Como dois gaúchos ministros de sarney viram eleição de tancredo há 30 anos

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Como dois gaúchos ministros de Sarney viram eleição de Tancredo há 30 anos Texto: Bruna Zanatta (5º semestre), Júlia Bernardi (5º semestre) Foto: Pedro Scott (4º semestre), Frederico Martins (7º semestre) Com um dos capítulos da cobertura sobre os 30 anos da redemocratização do Brasil, o Editorial J foi em busca de histórias de dois políticos gaúchos que participaram ativamente da transição do regime militar (1964-1985): o ex-senador Pedro Simon e o jurista Paulo Brossard de Souza Pinto. Já doente quando concedeu uma de suas últimas entrevistas, Brossard morreu no dia 12 abril, precipitando a publicação da conversa mantida com a repórter Júlia Bernardi. Simon recebeu a repórter Bruna Zanatta no seu último dia como senador da República, em 31 de janeiro. Para marcar os 30 anos da morte de Tancredo Neves, lembrados no dia 21 de abril, o Ediorial J republica a entrevista com Brossard e apresenta o depoimento inédito de Pedro Simon. Ambos falam sobre as dificuldades daqueles dias de instabilidade política, dizem o que poderiam ter ocorrido de diferente se Tancredo pudesse ter assumido a presidência e contam bastidores daqueles dias em que o Brasil começava a se livrar do autoritarismo. Leia as entrevistas a seguir: Simon: “Desde o governo Sarney, a pressão dos militares não existiu”


Fazia 32ºC naquela sexta-feira de verão. A freeway já registrava fluxo intenso em direção ao Litoral. O final de semana prometia ser de muito calor. Em Porto Alegre, Pedro Simon também se encaminhava ao merecido descanso. Desta vez, de forma definitiva. Após 63 anos na política, era o seu último dia de vida pública. No sábado, 31 de janeiro, ele deveria entregar o cargo que ocupou durante 32 anos a Lasier Martins (PDT), eleito em 2014. Na hora marcada, o ainda senador aparece à porta do edifício em que mora, no número 2.584 na Avenida Protásio Alves, e convida: “Vão subindo, vão na frente”. Ele sobe os três lances de escada lentamente, com o auxílio do corrimão. Chegando à sala iluminada que escolhe para a entrevista, Simon liga o ar condicionado e vai em direção à cozinha. Quando volta, tenta equilibrar quatro copos de vidro que trazia abraçados junto ao corpo. Pede ajuda: “Não estou acostumado a servir, meu assessores estão sempre por perto”. Enche os copos com água. Senta no sofá e espera a primeira pergunta com a tranquilidade de quem já fez isso provavelmente milhares de vezes. Com mais de seis décadas na política, algumas características de seu discurso são bem conhecidas. As pausas dramáticas entre uma ideia e outra, o partido que ainda chama de MDB, o olhar pra baixo ao articular as ideias. Simon foi um dos fundadores do único partido de oposição ao regime militar, o Movimento Democrático Brasileiro, que com a redemocratização passou a chamar-se PMDB. No Senado Federal, ajudou a escrever aquela que considera a página mais bonita da história do Brasil: a luta pela democracia. Com a vitória no Colégio Eleitoral em 1985, a batalha parecia ter terminado, e Tancredo Neves começava a preparar seu governo. Um dia antes da posse, que aconteceria em 15 de março de 1985, o mineiro foi internado com dores abdominais, e o vice-presidente eleito, José Sarney, assumiu o cargo interinamente. Em 21 de abril de 1985, o otimismo se transforma em insegurança. Tancredo morreu justamente no feriado que homenageia a morte de outro mineiro, Tiradentes. O desafio de arquitetar o primeiro governo pós ditadura, que já era grande, ficou ainda maior. Nos bastidores, o clima era de incerteza. Como garantir que o duro regime chegaria ao fim nas mãos de Sarney, o homem que esteve à frente da Arena, partido dos militares? Durante a conversa, Aladim, o buldogue francês do filho mais novo de Simon entra na sala, ronda o sofá, repetindo a rotina de todos os dias. É mais um dia típico naquele apartamento da Protásio Alves, que passar a ser um dos locais de descanso do homem que comandou a pasta da Agricultura naqueles dias em que o Brasil buscava reencontrar o caminho da democracia. Neste entrevista exclusiva ao Editorial J, Simon comenta alguns episódios de um dos períodos mais tensos da política brasileira: Editorial J – O senhor testemunhou um dos momentos mais dramáticos da história política do Brasil: a morte de Tancredo Neves, que seria o primeiro


