de povo, nos povoados perdidos.” O poema encerra-se com o signo da “paisagem além da paisagem,/ quando a imagem do tempo passar, / significados para as águas, relva pisada em volta / das casas.”. Aí está: “relva pisada em volta das casas”. Curiosa proximidade semântica entre “selva” e “relva”. O geral e o específico. Além do que, o adjetivo, mais uma vez, carregado de força substantiva, “relva pisada”, propõe a utilização do sinal evocador da presença humana, indica a ação do homem sobre a relva. Paisagem física e paisagem humana ante o olhar perscrutador do poeta, cuja determinação verbal se apóia na expressão concisa, na sintaxe elíptica, na tonalidade reflexiva dos versos. Mais uma vez a manifestação lírica de Aricy Curvello se aplica na construção do real da poesia, expandindo em conceitos da visão humanística da existência humana.

FÁBIO LUCAS, escritor e crítico literário.

A Tsunami Edla van Steen deira A ira águaséé uma uma verdadeira autoraautora de “A dasdas águas” verdadeira Tsunami. A analogia parecerpouco pouTsuname. A analogia pode pode até parecer co conveniente, visto a devastação que a onda conveniente, visto a devastação que onda gigantesca causou nas ilhas asiáticas. Mas a onda aqui é outra, embora sua força seja a mesma. A onda gigante que se ergue e nos encobre é uma onda literária. Uma onda pungente que nos arrebata e nos arrasta, nos leva para milhas e milhas de nós mesmos. Repentinamente, somos elevados – toldados de nosso cotidiano monótono – para um outro plano. Uma outra estratosfera onde o que impera é o reino da boa leitura, o prazer de se perder e se encontrar nas tramas de um bom livro. Fazer uma navegação pela obra de Edla van Steen é encher laudas e laudas de enumeração de títulos, dos mais variados gL neros, de obras de qualidade incontestável. Me limito, entretanto, ao meu trabalho de resenhista: traço um pequeno panorama de seu mais recente livro: A ira das águas. Esse é um daqueles livros que um bom leitor lê de um fôlego só. São sete contos que se desdobram no mais puro estilo de Edla van Steen. A crítica costuma caracterizar de um estilo simples, sem grandes obstáculos para o leitor.

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Eu diria que Edla escreve para desfrutar da sua própria leitura em voz alta. Encher o quarto com o eco de sua própria voz lendo os seus próprios alfarrábios. Ao meu ver o maior prazer do autor é justamente esse, ler o que criou. Mas não nos desviemos muito. Digo que esse novo livro da autora traz sua marca: a conivência com seus leitores, cativos ou futuros. Tanto faz! O que Edla busca é o leitor, não importando sua escolaridade ou seu nível social. E é exatamente isso, essa compreensão, que inclusive também vem de seus textos teatrais (aqui basta dizer que a autora escreveu para Eva Wilma a peça Primeira Pessoa, em cartaz pelo país) que faz de Edla van Steen uma onda do bem, uma onda que inunda o país de boa literatura. Li A ira das águas em duas paradas para uma água e um café. Nn o vou fazer o que já fez o prefaciador do livro, Deonísio da Silva: transcrever trechos de cada um dos sete contos da obra. Fico com as pinceladas, o desvendar total do quadro é com o nosso querido leitor: os contos Mania de Cinema e A ira das águas trazem subdivisões de suas partes de forma atípica.

Suas partes são numeradas com números crescentes próximos ao início dos parágrafos. Técnica simples, mas que bem ilustra o que eu disse acima. A autora pega pelas sutilezas! O conto, Um dia como os outros, subdivide-se em horas e endereços. O que mostra a contemporaneidade da autora com um dos gL neros mais antigo da literatura, o conto. O prefaciador, Deonísio da Silva, é certeiro ao afirmar: “A ira das águas traz recurso adicional: é também um roteiro cinematográfico. Está pronto, necessitando apenas decupagem”. De fato, é mesmo o conto um roteiro, com possível desdobramento até para uma mini-série. Há apenas uma pequena confusn o: numa altura do conto, página 210, o personagem Bernardo leva uma lista de livros para a amiga Íris, dona de uma livraria, dizendo tratar-se de uma lista de livros que o futuro sogro gostaria de dar para o neto mais velho. Mais adiante, perguntado por Íris, quem tinha escolhido os títulos da lista, Bernardo fala que foi o irmn o de sua noiva, que quer ser escritor. Dando a entender se tratar de seu cunhado, nn o do neto mais velho de seu futuro sogro. Mas isso é um pequeno detalhe sem importância! Percebido apenas por leitores exigentes feito eu. Um leitor que jamais perderia seu tempo lendo A ira das águas não fosse esse, realmente, um excelente livro, uma ótima leitura. O livro esta aí, agora, é banhar em suas águas.

CLÁUDIO PORTELLA,escritor

Autor de “BINGO!”, poesia.


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Con el alma sosegada migos míos: queria contaros, quizá sea un desatino, que tengo el alma sosegada y el cuerpo descansado, y que estoy “lejos del mundonal ruido”. Estoy contento e es verano, tengo el cariño deseado, fuera se que necesitan más amor, pero también sé que necesito este descanso. Una casa con jardin, nada de lujos inventados, y agua para refrescarme - ya os digo que es verano. En la parte delantera de la casa hay hortensias y rosales, una fila de romeros y que están recién plantados. Una higuera que sólo ha dado dos higos, una parra de uvas negras, que es el festín de los pájaros. También algo que aísla, una tapia de brezo prensado, que te separa de otra gente, pues es un chalet adosado. Los vecinos no molestan- solo oyes curiosidades. Sí acaso las televisiones, de esas no te libras como no estés en un sembrado. Cuando por las mañanas salgo, “Mia”, que es un perro, pastor alemán, da saltos de gozo y se me enreda en el paso, y sólo cuando tomo la manguera y riego, se aleja de mí lado. Qué bien huelen los geranios de mañana recien regados! No os he dicho que hay petúnias, jazmines y unas adelfas muy grandes, unas pequeñas palmeras y arizónicas para que no se vea la calle. Por este lado de la casa, es muy fresca en la mañana. Allí escribo, leo la prensa y versifico nada es nada! En la tarde y en a noche, la vida es del otro lado, tenemos una terraza y jardin con mucha hierba, que siempre se está segando. Es una hermosura a la tarde,con el olor del regado! Con el tomillo y el romero, el oliguste y los pájaros! Árboles hay muy pocas, el sitio esta calculado, un membrillo, dos madroños, una catalpa y otro arbusto que no sé descifrarlo. Grandes rosales silvestres, y más arizónicas gigantes que sombrean la casa, nos aislan la piscina, y como os he dicho antes - escuchar curiosidades -. La piscina es de esas prefabricadas, de cinco metros por una veinte, y en ella me pego cada tripada! Estos días de calor, desde luego, no los comparo, con los que se pasan en las playas, en medio de tanta gente y que vuelves nervioso y achicharrado. Amigos míos: os cuento la manera de pasar los cuarenta grados, la manera de como me lo he montado este verano. Es una forma también buena e insospechada, para seguir dándole a la pluma y acabar con el alma sosegada...

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e tão acostumado a ser só e seco, a irmã conseguiu lhe convencer a levantar pandorga com os amigos. Mas nem são amigos, ele disse. Meus amigos são teus amigos, ela respondeu, e ele nunca soube se isso era apenas generosidade, tão-somente vocação ou só esperança. Foi. No começo (no começo dele, do que viu), todos buscavam ventos. Ele, indo contra o vento, por rarefeito sentia a todos, movimentos, translados, expansões. E suas belas pandorgas. Depois, como sempre, sentiu falta. Não em si a falta dos outros, mas a falta do movimento, daquilo que só se faz em multidões, ao menos, pelo menos, quando na rua, ombro-a-ombro, sente-se muito mais que dois. A calmaria, a inércia, o tédio, o fado, a inação. Notou que os braços daqueles seus pares eram como âncora, e temeu. Mas uma brisa deu-lhe um tapa, e por instantes ele voltou ao ar.

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MANUEL GONZÁLEZ Madrid - España

Olha lá, como a minha foi mais alto! Olha lá...o brilho que o papel encerado da minha pandorga faz contra o sol, Pégaso, pega pra mim, agarra que já vai cair, a minha pandorga, divina e graciosa... eu que a fiz com tanto carinho, tanto cuidado, esmero, porra, sangue, catarro, vocês que colam as varas das suas pandorgas com goma arábica, amadores, como se agarra nas asas do vento sei eu, todos dizem isso quando empinam pandorgas, todos são, todos sofrem, como marinheiros, a perda do vento, quando empinam pandorgas... E então, a calmaria. Outra vez, uma a uma, as pandorgas no chão.

