Jornal Vaia edição 27

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Porto Alegre, julho de 2009

Guimbas de humor: ALDIR BLANC I Entrevista: MÁRCIA DENSER I Ensaio: JORGE BUCKSDRICKER Contos: CAROL TEIXEIRA, JOÃO FILHO e OLAVO AMARAL I Poesia: ÁLLEX LEILLA, CLAUDIO DANIEL e LÚCIA SANTOS I Traços: BIER e ANDRÉ DAHMER I Um autor: RODRIGO DE SOUZA LEÃO


traços

conto

buchada de estrelas

BIER ALEMÃO BLAU

aca nas mãos, o menino estrábico se aproxima dos intestinos pendurados no teto. Pé ante pé na escada de madeira, olho esquerdo fixo nas dobras do músculo. Concentração incomum frente ao alvo inanimado. As vísceras balançam de leve, presas pelo mesentério pregado no teto. Pouco vento sopra, a margem de erro é mínima. Um degrau a mais e ele chega ao topo. Levanta o braço que empunha a faca, avaliando a própria envergadura. Por um momento nada se move, a transpiração latente paralisa os corpos. E então com um esmero quase religioso o garoto recua o braço, deixa-o rente à cabeça, prepara o golpe. Mira as tripas do ruminante com o olho bom como se enxergasse um inimigo mortal. E após arquejar o corpo até o ponto de tensão máxima deixa-se condensar inteiro no punhal, que traça um arco veloz no ar até atingir, fulminante, o centro da buchada, rasgando o músculo em dois. No ponto do corte, escarra-se a fenda da qual jorram estrelas reluzentes, recortadas caprichosamente em papel prateado. Libertas da carne, elas trepidam brevemente no espaço entre o teto e o solo antes de aninharem-se no chão de terra batida. Um segundo céu efêmero, mas suficiente pra que as outras crianças invadam o centro do galpão, na fútil tentativa de banharem-se também. “É um adulto”, grita o pai, envolto em sombra. Coberto de estrelas, o menino contempla o intestino cortado, as entranhas à mostra, o ofuscante reflexo prateado que se espalha no chão. E sente, sem compreender nada, pelo menos um pouco do que aquilo quer dizer.

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ação ilustr

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JEN MOO

ANDRÉ DAHMER APÓSTOLOS, A SÉRIE

Olavo Amaral

www.palavraria.com.br V VI V

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um livro Divulgação/7Letras

Guimbas de humor mal-humorado

Para felicidade geral da nação, Aldir Blanc está com novo livro na rua. Na sua melhor forma, o poeta de Vila Isabel chuta de trivela um petardo de frases acesas até a última ponta, reunidas sob o título “Guimbas” (editora Desiderata), sobre o qual ele fala um pouco aqui nesta página. No magnífico "Vila Isabel - inventário da infância" você faz um tributo à febre que foi a Vila pra sua vida - a febre de viver, a febre criativa. Noel Rosa também foi um cara que tinha essa febre, e era um craque que colocava nas letras de suas músicas frases certeiras e tiradas sarcásticas com doses fortes de filosofia. Você se considera também herdeiro de um certo humor de Vila Isabel? Sua primeira pergunta acerta o centro de um alvo que foi pouco explorado. Vou radicalizar na resposta: não fosse o bairro de Vila Isabel, eu já estaria morto. É a origem de tudo que fiz até hoje e que espero ainda fazer.

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BLANC

ALDIR

Já ouvi você dizer e repetir uma frase do Ivan Lessa: "Papo é civilização". Ouvi você falando sobre botequim e citando essa frase, dizendo que o essencial é conversar, pois enquanto a gente conversa, ninguém joga bomba, etc. No "Guimbas" há uma frase: "Os bares não servem apenas o que está no balcão, mas também a inesgotável dádiva de seus frequentadores ao humor popular". O "Guimbas" não é amena e anedótica conversa de botequim, você não dá refresco e senta a pua (diríamos nós, gaúchos), é um livro de humor de mau humor, um livro "irado", de humor "pé na cara". Acho que se não houvesse o buteco e o papo nossa civilização não existiria mais. Por exemplo: Gosto de pensar que, na época da Guerra Fria, um russo estava com o dedo no botão vermelho, aquele de detonar os mísseis intercontinentais. Resolveu tomar umazinha. Pensou que o Dínamo de Moscou custava uma merda; puxou papo com um assessor, a conversa descambou pra uma secretária gostosíssima, e coisa e tal, e... não houve guerra.

arte GUILHERME MOOJEN

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Você acha que a inevitável reação e resistência à lama, falcatrua, achincalhe e roubalheira sem fim que nos assola se dá mesmo através do humor? Lembra da reação popular ao Collor? Quase carnavalesca, caras pintadas, blocos nas ruas; nas gozações nos circos das CPIs do Mensalão (que durante algum tempo substituíram até o futebol em papos de butecos e esquinas); veja o escárnio com o “calvário” (gostoso) do Réu-nan Cagalheiros; as cáusticas tiradas contra o Supremo (de frango)... O humor não só resiste à lama como nos permite botar a cabeça pra fora (nos dois sentidos), sacudir o lixo, respirar e gozar. Você joga - e bem! - no mesmo time do Barão de Itararé e do Millôr Fernandes, dois caras de excelência nas frases certeiras. Para eles o humor parece não ter limite. Pra você o humor tem algum limite, algum ponto além do qual ele não possa avançar? Mario Quintana dizia que quando a poesia vem ela não respeita nada, nem pai nem mãe, ela é a verdadeira tomada da Bastilha. Isso pode valer para o humor também? No Pasquim (está no Guimbas) Henfil vivia me dizendo que “humor é pé na cara”; Ivan Lessa, talvez inspirado pelo Quintana – que todos nós amávamos –, dizia que a graça não respeita nada (e que confusão deu, quando ele escreveu que o assassino do cineasta Pasolini era obviamente um crítico de cinema!!!). Então, não acredito que tenha chegado à excelência do Millôr e do Barão de Itararé, mas faço meu trabalho: não compactuar com o Brasil idiota do BBB, da bundinha na garrafa, do Corregedor com castelo, etc. O curioso é que escrevi o Guimbas ao mesmo tempo em que terminava “A Cruz do Bacalhau – Crônicas da Já-Era Eurico”, sobre o Vasco da Gama, um livro que me fez sofrer muito, e a pancadaria no Guimbas atenuava minha tristeza pela decadência do meu clube. Você fala na abertura do "Guimbas" que o politicamente correto é a morte do humor. O politicamente correto também seria uma das fachadas da "ditamole" atual? Sem dúvida. Às vezes me pego pensando que essa “ditamole” é mais sórdida que a ditadura, o que é muito, muito ruim. Noto que a corrupção política brasileira é uma das coisas que mais te deixam puto, e contra a qual você arremessa incessantes e violentas pedras. Agora em 2009 fez 20 anos que a Constituição da República foi aprovada. Está lá escrito que todo brasileiro tem direito à educação, saúde, cultura. E que a democracia é um bem comum. Sabemos qual é a situação real. Se você fosse convidado para dar uma ideia para uma mudança no setor da cultura do país, ou para ser ministro da cultura, o que você proporia? Trabalharia com o Ministério da Educação, para melhorar a escolaridade e valorizar o livro. Acho que foi o Millôr que disse: “Fora do livro não há solução”. Acredito nisso. A internet não vai tirar o prazer, a alegria de ler livros. Isso é besteira. O livro fica ali na estante, na mesa, te esperando; prontinho pra hora que você quiser. Se a luz acaba? Acende uma vela e continue a leitura. Já no computador... “o sistema caiu!!!, deu pau!?!, não tá acessando, pombas!” Os melhores momentos da minha vida, à exceção dos sexuais, passei com livros. Sei que parecerá heresia, mas gosto mais de ler do que ouvir música; e não tenho medo de admitir isso porque é verdade e, num país de mentirosos, toda verdade vale muito.

