Jornal Vaia edição 18

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mistura &manda DIA DO SAMBA - No dia 2 de dezembro comemoramos o Dia Nacional do Samba. Mas por que exatamente nesse dia? Bom, há duas versões a respeito. A mais conhecida diz que, na primeira viagem de Ary Barroso à Bahia, assim que ele botou o pé lá, um vereador propôs uma lei declarando aquele dia como o Dia do Samba na Bahia. A partir do ano seguinte, a data foi adotada pelo país todo. Falta total consistência a esta versão. No livro No Tempo de Ary Barroso, o jornalista Sérgio Cabral menciona duas viagens de Ary à Bahia. A primeira foi em 1929, não em dezembro e sim em janeiro, como referido à pág. 47: "Passado o reveillon, Ary não teve tempo de descansar. Foi convidado pelo maestro Napoleão Tavares para participar de sua orquestra, numa excursão à Bahia. (...) Nenhuma viagem foi tão importante para o compositor do que a de janeiro de 1929. Ary Barroso ficou, literalmente, apaixonado pela Bahia." Duas cartas ajudam a saber quanto tempo Ary ficou na boa terra: ainda de Salvador, informava à então namorada, Ivone Arantes: "Ficarei aqui até o carnaval" (pág. 48); já no Rio, escreveu carta a ela, que se encontrava em Barra Mansa (RJ), mencionando março como o mês corrente (pág. 49). A outra viagem citada foi em junho de 1956. Como informa Cabral à pág. 358, Ary esteve em Salvador para receber o título de Cidadão Baiano - afinal, escreveu pelo menos 11 músicas inspirado na Bahia. Lógico que ele até pode ter ido outras vezes, mas ninguém consegue dizer em que ano te-ria se dado essa viagem que inspirou a lei. Além disso, a lenda incorre num erro crasso: vereador só pode legislar no município, de sorte que ou foi um vereador que propôs a lei para Salvador, ou foi um deputado estadual que a postulou para o Estado da Bahia. Mesmo com todas estas evidências contrárias, a lenda continua viva. O site do Ministério da Cultura, que traz o nome do vereador Luís Monteiro da Costa como autor da lei, também não consegue precisar o ano em que se instituiu a comemoração. Além disso, menciona que Ary teria escrito "Na Baixa do Sapateiro" apesar de não ter visitado nenhuma cidade baiana, até então (sic). A música é de 1938, nove anos depois da primeira temporada baiana de Ary... DIA DO SAMBA (2) - A outra versão acerca de por que 2 de dezembro é o Dia do Samba quer fazer crer que esta seria a data da gravação do primeiro samba, "Pelo Telefone", de Donga e Mauro de Almeida. Só que a gravação original de "Pelo Telefone" se deu em janeiro de 1917, apenas como instrumental pela Banda Odeon, e a seguir, em fevereiro, pelo cantor Bahiano e o conjunto da Odeon. O registro do samba na Biblioteca Nacional, no Departamento de Direitos Autorais, foi solicitado em 6 de novembro de 1916, com adendo do autor no dia 16. O registro foi emitido em 27 de novembro. A partitura foi impressa em 16 de dezembro. Como vemos, nada com o dia 2 de dezembro. Além de tudo isso, não custa lembrar "Pelo Telefone" NÃO FOI o primeiro samba composto, nem ao menos gravado. Existem referências ao samba na imprensa de Recife desde 1837, e gravações comprovadas desde 1913, tanto no Rio quanto em Porto Alegre, pelo menos. O valor histórico de "Pelo Telefone" é de ter sido o primeiro samba a fazer sucesso no carnaval. Em suma: não há como saber por que o dia 2 de dezembro é o Dia Nacional do Samba. Mas, enfim, que bom que alguém resolveu dedicar um dia ao samba!!! ISMAEL SILVA - Em 14 de setembro, completaram-se 100 anos do nascimento do sambis-ta Ismael Silva (1905-1978). Logo no início da carreira, nos anos 1930, ele caiu nas graças do cantor Francisco Alves, que gravava com exclusividade grandes sambas como "Se Você Jurar", "Nem é Bom Falar" e "O que Será de Mim?", que Ismael escrevia ao lado de parceiros como Nilton Bastos, Lamartine Babo e Noel Rosa. Com Noel, também, Ismael chegou a gravar alguns discos. Mas talvez sua maior contribuição ao samba tenha sido mesmo a participação na criação da primeira escola de samba, a Deixa Falar, no bairro carioca do Estácio, em 1928. Ismael, Nilton e outros sambistas do Estácio buscavam um modelo de samba que favorecesse o desfile aos moldes do que faziam então os ranchos carnavalescos. O samba amaxixado dos anos 20 não correspondia ao ideal deles. Após um período de grande sucessos na voz de Francisco Alves, Ismael desentendeuse com o cantor, além de passar um período preso ao final dos anos 30, afastando-se então do meio artístico até meados da década de 50. Aproveitamos para desfazer outro mito: ele teria ou não participado dos Festivais da Velha Guarda? É lugar comum afirmar que ele esteve em São Paulo por ocasião destes festivais, promovidos pelo radialista Almirante em homenagem a Pixinguinha, nos anos de 1954 e 1955, sempre no mês de abril. Não só há uma insistência em que ele teria estado na Paulicéia em 55, como se costuma atribuir a este fato seu retorno ao cenário artístico nos anos 50. Não localizei nenhuma evidência da presença de Ismael em São Paulo em nenhum dos dois festivais. É certo, ele participou de dois discos coletivos lançados pela Sinter em 55, intitulados A Velha Guarda e O Carnaval da Velha Guarda, bem como do LP intitulado Festival da Velha Guarda (1956). Vejamos o que sua biógrafa, Maria Thereza Mello Soares, fala da ligação de Ismael com o festival no livro São Ismael do Estácio - O Sambista que Foi Rei (1985): "O espetáculo, exibido com sucesso na capital paulista e muito comentado pela imprensa, despertou o interesse dos estudiosos da música popular brasileira, que escreveram vários artigos e biografias exaltando intérpretes e compositores de samba, alguns deles valorizando particularmente Ismael Silva - fazendo justiça e enaltecendo sua participação em nossa música popular." Ou seja, foi a partir do interesse em geral por músicos considerados da Velha Guarda que Ismael recebeu o convite para cantar algumas faixas nos LPs citados, além de gravar dois discos solo, O Samba na Voz do Sambista (Sinter, 1955) e Ismael Canta Ismael (Mocambo, 1956) e estrelar o show O Samba Nasce do Coração, produzido em 1955 por Zilco Ribeiro para a boate Casablanca. Infelizmente, pouco depois o sambista voltou a ser deixado de lado, aparecendo raramen-te no mercado musical. Só voltaria a gravar um disco solo, Se Você Jurar, em 1973, além de participar de outros discos dedicados a sua obra até 1976.

FABIO GOMES Editor dos sites www.brasileirinho.mus.br e www.jornalismocultural.com.br

arte sobre foto de MARLENE REINALDO

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VIOLÃO BRASILEIRO uma engrenagem de cordas geniais oror volta aoBrasil, Brasil,via via Espanha, voltade de1580 1580 chegou ao Espanha, a a guitarra mourisca. guitarra mourisca. Mais tarde, com algumas modificações, pelas mãos de Antonio Torres, em 1863, chegaria ao formato que conhecemos hoje e com a denominação de violão. Ronoel Simões afirma que o violão chegou ao Brasil trazido pelos portugueses do Norte de Portugal e chegando aqui "os nossos indígenas se aclimataram com o violão, gostaram do violão e logo começaram a estudar o violão." Não se sabe ao certo quando este nome foi dado, mas é apenas no Brasil que este instrumento é chamado assim. Esta é uma das tantas teorias a respeito do Violão Brasileiro. Num dos seus últimos livros Tinhorão afirma categoricamente que "a viola foi o instrumento predominante na música popular até ao final do século XIX". Há quem diga que da viola-de-arame (de quatro pares de cordas) o nome violão foi praticamente uma "evolução natural", uma vez que o novo instrumento tinha formato semelhante, porém de maior tamanho e com maior número de cordas duplas - seis pares, mais tarde, seis cordas simples. Entretanto, é de consenso geral que a viola (antes de arame, hoje caipira) se expandiu no ambiente rural, e o violão no ambiente urbano. Óbvio também que ambos são instrumentos profundamente enraizados na alma popular. Muniz Sodré no seu livro "Samba o dono do corpo" cita um outro autor (Oneyda Alvarenga) que diz que no processo de reprodução da rítmica afro-brasileira o "...próprio violão, que não é instrumento africano, termina obedecendo ao mesmo processo de execução dedilhada dos instrumentos de corda negros". Típico ovo de Colombo este assunto e quem botá-lo de pé ganha um prêmio. Como um instrumento tão popular pode ter uma origem tão obscura? O livro com 02 CD's e DVD - VIOLÕES DO BRASIL aborda este e outros assuntos bastante pertinentes ao momento atual que passa a cultura brasileira. Talvez cause perplexidade, mas nunca neste país vi e senti com tanta intensidade a preocupação de artistas e intelectuais em discutir questões relativas à cultura brasileira. Sim, isso a gente não fica sabendo, o caro leitor amigo deve ter pensa-do, a mídia não mostra, mas, meu véio...está sendo feito. Turibio Santos em seus depoimentos explica em determinada altura que "existe uma linhagem que forjou o violão brasileiro: Villa Lobos, João Pernambuco, Nicanor Teixeira e Rafael Rabello. Estes quatro nomes formaram a base, a sustentação do que é o Violão Brasileiro hoje". Peço licença, mas gostaria de discordar desta visão. Tá parecendo papo popular de escalação de time para a Copa? Pode ser. Mas talvez como todo violonista fanático e obsessivo me reservo o direito de escalar o meu time preferido. Começaria com dois caras que já de início transitaram no universo erudito e popular com muita maestria: Satyro Bilhar e Quincas Laranjeira. Em seguida colocaria o Villa Lobos e o João Pernambuco juntos (fe-cho aqui com o Turíbio). Na seqüência entraria em cena um cara genial chamado Garoto (Anibal Augusto Sardinha). Dilermando Reis faria tabelinha e passaria a bola paralelamente para o Baden Powell. João Gilberto fecharia o placar juntamente com o Rafael Rabello. A seqüência é explícita, mas posso me explicar. Satyro e Quincas são contemporâneos. João Pernambuco e Villa Lobos idem. Garoto e Dilermando desenvolvem estéticas diferenciadas. Baden assimila e é influenciado por ambos. Garoto influenciará João Gilberto e Rafael será profundamente influenciado por Baden, Dilermando , João Pernambuco, Paco de Lucia, etc, etc, etc... Dino Sete Cordas? Bom aqui é um caso à parte na hora de marcar o gol, enfim o goleador que fica na manga. Capacidade de síntese única. Reformulou tudo o que se podia pensar até então sobre contraponto e contracanto nas baixarias do choro. Graças a quem? Ao convívio com outro gênio: o Santo Pixinga. Gostaria finalmente de dizer que estas pessoas de uma forma muito própria e única atingiram em suas criações aquilo que considero uma obra de arte: fazer as coisas simples terem uma profunda complexidade e transformar a complexidade em algo profundamente simples. Precisa mais? Acho que não.

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FELIPE AZEVEDO, compositor e violonista felipaz@terra.com.br

www.felipeazevedo.com.br


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ensou que eu não vinha mais/ pensou, cansou de esperar por mim/ acenda o refletor/ apure os tamborins/ aqui é meu lugar, eu vim...”

