Modelos para armar
Histórias curtas
José Marcos Ramos 2021
JUSTINO PESCADOR Ele passava as melhores horas do dia no mar, cinco horas da manhã e lá estava ele, caminhando pela praia com os passos pequenos, medindo cada passo pelo tamanho do seu pensamento. Ao longe, avistava o barco resplandecido pelo sol da manhã, madeira boa! Pensava: Fortaleza capaz de vencer o mar, fortaleza capaz de dar sustento aos meus sete filhos, fortaleza... De longe, Justino podia ver o nome do barco escrito com letras grandes, amarelas: “MINAS GERAIS”. Lembrava o seu avô mineiro, quando pintava o barco, as histórias contadas por ele quando ' ainda era pequeno, foi a lembrança do avô que lhe sugeriu o no me do barco. Ele não conhecia Minas, conhecia somente o mar tudo que vinha dele. Justino olhava o mar e sorria, dentro de pouco tempo chega ria os amigos e juntos sairiam para pescar. Justino amava o mar, era como se ele o pertencesse, nunca o tinha assustado, mesmo as tempestades eram vistas com olhos de alegria por Justino, era capaz de vence-las, gostava de ver Iemanjá no fundo do mar e falava sobre a terra, lhe pedir ajuda, cantar junto com ela uma música que atraia os peixes para a sua redê. Não temia Iemanjá, era forte. Uma brisa mansa e um perfume de terra e sal vinha chegando junto com os três pescadores, eles vinham sem falar, um silêncio quebrado apenas por um aceno de cabeça e um olhar profundo era a forma de comprimento e a ordem de partir.
Neste dia o mar estava calmo, gaivotas floriam o céu e o mar surdo barulho de assas e gritos calados de festa - A vela ao sopro do vento balançava como as ondas, Os pescadores calados conversavam sozinhos, durante toda a pescaria o dia a dia passava pelas suas cabeças: 0 filho doente, a falta de dinheiro, a confiança no mar, os sonhos e o amor, Justino pensava como os outros: a doença de filho mais novo, a discussão com a esposa antes de sair, a perda de dinheiro no parque de diversões no domingo anterior... Justino também pensava no filho mais velho, já estava na hora de inicia-lo no mar, oito anos, quando mais cedo, mais forte o braço para as tempestades- foi este o motivo da discussão com a mulher. Justino fixava mais o pensamento nos turistas que vira na praia, inveja aqueles moços brancos que lhe invejavam a cor, ficavam ali esticados na areia querendo lhe parecer na cor queima da do sol de todos os dias. Pensava nos peixes que venderia a ' estes rapazes e que eles comeriam fritos junto com um bom consumo de cerveja. Lembrou-se que um dia um deste jovem lhe veio falar: falava de sindicato, cooperativas, greve e outras coisas ' que ele não compreendeu, lembrava com carinho daquele rapaz que lhe chamava de camarada e que sumiu como apareceu, lhe falando de liberdade. Agora já voltavam para praia, voltavam arrastando, arrastados, arrastão. Justino ainda pensava: Quando chegar à praia e vender os peixes, compraria uma cerveja e beberia como os turistas, com peixe frito. Quando chegaram à praia, eram muitos os peixes, muitos os sonhos, sonhos tão grandes quanto o tamanho do barco,
Justino depois de vender os peixes caminhou em silêncio para a casa com o que selecionou da sobra, passou pelo bar e comprou duas garrafas de cerveja. Sua mulher lhe preparou os peixes fritos como ela pediu, reuniu com os filhos, contou histórias do mar e comeram os peixes até que Justino empolgado com a história, engoliu, sem perceber, um grande espinho do peixe, que ficou atravessado em sua garganta e ao invés de outra história, uma gota de sangue brotou em sua boca, uma grande hemorragia em meio as esperanças e o fim de sua vida, sob os olhares arregalados da esposa e seus setes filhos.