Arremate A mãe, costureira profissional, passava o dia inteiro à máquina, com um cigarro no canto da boca, que lhe fazia manter o cenho franzido por causa da fumaça, e um copo de cerveja preta do lado. A filha, de seus 20 anos, queria ser cantora do que chamava de bandas alternativas. Quase não se falavam. A mãe, que a amava, por temperamento; a moça por um constante amuo, talvez, para usar suas próprias palavras, devido a “não conseguir espaço para realizar sua vocação”. Um dia, a moça apareceu na sala com uma pequena mochila e disse para a mãe, cujo rosto permaneceu inalterado: - Estou procurando mudar de ares, sacou? Um lugar em que eu possa refletir e me guardar. Vou pra Mauá. Um ano depois, voltou grávida. A mãe cuidou da filha e da neta sem uma palavra de censura. Quando a criança estava prestes a completar seu primeiro ano, a moça, um pouco alterada por maconha, voltou a dizer: - Tenho que me guardar num canto calmo. Planejar minha carreira. E a situação se repetiu. Voltou de Lumiar grávida. Novamente, sem reclamar, a mãe a ajudou e criou as duas crianças. Na terceira vez, quando a figura já estava saindo, com o mesmo papo de se guardar, a mãe botou o cigarro no cinzeiro, o que raramente fazia, chamou a moça, que já se encontrava na soleira da porta, deu um calmo gole na cerveja preta e perguntou: - Aonde você vai se guardar desta vez? - Sei lá. Tô pensando em Ibitipoca. A costureira olhou a filha bem nos olhos, por um longo tempo, e arrematou a costura: - Sua vó, que Deus a tenha, costumava dizer: “Tesoura e boceta a gente guarda fechadas.” * crônica do Guimbas, Editora Desiderata, 2008

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ensaio

A não poesia visual contemporânea

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Na década de 90 e na primeira década do século XXI a “poesia visual” perdeu, contudo, muito da sua força. O paradoxal é que este período coincidiu com uma relativa popularização do microcomputador, que passou a fazer parte do acervo tecnológico das famílias de classe média/alta. Se até os anos 80 o processo de “visualização” era prerrogativa dos especialistas, a partir de então se tornou acessível ao usuário comum deste extraordinário eletrodoméstico. Mas diferente do que se poderia prever, a poesia das últimas décadas tem se mostrado cada vez menos visual. Algo semelhante parece vir acontecendo com as interações artístico-literárias, reduzidas ao extremo. AS RAZÕES PARA ESSA SITUAÇÃO ainda não foram devidamente identificadas. Procurarei esboçar aqui algumas delas. Em primeiro lugar, não é de todo improvável que estejamos em meio a uma espécie de reação ao boom visual das décadas de 70/80: o retorno ao texto tipográfico seria, dessa maneira, uma forma de contestação aos excessos visuais daquela época. (Vale lembrar que o projeto verbivocovisual da poesia concreta, a idéia de comunicação total, de identificação forma e fundo foi deixado de lado por muitos poetas em favor de uma “visualidade” puramente ornamental; ou seja, completamente desligada do significado do poema.) Nesse sentido, o retorno ao texto tipográfico seria algo semelhante ao retorno às formas clássicas da geração de 45. (Embora isso seja apenas um hipótese, é preciso não esquecer que a referida revolta ao boom visual se estende também a certas “facilidades” da poesia marginal. De modo que a volta ao texto tipográfico é também uma volta à palavra difícil – ou, se não difícil, rara.) Numa sociedade excessivamente “visual”, o texto tipográfico – teoricamente – romperia com a passividade imposta pela publicidade e pelas mídias de massa, obrigando o leitor a um esforço maior de leitura. (O paralelo mais adequado – ao menos nesse sentido – talvez seja com a Language Poetry norte-americana). Em segundo lugar, há, na poesia contemporânea, a presença inequívoca da subjetividade: um sujeito que olha o mundo e registra poeticamente esse encontro. O caráter essencialmente lírico dessa poesia aliado aos temas afetivos em torno dos quais ela gravita, afirma uma poética apartada dos experimentalismos e das interações disciplinares de ontem. (Não há aqui uma relação causal: cummings é o exemplo maior de um poeta lírico visual). Um pequeno escorregão histórico e poderíamos dizer que a poesia das últimas duas décadas é mais poesia – e menos outras coisas – que a poesia de outrora. Contra esse escorregão, servem de alerta as palavras de Antônio Risério: “O padrão da poesia ‘vers libre’ (alinhamento pela esquerda, margem direita irregular, 04

letras dispostas linearmente da esquerda para a direita e passagem de uma linha a outra no sentido alto-baixo, o conjunto aparecendo como um bloco tipográfico colado no branco da página) pode ser várias coisas, menos eterno. (...) o fato é que a arte da palavra é anterior ao espaço gráfico gutemberguiano – e sobreviverá a este.” E aqui cabe uma observação: se os concretos incorriam em uma idéia teleológica de progresso quando falavam em “linha evolutiva” da literatura, os defensores da poesia tipográfica terminam por congelar a história quando reivindicam para esta o monopólio do texto poético. Independente do acerto destas hipóteses, é inegável o caráter não visual da poesia contemporânea. Uma poesia que em termos de visualidade (já que essa é inescapável) não difere da poesia produzida no início do século XX. Certamente existem exceções. O mineiro Ricardo Aleixo é, talvez, a mais notável. Dono de uma dicção contundente, Aleixo explora a visualidade do texto sem cair na ornamentação gratuita ou repetir fórmulas desgastadas. Em poemas como Branco ou a frente dos bois o autor articula e/ou picota o texto, estabelece o preto como cor de fundo, utiliza tipos maiores e extrapola a página do livro sem deixar de ter em conta o sentido dos textos. A visualidade não é um acessório do poema ou um capricho do poeta, é tão importante para a sua eficiência comunicativa quanto o ritmo que ostenta ou o ponto de vista que assume. Coincidência ou não, Aleixo não é um poeta lírico (embora às vezes o seja), nem está preocupado com a metafísica dos pequenos fatos. Aleixo é um poeta mundano: atento às pequenas coisas, mas ciente dos grandes acontecimentos. É também um poeta culto. Mas diferente do que ocorre com muitos poetas contemporâneos, Aleixo não faz dessa cultura um estandarte (o que quer dizer que o autor evita certos excessos de erudição, como palavras em latim e francês ou comentários sobre a pintura dos grandes mestres). Por fim, vale ressaltar que o autor retoma o fecundo intercâmbio entre literatura e artes visuais. Mas, sintomaticamente, vai lhe interessar menos as escolas historicamente consagradas do que a arte produzida hoje. O CARÁTER NÃO VISUAL DA POESIA contemporânea salta aos olhos quando consideramos os grandes expoentes dessa geração (e não os que estão à margem). Entre os mais destacados e reconhecidos poetas das últimas décadas estão: Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz e Claudia Roquette-Pinto. Carlito é, em termos técnicos, provavelmente o melhor poeta de que dispomos. Articulador competente de parte da nossa herança poética, Carlito demonstra um raro domínio dos elementos sonoro-musicais do poema. Nos seu melhores momentos, Carlito é capaz de proezas como Abertura e Ao Rés do Chão. No que tange à visualidade, Carlito acerta em cheio em poemas como Traduzir. A visualidade não é, todavia, uma marca da sua poética. Do seu primeiro livro, “Collapsus Linguae”, até o relativo sucesso de “Sob a Noite Física”, os experimentos visuais, que já eram escassos, praticamente desaparecem. Quanto ao domínio técnico, notável desde a sua estréia, este, a medida que o tempo passa, se torna cada vez mais explícito. Isso se deve, sem dúvida, à eleição de temas do autor. Como poeta, Carlito é um atento observador das pequenas coisas, das minúcias do cotidiano. O autor lembra de alguma maneira

os antigos pintores de natureza-morta. Tema “neutro” por excelência, a natureza-morta evidenciava a maestria pictórica dos artistas sem o inevitável ofuscamento dos grandes temas. Ao eleger temas aparentemente banais, Carlito faz da escritura o personagem principal dos seus poemas. Esta emerge da singeleza dos seus temas para tomar de assalto a atenção do leitor. Mas embora válida, os seus melhores frutos não resultam desta estratégia. É quando consegue adequar a sua dicção à aparente banalidade das situações que Carlito alcança resultados realmente importantes (como em Água Forte). Ou quando ousa voos mais altos (na série As Banhistas, por exemplo). Alguém poderia inferir, do que dissemos, que atualmente não há uma preocupação substancial com a visualidade da escrita. Formulada assim, a afirmação mereceria algum reparo. Contemporaneamente, o terreno da escrita não coincide com o terreno da literatura. Se os poetas estão menos interessados na contraparte visual do texto, o mesmo não pode ser dito em relação aos artistas visuais. Uma característica importante da arte dita contemporânea é, justamente, a liberdade com que os artistas visuais vão fazer uso da palavra. O trabalho do argentino Jorge Macchi é um exemplo inequívoco a este respeito. A partir da estrutura do jornal, de textos públicos ou da simples operação de justificação, Macchi reorganiza textos aparentemente superficiais em um movimento que, ao mesmo tempo que ressalta, amplia as suas significações. Outra abordagem interessante é a da dupla Ângela Detanico e Rafael Lain, para os quais vai interessar sobretudo o design dos tipos e o seu método de construção. Ainda em terra brasileira, vale destacar o artista Fábio Morais. No seu trabalho, Fábio se apropria de livros, de grafias e de textos alheios para reconstruir os mesmos em diferentes meios e contextos. CURIOSA SINA TEM A POESIA. Nascida na voz, o seu demorado pouso na página fez muita gente acreditar que o fundamental já estava posto. O que restava a fazer era menos um trabalho do que um ajuste. Um acréscimo, se tanto. Se um dia a teoria newtoniana representou o apogeu e o fim da física, o livro impresso parecia representar o apogeu e o fim da literatura. Não parecia distante o momento em que alguém eregiria o aporte filosófico necessário para sustentar essa conquista. Uma espécie de Crítica da Razão Literária ou de Fenomenologia da Literatura. Mas eis que para surpresa de tantos o texto ganhou vida no vídeo, nos muros e em outros espaços. A ponto de um Paulo Leminski dizer que “a literatura é o principal inimigo da poesia”. E que “o papel da poesia é se desvencilhar da literatura, e procurar a companhia de outras artes, como o desenho, a fotografia ou a música.”. No rastro dessas inovações, foi a vez da morte do livro ser anunciada. “Mas a história é sempre de conteúdo mais rico, mais variada, mais multiforme, mais viva e sutil do que o melhor historiador poderia imaginar”. E hoje, em pleno século XXI, em meio a computadores, televisores de plasma e aceleradores de partículas, assistimos à poesia pousar novamente na página do livro. E já há quem reivindique que se entalhe uma cópia. Para que, em caso de novos voos, possamos colocá-la no lugar da original.