ADEUS Em memória de Orlando Carlos Navega Não estás mais aqui nesta manhã com cheiro de flor: as Parcas assobiaram antes Cloto, Láquesis e Atropos, Que dizer? (Escrevo no calor da hora.) Gastas as palavras, mas cumpriste com o teu dever, contra todos os destinos (garra, pertinácia, luta, também nojo, mas sempre esperança). Inutilmente? “Não, porque o cumpriste”, como disse Pessoa. As fiandeiras do tempo sempre nos nossos calcanhares: petições indeferidas na porta da Justiça. A eternidade é esta brevidade infinita: Te vejo, hábil, agregador, acolhedor, generoso, com uma lucidez intensa, iluminada e doída. Estarás sempre aqui nesta matéria constituída de memória. Cumprido o ciclo. Perdurarás: numa mulher chamada Anna, nos filhos Antônio e Araci, em todos os teus amigos, quem sabe, nesta trôpega tentativa de poema. (Um dia, com mais vagar, escreverei fragmentos de tua história.) Meu irmão (quanta saudade!): Ah, minha mãe: meu dedo em teu dedal. Ah, meu pai, meu rosto em teu retrato. Só queria saber: como é feita esta passagem? (Navega: navegar é preciso.) Também somos feitos daquilo que perdemos. Eu sei: nunca dá tempo para acertarmos as últimas providências. Não importa: não estás mais onde nós estamos, mas estarás sempre onde estivermos. (Brasília, 14 de janeiro de 2005) EMANUEL MEDEIROS VIEIRA

Como sói acontecer, aqueles poucos que já tinham se acostumados a brincar saíram correndo com suas pandorgas, dizendo viva, viva, nós nos conhecemos e temos pandorgas e corremos juntos, e por uns instantes se esqueciam de que não havia mais vento e suas pipas só penderiam rijas no ar enquanto estivessem correndo, mas enfim, isso poderia ser razão o bastante, se acaso estivem correndo juntos. Mas não: eles apenas corriam ao mesmo tempo, cada um com a sua pandorga. Ele balançou a cabeça e sorriu, esperando o vento, seco e só. CLÁUDIO SANTANA autor, com Clarice Müller, de Veroverbo, Ed. AGE, 2003

O ADEUS AO MESTRE DOS QUADRINHOS

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mundo dos quadrinhos está de luto. Aos 87 anos, faleceu dia 04 de janeiro, em Fort Lauderdale, Flórida, o americano WILL EISNER, uma lenda dos quadrinhos e artes gráficas. Nascido em 06 de março de 1917, foi um dos criadores do gênero, no fim da década de 1940. Inovador, foi o responsável por alçar as HQs a uma forma de arte. Em 1940, com o crescente interesse pelos quadrinhos nos EUA, lançou uma série de tiras denominada The Spirit, que foram publicadas em suplemento de jornal dominical e logo distribuídas pelo Quality Sindicate, abrangendo enorme público. Além dos álbuns do TheSpirit, já foram publicadas no Brasil as grafic novels No Coração da Tempestade, Um Sinal do Espaço, O Último Dia no Vietnã e O Nome do Jogo.

Nos anos seguintes, Will Eisner fez de The Spirit, um herói-detetive mascarado sem superpoderes ou uniforme, que agia por conta própria no combate ao crime, plataforma para o lançamento das muitas idéias que fervilhavam em sua mente. Will Eisner revolucionou por completo a maneira de desenhar quadrinhos, desde a forma e o espaço das narrativas, técnicas de diagramação, utilizando ângulos inusitados e cortes cinematográficos; os textos e balões misturandose à arte como fios de um mesmo tecido, utilizandoos como uma linguagem. Tudo aliado ao tom realista das histórias, sempre limitando as caricaturizações. O álbum Um Contrato Com Deus (1978), contando quatro histórias pré-bukowskianas que se passam em cortiços da decadente New York dos anos 1930, deu origem ao termo grafhic novel, tão famoso atualmente.

Luiz Gustavo Insekto

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LEMINSKIANOS

surtos

ao poeta Paulo Leminski e ao amigo Flávio Airton Nunes (in memoriam)

POÉTICOS

Enquanto teu corpo mergulhava becos a pa(lavra) te pintou de estrelas deixando-te aceso depois da obesa noite de venenos.

Itens quero apenas encontrar teu olho num instante pleno tocar tua boca roubar-te um riso escancarado sem medos sem modos sem-vergonha podes vir descalça, pouco importa usar teu vestido mais surrado teu jeito de vestal puída podes vir ao meio-dia na madrugada, pouco importa não vou medir tuas medidas nem remexer em teus porões pouco importam as cores teu cabelo, tuas unhas, teus deuses não me interessam teus certificados devasta a doce geometria aprendida e simplesmente me toma nesse vento batismal que teus poros trazem anunciando o constante cultivo das coisas inesperadas

com desprendimento, mas com coragem, com a esperança, a força de seus enganos,

não te lastimes no ruir de cada dia, áspero fluir, em uma ponta a outra do que existe, no que se distende ou se acaba.

Curitiba - aguardente, água rasa deixou no ar um porquê de tanta sede afogada.

no que vês partir para o silêncio, sê como a palavra: longe de se bastar, só se completa designando o que a ultrapassa.

Os cães latem mais de madrugada, os poetas sangram a qualquer hora. Larí Franceschetto Veranópolis-RS

ARICY CURVELLO autor de Mais que os Nomes do Nada

CLÁUDIO SANTANA autor, com Clarice Müller, de Veroverbo, Ed. AGE, 2003.

a palavra torta em viva língua posta

NAS DOBRAS DA PERMANÊNCIA A penumbra estica seu lençol sobre as casas que contradizem o sono dos móveis e das bibliotecas. Os quadros prolongam suas obrigações de paisagem, os quartos ganham insônicas à revelia.

crua desfila nua

A lâmpada continua o teatro da minha pele. Já não busco a falta que dobrava meus papéis. Sobra de mim o que não cogito.

afiada a palavra corta

Qaíqe Qomé qaiqe@yahoo.com.br

AMORES RABISCO VERSOS DOURADOS SOBRE A MESA DA PAIXÃO. O CARINHO INVADE-ME TODO NO SANGUE DO CORAÇÃO. O PERFUME DA PRIMAVERA DÁ O SENTIDO DA ILUSÃO. E O ESBOÇO DA TERNURA NO OUTONO E NO VERÃO. NO INVERNO, DÁ SAUDADE DO AMOR E DÁ TESÃO. O INFINITO DO SEU EU CANTA O CANTO DA EMOÇÃO. E O CANTO DO PRAZER, DÁ CANTIGA DÁ CANÇÃO. E AQUI ESTOU EU, POLIDO MENINO COM ECO ASSOMBROSO... MIL CORES BRILHAM NO QUADRO PERDIDO! CREPÚSCULO SOLENE NUM HINO DE GLÓRIA! AMOR PASSADO, AMOR PRESENTE, AMOR FUTURO... CONFESSO A TODOS AMORES: BANDEIRAS COLORIDAS, MAIS UMA VEZ COM VOSSOS AMORES.

Digitais

palavrexposta

exposta a palavra informa difama conforta

ITA ARNOLD músico

Enquanto o dia andava o mesmo dia te salvou morrendo.

cria para ti algum destino, se não o que te pertence de há muito.

Com as linhas da palma de minha mão,

Cerzi minha veste última e fúnebre, E no recôndito mais frio e lúgubre Da alma, enterrei meu coração. Um dia despertei, desesperado e fracassado, Sentindo a inutilidade da força de meu braço. Minha boca apenas sibilava uma canção, Que como o desprezo, pesava-me feito condenação. Sentindo o cheiro do cadáver apodrecendo, Com meus próprios vermes vou convivendo. Tentando entender o que fizeram à minha sorte, Com minhas esperanças ou algo que me valha. Com os traços de minha originalidade fiz a mortalha. Depois lavei-me, e me resignei para a morte.

FÁBIO CEZAR

CHARLES ABEGG autor de Mortalha e outros poemas Ed. do autor, 2004.

fabiocezar@yahoo.com.br

“o morto que se ama pesa tanto que parece um cemitério todo em nossos braços” faz mais espaço na parede exigida do vazio e os latidos da última hora ao fecharem o buraco sob a pronúncia indelicada do temporal ninguém está preso ao seu guarda-chuva ninguém arranca terra da viúva que começa nem chora a carne atingida pelas palavras no chão nem ninguém a levanta aos anúncios temporários cimentando o que fica do homem na lápide que amanhã estará ainda branca mas suja

Minhas asas são mais que duas Vem, vamos voar sobre luas E repousar nas montanhas Fujamos das artimanhas Das máscaras e das razões Sejamos o gás dos balões As luzes das tempestades A força dos furacões As cores dos fins-de-tarde Restemos no pó das estrelas E no calor das querelas Ilusões e concretudes Percamo-nos na amplitude Em florestas de lendas antigas Em estórias que estão por contar E também nas que já foram lidas Surjamos nos restos do fogo E façamos tudo de novo Burlemos o tempo, inclusive Querendo pairar sobre todos Zombando de como se vive.

