Descarrilador - Uma viagem de revista N°1

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DESCARRILADOR ­ Uma viagem de revista ­

Nro.1 2016

RELATOS DE VIAJANTES PELO MUNDO HOMENS E MULHERES AO VOLANTE A PRÓPRIA VIDA, SOBRE DUAS RODAS


NOS ALFORJES... MANUAL PARA COMECAR UMA VIAGEM 2 IDUL FILTRI, UMA MAO MILAGROSA E DOIS PEDAIS 4 A ESTA ALTURA 6 O GRANDE MAKEY 8 LIBERDADE ENTRE AS PERNAS 12 CASA DE CICLISTAS 14 SUBSISTENCIA VIAJANDO 16 AMANHECER AUSTRAL 18 WARMSHOWERS OU O TEMOR AO DESCONHECIDO 20 FONTES CANTORAS, AGUAS QUE FLUEM SEM TEMPO 22 HOMENAGEM A EDUARDO GALEANO 23

disenho Paula Cocucci

A LEITURA E A VIAGEM 24


Esta revista busca transcender entre o tempo e o espaço, entre o espec-

tador e o protagonista, entre o pranto e o sorriso, entre campos, cidades, montanhas, vales, praias e glaciais. Entre a origem e o fim para um contínuo sem fim, para encontrar a realidade da arte que transforma cabeças e que transcende para dar caminho a novas cabeças.

Descarrilador é uma revista sem fronteira, que busca a música do dese-

nho, a matemática da escritura e a pintura da fotografia, para chegar a tocar o pó de povoados e cidades por caminhos indómitos e infinitos, e se perder um pouco da loucura de nossa realidade por meio de nossas rodas rodadas pedalando.

Esta expedição em direção a uma nova forma de viagem e de aprendiza-

gem, de uma comunicação sã, a realizam viajantes que andam por algum lugar do mundo, que depois de horas, quilômetros e quilos e quilos de irracionalidades – não tão irracionais – buscan juntar sua alegria e engenho. Eles procuram asas para sua cabeça, e que dessa forma voe a outro lado do mundo, e lhe levem sem contemplar nem seu dinheiro, nem sua cultura, mas sim sua vontade de conhecer, rir, sonhar, compartilhar e avançar até que junto as letras, garranchos e imagens construamos o caminho de um planeta que nos leve a um lugar melhor. Francisco Koufios


MANUALPARACOMEÇAR

UMAVIAGEM

P

egará um meio de transporte. Passará um poco o tempo, talvez sem você sentir que está se movendo. Talvez esteja um pouco cansado, en-tão dormirá. Sentirá um pouco de fome e alguém lhe trará comida. Começará doer um pouco suas costas, devido ao tempo que está sentado. Mas, finalmente sentirá movimentos muito similiares aos que sentiu quatorzes horas atrás, quando pegou o transporte, seguirá a todas as pessoas que esteve próximo durante essas horas e voltarás ao mundo dos vivos. Com certeza seu corpo não estará pronto para essa mudança, muito menos sua mente. Então você caminhará em círculos, se estapeará na cara enquanto espera que lhe tragam a bagagem. Quando a trouxerem entenderá que nada mudou. Quando sua bici esteja pronta entenderá que é exatamente a mesma que antes. Colocando o ar nas camaras, como sempre, os pneus começam a ficar mais duros. As rodas dão

por Davide Sbalzer desenho Andres Cabeza

voltas na mesma direção que as empurra. A força da gravidade funciona como sempre (com certeza o governo impôs a Lei da Gravidade Universal alí também). A paisagem, essa sim, lhe parecerá não tê-la visto nunca antes. Há muitos lugares onde você nunca foi perto da sua casa. Então começará a perguntar-se por qué.


Por qué está em Ushuaia, na Terra do Fogo, na Patagonia Argentina? Por qué está no ponto mais ao sul de Sul América? Será muito fácil pensar que não era suficiente para você ficar em casa, mas ninguém lhe prendia lá: podia dar muitas voltas na sua cidade, na Itália, na Europa. É um lugar bem grande, podia encontrar mais ou menos tudo: lagos, montanhas, mares, muito calor e muito frio. Podia escalar muitas montanhas, podia pedalar na subida e na descida e também no plano, podia ir com dois, quatro ou oito rodas a muitissímos parques de skate... Que merda está fazendo do outro lado do mundo? Pensará que talvez foi longe demais quando planejou fazer uma "voltinha" de bici. Começará a pedalar, falando com seu companheiro de viagem, e descubrirá que ele pensa o mesmo. Mas não te sobrará muito tempo para pensar e terá que fazer tudo rápido para terminar algums assuntos muito importantes. Então chegará ao centro da cidade e não entenderá nada. Los nadie1 não falam inglês, muito menos italiano, os carros fazem peidos mais ruidosos que você, as pessoas que vão sentadas neles não usam sistemas de segurança, como o cinto,

os jóqueis de moto não usam capacete, para que o cabelo voe pelo ar, os cachorros não usam correias e lhe siguem, fazendo o ruido típico de sua especie, os táxis colorem a cidade, os telefones não tocam, os pescadores não são como você esperou, são pessoas normais e seus carros tem silenciadores que não são muito silenciosos, um euro é talvez dez pesos argentinos, as gaivotas pegam o peixe do mar deixando-o cair do alto para que bata nas pedras e pronto, o jantar está servido. Armará a barraca perto do aeroporto e sem relógio verá às horas: 22:42. Nesse momento o sol tornará o céu amarelo e laranja ao oeste. Só nesse momento de tranquilidade poderá pensar em tudo isso, poderá entender o porquê de estar ali e estará pronto para começar mais uma nova aventura.