Jorge Bucksdricker V VI V

chamada “poesia visual” inegavelmente não é de hoje. Embora a sua origem seja incerta (o primeiro poema visual que se tem notícia data de dois séculos antes de Cristo), foi com as vanguardas do início do século XX que a mesma, de fato, foi difundida. No Brasil, a longínqua década de 50 testemunhou – com a poesia concreta – o início de um ciclo produtivo que terminaria por desaguar na radicalidade do poema processo e na inventividade das revistas literárias dos 70/80 (revistas que atestam o rico intercâmbio artístico-literário da época).


poesia

Paisagem-Vértebra I Vozes multiplicam-se; lanhadas peles vociferam, guturais. Escarnece paisagemvértebra-canina: o lento apodrecer da lua, frágeis estruturas para o canto, aqui onde peixes jogam cartas com os vermes. Apenas o noturno pugilato das retinas, o andar desmembrado de uma a outra esquina. II Desconcerta animosidade entre polegares, entre olhos; desconforto ao cruzar essa, aquela rua — como num desgarre. Algo que arranha com unhas de corvo, deixando incisões. Escurece palavras simples num dialeto de esgares; vocaliza o ruído áspero de uma lixa no espelho, céu de estrelas aleijadas. III Paisagem de linhas retorcidas como ferros de uma paisagem amorfa. Desavença de cores no espelho retrovisor; cicatrizes alinhadas nos pulsos, em desenhos de fetos inanes. Esquinas meretrizam esqueléticos ângulos na noite desfocada. Unhas negras, peitos brancos, hora sem cor, autofágica garganta absorve o asco de tudo. Claudio Daniel

terreno baldio o poente e uma placa: vende-se. Alonso Alvarez V VI

Reticentes

Fugaz Passagem por uma paisagem, lugar do onde, do ontem, do quando, quantas palavras ficaram faltando na boca cheia de imagens. O outro é aquele que ficou a margem, no espanto de um pronome, no corpo de uma brisa suave; o outro é como uma fome, pluma à deriva, à distância, ou quase. Estranho em sua própria viagem, garrafa com uma mensagem, olhar durando numa flor, sem nome, secreta, selvagem. Desterro, água bebida num trem, peça incompleta, festa adiada, vertigem, a cabeça sempre em alguém: eu outro, eu todos, ninguém.

Um minuto só concentra o tempo de tudo * Ponto que marca a ponta do pêlo no poro da outra pele * O que há de vir além do vinho * Espaço no espaço que não existe * Poema também tem pressa e quando não se diz é vôo fora da asa * Mar aberto tilinta a ilha de perto * Tuas voltas: farejo demoras * Olho verde encontraste a rosa do lábio frutas a serem colhidas com a boca

Rodrigo Garcia Lopes

Diego Petrarca e Andréia Laimer

São Franscicana Falava de uma água limpa, que correria lenta pelo solo e acordaria a manhã. De uma água feito cachoeira mas mansa, num deslizar quase estudado pelas pedras, terra, pés de gente, patas de bichos. Como uma canção antiga vai ficando na cabeça desde a infância, ressonando. Quando nem compreendemos ainda a relação inapreensível entre as palavras e os sons. Fica e some vez em quando, fica e retorna e dói e alegra e novamente some. Memória de ziguezague. Construção meramente gideana: o pântano das lembranças. Outra: miséria de vida. Dizíamos, dir-se-ia, pouco importa esclarecer. É vago e lento o que desejamos: existir dentro de uma língua. Enternecer-se. Por isso, voltar. Voltar ao princípio de tudo. Falava daquela água que a tudo limpa, que acolhe, que abandona ribanceiras à frente, que purifica. Aquela água. Aquela.

Állex Leilla

Magazine dois corações agradece a preferência quando o telefone chama e ninguém atende passe azeite de dendê que cura qualquer secura ou então tome uma brahma meu amigo se o peito bate quebra e lá fora ninguém responde não se aperte use super bonder em caso de emergência a propaganda é a alma do negócio falido e só o coração sabe onde lhe aperta o ofício de ser só partido

Lúcia Santos 05

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entrevista ÁRCIA DENSER pertence àquele time seleto de escritores – no qual jogam Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Fausto Wolff e Paulo Francis cuja leitura é sempre um gratificante exercício de inteligência. Nas páginas de jornais, revistas ou internet, a gente teve e tem o privilégio de ler esses craques cotidianamente. Mais: deveríamos ter o direito de lê-los nos bancos escolares ou nas faculdades. Fica aqui a sugestão para as direções escolares e acadêmicas. Não por coincidência cito esses cinco. Todos eles, escritores e jornalistas, escrevem ou escreveram sem nunca terem feito nenhuma concessão a qualquer ideia que fosse alheia às suas próprias maneiras de pensar. Leia as crônicas semanais da Márcia no site Congresso em Foco (www.congressoemfoco.com.br) e diga-me se estou errado. Já em seu primeiro livro, “Tango fantasma” (1976), La Denser trouxe uma novidade marcante para a literatura brasileira: a transgressão de um modelo literário feminino. Ela foi a primeira escritora a apresentar suas protagonistas como sujeitos da ação, a personagem na primeira pessoa que assume para si a palavra, a voz feminina com discurso e postura ativa, criticando relações de poder e gênero, sem meias-palavras ou eufemismos. Sua personagem mais destacada e alter ego, Diana Marini, é também uma representação da cidade de São Paulo - a paranóica e voluptuosa capital, a dark e cidade-musa, palco de sacrifícios de sua mitologia literária. Diana é a personagem central da antologia “Diana caçadora”, um apanhado de contos que estão entre os melhores da literatura brasileira do século XX. Agora, neste novo romance, Caim, La Denser mudou o seu foco – da mitologia mundana, da metrópole paulista, para a mitologia da família, círculo familiar da quarta geração paulistana. A mitologia e a memória de um eu lírico, pessoal, deu lugar a um eu universal, por assim dizer, trazendo uma nova versão para a história de Caim, agora um Caim feminino, em outra perspectiva para além do arquétipo bíblico. Não só a qualidade de uma arte literária excepcional, o que transparece mais forte em Caim é a generosidade humanista da autora ao contar a história (não qualquer história) de uma família (não de qualquer família, mas da família de Márcia Denser e, também, da família universal humana). Caim vale como resgate de uma parte essencial da memória coletiva humana, ficção construída por uma inteligência literária ímpar e requintada. Sua leitura é satisfação e alto prazer estético garantidos. A seguir, confira um pouco da verve aguda de La Denser.

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LA DENSER foto RAQUEL BRUST

Não é nada saudável para qualquer autor identificar-se com seu personagem mítico, afinal arquétipos não pagam contas Raquel Brust

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foram Machado de Assis, Rubem Fonseca, cronistas brasileiros em geral e Rubem Braga em particular, William Faulkner, Cortázar, Borges, Vargas Llosa, Thomas Mann, Flaubert. Incorporei técnicas narrativas de todos eles, são meus “autores de sustentação”. Já em seu primeiro livro, você traz uma novidade marcante para a literatura brasileira: sua literatura transgride um arquétipo feminino. E você é apontada como a primeira mulher a apresentar suas protagonistas como sujeito da ação, a personagem na primeira pessoa que assume para si a palavra. De lá pra cá o que mudou com relação a essa sua temática? De lá para cá, nada mudou, aliás radicalizei mais ainda. Fiquei mais sábia e mais triste...