C. RONALD autor de A Razão do Nada Ed. Scortecci, 2001

LAURENE VERAS laureneveras@hotmail


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DANI GURGEL

Que músicas tu lembras de ter ouvido na tua infância? Que discos vocês ouviam em casa? Eu ouvia o que tinha em casa. Muito Chico Buarque e Dorival Caymmi, Milton Nascimento, Elis Regina, St. Pepers (Beatles), Simon and Garfunkel, Roberto Carlos. Alguém da tua família era ou é ligado à música? Meus pais gostavam muito de música. Minha mãe tocava um pouco de violão e eu cantava com ela e seus amigos nas reuniões musicais que aconteciam na minha casa. Meu pai tem muita facilidade de escuta musical, presta atenção em detalhes, reconhece similaridades e sempre teve gosto em mostrar músicas pra gente. Depois de mim, meu irmão Eduardo também virou músico (baterista). E na escola em que tu estudavas tinha música? Quando foi que começaste a cantar? Na escola em que eu estudava não tinha aula de música, mas a gente fazia rodas de violão e algumas apresentaçt es lá. Comecei a cantar nestas ocasiões. Quando decidiste de ser cantora? Tinhas alguma referência, uma cantora ou um cantor? Havia interesse por outra forma de expressão artística, teatro, dança, literatura? Fizeste algum curso, aula de canto ou violão? Quais foram os teus mestres e professores? Quais cantoras(es) te inspiravam? Quando saí do colegial, minha idéia era estudar jornalismo. Fui fazer cursinho pra prestar vestibular, mas sofria muito com a pressão da escolha e com a situação do cursinho. Odiava aquela forma de ensino e me sentia bombardeada com aquelas datas, nomes, fórmulas caindo na minha cabeça. Fui fazer aula de canto na escola Espaço Musical com a professora Regina Machado. Ela foi a minha primeira referência como cantora, e a partir das aulas, decidi que era isso que queria pra mim. Anunciei em casa que queria ser cantora, saí do cursinho e continuei fazendo aulas de música. Começaste a cantar no teatro aos 18 anos. Como surgiu a oportunidade de cantar na peça O Concílio do Amor, dirigida por Gabriel Vilella? A atriz Rosi Campos era amiga da mãe de uma colega minha de colegial. Não sei como, essa minha amiga contou pra ela da minha escolha. Só sei que um dia, a Rosi me telefonou (e quase caí da cadeira) dizendo que tinha me indicado para o Gabriel Vilella. Ele estava começando a montagem do Concílio do Amor e queria uma cantora pra fazer o canto da Verônica da procissão da paixão. Fiz o teste com ele e o elenco e eles me convidaram pra fazer a peça. Tu cantaste em bares por algum tempo. Como é que foi esta experiência e o que ela acrescentou pra tua carreira? Que repertório cantavas nesses bares? Comecei a cantar em bares durante o Concílio do Amor e fiz algumas formações de grupos em São Paulo. Isso se tornou meu maior interesse e, então, eu saí da peça. O tempo em que fui contratada e cantava nestes lugares foi especialmente bom pra mim. Nessa experiência, vocL não tem qualquer compromisso conceitual em montar uma carreira, então o que vale é experimentar repertório, cantar o que for possível e aprender músicas. Foi o que fiz. Cantava de tudo e com todo mundo que podia. Participaste do disco Notícias dum Brasil, com Eduardo Gudin. Como conheceste o Gudin? Poderias falar um pouco sobre a tua participação nesse disco? O Gudin me ouviu cantar no bar Vou Vivendo. Ele me convidou pra fazer parte desse projeto. A idéia era montar um grupo com alguns cantores e fazer solos e abertura de vozes. Esse trabalho foi longo. Acho que demoramos alguns anos entre formar o grupo, preparar o repertório e gravar o cd. Foi muito importante pra mim.

MÔNICA SALMASO, 33 anos, paulistana, começou sua carreira de cantora no teatro, na peça O Concílio do amor, em 1989. Cantou em bares por algum tempo até ser descoberta por Eduardo Gudin, que a convidou para participar do seu disco Notícias dum Brasil. E foi Gudin quem lhe deu a idéia de gravar os afro-sambas, de Baden e Vinícius, compostos nos anos 60. Aí, conheceu o violonista e arranjador Paulo Bellinati, que dividiu com ela esse antológico disco de voz e violão, AfroSambas, de 1995. A partir de então, Mônica não é mais apenas uma revelação da música brasileira - a crítica derrete-se em elogios, mais gente começa a prestar atenção ao seu canto doce, de timbre singular -, é indicada para o Prêmio Sharp e grava o segundo disco, Trampolim. Nesse disco, ela canta temas do folclore, da religiosidade das procissões, do sincretismo afro-europeu, além de cantos de trabalho dos escravos, gravando compositores contemporâneos e clássicos de nosso cancioneiro : Guinga, Lenine, Zé Miguel Wisnik, Caymmi e Edu Lobo. Agraciada com o Prêmio Visa MPB, Edição Vocal em 1999, Mônica volta aos estúdios para gravar seu terceiro disco, Voadeira. Nele, ela se mostra mais madura e segura tecnicamente, cantando um repertório de gêneros variados (xote, modinha, baião, samba) que combina belas interpretações para músicas inéditas (de Joyce, Mario Gil e Rodolfo Stroeter) com preciosas releituras de clássicos (de Herivelto Martins e Vinícius/Chico). Após quatro anos sem lançar disco, Mônica volta em 2004 com o primoroso iaiá, primeiro de três a sair pela gravadora Biscoito Fino (www. biscoitofino.com.br). Em Porto Alegre, quem ainda não a conhecia teve, na noite de 29 de abril, a graça de deleitar-se e emocionar-se ouvindo Mônica, acompanhada de Benjamim Taubkin, na série piano/voz do projeto Unimúsica, da UFRGS, apresentada durante todo o ano de 2004 ao público gaúcho. Depois do show, Mônica, sempre atenciosa e simpática, nos recebeu para um bate-papo que se iniciou no camarim, se estendeu via e-mail e resultou nesta entrevista. Fernando Ramos e Marcelo Farias

Fala um pouco sobre o Paulo Bellinati e sobre o trabalho que vocês vêm desenvolvendo desde o disco "Afro-Sambas" (1995). De quem foi a idéia de gravar esse disco? Que importância teve o Bellinati naquele momento da tua carreira? E como é que tu vLs o "Afro Sambas" hoje, depois de 9 anos? A idéia de gravar os afro-sambas veio do Gudin. Ele me sugeriu esse projeto e topei na hora. Me parecia uma enorme sorte poder gravar meu primeiro cd com um projeto lindo desses e que, na época, estava esquecido. Conheci o Bellinati para fazer o disco. Ele também topou na hora e a gente começou a trabalhar. Essa experiência foi muito importante pra mim, porque sentia que era uma enorme responsabilidade estar ali, com um músico, arranjador e compositor como ele, e eu tinha que fazer o melhor. Aprendi muito sobre o canto neste trabalho e ainda entendi que o artista tem que ser dono da sua carreira, tomar cuidado com ela, fazer escolhas e ser autoral. A gente continua fazendo o show dos afro-sambas, principalmente no exterior. Sempre adoro fazer esse repertório. O Paulo participou dos meus outros 3 cds e a gente tem planos de fazer outros projetos juntos. E o encontro com o Rodolfo Stroeter? Como é trabalhar com ele durante todo esse tempo?

Como é que foi fazer as gravações de música infantil, as Canções de Ninar e Canções de Brincar, nos discos produzidos pelo Paulo Tatit? Participaste de algum show com a turma do selo Palavra Cantada? Foi muito bom. Adoro estes discos. Eu fiz com eles os shows do Canções de Ninar. Eu adorei!!! Cantar para crianças é delicioso. E o PrLmio Visa, o que significou pra ti naquele momento e o que ele possibilitou pra tua carreira, além de viabilizar a gravação de um novo disco em 1999? O PrL mio Visa foi importante desde a primeira eliminatória. Eu tinha tido algumas boas matérias em jornal nas ocasiões de lançamento dos cds Afro-Sambas e Trampolim, mas as músicas não tocavam nas rádios e o espaço de divulgação era pequeno. O PrL mio Visa divulgava os nomes dos participantes a todo momento, tem apoio de dois jornais e uma rádio grande em SP e isso me ajudou muito a chegar a um público maior e que não conhecia o meu trabalho. Como e quando tu descobriste os cantos de escravos e as músicas do folclore que estão no repertório de teus discos? Teve alguém que te apresentou essas gravações, foi trabalho de pesquisa que fizeste?

É muito bom e muito fácil de trabalhar junto depois de tantos anos, shows e projetos. A gente conhece bem como o outro pensa e cria e isso facilita muito todo o processo de trabalho. Além disso, acho que temos um gosto parecido, um mesmo olhar sobre o Brasil. Isso é sempre muito bom.

Algumas coisas eu encontrei sozinha, escutando material do selo Marcus Pereira, comprando discos por curiosidade, mas algumas pessoas que pesquisam a sério me ajudaram desde o Trampolim:Paulo Dias Edgard Poças, Heron Coelho e Cristina Buarque.

Mônica, fala um pouco sobre o trabalho com a Orquestra Popular de Câmara. Como que se reflete em teus discos o trabalho com a Orquestra?

Mônica e Benjamim Taubkin

A Orquestra Popular de Câmara é para mim um presente. Pelo fato de estar entre todos aqueles músicos incríveis, que hoje são muito amigos e de ter uma "função" diversa daquela onde o cantor está à frente dos músicos, destacado deles e com as palavras das canções, essa é uma enorme experiL ncia de estudo pra mim. Eu, que venho da escola da improvisação vocal, posso experimentar esse universo e criar texturas com a voz. Adoro este trabalho e me sinto privilegiada por fazer parte dele.