1 trad:

Os ninguém. Poema do escritor uruguaio Eduardo Galeano, no qual descreve as classes populares


por Giuliana Fiore ilustraçao José Sasia

N

oite de cantos, festejos, carnavais de rua, desfiles, fogos de artíficio e rezas eternas. O bairro inteiro se congrega na mesquita para rezar, um por um, com o microfone do autofalante. É Idul Fitri, a festa que marca o fim do Ramadám e, por tanto, o final de um mês completo de jejum durante horas de luz. Amanhecemos entre cantos e rezas distantes que faziam eco na casa de Anissa, nossa amiga de WarmShower.

Com o curry e o lápis legit1 ainda em processo de digestão desde a noite anterior, saímos da cidade de Solo, Indonésia, a pedalar quando o sol ainda enrolava para sair. Capacete na posição, luzes acendidas, alforges amarrados e pedais em movimento. Pouco metros adiante, visualizamos milhares de mantinhas e esteiras jogadas no meio da rua em frente de uma mesquita. Alguns minutos mais, o chamado a reza sai pelos autofalantes de todas as mes-


quitas da cidade, que se ligan euforicamente. Seguimos assim rodando pela rota principal ao ritmo das rezas, observando a muitos muçulmanos vestidos impecavelmente, belos e com muito perfume, que caminhando, se juntam para realizar a primeria reza do Idul Fitri, compartilhar com família e vizinhos e, o mais importante, pedir desculpas pessoalmente a cada conhecido pelos danos que lhe tivesse feito. No país com maior população muçulmana do mundo, que dois loucos andem viajando de bicicleta em pleno Idul Fitri é algo muito raro; por isso a-fiamos a campainha da bici e repondíamos a todos os "Mister! Miss! Hello! Where are you going?" que nos gritavam em forma de saudação na peregrinagem em direção a mesquita. Aquela manhã, com duas faixas completas para movernos com a liberdade que todo ciclista sonha disfrutar, em um mundo dominado pelos carros ou, em este caso, pelas motos, pudemos apreciar o que significa viajar em um das principais rotas do país, em plena solidão. Já avançada a manhã e havendo completada as rezas matutinas, um sem fim de carros e motos subiram a mesma rota que minutos antes tinhamos amado pela solidão e exclusividade. O turbilhão estaba em ascenso, o sol mais radiante que nunca e nossas pernas começando a sentir a necessidade do descanso reidratante, mas nossos, ainda com um pouco de resistência nos pedais, afiamos desta vez nossa mão milagrosa. Não importa o quão caótico possa parecer o

trânsito de Indonesia desde a calçada ou desde dentro de um transporte coletivo, na aprendizagem descobrimos o poder do sinal de movimento do nosso braço: um estiramento dele, e o trânsito de forma mágica se acomoda para te dar essa liberdade que necessita entre os motores. Seja cruzar uma autopista a faixa contrária, voltar pela contramão ou trocar de direção em uma rotatória, sempre a mão milagrosa nos acompanha no esforço da pedalada. Assim conseguimos chegar as ruinas do antigo e imponente templo hindú de Prambanan, a poucos quilômetros de Yogyakarta, uma das principais cidades da Indonésia. Aquele foi um dia mais, marcado pela diversidade cultural que descreve todos os cantos de este país: com festejos do Idul Filtri muçulmano, vestidos com nossos Sarong2 balinêses, em um antigo templo hindu da ilha de Java.

1Bolo

humido de origem holando-hindonês com dezoito finas capas de uma preparação com a base de gemas de ovos, manteinga, açúcar, e o ingrediente chave: Spekkeok, um preparado indonês de temperos que contéim canela, gengibre, cravo da índia e noz moscada. 2Tecido estampado que homens e mulheres atam na cintura e fica como uma fralda.


A ESTA ALTURA por Ernesto Alves - ilustraçao Francisco Koufios

V

enho do pampa. A escola uruguaia me ensinou a dizer "penillanura" e pedalando no meu povoado aprendi a sofrer a subida de Penza, uma ladeira de apenas duzentos metros. Venho de bicicleta desde o pampa, assim que imagine o que é para eu rodar pela serra: pedalar suas ladeiras intermináveis e descer como o vento pelas rotas dos Andes. Na semana passada, por exemplo. Depois de dois meses de prazeres urbanos em Cuenca –essa bela cidade no sul equatoriano– saí a viajar com a bike. Era um passeio, tinha só dois dias y fui com pouco peso para dar uma volta. Mas, pedalar a serra nunca é um passeio, ao menos vindo de um país cujo ponto mais alto é o Cerro Catedral – com apenas 513 metros sobre o nível do mar (msnm). Na semana passada, por exemplo, sai para pedalar a serra e me envolveram as nuvens, choveu em cima de mim por um bom tempo, atravessei pequenos povoados de tijolos e telhas e cumprimentei as senhoras de saia e chapéu. Quando o vento levou as nuvens, as cores da montanha me deixaram de boca aberta: quan-

do a subida ameaçou de subir mais ainda, desci da bike e a empurrei até em cima: quando o caminho mostrou uma descida, me deixei levar por esse prazer insensato. Faz um tempo que pedalo pelo Andes. Quando preparava minha viagem saindo do Uruguai, vários me perguntavam como faria para atravessar a cordilheira, com uma inocência típica da imaginação pampiana. É que não se atravessa os Andes simplesmente assim: não se sobe uma montanha difícil para depois descê-la sem interrupções e com frio, não é assim. As montanhas da cordilheira são muito imprevisíveis, cheias de surpresas, desníveis constantes, subidas no meio da descida, descidas no meio da subida. Em alguns momentos da viagem decidi esquivar-me das montanhas, descendo na direção da costa ou da selva para evitar as subidas. Em outros momentos as enfrentei: meu corpo se lembra claramente de duas subidas por volta de 4500 msnm, com a folha de coca entre os dentes e essa metamorfose. Essa troca de chip quando se ativa o instinto de sobrevivência e todo teu corpo, tua mente, teu ser se transforma.

