OS LÍDERES TRAIDORES DO POVO E A LIDERANÇA DE JESUS BORTOLINE, José - Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades - Paulos, 2007 * LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL * ANO: B – TEMPO LITÚRGICO: 16° DOM. COMUM - COR: VERDE
tempo. Pastor autêntico, Javé vai reconduzir seu rebanho às pastagens, multiplicando-o e dando-lhe líderes que não traiam o povo 1. As três leituras deste domingo estabelecem o confronto e (cf. evangelho, Mc 6,30-34). mostram as contradições entre os líderes traidores do povo e a liderança de Jesus. Na 1ª leitura (Jr 23,1-6), após acusar e “cui- 8. É muito fácil saber se a autoridade tem aprovação divina ou dar” dos traidores do povo, Deus entra em plena “campanha elei- não: basta olhar o que ela faz pelo direito e justiça. Se não age toral” a favor das lideranças populares que façam valer o direito e assim, em benefício do povo, não merece apoio nem confiança, a justiça. No evangelho (Mc 6,30-34), Jesus se revela o verdadei- ainda que se declare religioso de corpo inteiro e afirme que está a ro líder que cria o mundo novo a partir dos pobres e marginaliza- serviço dos despossuídos. Isso porque as lideranças que não dão dos. Inicia com eles o novo êxodo para a sociedade justa e frater- prioridade ao direito e à justiça são filhos ilegítimos do rei Davi na. A 2ª Leitura (Ef 2,13-18) reflete sobre as ações de liderança (v. 5). do Cristo: sua morte realizou a paz e a unidade das pessoas entre 9. O texto de hoje termina salientando as obras do novo líder si, e a plena comunhão destas com o Pai. que Deus suscitará: vai trazer segurança e salvação para o povo. Sua identidade (nome) é “Senhor, nossa justiça” (v. 6). Ele vai II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS instaurar a justiça que Javé e o povo desejam ver realizada no 1ª leitura (Jr 23,1-6): Líderes traidores do povo país. Esse nome contrasta com o de Sedecias, rei fantoche que 2. Este oráculo de Jeremias contra os líderes políticos traidores Nabucodonosor instalou em Judá. das esperanças populares situa-se provavelmente no tempo do rei 10. O oráculo de Jeremias a respeito de um filho legítimo de Sedecias, que governou Judá de 597 a 586 a.C. É, evidentemente, Davi, capaz de fazer valer o direito e a justiça no país, permaneum texto a favor da monarquia, tentando salvá-la, achando que ceu um oráculo aberto para o povo de Deus, aguardando sua “ainda tem jeito”, ao contrário do movimento (minoria), em granrealização. Para nós, cristãos, ele se realizou em Jesus e em sua de parte do Antigo Testamento, contrário à concentração das atividade libertadora: “Jesus viu uma multidão numerosa e teve liberdades e das vontades nas mãos de uma pessoa (rei) ou de compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (cf. evangeuma elite. lho, Mc 6,30-34). 3. No ano 597 a.C. Nabucodonosor, rei da Babilônia, entrou em 11. Há pessoas que sentem arrepios quando ouvem falar da diJerusalém, prendeu o rei Joaquin e o mandou exilado para a Babimensão política da mensagem de Jesus, como se, respeitando os lônia. É a primeira deportação da população de Jerusalém. No limites do seu tempo, não tivesse sido “homem político”. O evanlugar de Joaquin, Nabucodonosor pôs Matanias, mudando-lhe o gelho que vem em seguida ajuda nessa direção. nome para Sedecias (nome que significa “Javé é a minha justiça”). Esse detalhe é importante porque no v. 6, final do texto de Evangelho (Mc 6,30-34): Jesus, verdadeiro líder que conduz à hoje, Jeremias anuncia que o novo líder fará justiça, mas não a vida justiça do tirano Nabucodonosor, e sim a que o povo quer e espe12. Os cinco versículos propostos pela liturgia deste dia adquira. Por isso o novo líder se chamará “Javé é a nossa justiça”, a rem cores mais vivas se os lermos relacionados com o que os justiça que Javé e o povo querem. antecede e também com o que vem depois. De fato, entre o envio 4. É sob o pano de fundo da primeira deportação, da incompe- dos discípulos em missão (6,7-13; cf. evangelho do domingo tência das lideranças políticas do país e da prepotência de Nabu- passado) e a volta dos mesmos (evangelho deste domingo), Marcodonosor que se crê o justiceiro de Deus, que vamos entender o cos inseriu o relato do martírio de João Batista (6,14-29). Herooráculo contra os pastores, isto é, contra os líderes políticos do des, que sintetiza o poder opressor, é um líder político que trai as povo de Deus. expectativas e esperanças do povo sofrido, matando João Batista, a voz dos sem voz. Mais ainda: Herodes celebra a festa da vida 5. Os reis de Judá (e de Israel também) traíram as esperanças (seu aniversário) com os poderosos; mas, para ele, viver significa populares e incompatibilizaram com Javé. Os vv. 1-4 empregam a condenar à morte quem defende o