CRIS KNACK

entrevista


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E como descobriste a Clementina de Jesus? Tu sentes alguma influLncia dela no teu jeito de cantar?

DANI GURGEL

Pela Clementina tenho uma paixão antiga, embora não tenha tido a felicidade de vL -la cantar ao vivo. Sempre achei o canto dela de uma beleza incrível e aquele repertório... de onde vinha aquilo? Ela era, além de uma voz muito particular (o que já seria motivo de estudo), uma memória da história da cultura afro-brasileira. Recentemente o Heron Coelho me deu de presente uma caixa da Petrobrás com a discografia quase completa dela. Essa caixa foi feita como brinde e nunca chegou ao mercado. Parece que a gravadora não a considerou "vendável". Eu escutei toda a discografia dela um pouco antes de gravar o "iaiá".

E que lugar tu achas que Monica Salmaso ocupa na música popular brasileira hoje? E no exterior, como vai a tua carreira?

07 Seria possível estender esse projeto dos encontros para outras cidades do Brasil, como se fosse um novo Projeto Pixinguinha, que possibilitasse o encontro e o intercâmbio de artistas de diferentes regiões do país? Teoricamente seria possível e muito bacana. O problema é que não sou produtora e tenho a minha carreira pra cuidar, então não tenho disponibilidade de tempo pra desenvolver uma versão maior do Ponto In Comum. Pra fazer direito, é preciso que haja tempo pra idealizar os encontros, discutir e pesquisar junto com os convidados o repertório, e ensaiar direito o show. Fala sobre o disco "iaiá", o contrato com a gravadora Biscoito Fino, que deverá resultar na gravação de três discos, o teu encontro com músicos do Rio de Janeiro (o pessoal do choro, da Acari, do samba, Maurício Carrilho, a Portela, Tia Doca, Thereza Cristina, Luciana Rabello, Pedro Amorim, Cristina Buarque). Como é que o disco foi concebido? Pode-se dizer que esse disco sintetiza a tua estética musical que já estava presente nos três discos anteriores, nos trabalhos com a Orquestra Popular de Câmara, e que é a tua visão da música brasileira hoje? O "iaiá" foi concebido a partir da experiL ncia do Ponto In Comum. Vieram dele os sambas, a toada "Vingança", os músicos do Rio, o Sujeito a Guincho... Da Orquestra Popular de Câmara, veio a sonoridade do "Menina, amanhã de manhã" e do "Onde ir". Os quatro anos que se passaram desde o Voadeira foram anos de formações diversas, projetos, participações e tudo isso está de alguma forma no "iaiá". “iaiá" é um disco que fala de coisas brasileiras. Tu consegues fazer algo que quase ninguém faz na música brasileira, a preocupação com aspectos da brasilidade, sintetizando em teu trabalho muitas características do cancioneiro nacional. E nesse sentido também a memória da música brasileira está sendo revigorada. Clara Nunes, João Nogueira, Sílvio Caldas, Clementina de Jesus revivem na tua voz. Que entendimento tu tens da música brasileira? Como pensas a nossa música popular na cultura brasileira?

Não tenho idéia. Acho que faço parte de uma nova geração da música popular brasileira. Eu já tinha feito pequenas viagens aos Estados Unidos e Europa, mas a minha carreira no exterior começou em 2000 quando fiz um show em Nova Iorque e recebi uma crítica linda do jornalista do New York Times, Jon Pareles. Isso me ajudou a voltar e abrir o show de uma noite brasileira no Hollywood Bowl, em Los Angeles e o crítico do LA Times, Don Heckman, escreveu outra boa crítica. A partir daí, comecei a fazer turnês pelo menos duas vezes ao ano. Eu sinto o caminho muito parecido com o que venho trilhando no Brasil. A única diferença é que existe há mais tempo na Europa e nos Estados Unidos esse tipo de mercado que estamos formando no Brasil.

Não sou uma acadêmica nestes assuntos e acho que muitas coisas a gente só consegue entender de longe, mas entendo a música brasileira como uma das formas de expressão artísticas mais fortes da cultura do Brasil e isso é maravilhoso. Sendo de uma cidade como São Paulo, acredito que me aproximo do Brasil através do conhecimento da música daqui. O material que se pode trabalhar é infinito e de ótima qualidade em várias áreas, estilos e épocas. Essa foi a forma de expressão que eu escolhi.

O projeto Ponto in Comum, de 2002, foi idéia tua e do Homero Ferreira. Como aconteciam os encontros desse projeto e no que eles contribuíram para a tua carreira?

Mônica, tu conseguirias definir o teu público, qual o perfil das pessoas que ouvem e gostam do teu trabalho? Numa entrevista ao site Gafieiras (gafieiras.com.br) tu falaste que se sentia muito mais identificada, mais próxima à profissão de padeiro do que a condição de diva.

Recebemos um convite do Sesc Ipiranga para idealizar um projeto de música para teatro. A nossa idéia foi criar um projeto de encontros, baseados no trabalho de um determinado convidado, grupo, assunto ou compositor, e criar para o projeto shows bem preparados. A melhor coisa do projeto foi a infra-estrutura de pré-produção. No final, cada show (foram 8 edições) parecia um disco. A gente conviveu com os convidados e eu aprendi uma quantidade incrivel de músicas que não conhecia, de universos dos quais eu não fazia parte. Por isso, foi maravilhoso e muita coisa deste projeto está gravada no "iaiá".

Não sei qual é o meu público e nem se ele tem um único perfil. Acho que não. Vejo nos shows em cada cidade um público variado e misturado e acho isso lindo! O que disse no Gafieiras é que o perfil de diva não tem nada a ver comigo. Trabalho muito em todo o processo que, finalmente, será cantar e isso faz com que me relacione com a minha profissão desta maneira, de "ofício" e não de "dom divino". Não preciso ser paparicada, preciso de um piano afinado, um bom equipamento e um ótimo técnico de som.

E a crítica sobre música no Brasil? Tu lês e acompanhas o que os críticos escrevem? Há críticos que fazem uma crítica consistente ao trabalho de compositores e intérpretes? Na minha carreira, já recebi um considerável número de críticas, quase todas extremamente elogiosas, mas poucas deram gosto de ler. Com poucas, eu aprendi alguma coisa ou achei que o público estava sendo informado. Em geral as críticas são mais comentários, "achismos" ou então, críticas negativas que colocam o crítico "na frente" do artista, sem respeito pelo trabalho que ele faz. Na minha opinião, um bom crítico, deve deixar claro o seu ponto de vista, como um ponto de vista. E deve indicar aquilo que considera relevante no trabalho do artista. Qual compositor tu achas que, simbolicamente, melhor representa a música brasileira? Dorival Caymmi e Chico Buarque. Tu tens conhecimento do trabalho dos novos compositores gaúchos Marcelo Delacroix, Felipe Azevedo, Alexandre Florez, Artur de Faria, Otávio Segala, Ângelo Primon, Adriana Deffenti? E como se dá o intercâmbio dos músicos e compositores daqui do RS com os de SP? A música feita aqui chega facilmente em SP? Conheço o trabalho de alguns artistas (Marcelo Delacroix, Felipe Azevedo, Ângelo Primon e Artur de Faria). A música do sul chega muito mal em SP. É difícil encontrar os discos e só ultimamente tenho visto projetos onde os artistas do sul vêm se apresentar por aqui. Qual é o papel ou o valor da arte e da música? A música é uma paixão pra ti? Penso que a arte é uma necessidade de expressão para o artista e de identificação e expansão para o público. Escolhi a música desde pequena porque tinha facilidade, curiosidade e interesse por ela. Qual a tua avaliação em relação às políticas públicas na área musical? Como analisas os trabalhos do ministro Gil e do presidente Lula? Não gosto de falar de política. Acho que a cultura poderia ser melhor pensada no sentido de haver um planejamento sobre os beneficiados na utilização das leis de incentivo. Essas leis são fundamentais, mas não há qualquer planejamento por parte do governo sobre quem as utiliza. Então acontecem projetos faraônicos, patrocinados pela lei, onde os patrocinadores não gastam dinheiro a mais e recebem em troca (gratuitamente) uma publicidade gigante. Isso não incentiva a cultura. Fiquei muito feliz quando o Lula foi eleito e vi, pela primeira vez, um presidente sinceramente feliz e idealista neste cargo. Foi emocionante. Torço muito pelo governo dele e imagino o quanto deve ser difícil driblar todos os vícios de burocracia e corrupção que pode haver por lá. Na atualidade, quais são suas preferLncias m u s i c a i s ( c a n t o r, c a n t o r a , g r u p o , instrumentista) brasileiras e do resto do mundo? Bobby McFerrin, Maria João, Mario laginha, Arto Tuncboyacian, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Teresa Cristina, Cristina Buarque, Roque Ferreira...... Quais escritores tu mais admiras e aprecias? Ítalo Calvino, Julio Cortazar e Machado de Assis.

