Por um Pedaço de Terra ou de Paz - Crianças Refugiadas no Brasil

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Júlia dolce ribeiro

Por um pedaço de terra ou de paz - crianças refugiadas no brasil

Por um pedaço de terra ou de paz crianças refugiadas no brasil

Júlia dolce ribeiro



Júlia dolce ribeiro

Por um pedaço de terra ou de paz crianças refugiadas no brasil Orientador

Prof. Salomon Cytrynowicz


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / PUC-SP Faficla (Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes) Departamento de Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso

“Por um pedaço de terra ou de paz – Crianças refugiadas no Brasil”

Orientador Prof. Salomon Cytrynowicz Autora Júlia Dolce Ribeiro Projeto Gráfico Laura Viana

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) 2016 SÃO PAULO




Epígrafe “Uma vez, eu li que a decisão de emigrar nasce da necessidade de respirar.

É isso. E a esperança de uma vida melhor é mais forte do que qualquer sentimento. Minha mãe, por exemplo, decidiu que me saber em perigo longe dela, mas em viagem rumo a um futuro diferente, era melhor do que me saber em perigo junto dela, mas atolado no medo de sempre”, Existem Crocodilos no Mar – Fabio Geda/ Enaiatollah Akbari


“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.” Eduardo Galeano – O Livro dos Abraços




Agradecimentos Gostaria de agradecer primeiramente às mães, pais, crianças e adolescentes que me receberam em seus lares permanentes ou temporários e me permitiram mergulhar na sua história de vida por algumas horas, apesar de toda a desconfiança e adversidades. Gostaria que soubessem que me inspiraram profundamente com sua força. Agradeço a todas as amizades que fiz na PUC nesses quatro anos e que tornaram as manhãs muito mais significativas e agradáveis do que qualquer outro aspecto do curso e da universidade. Ana, Bia, Dre, Isabelle e Isabela, Ma, Nana, Vic, Alan e Thi, vocês foram e são um oásis. Agradeço especificamente ao Victor, pela amizade – que se tornou companheirismo e carinho – por aguentar tanta ansiedade em uma só pessoa e por me apoiar e acompanhar em visitas cruciais para a produção


desse TCC. Agradeço ao Samuca, por tirar meus pés do chão e insistir em um trabalho mais humano e cuidadoso, ao Mieli, pela atenção e discussões filosóficas sem fim, e à Anna Feldmann, por tudo que representa para mim e para esta universidade. À todas as mulheres que passaram e passarão pelo Coletivo Feminista 3 Rosas – que elas saibam de sua força e importância na minha trajetória e na de dezenas de outras estudantes. Por fim, agradeço a minha família, por estar disposta a se abrir para realidades até então desconhecidas e me proporcionar o privilégio de estudá-las.




Sumário APRESENTAÇÃO

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PARTE I Capítulo 1 – Introdução à Crise Humanitária e ao Refúgio

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Crise Migratória e Humanitária: teoria, análises e estatísticas

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O que são refugiados: Conferências e Tratados

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Desafios Presentes

45

Capítulo 2 – Brasil como Destino de Refúgio

53

Breve história do refúgio no Brasil

55

Processo de solicitação de refúgio

65

ONGs, Entidades e Abrigos

69

Estatísticas Atuais

77

Capítulo 3 – O Refúgio na Infância – Legislação e Dados

81

Situação das crianças no contexto atual da crise migratória: Tratados Internacionais

83

Legislação Brasileira: Direitos da criança refugiada

90

Dados sobre crianças refugiadas ao redor do mundo

98


Capítulo 4 – Vulnerabilidades da Criança Refugiada no Brasil

105

Implicações sociais do refúgio na infância

110

Implicações psicológicas do refúgio na infância

126

Políticas Públicas para crianças refugiadas

132

Exploração da imagem de crianças refugiadas na Mídia

142

PARTE II Capítulo 5 – Perfis de crianças refugiadas no Brasil (Agosto/ Setembro/Outubro)

153

As marcas e fronteiras das guerras dos outros

155

Caronas, lagartixas e o Cristo

169

As meninas que fogem de homens

187

A guerra é uma coisa que vem de cima até embaixo e derruba tudo

203

Desacompanhadas, juntas

217

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

233

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Apresentação “Gente que se mata por um pedaço de terra ou de paz” foi a definição que o estudante colombiano Juan Carlos Mejía, na época com 11 anos, deu para a palavra “guerra”. O trecho faz parte do livro Casa das Estrelas: O Universo Contado pelas crianças, uma espécie de dicionário feito pelo professor Javier Naranjo com um compilado de definições que seus alunos do ensino primário davam para palavras aleatórias. O livro de Naranjo inspirou tanto o título deste trabalho quanto a ideia de criar um dicionário próprio a partir das entrevistas das crianças em situação de refúgio. Tal ideia se somou a uma série de abordagens que foram pensadas para colocar em prática a ideia de contar histórias sobre conflitos armados, violência, imigração e refúgio, através da perspectiva das crianças que as viveram e vivem.