UM GRITO PELAS PAREDES OU COMO O SR. JOAQUIM ENGANOU A MULTIDÃO. Havia três meses que o silencio rondava a sua casa, ele passava o tempo assentado ou arrastando-se pelo chão ou es corando pelas paredes da casa, como um fantasma, já velho, com uma vida cheia de sofrimento e atribulações. Poucas vezes tinha sido feliz, tinha tido um grande amor que lhe deixou um filho que custou a vida da mulher amada. Quando sua mulher morreu deixando seu filho para ele criar sozinho, começou a separação. Joaquim, agreste como sertão que até apouco tempo vivia nas suas lembranças, era um homem solitário, trabalhador, rude no tratamento com as pessoas por assimilação do tipo de trabalho que exercia no campo, só duas vezes foi alvejado pelo amor na sua vida. A primeira vez foi quando encontrou Norma e se casaram no campo onde viviam, foram felizes dentro de um esforço de amor e compreensão. Pouco tempo durou esta união, com o nascimento do filho, veio a morte da mãe durante o parto, os dois totais: vida e morte, felicidade e tristeza, risos e lágrimas num voo cósmico de loucura que contaminou seu Joaquim e seu filho, que recebeu como herança um ódio feito de amor. A segunda vez foi agora, já velho, doente com um câncer de laringe que lhe tirou o único sinal de vida que era a sua voz. Talvez tenha sido o medo, a solidão daquela casa vazia com as paredes brancas e altas, os quartos enormes e aquele ar que infestava os quartos como se as paredes estivessem podres, que lhe fizera perceber que lá fora havia vida e que
ele tinha um filho que o amava. Talvez seja por amor a este filho que ele tenha mandado chamar dona Antônia para lhe benzer. Dona Antônia se assustou quando vieram lhe chamar, pois tinha três meses que o homem não falava, ela adivinhou que ele estava na hora da morte. Fechou a casa e de mãos dadas com a filha menor saiu correndo em direção à casa do seu Joaquim. Seu Joaquim, quando pediu para que chamassem dona Antônia, já pressentia a hora da morte, neste momento estava sentindo amor novamente, amava a vida que via pela fresta da janela, e o filho que estava distante. Apesar do seu rosto tranquilo e um semblante suave enverdecer os seus olhos, ele estava com medo da morte. Pelo caminho, dona Antônia ouviu o primeiro comentário, seguido de vários outros, feitos pelos vizinhos que também se dirigiam para a casa do seu Joaquim, afim de satisfazerem as suas curiosidades; Ele vai morrer urrando e gritando pelas paredes dizia uma mulher carregando uma lata de agua na cabeça. - Tem três meses que ele não fala, mas na hora da morte ele vai falar como o diabo! Dizia outro. Se quando ele estava bom ele já maldizia a vida e agora? Perguntava a sua vizinha mais próxima. Sem poder falar, ele vai uivar como um cão danado! Dizia a vizinha do número cinquenta. Quem tem a vida que ele tem não pode morrer tranquilo...
Foi ouvindo estes comentários que Dona Antônia e sua filha ultrapassaram a barreira humana feita por curiosos que aglomeraram em frente à casa, para verem o final do homem. Quando a multidão reconheceu a velha dona Antônia, Mãe de santo famosa no bairro, logo abriram caminho e se juntaram nas janelas para verem o que aconteceria dentro da casa. Seu Joaquim estava agora, deitado tranquilo na esteira do quarto apesar de nunca ter visto tanta gente, tanto barulho. Quando Dona Antônia entrou no quarto a multidão cansada e frustrada por não estar acontecendo nada de sobrenatural, já começara a dispersar, restava apenas poucos vizinhos e algumas crianças brincando na rua com os olhos cheios de espanto. Na hora que Dona Antônia começou a rezar o ofício e colocou a vela na mão do seu Joaquim, eles já estavam sozinhos na casa, os três, ela sua filha e o corpo do seu Joaquim que acabara de morrer tranquilo, "como um passarinho", me disse Dona Antônia, sem nenhum grito pelas paredes.