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08 olto a escrever sobre a obra de Emanuel MeVolto a escrever sobre a obra de Emanuel deiros Vieira, um mais dos mais destacados escriMedeiros Vieira, um dos destacados escritores tores catarinenses, pela passagem dos catarinenses, agora pelaagora passagem dos seus seus (quase) sessenta Jáem o 1997, fiz em em 1997, em (quase) sessenta anos.anos. Já o fiz breve breve ensaio curso de pós-graduação em Liensaio para o para cursoode pós-graduaçn o em Literatura teratura Brasileira UnB- Universidade de Brasília. Brasileira na UnB - na Universidade de Brasília. Achava e acho que Emanuel Medeiros Vieira tem lugar assegurado entre os que chamarei de “autores dos anos de chumbo”. Não apenas porque suas obras sejam “engajadas”, como gostaríamos de dizer naquela época.

Memórias da Emoção

São engajadas sim. Grande parte da literatura dos anos 70 e 80 era voltada para o debate - à época impossível nos jornais - dos graves problemas políticos, econômicos e sociais brasileiros. Que aliás, agora, em 2004, são os mesmos. Só que agravados. . Mais do que meros denunciadores de mazelas brasileiras, os contos e novelas de Emanuel Medeiros Vieira têm o clima e o cheiro dos anos de sufoco. De um sufoco que julgávamos apenas político, mas que era fundamentalmente existencial. Emanuel Medeiros Vieira escreve sobre aquele povo dos bares, a esquerda festiva, com seus incontáveis panfletos, manifestos e abaixo-assinados rabiscados às pressas, com as suas antologias de contos tétricos e raivosos, seus jornais e revistas de curta duração, com suas obras-primas jamais concretizadas, que viriam para – simplesmente arrasar – toda a produção literária anterior. Diz o narrador de “Cemitério Alado” (de “Um Dia estarás Comigo no Paraíso”): “Me acordei com a garganta doída de tanto falar e fumar. Mas valia a pena. Os vinte e três anos. Garantia com as aulinhas o chope, o cigarro, o bonde, a minha parte no apartamento e uma faxineira , ginástica de manhã cedo, vitamina com leite, Madureza, Pré-Vestibular. Quantas revoluções fazíamos naqueles bares! Cuba estava na nossa garganta. Queríamos fazer Literatura. Queríamos fazer Cinema, escrevíamos roteiros, pensamos num conto de Graciliano Ramos para curta-metragem, iniciamos as filmagens, mas a grana acabou. E líamos. Líamos. Crediário na Livraria Coletânea do Arnaldo, viagens a Montevidéu. A gente estourava por dentro. O Brasil era nosso, o Brasil precisava da gente. Dar o sangue, a juventude, nossos corações, palavras de ordem, “abaixo o imperialismo”, “go home”, “reforma agrária”, “reformas de base”, contra a elitização da Universidade; eu poderia matar essa barata, riso seco, quando terminamos a faculdade, veio 1964, as passeatas, o projeto Mec-Usaid, o diploma, acabou o “estudante”, seremos profissionais, veio o AI-5, a ordem era botar a gravata, trabalhar, deram um chega pra lá e o pessoal se dispersou, na cadeia, no exílio, na acomodação, no ganhar a grana e acabaram aqueles bares, aqueles violões e essas paixões...” Emanuel jamais exorcizou totalmente aquele período. Escreveu e volta a escrever sistematicamente sobre ele. Investe sempre contra os mesmos dragt es: os traidores, os que se vendiam por um empreguinho. Seus narradores são quase sempre aqueles jovens, entre ingênuos e revoltados, que se insurgiam contra a vida que começava a esmagá-los: o sufocante trabalho estéril, as relações amorosas e pessoais destroçadas, a precariedade material, o sexo apressado, o refúgio no álcool, na droga e numa improvável cabana de praia em Garopaba. Emanuel Medeiros Vieira fala dos tolos que imaginavam que só havia um mal a vencer – a ditadura militar. Caindo a ditadura, achavam esses patéticos personagens, estaríamos num paraíso, onde todos os brasileiros viveriam na opulência com liberdade.

LOURENÇO CAZARRÉ*

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Ganhos todos - nós, os rabiscadores dos nossos anjinhos da guarda um estilo que nos permite burlar, mistificar, enganar e trapacear. Escondemo-nos por trás do nosso estilo. Podemos ser, quando queremos, indiferentes à sorte dos nossos personagens, embora torçamos por eles. Podemos mostrar simpatia por um ser humano que não nos interessa. Podemos até, conforme o momento, amar um canalha e desprezar um ser humano decente.

arte: Luiz Gustavo Insekto Caiu a ditadura e nos defrontamos com o mesmo Brasil de sempre: injusto, extremamente desigual, desumano, incompetente, saqueado impiedosamente pelos espertos, desprovido de algo parecido com um sistema judiciário, atopetado de políticos trambiqueiros e venais e superabundante em administradores corruptos. E assim, agora, na virada do século 21, estamos onde sempre estivemos: na pior. Recentemente, falando sobre a inclinação política de um jovem intelectual, um amigo cinqüentão me disse: “Ele é do PT. Hoje, todos eles são do PT, como todos nós fomos do MDB no início dos anos 70.” É verdade. Era impossível para um jovem não ser do MDB nos anos 70. Emanuel Medeiros Vieira esteve no MDB autL ntico, o que fez a travessia para a redemocratização. Escrevo a respeito disso porque hoje estamos vendo morrer mais uma esperança. O Partido que agora chegou ao poder enreda-se nas mesmas armadilhas - autoritarismo, insensibilidade, nepotismo e aparelhamento - que envolveram o PMDB que ascendeu ao poder de carona no governo José Sarney. Os homens que foram seus líderes na transição para a democracia mostraram-se - para dizer o mínimo, para não descambar para a ofensa - incompetentes no exercício do poder. Uma preocupação visível na obra de Emanuel Medeiros Vieira é o apodrecimento moral da nossa geraçn o. Viramos todos respeitáveis espertalhões, barrigudos e grisalhos. Alguns até com poder político. Aliás, fizemos sim. Predamos, dilapidamos e destruímos. E estamos entregando um país ainda mais desigual aos nossos filhos. Essa geração de tolos/espertos a que pertencemos, Emanuel e eu, também me seduz. Acabo de concluir um romance sobre ela. Aliás, a idéia inicial me veio durante uma conversa com o Emanuel, em meados dos anos 80, quando costumávamos tomar cafezinho na Câmara dos Deputados. Só agora, quase vinte anos depois consegui dar um fecho a um texto que ainda vai sofrer muitas e severas releituras. Mas a idéia central – presente igualmente em muitos contos de Emanuel – ali já está aprisionada: nós somos uma geração de predadores. Emanuel Medeiros Vieira escreve como fala. Isso é muito raro.

Mas arrisco-me a dizer que Emanuel Medeiros Vieira é sempre solidário com os seus personagens. É caloroso e generoso para com mocinhos ou tratantes, mocinhas bonitas ou alpinistas políticos. O discurso de seus narradores é invariavelmente caótico, nervoso, elíptico, r e c o r r e n t e , c i r c u l a r, envolvente. A enumeração sistemática é o seu estilo. Seus personagens estão sempre B beira do abismo. Suas vidas se desfazem em meio a um cotidiano vazio, atarefados em desempenhar pequenas tarefas insignificantes. Vivem presos nas teias de relacionamentos superficiais, frágeis, precários, ora raivosos, ora ternos. Os seres emanuelinos estão sempre desesperadamente agarrados a um passado que - nos seus delírios - eles recordam saudosos.

Tudo o que eu posso dizer sobre a literatura de Emanuel Medeiros Vieira ele já o disse de forma indireta, no conto “Sexo, Tristeza e Flores”, que deu nome a uma coletânea que publicou em 1976. Trata-se de um belíssimo conto que usa de um recurso utilizado por Guimarães Rosa em “Meu Tio, o IauretL ”, o melhor conto escrito por um brasileiro. Nele, Emanuel entrega a narração a um escritor marginal, um biriteiro, que acabou de escrever um romance intitulado Os Filhos de Dostoiévski. Considero que Emanuel apresentou naquele conto o seu credo literário. Encerro, reproduzindo trechos do que diz o narrador de “Sexo, Tristeza e Flores”: “Ah, fora do sangue não tem salvação. Veja o senhor, a gente gira sempre no mesmo centro. Sacudidelas na cabeça. Em redor dessas ilhas. Estou cercado de passado por todos os lados. ... Faltam palavras. As que entram, fortes. Não há de ser nada. No bolso do meu capote, tanto frio, há um caderno. É a cachoeira, o livro... Sabe, o senhor que me tomou onze anos? Onze anos. Começei a escrevê-lo num mundo e estou em outro. Esses tempos. Rescrever, cortar, ampliar, sugerir. E envelhecer. Aconselho-o, meu bom amigo: nunca tente um romance. É uma tarefa dura demais para nossos tempinhos medíocres e nossas mãos decadentes. Tarefa vã. Qual a estória? Em verdade, quis muito. É inútil pretender muito. Queria o sumo, o núcleo, a síntese. Em resumo, sexo, tristeza e flores. Escritor anônimo, bêbado, brasileiro, não domiciliado, desempregado, faz saber a todos quantos o presente edital virem ou dele conhecimento tiverem que possui um romance inédito e inútil no roto bolso do seu capote, dando todos a liberdade para fazerem dele o que bem entenderem.” *escritor e jornalista, autor de “Ilhados”, WS Editor


