Nota de Abertura Os polícias não gostam de sonhos!... Partindo de Mafra e fazendo o percurso pelas auto-estradas do litoral e, depois, pelo IC8, chego à minha terra descendo a serra que a ladeia a poente e que a separa da sede do concelho – Ansião -, a que, por fás e por nefas da política, está ligada desde meados do século XIX, mas à qual nunca a alma da minha gente prendeu os afetos. Foi esse o itinerário que, mais uma vez, percorri em recente fim de semana!... E como sempre faço, desde que os olhos alcançam o meu espaço, gosto de mirar a vida esculpida na paisagem, na qual se inscreve muito do modo como me formei, onde, por mim guardados, permanecem momentos e factos que talharam muito do meu ser e de cujo chão, emergem marcas e referências em que me defino e reencontro. Foi nesse ato instintivo de olhar que reparei que um dos espaços da extensa várzea que se coloca entre a serra e a vila, e que até aos anos sessenta era um mundo de verde - mas que agora pouco mais é do que simples matagal –, se apresentava limpo, terraplanado e, curiosamente, cercado, em considerável área, por uma vedação aramada no interior do qual estacionava vasta maquinara, além de inúmeros apetrechos e materiais de construção. A curiosidade tornou-se ainda mais aguda, quando, à aproximação, verifiquei que o espaço vedado correspondia àquele que nos tempos dos meus pais fora o seu melhor, maior e mais produtivo “bocado de terra”. Daquele território familiar, longo, plano e sem árvores - apenas uma pequena oliveira -, tanto guardo recordações e imagens que povoam meu percurso existencial, como nele facilmente recoloco a presença paterna e demais pessoal – homens e mulheres - muitas vezes sob o calor tórrido do verão, nas sementeiras; na rega do milho, das batatas, do feijão; na azáfama das colheitas; no fundo, no cumprimento do eterno ciclo da vida que em cada ano se renovava. Nas lembranças esbatidas da minha infância, ainda a nora a rodar no seu monocórdico ranger das ferragens e alcatruzes, puxada pela mula de olhos tapados. Depois, um inverno mais violento e o muro que suportava a engrenagem que abate, e todos os mecanismos caídos na profundeza do poço. O aparato de cordas, engrenagens e homens para tirar tudo do fundo enlameado. A reconstrução. A extração da água, a partir de então, por moto-bombas. Esta a correr nas longas caleiras que ladeavam toda a propriedade. Eu a refrescar as mãos na água saída da frescura do poço e, ora a inventar, com folhas secas de arbustos, corridas de barcos ao longo da caleira e as mulheres a gritarem-me do meio do milho: Américo!... não ponhas folhas na água que entopes a vala!... , ou a fazer, com canas e pauzinhos, rodas de água que colocava nas reentrâncias das pedras!... E as uvas da vinha vizinha que, aos poucos, bago a bago, ia surripiando; a voz desconsolada da ti Gracinda: o diabo dos pássaros andam-me a debicar as uvas!... Marcas de mim ali plantadas e que a memória sempre visitava quando, do alto da estrada nova, deitava um olhar fugidio ao espaço!... Disseram-me que dali vai sair o novo aquartelamento dum braço armado do poder!... Talvez onde o meu pai semeava batatas venha a ser a parada do quartel, talvez do sítio do melhor feijão saia uma cavalariça!... Talvez no recanto da oliveira fique o gabinete do oficial de dia!... Talvez, talvez, talvez!... Tanta dúvida, tanta incerteza que pouco importa, para uma única certeza que me sangra: a bota cardada do estado vai sufocar o meu espaço de retorno ao passado, calcar sob a sua pesada insensibilidade o mundo onde eu fazia florescer as minhas memórias, matar, sob a monotonia burocrática dos dias fardados, as recordações da renovação da vida que, em cada ano, ali, dava sentido existencial à família em que me fiz como sou!... Sinto já a dor de uma parte de mim para sempre aprisionada num quartel de polícia!... Apetece-me recordar a frase da minha juventude que atribuíamos à candura duma criança: O Amor é não haver polícias!... Que pena as crianças não governarem o mundo!... Dr. Américo Curado
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