PEDALAR A SERRA NUNCA É UM PAS


Minha primeira vez foi em Oruro, foi uma montanha russa em Bolívia. Foi subir, subir e subir para depois jogarse na descida, virar e voltar a subir novamente. Na minha memória fica o brilho fosforescente das roupas dos camponeses locais –roupas tecidas e bordadas, que os desenhistas contemporâneos levariam rápido para a vitrine-; ficam também as montanhas com neve, o horizonte imenso aparecendo como se nada detrás da curva; fica a falta de ar freando o pensamento, perturbando a cabeça, desanimando... e aquela vontade de ir além. Nas montanhas da Bolívia aprendi que a buzina serve para algo. Esse "Bip!" não é somente um ruído para descarregar ansiedades urbanas. Nas muitas curvas dos Andes a buzina é um recurso vital para avisar que você existe, porque do outro lado não te vem e poderia terminar embaixo da estrada estreita, muito mais embaixo, no fundo do precipício. Há muitos, claro, muitíssimos motoristas que tocam a

O

S SEI

buzina por tocar simplesmente, e sem dizer, lhe dizem “olá", "saía do meu caminho" ou "força amigo". Quando o buzinaço vem de encorajamento, sorrio: o “BIP!" deixou passar um rastro de amizade. A mim me impactam os povoadinhos lá de cima, os que vivem com as lhamas e as alpacas. Vivem com o frio eterno, o vento e o gelo dos quatro mil metros. As montanhas tão empinadas, o pasto tão amarelo, as casinhas tão frágeis, mas com televisão via satélite. Impactam-me essas crianças: seus olhos tão abertos e suas bochechas tão queimadas pelo frio e pelo sol. A esta altura te posso dizer que lá encima se fala diferente. Dezesseis anos de educação formal e eu nunca tinha escutado essas falas nativas: o aymara, o quéchua e os demais. Tantas vezes não entendemos nada, ainda que eles falem espanhol, ainda que tentemos, ainda que acreditássemos que nos entendemos. Tantas pontes para desenhar. A final creio que isto é uma prova. Chegar dos Pampas até os Andes de bicicleta, te mostra que não há apenas um mundo. Somos multidão. Quando estás lá em cima e vês a imensidão, quando respiras o ar puro e difícil das montanhas, é como se soubesses: sim, neste mundo cabem muitos mundos.

Temos que pedalar por isso.


O GRANDE por Andrés Fluxa

-texto e fotografias-

Esparza, Puntarenas, Costa Rica, 3 de outubro do 2014. Como diz o ditado “o profeta não tem honra em sua casa”. Mas o Grande Makey desmente. Makey tem 54 anos e é um pequeno gigante (com 1.62 m de altura) que ostenta um coração recorde, umas pernas de aço, umas nádegas invencíveis (você verá…), uma camionete Nissan de

1978 (o único veículo motorizado que ele já teve em toda sua vida) e nem sei o número de admiradores que o reconhecem e cumprimentam com o característico grito “Tico” enquanto caminha pela sua pequena e querida Esparza -Olá Makey! Pura vida? -Pura vida irmão!


-O famoso Makey! Pura vida? -Pura vida! Vamos explicar o porquê de “Tico” e “pura vida”. O costarriquenho é Tico, pois fala com o tico: “me aguarde um pouquitico, num momentico volto”. Simples. E mesmo perguntando por ali ninguém conseguiu me explicar como foi instaurado esse cumprimento (o “pura vida”) que representa otimismo, felicidade e amizade; tem sim uma explicação se você procura no Santo Google. Acontece que em 1956 foi lançado o filme Pura vida na Costa Rica, estrelando o comediante mexicano Clavillazo um personagem que repetia toda vez as palavras “pura vida”. Daí grudou na cabeça dos ticos e agora é carta de apresentação deles na frente do mundo. Pura vida? Pura vida. E nesse contexto o amigo Makey és um exemplo de “Pura Vida”. Ao Marcos Luis Benavides Segura (ou simplesmente Makey) eu o conheci na selvagem Leticia, na Colômbia, uma cidade situada na tríplice fronteira colombiana/brasileira/peruana. Lá eu encontrei o Grande Makey, nessa cidade amazônica onde não existem rodovias e só o rio e o avião funcionam como comunicação. Makey vinha em avião desde Bogotá carregando a bike, a bagagem e o sonho de chegar á Copa do Mundo - Brasil 2014. Ia com pouca grana, sem ingressos para os jogos e lançado na aventura. Mas ele ia. Mes-

mo sem saber se conseguiria ver sua seleção jogar, ele ia. No meu caso, estava saindo do Brasil e me dirigia em direção Norte com destino ao Alaska. Cruzamento de caminhos. Encontro. E ali estávamos, sentados um ao lado do outro sem importar em qual circunstância. Dois desconhecidos numa sala de espera, que esperavam sem importar o quê. Poderíamos não ter nem nos falado, mas o fizemos: -O senhor está fazendo o quê por aqui?- o questionei. -Eu sou de Costa Rica. Estou indo pro Brasil na minha bike para assistir a Copa. Quero viver pelo menos uma vez na vida essa experiência. Meu sorriso não se demorou diante da surpresa. Não é comum encontrar um ciclo-viajante pela região. E ali estava esse “tico” com 54 anos e um sonho. -Eu também estou viajando de bike!contei entusiasmado. -Não me fale?! Bom, se for passar por Costa Rica é bem-vindo na minha casa. Seis meses depois daquele encontro, depois de vários milhares de voltas de roda, cheguei até a casa do Grande Makey na Esparza, Costa Rica. Ali o encontrei novamente para saber mais da historia dele e como tinha concluído a viagem à Copa. Não sei se foi uma expressão feliz, mas não encontrei jeito mais delicado: Makey têm nádegas invencíveis. Ou pe-