O NEGRO NO ASFALTO Os olhos do negro, que parecia dormir, estavam abertos, a sua respiração lenta, era quase imperceptível. La fora, a chuva caia de mansinho, fazendo contraste com o tumulto dos ônibus que passavam correndo atrás de passageiros, que se deixavam molhar pelas gotas finas de chuva que caiam lentamente sobre eles, sem mesmo que a percebessem. O negro, debaixo da marquise, continuava dormindo com os olhos abertos, a sua respiração, agora, era mais ruidosa, as pessoas que passavam por ele, não o notavam, passavam rapidamente sem mesmo olharem para o chão, olhavam apenas para o ônibus que corria em direção ao ponto final, vindo do fim da Avenida. O negro, agora abria também a boca e nós podíamos ver além do branco dos seus olhos o branco dos seus únicos quatro dentes, que nos fazia inveja, pois eram perfeitos em comparação com os nossos trinta e dois que já estavam cariados, obturados, amarelados pela nicotina, pela maconha, e pela falta de hábito de escova-los após cada refeição. A chuva agora estava mais forte, os automóveis que passavam pela avenida, jogavam água nos passeios, molhando os nossos pés. O negro continuava dormindo sem perceber que seus pés também eram molhados pela mesma água que os automóveis jogavam sobre nós que estávamos na fila. Finalmente o ônibus chegou ao ponto final, nós que estávamos em fila indiana, um após outro, corremos todos
em direção à porta do ônibus, procurando entrar cada um antes do outro, para obtermos um melhor local para assentarmos. Olhando para o negro que cada vez, ficava mais distante de mim, ainda podia ouvir o som de sua respiração, agora ofegante, pela boca. No outro dia, ao ler as manchetes dos grandes jornais da cidade, fiquei sabendo que o preço do Dólar americano tinha subido, e que vários mendigos tinham morrido de frio na madrugada anterior na Avenida Afonso Pena.
O DIA QUE O SKYLAB CAIU SOBRE A TERRA "DIÁRIO" Dia Anterior: Resolvemos não trabalhar hoje, éramos, metalúrgicos, professores, motoristas, trocadores e trabalhadores na limpeza urbana, resolvemos não trabalhar para podermos esperar a queda. A nossa atitude deixou toda a população preocupada. Quando nos metalúrgicos, resolvemos parar de trabalhar, vieram nos pedir para voltarmos, mas não cedemos, dissemos que só voltaríamos quando tivéssemos atingido o nosso objetivo. A preocupação aumentou, quando os professores resolvemos aderir à decisão dos metalúrgicos, mas, a agitação foi maior quando os motoristas e trocadores pararam, toda a população teve que ir para casa a pé ou ficar onde estavam. Nós da limpeza urbana não tivemos muitos problemas, pois uma sujeira a mais ou a menos não fazia diferença, ainda mais que toda a população já estava interessada na queda do Skylab. À noite, recebemos adesão do pessoal da Central Elétrica; eles disseram que sem energia elétrica e no escuro, poderíamos contemplar melhor o céu. Realmente, com todo mundo no escuro, pudemos ver melhor o céu, chegamos até ver um cometa telescópico, mas não vimos o Skylab.
O Próprio Dia: Pela manhã Resolvemos continuar em casa, pois estávamos muito cansados, passamos toda a noite olhando estrelas. À tarde Não houve nada durante todo o dia, passamos o dia olhando para o céu e nada vimos além das pipas que nossos filhos empinavam ao céu sem a menor preocupação. À noite Como não tínhamos energia elétrica, não pudemos obter as informações da NASA, sobre a hora e o local da queda, resolvemos subir as montanhas e ficarmos lá até que o Skyalab caísse. Nesta hora, já éramos muitos, pois recebemos adesões de toda a população. Dia Seguinte: Pela manhã: Quando alguns dos nossos, principalmente os da Central elétrica, resolveram, em um dissídio coletivo, furarem o movimento, foi que pudemos ouvir os pronunciamentos da NASA dizendo que o Skylab já tinha caído no Oceano Indico e só um pequeno pedaço tinha caído sobre a terra. À tarde Em assembleia geral, resolvemos não voltar a trabalhar, até que outro Skylab caia sobre a terra, e nós éramos também médicos e enfermeiros.