Com estes versos, Chico Buarque de Holanda presta homenagem - justa e merecida - à grande arte brasileira, objeto da sua paixão eterna: o Samba. Otávio Segala, Clóvis Itaquy e Sandro Dornelles arrematam na sua composição Sambar faz tremer o chão: "Vou te avisar/ só te avisar/de tamanho brilho esse samba é a felicidade..." Acho que minha felicidade começou quando o samba me foi apresentado, ou seja, no berço. Pelas cantigas de minha avó Eva. Seu repertório era pequeno, porém seleto. Cantarolava Ataulfo, Noel, Túlio Piva, Geraldo Pereira. Depois, molecote, freqüentava o samba de terreiro em casa de Dirceu, pai de meu amigo de infância Paulo César. Nos fins de semana, nas noites calorentas de verão, o terreiro se enchia de partideiros. Tia Marina, mãe de Dirceu, vó Florência, sua sogra e tia Didi eram as pastoras. Ouvia-se de um tudo. De Adelino Moreira, Ismael Silva, Donga, Lupicínio, Pixinguinha... E a molecada lá, só espichando os ouvidos, ensaiando os primeiros passos. Nunca houve na minha lembrança terreiro mais iluminado. Como disse Túlio Piva no seu samba inesquecível, naquelas noites de magia eu "acreditava que a lua fosse um pandeiro de prata". Mais tarde conheci o jongo e o tambor de crioula na Coxilha do Fogo, próximo a casa de meu avô Heitor. As rodas se formavam ao anoitecer e atravessavam a madrugada. Próximo havia um campo de futebol de um time varzeano, o Cruzeiro, e a tenda de frutas do velho Arlindo. Passei momentos inesquecíveis nesses lugares de culto à brasilidade, ao samba. flor dos anos,Gargalo Gargalo ainda ainda Na flora dos seusseus 42 42 anos, mora com os pais.É um rapaz comum. mora com os pais. É um rapaz comum. Não Não trabalha. A conjuntura cotação trabalha. A conjuntura e ae acotação internacional da ração paramarsupiais marsupiais internacional da ração para estão sua atuação no mercado, estãoprejudicando prejudicando sua atuação no segundo ele. mercado, segundo ele. - Aí, Gargalo, desde que aquele circo australiano foi embora, você não muda o discurso pra não ter que trabalhar! - brada sua mãe, quase sem esperanças. - Mãe, é só questão de tempo, logo aparece outro circo por aqui, sou um profissional gabaritado... - Gabari-não-sei-o-quê é o escambau, Gargalo! Alimentar coalas e cangurus lá é carreira! Gargalo tem se ocupado ultimamente apenas em acompanhar suas tias vitalinas até a agência bancária pra sacar suas aposentadorias. Ele diz que é perigoso que as pobrezinhas andem por aí sozinhas. Chegando na agência, faz a manjadíssima cara de cão que caiu de caminhão de mudança, que, invariavelmente, funciona. Sempre fila o da cerveja. Quem há de negar que um homem que trabalha uma manhã por mês seja financeiramente bem sucedido? Quão injusta é a mãe de Gargalo... Ganhou esse apelido quando adolescente, por dois motivos óbvios: sua bestial aptidão etílica e seu pescoço alongado, que, de fato, parece um gargalo. - Alô. - Quem é? - É o Beto, ca-ma-ra-da... - Não, não e não!!! - "Não" o quê, Gargalo? - Não vou, Beto, estou liso. - Eu não falei nada! - Te conheço, alcoólatra... - Só uminha. - Tá vendo? Eu sabia. Não insista. - Você não vai ficar me devendo nada. - Não interessa.

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Eu sou do Samba!

BARROS - 1907

Ah, o Samba! O verdadeiro Samba me comove... Eu que sou brasileiro nato, mestiço índio, negro, judeu, espanhol, alemão; e pobre. O samba me comove, transborda meus ouvidos, sacoleja meu corpo, descompassa meus passos e marca a cadência do meu coração, com seu sotaque congo/lundu! Ah, o Samba! Mestiço como eu, hoje vilipendiado. Atacado por grupelhos alienígenas à cultura e, portanto, motivadores da sua desconstituição. Ah, o Samba ao qual eu amo com paixão de mestre-sala. Me comove e embala meus sonhos de moleque boleiro. A catimba do Samba, a marcação, o enredo. Tudo compondo um corpo trigueiro e mulato. Um corpo sensual e tremelicante, o corpo luxuoso de uma cabrocha dengosa, pisando manso meu coração desavisado. O Samba me comove. Não esse samba muxoxo, essa xixica arrevesada com jeitos e trejeitos andróginos cujas harmonias e ritmos se empobreceram. Por culpa, obra e descaso da burrice popular imposta à sociedade pelos "mandantes do crime", promotores dos escândalos da verdadeira pornografia que é negar ao povo uma vida digna. Com direitos mínimos e básicos, saúde, educação, cultura, segurança. Isso não lhes interessa...

Gargalo ROGÉRIO LAMAS lord_lama@hotmail.com

R. VINCENT

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- Imagina uma noivinha fumaçando de gelada. - Sem tortura, canalha. - Tô indo aí te buscar! Falou? -Não vem não, que eu já saí. Mãe, o Beto tá vindo aqui, me arranja um vale transporte - pensando ele numa fuga perfeita. Gargalo em hipótese alguma bebe fiado, nem tampouco pede dinheiro emprestado pra encher a cara. - Questão de princípios. Acho decadente um homem que bebe com o dinheiro que não tem estufa o peito, orgulhoso do próprio caráter. Nildinha, sua namorada há doze anos, é uma sonhadora. Atendente de uma farmácia de dia, faz cursinho de secretária no Senac à noite. Espera incansável que Gargalo arrume um trabalho e se case com ela. - Anota esses Nildinha: Amoxilina, Keflex 500mg, Geriatril. - Aí Gargalo, não vou roubar a farmácia de novo, isso não é certo! - Ah Nilda, não começa, tá? - Ainda vou ser presa por sua causa!

O Samba descido do morro no começo do século vinte. O Samba mestiço jongo/semba/umbigada/côco, nascido nas rodas, nos terreiros, nos arrabaldes, onde pretos, mulatos e brancos pobres se ajuntavam. O samba comovente é aquele parido nos guetos e, por tal motivo, até as décadas de 1930 e 40 (apesar do carnaval), mesmo sendo um representante legítimo das comunidades periféricas, era discriminado. “(...) Vai passar nesta avenida/ um samba popular/ cada paralelepípedo desta cidade/ esta noite vai se arrepiar/”, cantava o mestre Chico Buarque, reverenciando mais uma vez o Samba e traduzindo a apoteose carnavalesca de um povo tão grande e tão bom! Ah, meu Samba, tu me comoves até a medula. Lembro e repito, num eco desavergonhado, o ritmo literário de Rubem Braga teu fã, como eu, quando magistral descreveu numa crônica: "Batalhas de confete, no Largo do Machado em 1947". Ponto tradicional da cidade do Rio de Janeiro... Vai meu Samba, meu Rei Congo, meu Zumbi, disfarçado em acordes eletrônicos. Nem assim hão de deixar de reconhecer a síncope nas tuas batucadas. Saravá, meu Samba! Bendito sejas tu e os primeiros que fizeste ser teus compositores. "Eu sou o Samba/ a voz do morro/ sou eu mesmo, sim senhor..." cantava Zé Kéti, enquanto daqui deste garrão de província eu espichava meus ouvidos pra melhor escutar sua canção.

ALEXANDRE FLOREZ alexflorez2003@yahoo.com

- Quem tem de ser preso é o seu Osmar, que te explora esses anos todos no balcão dessa farmácia! - Não fala assim do tio Osmar! Além de meu patrão, a mamãe até falou com o tio Osmar pra te oferecer emprego, pra ver se você toma jeito. - Você sabe muito bem que o meu ramo é nutrição veterinária. - Belo nome pra quem alimenta e limpa bosta de canguru. “É a segunda vez que ouço isso hoje”, pensou enquanto contra-ataca: - Tá bom, tá bom, Gessinilda, não quero mais falar desse assunto. Vamos combinar logo. Uma e meia vou aí deixar sua marmita e depois que você comer, põe os remedinhos que te pedi dentro da marmita, certo? - Uma e meia?!?! Você quer me matar de fome, Gargalo?! Meu almoço é ás 12 horas! - Ah, Nildinha, eu não tenho culpa de que o Globo Esporte é quase colado com o Vídeo-Show. - Tratante... - Ô Nildinha, é tudo por uma boa causa, vou doar os remedinhos pra minha tia, ela tá tão doente. - Aí Gargalo, que seria das suas tias se não fosse você? - É verdade, tadinhas... Agora, deixa eu desligar, senão o cartão da mãe acaba e ela me mata. *** - Oi, tia Carmélia! Deu tudo certo! - O que, meu filho? - Seu remedinho, tia, consegui por uma pechincha. - Meu anjo da guarda! - Que é isso, tia! Fiz pesquisa na cidade toda e consegui todos por R$ 85.00. Agora a senhora vai ficar boa. Logo à noite vou deixar aí, certo? O sol à tarde é muito forte. - Meu herói... Gargalo tem um bom coração.


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HISTÓRIA COMUM Eu, eu posso falar do Inferno! Geraldo Lima - "Limbo”

LETREIROS DE CINEMA A febre da “Sétima Arte” Legendados, sonoros e falados O cenário desponta na tela Os apreciadores de paletó As cinematecas, filmotecas cineclubes Décadas dos anos 1940/50/60 As “Comédias do Apartamento” Os musicais: tipo “West Syde Story” (Amor, Sublime, Amor) De guerra: alarme antiaéreo sob fogo cerrado Os cowboys: sílvicolas correndo ante a cavalaria americana

Après trente ans d’inaltérables connivences renoncerai-je à m’aventurer en elle?

“A Última Sessão de Cinema” O ostracismo em cidadezinha texana O advento da televisão e videocassete Refletem os truques e efeitos especiais na imagem Dos quadrinhos programados na tela de ilusão Os filmes ficam, mas as gerações passam, passam...

RONALDO CAGIANO

arte CLAUDINE GOUX

Mal rompeu a manhã, Dasdores chega em casa do serão, depois de comer o pão que o diabo amassou naqueles teares da Manufatora. A noite inteira foi um suplício: mato ou não mato aquele desgraçado? A vida besta demais para um desagravo assim tão derradeiro. Cachorro!!! Quando um não quer, dois não brigam, dizia seu velho pai. Nem filho arranjou, era nova, podia arrumar outro homem, ouviu do Abdias contramestre naquela noite. Esquentar a cabeça com o Osvaldo? Não merece sujar minhas mãos. Aquele traste já nasceu torto. Decidida, entrou de manso-mansinho, apagou a luz da sala, ele dormia ainda com o cheiro da cachaça da noite anterior, pegou as malas e picou a mula. Quando deu meio-dia, o indigitado pulou da cama esfregando os olhos, a ressaca tinindo em seu fígado, a boca amargando e um vazio enorme dentro de casa. Dasdores estava bem longe.

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VALDEMAR ALVES Fortaleza - CE

“Concerto para arranha-céus” LGE editora, 2004

Elle se surpasse, surmonte de récurrentes bouffées de chaleur dégoupille savamment l’orgasme. L’absolu charnel sublimé déferle, paradisiaque promontoire qu’on supposait englouti.

JACQUES CANUT - Auch - France “Éros Crépusculaire” - Carnet Dix-Quinze 4

PAULO LEMINSKI Participar do M.A. foi gratificante e muito bonito. Muito mais saber que temos um novo bando, sem medo e com tesão, parindo novas caras talentosas, novos compositores, cantoras e cantores que jogam um bolão.