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Não tenho muita consciência desta resposta, podia apenas dizer que uso minúscula porque não usei maiúscula na escritura dos poemas que publiquei a partir do Planisfério, segundo sua informação, consagrado pela crítica e pelo público, pois não me satisfaz ficar tangenciando os questionamentos absolutamente necessários ao processo criativo da literatura. Faço poesia como quem ama; ama exaurindose de paixão, submetendo-a a critérios técnicos formais, onde nunca se afastam a intuição e a imaginação. A matéria-prima usada é a palavra em sua total dimensão. Talvez a insistência no uso das letras minúsculas seja apenas um indício de fugir do convencionalismo sem a pretensiosa transgressão do modismo de circunstância que logo se extingue no tempo sem apresentar nenhum resultado estético convincente. O que persigo mesmo é a uniformidade estética do poema sem o sacrifício do ritmo, sem as amarras dos sinais de pontuação. Gosto de acompanhá-lo livre na sua trajetória, marcado pela beleza que surpreende os olhos e encanta a alma, sem o derramamento próprio da pieguice adiposa para lembrar a expressão da inteligência inquieta do inesquecível talento de Eusélio Oliveira, mesofaciador do Planisfério desde a sua primeira edição. Já li muitos textos seus exaltando o azul. Você tem dois livros de poesia nos quais o azul é a figura de frente. Natal do castelo azul (1986) e Pedras do arco-íris ou a invenção do azul no edital do rio (1998). Seu novo livro carta do pássaro é todo azul. Qual o motivo de tamanha atração pelo azul? Se pela vida afora sempre há a necessidade de escolher, assim gosto do vermelho, mas escolhi o azul. A cor me seduziu e passou a acompanhar e a se incorporar ao meu fazer poético com certeza para consolar o menino que não se conforma em haver deixado a infância na paisagem empalmeirada nas margens do rio Parnaíba, onde um céu limpo moldurava tardes verde-azuis preparando o nascimento do poeta. É forçoso acrescentar que os versos daí surgidos vieram permeados de chão molhado e festejado pela escritura dos pássaros, das cores (sobretudo o azul) impregnadas de fantasia e paixão (erótica) ousando reinventar pela palavra o mundo do sonho na postulação da liberdade como destino maior do homem. E o azul persiste, tendo também origem numa perturbadora paixão infanto-juvenil por uma menina-moça ainda hoje fixada em meus olhos, pastora do Natal que apenas vi num lugar tão distante na geografia de meus sentimentos, mas nunca devastada pelo tempo. Ela era do Partido Azul. Portanto, fica evidenciado que, azul em mim não é apenas um disfarçado ingrediente do poema; ele anda comigo, agarrado a todos os pedaços do meu cotidiano. Ele não se repete. Resiste como o escândalo ante a pureza, essa pureza que se dilui no embate com a hipocrisia dos homens cavilosos deste começo de século. Posto nestes termos, o azul insistente no meu discurso poético não persegue somente a cor; mais do que isso é o ontem projetando-se no hoje para assegurar, pela palavra, o desespero/o desespero/que terrível forma de esperança. Portanto, advirto, é bom não ter medo de deixar o azul entrar luminoso em seu destino. Não me desencontro dele e por ele me encontro com a vida sem ficar distante da paixão. E assim, vivo. Viver é saber estruturar-se na paixão.

entrevista

BARROS PINHO carta do pássaro pássaro escreve escreve na folha no vento na chuva no rio no mar na sílaba do sol na metáfora do canto semântica do verde estranho poeta semente de vida na carta do pássaro Vera Andrade

Observo em seus livros de poesia, citando apenas Planisfério, que se encontra na segunda edição, e que é um sucesso, tanto estético, como de público e crítica, e esse agora carta do pássaro (na minha opinião seu melhor livro, independente de gênero), que os poemas não trazem letra maiúscula. A pergunta é: por que as minúsculas?

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O poeta e escritor piauiense Barros Pinho acaba de lançar o livro de poemas “carta do pássaro” (ed. escrituras). Nesta entrevista, concedida ao poeta e crítico literário Cláudio Portella e também publicada no jornal literário Rascunho ( www. rascunho.com.br), ele fala da paixão pela poesia, ficção e do regionalismo nordestino.

Em 1969, você lançava Planisfério e acabava de sair da cadeia. Prisão essa devido a sua luta contra o regime militar. Fale de sua vida nesse período e até que ponto a luta pela democracia, nos anos de chumbo, influenciou os poetas de sua geração. Em 1969, quando lancei Planisfério, mesmo que eu tivesse lutando tenazmente pela sobrevivência, uma vez que, enfrentava dificuldades para inserir-me no mercado de trabalho, não apenas sofria a história, como de resto, sobra para os poetas, quando estão envolvidos com a perplexidade das circunstâncias cruciais da vida. É bom que se diga que a cadeia não faz poeta, ele para nascer deve estar sempre além desse horizonte. O que faz a poesia é o conjunto da vida, assim, quando cheguei ao 23BC - quartel do Exército - para cumprir a prisão política, embora muito jovem, já levava comigo na bagagem da alma um bom estoque de poesia que precisava de mais leitura e de aprimoramento técnico e do domínio da linguagem. Lá, diante da perplexidade de alguns companheiros ou da lucidez histórica de outros, aprendi uma lição - a da solidariedade - e tive tempo para refletir e para ler demasiadamente a ponto de preocupar uma figura humana extraordinária que me prestava uma atenção paternal - Amadeu Arrais, procurando conversar comigo para me tirar da ânsia com que eu me debruçava sobre os livros. Confesso que a literatura produzida logo, pós64, não ousou em nada, foi uma produção tímida com raras exceções na prosa para José Cândido de Carvalho e na poesia uns poemas engajados de pouca expressão, salvo a produção poética de Carlos Nejar até conformar-se definitivamente na Academia Brasileira de Letras. No Ceará, houve o surgimento do Grupo SIN, nascido com uma postulação equivocada, a de substituir pela negação o Grupo Clã. Os integrantes do Grupo SIN enveredaram na sua grande maioria pela vida acadêmica e está aí na universidade, sobrevivendo, cada um para seu lado, sem preocupação política maior e sem unidade na produção literária. Os anos de chumbo interromperam o processo histórico no plano político e literário, castraram a criação pela censura e pelo pior, a autocensura que se estabeleceu numa desconfiança generalizada nos setores mais conscientes da sociedade. Desconfiava-se de tudo, até do salgadinho numa festa de anivesário. O medo foi a matériaprima da resistência, até alcançar a guerilha do Araguaia. Aí começa outra história, até se alcançar o Estado de Direito Democrático.

Há um rio na vida de cada um. O seu, notadamente, como vemos em sua produção literária é o Parnaíba, do Piauí. Onde nasce e desemboca o Parnaíba em você? O rio Parnaíba nasce e desemboca em mim mesmo. Corre no meu sangue, toma conta do meu corpo e entra no mar das encostas de minha alma. Leva e lava minha solidão. Todos os poetas do Piauí começam e terminam seu discurso poético no rio Parnaíba desde Da Costa e Silva, com o velho monge, até os poetas de hoje, que reverenciam e celebram suas águas barrentas. O rio anda comigo no alforje de minhas esperas e, de minhas esporas usadas para fustigar os cavalos de carnaúba dos meus tempos de menimo. Portanto, tenho apenas um displicente olhar para o mar em Fortaleza ou em qualquer parte do mundo onde eu estiver, mesmo assim, vejo nele o rio Parnaíba - o espelho de minha infância. É o menino teimando com a vida para não ser adulto. O adulto é triste e a tristeza não me completa. mar que se abraça com o rio Parnaíba sabe Deus o destino das águas Seu livro anterior, de contos, A viúva do vestido encarnado, foi uma das principais obras deste começo de século que resgataram o propagado neo-regionalismo. Como você vê esse novo regionalismo? O livro é uma lavratura da aldeia. Ninguém escreve fora de sua vila. A vila é uma janela que se abre para o mundo. A dor do homem do Nordeste é indivisível sem ser diferente da do homem de Nova York. Todos os seres humanos, independentemente da geografia, têm sentimentos parecidos e sofrem a angústia da espera. O neo-regionalismo é uma redefinição da literatura de ficção realista de 1930 (romance de 30) que se faz pela linguagem. Ninguém pode ser escritor sem dominar sua língua e sem incorporá-la à sintaxe do povo. A minha experiência se fundamenta nesta direção. A viúva do vestido encarnado também propõe vencer todos os limites estabelecidos existentes entre a prosa e a poesia. Portanto, um texto único, um gênero só, uma vez que, o que importa é o texto, a linguagem no fazer poético e no exercício da prosa de ficção. Hoje, não há mais disponibilidade de tempo para departamentalização da literatura. Um bilhete bem escrito pode comover tanto que deve ser levado à categoria de literatura. carta do pássaro traz um poema denominado andarandando. O também piauiense Torquato Neto tem um intitulado andarandei. Os poemas falam de assuntos diferentes. Mas, conteúdo à parte, percebo uma releitura entre você e Torquato. Até porque Torquato Neto, além de piauiense feito você, também abusava das minúsculas. Existe de fato essa ligação? E se existe é intencional? Não me ocorre, em tempo algum, haver lido o poema de Torquato Neto, andarandei. Li outras coisas de sua lavra, poemas dispersos, composições musicais publicados em jornal, nada em livro. Como nascemos no mesmo chão sagrado do Piauí e tivemos uma vizinhança na rua do Barrocão, em Teresina, que só agora descobri, é justificável a coincidência, aliás, muito previsível na literatura. Em verdade, na vida, ninguém cria nem inventa nada de novo, recria-se pela grandeza ou pela mediocridade, dependendo do método adotado ou do estilo. Tudo está no mundo à disposição do homem. Portanto, o Torquato Neto, talentoso e inventivo, fez sua parte do lado de cá do rio (aliás, do mesmo rio dele). Procuro fazer o que posso usando letras minúsculas, mexendo com a sintaxe, à procura de minha própria identidade. Só quero o que “me sobra desse latifúndio”. V