MENOR ABANDONADO O acolhemos de uma pequena caixa, de poucas janelas onde ele estava a pouco tempo junto com outros, ele nos escolheu vindo em nossa direção com os olhos baixos, decidimos por ele para não ficarmos procurando muito e dando assas aos nossos preconceitos e racismos, os trâmites foram rápidos e logo ele estava em nossa casa para espanto dos vizinhos. Ele era amarelinho, com os olhinhos pequenos nos fazendo pensar em "chineses". Como já sabia andar, ficava rodando pela casa nos seguindo por onde íamos, gostávamos de ficar com ele e ele gostava muito de ficar no meu colo e parecia sorrir quando o levávamos para nossa cama. Chorava quando tínhamos de deixá-lo sozinho e corria para perto quando chegávamos do trabalho. Ele parecia estar feliz com a gente, nós também estávamos, pois ele substituía o filho que ainda não tínhamos. Ficávamos horas e horas brincando na terra quando era dia de folga. Ele estava sempre por perto quando fazíamos alguma coisa fora da casa. Quando amanhecia ele cantava para nos acordar sempre a mesma hora. Com o passar do tempo ele ficou mais rebelde, já não ouvia o que dizíamos nem vinha quando o chamávamos, sempre fugia para o quintal para atrapalhar nossos jardins, quando o repreendíamos e lhe perguntava porque arrancava as terras envolta das plantas, ele dizia que era para colher minhocas e apesar da repressão, sempre voltava a fazer o mesmo, já estava dando trabalho demais dizia minha mulher.
Apesar de todas as trapalhadas que ele fez em nossa casa, ficamos com ele, pois eram muitos os defensores que ele tinha ganho entre os nossos amigos que sempre vinham visitá-lo e traziam coisas para ele. Ele passou várias fases da nossa vida junto com a gente, momentos em que estávamos felizes e momentos em que a gente se consolava dos problemas da vida tendo-o entre as mãos e acariciandolhe o corpo. Foi em um dia de crise, depois de um dia de trabalho forçado, quando estava cansado de toda a vida - Salário mínimo, dívidas máximas, doenças e muita falta de dinheiro mesmo-, depois de discutir com minha mulher, em um momento de raiva, peguei-o com as duas mãos e apertei o seu pescoço, até sentir todo o meu ódio morrer junto com ele. Depois o coloquei dentro da lata de lixo e para ninguém ver, coloquei alguns papéis sobre ele e fui para dentro de casa chorando, arrependido de ter um dia trocado um pintinho de dez dias pelas minhas garrafas vazias de cachaça.
"MODELOS PARA ARMAR" A visão do quebra-cabeça a colocou mais ansiosa, os seus olhos cresciam à procura das peças que formariam animal, uma arvore, uma ave, um lago, ou mesmo alguns peixes. As peças, num total de duzentos e oitenta, foram colocadas sobre a mesa e teríamos, nós seis, que formarmos um animal, uma arvore, uma ave, um lago, ou mesmo alguns peixes e depois agrupa-los, adquirindo no final uma cena na floresta. Ela rapidamente formou as duas girafas que tinha para armar, vagueou o olhar pela mesa e começou a nos indicar peças para os nossos modelos. A cada movimento descobria mais peças e a sua ansiedade aumentava. Foi assim durante toda a hora que tínhamos para armar o quebra-cabeça. Ela colaborou com todos, uma peça para o meu modelo, uma peça para outro e assim chegamos ao quadro final. Uma cena tranquila, onde a harmonia da natureza transmitia alegria, mas os seus olhos não enxergavam esta alegria. Talvez pela nebulosidade das lágrimas que corriam silenciosas pela face. Quando ela começou a falar, tentei descobrir as suas necessidades e seu desejo. Conversamos e ela falou sobre a ansiedade, a busca de algo que ela não sabe o que é, e a espera de no final encontrar uma desgraça qualquer. Não consegui juntar as peças deste último quebra cabeça que me foi apresentado. Apesar de tê-la ouvido, me ocupado dela, não consegui diminuir a sua ansiedade.