presidente civil depois da ditadura. O que o senhor pode revelar daqueles dias e das decisões que levaram à posse de José Sarney? Pedro Simon – O Colégio Eleitoral foi feito pra fazer de mentirinha uma manutenção da ditadura. Mas as coisas foram tão erradas, o povo estava tão revoltado com todo aqueles 21 anos de absurdo, que aconteceu o que muita gente não acreditava. Para o Tancredo ser eleito, precisávamos de alguns votos da Arena conosco. E o Sarney era o grande partícipe dessa campanha. Com a divisão que houve, tivemos uma vitória espetacular. Chegou o dia em que deveria assumir o Tancredo Neves. Estávamos todo preparados, eu seria ministro da Agricultura. Eram 22h quando fomos chamados ao Hospital de Base de Brasília. Eu estava na festa da Embaixada da Argentina, e o Ulysses (Guimarães) [durante toda a entrevista Simon se refere a Ulysses como doutor] me ligou: “Venha pra cá. Assunto urgente”. Estávamos num quarto do hospital e do outro lado da porta estava Tancredo com a junta médica, tinha tido uma crise de diverticulite e precisava ser operado imediatamente. Ele vinha sofrendo disso mas enganou todo mundo. Ninguém sabia. Ele não queria ser operado, de jeito nenhum. Ele queria deixar pro dia seguinte. Queria tomar posse às 9h e depois fazer a cirurgia. A imprensa dizia que (João) Figueiredo [último presidente do período da ditadura militar] não passaria o cargo para Sarney. Discussão vai, discussão vem, convenceram o Tancredo a ser operado. Eu achava que quem deveria assumir era o Ulysses, que era o presidente da Câmara do Deputados. Mas (general designado para ser) o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, disse: “Não. Quem assume é o Sarney. Li a Constituição, compete ao vice-presidente assumir a presidência em caso de morte, doença, viagem, turismo, férias, em todos os casos”. E o Ulysses, que estava naquela coordenação, disse: “Também acho. Quem deve assumir é o Sarney. E assunto encerrado e não se fala mais nisso”. O ministro e o Sarney saíram, foram embora e ficamos nós ali. Daí Ulysses vira pra nós e diz: “Não temos um esquema montado pra garantir a posse do Tancredo? Pois é, e quem é que comanda esse esquema? O ministro do Exército, que acabou de sair daqui. Nosso Tancredo vai ser operado. Quem assume? Ele vem aqui e diz que quem assume é o Sarney. Aí vem o Simon e diz ‘não, quem assume é o Ulysses’ e o Leônidas resolve ‘não. Quem assume sou eu’. Com o exército, garanto que vai se manter”. Todo mundo concordou, e o Sarney assumiu. Foi dura aquela posse. Sarney foi muito bacana, leu o discurso do Tancredo, disse que estaria ocupando o cargo interinamente. Até que no dia 21 de abril Tancredo morreu com sete cirurgias por tudo que é lado. Essa é a história. Justiça seja feita, os compromissos que tínhamos na eleição de Tancredo, com as Diretas Já, foi cumprido, fim da tortura, liberdade de imprensa, Assembleia Nacional Constituinte, os nossos princípios foram cumpridos, e o Brasil viveu uma época importante.