No conto Relatório Final, você faz uma reflexão que poderia ser entendida como um ideal estético. Diz: "E tudo isso quer dizer literatura: a requintada crueldade de poder observar atentamente as próprias vísceras expostas refletidas no espelho e imaginando não ser as nossas, como se este refletisse toda humanidade agora - a desumanidade estará dentro de nós, como o olho cego da câmera fotográfica, as lâminas frias da cortina que fecha e abre a objetiva, o vidro da lente, inopinadamente a sangrar, a sangrar, amigos, a sangrar, o fluxo maldito chamado literatura, a sangrar...” Bom, isso é quando se faz “metalinguagem”, não é? Ocorre quando o texto literário reflete sobre si mesmo, um fenômeno estético estudado na perspectiva de Bakhtin. O que eu poderia acrescentar a algo que a ficção formulou tão plenamente? V VI V

Márcia, fala um pouco sobre a sua formação, as primeiras leituras e as leituras decisivas. E o que você absorveu dessas leituras e que seriam depois decisivas para a escritora Márcia Denser? Na base de qualquer escritor representativo existe uma biblioteca, no sentido de acervo literário dinâmico e permanente ao seu alcance. Por outro lado, escritor lê tudo, qualquer coisa, de bula de remédio, rótulos de lata a boletins de ocorrência policial. Para aprender “estruturas narrativas”. Mas a ficha só cai na cabeça dele no sentido de que “será escritor” a partir da leitura dos autores nacionais, porque para ocorrer o insight é preciso ler na língua mãe (este dado é fundamental!, poucos escritores apontam isto) e sentir a pulsação/evolução das técnicas narrativas. A leitura em outra língua não forma escritores. Autores decisivos para mim


entrevista A sua personagem mais destacada e seu alter ego, Diana Marini, é também uma representação da cidade de São Paulo. Agora, em Caim, a personagem central é Júlia, que também é a cidade de São Paulo, mas de uma outra maneira, e que narra a saga de uma família diaspórica. Que diferenças há entre essas duas personagens/cidades? A diferença é que Júlia Hehl é apenas um personagem e bastante humana, ainda que objetivada em “primeira pessoa”, a importância dela é relativa em relação à trama e demais personagens, quer dizer, ao eixo central da história, que se respalda no mito mas se desenreda num contexto histórico. O problema todo com Diana Marini é que, mais do quê um personagem, ela constela um “arquétipo” feminino atemporal - a sacerdotiza solitária e promíscua, como Ártemis, Astarté, Atárgatis todas aquelas deusas biscates, cruzes, elas comiam criancinhas! (O que é rigorosamentee correto no caso de Atárgatis à qual se ofereciam sacrifícios humanos, sem contar seus nomes ásperos, eriçados de flechas). O arquétipo exerce um fascínio irresistível sobre o ego, aumentando o ponto cego do olho, e naturalmente não é nada saudável para qualquer autor identificar-se com seu personagem mítico, afinal arquétipos não pagam contas. Em entrevista, falando da importância da literatura no Brasil, você disse que essa importância é imensa no país do alheio e do alienado, e que a função da literatura seria acender a luz, conscientizar as pessoas da nossa realidade aqui e agora. Que importância tem a língua para o patrimônio individual e cultural de um país como o Brasil? É pela linguagem escrita, seja discursiva seja poética, seja de caráter pragmático (ensaio científico) ou estético, que se dá a produção do pensamento de um povo. Segundo os grandes teóricos, a linguagem cria o pensamento e viceversa, um processo de mão dupla, a leitura isoladamente não produz o pensamento, embora seu tempo seja o lento, isto é, de natureza semelhante à reflexão, ela é uma atividade passiva. Por outro lado a escrita é ativa, exige esforço e é deste trabalho que surge a descoberta, o dado novo, o elemento original. Em minha opinião, é possível que quem tenha o dom de escrever tenha como imanente o chamado “tempo lento da leitura”. Lembre-se que outra definição da literatura – enquanto “ars poética” – é dizer o máximo com a maior economia de meios. Os outros povos e outros países – e ninguém mais que os anglo-americanos – são ciosíssimos de seus escritores e pensadores. A hegemonia ou dominação se dá pela imposição de uma ideologia cujo veículo é a linguagem discursiva, escrita e falada na língua do dominador. “Caim” é um ajuste de contas com a sua posição na família, e um acerto de contas com a memória. É o resgate do princípio masculino assassinado por três gerações e cuja memória fora apagada pela família. Você diz que esse acerto teria que ser feito pela escritora, alguém com uma missão inadiável, irrecusável a ser cumprida como pré-condição de poder liberta-se para ir cuidar da própria vida. Como é que foi escrever esse livro? Precisamente. Esse ajuste de contas com nosso inconsciente pessoal é o liberar-se de repressões, recalques, neuroses, preconceitos infantis e/ou herdados da tribo familiar – são elementos do coletivo que nada tem de pessoal ou autêntico – é a condição “sine qua nom” para ingresso no mundo adulto, o universo do homem no campo da ação histórica apto a interferir na realidade e produzir a própria história. V VI

Há hoje em dia um neoconservadorismo nos costumes, uma ausência de contestação e crítica, sem falar no politicamente correto, e um comportamento feminino meio machista e ao mesmo tempo passivo, pois se busca muito pouca coisa fora da perspectiva do mercado neoliberal, isso vale para o homem também. Que avanços e atrasos mais significativos você apontaria na ideia de feminismo surgida na segunda metade do século passado? Tenho uma crônica com o título “Musas de Joelhos” no site www.congressoemfoco.com.br onde abordo esse assunto. Citando: “Atualmente, se existe uma crise de representação da mulher no Ocidente, esta é política, crise que envolve o processo de globalização intensificado a partir dos anos 90, quando a mulher ocidental retrocede ao projetar novamente a imagem de mulher-objeto, voltando a agir como objeto do homem e não mais como sujeito da ação, principalmente no cinema comercial norteamericano onde, emblematicamente, ela passa a maior parte do tempo de joelhos a fazer felação no parceiro, embora, é claro, não fume. O neoliberalismo combinado Thatcher-Reagan dos anos 80 constituiu-se para diluir, entre outras coisas, as conquistas dos movimentos feministas de 60/70, desagregadoras para o capitalismo, e a este neoliberalismo se une a ação da igreja católica na figura do papa polonês e do atual, alemão, ambos conservadores, impondo as políticas da “nova carismática”, práticas religiosas idiotizantes que substituem a “teologia da libertação” da década anterior, aliás já convenientemente massacrada em alguns países da América Central pelas forças norteamericanas. Um puritanismo farisaico se impõe ao lado da hipocrisia do politicamente correto, incentivando a natalidade, condenando e proibindo o aborto, provocando uma nova explosão populacional que abrange não só as classes C e D, como uma nova B, constituída por uma média burguesia emergente da informalidade - inculta, massificada, despolitizada - explosão demográfica que não interessa a ninguém, mas que aos latinoamericanos, e particularmente a nós, brasileiros, apenas prejudica e cujas consequências, apenas vislumbradas, já são e serão gravíssimas”. Você estudou em colégio de freiras. Há referências a mitologia bíblica em seus contos, já no primeiro livro, “Tango fantasma”, há um poema para Madalena, e referências a Caim, e agora esse novo livro é escrito a partir da mitologia de Caim. Há um deus na sua mitologia e/ou fé pessoal, há um laço sagrado e firme da Márcia Denser com Deus? Absolutamente não! Não chego a ser cética porque costumo pescar nas águas do Inconsciente Coletivo (país dos mitos e arquétipos!), tanto quanto seguir minhas intuições, são estas zonas do Desconhecido que, para mim, ocupam o lugar da divindade.

O seu nome, com muita frequência, é associado à literatura erótica. Talvez porque você tenha organizado antologias com essa temática, ou porque seu nome tenha sido “trabalhado editorialmente” nessa perspectiva de literatura erótica. Pode incomodá-la o fato de haver uma leitura incompleta ou equivocada de sua literatura?