Sinto-me ainda, impotente para armar modelos que relacionam comigo.
ROMPIMENTO Há três dias que não tomo o meu Rivotril, já não quero mais ser sedado, quero sentir todas a emoções e deixar fluir de mim as emoções também. Não me importa se eu chorar, já não tenho vergonha, se eu quiser gritar, por favor! Não me amordace, quero gritar um grito forte muito forte: Quando eu quiser sair por aí, caminhando, não acorrente os meus pés, eu preciso caminhar, tenho que cansar o meu corpo para depois deixa-lo relaxar esticado no chão da sala de visita. Há três dias que eu saí, há três dias que caminho, sem encontrar o caminho. Persigo a estrada que não me leva a lugar algum, as vezes paro, não para descansar, mas para falar com alguém que atravessa a linha do trem, ou mesmo para ver além do horizonte, o pôr do sol. Há três dias que não como, os verdes dos meus olhos já estão gastos e ainda não vi a esperança. O preto dos meus cabelos aos poucos vai dando lugar aos brancos que agora, já domina a cor natural. A barba que estava rala quando sai de casa, já está serrada e nas aguas sujas do rio já não mais reconheço o meu rosto. Há três dias que saí caminhando em direção à minha casa, e aqui estou, e só estava longe de casa dois quarteirões. Não sei como vim parar aqui, não quero retornar, nem sei se quero ficar, muito menos onde estou. II A favela, fica à beira do rio Arrudas. É aqui que eu moro.
Quando eu o vi pela primeira vez, ele estava quieto, ali, perto da bica onde eu lavo a minha roupa. Ele parecia ter sede, eu me aproximei devagarinho, com as mãos em forma de concha, levando-lhe agua; ele bebeu nas minhas mãos: Depois foi para o meu barraco, deitamos e fizemos amor, foi a primeira vez que fiz amor sem cobrar, sem ganhar dinheiro! Há três dias que ele está aqui comigo, há três dias que não saímos do quarto, há três dias que ele me conta histórias, me abraça e diz que quer ficar comigo. Há três dias que está tudo muito louco e muito bom! IV Há três dias que não vejo a minha mulher e minha filha, se eu pedir para vê-las, por favor! Não deixe. Não consigo aliviar a minha dor. Aos pouco o medo devora todo o meu corpo e eu continuo lúcido, busco no dicionário o significado da palavra consciência e percebo que sou uma pessoa agora, consciente. Estou consciente e isso me fere mais a carne, tenho consciência do pouco que sou, das minhas fraquezas, da minha ignorância, e do medo da vida. Tenho consciência do que acontece ao meu lado, do social e do político. Já sei caminhar com as minhas próprias pernas, já sei qual o caminho. Tenho sede e sei onde encontrar o poço, agora já não para nas encruzilhadas, sem saber qual o caminho certo, atravesso as linhas do trem e já não tenho o medo infantil de ser atropelado.
Algumas vezes, minha mão ainda treme, voltei a fazer uso do Rivotril. Penso neles, que me violentaram, me fizeram ver o verso e o reverso, me viraram ao avesso, e me mostraram o fundo. Sou muito grato a eles. V Hoje caminho pelo parque municipal de mãos dadas com a minha mulher e a minha filha, estamos alegres, brincando e ouvindo música. Temos consciência que hoje é domingo no parque. VI Talvez, amanhã eu tenha alta da terapia.