lo menos já foram até há pouco. E é que há pouco quebraram o Recorde Mundial que ele tinha conseguido no ano 2006: foram 27 horas contínuas de bike, com os juízes do Guiness vigiando que Makey não descera da bicicleta nem para ir ao banheiro. Têm que gostar mesmo da bicicleta... E Makey gosta. Desde criança com o irmão competiam em corridas de bike mas sem bike. Como assim?! -Sim, é que viemos de uma família muito pobre e não tínhamos dinheiro para comprar bicicletas. E com meu irmão sempre fomos tão fanáticos do ciclismo que quando criança corríamos em pé pelo povoado mas imaginando estávamos em cima de uma bike. Já na adolescência me emprestaram uma bike de verdade e me inscrevi na corrida em São José, na capital. Eu tinha muita fé e disse para todos que sairia nos jornais. Obviamente ninguém acreditou. Quando começou a corrida percebi que todos iam muito devagar numa descida e comecei ultrapassar, mas depois percebi que iam devagar pois tinha uns buracos enormes no final da descida. Eu peguei um e voei pelo ar. A bike arrebentou e eu apareci nos jornais, numa foto de quando me colocavam na ambulância.

consegue. No ano 2004 atravessou Costa Rica de fronteira à fronteira, 570km em 24 horas. Em 2006 foi o recorde no Guiness por 27 horas contínuas na bike. E a mais recente (mas não a última) com 54 anos cumpriu o sonho de ir á Copa do Mundo do Brasil de bike. Mas não foi coisa fácil de fazer. Quando saiu de Leticia, logo depois de nos despedirmos, pegou um barco que demorava 6 dias pelo rio Amazonas até Manaus, Brasil. Por questões econômicas teve que dormir no chão e comer as sobras do restaurante. No barco seguinte, desde Manaus até Belém, as condições da viagem não melhoraram. Chegou ao ponto de passar dois dias mastigando só manga. Em Belém uma família o acolheu, alimentou e não o deixou continuar até recuperar os sete quilos perdidos. Arrumou um pouco de dinheiro e partiu. Dalí pedalou 1800km até Fortaleza, fazendo uma média de 180km por dia. Em Fortaleza era o primeiro jogo da Seleção Costarriquense, mas o Makey não tinha ingresso. Quando passeava pela cidade na bicicleta com a bandeira da Costa Rica uns “Ticos” o viram e chamaram. Quando souberam a sua história fizeram uma “vaquinha” e juntaram bastante dinheiro.

-Eu esta-va tão nervoso que ainda Quando Makey se propõe alguma coi- não sei quanto me deram, mas sei que sa, mesmo que todos lhe digam que es- era muito. Assim pude ver Costa Ricatá doido e que não conseguirá fazer, ele Uruguai em Fortaleza e depois fiz


800km em 4 dias até a cidade de Recife para ver Costa Rica-Itália. No final das contas assisti dois jogos da minha Seleção. Depois voltei para Esparza pelo mesmo caminho que tinha feito. Quando cheguei aqui, a cidade toda estava na praça para me receber. Na Costa Rica o Makey foi uma revolução. Saiu direto pelos principais canais que transmitiam a Copa e lhe fizeram entrevistas em várias mídias internacionais. Agora pensa no próximo desafio: chegar até Miami de bike para competir na maratona de 42km nessa cidade.

-Makey, só mais uma pergunta: o que motiva ao senhor para empreender estes desafios? -Eu gosto de fazer o que ninguém faz e demonstrar que com vontade podese conseguir tudo. O que mais me motiva e me dá força para conseguir é me encontrar com pessoas que dizem que não conseguirei.

-¿Pura Vida?

-Pura Vida

Andrés Fluxa, com mais de 23000km nas costas, continua rodando para completar seu sonho: dar a volta ao mundo de bicicleta


LIBERDADE

ENTRE

A

AS PERNAS por Soledad Sasia - ilustraçao José Sasia

prendi a andar de bicicleta aos 8 anos. Ainda me lembro da vergonha que senti ao saber que todos meus amigos e irmãos sabiam andar e eu ainda com as rodinhas. Também recordo hoje à obsessiva e voluntariosa tentativa que minha família se colocou e que consistiu em tardes inteiras de vigilância e apoio moral inesgotáveis, cada vez que o dinossauro verde –enorme e pesado, que pertencia a minha mãe e que me foi dado como veículo de aprendizage – decidia jogar seu corpo por terra e esta criaturinha, que já dava mostra de um caráter explosivo, ameaçava com resignar-se indignada a toda uma vida de pedestre. Lembro-me dessas tardes. Lembro-me das pistas de treinamentos com obstáculos –nunca teve melhor função o varal de roupa colocado justo no meio do quintalO que não posso recordar são os dias. Não sei quantos foram. Não sei se precisei oito, dez ou um mês para poder andar os primeiros vinte metros que me dariam uma sensação como de vertigem de prazer, essa alegria de equilíbrio recentemente conquistado e que somente agora posso associar ao mais puro sentimento de liberdade.

O que faço viajando de bicicleta? . . .

Ando sentindo-me livre!


-De bicicleta menina!?- Família -Sim, em bici*- Sole

-Nossa Senhora! Tem que ter coragem, né?- F

-Eu diria mais que coragem, vontade... Basta apenas querer- S

-Rsrs! Você disse querer? Pois nem querendo chego à esquina! Rsrsrs mas, e os seus filhos?- F

-Filhos? Não tenho!, e se eu tivesse estariam viajando comigo- S

-Rsrsrs você disse que os traria...e o seu marido?- F

-Qual marido?- S

-O seu. Não tem?- F

-Não- S

-Então... está viajando com mais amigos?- F

-Não. Agora estou viajando sozinha- S

-Sozinha!? E seus pais deixam??-F

-Kk! Sou eu que deixo eles ficarem na sua casa!-S *"bici" é a forma de falar “bike” em Argentina.