Este é outro ajuste de contas: a do autor com o próprio gênero. Em função duma pesquisa de linguagem, como produto duma elaboração da linguagem como fenômeno estético, duma consciência plena da língua e da linguagem como instrumento de trabalho, minha personagem não é falada pela língua, não vincula o discurso do outro, ao contrário, desloca o discurso da Tradição para colocar o seu próprio, conquistando o direito à própria voz, à própria fala. E quem detém a palavra, detém o poder. Mas a conquista de uma voz própria, de uma voz pública, coletiva, universal, polissêmica, plurivalente, que se manifesta ao se atingir um estilo único, meta de todo escritor, seja mulher ou homem, é algo que precisa passar antes pelo exercício, pelo domínio, pela superação, pela incorporação de um discurso erótico. O que significa a colocação em primeiro plano da própria subjetividade. Mas nessa questão os escritores-homens também têm contas a ajustar. Não se trata de ter de escrever uma literatura erótica como quem é obrigado a fazer o alistamento militar, se vacinar ou depilar as axilas, se não se tem queda para isso, tudo bem, vide Borges, vide Clarice. A coisa é quando tem e não consegue, quando chega naquele pedaço e não sai nada, ou sai cabeludo ou eufemístico. Tome-se como exemplo a literatura de Caio F. Abreu que, apesar da alta qualidade estética, é refém de um discurso homossexual, tornando-se objeto duma “literatura gay”, porque tematicamente o autor não superou o próprio gênero, ficando aquém dum rendimento mais amplo, universal. A minha literatura mesmo com o viés erótico – ou precisamente por seu viés erótico – enseja essa abertura para a essência da condição humana contemporânea. Quase nenhum escritor fala o que você falou em entrevista à revista Coyote: “a literatura é um movimento coletivo”. Você falava isso a propósito do mercado editorial do começo dos anos 90 e da aposta que escritores da sua geração estavam fazendo ao lançar seus livros naquele momento. E hoje como está o mercado editorial? Puxa, mas o conceito de literatura como “processo ou sistema” coletivo de obras, autores e leitores que se dá no tempo no âmbito de um país, é lição aprendida com Antonio Cândido na “Formação da Literatura Brasileira”. Uma grande literatura não é feita de gênios – o gênio dá até no deserto de Gobi – é feita por “muitos escritores médios”, segundo Mário de Andrade. Essa geração de “muitos autores médios” surgiu no Brasil a partir dos anos 70 por inúmeras razões. Gerações de escritores não se sucedem ano a ano, é preciso exatamente o espaço de uma geração – trinta anos – entre uma e outra. É um saco ficar repetindo o óbvio, contudo não há mais gavetas dos já consagrados, e não há gavetas do porvir, vivemos uma espécie de entressafra. Mas não, neguinho insiste, na rabeira do momento que passou. Então desabam concursos e prêmios do caralho. Lemos milhares de páginas, calhamaços, MONTANHAS de originais nada originais, de deixar qualquer um besta. Repito: Não há produção genial engavetada, nem gênios incompreendidos a serem descobertos. E se alguém te disser o contrário é porque está tentando te vender alguma coisa. Ou não?

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Ajuste de contas com nosso inconsciente pessoal é o libertar-se de repressões, é a condição sine qua nom para ingresso no mundo adulto 07

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conto ilustração WILSON NEVES

O que se desloca Para Sérgio Sant'Anna e Nelson Provazi

or mais que se mova, a irrealidade é estática. Isso pode acontecer dentro do ônibus, no avança-para dum tráfego intenso na boca da noite. Dá a impressão de ser um estado aberto do mundo, mas é bolha que sonha que é uma bolha que sonha. Inegavelmente sangra, se descuidada fede, qual bolha não? O ar-condicionado o irrita pelo contraste com o calor litorâneo da avenida, ele salta na muvuca do ponto com a bagagem que inconfortável ocupa-lhe as duas mãos, anda em direção à passarela e, esbarrando no contra-fluxo, começa a atravessá-la. Ele pensa enquanto passa nas caras que o ligeiro foco da passagem fixa, e tem no mesmo instante nojo, raiva, dó, fé, fascínio e autocomiseração. Quantas ficções que se cruzam num desdém só intervalado pelos olhares de cobiça nas cadeiras, que nem deu pra ver se eram assim tão boas. Nalguns espaços da passarela mendigos cuiam seus níqueis, pastores e ambulantes apregoam, e o panfletarismo do capital. Quantas ficções suspensas sobre a dupla rodovia. O vento largo no inferno sonoro, o peso da correnteza na formigância, estremece a estrutura da passarela, e esse, um dos que vão ao contra-fluxo, de tênis e bermuda, pressente, mas não mira, evitando um fatal desequilíbrio, a maré de autos sob.

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No exercício da travessia se sente vivo, não que fosse um sedentário ou que sua vida tenha sido um aburguesamento enfadonho. Muito menos lhe roía a nóia dos desbravadores, que são, de resto, homens que, em vez de escalarem para dentro, o fazem para fora. Tampouco a adrenalina calculada dos perigos de fim-de-semana. Seu cismar era músculo e suor sinceramente laborados, que naquele momento buscava na cara dos passantes não bússola ou âncora, mas a irmandade pela insignificância. Como em todo sistema que sonha a unidade o seu era falho, e não só por inconsistência, como por desconsolo. Mas ultimamente o intuito era só esse – atravessar. Não há como preencher mais nada, sua bagagem, como vimos, lhe ocupa as mãos. Das hipóteses comparativas, graceja, sua idade vai a meio, que corresponde à metade da passarela. Tem flashes – e se desabássemos? Os matutinos, talvez até estrangeiros, noticiassem. Apreensão imaginada. Ele, chamemo-lo Terçol, sempre inflamado, é um centro nervoso que se desloca porque isso está em sua natureza. Indo, ele procura limpar-se da vaziez que gera nulidade, a pseudopressa desrumada, o desfuturo, conforto que gera ânsia que gera tédio que gera; o cansaço, não físico, de se saber cansaço. Sua travessia é um s.o.s?

Bem, pensa ele profundamente, uma solar manhã de domingo desperta algumas linhas da infância que valem o universo; o translúcido desse minuto que respira em tudo. São nesgas que seu espírito e suas pernas trabalham enquanto atravessa. Com toda frieza, falha de sua lógica, ele sabe que é inegável: aquilo que apenas suspeitamos, mas é imprescindível para estarmos aqui. Todo negativismo bitolado em decadência é o que ele não quer mais, nem a náusea conceitual e interesseira, nem o enfado do seu século, nem a gula pelo número, nem as filosofias que antecipam, planejam e executam o terror. Já próximo ao desembocar nos camelôs, ele espinha-se num calafrio, pois pensa – a guerra é o que somos! O gelar-se instantâneo quase o desequilibra e ele para, respira, descansa as bagagens no chão, pergunta as horas para um passante, certifica-se de que está atrasado, e retoma a marcha. Mistérios que o espírito incerto de Terçol rascunha ao cruzar os táxis e entrar na rodoviária lotada, rumar até o embarque e entregar a bagagem para quem o espera.

João Filho

ANUN C NO S IE ITE

CONT 84-91 ATOS 16.61 30

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um autor Divulgação/7Letras

Os inumeráveis

fotomontagem de CRISTINA CARRICONDE

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poéticos Rodrigo de Souza Leão lança “Todos os cachorros são azuis” O poeta Rodrigo de Souza Leão morto em 02 de julho passado, no RJ, lançou sua primeira novela, “Todos os cachorros são azuis” (Ed. 7 letras, 2008). Abaixo você pode conhecer um pouco da visão de mundo e de arte deste que é um dos grandes poetas contemporâneos. A entrevista completa e uma homenagem ao Rodrigo podem ser lidas no www.jornalvaia.com.br

Começo Eu sou esquizofrênico. Descobri isso — apesar de já ter sintomas desde os 15 anos — somente aos 23. Consegui me formar com 22, em Jornalismo. Queria ser locutor de rádio. Nunca tinha escrito nada, nem pensava em literatura. Meu negócio era ouvir rádio e ser DJ. Meu irmão comprou uma bateria e começaram os ensaios aqui em casa. Comecei a querer cantar. De locutor, passei a sonhar com o canto. Comecei a cantar na banda Pátria Armada. Toquei no Circo Voador, na Metrópolis, no Let it Be, no Made in Brazil, locais onde a Legião, Paralamas e Capital tocavam. Comecei a escrever letras de música. Foi meu primeiro contato com a escrita. Aos 18 anos. Depois passei a escrever poemas. O livro Todos os Cachorros são Azuis foi parcialmente escrito (digamos que foi iniciado) em 2001. Depois de minha segunda internação. O que fiz foi mixar minhas duas internações. A primeira foi muito traumática. Fiquei num local chamado de Carandiru pelos internos mais lúcidos. Fui internado com camisa de força. Fiquei num cubículo. Uma jaula. A segunda foi mais light. Apesar de ter passado mais tempo internado nessa segunda vez. Ao mixar as duas experiências eu fiz uma catarse muito forte. Algo que busquei foi uma linguagem próxima a da loucura. Acho a poesia (de maneira geral) uma arte muito louca. Cheia de linguagem conotativa. Metáfora. Ao aproximar da poesia me acheguei também à fragmentação e a descontinuidade do trabalho contemporâneo com a linguagem. Também misturei pessoas e criei fatos. Eu não sofro alucinações. Tenho sensações persecutórias. Sou portador de uma esquizofrenia específica, chamada atualmente de distúrbio delirante. Nunca ouvi vozes. Nem tive delírios. Achava e ainda acho que sou perseguido por agentes. Meu irmão tem bipolaridade. Viu ETs na infância. É muito louco também. O nome dele é Bruno. Misturei coisas que ele fazia com as minhas coisas. A loucura ganhou mais corpo. Pude construir um personagem mais forte. Que tinha alucinações e havia visto ETs e tinha um cachorro de pelúcia e ainda havia engolido um grilo. Muito é ficção. Mas muito foi real para mim. Não vou dizer o que é meu nem o que é dele para não tirar a magia da coisa. Cartase e labor Antes de Todos os Cachorros, escrevi vários livros sem uma linguagem minha e ao mesmo V VI