COMPARAÇÃO - Os teus olhos verdes, maiores que os meus pequenos olhos castanhos, são capazes de ver a cor da minha alma? -Não sei! São tantas cores que vejo fluir do teu o corpo que já não sei se somos corpos ou almas. -Tua voz calma, teus olhos, tua boca, tudo em ti me transmite um não sei quê, que me transporta para além de mim e penso que és só alma. O teu corpo é apenas um meio de transporte. -Qual a cor da minha alma? -Não sei, é tão mutável... é como o teu corpo, transmite tanta coisa que já não sei o que é real... Por que tens mais cabelos no peito que eu? Por que tremes quando corre minha mão pelo teu corpo? -Não sei, entre nós existe um mar. Não fales mais, me abrace e me faça feliz. Os movimentos agora são suáveis: braços, pernas, mãos e sexo procuram uma posição de descanso. Resta uma mão em um peito peludo, uma voz que sai de uma boca trêmula, velha e cansada. A mão caminha sobre o peito envolvida pelos cabelos e pelo novo chamado do sexo; -longe, muito longe, Gilbert Becaud canta ET MAINTENANT, - a voz menos cansada e ainda trêmula pergunta: Porque teus braços fortes são mais musculosos que os meus? - Não sei, talvez seja a raça.
Por que temos de estar aqui, agora? - Não sei, talvez... Leo, como se tivesse medo de alguém o estar observando, retira a mão do peito amigo e entra em estado de depressão, sufoca os gritos no travesseiro e tem nojo da vida. Com o corpo acariciado, os beijos sacando-lhe as lágrimas e o relaxamento gradual do corpo, Léo fica parado sem respirar; um só pensamento lhe ronda a cabeça: Por que?
FIGURAS DA NOITE De repente, ele encontrou-se na noite, o espetáculo o qual ele havia assistido terminara mais tarde do que havia previsto. O saldo do bolso, não dava para o táxi, só lhe restou caminhar à pé em direção à sua casa. Aos pouco ele percebia que gostava da noite, diminuiu a marcha e passou a observar à sua volta, seguindo sempre os anúncios de luz neon, ele entrou no primeiro bar, observou a prostituta que usava um vestido vermelho curto, permitindo que a calcinha, outrora branca, aparecesse dependendo do movimento das pernas. Pensou rapidamente na primeira prostituta que ele imaginou poder recuperar, retirando-a da zona. Com as lembranças lhe ocorrendo na cabeça, saiu do bar seguindo pela rua estreita e escura que daria para a beira do rio. Uma relação homossexual, surpreendida sobre o escuro da rua lhe fez acelerar a marcha, desviando a direção na primeira esquina. O policial caminhando em sua direção lhe causou medo, que só terminou quando este passou por ele sem ao menos ter percebido. Quando ele saiu do centro da cidade em direção ao seu bairro, a noite já cobria todos os movimentos do dia, só um homem mijando no poste, e a moça correndo assustada pareciam estar acordados, o resto era a escuridão, mas desta escuridão ele já não tinha medo, ele tinha luz própria.