Editorial J – Como foram os primeiros momentos e as ações desse governo que começou de forma tão frágil e, de certa forma, com problemas de legitimidade? Simon – Quando o Tancredo morreu decisões duras tiveram de ser tomadas. Fica o ministério, sai, não sai. Não me parece que poderia ter havido outra solução. Quando morre o Tancredo, o homem era o Sarney. Houve um determinado momento, porém, que a gente achou que deveria dar liberdade ao presidente. Eu, por exemplo, saí. Assim como muitos saíram. A partir dali, houve uma primeira divisão, dos ministros que ficaram com o Sarney e dos que, como eu, não ficaram. Não foi um governo fácil. Teve um momento em que Sarney foi endeusado, com o Plano Cruzado. De repente o dinheiro no bolso passou a valer 20% mais. Todo mundo ficou feliz da vida. Os fiscais de Sarney iriam fiscalizar o supermercado. Depois, deu tudo errado e ele passou a ser odiado. Foram momentos difíceis. Editorial J – A sociedade civil estava desorganizada, os movimentos sociais, engessados. Como foi possível reorganizar a democracia depois de um período tão duro quanto a ditadura? Simon – É difícil encontrar pelo mundo afora um país que tenha discutido, debatido e analisado tanto a Constituinte como o Brasil. Mas, lamentavelmente, na hora das grandes decisões, o Congresso não teve altura no momento que era ideal, por falta exatamente disso. Os grupos estavam constituídos, até ali, para restaurar a democracia, para terminar com a ditadura. E as grandes decisões eram essas: a anistia foi aprovada, as eleições diretas foram aprovadas, a reforma agrária, entre aspas, foi aprovada, o fim da tortura foi feito. Essas questões eram os grandes debates da sociedade. Mas o aprofundamento, como fazer a reforma econômica, realmente não estava preparado. Não estava em condições e nem tinha condições de chegar lá. Editorial J – A pressão dos militares continuou durante o novo governo? Simon – Posso garantir que não houve. Desde o governo Sarney, até hoje, pode ter acontecido muita coisa boa e muita coisa ruim, mas a pressão dos militares não existiu. Eles voltaram ao quartel, se retiraram e, durante esses 20 anos, não tiveram nenhuma interferência. Editorial J – O primeiro governo pós ditadura teria sido muito diferente se tivesse saído como o planejado, com Tancredo? Simon – Em primeiro lugar, Tancredo teria mais autoridade. Em segundo, era mais competente. Ele tinha sido ministro da Justiça no governo Getúlio Vargas, primeiro-ministro no governo de João Goulart. Ele tinha experiência, condições de fazer o trabalho que precisava ser feito. Ele não tinha aquele comprometimento do Sarney, que tinha ficado por


anos ao lado dos militares. Ele tinha a credibilidade de todos. Não faria um governo revolucionário. Não era um homem de coisas radicais. Mas ele faria um governo com coragem de condução. Ele teria coragem de fazer uma reforma agrária, não tão radical, mas uma reforma agrária. Tenho absoluta convicção de que faria uma reforma tributária e distribuição de renda. Não teríamos 32 partidos. Seria um país decente, com quatro ou cinco partidos. A causa de tudo isso que está acontecendo hoje são os partidos políticos. Trinta e três. Então tem que ter 39 ministros. A presidente precisar dar um ministério pra cada partido. É isso que acontece. Sinceramente, essas coisas não teriam acontecido se Tancredo tivesse governado. Editorial J – Os problemas econômicos seriam os mesmos. A solução seria diferente? Simon – Não seriam os mesmos. O Sarney deu certo com o Plano Cruzado. Foi uma maravilha. Mas ele não teve firmeza. Não fez as correções que deveriam ter sido feitas para ele ir se adaptando. Ele estava gostado daquela popularidade, daquele aplauso. Quando abriu o olho, o plano havia fracassado. Talvez o Tancredo não tivesse feito o que o Sarney fez para beijarem a mão dele. Seria um governo austero, responsável. Sarney saiu mal do governo. O Plano Cruzado fracassou, veio o Plano Collor, fracassou e deu impeachment. Aí veio o Itamar (Franco), um homem simples, singelo, mas fez o governo mais espetacular que eu vi. Ele colocou o Plano Real. Se o Tancredo tivesse assumido o governo, ele provavelmente teria que fazer o Plano Cruzado que nem o Sarney fez. Mas ele agiria de outra maneira. Itamar reuniu toda a gente dele e criou um plano, o Plano Real. Mas o plano não era milagroso, Itamar não virou Deus. Mas o plano funcionou tão bem que dura até hoje. Era um plano que se o Tancredo não fizesse, o Itamar faria seis anos depois. Tenho certeza disso. Os dois são da mesma escola e tinham as mesmas ideias. Editorial J – O Plano Cruzado foi primeiro plano econômico nacional em larga escala desde o fim da ditadura militar. Apesar de ter sido lançado alguns dias depois de o senhor ter deixado o Ministério da Agricultura para concorrer ao governo do RS, o senhor participou do seu planejamento e pôde prever as consequências do plano para a sua pasta? Simon – A gente não estava acostumado. Até então não tinha havido nada parecido. Um plano de impacto que cortasse três zeros, baixasse os preços dos estoques e valorizasse o salário era algo que o Brasil não conhecia. De certa forma, o que aconteceu foi realmente uma coisa interessante. Exagerada procura pelos bens de consumo. Foi isso que ele fez. E nós tivemos problemas, saiu a célebre frase na imprensa, “Ficais de Sarney estão abatendo as vacas no campo”. Os fazendeiros estavam escondendo as vacas porque os preços