CASA DO

CICLISTA por Bárbara Tasso

S

omos de Argentina e estamos viajando pela América do Sul de bicicleta. Chegamos a cidade fronteiriça de Foz do Iguaçu, Brasil, última cidade antes de cruzar para o Paraguai pela Ciudad Del Este ou Argentina pelo Puerto Iguazú, e para nossa surpresa há uma Casa do Ciclista. Gente!! Que legal é quando um cicloviajante, depois de dias na estrada, chega numa cidade e encontra amigos que oferecem um espaço para descansar e a oportunidade de curtir o lugar. É assim mesmo que a gente se fortalece! Dá um jeito para continuar a viagem com a alegria de saber que cada dia sejammais os que ado-

FOZ DO IGUAÇU

imagem mural logo ACIC

tam a bicicleta como um modelo alternativo e mais natural de andar pela vida. É a nossa responsabilidade divulgar essas informações para que a galera se motive e sinta vontade de viajar! Por isso apresentamos a um dos promotores da Casa do Ciclista em Foz Do Iguaçu: Luciano Castilha. -Luciano, de onde nasceu a ideia de criar a Casa do Ciclista? -Foi há dois anos, logo depois de fundada a Associação Ciclística Cataratas do Iguaçu (ACCI), que teim o objetivo de unir todas as modalidades do ciclista. Neste caso, um dos membros da ACCI, Nelson Neto, tinha


pelo hobbie. Os acidentes são poucos em relação à quantidade de ciclistas que temos. Os investimentos públicos também aumentaram na mesma proporção: existem duas ciclovias, em breve vamos ter a terceira. Agora a ACCI, junto com o município, trabalha num projeto para abrir um es-De que jeito o ciclista contribui paço próprio para o ciclista numa praça da cidade. com a Casa do Ciclista? -Como a casa é do ciclista a gente -Na sua experiência, quais são quer que ele fique a vontade, como em sua casa. Que aproveite para des- os benefícios do uso da bicicleta? cansar e recarregar energias, que faça -Além da atividade física, do contauma troca de ideias com os demais to com a natureza, o menor impacto ciclo-viajantes que estiverem hospe- ambiental e na economia, o beneficio dados, e que conheça a cidade, que principal é para a cabeça, é um desaalém das Cataratas do Iguaçu tem fio para nossa mente e uma atitude também a Represa do Itaipu, dois lu- diante da vida, sem limites, nem frongares que valem a pena de conhecer. teiras. A bicicleta abriu meus olhos Se ele quere fazer alguma doação, po- em todo o sentido, fez de mim uma de ser qualquer melhoria para a casa, pessoa mais paciente na estrada e arrumar ou trocar coisas que estive- também com a família, sempre que rem quebradas... Aqui também todas posso utilizo a bicicleta e a recomenàs quartas-feiras temos reunião com do para uma vida mais saudável. o pessoal da Associação e qualquer ciclo-viajante que estiver interessado *** em fazer um intercambio com a comunidade desde sua experiência semMuito agradecidos pela ajuda que pre é bem-vindo. nos brindaram, deixamos o contato para todos os ciclo-viajantes, bom ca-Como é tratado o ciclista em minho para todos! Foz Do Iguaçu? -O número de ciclistas tem cresciwww.accifoz.com.br do significativamente nos últimos Rúa Nivaldo do Amaral, 819 anos em todos os aspectos, seja pelo Parque Residencial Morumbi II trabalho, pelo esporte, pelo turismo, Foz do Iguaçu- PR uma conta no Warmshowers e ele estava saindo para viajar de bicicleta pela América Latina, então ele propos a ideia de criar a Casa do Ciclista. Pouco depois de sua saída conseguimos abri-la para receber a todos os ciclo-viajantes em caminho.


SUBSISTÊNCIA

VIAJANDO por Jorge Gallardo fotomontagem José Sasia

Q

uando vivemos em nossa cidade de origem, devemos ir gerando mês a mês o dinheiro com o qual vamos ir vivendo durante o ano. São poucas as situações em que uma pessoa conta com o dinheiro adiantado para viver durante todo o ano. Quando estamos viajando e trabalhando é exatamente o mesmo, só se trata de ir gerando os meios que necessita para viver no dia a dia ou no mês a mês. Cuando aparecem boas oportunidades de trabalho devemos aproveitá-las para poupar e assim logo continuar a viagem. O ideal é sair viajando com uma poupança que nos dê um empurrão e assim ir livre de preocupações, que sirva como base para decolar. Aos poucos quilômetros de sair, já começarão aparecer situações da viagem, as quais ocorrem somente quando estamos viajando. Talvez apareça uma primeira oportunidade de trabalho. Como dizia Jack Kerouack: "sempre é bom ter um trabalho, qualquer tipo de

trabalho”. Quando alguém está viajando acontecem coisas que em nosso lugar de origem não acontecem, aqui vale citar o dito popular: "ninguém é profeta em sua terra". Tem que saber aproveitar esta situação. Pessoalmente, eu pude demonstrar a mim mesmo que com a arte da rua, se pode unir em um ano a Cidade de Buenos Aires com a Cidade de Guadalajara, no norte do México. Assim é, com a arte da rua, é possível sair de Argentina, passar pela Bolívia, Perú, Equador, Colombia, Panamá, Costa Rica, Nicaraguá, Honduras, Guatemala e México; ida e volta em dois anos. Claro que se pode fazer em menos tempo, mas me refiro a minha experiência. Outros viajantes têm percorrido e vivido experiências similares sustentando-se através do artesanato, do teatro, da música, do desenho, da pintura, etc. De alguma maneira, a arte é ideal, já que o trabalho se leva nas costas e se dispõe dele em qualquer momento e lugar aon-