povo. Ele celebra a festa da metáfora do pastoreio. O dono do rebanho é Deus; os pastores são vida matando as esperanças e lideranças populares. É dentro as lideranças políticas; o rebanho é o povo que Deus confiou às desses antecedentes que Jesus aparece como líder do povo sofrilideranças para que o pastoreassem com justiça. Tarefa dos pastodo, compadecendo-se dele. Com ele Jesus celebrará o banquete da res era não deixar se perder nem dispersar o rebanho mediante vida, saciando a fome do povo (é o que vem depois dos versículos administração séria e eficiente, na qual fossem preservados o contemplados na liturgia deste domingo). direito e a justiça no país (v. 5), como fez o rei Davi. O que as lideranças fizeram, porém, foi deixar se perder, dispersar e inclu- a. Situação dos discípulos e situação do povo sive expulsar (v. 2; o Lecionário traduz “afugentar”) o rebanho 13. Os discípulos retornam da missão e prestam contas a Jesus que pertence exclusivamente a Deus. (v. 30). Fazem com ele uma avaliação do trabalho: prestam contas 6. Através de Jeremias, Javé põe nas lideranças políticas a culpa do que fizeram (cf. 6,13: expulsar muitos demônios e curar muipela deportação da população de Jerusalém. O raciocínio é o tos enfermos) e ensinaram (cf. 6,12: pregaram que todos se conseguinte: não é o poderio militar de Nabucodonosor a causa da vertessem). deportação. É, sim, a má administração do direito e da justiça por 14. Tem-se a impressão de que a missão possa durar apenas parte das lideranças, pois ela faz o povo enfraquecer, desunir e poucos dias. O próprio Jesus convida os discípulos para irem a perder a fé. Nós hoje cantamos “Povo unido jamais será vencido”. um lugar deserto, a fim de descansar um pouco. A situação dos Se as lideranças não lutam pelo direito e justiça, seu descaso discípulos é de intensa atividade: “Havia tanta gente chegando e deseduca o povo e enfraquece a resistência. É por isso que os saindo que não tinham tempo nem para comer” (v. 31b). É a líderes políticos do tempo de Jeremias eram traidores do povo! É mesma situação enfrentada por Jesus (cf. 3,20). Como o Mestre por isso que Javé vai “cuidar” deles. Os traidores do povo que se (cf. 1,35), eles também precisam retirar-se para um lugar solitário cuidem! (6,31a). 7. Os vv. 3-4 acenam para a esperança. O exílio não é a última 15. A situação dos obreiros não é tranqüila. Mas a do povo chega palavra, nem a tirania de Nabucodonosor continuará por muito a ser insuportável: “Eram como ovelhas sem pastor” (v. 34) e, I. INTRODUÇÃO GERAL
mais ainda, é a situação de gente que chegou ao extremo da exploração, a ponto de nada ter para continuar vivendo (6,36). Os discípulos, pelo menos, têm o que comer; falta-lhes tempo. O povo não tem o que comer! Os discípulos precisam descansar um pouco, mas os que vão e vêm, necessitados, são muitos (v. 31). Ao descer da barca, Jesus vê numerosa multidão (notar como o trecho insiste no contraste entre o pouco e o muito).
traidor do povo e assassino das lideranças populares. Herodes, nunca mais! 1ª leitura (Ef 2,13-18): A liderança de Cristo na história
21. Os caps. 2-3, aos quais pertence o texto de hoje, formam o núcleo teológico de Efésios. 2,13-18 mostra a função de Cristo na história em benefício de todos. Dirigindo-se a pagãos convertidos ao cristianismo, o autor dessa “carta” mostra-lhes o que Cristo fez 16. Jesus e os discípulos partem, de barco, para um lugar deserto por eles. e afastado (v. 32), mas muitos os viram partir e, a pé, chegam lá antes. Os estudiosos quebram a cabeça para entender o fato: como – Com sua morte, Cristo trouxe para perto os gentios que viviam puderam, a pé, chegar antes? E inventam uma série de hipóteses. afastados de Deus (v. 13). Todavia, essas hipóteses em nada ajudam porque não levam em – Ele derrubou o muro que separava judeus de pagãos (v. 14). O conta o fato de que um povo necessitado e empobrecido corre autor certamente está pensando no Templo de Jerusalém: havia sem cessar em busca de esperança; ignoram que Marcos gosta de um átrio para os judeus e outro para os gentios; estes não podiapresentar Jesus no meio das multidões sofridas (é aí que ele se am entrar no recinto reservado aos judeus. Com isso acreditavasente “em casa”). As necessidades do povo sofredor são maiores e se também num Deus racista que permitia segregações. Mais mais urgentes que as dos discípulos. Por mais cansados e sem ainda: a separação existia em função da “pureza ritual e cultual” tempo que estejam os obreiros, há sempre numerosa multidão (para agradar a Deus era necessário discriminar). Com Cristo, para ser ajudada e libertada. tudo isso acabou. Em sua própria carne derrubou o muro da ib. Jesus é o verdadeiro líder que conduz à liberdade e à vida nimizade e do ódio.