NELSON COELHO DE CASTRO

O projeto é uma iniciativa muito rica de possibilidades. A principal delas é a divulgação da produção musical atual de Porto Alegre para o público em geral. O fato de cada edição apresentar mais de um artista propicia a integração dos músicos da cidade, fomentando parcerias e trazendo à tona a importância de juntar esforços.

LUIZ CORONEL

MÚSICA AUTORAL - 1º ANO

MARLENE REINALDO

KARINE CUNHA

Em um tempo em que as vitrines de exposição musical são tão restritas aos compositores emergentes, é louvável o projeto. Ele proporciona, em uma atitude quase quixotesta, trazer à luz outras melodias que não aquelas as quais já estamos surdos de tanto ouvi-las.

JOCA LIBÂNIO

ARQUIVO VAIA

Durante o ano de 2005, o projeto Música Autoral, produzido pelo VAIA, apresentou e divulgou uma boa parte da produção musical de Porto Alegre e do RS. Compositores que fazem música popular brasileira e que tocam em frente seus trabalhos de maneira independente - Otávio Segala, Fernanda Lopes, João Mayer, Felipe Azevedo, Alexandre Florez, BandanaVereda, Mário Falcão, Karine Cunha, Joca Libânio, Leandro Maia, Tom Gil, Roberto Marques, Jorge Herrmann, Nelson Coelho de Castro, Luis Mauro Vianna, Vinícius Todeschini, Ângelo Vigo, Ricardo Pacheco, Ita Arnold e Dinho Oliveira - fizeram shows mensais (a cada noite havia o encontro de três artistas), de maio a dezembro. E, a partir de março de 2006, o projeto será retomado, com a mesma proposta, de modo que passe a ser não só um projeto, mas um programa de música autoral consolidado e estabelecido. Nesta página, depoimentos de alguns músicos que já participaram do Música Autoral.

Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a bomba de nêutros ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem quetemos certeza.

Há trezentos anos, pelo menos, a ditadura da utilidade é unha e carne com o lucrocentrismo de toda essa nossa civilização. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro.

É uma honra ter participado de um projeto inovador para a música do nosso estado. O projeto de M. A. do VAIA é uma referência para a música do Brasil. É a resistência da verdadeira música popular brasileira. Longa vida a este projeto maravilhoso. ITA ARNOLD

O projeto Música Autoral é importantíssimo, pois dá conta de ações artísticas não mais tão freqüentes. É uma retomada do convívio entre compositor e público que possibilita a realização de uma música viva, presente no cotidiano invisível da cidade. Na verdade, é uma diluição destes conceitos de “compositor” e “público”. São uma coisa só: gente interessada em expressar a sua própria voz ao mesmo tempo em que tem a curiosidade e o respeito pela voz do outro.

Participei do projeto M.A. nas suas primeiras edições. Considero de extrema importância iniciativas como esta do VAIA, que apostam na diversidade com qualidade, respeitando as mais variadas produções com os seus mais variados rostos e gostos. O caráter autoral fica sendo a cereja do bolo, aquele fragmento que dá o sabor surpresa do que será degustado. Vaias vivas para que o VAIA continue mais autoral do que nunca.

FELIPE AZEVEDO

ANA TERESA NETO

TOM GIL O projeto Música Autoral é uma jóia rara, pois além de proporcionar um ambiente propício para mostrar composições qua ainda são desconhecidas do público em geral, integra os participantes e revela talentos. Ele cumpre uma função que é imprescindível, tanto para os autores quanto para os interessados em conhecer músicas que ainda não tocam nas rádios.

MÁRIO FALCÃO

O projeto M.A. tem colaborado de uma forma mágica para que nós, músicos, possamos nos conhecer. Cabe a nós unir nossas forças!

RENATO OCHOA BANDANAVEREDA

Participar do M.A. foi um imenso prazer. A função precípua desse tipo de projeto é a formação de público. Então, a questão que se levanta a partir dessa conclusão é muito simples: porque tanta dificuldade para se conseguir alcançar tal objetivo?

VINICIUS TODESCHINI

ARQUIVO VAIA

KIKI JONER

Nós, compositores desconhecidos da grande e média mídia, encontramos muitas dificuldades em conseguir espaço para mostrarmos nosso trabalho autoral. O projeto, além de valorizar o compositor, também possibilita a integração entre os músicos, juntando forças para lutarmos nessa eterna “guerrilha cultural”. Vida longa para o projeto M.A.!

ARQUIVO VAIA

LEANDRO MAIA


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Outro coração Porque um coração não bate igual a outro coração

Capa nova, Livro velho

surtos

E se na névoa de uma canção um coração se dissipasse em névoa então? E se na neve de um meteoro se congelasse triste o mesmo coração? Porque um coração bate desigual em outro coração E se na selva deste oceano O coração incendiasse a antiga embarcação? E se na malva deste teu olhar se emaranhasse doce um outro coração?

MARCO DE MENEZES

POÉTICOS Sina Impossível Acaso não estou diante de ti? E não andamos como os nossos apetites? Nossa é a sina com a nossa vontade de comer apesar da cegueira e da falta de tato. ASCENDINO LEITE Loas a Chile, ed. Idéia, 2005

arrebaldeacao@hotmail.com

devo ligar para meu irmão. pedir um favor. mas uma mulher assim, que se escorrega assim pelas paredes, que canta no banheiro, vive com papéis amarelados, mofo nos travesseiros! devo pedir favor a um estranho. estou só! vivo escrevinhando pelas madrugadas, juntando lencinhos do chão. tenho um cobertor. tenho uma vitrola, gritos das crianças avizinhadas. mas tudo se me foge! ninguém decifra minha letra, assim, dentro do velho velho apartamento. devo erguer o telefone, sem pó. TELMA SCHERER - Desconjunto, IEL, 2002

telmascherer.ig.com.br

MITO “Podes achar a verdade pela lógica, apenas se já a tenhas achado antes sem ela.” (G.K. Chesterton) (Pseudônimo: Evangelista)

Tempo mordendo estes calcanhares, e a linguagem: minha morada. Escreve-se, corta-se com raiva, edifício refeito, lápis vermelho, palavra arrancada com fúria/disciplina. Contamos e ouvimos histórias: sempre, e o ciclo renova-se, mito redito, infinito, histórias, avós, netos, estações, rios que seguem seu curso. Não morre, a vida, escorre, eis a prova: palavra inscrita na pedra. E o tempo finalmente alcançou-me, outro, que há de vir, cumprido o ciclo, esta estação terrena, perduro-me: criança, arco-íris, poema. Ah, minha mãe: meu dedo em teu dedal (costuro esta memória: outrora/agora). Também sou feito daquilo que perdi: vida finita (cinzas e pó): adeus. Estou cumprido: um tanto de carne, um tanto de papel, história de ninar, grama molhada, renascimento. Ah, meu pai, meu rosto em teu retrato.

Descobre a vida quem segue o caminho inseguro à procura do infinito na trilha do desconhecido. Descobre a vida quem segue o caminho imperfeito de destino suspeito à procura do insondável na trilha do invisível. Descobre a vida quem segue o caminho incerto no rastro do mistério à procura do impossível na trilha do inatingível.

EDUARDO GUIMARÃES Luminar, ed.do autor

CON ANIMA Que posso eu cantar de novo? Salomão já fez os cânticos. E o Outono, entretanto, vem cobrando seu tributo: quer sempre mais e mais frutos. Sei que o Inverno já vem, futuro exato, esperado. Mas eis que brota, entre as pedras, a mais teimosa das ervas que nem a neve contém. E tu, Primavera fresca, vens inaugurar o espanto e erguer, com ares de anjo, novo castelo de vento sobre as pedras da represa, em cujas águas contidas eu me vou banhar agora, pois é Verão. Quem se importa se haverá outros ou não, se é de ti que sopra a vida?

ÁLVARO SANTI asanti@cpovo.net

A professora sai da aula voa na imaginação com as asas coloridas de uma borboleta um corpo na transparência do erótico um saber na fala uma arquitetura feminina como a chuva molha o desejo mas a água fria escorre apressada foge por labirintos indecisos para bem distante.

ALMANDRADE almandrade2@hotmail.com

EMANUEL MEDEIROS VIEIRA

José foi à praça vestiu amarelo e fez um castelo de sonhos no a

Esqueceu a fome, de tanta esperança E conseguiu forças até pra gritar. Turvaram seus olhos com falsas promessas Encheram seus dias de uma doce ilusão. Nem percebeu que era tudo uma farsa E a praça era o palco da encenação Capa nova, livro velho E José acreditou Mas se os versos são os mesmo O poema não mudou.

Seu peito suado seu rosto enrrugado seus cabelos brancos seu corpo febril seus pés calejados de tantas andanças sua gente sofrida, seu povo Brasil. Hoje, cansado, perdeu a esperança e, como criança, se põe a chorar Numa fúria louca rasga o amarelo, desfaz o castelo e se afoga no ar. Capa nova, livro velho E você acreditou Mas se os versos são os mesmos O poema não mudou.

EDIVALDO A. DE SOUSA

odlavide@ig.com.br

LUA DOS MENDIGOS Oh! lua tão cândida poetisa da noite febril namorada dos olhos sensíveis nesta noite canil. Formosura é a cauda desta branda luz de anil tem sexo, alma, ternura aos mendigos do Brasil. No tecer da galáxia tu vives a mil completamente angustiada ao tédio tão vil. Lá se vai lua branquinha dando adeus tão gentil. se tu fosses a sina mudarias Brasil? ITA ARNOLD músico


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vistaentrevistaentrevistaentrevistaentrevistaentr Luiz entrevista Ruffato entrevistaentrevistaentrevista entrevistO aentrevista entre INentrevistaentrevistaentrevistaentrevistaentrevistaentrevistaentrevistaentrev FERNO Dvista OS DERROTADOS

A sua linguagem tem se caracterizado por uma dicção particularíssima, de ruptura com os modelos tradicionais de narrativa, que você consolidou em "(os sobreviventes)" e radicalizou em "Eles eram muitos cavalos". Mas não se concentra na transgressão pela transgressão. A subversão da forma, ao mesmo tempo em que coloca em xeque os padrões canônicos de linguagem, parece absorver elementos da tradição. Nisso, podemos perceber não só um diálogo entre estilos e uma genuína inquietação. Na forma, por fugir aos elementos usuais de construção; na temática, por questionar os limites da própria existência, em que a projeção das experiências dos personagens revelam a sua necessidade de dar vez e voz a uma gente que não teria oportunidade de ser vista, senão pela sua ótica narrativa. Comente essa proposta. O meu projeto literário se alimenta de um compromisso muito claro com a ideologia. Toda Arte é ideológica e a minha não se furta a isso, pelo contrário, a explicita. Quando pensei em trazer para a ficção brasileira a representação do trabalhador, do homem e da mulher de classe média baixa, quis ao mesmo tempo fazê-lo contra o romance burguês, inaugurado no Século XVIII para dar conta da visão de mundo de uma classe social emergente. Através do romance burguês construiu-se uma ideologia, estabeleceu-se uma ordem política no mundo.

Ao recambiar das camadas menos favorecidas da população personagens para sua ficção, você crê estar fazendo uma catarse, um exorcismo dos demônios individuais ou coletivos ou uma reflexão crítica sobre esse universo? Literatura para mim é compromisso. Escrevo para dar voz aos que não têm, rosto aos que não têm, história aos que não têm. Para evitar, como naquele poema do Manuel Bandeira, que as pessoas morram tão completamente que até mesmo um epitáfio lhes seja negado após a morte...