de você chega. Também é o primeiro canal de comunicação que nos une aos habitantes de qualquer lugar ao qual chegamos pela primeira vez; o que é muito valoroso. No contato com o lugar e sua gente, o viajante tirará sua própria e pessoal conclusão de quão receptiva é a população em relação ao seu trabalho, dessa maneira, irá organizando sua lista de lugares "bons" ou "maus" para trabalhar. Cada um tem uma idiossincrasia diferente e, assim, uma diferente reação diante da exibição da arte no espaço público. Não é o mesmo trabalhar nas ruas do México D.F. que nas ruas da pequena, mas amigável cidade de Piurta no norte peruano. Não é obrigação à transumância e a arte no trabalho do viajante nômade. Uma grande parte deles trabalha de empregado em um bar, hostel, cozinha de restaurante, fazendo traduções no hotel e infinitos outros trabalhos. O trabalho quando está viajando, se adapta a qualquer formato, para todo tipo de pessoas com diferentes ofícios. Recomendo que não deixem de fazer uma viagem por falta de dinheiro ou por medo de pensar que não obterão os meios para se sustentar. Tenho conhecido vendedores ambulantes, que tem percorrido o mundo inteiro com seu trabalho de compra e revenda. Enquanto que em Buenos Aires tenho visto vendedores ambulantes que compram sua mercadoria em um atacadista do bairro Once e depois vendem-

na sempre em uma mesma esquina, anos e anos nesse mesmo lugar. Vivem no mesmo quarto alugado durante um ano, dois, três ou para sempre. Sem nenhuma emoção maior que ver passar a vida diante dos seus olhos em uma mesma rua. Tudo depende do que façamos com uma mesma ferramenta de trabalho; com ela podemos ser por toda uma vida o vendedor de uma esquina, sempre em uma mesma cidade, ou o Marcopolo das ruas do mundo inteiro.


Amanhecer

austral por Francisco Koufios ilustraçao Santiago Koufios

E

ssa manhã se levantou com os gritos de Jackie, uma mulher feita e direita, que para você e seu companheiro de viagem –que nesse momento é seu irmão– lhes deixa o quintal dos fundos para montar a barraca, e lhes grita da janela para que encham a pança. Você se troca, sai da barraca e entrando na copa, se encontra com cinco garotas e um garoto que param de tomar o café da manhã para desejar-lhe bom dia e dar-lhe um lugar à mesa. Você se acomoda e, visitante numa casa com tantas mulheres de acima de trinta anos, se sente uma crianza e fica tranquilo.


Escuta a Carla, que volta a soltar sua voz e a falar com nostalgia de seu filho, já adulto, que está terminando a faculdade na Universidad de Santiago. Você vê como Karina manda saudações pelo telefone para seus dois filhos –de cinco e sete anos– que estão em Coiaique aos cuidados do pai, e ve como termina a conversação, quando seu irmão, que vem para tomar o café da manhã, interrompe na mesa e se senta ao seu lado e de Moni. Você notava Moni ansiosa e com vontade de falar algum problema no momento que você chegou, e seu companheiro foi a presa perfeita para jogar-lhe um monólogo pesado, mas que com os minutos se torna interessante. Ela fala mal de uma de suas companheiras que atrevidamente lhe roubou um cliente na noite passada. Então, você começa a juntar os pontos e a entender por que a lanchonete de Jackie tem luzes vermelhas. Entende por que na noite anterior, as cinco se produziam apressadas e todas ao mesmo tempo. Agora sabe a causa de que exista tantas pessoas num lugar tão pequenino e entende porque aquela lanchonete não tem cartaz na sua fachada... e finalmente, sabe que está ficando num prostíbulo sem perceber. Nesse surpreso momento, cruza olhares com seu irmão, com quem percorreu varios quilômetros de bicicleta e compartilhou toda sua vida, como tem os olhos abertos

como dois ovos e um sorriso pícaro na cara, descobre que teve a mesma dedução que você. Nesses momentos de perplexidade, escuta a Tatiana, que comenta abertamente como o fim de semana passado levou seu filho a um povoado na periferia da capital chilena para dizerlhe:

- Veja... sua mamãe se fode de trabalhar para que você viva numa casa em condições, para que tenha um prato de comida, todos os dias de sua vida. Assim que faça-me um favor... nunca se envergonhe de sua mãe e me faça caso quando lhe peça algoTatiana termina o relato e fica pensando no seu filho que está a milhares de quilômetos, na casa da avò que vive em Santiago. Aquela realidade lhe comove e compreende que a prostituição passa a um segundo plano, quando entende o sacríficio e o carinho que tem uma mãe pelo seu filho, porque sabe que... As putas são

putas, mas antes de ser putas são mulheres que tranquilamente poderiam ser sua mãe.


warmshowers

ou o temor ao desconhecido

www.warmshowers.com por Ailín Albamonte ilustraçoes José Sasia

N

o momento em que tive a ideia de viajar de bicicleta, e comecei a voar e a mergulhar-me neste novo mundo, soube de uma página de internet de intercambio de hospedagem, denominada Warmshowers (duchas quentes), nome que compreendí depois de realizar minha primeira viajem de bike. Esta rede funciona como a rede de Couchsurfing, mas é exclusiva para ciclistas. Pensei: quando saia a rodar, gostaria que alguma família me recebesse em seu lar, ou brindasse um espaço onde eu possa armar a barraca, para passar uma noite depois de uma jornada rodada, ou alguns dias trocando experiências, saberes e cultura. Foi assim que me fiz membro da comunidade de ciclo-viajantes, disse a mim mesma: "Se eu quero receber, primeiro tenho que dar". Naquele momento alugava um apartamento, no qual vivia sozinha, e me abri a oferecê-lo. E como o Universo escu-

ta nossos pedidos e age tão rápido como necessitamos, no dia seguinte recebi uma solicitação de hospedagem, de um ciclo-viajante de Uruguai que passava por Buenos Aires, rumo a Catamarca. Quase fiquei sem ar ao ver a mensagem, não acreditava que funcionasse tão rápido esta rede. Aceitei a solicitação nervosa e cheia de incertezas, lhe propus nos encontrarmos em um parque para que me contasse de sua viagem, conhecêlo e perceber suas intenções, antes de abrirlhe as portas do meu lar.