tempo interessante. Tentava a publicação e não conseguia. Essa voz diferente só pintou depois de eu ler trechos de livros e livros inteiros de escritores contemporâneos. Desde o início, tentava e não conseguia uma linguagem própria. Depois de insistir muito e depois de uns quatro livros escritos numa linguagem linear foi que pintou essa "loucura toda". Foi preciso muito trabalho com a linguagem. Era como se tivesse possuído de um deus diferente. Não de um demônio que me atormentava, mas sim de um novo deus. Um deus pagão, muito maior que eu. Acredito em inspiração. Não fui eu quem escreveu o livro. Acredito que um Xamã me ditou. Alguma força superior me impulsionou a escrever. Foi diferente de escrever livros lineares. Fui sincero e acho que tive coragem de me expor. Expor meu pior e meu melhor. Tive uma ajuda preciosa de Leonardo Gandolfi e Franklin Alves Dassie, que são professores. Eles gostaram daquilo. Não queria escrever um livro para que tivessem pena de mim. Sou muito nietzscheano para querer o sentimento de piedade. Fiz de minha vontade de potência mostrar algo com certo humor. Certo distanciamento. Certa visão crítica. O que iria acrescentar em mim mostrarme como um coitado? Quis me afirmar pela linguagem. A linguagem que é o lance. Também não quis fazer uma apologia da loucura. Um elogio à loucura. Loucura é uma coisa muito desagradável, que só me faz mal. Mas tento conviver. Privo-me de muita coisa para me manter estabilizado. Acho que a comunicação que o livro está conseguindo deve-se a esse vetor linguagem x humor. Literatura e o caminho da liberdade . A liberdade só é possível na arte. Estamos sempre esbarrando em alguém para ser livre. O Todog é a libertação de linguagem. Como não tenho a mínima noção de línguas, fiz uma mistura de "coisas" que eu sabia sobre algumas línguas, sem ser um mestre no assunto. Não sou mestre nem na loucura. Aliás, nem sei de onde surgiu o termo Todog. É algo mágico, estranho e bizarro. A loucura é muito bizarra. A arte que eu gosto é bizarra. Estranha. O inumano foi a conjunção necessária para que alinhavasse o texto e eu não deixasse todas as perguntas em aberto. O último capítulo tem certo tom de "historinha", mas é algo que expõe uma nova visão de religiosidade. De inumanidade. O Todog talvez seja uma das poucas coisas do livro que foram totalmente inventadas. Todo o louco, ou a maioria dos loucos, tem uma religiosidade muito

forte. Pensam que são Jesus Cristo. Sabia que com o surgimento de uma nova religião, estava no caminho certo para retratar os dramas que vivem as pessoas com esses problemas. Visão de religiosidade A minha religião é a arte. Era descrente e não acreditava em nada superior. Eu abominava a metafísica. Era niilista e agnóstico. Ainda sou um pouco descrente. Acredito no ser humano e suas potencialidades. Jesus Cristo nunca disse que era Deus. Falava que era filho do "Homem". Acredito numa energia: em algo que nos faz viver. Numa força estranha no ar. Sou meio existencialista. Acho que todos somos deuses e podemos criar um mundo. Um mundo de dentro. Chamem essa força de Deus. Chamem de Alá. De Geová. De Jesus. De Ogum. Ofício de escritor O ofício de escritor não pode ser encarado como carreira. Eu pelo menos não vejo assim. É uma carreira se você quiser fazer concessões e eu não quero. Pretendo escrever o que quero escrever e da forma que quero. Não me preocupo em vender. Não sou Paulo Coelho. Nunca quis ser escritor profissional e fazer literatura descartável, se é que isso é Literatura. O que aconteceu com meu livro foi algo extraordinário. Consegui uma bolsa para poder escrever e aumentar o livro. Dar outro acabamento. Colocá-lo como queria. Claro que dinheiro importa. Mas não fui pelo dinheiro. Fui pela possibilidade de publicar e dei sorte de pegar uma banca que gostou dos Cachorros Azuis. Não acredito que seja possível — sem fazer concessões muito grandes — conseguir ser um escritor profissional. O ideal é ter uma profissão e ser escritor, para ter liberdade. Sou contra o curso de jornalismo apesar de ter me formado em 1988. Faz vinte anos. Viver de literatura e escrever por obrigação não está nos meus planos. A batalha no Brasil é grande. Temos mais escritores que leitores. Os espaços na mídia são pequenos. Só para pensar: existem 4 programas (se tanto) na TV a cabo destinados à literatura. Ora, deveria existir um canal 24 horas por dia com literatura. Gostaria que meus livros chegassem como livros de arte. Que fossem degustados e não devorados. Que enriquecessem em alguma coisa a vida das pessoas. Não gostaria de vender ilusões falsas e sim alucinações verdadeiras.

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conto

Simulacros ilustração VICTOR HUGO CECATTO

“The simulacrum is never that which conceals the truth. It is the truth which conceals that there is none. The simulacrum is true.” Eclesiastes

le a olhava na enorme foto na parede enquanto a comia de quatro. Sentia arrepios no corpo todo pelo fato de saber que aquela mulher tão provocante e absurdamente sensual da foto era a mesma dona do corpo que ele possuía com com tanta voracidade. A perfeição da imagem estática, do simulacro em contraste com a visceralidade do corpo com seus cheiros, texturas e movimentos - como numa espécie embriagadora de dualidade platônica. A realidade e fantasia se encontrando num arrebatamento que transcendia os padrões normais das sensações num ato sexual. Ele oscilava entre a foto e o corpo - e quando focava no corpo sentia uma espécie de angústia por sabêlo, em espírito, impenetrável, por mais que o penetrasse repetidamente. A impossibilidade real da posse em contraste com o desejo da fusão.

E

Ela, hiperativa que era, levantou libertando-se daquela situação tranqüila pós-sexo e foi para a sala, logo o chamando para tomar a garrafa de vinho que ela abria. Ele chegou e ela estava nua, jogada no sofá. O gato caminhava pela beira da janela escancarada do décimo andar – o que causaria arrepios em qualquer um, mas não nela, tão alheia aos abismos da vida. Nem ela nem seu gato tinham medo de cair. Ele, que tinha, correu para fechar a janela e só depois sentou no sofá para tomar vinho. “Será que as pessoas desses prédios conseguem nos ver aqui, sem roupa?”, ele perguntou. “Espero que sim”, disse ela rindo de um jeito tão lindo e livre que fez ele querer congelar aquela cena. A luz começou a falhar até apagar totalmente. Era a terceira vez no mês que faltava luz, por isso ela nem hesitou: pegou fósforo na gaveta ao lado do sofá e acendeu as velas de enfeite na mesinha. Silêncio. Súbito e longo silêncio. No escuro, ele foi andando pela sala à procura do violão. Vinho, escuridão e música: não seria tão ruim assim já que ambos estavam de acordo que dormir não era uma possibilidade. Sob a luz das velas ela conseguia enxergar os olhos úmidos num quase choro, um quase transbordar. Quase, sempre quase. Ela observava aquele olhar tão desprotegido por trás de tanta segurança e pensava no quanto queria entrar naquele mundinho tão complexo e turvo. Havia dor ali, sim, mas havia também amor. Dor e amor - como de praxe, sempre juntos. Enquanto ele tocava uma música que havia composto que sempre provocava nela uma incontrolável vontade de chorar (e ela chorava, sem quases), ela pensava no quanto o amava, no quanto o queria sem meias palavras, meios pensamentos, meios amores. Logo ela, tão volúvel, tão insustentável-leveza-do-ser, estava ali, rendida. Não sabia se sentia vergonha ou deleite por essa rendição. 10