Concluída sua pentalogia em "Inferno provisório", você considera esgotado esse mapeamento ou pretende continuar juntando pedaços para esse mural da realidade brasileira? Com relação à forma, pretende manter o mesmo foco na linguagem que adotou? A minha linguagem não é escolha pirotécnica. Acredito em estilo. Bom ou ruim, o meu é esse. Então, não há porque mudar. É assim desde "Histórias de remorsos e rancores", de 98, será assim sempre... DIVULGAÇÃO

Sua relação com a literatura é umbilical, tanto como leitor quanto como escritor. Ainda nos meus tempos adolescente em nossa cidade, lembro de colaborações suas em publicações alternativas de estudantes secundaristas. E em 1979 você publica "O homem que tece" e em 84, "Quotidiano do medo", marcando sua incursão pela poesia. Em seus versos, já se notava a preocupação com o destino do homem e sua vida numa sociedade excludente. Depois de muitos anos você reaparece de forma impactante com "Histórias de remorsos e rancores", livro de contos em que é nítida sua preocupação com esses seres marginais, mas sem o proselitismo que tem caracterizado a literatura de muitos autores que pretendem mapear esse universo. Você acredita que sua poesia cedeu lugar a essa prosa densa, tensa e reflexiva, justamente porque o gênero oferece mais possibilidades formais e experimentais de explicitar sua visão do mundo? Acredito que Poesia e Prosa são manifestações artísticas de distintas faturas, embora complementares. Não concordo com certa teoria que empurra ambas para sob o mesmo guardachuva, Literatura, como se fossem irmãs siamesas. A Poesia dialoga com a Filosofia, busca dar conta das grandes indagações metafísicas do Homem, enquanto a Prosa dialoga com a História, com as questões vinculadas ao seu desempenho terreno. Evidentemente, essas duas formas, Prosa a Poesia, ainda mais em nossos tempos, aparecem mescladas em novos e inventivos gêneros. Mas então devem ser vistas como parceiras com objetivos comuns e não como aberrações estéreis. Na minha tentativa de ficção experimental, trago a Poesia para dentro da Prosa. Mas sei que existem sensações e perquirições que não consigo dar conta através da ficção. Aí, nesse momento, volto à Poesia, como quando publiquei “As máscaras singulares”, em 2002, ou quando ainda cometo, vez ou outra, alguns versos.

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divulgação

Certa vez, numa entrevista, você considerou a existência de dois tipos de escritores: os que contam uma história e os que a escrevem. O que distingue uma categoria da outra e a qual você se filia? Creio que, grosso modo, existem essas duas categorias. Há autores cujo interesse maior é contar uma história, ou seja, o enredo, o "que", se destaca entre suas prioridades. E há os que escrevem uma história, ou seja, a maneira de narrar, o "como", é o que importa. Eu gostaria de ser reconhecido como um autor cuja ênfase se dá no "como".

LUIZ RUFFATO, mineiro de Cataguases, está escrevendo um importante capítulo da história literária brasileira. Com a pentalogia Inferno Provisório, Ruffato pretende refletir sobre a vida e a história dos trabalhadores urbanos brasileiros nos últimos 50 anos e buscar uma resposta à pergunta: “como chegamos onde estamos”. Os dois primeiros volumes,”Mamma son tanto felice” e “ O mundo inimigo” tratam da tragédia da imigração italiana e nordestina, sobretudo em SP e MG, e da implantação do processo de industrialização brasileira. Para falar um pouco sobre esse trabalho e sobre literatura, Ruffato concedeu esta entrevista ao escritor Ronaldo Cagiano.

O meu projeto, anti-burguês por excelência, fui buscar no mesmo Século XVIII a sua antítese. Basta lembrar que surge, à mesma época, uma outra forma de ver o mundo, através de autores como Sterne, Xavier de Maistre, continuados com Richardson, Dujardin, Joyce, Tchekov, Machado de Assis, Faulkner, o nouveau-roman... Para mim, não há diferença entre forma e conteúdo. A representação que quis fazer da realidade brasileira, do ponto de vista dos derrotados, dos que construíram a sociedade mas foram encarcerados nas periferias, só poderia ser edificada através da prosa anti-burguesa... Não consigo entender conteúdo revolucionário sem forma revolucionária... A idéia de mapear em seu universo ficcional os trabalhadores têxteis de Cataguases, a vida dos imigrantes italianos no interior da Zona da Mata Mineira, o deslocamento da mão de obra pouco qualificada para os grandes centros com a conseqüente formação desse proletariado e o escalonamento social e de valores vai delineando um grande mosaico desse País. Você pretende, com esse projeto de escrever o "Inferno provisório", realizar uma espécie de romance-rio ou, a exemplo de Octavio de Faria, com sua "Tragédia Burguesa" e "Comédia humana", de Balzac, traçar um amplo painel da vida proletária brasileira/um perfil social e humano, na tentativa de compreender os problemas nacionais, o aviltamento do espaço urbano e os dilemas do trabalhador em todos os níveis? “Inferno provisório” não é um romance-rio (invenção burguesa, que retrata a sociedade através de meia dúzia de personagens reconhecíveis, ou seja, que aparentemente fizeram a história). “Inferno provisório” é exatamente o contrário: nenhum personagem meu é reconhecível por ter exercido algum papel de destaque do ponto de vista da burguesia, mas totalmente reconhecível porque esbarramos neles a todo o momento: a história é feita pelos derrotados... Embora uns poucos levem a fama... Balzac sim... A minha "comédia humana" é a "comédia humana" possível dos nossos tempos. Balzac teve que construir uma forma de círculos concêntricos para poder descrever o amplo universo de mudanças da França. A minha intenção é mais modesta: quero, nos cinco volumes que compõem o Inferno provisório tentar entender como chegamos onde estamos. Uma reflexão sobre os nossos últimos 50 anos, que coincidem com a industrialização brasileira, com a forçada imigração de milhões de nordestinos e de pessoas de outros estados para manter o poder nas mãos dos mesmos protagonistas de São Paulo e Rio. Não é um romance-rio, e se fosse, seria um romance-rio-tietê... onde os industriais paulistas

O que virá depois do “Inferno provisório”? Não sei... faltam ainda três volumes para terminar... Você acredita que a literatura tem uma função social e política e que ela possa mudar alguma coisa? Eu não tenho dúvida acerca da função social da Arte. A Arte modifica o Homem e a sociedade é formada por Homens. Portanto, se a Arte modifica o Homem, modifica a Sociedade. Por isso, quando leio entrevista de autores que dizem que a literatura não serve para nada, me poupa um tempo enorme, porque simplesmente não leio esse autor... para quê? para perder meu tempo? Qual sua impressão sobre a atual produção literária brasileira? Esse é um momento excelente, pois há uma indústria editorial forte e importante, interessada em publicar autores brasileiros, ruins e bons, pois descobriu que há, ainda que incipiente, um interesse do leitor em descobrir o que anda se fazendo no Brasil. E, como em todas as épocas, a grande maioria do que se produz é lixo e algumas poucas coisas são boas. O que a sua literatura deve à experiência jornalística? Poucas, mas importantes coisas. A disciplina, principalmente. Saber que não há inspiração que resista a horários de fechamento. E um certo treino do olhar: sair às ruas e tentar ver o que está para além da aparência. Mais nada, talvez. O que explica o fenômeno cultural Cataguases? Cataguases não é um fenômeno, é apenas um processo de inversão de capitais da cafeicultura decadente para a indústria e os excedentes foram usados para a diversão dos filhos da burguesia local. Só que essa diversão acabou se tornando séria e os verdes colocaram a cidade no mapa cultural do país, revelando pelo menos quatro autores importantes (quatro, o que não é pouco...): os ficcionistas Francisco Inácio Peixoto e Rosário Fusco, o poeta Ascânio Lopes e o ensaísta Guilhermino César... Além do Humberto Mauro, cineasta, e depois algumas outras gerações de poetas e ficcionistas mais à frente... V


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O repositor conto de LUIZ RUFFAT0

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reta, a água irrompia sob a greta da porta-de-aço, empurrada de dentro da lanchonete por um frenético rodo, escorrendo para a calçada, em princípio volumosa envolta em espuma de detergente, espraiando-se então em fios desenhados pelas pedras-portuguesas, para, num delta, encontrar-se novamente, desaguando na sarjeta, arrastando restos do dia que passou, guimba, pau-de-fósforo, palito-de-dente, papel amassado, tampinha-de-garrafa, canudo, vagando imunda pela Rua Conselheiro Crispiniano rumo à boca-de-lobo quase esquina do Largo do Paissandu. Na direção contrária, gordos sapatos velhos chapinham ignorando poças, camiseta branca cavada suando touceiras no peito sovaco barriga. O centro da cidade é barras de calças levantadas, claridade de um generoso abril. O homem descerra a porta metálica, o veneno de rato intoxica a manhã. Uma barata espoja-se no chão, esmigalha-a indiferente, bufa. Camelôs enredam bancas, cedês, fitas-cassete, canetas, roupas, ervas, bugigangas. O homem-sanduíche conversa um café. Um branco-encardido uniforme pincela o monturo que breve tornará churrasco-grego. O de migalhas-à-barba desfia, garras encardidas, sacos de lixo. O do vira-lata enlaça restos de papelão numa carroça. O do celular negocia. O do cobertor espreguiça. A de cabelos alvoroçados impreca. A do carro ignora. Ônibus roncam e resfolegam e guincham e buzinam e enfileiramse. Pernas entrecruzam-se ensonadas. Perto, vermelha bandeira berra palavras-de-ordem. Jornais se oferecem, lúbricos. A quarta-feira se esgueira rumo aos sonhos.

Rasgam os dentes o misto-quente, suspensa agarrafa de coca-cola. À parede, sujam as horas. O gordo estendeu o troco e outras dez fichas, Hoje é dia!, e a mesma música irrompeu guerreando barulhos,o microfone caprichando palavras de um amor que já não é.

O sol negro JOSETTE LASSANCE

montagem GIL PIRES

autora de “O Prédio”, 2002 - jlassance@bol.com.br

GIL PIRES

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a janela morta a borboleta sai, ilesa, sua asa de Da janela morta a vestida borboletacom sai, ilesa, vestida pérola, ganha o imenso céu.céu. Ela com sua asa de pérola, ganha o imenso ficou escondida no quarto, e Ela ficou escondida no quarto, entre entre suas suas paredes que pareciam a engolir paredes vivas vivas que pareciam a engolir - umum branco nostálgico quase prataera era tomado branco nostálgico quase prata pelo grafite rude onde escrevera palavras quando embebida de sua solidão quase num ato único - correspondiam seus gritos: arabescos úmidos rabiscos, arabescos, úmidos de de idéias - cofres perpétuos de insanidades... Seu cérebro carregava um par de lentes grossas de alumínio fosco: um par de óculos míopes. O que fazia ali era puro desejo, de sentir através das palavras, que acabavam arrancando os sentidos mais íntimos de suas necessidades existenciais. Acordava e um pássaro pousara nu quase olhando para ela de um fio de rua - suas janelas por descuido ficaram abertas mas quase sempre mortas para a rua, introspectivamente vomitava sua ira pela luz do sol. O pássaro ficou minutos e ensaiou uma canção rouca de alvorada - ela acordou e quase imperceptível mostrou-se num olho descoberto pelo lençol - dormia nua e quase todas as vezes sua nudez contrastava com sua desordem: um quarto sem início e fim onde amontoados livros faziam perceber-se como um labirinto em que se perdia quase sempre nas tardes em que lia infinitamente Rimbaud em suas páginas seculares, palavras eternas, amareladas pelo pôr-do-sol. Um negro saco de dormir cobria sua cama de solteiro e sua pele branca contradizia um sol negro desenhado na parede direita, parecia querer saltar os olhos e os restos dos seus cigarros sujavam o chão de taco marrom.