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Naquele momento me invadiram pensamentos, medos, culpa, nervoso. O temor de colocar um desconhecido na minha casa. “Você está louca. Tenha cuidado! Cada susto que você me dá! Mas... não o conhece, não sabe quem é..." Minha família, alertada sobre o que estava por fazer, preocupados, imaginando-me só com um viajante que me contatou pela internet. Uma loucura. Eu simplesmente confiei. No parque conversamos bastante, logo o convidei para que ficasse uns dias antes de continuar sua viagem. Foi uma experiência muito positiva, da qual nasceu uma amizade que ainda hoje continua. Eu simplesmente confiei. Pedi proteção e me entreguei a esta nova experiência. Deixei de lado o medo de abrir-me a alguém ou algo que não conheço. O temor de Não Saber. Porque sim, claro que não sei o que existe do outro lado, mas se não saio para investigá-lo, jamais saberei. Nascer, viver, morrer, nascer, morrer. Assim como "cada um da o que recebe, e depois recebe o que dá" tive a

oportunidade de estar do outro lado, de ser a "desconhecida". De agradecer infinitamente aquele lugar onde armar a barraca, aquela relaxante ducha quente, um jantar compartilhado, uma conversa, um mate, de ter uma história para escutar, de ter uma nova história que contar. Hoje posso dizer que tenho família de amigos em Tucumán, em Jujuy, em Uruguai, em Costa Rica e até na França. Somos aventureiros sem temor ao desconhecido, confiando que quando alguém se encontra rodando no caminho, tudo conspira a nosso favor. A página funciona em pequenhos povoados e tambem nas grandes cidades, onde há maiores possibilidades de encontrar membros da comunidade. Muitos ciclistas preferem evitá-las devido ao tráfego e ao custo dos hospedagens, que poden superar o orçamento. Por isso é muito bom que ao chegar haja alguém que possa te receber, ter um lugar onde descansar em meio à loucura que as caracterizam, e poder desfrutar sua beleza e sua gente.

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Fontes

cantoras , aguas que fluem sem tempo

por Eduardo Aguilar

-texto e fotografia-

S

e algo me impressionou da Gran Sabana, na Venezuela, é que apesar de tanta vastidão e aparente aridez (ainda que chovera o solo estava quase sempre seco), era ver a quantidade de riachos e águas que corriam por toda parte. E sem dúvidas as mil e uma cascatas, cachoeiras, caídas que se amontoavam pelo caminho ou saindo um pouco da faixa do asfalto. Mas, por qué lhe chamam cascatas?

Segundo a etimologia, provem do italiano, e significa efetivamente caída de água. A mim não me convence, porque o conceito não representa a natureza mais que descritiva deste fenômeno orográfico. Efetivamente, nesses dias de "retiro", me dei conta de que tão água sou, de quanto me conectam e transmitem estas fontes cantoras. Ainda que a origem da água não seja ali mesmo no sentido estrito da pa22


lavra, estar debaixo a vendo como brotar e experimentar subitamente a greavidade e ao mesmo tempo elevar seu canto por toda a sonoridade do espaço, para mim fica clarissímo que não são senão fontes que cantam. Elas transmitem muita força e energia. A ressonância acústica dos muros e o "disco" infinito da música que toca a água, é um desses momentos que conectam com todos os momentos, uma mostra de que o tempo não existe. Nestas épocas em que a água é um bem em vias de privatização, há tantas lutas dignas tentando protegê-la e cuidá-la para todos, me veio bem chegar a todas estas diferentes fontes que emanam há milhões de anos, de uma terra tão perdida na história do planeta que nem podemos imaginar. Seus cantos transmitem esperança, e nos lembram que ao fim e ao cabo somos água também. Este axis mundi 1 se molha constamente pelo eterno fuir de suas águas, seus cristais semeados por toda parte não deixam de irradiar suas energias ao cosmo, assim que como não se sentir tranquilo e como em casa... mais ainda, como no liquido amniótico que alguma vez nos acolheu antes de vir ao mundo. 1Eixo

do mundo, símbolo ubíquo presente em numerosas culturas. Ponto de conexão entre o céu e a terra nel que convergem todos os rumos.

EDUARDO GALEANO Homenagem a partir das rúas abertas da América Latina

O jornalista e escritor Eduardo Galeano, defensor da causa latinoamericana e referência indiscutível para várias gerações, faleceu recentemente. A notícia nos encontrou na estrada. Partilhamos algumas linhas de seu livro "Os filhos dos dias"

ALARMA: BICICLETAS! "A bicicleta tem feito mais que nada e mais que ninguém pela emancipação das mulheres do mundo", dizia Susan Anthony. E dizia sua companheira de luta, Elizabeth Stanton: "as mulheres viajamos, pedalando, em direção ao direito de votar." Alguns médicos, como Philippe Tissié, advertiam que a bicicleta podia provocar o aborto e a esterilidade, e outros colegas asseguravam que este indecente instrumento induzia a depravação, porque dava prazer às mulheres que esfregavam suas partes íntimas contra o assento. A verdade é que, por culpa da bicicleta, as mulheres se moviam por sua conta, desertavam do lar e disfrutavam o perigroso gostinho da liberdade. E por culpa da bicicleta, o opressivo espartilho, que impedia pedalar, saía do guarda-roupa e se ia ao museu.