tinham baixado. Isso pegou realmente de surpresa e foi uma das razões para a falta de adaptação e as dificuldades que o plano enfrentou mais tarde. Editorial J – Passados 30 anos desse período, da retomada da democracia, o que o senhor pode contar hoje e que na época não poderia revelar? Simon – O que pode ser revelado sobre o regime militar é a total falta de qualquer planejamento. Os militares não fizeram nada de concreto. A única coisa que eles fizeram foi a Itaipu. Era pra ser a maior hidrelétrica do mundo. Na minha opinião, poderiam ter feito uma menor, e as Sete Quedas não teriam desaparecido, não fosse 50% nossa, 50% do Paraguai. Não tiveram um plano de grandeza. Também não tinham nenhum compromisso com a honestidade ou a respeitabilidade. E como a imprensa não publicava, era um regime de terror, a gente nem ficava sabendo. Editorial J – O senhor teve conversas importantes com líderes históricos do Brasil. Há algum diálogo desse período específico que tenha lhe marcado? Simon – Quando as diretas não passaram, o Ulysses estava no seu gabinete, na presidência do MDB, despencado, quando a gente começou a discutir e analisar que poderíamos ir ao Colégio Eleitoral e havia uma consistência. O povo é que tem que nos mandar embora. O Ulysses disse que não queria ver isso acontecer. Mas o povo, para nós, os democratas do Colégio Eleitoral, se transformou no berço da libertação, com a vitória do Tancredo. Isso foi algo realmente positivo e democrático. A segunda também com o Ulysses, depois de aprovado o projeto que extinguia o bipartidarismo. Quando chegamos naquela votação na madrugada de sexta-feira pra sábado, foi rejeitado o MDB. Uma desilusão só, na véspera do encerramento das atividades do Congresso. O Congresso só voltava em fevereiro, todo mundo ia pra casa e, durante esse período, o governo iria formular a criação de 10 ou 12 partidos. O que nós vamos fazer? O Ulysses veio no meu gabinete e lançou a ideia do sucedâneo. Marcamos a data. Um domingo. O convite era para uma convenção que iria decidir o nosso destino. E as pessoas perguntavam, mas afinal o que é sucedâneo e o que não é? E no dia 15 de fevereiro surgiu o PMDB, foi acrescentado um P, a mesma coisa, e surgiu um partido de primeiro valor. Editorial J – Quando foi que o senhor sentiu que a democracia estava verdadeiramente restituída? Simon – Diria que na noite que antecipou a posse do Sarney já se sentia que se estava respirando um ar puro, como se a gente tivesse subido num monte, com a beleza do oxigênio. Isso a gente realmente sentia. Mas não deu pra sentir a plenitude, veio a paulada da doença e a paulada de assumir Sarney e não Tancredo. E aí a coisa foi indo, foi indo. Em 21 de abril, com a morte de Tancredo, piorou ainda mais. Quando começaram os


trabalhos da Constituinte também. Foi uma Constituição bonita, positiva, democrática, debatida abertamente. A vitória do Collor foi uma paulada também. Não dava pra saber o que era aquilo. Era alguma coisa. Depois ficou pro Itamar, que, na minha opinião, foi o governo mais positivo da história desse país. Editorial J – É possível apontar algum resquício da ditadura na sociedade atual? Simon – O Congresso Nacional, infelizmente, tem a representação do sindicato dos trabalhadores, de empresários, de generais, de médicos, de advogados, de professores, de tudo que se possa imaginar, de todas as categorias, mas o povo não tem representatividade. Quer dizer, as teses, os projetos andam lá. Se é professor, eles estão correndo. O que é de empreiteira eles estão correndo. Se é de trabalhador, eles estão correndo. Mas com os interesses da sociedade eles não estão preocupados. Isso é herança da ditadura. Este tempo todo em que estive lá, as duas grandes reformas positivas dos últimos tempos foram o mensalão, quando o Supremo teve competência pra botar na cadeia os que deviam ir, e a votação da emenda, aprovada por unanimidade no Senado, da Ficha Limpa (lei que restringe a eleição de políticos com condenações).