Dois meninos estacam embaciados, saquinho plástico entrededos, alçado às narinas de quando em quando. Começo, bisbilhotam, zombeteiros. Após, a melodia repetitiva atropela-os. Langorosos, perambulam, vontade de nada. (Há uma casa, pequena, "Minúscula!", tijolo e massa e cimento fermentados em fins de semana e folgas, num lugar em que a água falta e a bosta e o mijo vertem pelas faldas das ruas à noite banguelas de luzes.) Música de corno!, enjoou as dobras do pescoço, na terceira vez em que o negro reclamou fichas, Catorze? Mesma música?, paletó impecável. O velho, mastigando nacos de lingüiça, com a cabeça seguia os volteios, contente. Além da porta, impacienta-se o asfalto quente. (Da laje, o movimento da Rodovia Raposo Tavares, faróis que perseguem sombras, o walkman comprado na Rua Santa Ifigênia, "Repositor do Carrefour Limão", "Tem futuro, isso?") Atiçados pelo gordo, o chapeiro e o atendente interceptam inconveniências do velho, arrastam-no à calçada, sob apupos de contínuos e desempregados. Bêbado, buscou atracar-se ao videokê, onde a música irrompia guerreando barulhos, o microfone caprichando palavras de um amor que já não é, mas, num giro, desabou sobre artesanias, brincos, anéis, cordões, pulseiras, colares, amostradas numa lona no chão estendida. Perseguido, coxeou labirintos da Rua 24 de Maio, bancas de cedês, fitas-cassete, canetas, roupas, ervas, bugigangas, homens-sanduíches, celulares, cobertores adormecidos, cabelos alvoroçados, pernas, murchas notícias de jornais. Em meio aos ônibus que roncam e resfolegam e guincham e buzinam e enfileiramse um negro comprido, desengonçado dentro de um terno chumbo, curta gravata amarela carros-de-corrida estrangulando uma camisamanga-comprida branca, evanesce.

Comprido, o negro, desengonçado terno chumbo, curta gravata amarela carros-decorrida estrangulando uma camisa-mangacomprida branca, soa 'Dia, assustando o gordo que, costas à rua, passa o primeiro café. Hum? Aberto, já? Enxuga as adiposas mãos no jeans, olhinhos espremidos catando fichas do videokê no caixa, Quantas? A música irrompe guerreando barulhos, o microfone capricha palavras de um amor que já não é. Finda, resfolegam as dez para as nove. No balcão, a azáfama de copos americanos, médias, colherzinhas, açucareiros de plástico, pãezinhos franceses com margarina aconchegados em tristes guardanapos sobre pratinhos engordurados, vitaminas, refrescos, coxinhas, quibes, esfirras, pães-dequeijo, hambúrgueres, em silêncio bebe cerveja um velho que limpa a espuma na gola da camisa, a mesma música irrompe guerreando barulhos, o microfone capricha palavras de um amor que já não é, um motoboy, capacete entreabraçado, pára, um ambulante apregoa o disco, ... aqui, patrão!, uma comerciária ri, outra sente uma coooisa! O terno chumbo acomoda-se elegante. Vizinho, um garoto refestela-se sobre o tampo solto da banqueta, trezentos e sessenta graus, lambuzado de ketchup e mostarda. Do outro lado, solidário, o velho meneia a tulipa. (Jardim Jaqueline-Terminal Bandeira, 6250, mais de vinte quilômetros empanturrados corredores mãos náufragas cansaço.)

Onde estaria ela, se a cada instante era um gomo de personalidade? Incógnita esfinge revestida de acaso. Talvez fizesse diferença conhecer alguém que a fizesse amar tão forte ao ponto de não suportar-se liberar suas emoções mais intensas - como a de desfazer-se de um sol negro que a encobria e descobrir-se em sua alma o que pudesse vir a ser um sol de verdade, sem o escuro proposital de corpo de quarto forjando arbitrariamente uma luz, invertendo seu sentido anti-horário do dia. O dia grafitado energicamente na penumbra de seus pensamentos. O tempo ali pesado tomando eletrochoques e vomitando parágrafos pervertidos cheios de cólera pelo mundo.

Não queria encontrar nada evidente, por isso, esgotava-se nas sensações de pertencer-se primitivamente à sua selvageria. E quando bebia muita cerveja nos bares que freqüentava, quase sempre fazia parecer-se a um porco com seus cabelos negros descuidados, sujos de gordura soprada pelos ventiladores de teto e enfiava-se num vaso sanitário para vomitar toda a sua vontade de beber, um retorno onírico de desesperanças. Depois ia para casa fatigada, exausta de ter perdido tantas chances...como se deixasse de viver por isso. Deixava-se caminhar com amigos durante as noites mais chuvosas - como a de descer a ladeira do Bolonha como se fosse seu desfiladeiro. Lá poderia sumir de tudo e ser tomada pelo escuro ou multiplicar-se às mil luzes artificiais das ruas inanimadas, como se fossem as casas mais vazias do mundo. Havia um silêncio de sábado, de sinagoga e uníssono era o som de uma música ferida saindo da boca de um instrumento metálico. Agudo/grave/seis pernas marcavam os sólidos paralelepípedos. Sangravam seus sapatos pesados as veias do chão. E os momentos todos passaram e o passado não servia. E todas as formas foram mudando de lugar, a cada dia, a cada banho, a cada beijo. Via-se apaixonada e os garotos cabeludos foram crescendo e o olhar para trás fora diminuindo de tamanho e sua importância já não era mais a mesma. A borboleta saíra pela janela morta e sozinha entrou no planeta que escolheu desfrutar suas loucuras preferidas.


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VALEU, PAULO HECKER

foto: cortesia da Livraria Nova Roma

era um umcara caradodo bem. Esquecem que foi quem começou a ganhar a OPaulo Paulo Hecker Hecker era bem. Digo Digo isso pensando em todos aqueles guerra e assim se pode dizer quem a ganhou, isso pensando em todos aqueles que, ao que, ao contrário, se vendem para os tendo comandado todo o esforço nacional contrário, se vendem para os outros como O poeta e crítico gaúcho faleceu no dia 12/12, em Porto Alegre, na sua bélico como as operações no front. Esquecem outros como pessoas legais, que muitas vezes pessoas legais, que muitas vezes se acham casa, aos 79 anos. Para ele, no jogo da vida, se trata de fazer o que se pode seu triunfo diplomático no após-guerra, nada se acham pessoas legais, mas estão contra o Esquecem seu triunfo diplomático no apóspessoas legais, mas estão contra o ritmo do no mundo, o que principia pelos outros, para se acabar de ser quem é. menos que sobre Churchill e Roosevelt. ritmo do mundo, da vida, do amor, da guerra, nada menos que sobre Churchill e mundo, da vida, do amor, da história. história. Roosevelt. Esquecem que sem ele a Revolução não teria ido adiante e ainda que fez, em pouco tempo, Era poeta, contista, dramaturgo, tradutor, da pobre Rússia, o segundo país no mundo. Não novelista e amigo. Começou como crítico há que tirar o chapéu? A quem persista em literário, estabelecendo-se como um dos mais dúvida, recomendo a biografia de Isaac destacados pela independência e seriedade, Deutscher, também publicada entre nós. O autor, atuando continuamente em vários jornais, no trotskista, parte de um ajuste de contas com Rio Grande do Sul e fora dele, tornando-se Stálin e, depois de oitocentas páginas de referência nacional por sua atuação em O pesquisas em arquivos, jornais, documentos, vêEstado de São Paulo. Nos últimos vinte anos foi se obrigado a reconhecer tratar-se de um grande se concentrando cada vez mais na poesia, gênero homem." Contestar a isso, usando, para tanto, as essencial, do qual historicamente derivaram referências quase monocórdicas que recebemos todos os outros, inclusive o discurso lógico, sobre o tema parece fácil e de bom tom. Parece. Aí escancarado desvio de linguagem do que era o é que está a grandiosidade de Hecker. Preguiça Não era difícil encontrar o Paulo Hecker pela estabelecido. E Hecker olhava para tudo, intelectual nunca levou ninguém ao paraíso. Nem cida-de. Sempre gostei de ver poetas e escritores nas propiciando, nos momentos mais felizes, aquela perto. ruas, no cinema, na vida. Não faz muito o vi num espécie de "dança do intelecto" de que falava show do projeto Unimúsica, no Salão de Atos da Ezra Pound. FUTEBOL & POESIA UFRGS: ali, aquele cidadão de quase 80 anos, curtindo a boa música instrumental brasileira no Era um crítico atento, diante de novos e Uma vez ele enviou um bilhete, agora meio de uma platéia bem mais jovem. Dava uma consagrados. Capaz de descobrir, por exemplo, publicado na imprensa pelo destinatário Celso alegria só de percebê-lo, de saber que se podia Fernando Pessoa na década de 40, remando Gutfreind (Zero Hora, 17/12/2005), onde se pode envelhecer sem virar careta ou ranzinza, sem perder contra a opinião de amigos como os poetas Mario ler muita coisa para além do futebol, verdadeira a conexão com o circundante. Naquele dia ele me Quintana e Paulo Corrêa Lopes, que o achavam aula de filosofia: "Tua carona foi razoável em lembrou o Barbosa Lima Sobrinho, intelectual sem ritmo. Capaz de ver declínio na obra de José termos de acolhida e velocidade, especialmente atuante até os 105 anos, caso comprovado de alguém Saramago quando este acabava de ganhar o nas curvas. Poderia ser melhor se olhasses menos sem motivo para morrer até que o inevitável aconteça. Nobel - hoje se aprende isso na universidade, para o lado esquerdo e revisses teu conceito sobre Faz pouco, assistimos ao mesmo filme na Casa de mas naquele momento não era fácil dizê-lo. Isso o Marinho (zagueiro do Grêmio). Zaga é conjunto, Cultura Mário Quintana. E no mesmo local, há para ficar em dois casos. Também era crítico de é grupo, e teu ponto de vista está fora do todo. menos tempo ainda, no final da sessão eu quis ir ao teatro, cinema, dança, artes plásticas, televisão, Assinado PHF." pequeno banheiro da sala Norberto Lubisco mas e o que mais pintasse pela frente, fosse bom ou Estou viajando demais num bilhete? Então estava ocupado, até que dele saiu o Paulo Hecker. ruim. O que degustava não ficava sem algumas vejamos esse texto, O que é futebol, também de Lance de dados gratuito com que a vida nos oferece a linhas. Nem tudo é Poesia: última visão de um poeta. Para o Fenestra, jornal editado por Jorge O QUE É FUTEBOL Tive, pessoalmente, pouco contato com ele, Fróes e Cézar Dias, ao qual me integrei, Hecker mais por um jeito meu de ser do que dele. Lembro do deixou um poema que é uma belezura só, hoje Brincadeira tem hora, vinte e dois homens dia em que fui lhe entregar minha tradução do José presente no livro Nem tudo é Poesia: correndo atrás de uma bola! - zombam os leigos. Martí, meu primeiro livro, quando me falou da sua Não vejo graça, só dá homem - dizem as mulheres. OS FILHOS CRESCEM tradução de A Rosa Branca (como é chamada a 39ª Homossexualismo latente, sentenciam os seção, sem título, de Versos Sencillos do poeta freudianos a ver sexo em tudo. E até Jorge Luis Os filhos crescem. cubano). A partir do volume que lhe dei, traduziu os Borges, que sabia das coisas, se indignava com a Aquela coisa mais querida do mundo versos da música Guantanamera, tradução que, por importância dada ao futebol na Argentina, achava de repente tem opinião, falta de espaço, acabou não entrando no meu Versos frivolidade demais. derrama por querer a sopa toda, Singelos, ficando apenas a letra original no apêndice não para de chorar de pura raiva. e uma nota a indicar quais estrofes do conjunto Não acho, não é. Ele empolga o mundo inteiro, traduzido a compunham. As poucas linhas com que deve haver uma razão para isso. Afinal, o que é o Os filhos crescem. depois apresentou Martí e as duas traduções no livro futebol? Querem entrar no grupo que os não quer, Só Poema Bom revelam sua origem, até no equívoco pedem briga, dão gritos pela rua de chamar o músico Pete Seeger de Peter. É pouco o A sério, nas competições importantes, são a clamar eu sou eu contato, modestamente é meu recuerdo, e é quase o onze homens dando tudo para vencer outros onze por não saberem quem são. que desejo na relação com escritores muito dando tudo para vencer. Nele se trata de fazer o conhecidos. que se pode no mundo, que principia pelos outros, Os filhos crescem para se acabar de ser quem é. Uma tentativa entre e ficam diante de si como num ringue. Um outro ponto de encontro é que ambos outras, e das mais completas, de cumprir a própria Vão se bater até beijar a lona? fizemos nossa tradução de The Tyger, do William humanidade. E não só a dos que estão em campo, Se duvidarem, vão. Blake. Eu sempre pensava em mostrar pra ele, mas também a das torcidas inumeráveis que com eles nunca o fiz e agora é tarde. Nesse instante, agora se identificam. Na aparente simplicidade, o futebol Os filhos crescem. mesmo ao escrever o de cima, lembrei que ele recebia atualiza o drama humano de enfrentar, buscar Desenha-se a existência em cada um, regularmente o Rascunho, jornal literário do Paraná, superar o adverso até a redenção de uma vitória, os pais ficam olhando, que fazer? e talvez tenha lido nele, em julho, os poemas do Blake ainda que passageira como tudo na terra. E mesmo quando acertam, que é que por mim traduzidos, entre eles o rugido selvagem do muda? meu Tigre. NUNCA ME SENTI TÃO DO BRASIL Os filhos crescem CORAGEM INTELECTUAL e não adianta se querer dar tudo, O Hecker também era capaz de escrever nem a alma. u m a s coisas simples, injustamente Outra faceta inseparável do todo em Hecker é Desejam outras almas, desvalorizadas por alguns, que acabavam soando sua coragem. Certa vez, para um jornalista, explicitou são outros. como uma salutar e instigante provocação se o de modo muito simples a sua independência e ambiente fosse aquele superprovinciano tentando verdade no exercício da crítica: "Eu acho o que achei". Os filhos crescem. a todo custo se passar por cosmopolita, embora o Defendia o que pensava, via nisso um grande bem, Sem ler nossos romances para eles, intento dele fosse apenas singelo: expressar um doesse a quem doesse, fosse amigo, cidadão famoso, se metem em capítulos inéditos. sentimento. Querem ver? dono de jornal, ou adepto de velha opinião dominante Já não são nós, se sentem vitoriosos. travestida de novidade. Quanto a isso, o que mais me E continuamos eles... SER BRASIL impressionou nele foi sua opinião sobre José Stálin, Jovens, escurinhos, vitoriosos absolutamente contrária à corrente dominante, isso a tevê dá vindo de alguém que não era nem militante político Paulo era um ledor - o termo é dele. As cada jogador do pré-olímpico nem comunista de carteirinha: "A lição de Stálin já dezenas de milhares de livros da sua biblioteca cantando o hino nacional. mudou o mundo para melhor", escreveu num que o digam: "Permanecem quietos, de pé,/ Jovens, escurinhos, vitoriosos primeiro momento. apesar da umidade, apesar dos insetos,/ apesar Cantando. das ausências do leitor/ para ir levando a vida,/ Inquirido por Gilberto Wallace, na Folha de Nunca me senti tão do Brasil. esse hiato ante os quarenta mil/ que conhecem Letras de dezembro de 2000, sobre o que teria a o real e o possível,/ vivem o tempo até a acrescentar a essa confessada admiração, Não sei quanto a vocês, meus amigos, mas eternidade./ Quando eu morrer, não morrerão." respondeu: "Que é ver-dade. A mídia americanizante de minha parte está tudo certo, quero envelhecer Mas era um ledor no mundo. "Porque nunca faz dele um monstro. Esquecem que é um escritor que como o Paulo Hecker Filho. botaste a literatura na frente da vida, embora instruiu para o bem gerações com seus livros e que tenhas passado a vida lendo", na feliz não há modo de, escre-vendo, alguém passar pelo que observação do poeta Celso Gutfreid. SIDNEI SCHNEIDER não é, já que escrever revela o autor para si mesmo.