I could drink a case of you and still be on my feet. Não era essa a música que ele tocava, mas era a letra que vinha em sua cabeça, roubada de um momento passado no qual tais palavras não faziam o mínimo sentido. Mas ali, naquela escuridão tão plena, tudo fazia sentido: he could drink a case of her and still be on his feet. Tudo o que ele queria era conseguir expressar, botar para fora tudo aquilo trancado dentro dele. O som do violão ecoava pela sala em contraste com o silêncio da rua e ele reparou que sempre era assim quando faltava luz: parecia que também faltava som. Palavras também? Ou seria apenas impressão dele naquele momento, sentindo-se como numa cena pausada de um filme? Porque havia a inevitável imobilidade. Sem luz não se pode ver uma televisão, ler um livro, fazer uma comida, ver os emails, não se pode fazer nada por minutos ou talvez por horas. Sem luz não há dispersão, subterfúgios. Então as pessoas param e são obrigadas a conviver com elas mesmas. Ele, com sua vida implícita, ela com sua vida explícita, não tinham para onde fugir. “Sabe o que eu acho?”, ela falou, servindo-se de mais vinho. Ele olhou, fazendo cara de “quê?”. “Que a gente tinha que parar com esses eufemismos, tipo sou louca por ti, gosto tanto de ti ...entende?” Ele parou de tocar, suspirou, também serviu-se de mais vinho e embora quisesse dizer muito mais, só conseguiu dizer “entendo”, sem corresponder à óbvia vontade dela de uma maior expressão. O que fez com que ela questionasse em pensamento por que o amor era tão fácil para alguns e tão complicado para outros. Estavam juntos há mais de um mês e só o que trocavam eram covardes sinônimos para um “eu te amo”. Passaram-se duas horas na imobilidade da falta de luz, entre o violão, algumas palavras faladas ou caladas e o silêncio. A luz do dia amanhecendo começava a entrar pela janela semi-aberta, os barulhos começavam a surgir. Era uma terça-feira. Nunca tinha visto o dia amanhecer numa terça-feira, ela disse. Vamos descer então?, ele sugeriu, descer para caminhar, ver como é o dia amanhecendo numa terça. Pegaram mais uma garrafa de vinho e desceram.

O dia amanhecia rosa, mais parecia um entardecer. Olhou para a rua a sua frente. Uma grande avenida para atravessar, daquelas que se atravessa em duas etapas. Não tinham rumo definido, apenas sentiam que tinham que seguir. Pararam no meio-fio, esperando o sinal fechar e ela olhou fundo nos olhos dele, como se quisesse arrancar algo ali de dentro: “Vamos combinar uma coisa? Quando a gente chegar na metade da rua, ali no canteiro, você me pede em namoro.” Ele riu de leve com o comentário lúdico, quase infantil. E ela completou: “E quando chegar do outro lado da rua, você pode acabar comigo se quiser.” Carros passavam correndo, barulhentos e alucinados. A cidade acordava repleta de possibilidades. A vida iminente. A morte iminente. Eles começaram a andar em silêncio, a respiração sentida passo a passo. Inale. Exale. A sensação estranha de não-pertencimento ao que havia ao redor, como num mundo paralelo - uma vida interna que de tão sentida vira externa. Ao chegar no canteiro, ele pegou a mão dela e disse: “Quer namorar comigo?”. Disse isso com seriedade, com densidade até. “Sim”, ela respondeu com um quase sorriso. Eles cruzaram até o outro lado de mãos dadas. O dia cada vez mais claro, a rua, em poucos segundos, parecendo mais cheia e mais distante. Um lixeiro varria o chão em frente, uma velha passava com um cachorro: cenas da realidade que simplesmente destoavam do isolamento do amor que ali acontecia e, por isso, nem chegavam a ser percebidas por eles. “Pronto. Se quiser pode acabar comigo agora”, disse ela, ao pisar na calçada. E ao dizer isso, viu nos olhos sérios dele o quase choro de novo - que naquele momento, se completava pela primeira vez. A lágrima em potência se fazendo em ato. O amor em potência se fazendo em ato, enfim. E entre lágrimas plenas e sentimentos plenos, ele olhou para ela, talvez pela primeira vez sem angústia ou medo – ela, que ali não era imagem estática ou alguma espécie de simulacro – e falou, enquanto caminhavam rumo a algum lugar: “Nunca. Nunca vou acabar”.

Carol Teixeira V VI V

Talvez ele não soubesse porquê, mas olhá-la na foto parecia, de certa forma, menos ameaçador. Ela era a única mulher sobre a qual ele continuava fantasiando mesmo depois de conquistar. Pensou em dizer isso para ela ali, no ato, mas não disse. Ela por sua vez quis dizer (e disse) que ele era o único homem que a fazia gozar naquela posição, mas no meio da frase foi interrompida pelo próprio gozo levando ele ao mesmo ápice. Entre palavras ditas e não ditas, ficaram ali, grudados, sentindo circular uma energia que de tão intensa parecia tangível. Ele a beijou delicada e repetidamente no pescoço, abraçou forte aquele corpo que, de tão magro, dava medo de quebrar e sentiu uma vontade (que conteve) de chorar.


tradução La esquina de Rivadavia y Albariño (terrenos en construcción) Fue comisaría, fue sede para el club del barrio, fue baldío después, en los ochenta, telón de fondo para unas buenas comparsas del carnaval, eso hasta el '91, luego se convirtió en concesionaria de autos usados, una más en este tramo de la avenida donde también se graba cristales, chasis y motor pero su ubicación, frente a la plaza, la hacía más digna de otro rubro y qué otro rubro para un catastro de paso en busca de la autopista que la gastronomía: fue parrilla fina hacia el '93.

Foi delegacia, foi sede do clube do bairro, foi terreno baldio depois, nos 80, pano de fundo para umas boas comparsas de carnaval, isto até 91, então se converteu em concessionária de automóveis usados, uma a mais nesta quadra da avenida onde também se grava vidro, chassis e motor sua localização, porém, de frente à praça, tornava-a mais digna de outro chamariz e que outro chamariz melhor para um desvio passageiro pra rodovia do que a gastronomia: foi churrascaria fina até 93.

Es única. Puedo decir la esquina de Rivadavia y Albariño sin que nadie se confunda porque del otro lado las calles cambian de nombres y del mismo lado, enfrente, está la plaza.

É única. Posso dizer a esquina da Rivadavia com Albariño sem que ninguém se confunda porque do outro lado as ruas mudam de nomes e do mesmo lado, em frente, está a praça.

Hacia el '98 el bon vivant que con la venia de la época tramó un restaurante tan fino habrá notado que los hombres, desde sus ventanillas, miraban la estética de reojo y seguían de largo por lo que la esquina pasó a ser un tenedor libre. Después, en el 2000, y por sorpresa fue fachada disco para un puterío. Se dijo –y se sigue diciendo– que la compró Maradona. En el 2003 el puterío incorporó mesas de pool y se alentó el ingreso a los chicos del barrio.

Até 98, o bon vivant que com a vênia da época tramou um restaurante tão fino terá notado que os homens, a partir de suas janelas, olhavam a estética de golpe de vista e seguiam adiante pois a esquina passou a ser um self service. Depois, em 2000, e de surpresa foi fachada disco para um puteiro. Se dizia – e continua se dizendo – que Maradona a comprou. Em 2003 o prostíbulo incorporou mesas de sinuca e deu alento à entrada da garotada do bairro.

Esos chicos son del club que alguna vez tuvo su sede acá. Si esto mejora en serio es de esperar que el mismo club ponga una pileta de natación, un gimnasio, hasta una biblioteca para darles el gusto a los viejos que aún están vivos y que nos enseñaron a drogarnos. Ahora, si esto sigue mejorando así una de dos: o le hunden el suelo diez metros para hacer otra torre de edificios o termina pariendo con dolor una pizzería con el nombre de un río de España.

Esses garotos pertencem ao clube que certa vez teve sua sede aqui. Se isto for levado a sério é de se esperar que esse mesmo clube ponha umas raias de natação, um ginásio, até uma biblioteca para dar um gostinho aos velhos que ainda vivem e que nos ensinaram a nos drogar. Agora, se isto continuar melhorando assim das duas uma: ou lhe furam o chão dez metros para fazer outra torre de edifícios ou termina parindo dolorosamente

foto: Divulgação

uma pizzaria com o nome de algum rio de Espanha.

Cristian de Napoli Nasceu em Buenos Aires, em 1972. Publicou em 1999 sua primeira coletânea de poemas, chamada Limite Bailable, seguida de El Ringue, lançado em sua editora Black & Vermelho, e Los Animales. Viveu algum tempo em Helsinki e traduziu o poeta finlandês Tomi Kontio (n. 1966). É um dos maiores divulgadores da poesia hispano-americana contemporânea, organizando na capital argentina um dos melhores festivais de poesia do continente, o Salida al Mar, no qual já participaram os poetas argentinos Juana Bignozzi, Irene Gruss, Daniel García Helder, Hugo Padeletti, Leónidas Lamborghini, Silvana Franzetti, Tamara Kamenszain e Lucía Bianco, ou hispano-americanos vizinhos como José Ángel Cuevas, Roberto Echavarren, Roxana Crisólogo e Sergio Parra. Dentre os brasileiros, foram destaques do festival Carlito Azevedo e Chacal, além de jovens como Marília Garcia e Laura Erber. Mantém intenso intercâmbio com a literatura brasileira contemporânea e trabalha muito na tradução de poetas brasileiros. Traduziu e editou, por exemplo, a antologia de poesia contemporânea Cuatro Poetas Recientes del Brasil (com Joca Reiners Terron, Angélica Freitas, Ricardo Domeneck e Elisa Andrade Buzzo) e a antologia de prosa Terriblemente Felices – Nueva Narrativa Brasileña, com autores como Sérgio Sant´Anna, Marcelino Freire, Jorge Mautner, Marçal Aquino, Milton Hatoum, Nelson de Oliveira e João Gilberto Noll, entre outros. O poema desta página foi extraído do livro Los Animales ( Bajo la Luna, 2007) e traduzido por JOCA REINERS TERRON.