Brossard: “O que veio após a morte do Tancredo teve o peso das suas escolhas”


Aos 90 anos, o ex-ministro Paulo Brossard abriu as portas de sua casa para relembrar o processo de retomada da democracia no Brasil na década de 1980. Brossard foi consultor geral da República e, depois, ministro da Justiça durante quase três anos do governo José Sarney (1985-1990). Ele esteve ao lado de Sarney nos delicados momentos em que o país retomava o caminho democrático. Com a emblemática bengala em mãos, Brossard recebeu a equipe do Editorial J no mês de janeiro, mesmo com os problemas que debilitam a sua saúde. A dificuldade para falar contrastava com a voz firme, consagrada pelos inúmeros discursos no Congresso Nacional que exigiam dele a arte da argumentação. Apesar da fragilidade, recontou os momentos da carreira em que o pulso firme e a capacidade de decisão foram essenciais. Brossard conversou com a reportagem em uma quarta-feira de calor, com o termômetro chegando aos 35°C, em sua casa no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, rodeado por livros que se espalham para além do cômodo da sua casa onde instalou a biblioteca. A entrevista de duas horas teve de aguardar por duas semanas a melhora na saúde do ex-político. Em alguns momentos da conversa, precisou da ajuda da filha e médica, Rita Brossard de Souza Pinto, que auxiliou o pai a relembrar a história. O escritório não parece ser mais utilizado. Ele recebe os convidados na sala de jantar, logo após sua refeição, com a presença de empregados e cuidadores. A piscina da propriedade não é usada há muitos verões, mas o pátio ainda é local de lazer para o ex-ministro, que não se priva de alimentar os animais que voam até lá. No dia 12 de abril, complicação decorrentes do seu estado de saúdo fragilizado interromperam a trajetória de um dos homens públicos mais influentes do período de transição e afirmação da democracia. Confira a entrevista realizada no dia 28 de janeiro de 2015, uma das últimas do político e jurista: Editorial J – O senhor já sabia dos problemas de saúde de Tancredo Neves que culminaram na posse do Sarney? Como foi aquele primeiro momento? Rita Brossard de Souza Pinto – No momento da eleição do Tancredo Neves, o pai não estava em Brasília. Estava em Porto Alegre. Na véspera da posse, dia 14, tinha sido um dia muito quente e muito movimentado aqui em casa. A minha mãe também não estava na cidade e tudo terminou muito tarde. Fomos jantar com uns amigos no Restaurante Floresta Negra. No fim da refeição, estávamos todos conversando, justamente sobre a posse do Tancredo, que seria no dia seguinte. No fim, um garçom chega, fala algo ao ouvido do pai e o chama. Ele vai até a porta da cozinha e o pessoal estava escutando na rádio sobre a internação do Tancredo. Foi uma loucura.


Paulo Brossard – Quando chegamos em casa, o telefone estava tocando feito doido para saber minha opinião como constitucionalista, como seria, quem assumiria. Ligo a TV e só estava dando isso no plantão. Nas primeiras horas, dei uma longa entrevista e repeti: olha aqui, está na Constituição, o vice assume caso o presidente esteja impossibilitado de permanecer no cargo. Obrigatoriamente, minha visão é de alguém de fora do Congresso Nacional. Editorial J – Como foram os primeiros momentos do governo? Brossard – Sobre o primeiro ano de governo sou suspeito para falar porque fui ministro do Sarney, tinha sido meu colega no Senado, adversário também, porém sempre mantendo relações muito boas. E por isso mesmo ele me convidou. Havia uma tendência direta que eu deveria ser ministro da Justiça. Bobagem. Mas o fato, é que o Tancredo era espertíssimo, nas escolhas dele, como havia sido em toda a sua vida política. Editorial J – Como foi a aceitação do Sarney como presidente? Brossard – Tudo que veio após a morte do Tancredo teve o peso das suas escolhas. Os ministros, as alianças, tudo havia um peso em cima. Até poderia haver um medo de que os militares provocassem um novo golpe, mas nada explícito. A questão de ter trocado de partido foi o que permitiu que o Tancredo fosse eleito. Mas, nunca vi o Sarney se indispor com alguém para conseguir algo no governo. Editorial J – Se o Tancredo tivesse assumido seria diferente? Brossard – Essa é difícil (risadas), guria, mas o Tancredo era esperto como só ele. Editorial J – O ex-presidente Sarney pensou em renunciar, em meio à crise política que se formou com o projeto de estender de fixar em cinco anos o mandato presidencial dele na Constituição de 1988. Como foi aquele momento, o que o ex-presidente lhe dizia sobre a proposta? Brossard – Escrevi isso em um documento, que tenho guardado dentre tantos outros papéis. Várias pessoas, juízes, líderes disseram um ‘confirmo’. Fiz um relato histórico, coisa que devemos fazer, às vezes, para não esquecer. Essas pessoas confirmaram os fatos. Fiz isso umas duas vezes. A história se desenrolou mais ou menos assim: o Sarney tinha sido eleito por 6 anos. Ele propôs cinco anos, que era o prazo vigorante no regime anterior. Houve um movimento, dentro do Congresso, para que ele ficasse por quatro anos. Em uma conversa, ele me disse: ‘se isto for aprovado, eu renunciarei. Porque eu fui eleito por seis anos, segurei que fossem cinco e agora querem quatro? Eu não tenho idoneidade, não tenho condições para ser presidente, de modo que vou renunciar’. Dias depois, perguntei a ele se era uma ideia assentada ou uma hipótese. Ele me disse: ‘não, Paulo, renunciarei, me