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A IMPOSSÍVEL ALTERNATIVA

Poe

Seria bom ser simples. Poder dizer como nas canções só quero viver contigo, só a ti amo. Mas amo e desamo coisas demais, e me descubro amando o que não amo e desamando o que deveria amar. Há de ser por isso que sonho com a simplicidade. Possuir um ódio, por exemplo, ou ao menos um objetivo que me regrasse a vida. Objetivos, a bem dizer, tenho muitos, os mais variados, e imagino sempre mais um e me perco. Creio até que cumpri a maioria, mas, tenha cumprido ou não, tanto faz, o tempo devora tudo. O tempo consome a paixão, e só a paixão Dá verdade à vida.

QUERO MORRER LENTAMENTE

S

À INCOMPLETA Dizem que Deus fez o mundo em sete dias. Está muito ligeiro. E sete é conta de mentiroso. Ainda mais se tratando de Deus, tão calmo, tão discreto que até parece que não existe; pelo menos nunca se faz notar. Para mim, ele continua se decidindo e não adianta grito, se faz de surdo e ainda demora mais. Os homens bem que lhe dão uma mãozinha, mas não podem tudo. As melhores invenções ele deixou em meio. Os cavalos sem pedigree, os diamantes sem lapidar... E você, complicada coisa linda, sem me amar.

ia empre

ATÉ OS ASTROS MORREM Até os astros morrem. E depois? E depois, nada. Mas morrem explodindo, na fúria das temperaturas exorbitantes.

Quero morrer lentamente Como enfim se completa o silêncio após a música Como acabam os dias mudamente aterrados Como somem as ondas num afago final à praia inconquistável Quero morrer lentamente Com o secreto adeus do beijo que mal roça nos lábios Com a austeridade das rosas até a corrupção Com este tremor do nada que em certos instantes corre pela espinha da Via-Láctea Quero morrer lentamente Como se apaga o eco nas montanhas Como as nuvens se esgarçam e se extinguem Como o velho cavalo já não se levanta Quero um silêncio maior que o da morte O silêncio do fundo do mar Do coração da terra Do espaço entre os astros Quero afundar no silêncio No silêncio No silêncio No silêncio.

PARTILHA EU DIRIA PÁRA a Walmor Chagas

O mundo é belo demais para um só homem. Olhem comigo o dia que nos coube, tomem, me deixem repartir tanta luz derramada. que se eu ficar sozinho, eu vou ficar sem nada.

Se fosse possível, eu diria pára. Mas nada detém o mundo. Nem um coração que pára.

POESIA SEMPRE homenageia um dos maiores poetas e críticos literários do RS, morto em 12/12/2005, aos 79 anos. PAULO HECKER FILHO publicou vasta obra de ficção, poesia e crítica, além de incontáveis resenhas e opiniões na impressa escrita. De um de seus livros de poesia mais elogiados (Perder a vida,1985, ed.Tchê!), extraímos uma preciosa amostra de seu talento poético.

HISTÓRIA DE RITA Eu bancava nossas contas Trabalhando sem parar. Pagava casa e comida, Mas não podia consolar Homem forte e esforçado Sem ter onde trabalhar. Um ano agora se foi Sustentando nosso lar. Do cigarro foi à bebida, Na vida dos bares caiu, Sol nascente já não via, Até que um dia sumiu. Toda noite na esquina, parada sob claro poste, Do nada espero que surja Alguém de quem eu goste. Sei que é ele que espero, Mas também que não volta. Não tem por que desespero, Pois obtenho minha escolta. Carregam-me para cima, Mas sozinha desço sempre. Ninguém me leva pra casa, Ainda que bem me apresente.

POESIA DE CADA DIA Retenho nos seios sua face E um olhar que é singelo, Mil carinhos no escuro E sua função de martelo. Hoje as faces são duras, Os olhares ensandecidos, Não recebo um carinho E tenho que dar gemidos. O que resta é martelo A insultar-me o corpo, Trago chagas azuladas, Retenho dinheiro porco.

QUADRAS Não me tenho no espelho, Vidro frio e quebradiço; Trago nos olhos multidão: Alegria, garra e viço. Não me guardo num cofre, Coração de alguma gente; Se inspiro o ar da rua, Junto a ela vou contente.

DE COMO LIDAR COM RIO

CANTIGA DA TARDE CLARA

Represar um rio é impossível. O rio insulta a barragem.

Ana vem pela estrada. O vestido é uma palmeira. Venta.

Se sustém uma folha calma de lago, amplia suas pernas de Heráclito.

Pó gruda no calcanhar. Cãozinho dá de latir. Preto.

Veloz, recortará efígies das escarpas e nas curvas fará ondas de mar. Mas se segue da nascente à foz, na outra margem é que está a flor.

Não me satisfaz a calha No só juntar chuva fina, Quero ser afluente do rio Que faz mover a turbina.

Da casa sai o noivo. Dedo fisgado de anzol. Ponte.

Os filhos deixo lá fora, Vivendo com minha mãe; Garanto a vida dos quatro, Não sou puta, eu sou mãe.

Não me demoro no verso Para ungir-me de loas, Brota tudo o que canto Do peito de mil pessoas.

Correm os tamanquinhos. O noivo sorri com mãos. Salto.

Largo, pinguela nele não cabe, ponte não nos dará conhecê-lo.

Não quero isso pra mim, Mudar precisa o mundo. Quem foi que tirou o trabalho Do meu marido Raimundo?

Não me despeço da lida Sem construir uma ponte: Entre corações um sol, Que radie no horizonte.

Movem-se os lençóis. O vento dobra o mar. Tato.

Não seria sábio auscultar o diário vai-vem dos pássaros?

SIDNEI SCHNEIDER é gaúcho de Cruz Alta. Premiado em muitos concursos literários, já participou de várias antologias poéticas e publicou a tradução de Versos Singelos do poeta José Martí, em 1997. Estes poemas foram extraídos do livro Plano de Navegação, ed.Dahmer, 1999.

Não é pisando em peixes que conseguiremos atravessá-lo.

Com os braços dar forma ao nosso sonho de asas? De dentro domá-lo para sempre com um simples remo?


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CHARLES ABEGG charlesabegg@yahoo.com.br

arte

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Paaraabééénnnssss!