UM CORPO CAIDO NO CHÃO - Seu moço, eu já não estou aguentando... -Espere um pouco, terminando de fazer este exame eu vou fazer o seu! - Mas seu moço, eu já não estou aguentando! ... Segure-o você que está acostumado com isto! Me disse a secretária. Quando tomei consciência, nos três já estávamos amparando a queda, era um rapaz novo, vinte anos mais ou menos, que entrava em crise de convulsão. Segurávamos as suas pernas, seus braços e amparávamos sua cabeça para amortecer a queda. Quando percebi eu também entrava em crise de convulsão, ao tentar segurar os seus braços que tremiam no ar. o meu corpo seguro era imóvel, mas meus pensamentos e minha mente se convulsionavam: Deus? Morte! Vida? É o grande mal? Pergunta o doutor. - Ele tem tido crises frequentes? - Duas ou três vezes esta semana! Diz a secretária. Ele está dormindo na rua; é do interior. O jovem parece que vai perder a vida, seu corpo se balança como se ouvisse música, sua cabeça parece que vai se soltar do corpo e sua boca abre-se como se fosse gritar: Deus! ... Eu já não sei o que fazer, não há nada para fazer, aumento a minha força que o comprime tentando parar o tremor infernal que nos faz balançar. Seu rosto clama paz, sinto que a crise vai passar, eu não sei o que fazer. Os seus braços e
pernas lentamente vão deixando de se debater, como se não adiantasse lutar, só a cabeça vai para frente e para traz como se marcasse um compasso de música. Pronto. Adormeceu. Deixamos o seu corpo caído no chão e fomos cuidar de outro paciente.
NATAL Ficou um gosto de batom na minha boca quando ela saiu. Era véspera de natal e eu fiquei olhando-a do portão caminhar em direção ao ponto de ônibus. Caminhava a passos curtos, eu só podia ver os seus movimentos, os pingos de chuva x embaralhava os meus olhos e sua imagem perpetuou em minhas memórias: Vestido brancocinza sobre um azul e vermelho colorindo os pingos de chuva que caiam da sombrinha ao chão, parecia que ela caminhava sobre um arco-íris. Fiquei pensando no nosso filho; bem que ele poderia nascer no natal, bem que ele podia vir nos tirar deste horror em que vivemos, bem que ele podia nos dar novamente a liberdade. Foi assim pensando, que vi uma estrela brilhar no meio da escuridão da chuva, quando o pessoal estourou em alegria e em sons de buzinas, alguns abraços e poucos fogos de artifícios. Cristo nasceu de novo, em 1977 numa pais subdesenvolvido da América do sul. Pouca coisa mudou desde a sua ressureição, a época é diferente, mas continua a mesma perseguição, ele nasceu em um dos buracos de metro, ainda é difícil uma vaga nas maternidades deste país para os indigentes, não havia animais em sua volta, não havia reis magos e só caminharam em direção das obras do metrô alguns estudantes com fachas em prol das liberdades democráticas.
Já fazia tempo que ela tinha saído e eu fiquei bebendo um Martine e pensando na morte da Clarice Lispector, tanta gente boa para morrer, e logo ela que o câncer veio buscar, pena que não poderei levar flores. Lá fora, o cristo crescia e mais adiante o novo Herodes caminhava em sua busca, em nome da segurança nacional. Ela não voltou para casa, fiquei sozinho aquela noite.
A MORTE DA ABELHINHA GAY NA TERÇA FEIRA DE CARNAVAL Primeiro, Nelson, escolheu a cor da sua escola, Verdebranco. Imaginou por toda a noite a fantasia que construiria, o que seria? Um animal? Novamente a fantasia de Baiana com a qual no ano passado fez sucesso no carnaval de Juiz de Fora? Não! Nelson, o gay do bairro, queria renovar. Aqui em Belo Horizonte teria de ser uma coisa nova, diferente de todas as outras fantasias. Levantou-se da cama, onde sonhava com a avenida, caminhou até a frente do espelho do seu quarto enrolado com a toalha de banho e rebolando para o espelho, imaginou como seria bom ter uma fantasia que mostrasse toda a força do seu corpo gordo, sua nádega saliente, aquele corpo roliço, com algumas exuberâncias. Em princípio, após muito rebolar, pensou n'uma borboleta titubeando levemente pela avenida arrancando aplausos da plateia. Não, resolveu, daria muito trabalho para ser confeccionada na véspera do carnaval, a batalha do galo, já seria no próximo dia, tinha que pensar em alguma coisa prática e de fácil confecção. Abrindo a gaveta do guarda-roupa da irmã, vasculhou toda a gaveta, encontrou todos os sonhos femininos da irmã, quando então, encontrou um colam verde, da cor da escola. A ideia cresceu sobre a sua cabeça. Tentou vestir o colam que por ser um número menor do que o seu manequim, custou a entrar. Após várias tentativas de vestir o colam,