sentiria sem créditos, sem autonomia para governar’. Então disse a ele: ‘bom, então tu vais me desculpar e eu não vou guardar segredo sobre isso. Só estou te comunicando. Há segredos que não são segredos, existem assuntos que são referentes ao Estado’. Procurei, então, quatro líderes dos partidos, entre eles Ulisses Guimarães, Jarbas Passarinho, e disse para eles: ‘Sou possuidor de um fato e, por ignorância, vocês podem cometer uma calamidade e eu tenho o direito de dizer, isso está acontecendo’. Contei a situação. Não estava fazendo ameaça, não faria isso, por respeito a todos. Comentei: ‘tive posse desse conhecimento e achei que era da minha obrigação repassar aos senhores. Não peço resposta aos senhores e nem segredo, cada um dos senhores tem que trocar meia dúzia de palavras com os cardeais dos seus partidos’. E aí foi admirável. Não obtive resposta e não se falou mais no assunto. São essas coisas que vamos aprendendo com a vida (o Congresso acabou mantendo os cinco anos de mandato, como pretendia Sarney). Editorial J – Por que era tão importante um ano a mais para o Sarney? Brossard – A questão não era um ano a mais. Se deixassem ele com quatro anos, ele disse que não teria condições para ser presidente. Ele achava que quatro anos era pouco também para realizar suas mudanças. Editorial J – Qual era o clima nesse período? Rita – Lembro-me dessa história, que é comigo, e não com o pai. Eu era colega de faculdade de Jornalismo do Antônio Brito e pensava: “Pobre dele, com toda essa loucura, usando palavras médicas que nem conhecia, com essa instabilidade no governo”. Dois ou três dias após a posse do Sarney, estava sozinha em casa, toca o telefone e era o presidente Sarney, pedindo pelo pai. Como ele não estava em casa, pedi o telefone do gabinete para telefonar. O Sarney me responde: “olha eu não sei qual é meu telefone, sempre alguém atende e passa.” Dava para perceber que estava tudo uma loucura. Editorial J – Como foi o convite para o senhor compor o governo? Brossard – Durante a organização do governo, não fui a Brasília para me insinuar, nem pedir nada. Tancredo sabia onde eu morava, meu telefone. Guazelli veio me convidar, aqui em casa. Agradeci, e ele se assustou com minha resposta: ‘não, não quero, sou feliz advogando’. Respondi a ele assim: ‘diz pro Tancredo que não pedi nada, que desejo exercer minha profissão, que me sinto mais independente assumindo minha profissão do que ficando na dependência do seu governo’. Tempo depois, veio o Tancredo a falecer e o Sarney telefonou para cá pedindo minha ajuda no ministério.


Editorial J – Quando o senhor percebeu que tínhamos alguma democracia consolidada? Brossard – No momento em que o Sarney me chamou para o governo, tive certeza de que a democracia estava instaurada e consolidada. Editorial J – Que resquícios da ditadura o senhor acredita que ainda estão na nossa sociedade? Brossard – Agora não relembro nenhum resquício específico, mas acredito que algo sempre fique.


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