CLAUDINE GOUX

ra assim mesmo que se cumprimentavam lá na Igreja do Seu Rolinho, o lugar mais sagrado do Passo das Águas, e tão sagrado que o padre, quando passava por lá, pedia bênção. Pura e sem gelo. E tinha desconto, o sacana. Só porque era padre. Paaraabééénnnsssss! Como que soltando uma explosão no fim da palavra, que começava como se fosse apenas a preparação para um grand finale. Como tudo numa religião qualquer, aquilo também tinha uma explicação litúrgica: tudo começou com um dos membros mais ilustres da irmandade: Biritinha, que tinha um apelido assim humilde para combinar com sua estatura pequena, corpo magro e uma sede imensa, mas ainda assim modesto. Ao entrar na biblioteca do seu Rolinho, sempre pedia uma biritinha, coisa pouca pra não dar trabalho. É claro que essa podia até não ser uma atitude de corredor fundista, mas Biritinha era um maratonista; agüentava uma liça de dias a fio sem pedir arrego nem Engov. E sempre que adentrava o palácio, era saudado como um monarca: Paaraabééénnnssss! Um monarca humilde, porém sempre um monarca. A história dessa curiosa saudação me foi transmitida pelo imortal Betão Banguela, o Banga da Baixa Gogô: - Sim, da Baixa, que a parte de cima era lugar de fresco - dizia o mimoso, referindo-se deste modo àquela região por ser perto demais do IAPI. Banga me contou essa história no meu período de iniciação etílica, que durou sete anos. Eu era meio lento e esse foi o tempo que demorei para ser aceito como neófito na roda de trago dos adultos. Dizia o velho Banga que esse enrosco foi mais ou menos assim: Mais uma vez nossos destemidos heróis haviam armado uma treta qualquer para se verem momentaneamente livres das patronagens, celebrarem o amor, a amizade às tradições locais de passar uma noite inteira (que eventualmente durava 72 horas) bebendo, rindo, e confraternizando sua fé em deus com outras irmãs da congregação. Dizem que foi um puta de um festão numa grande casa de bailes das redondezas, coisa muito chique, alto nível: pra entrar só de sapato igual nos dois pés, e deixando as armas na portaria, (pelo menos as de grande porte). Já na chegada Biritinha deu sua primeira tirada; por ser totalmente avesso a violência física, não andava armado com nada a não ser seu bom humor. Mas como foi o único que não entregou arma nenhuma na dita portaria, os seguranças o interpelaram gentilmente pela lapela do casaco: - E aí, ô coisa pouca? Cadê a porra do trabuco, hein? A catrefa vinha atrás, e obrigatoriamente teve que parar e dedicar alguns segundos para aquela que parecia ser a primeira distração da noite; Biritinha, já meio erguido pelo bruto, encolheu os braços balançando as duas mãos e disse: - Ué, seu? Tá em casa cuidando das crianças! Pô; queria que eu trouxesse aquilo pra cá? Tá louco rapaz? Entre a gargalhada geral, Biritinha foi arremessado pra dentro do salão na companhia de seus comparsas, e o resto da noite seguiu como o esperado: todos dançaram, riram muito uns com os outros, embebedaram-se e também riram muito uns dos outros, numa reprodução quase perfeita do Jardim das Delícias. A festa acabou lá pelas sete horas da matina, e a tendência seria eles peregrinarem até o último remanso de água vívida lá no Seu Rolinho. Mas parece que a festa em peso foi tomar saideiras e caldos, entre caldos de saideiras, num outro bar das imediações da bailanta: uma dessas casas que existem para recepcionar os notívagos em sua honra de fim de festa.

Em uma mesa, às sete e tanto da manhã, esta-va a quadrilha, já parecendo tomates de fim de feira: amassados, mas triunfantes em passar para mais um turno etílico. Banga da Baixa Gogô, Chaveto, Chupeta, Lagartão, Zé Limão, Paulinho PC (o paunocu paunocu paunocu), Zizão, que ficava eternamente parado na porta do bar, e, é claro, Biritinha, que a essa altura da maratona começava a apresentar alguns sinais de cansaço (mas acho que era só pra enganar o adversário). Na mesa ao lado estava um casal, desfrutando um caldo de saideira. A moça em questão era um espetáculo! Um vestido de veludo verde com um tomara-que-caia-quasecaindo para o delírio da geral, que represava seios tão fartos que davam a idéia que seria possível sobreviver no deserto apenas com aquilo ali, mais um pacote de bolacha Maria, sem passar fome nem sede, por pelo menos alguns meses. Puta que me pariu, que peitões! Acima deles, o pescoço, que sustentava a invariável e eterna cara-de-vagabunda-fim-decarreira, maquiagem toda borrada, cabelo já se desmanchando e coisa e tal. Enfim, uma maravilha da natureza, que estava acompanhada de um guarda-roupas de quatro portas com maleiro feito de angico pau-ferromadeira-de-dá-em-doido, o caralho à quatro! Mal encarado pra cacete, que tinha a tal beldade embaixo do braço como um leão com a patinha em cima do pobre ganso. Pra completar o quadro, a moçoila levava, preso no decote ao lado esquerdo, um lindo broxe em forma de borboleta, com anteninhas de pedrinhas imitando pequenos diamantes, ou seja: uma autêntica porcaria de bijuteria de péssimo gosto. O quadro da dor. O Biritinha não desviava o olhar - nem do broxe e nem dos peitões - mas àquela hora da manhã ninguém dava mais bola pra olhares e babações ou coisas assim. Até que dali a pouco ele se levanta fazendo menção de ir ao banheiro, pára na frente da moça, olhando para o broxe, e taca a mão no peitão, digo no broxe. Com o susto, o armário que a acompanhava se levanta e a puxa pelo braço bruscamente, como num ato de proteger sua presa já abatida das garras de um outro predador. Nessa puxada, a moça, que estava insone, se desequilibra e cai no chão, fazendo a borboleta voar e deixar à mostra tudo aquilo que já se pronunciava em querer ficar à mostra. Bom... Aí a coisa virou um pastelão. A mimosa não sabia se escondia as partes ou tentava se levantar; o bruto não sabia se enfiava a mão no Biritinha ou ajudava a vaca a erguer-se; o Biritinha não sabia se olhava os peitos ou se corria; e o resto da corja não sabia como fazer para parar de rir.

Daí que rapidamente a moça se recompôs. Neste momento, o dono da mercadoria começou a esbravejar com o Biritinha, que não correu, mas pelo menos parou de olhar para os peitões, enquanto o bando continuava a rir adoidado. - Mas que porra é essa, caralho? Mas como é que tu mete a mão na minha mulher seu filho de uma puta? - dizia o caminhão, apontando o dedo na cara do Biritinha, que a todas essas já estava encolhido dentro de sua humilde carne pouca. É importante lembrar que por mais que o cara fosse grande, e o Biritinha pouca-coisaquase-nada, havia o resto do grupo, onde ninguém era tão pequeno. Todos tinham cara, jeito, forma e cheiro de bandido. E eram. E o enfurecido com cara de marido percebeu isso de cara, o que foi fator preponderante para evitar que a surra se desse por imediata. Aí criou-se o clima: o indignado bufando em cima do Biritinha, como se esperando uma explicação que lhe fosse possível aceitar, uma desculpa, algo do gênero, para evitar de ter que começar uma briga que, sem dúvida, não era interesse de ninguém. Biritinha não perdeu tempo, fez uma cara de invocado e perguntou: - Mas que mulher? Eu só quis ver o broche, porra! O corno , cada vez mais puto e preocupado com a reação da macacada, berrou: - Mas que broche merda nenhuma, caralho! Tu passou a mão na minha mulher! Ou vai dizer que tu não viu que ela tá comigo, porra! Biritinha sentiu que era agora ou nunca. Ou matava a coisa ali, ou tava fudido. O animalão ia sentar a mão no seus cornos, e a patota iria fechar o maior pau com o bicho... E depois iriam dar outra surra nele por ter começado a merda. Armou o bote fatal: - Tua mulher? Vai me dizer que tu ganhou es-sa baita mulher ali dentro do bailão? É importante ressaltar que o Biritinha carregou o tom da voz na palavra "tu", como que querendo dizer que era areia demais para o caminhãozinho do pomposo, mas ao mesmo tempo isso não deixava de trazer um elogio contido a um mérito de macho conquistador. Deu certo: o monstrengo mudou as feições para um misto de soberba e orgulho ferido, não mais tão enraivecido, mas ainda assim esperando algum desfecho que lhe desse a oportunidade de sair por cima da merda toda. O Biritinha então aplicou a mordida peçonhenta do humor que só os bêbados e os anjos sabem reconhecer (os bêbados para rir, e os anjos para mandar tudo para o inferno). Lascou o ídolo: - Se tu ganhou essa mulher ali dentro - e disse isso apontando o dedo pra o cara, depois pra a mulher, e por último pro lado do bailão; e usando uma expressão de ira, que logo mudou para uma cara de felicidade, ao mesmo tempo em que pulava em cima do grandão para dar-lhe um abraço, enquanto explodia o brado que lhe tornaria tão imortal quanto o próprio PAARAABÉÉÉÉÉNNSS! Tu que é feliz, meu amigo! Nem a mais sisuda das garrafas de canha da parede se agüentou, e explodiu em gargalhadas junto com tudo quanto era pinguço e vadia que ali se encontrava, incluindo, é claro, todos os protagonistas da arenga. Daquela manhã em diante, cada vez que alguém entrava lá no Seu Rolinho, ou fazia alguma merda, ou contava alguma, ou simplesmente iria receber alguma felicitação, era essa a expressão usada por todos: paaraabéééénnsss. Naquele momento, a reprodução do Jardim das Delícias havia alcançado a perfeição. Pelo menos foi isso que o Betão Banguela, o Banga da Gogô (mas da Baixa, que a de cima é muito perto do IAPI), me contou.


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O Ponto

CAIO PORFÍRIO CARNEIRO

entado nesta cadeira, mais velha do que a minha idade, miro há dias o ponto distante. Lá longe, nos confins. E me aumenta, há dias, a angústia de não alcançá-lo. Há dias. Inadiável que o alcance, para que me justifique, para sempre, de tudo o que ao longo da jornada não justifiquei. E ele lá, ao longe, sempre vívido e pulsante. E nesta cadeira, mais velha do que a minha idade, há dias, há muitos dias, acumulo disposição para a inexorabilidade da ida. Minha jornada me inferniza. É levantar e partir, que ao meu encontro ele nunca virá. Ele suprirá a essencialidade da minha própria vida. Há dias a irresolução. Mas a minha jornada necessita da ponderabilidade da remissão. Suspiro fundo, o estirão à minha frente, apóio-me na bengala, firmo o boné com a altivez que nunca tive, abotôo o sobretudo, que a névoa anuncia frio. Tão leve, que daqui o vejo, lá nos confins, parado, acusando-me. Meus passos começam trôpegos, paralisados que ficaram com a minha indecisão. Mas vão se firmando, vão, os passos e a minha resolução. Quase um compassso militar. Apressamse as batidas dos pés no chão áspero, cadenciados pelo contra-ponto da bengala. Indispensável alcançar o ponto, justificando a minha jornada. - Bom dia. - Bom dia. Passam por mim e vão acabrunhados. E ele lá, o ponto, no ponto de espera, nos confins.Eu não tirava os olhos dele e ele, sem gestos, à espera, em perpétuo chamamento. A minha indiferença ao longo da jornada, as minhas irresoluções, as minhas indecisões, as minhas justificativas a mim mesmo, nada me valeram e eu estou aqui, depois de dias e dias de inquietações lá na cadeira, mais velha do que a minha idade. As passadas apressam-se, pouco me importando as dores nos pés, nas juntas, nos ossos. E as batidas da bengala no chão tão áspero que me lembra a minha jornada, agora mais fortes, confirmando a decisão tomada. Indispensável alcançá-lo, lá longe, sempre silente, à espera. - Bom dia. - Bom dia. Passam por mim, indecisos, acabrunhados. Podem passar quantos queiram. Pares, grupos, multidões, a humanidade inteira. E lá, nos confins, agora o seu perfil impreciso, esperando, num chamamento atroz. Tão distante e tão no mesmo lugar. E os pés me doem, e as juntas me doem, e os ossos me doem, e os olhos me cegam, dando-me a incerteza do seu perfil indeciso, impreciso, mas em perpétuo chamamento. As batidas da bengala já não são tão firmes. Trêmula em minha mão, é mais um arrimo. - Bom dia. - Bom ... O ponto lá, verdadeiramente inatingível. E já não era a ida. A bengala desenhava no chão arabescos de cajado. Era o retorno, trôpego, arfante, ao início da partida, à cadeira vazia que me esperava. E ninguém transitando ao longo do retorno, que não me distanciava do ponto, lá, sempre lá, incógno e presente. Não me sentei na cadeira. A ela me entreguei. Pernas trôpegas, doloridas, trêmulas. A bengala, livre dos meus dedos, ali estirada ao lado, sempre pronta para servir-me neste final de jornada. De nada me valera a indecisão de dias. Sentado nesta cadeira, mais velha do que a minha idade, apenas o desalento. A voz leve, talvez da minha consciência, advertiu-me: - Já alcançou o fim da sua jornada. - É necessário alcançar o ponto, sanar as culpas. - Muitos e muitos, do mais antigo antanho, tentaram em vão. - Muitos por mim passaram, na minha ida. - E continuarão passando, sem solução. Mas o ponto está lá, à espera, quase um chamamento. - Não está tão longe. Esteve sempre em você. - E por que lá nos confins? - Projeção da sua própria realidade. O sono me veio chegando. E o repouso definitivo foi apagando o ponto antes que eu sanasse as culpas da minha longa jornada.