quando conseguiu colocou-se frente ao espelho e qual não foi a sua surpresa, ao movimentar-se, dançando, usando toda a parte saliente do corpo, o espelho reproduziu a imagem de uma abelhinha, só faltava alguns adereços. Continuou vasculhando a casa, agora à procura dos adereços. Abelhas têm partes pontudas sobre as nádegas, pensou, e não hesitou! Com três jontex coloridos do pai, providenciou as bolas que dariam mais exuberância as suas nádegas. As antenas foram fáceis de arrumar, sua irmã menor sempre brincava com algumas que ganhara de presente. Uma maquilagem carregada, fazendo sobressair os olhos, e a boca, Nelson, mirou-se no espelho e contemplou a beleza de sua criação. Uma abelhinha, verde-branco, um digno destaque para a sua escola de samba. Não contou nada para a sua turma, e já na terça feira, saiu de casa tranquilo vestindo a sua abelhinha, abelhinha sonhadora, que ele chamava sorrindo, ao caminhar rebolando em direção da avenida. No caminho encontrou alguns transeuntes que sorriam, brincando e querendo passar a mão nos preservativos que de tanto serem tocados, já estavam prontos para estourar. Rebolando, querendo retirar mel de todos os homens que passavam no seu caminho, seguiu a nossa abelhinha. Chegando ao local da concentração das escolas, o sucesso foi total e Nelson, a abelhinha gay, entrou na passarela sob vaias e aplausos. Os quarenta minutos que a escola tinha para desfilar, foi sublime para Nelson, sucesso total da ala gay da Escola de Samba GRES do Palmital.
Quando a escola terminou o desfile, Nelson, estava cansado, como todos os outros das quarenta alas da escola, que foram disseminando pela cidade, e Nelson ficou sozinho, cansado pela dança e pelo sucesso da ala gay. E foi assim cansado, que ele começou a ouvir as piadinhas que vinham de todas as direções da rua: - Olha a abelhinha gay; vamos furar os balões dela; vamos tirar a roupa dela! Nelson assustado, correu, apesar dos saltos de cinco e meio centímetros nos pés. Não conseguiu correr muito, logo os meninos, os pivetes, o atingiram com pedras, furando os balões, puxando o colam, rasgando a sua fantasia. Já sem forças para correr, Nelson, deixou-se deitar no passeio mais próximo da avenida, enquanto rapazes mais velhos juntavam' a sua volta gritando slogan machista: "Fora com as bichas" "Fim das alas gay" "Abaixo a pouca vergonha" Nelson, com sacrifício, conseguiu levantar-se e procurou abrigo, pois já estava com a boca sangrando e com dores abdominais. No meio do desespero, Nelson, conseguiu aproximar-se de um carro parado a sua frente, com quatro pessoas dentro, pede socorro e é levado para o interior do veículo. O chofer lhe dirige a palavra: Nós estávamos observando você, desde a sua casa, por isso, resolvemos lhe ajudar". O chofer deu a partida no carro e foram para um local deserto no alto da avenida. Chegando lá, o atiram para fora do carro e o obrigaram a dançar. Cambaleando, Nelson - a abelhinha gay - dançou, dançou até cair. Depois os homens perguntaram para Nelson, se a abelha gostava de mel, e antes mesmo que ele respondesse, foram lhe enfiando goles de cachaça pela boca, retiraram a sua roupa
e os quatros o estupraram enquanto lá em baixo ouvia-se o samba-enredo da escola que venceu o desfile. No jornal do dia seguinte, a manchete da página policial é "Encontrada morta a abelhinha gay, que durante o desfile de ontem enlouqueceu os foliões".
*Esta é uma obra de ficção.