O povo não suporta mais o peso da opressão. As lideranças – Anulou a Lei com suas prescrições (v. 15a). Também a Lei, por políticas (Herodes), em vez de devolver esperança ao povo, ma- causa do legalismo rabínico, tornou-se um muro que impedia tam o porta-voz (João Batista). Por isso o povo sai de todas as aos gentios o acesso à vida. cidades para um lugar deserto. A saída das cidades (onde vigora o – Criou, em si mesmo, de dois, um só Homem Novo (v. 15b). O regime de Herodes) rumo ao deserto recorda o êxodo do Egito autor da “carta” atribui a Cristo, enquanto único mediador, a (onde o sistema faraônico ceifava vidas) em direção ao deserto, obra da nova criação, cujo resultado é o Homem Novo, sem para daí atingir a terra da promessa. discriminações raciais ou culturais. 18. É nesse lugar deserto que Jesus, o novo líder, encontra o – Reconciliou com Deus um e outro (v. 16), isto é, por sua morte povo sofrido e se interessa por ele. O primeiro gesto de Jesus é na cruz, estabeleceu a reconciliação das pessoas com Deus e compadecer-se dessa gente esmagada pelos traidores do povo. dos povos entre si. Na antiga aliança, a reconciliação era baseaMarcos emprega quatro vezes esse verbo, sempre referido a Jesus da na relação judeus-Deus. Na nova aliança, o Homem Novo é (1,41: leproso; 6,34; 8,2: fome; 9,22: possessão). É a reação típica essencialmente um ser-com-os-outros. A comunidade cristã não de Jesus diante dos sofrimentos das pessoas, provocados pela é mistura de judeus e pagãos; pelo contrário, é Homem Novo, exclusão social. nova criação, algo totalmente novo e diferente (cf. Gl 3,28). 19. Ele se compadece porque “eram como ovelhas sem pastor”. – Ele veio e anunciou a paz aos que estavam longe (gentios) e aos Mateus e Lucas, nas passagens paralelas, omitem essa expressão. que estavam perto (judeus, v. 17). Por três vezes a “carta” relaÉ sinal de que, para Marcos, ela tem valor especial. Se formos ciona a paz à ação do Cristo: v. 14: Ele é a nossa paz; v. 15: Ele pesquisar o Antigo Testamento, encontrá-la-emos, entre outras fez a paz; v. 17: Ele anunciou a paz. A paz é supressão da inipassagens, em Nm 27,17, 1Rs 22,17 e Ez 34,5. Aí se trata sempre mizade ou ódio (vv. 14,16) que segrega e marginaliza. A paz é da falta de liderança capaz de conduzir o povo para a posse da dom messiânico por excelência. Jesus destruiu tudo o que é siliberdade e da vida. Como Javé, Jesus se compadece e assume a nal de injustiça, pois a nova aliança faz cair as barreiras das soliderança dessa gente sofrida e oprimida por líderes traidores do ciedades classistas com suas leis injustas e discriminadoras. povo. Marcos, com essa expressão, quer sublinhar que Jesus é o líder que conduz os pobres na construção da nova sociedade. Aí – Ele é o caminho que nos leva ao Pai (v. 18; cf. Jo 14,6). Jesus é começa o mundo novo (o Evangelho de Marcos tem muitos co- o caminho enquanto revelou e pôs em ação o projeto de Deus, meços: cf. 1,1; 4,1; 6,7; 8,31). Jesus começa a ensinar-lhes muitas destruindo tudo o que não favoreça a vida para todos. No Espícoisas. rito da nova aliança, as pessoas compreendem e vivem a paternidade universal de Deus. 20. Marcos não diz o que Jesus ensina. Isso porque o ensinamento dele é conduzir as pessoas à prática da novidade do Reino. 22. O trecho que examinamos, portanto, fala da liderança única Concretamente, o ensino de Jesus é o que vem a seguir, ou seja, a de Cristo na história. Sua morte na cruz e sua ressurreição trouxelição da partilha dos bens da criação, sem que ninguém fique ram a plenitude da história (cf. 1,10), realizando a unidade das excluído ou continue passando necessidade. A partilha, o banque- pessoas entre si, no Espírito, e a plena comunhão destas com o te da vida, é a grande doutrina que ele apresenta. Quem aprendeu Pai. desse líder, nunca mais desejará voltar ao domínio de Herodes, o 17.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO 23. Os líderes traidores do povo e a liderança de Jesus. Esta é a síntese das leituras de hoje. Esses textos ajudam a criar uma consciência política para uma cidadania plena. Quais as lideranças políticas que estão traindo o povo? O que prometem – o que fazem? Merecem a confiança do povo? Quem, hoje, está matando as esperanças e lideranças populares (sindicalistas, agentes de pastoral) e com que meios? Quem está levando o povo “para o exílio”? Como Cristo, no seu tempo, se posicionou diante dos traidores do povo? Como os cristãos, hoje, tomam posição e se organizam diante dos líderes que traem as expectativas de direito e de justiça?