INSE

DA ROCHA

Se o Palocci e as taxas de juro caírem, eu me suicido! JUROS POR DEUS!!!

KTO

S

PÂNICO

HAI KAIS

ESPECULADORES em

LEANDRO DÓRO MPB, literatura russa, bar, cerveja, discurso anti-ditadura, princípio da redemocratização, sonho em conhecer o espaço sideral, viagens e Pasquim. Este era o universo de Gotijo.

GOTIJO

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PAULO DERENGOSKI / Lages - SC

Viajou por Inglaterra, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Suécia, Suíça, Finlândia e Grécia foram alguns dos países em que esteve lavando pratos e freqüentando bares

Ocupava o restante do tempo contando essas peripécias em mesas de bar.

Nos finais de ano e sempre que a saudade ou a falta de dinheiro batiam à porta, visitava sua mãe em Passo Fundo.

Em São Paulo foi jornalista.

À noite e em bares de seu Estado natal, Rio Grande do Sul, tocava Chico, Caetano e Moraes Moreira.

Mas o álcool cobrou seu preço.

Voltou para casa de sua mãe quando descobriu ter uma cirrose.

Agonizou em seu apartamento, construído ao lado da casa da mãe.

Vizinhas especulavam que na verdade ele tinha Aids, doença nova, na época.

Uma noite, todas as vizinhas disseram ter sonhado com ele.

Foi a noite em que morreu em segredo no hospital. Todos souberam do ocorrido somente no velório.

Parecia que ele pedia para continuar a viver em cada um de nós. Em mim, também. Eu tinha 11 anos.

FIM

O único fato revelado à todos eram nódulos em suas costas.

HORIZONTAIS - 1- (...) Niemeyer, arquiteto - Sucumba - 2- Que existe de fato - Descanso, repouso - 3- Saúdam com entusiasmo - Catedral de SP - 4- A Capital do Egito - Roupa feminina solta e larga - 5- Numeral - Diâmetro (símb.) - Aves extintas no final do século XVII- 6- Cinqüenta, em romanos - Resumo crítico do conteúdo de uma obra - 7- Cabana de índios - Facção Entrega - 8- Jean-Paul (...) (1905-1980), intelectual ícone do Existencialismo - Átomo que ganhou ou perdeu elétrons - 9Ocultar - Temperatura (símb.) - 10- (...) Borges, compositor e cantor mineiro - Adorno para cabeça - Vogal - VERTICAIS -1Opiniões incontestáveis - Consoante - 2- Enxugam - Ocorrência - 3- Cidade da Colômbia - Incomum - 4- Vaidade muito grande, sem motivos - Trinitrotolueno - 5- Raio (símb.) - Miguel de Oliveira, ex-boxeador - Curei - 6- Naquele lugar - Concede poder a outro - 7- Chaleira rústica usada pelos tropeiros - Arthur Rimbaud (1854-1891), poeta francês - 7- Emiliano Zapata (18791919), líder revolucionário mexicano - Exército Republicano Irlandês - 9- Desafinado - 10- Pátio interno (plural) - Diante de.

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Tropel de cavalos Relâmpagos no horizonte A vida passa

http://leandrodoro.zip.net/

CRUZADAS MANJADAS 1

Inverno ou verão O pinharal lá está Verde aos ventos

Número 18 - Janeiro a Março/2006 vivavaia@ig.com.br http/: /jornalvivavaia.blogspot.com

Editores: Marco Marques e Fernando Ramos Redator: Serpílio Atrabílis Projeto Gráfico: Gil Pires Jornalista: Victor Silva - Mt 4239 Capa: “Koan”, lápis grafite sobre papel de Jorge Herrmann. Colaboram nesta edição: Alexandre Florez, Almandrade, Álvaro Santi, Ascendino Leite, Caio Porfírio Carneiro, Charles Abegg, Claudine Goux, Edivaldo Sousa, Eduardo Guimarães, Emanuel Medeiros Vieira, Fábio Gomes, Felipe Azevedo, Fernando Ramos, Ita Arnold, Jacques Canut, Josette Lassance, Leandro Dóro, Luiz Gustavo Insekto, Marcelo Spalding, Marlene Reinaldo, Nilto Maciel, Paulo Ramos Derengoski, Rogério Lamas, Ronaldo Cagiano, Sidnei Schneider, Telma Scherer, Valemar Alves.

OS ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES ? Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - centro - Porto Alegre- RS- BRASIL- 90010-312- F:(51)9649-5087


CIRCUITO “Entramos nos quarenta anos com a inexprimível idéia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa” Julio Cortazar, “Casa tomada”.

ansados de vagar pelas ruas, famintos, Daniel e Irene pararam d i a n t e d e u m b a r . Se não encontrassem comida, ao menos descansariam. Outra pousada talvez não houvesse por perto. O garçom ofereceu-lhes vinho, cerveja, vodca, uísque. Aceitaram vinho com salame. Ela abaixou a cabeça, quase até à tábua da mesa. Ele olhava sutilmente para os outros bebedores. Um deles, exaltado, falava mal do governo. Outro cochilava diante do copo. Havia bigodes volumosos, barbas ralas, dentes luzidios, olhos faiscantes. Daniel pediu mais vinho e salame. Irene queria chorar, sair dali, deitar-se, esquecer tudo. Tivesse calma. Precisavam ordenar as idéias. O vinho talvez os ajudasse. Ao redor dele o governo tombava. Bigodes se enchiam de dentes; barbas, de olhos. E a casa? Como estaria a casa deles àquela hora? Já teriam tomado conta da biblioteca, devorado os livros franceses? Ah! como guardava belas recordações de Balzac, Flaubert, Victor Hugo. Por um instante Irene esqueceu de si mes-ma. Tivesse o irmão cuidado com aquele vinho. Não costumava beber e poderia se embriagar. E, então, como teriam boas idéias e sairiam dali? Ele se exaltou. Não precisava de idéias. A única idéia daquela noite deveria levá-los de volta a sua casa. Sim, a casa lhes pertencia. Não a deixariam para primos distantes e, muito menos, para intrusos, invasores estranhos. Ela se pôs a chorar baixinho. Nunca mais voltaria àquela casa. Como voltar, se estranhos a haviam tomado? Um dos bigodes do recinto aproximou-se dos irmãos. Pediu licença para ajudá-los. Pôs seu copo junto ao de Daniel e puxou uma cadeira. Ouvira toda a conversa do casal.

C

“Somos irmãos". Os dentes do intruso brilharam, assim também os olhos. Se não podiam voltar para casa também não podiam passar a noite nos bares ou nas ruas. Daniel pediu mais vinho. Irene mirava o brilho dos dentes do outro. Morava sozinho num casarão. Os pais mor-tos há muito. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas vidas. Casamento nunca não quis. Preferia a noite, os companheiros de bar. Mulheres surgiam e sumiam, feito fantasmas, sombras, inacessíveis. Em suma: muita solidão. Nem sequer um gato para miar-lhe o silêncio, um cão para ladrar-lhe a escuridão. Se ao menos ainda gostasse de livros! Atemorizava-se diante da amplitude de Balzac. Aborrecia-se com o infinito amargor dos personagens de Flaubert. Talvez devesse colecionar selos e revê-los aqui e ali. E, se fosse mulher, poderia tricotar e desfiar coletes, echarpes, cachenês. O homem ora agarrava o braço de Daniel, ora apalpava o ombro de Irene. Os irmãos se entreolhavam. Ela mostrava uns olhos de medo e espanto. Ele simulava uns lábios de quietude e impassibilidade. "Precisamos ir embora, caminhar". Sim e não. Pois como andar pelas ruas àquela hora? Já fechavam as portas do bar. Nenhum boêmio, nenhum bêbado mais. "Vamos à minha casa. Dormiremos e, quando for dia, tomaremos nossos rumos". Irene amparouse no irmão. Aquele sujeito talvez estivesse embriagado. "Iremos de carro". Pior ainda. Não conseguiria dirigir. "Tenho motorista. Se não gostarem dele, chamarei o chauffer". O automóvel planava. As esquinas se sucediam. Vultos sonolentos andavam pelas calçadas. O condutor parecia um boneco. O dono do carro nada mais falava. Daniel olhava para um lado; Irene para outro. Súbito o automóvel parou. E os irmãos, pasmados, se viram diante da casa que lhes fora tomada. NILTO MACIEL, cearense de Baturité, é autor Pescoço de Girafa na Poeira (contos, 1998).

DEPOIMENTO PESSOAL DE UM NEO-ESTUDANTE DE LETRAS

É

difícil escolher uma profissão. Isso é fato. Mas pode ter certeza que ainda mais difícil e corajoso e necessário é mudar de profissão. Eu cresci jornalista. Por circunstância - e prêmios - da infância, além da influência dos pais, que me viam o novo Willian Bonner. Fui adiante, fiz jornalismo e me formei. De repente, me deparo com as Letras. As letras me chamam, sinto fascínio não apenas pelas histórias mas pelas discussões e teorias acerca da literatura e, até, da linguagem. Só que mudar de profissão - ou de área de interesse - é como se mudar de casa. Não, pior, muito pior. É como entrar numa mansão enorme e cheia de móveis, livros, fios, tudo espalhado. Você precisa primeiro conhecer a casa, organizar os móveis, pôr os fios no lugar, jogar algumas coisas fora. Demorará anos, talvez muitos anos até você se sentir em casa. Com as Letras isso é ainda mais difícil. Há milhares e milhares de livros publicados, consagrados, já tantos e tantos escritores premiados, Nobel, Jabuti, há muitos gêneros nascidos e enterrados, outros em formação, há muitos países com nomes fundamentais e nomes fundamentais em cada ano, século, período literário. Entrar na mansão da literatura para começar a trabalhar nela é deparar-se com Camões, Shakespeare, Dante, e se surpreender que eles não sejam quadros na parede, mas fantasmas ativos, mestres modernos, e assim sendo é necessário guardá-los em lugar seguro. É deparar-se com uma enormidade de obras descartáveis, algumas facilmente identificadas, outras que gozaram de grande prestígio, como as de Coelho Neto. Enfim, estudar letras é antes de tudo um exercício de humildade e paciência. Raramente seremos um Dante ou um Shakespeare. Certamente não o seremos se tivermos a pretensão de sê-lo. Mas, se serve de consolo, estudar letras é estar numa mansão de pessoas interessantíssimas, mulheres inteligentes, homens de barba sonhando com um mundo novo. Assim, se nunca conseguirmos colocar a casa em ordem, pelo menos teremos nos divertido um bocado e dado algum sentido para essa vã existência terrena.

MARCELO SPALDING, jornalista, escritor, membro do grupo Casa Verde


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