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A LEITURA E A VIAJEM por Adriana Souza - ilustraçao Santiago Koufios

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ão aprendi a pedalar quando era criança. Até hoje tenho dificuldade de manter-me nas duas rodas. Vi meu filho cair, levantar-se até conseguir o equilíbrio e sair pedalando. Lembro-me de que aos 18 anos queria colocar uma mochila nas costas e sair conhecendo o mundo, mas isto não aconteceu. Hoje percebo que me faltam o sorriso, a conversa divertida e a coragem para viajar pelo mundo, mas também tenho que ser sincera: odeio viajar sozinha. Diante de tudo isso, descobri um modo de viajar: a leitura. De repente, me vejo pedalando com Soledad. Recordo do meu filho tentando andar de bike igual a ela e me pergunto se um dia ele também será um ciclo-viajante. Sinto o vento e vejo as cores das montanhas dos Andes, chego a sorrir sozinha e, dessa forma, também pedalo com Ernesto. Conheço a Casa do Ciclista, em Foz do Iguaçu, onde encontro um recanto de amigos que compartilham suas experiências. Sorrio com a história de Pura Vida e tenho vontade conhecer mais sobre seu modo de viver. Enquanto sigo viajando com as palavras, David me tira da rotina do dia a dia: me faz ver que do outro lado “os ninguém” também existem e talvez saibam aproveitar mais a vida, mesmo com o pouco que tem. Francisco me pega pelas mãos e entramos numa casa de cores vermelhas e mulheres maquia-

das, assim conheço a verdadeira história de uma vida não é fácil e se assemelha de certo modo a minha. Elas vendem o corpo para que seus filhos estudem e eu vendo meu tempo, que deveria aproveitar com meu filho, portanto, sou tão puta como elas. Respiro... a viagem continua. Entre tantos espaços e montanhas, posso sentir a liberdade que é viver com a natureza, seguindo-a em seu ritmo, sem horários e datas predefinidas pelo homem. Ao mesmo tempo, saio da bolha e percebo que a natureza já foi privatizada para que algumas pessoas possam usufruí-la. Assim, lembro que isto acontece no meu país. A água, que nasce e flui de diversos lugares, é cada dia mais escassa e controlada. Recordo que quando era pequena não se vendiam tantas garrafas de água e quando pedíamos um copo de água no bar, nos davam, não a vendiam. Viajo à Indonésia, escuto suas rezas, crenças e me banho na diversidade cultural. Sonho com o dia que talvez tenha coragem de sair do escritório, tornarme uma vendedora pelo mundo e, assim, perder o medo do desconhecido. Enquanto isto não acontece, mergulho nas maravilhosas histórias destes ciclo-viajantes, os quais não conheço o rosto, mas sinto um grande apreço. 24

Obrigada por me levarem em sua garupa!


AQUI PEDALARAM REDAÇÃO Davide Sbalzer (a partir da Itália) Giuliana Fiore (a partir da Indonésia) Ernesto Alves (a partir do Equador) Andrés Fluxa (a partir da Eslovênia) Soledad Sasia (a partir do Brasil) Bárbara Tasso (a partir da Argentina) Jorge Gallardo (a partir da Argentina) Francisco Koufios (a partir do Peru) Ailín Albamonte (a partir da Argentina) Eduardo Aguilar (a partir da Venezuela) Adriana Souza (a partir do Brasil) José Sasia (a partir da Bolívia) ILUSTRAÇÃO José Sasia Andres Cabezas (a partir do Uruguai) Santiago Koufios (a partir da Argentina) Paula Cocucci (a partir da Argentina) Francisco Koufios FOTOGRAFIA E FOTOMONTAGEM Andrés Fluxa Eduardo Aguilar José Sasia Francisco Koufios DESENHO GRAFICO José Sasia Francisco Koufios EDIÇÃO Francisco Koufios José Sasia

giuli.fiore@gmail.com enochoruedas.wordpress.com Fb:Andrés Fluxa(un mundo en bicicleta) soledadsasia@gmail.com barbaratasso@gmail.com vanguardiacareta.blogspot.com.ar rodandocuentos.wordpress.com Fb:Ailín Albamonte Pizarro(Waslala) ciclonauta.net adrianajsouza@ig.com.br tachomazo.blogspot.com

Fb:Andres Cabezas santiago-koufios.tumblr.com paulamcocucci@gmail.com

VERSÃO PORTUGUÊS TRADUÇÃO E CORREÇÃO Adriana Souza Adriana Estevão Juan Sasia SUPORTE TÉCNICO Odaír Estevão Ataíde Estevão


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AO SEU AMIGO CICLOVIAJANTE Uma revista sobre rodas. Uma revista comunitária. Uma revista autosuficiente. Uma revista feita por e para cicloviajantes que batalham na rua de mil formas para se sustentar na rota. Uma revista, vamos dizer, para conseguir uma moeda, mas mais que nada, para passar o conhecimento desta forma de viajar, que ja não é para poucos uma maneira de vida, outra forma de ver o mundo. Uma revista seja um empurrão aos que ainda duvidam, sonham, se perguntam se estão loucos por pretender viajar de bici ou nunca se imagi-

naram que pode fazer "sem dinheiro", usando outros recursos. A ideia é ambiciosa, mas não estamos sozinhos na rúa! Quantos mais sejamos, melhor! Este primeiro número foi organizado durantes meses, em incontáveis mensagens, emails, encontros na rodovia. Foi corrigido, desenhado, editado e compartilhado via web –por isso falamos de comunidade– para que cada viajante o imprima no lugar que estiver, na melhor qualidade e custo que consiga, e possa fazêlo chegar a suas mãos.

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