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10 sobre um chão de pérolas, ela andava. tudo ecoava em vazios de frio, extremo gelar. lembrava das páginas se desmembrando desconstruindo-se e formando conceitos, conceitos-fantasma. coisas muito fixas, duras que rolavam num movimento que era sempre o mesmo. pedras. pedras em cima. embaixo, pulsões se distendiam em dor e íris e mal-entendidos agressões vulcanizando. estendia pés, pernas, braços para o alto convulsivamente para tocar o morno de saber. mas algo puxava ao frio de não se saber corpo que pensa. e ela tornava-se vários assim, descolava cintura e pernas e ventre e estômago, tornava-se cacos, caos, contornava-se.

leve amanhecer depois do porre e das palavras perdidas. é domingo. é dia de sol. acordo com o barulho nada musical do despertador. acatarei os afazeres domésticos? farei os pães de queijo, poemas brilhosos que não lembram noites sem afagos. abrirei minhas portas para o mundo, irei até a sacada cantar refrões do Legião Urbana. revirarei todas estas fotos que nem parecem ser minhas. levarei pra fora o lixo. como não ser leve neste dia? depois do transe, do abuso sobre a carne já podre. o ontem, limparei como estes pratos do café da manhã. não vou lembarr que vinho bebi daquelas geladas salivas. não vou comiserar as culpas que não são minhas. pensarei que não há moral. ficarei assim nua, limpa até anoitecer então uma estranha fome virá, o vento será mais gelado e serei levada TELMA SCHERER, 25 anos, viciada em saraus, teatro e filosofia, prefere a palavra viva da poesia. Publicou em 2002, Desconjunto, Ed. do Instituto Estadual do Livro (IEL).

N

antes eu era simples e por isso sabia escrever. era menina de sol ardente sorria em pássaros e pintas de cores ver o grande Ser e seus entes não era simples tarefa. eu - como era simples - podia tê-los porque tinha olhos lúcidos as mãos suavam e o vento batia batente sacudia ainda os cabelos agora não mais escrevo perdi um jeito de estar distraída no que sou agora impossível decifrar a composição nem mais face tenho, brisa fumaça só a música - ainda mais complexa fico ouvindo no ar fechado entre paredes brancas, quase desiguais

aquele verão, todas as noites ele punha a tevê aquele vern o, todas as noites ele punha a varanda ee sentava-se sentava-se absorto absorto diante diante do tevê nanavaranda aparelho. Entretanto, parecia escutar um som de fundo, como o som delicado das harpas. Era como se ALEXANDRE FLOREZ ágeis e delicados dedos de mãos diáfanas e invisíveis alexandreflorez@ig.com.br dedilhassem as cordas ao vento produzindo estranha melodia. Ao mesmo tempo suave e inquietante. Naquela noite em particular a melodia - Xô! Passa! Xô! Xô! Nn o surtiu que ouviu nn o era a mesma de tantas noites seguidas. efeito. As criaturas celestes simplesmente Ao contrário das outras vezes, quando a música o ignoraram. Obstinado, entrou na casa e parecia fluir de todos os cômodos da casa, agora sem demora estava lá diante das criaturas podia ser detectada como vinda do quintal. e trazia alguns fogos de artifício. Soltou os Movido pela curiosidade inerente aos fogos. O efeito foi decepcionante. O homens e aos gatos, ele se levantou do conforto da barulho ensurdecedor perturbou mais a sua poltrona e, embora um tanto receoso, teve ele próprio. Numa outra tentativa chamou coragem bastante para se dirigir ao quintal e o cachorro, mas nem sinal do bicho. averiguar. Quando chegou ao quintal munido de Desesperado ajoelhou-se, mn os unidas, lanterna, deparou-se com meia dúzia de serafins arte:contrito, Luiz Gustavoimplorou Insekto a Deus com fervor. empoleirados sob a copa do enorme abacateiro. Nada surtia efeito. E os seis continuavam Refeito da surpresa, achou engraçado. Teve vontade ali, dedilhando de forma angelical as suas de rir, mas se conteve. Depois de observá-los melhor liras. notou que trL s eram brancos, muito brancos, com O homem passou a noite inteira brancas túnicas, inclusive. E os outros trL s eram tentando espantar as criaturas que azuis. Sem saber como agir, ficou ali alguns minutos teimavam em continuar preguiçosamente observando até que a idéia de um mau presságio recostadas nos galhos do abacateiro. invadiu sua mente. Entn o, associou aquilo B ameaça Passou a madrugada pulando como um de alguma catástrofe para si, quiçá para o mundo macaco, fazendo caretas, dando uivos inteiro. Apesar de ser um homem de formaçn o lupinos e rogando pragas. Nada. Até que lá católica, tomou rapidamente uma decisn o: era pelas sete da manhn , exausto, sem fôlego, preciso enxotá-los dali. Assim sendo, avançou na com dor nas pernas e atacado de uma direçn o do imenso abacateiro balançando os braços e rouquidn o brutal, mirou pela última vez o gritando: ar de descaso dos anjos e foi se deitar.

a falta de algo me falta. tenho tudo. então corro a chorar pelas ruas procurando o que não tenha. mas estou em todos os lugares e todas as idéias foram minhas e todos os talentos. volto só e cheia do mundo. nada lá fora melhor que eu. então choro por ser absoluta e absolutamente enganada. o que poderia ser menor? em mim toda sujeira do mundo nem o nojo de mim me falta. então, grandiosamente triste, volto ao meu travesseiro e tudo me falta. Durmo.

leitura procuro estar com todos mas procuro estar comigo acima de tudo sozinha pra ver se me curto se me sei ou pra ver se sou eu mesma

A POESIA DE CADA DIA

nesta faina de escrever me perco em melodias em cefaléias vãs procuro o poema puro desfaço os feitos refaço defeitos procuro o barulho da chuva desligo o som alivio a pressão nas têmporas depois volto na velha teima e teimo comigo e com outros que nem sei se lerão algum dia faço-desfaço tento dormir meu sono-verso mas sempre uma palavra incomoda e traz de volta o berço do rarefeito, no ar

fico, então, estas horas na biblioteca ou sobre a escrivaninha encurvada em mim e leio a minha história desligar do mundo dos corpos da existência de outras almas que todas elas sou e todas elas vivo às vezes me escrevo

O Fim dos Tempos e dos Abacates

Na cama, antes de dormir, conjecturou. Talvez as apariçt es fossem um sinal do fim do mundo. Sim, convenceu-se. O fim do mundo estava próximo. E pensar que tudo começaria ali, mais precisamente na copa do abacateiro no quintal da sua casa. Depois de meditar melhor o caso, resolveu que nn o podia conformar-se com o fato da destruiçn o do mundo. Aquilo nn o poderia ficar assim. Ele tinha de dar um jeito, afinal era sua responsabilidade salvar ou quem sabe ao menos adiar a derrocada do mundo. Certo que o mundo nn o era mais o mesmo. Havia um exagero de malefício e de pecado campeando B solta. Mas era seu mundo. O dever dele era tentar preservá-lo para poder um dia tentar mudar tudo isso. A s portas do sono ele virou para o lado e lembrou dos seis serafins. TrL s brancos e trL s azuis... Por fim, adormeceu repetindo para si mesmo: Fosse o que estivessem fazendo ali, quando acordasse, provavelmente ao cair da noite, ele iria encontrar uma maneira de espantá-los.


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CONTRA-GOTAS

SORTE

NANO COSTA

ma tênue fumaça acre - cheiro de enxofre, pólvora queimada - saía do cano da pistola, no chão, ao meu lado. O recuo, quando o tiro foi dado, fez com que a arma caísse. Fez-se um silêncio ensurdecedor no quarto. Passados alguns instantes... - Você errou -. Ela disse, num sussurro. - Não... não errei . Foi... foi só... foi só o tremular da minha mão. Queria que tudo fosse rápido, que não doesse, mas não consegui -, retruquei. - Não sinto dor nenhuma -, disse ela, por fim. - Eu sei -, respondi, cabisbaixo, tristonho. Depois de algum tempo, levantei o rosto e nossos olhos se encontraram. Vimos, naquele momento, mais que antes, o quanto estávamos distantes. “Desde quando?”, cheguei a pensar. A mancha de sangue, pouco a pouco tornando-se cada vez maior, nos unia. Ia do corpo dela ao meu. E eu continuava a buscar explicações, apesar de tudo. Por fim, não agüentando mais, disse, em voz alta, juntando todas as minhas forças para que ela ouvisse antes de... - Eu te amo... A resposta? Um farfalhar de roupas que se dissolveu no tempo e no espaço. Ela não ouviu. Não havia como ouvir mais nada. Fora embora dela mesma e de mim. Fora ao encontro do amante. Eu?, não sei... ao encontro de mim mesmo, talvez. Ou, quem sabe,... Ela ainda teve um cadinho de decência ao pagar o anúncio, em um jornal da periferia, de circulação muito restrita, da missa de sétimo dia pela minha morte. Sorte minha...