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Jornal Vaia * edição número 27 * julho de 2009 Editor Fernando Ramos

Diagramação Marco Marques Capa Wilson Neves

Redação: Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - centro - 90010-312 - Porto Alegre - RS

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Aldir Blanc - Escritor e compositor. Autor de “Rua dos artistas e transversais (ed. Agir, 2006), “Guimbas” (ed. Desiderata, 2008), com ilustrações de Fábio Monstro Állex Leilla - Nasceu em Bom Jesus da Lapa-BA, é professora e escritora. Publicou “Urbanos” (contos, Prêmio Brasken de 1997), “Obscuros” (contos, Ed. Oiti, 1999) “Henrique” (romance, Ed. Domínio Públicco, 2001) e “O sol que a chuva apagou” (novela, Ed. P55, 2009). Participou da antologia “25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira” (contos, editora Record, 2004). É graduada em Letras pela UFBA, onde também fez Mestrado em Letras e Linguística, e doutora em Estudos Literários pela UFMG. Mora em Salvador. Blog: http://www.allexleilla.blogspot.com Alonso Alvarez - nasceu em São Paulo, capital. É editor e livreiro. Em 1992 começou a escrever a primeira história de uma série de aventuras com a turma desse livro de estréia, “O Encanto da Lua Nova”, só editado em 2005. Autor do livro de hai kais “Os Olhos do Lago”. www.oencantodaluanova.com.br André Dahmer - Artista gráfico. Autor de “O livro negro de André Dahmer” (ed. Desiderata, 2007) e “Malvados” (ed. Desiderata, 2008). www.malvados.com.br Andréia Laimer - Poeta, 28 anos, formada em publicidade pela PUCRS, estudante de Letras pela UFRGS. Integrou a antologia poemas no ônibus 2003. Integra a antologia do concurso “Histórias de Trabalho” em poesia, 2008. recantodasletras.uol.com.br/autores/andreialaimer Bier - Cartunista e escritor. Criador do personagem de tiras de humor Alemão Blau. Publicou em 2009 o seu primeiro livro solo em poesia: "Serenata para uma janela fechada", editado pela Nova Roma, de Porto Alegre Carol Teixeira - Escritora, formada em Filosofia, autora dos livros "De Abismos e Vertigens" (ed. Sulina) e "Verdades & Mentiras" (L&PM). Já participou de diversas coletâneas, escreveu peças de teatro, apresentou programas nas rádios Joven Pan e Atlântida, e hoje é editora da Revista do Beco. www.carolteixeira.com.br Claudio Daniel - Poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, os livros de poesia “Sutra” (1992), “Yumê” (1999), “A sombra do leopardo” (2001) e “Figuras Metálicas” (2005). Ministra oficinas literárias no Ateliê do Centro, em SP, e via Skype, dentro do projeto do Laboratório de Criação Poética (labcripoe.blogspot.com). O programa, dividido em vários módulos, inclui exposições teóricas sobre Mallarmé, Valéry, Ezra Pound, Haroldo de Campos, entre outros poetas, e exercícios práticos de criação. Informações sobre o curso pelo e-mail claudio.dan@gmail.com. Blog: cantarapeledelontra.zip.net Cristian de Napoli - Nasceu em Buenos Aires, em 1972. Publicou em 1999 sua primeira coletânea de poemas, “Limite Bailable”, seguida de “El Ringue”, lançado em sua editora Black & Vermelho, e “Los Animales” (2008), após ganhar o prêmio do Festival Internacional de Poesía de Medellín Diego Petrarca - Nasceu em Porto Alegre. É formado em Letras. Mestre em Teoria Literária - Escrita Criativa - pela PUCRS. Publicou três livros independentes: “Nova Música Nossa” (contos-crônicas, 1998), “Mesmo” (poesia, 2003), “Via Cinemascope” (poesia, 2004) e uma edição-xerox, “Banda” (poesia, 2002). Mantém o blog www.ladodentro.blogspot.com Guilherme Moojen - Designer gráfico e artista plástico. Blog:6uilherme.blogspot.com João Filho - Nasceu em Bom Jesus da Lapa-BA, mora em Salvador. Poeta e ficcionista, autor de “Encarniçado ou anotações de um comedor de cânhamo” (ed. Baleia, 2004). Blog: www.verbeat.org/blogs/hiperghetto Joca Reiners Terron - Poeta e ficcionista. Autor de, entre outros, “Hotel Hell” (ed. Livros do Mal, 2003), “Curva de rio sujo (ed. Planeta, 2003)” e “Sonho interrompido por guilhotina” (ed. Casa da Palavra, 2006). Blog: jocareinersterron.wordpress.com Jorge Bucksdricker - Natural de Porto Alegre, graduou-se em filosofia pela UFRGS, é mestre em Epistemologia e Filosofia da ciência pela UFSC. Em 2005 publicou a coletânea de poemas “Solstícios”. É editor da revista virtual “Ferramentas Errantes” e trabalha na concepção de ferramentas pedagógicas para a abordagem da arte contemporânea. Prepara, para o final deste ano, a publicação do livro de poesia “Margens Miradas” Lúcia Santos - Nasceu em Arari-MA e mora em São Luis-MA. Publicou três livros de poesia: “Quase Azul Quanto Blue” (1992), “Batom Vermelho” (1997) e “Uma Gueixa pra Bashô” (2007) Olavo Amaral - Nasceu e mora em Porto Alegre. Autor do volume de contos “Estática” (IEL, 2005), além de ter participado da antologia “Contos de Oficina 34” e colaborado com alguns sites e jornais literários. Também atua como roteirista de cinema, colaborando com a produtora Clube Silêncio desde sua fundação, e atualmente finaliza seu primeiro curta-metragem como diretor. Nas horas vagas, é médico e pesquisador em neurociências. Grita para o vazio em taquilalia.blogspot.com Raquel Brust - Fotógrafa, diretora de fotografia, cinegrafista. Gaúcha, mora em São Paulo. Site: www.raquelbrust.com.br Rodrigo de Souza Leão - Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Publicou dez e-books de poesia, entre eles “Impressões Sob Pressão Alta”, “25 Tábuas”, todos pela Virtual Books. Tem poemas publicados nas revistas Coyote, Oroboro, Poesia Sempre, El Pez Náufrago (Mexico), Et Cetera. Criou o site Caos (www.geocities.com/seumario). Coeditou, junto com Cláudio Daniel, o site Zunái, Revista de Poesia e Debates (www.revistazunai.com.br). Tem dois livros em papel: "Há Flores na Pele" (Ed. Trema, 2001) e “Branco & outros”. Publicou a novela “Todos os cachorros são azuis” (ed. 7 letras), em 2008. Blog: lowcura.blogspot.com Rodrigo Garcia Lopes - Nasceu em Londrina-PR, em 1965. Poeta, tradutor, formado em Jornalismo, trabalhou em jornais e veículos literários em São Paulo ("Ilustrada") e Curitiba ("Nicolau"). De 1990 a 1992 viveu nos Estados Unidos, onde realizou mestrado na Arizona State University com tese sobre os romances de William S. Burroughs. Neste período, também reuniu material para seu livro de 19 entrevistas com escritores e artistas (como John Ashbery, William Burroughs, Marjorie Perloff, Allen Ginsberg, Nam June Paik, Charles Bernstein and John Cage), que resultou no livro "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje", publicado pela ed. Iluminuras em 1996. Lançou "Solarium", “Polivox”, “Visibilia”, e “Nômada”, que reunem sua produção poética. Publicou a tradução das "Illuminations" de Rimbaud (também pela ed. Iluminuras). Já traduziu, entre outros, a poesia de Ezra Pound, Sylvia Plath, William Carlos Williams, Robert Creeley, Gertrude Stein, Laura Riding, Gary Snyder, Charles Bukowski. Com Ademir Assunção edita a revista Coyote Victor Hugo Cecatto - Artista plástico. Alguns de seus trabalhos podem ser vistos no www.vhd.com.br Wilson Neves - Artista plástico, alagoano, mora em São Paulo, ilustrador de vários livros, entre eles “Hiatos”, de Yara Maria Camillo (editora RG), e “Tratado dos Excitantes Modernos”, de Honoré de Balzac (editora Landy). Está à frente do blog de artweb SNOWBROS. É o autor da capa desta edição. Blog: hijakskank.wordpress.com

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