U

nanocosta_poeta@yahoo.com.br

AS MULHERES

QUADRINHOS

INSEKTO

*** MITO PRAIANO

Sanderson

$ “As pessoas feias têm mais tranqüilidade, porque não se preocupam com a complexidade da beleza. Há pesquisas, no entanto, que dizem que os feios dispensariam essa tranqüilidade”. FELISBELO DA SILVA - Fortaleza - CE

KÖLE

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CRUZADAS MANJADAS HORIZONTAIS - 1- Conjunto de bens do falecido - Movimento dos Caloteiros e Intermediários - 2 - Peça do jogo de xadrezFluido infinitamente compressível - 3- Festim liberado - Caule das canáceas - 4-Tanger - Local pela qual se dá a entrada da casa- 5- Luzes do palco - 6- Imundície - Gravidade (símb.) - 7Perfeição - Informação - 8- Criada - País campeão em emissão de gases poluentes - Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico 9- Estar entregue ao sono - Dupla - 10- “Associação dos Solitários Anônimos”, livro de Rosário Fusco - Desordenada - VERTICAIS- 1- Deus da mitologia grega- Dito engraçado - 2- CuroRancorosa - 3- Embaraçar a garganta - 4- Relativa aos sonhosMestre de Cerimônias - 5- Luis Humberto Alcântara, assessor parlamentar - Mamífero marinho ameaçado de extinção -6- Caminhava - Semelhante - Urologista(abrev.) - 7- Oxigênio (símb)Ardente(fem.) - 19a. letra do alfabeto - 8 - Zélia (...), escritora (...) Cavalcanti, pintor - 9 - Idéia fixa - Conselho Nacional dos Usurpadores Canalhas - 10- Corte - São Paulo, cidade da (...).

Na praia da Virtude, debaixo da árvore, um Banco chorava... Via o mar se afogar nas entranhas do infinito, o lume do sol prateando as ondas em seus giros, as pedras gritando açoitadas pelo mar (Phatos?) e quando o céu fazia do mundo uma caverna, Selene flutuava, nua, trêmula, serpenteando a água salgada que jazia... O vento rufava e trazia o sal, veloz o deixava escapar das mãos, germinando as lamúrias do Banco, que calado sofria... Tentava se mover, mas a calçada era seu cárcere! Queria aquecer seu corpo de cimento, rachado no peito, mas permanecia cativo à sombra da eterna companheira! Sonhava com Selene deitando em seu colo pinchado, sonhava com as ondas o levando para algum lugar inabitado... Tinha como Virtude sonhar, mas quando descobria a realidade... Como era difícil admirar e não poder tocar.

*** V Número 14 - Janeiro/2005 V I vivavaia@ ig.com.br

V

WELLINGTON LAVAREDA wlavareda@zaz.com.br

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Foi no psicólogo... “Doutor, eu não sei o que está acontecendo comigo. Acho que estou enlouquecendo, vou à praia e vejo aquelas mulheres quase nuas e não sinto mais nada, vejo aquelas beatitudes, apenas como pedaços de carne, algo que não me excita, não me atrai, por mais belas que sejam, por mais curvas que tenham... Acho que estou ficando velho, prefiro as vestidas, calça jeans colada na bunda flácida, que me façam imaginar curvas, sonhar, mas ali nuas, são tão simplórias, sem encanto, gosto de sal e bronzeador, são descartáveis, vulgares, apenas um monumento à beira-mar... ainda prefiro tirar seus vestidos em um quarto a meia-luz, desvendaria o corpo feminino por minhas próprias mãos, descobrindo contornos, formas, poder tocar na calcinha, o fogo, beber o vinho dos seus corpos, transformar tudo em grandioso...é fazer parte do mundo do desejo, de se amar e ser amado... Não agüento mais ver carnes bronzeadas, não quero sentir cheiro de animal no cio... Acho que Eva foi apenas uma reprodutora (de sonhos não permitidos?)... Será que meu sentimento de amor morreu?... Doutor me responda o que está acontecendo comigo, o que tenho de errado, o que faço para sarar? Diga! Vamos! Por favor, ajude-me a acabar com esses pensamentos, estou enlouquecendo... O que tenho doutor? Eu sou normal?” E calmamente o psicólogo respondeu: “Pare de ler Platão!”

Editor: Marco Marques Redator: Serpílio Atrabílis Projeto Gráfico: Gil Pires Jornalista: Carla Etiene Mendonça Silva - RPMT-8903 Foto de Capa: Marcílio Godoi Colaboram nesta edição: Alexandre Florez, Aricy Curvello, Charles Abbeg, Cláudio Portella, Cláudio Santana, C. Ronald, Emanuel Medeiros Vieira, Fábio Cezar, Fábio Lucas, Felisbelo da Silva, Fernando Ramos, Franklin Jorge, Ita Arnold, Lari Franceschetto, Laurene Veras, Lourenço Cazarré, Luiz Gustavo Insekto, Manuel González, Nano Costa, Qaíqe Qomé, Ronaldo Cagiano, Wellington Lavareda.

OS ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES ? Rua Demétrio Ribeiro, 706/601- centro-90010-312 Porto Alegre - RS - BRASIL - Fone:(51)-9649-5087


MALDITO E INCOMPREENDIDO

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impagável e original Glauco Mattoso está de volta à cena com toda sua carga criativa, dando continuidade à sua irreverência, ao seu humor iconoclasta e - por que não dizer? – à sua ojeriza contra tudo o que é acadêmico, bemcomportado ou política e poeticamente correto. Desta vez, o autor do antológico Jornal Dobrabil (1977/81) e de Memórias de um pueteiro (1982), Limeriques (1989) e Centopéia: sonetos nojentos & quejandos (1999), traz-nos em Melopéia – Sonetos Musicados ( Rotten Records), uma fusão de ritmos e formas, conceitos e temas, numa fluência que incorpora o sagrado e o profano, o bom e o mal, o nobre e o plebeu, proclamando os extremos. Uma amostra dessa safra está em “Ao maior”, na voz de Madan: “Maior é o sentimento que o sentido./ Maior é a solidão do que a saudade./ Maior é a precisão do que a vontade./ Maior é Deus, segundo o desvalido./ Maior é o sabichão do que o sabido./ Maior é a servidão do que a majestade./ Maior é o masoquismo do que Sade./ Maior é o meu poeta preferido./ Quem faz muito soneto, cedo ou tarde/ acaba produzindo uma obra-prima,/ contanto que não faça muito alarde./ Por trás da mera métrica ou da rima/ esconde-se a coragem do covarde/ e o medo, que jamais me desanima”. Tido como maldito, sarcástico, irônico e anárquico – suas criações não poupam ninguém – sua obra tem sido recepcionada em resenhas ou por críticos e ensaístas aqui e no exterior. Mesmo assim, a produção mattosiana carece de uma incursão que se abstenha dos clichês e preconceitos que acompanham sua análise, em razão de seu declarado fetiche por pés (pedolatria), o culto à coprofagia, ao sadomasoquismo e outras “subversões”. Esse homoerotismo presente em seus textos, principalmente nos sonetos particularíssimos, que não guardam a rigidez da métrica tradicional, revela a disposição do autor em contrariar regras, polemizar e transgredir ordens (morais, estéticas, estilísticas). Há mais de trinta anos mantém-se fiel ao papel primordial da arte, que é o de despertar reflexões e questionamentos, nunca apatia, conformação ou apreciações homologatórias, desviando, assim, sua atitude criativa para outros referenciais, longe das acomodações. Indigesto para uns e perturbador para outros, Glauco Mattoso continua sua arte solitária e corrosiva, incompreendido e excluído, mas nunca ignorado. Mas sobrevive pela sinceridade de sua postura demolidora de valores estabelecidos, crendo na sua independência e autonomia criativas, e na possibilidade da transgressão como recurso para alfinetar as verdades absolutas, boicotar os guetos e sabotar os cânones - dos tradicionais aos vanguardistas. Pedro da Silva, nascido em São Paulo em 1951, formado em Letras e Biblioteconomia, é o nome desse autor que iniciou sua carreira na década de 1970, estreando na geração mimeógrafo e na poesia marginal, passando pelo concretismo, pela poesia visual e o experimentalismo. Adotou o heterônimo de Glauco Mattoso, trocadilho de “glaucomatoso” (portador de glaucoma congênito, que o deixaria cego a partir de 1990). .Quer queiram, quer não, a poesia brasileira depois dele nunca mais foi (nem será) a mesma. RONALDO CAGIANO autor de “Concerto para arranha-céus”, 2005


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