A motivação principal deste trabalho começou a se definir a partir 15


do impacto da comoção causada pela fotografia do menino curdo Aylan Kurdi, que morreu afogado em uma praia da Turquia em setembro de 2015, após tentar cruzar o Mar Mediterrâneo com a sua família, em fuga da guerra civil na Síria. O acontecimento foi uma espécie de divisor de águas para que o mundo ocidental ‘desenvolvido’ atentasse para a crise humanitária sem precedentes que vivemos, representada principalmente na imagem dos milhões de refugiados – dos quais, mais da metade, são crianças. Desde o início, as implicações éticas de entrevistar e divulgar relatos e imagens das crianças em situação de refúgio no Brasil se tornaram a principal questão desta pesquisa, frente à vontade incontornável de escrever parte do trabalho através de perfis, por acreditar na maior profundidade que o formato representa dentre as demais opções jornalísticas. Percebi que seria fundamental investir em alternativas para evitar entrevistas impessoais, descuidadas e sensacionalistas. Era necessário preservar ao máximo o conforto psicológico e a privacidade das crianças, ainda que os próprios pais estejam acostumados com a divulgação dos rostos de seus filhos nas redes sociais. Mas ao mesmo tempo é essencial ouvir a própria versão das crianças. Do entendimento de diversas(os) especialistas entrevistadas(os), que ressaltaram a recente, mas significativa exploração das imagens das crianças em situação de refúgio pela mídia, surgiu a ideia de pensar em abordagens alternativas e lúdicas para coletar o relato das crianças mais novas, que não passassem necessariamente pelo formato das entrevistas diretas.

Relatos no formato de desenhos, músicas, histórias e fotografias 16


tiradas pelas próprias crianças, bem como definições pessoais de conceitos complicados como ‘país’ e ‘refúgio’, foram algumas das ideias iniciais. Além disso, o plano de tentar me encontrar várias vezes com cada criança e adolescente foi muito importante para criar uma maior proximidade e confiança com as personagens e suas respectivas famílias. Por fim, os nomes das crianças foram trocados e as fotografias escolhidas não as identificam. Com o passar dos meses, percebi que não precisaria necessariamente escolher em qual formato pediria para cada criança se expressar, visto que em conversas breves elas já demonstravam seus principiais interesses artísticos. Dessa forma, com certa espontaneidade, consegui coletar vários desenhos, músicas cantadas com seus sotaques poliglotas, leitura de seus contos favoritos e definições surpreendente para termos geopolíticos. Lentamente, o formato deste projeto foi se adaptando à personalidade de cada criança, que passou e se apropriar dos respectivos perfis. Como percebeu com perspicácia uma das crianças sírias entrevistada, “esse é o seu primeiro livro e nem é você que está fazendo?”. Diante dessa possibilidade concreta de tomada da palavra por parte do outro, fica a esperança de que o jornalismo e a comunicação social no geral se tornem assim: cada vez mais nas mãos daqueles que tem muito que contar e denunciar, dos quais as vozes são sistematicamente sequestradas. Outra escolha importante tomada no início deste trabalho foi a de tentar abarcar crianças de diferentes nacionalidades. Isso porque, apesar do contexto atual corresponder ao maior fluxo migratório da história, existe um perfil de crianças e pessoas refugiadas que aparecem na mídia, geram comoção e ação social, principalmente pela sua empatia com o mundo ocidental, fenômeno que será ressaltado adiante. 17


Finalmente, é importante assumir que este trabalho foi conscientemente produzido em duas partes, que, de certa forma, se complementam e ao mesmo tempo diluem as suas fronteiras. A primeira parte, traz – com o suporte dos referenciais bibliográficos e das(os) especialistas entrevistadas(os), e a partir de uma problematização dos conceitos de Estado, nação e território e da associação do refúgio com a ideia de crise – uma problematização da realidade de vulnerabilidade que as crianças refugiadas vivem, apesar das ‘garantias’ do direito internacional e nacional. Na segunda parte, que traz os perfis com os relatos das crianças em situação de refúgio, as informações são passadas em caráter mais pessoal e lírico, na tentativa de humanizar as múltiplas estatísticas, teorias, artigos da legislação e posicionamentos englobados na primeira parte. Também é na segunda parte deste livro que acredito que o jornalismo, de fato, emerge: com personagens, sons, tecidos, cheiros e desconforto. Enfim, encontros.

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PARTE I

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Parte I Capítulo 1 Introdução à Crise Humanitária e ao Refúgio

CAPÍTULO 1:

Introdução à crise humanitária e ao refúgio 21



1.1. Crise Migratória e Humanitária:

teoria, análise e estatísticas

Em seu ensaio Muito Além dos Direitos do Homem, o filósofo italiano Giorgio Agamben disserta sobre o paradigma histórico representado pelos refugiados. No texto, Agamben discute as transformações no conceito de refúgio e no perfil dos refugiados desde a primeira grande ocorrência do refúgio como fenômeno de massa: o fim da Primeira Guerra Mundial. Antigamente o refúgio tinha principalmente um caráter religioso, até mesmo com regras definidas. Já existia, da Grécia Antiga à Idade Média, o conceito de refúgio concedido em templos e outros locais sagrados para pessoas que sofriam perseguições. Entretanto, somente a partir de 1918, com o fim da Primeira Guerra, teve início o deslocamento de centenas de milhares de habitantes de uma só vez, quando a população do Leste Europeu deixou seus países de origem por motivos que fugiam aos seus desejos e planos.

Mesmo que refugiados sempre tenham existido na prática, apenas 23


após a Segunda Guerra Mundial foi estabelecido um sistema internacional de proteção extraterritorial a eles, com a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, ocorrida em julho de 1951. Praticamente um século após o fim da Primeira Guerra Mundial, o fluxo migratório na Europa e no resto do mundo atinge proporções maiores do que os números da Segunda Guerra – até então os mais expressivos da história – sendo nossa época atual considerada a maior crise humanitária da história pela Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo dados do Relatório Tendências Globais, publicado pelo Alto Comissariado da ONU (ACNUR) em junho de 2016, até dezembro de 2015 havia 65 milhões de pessoas forçadas a se deslocar de seus países. Somente em 2015, o número de deslocados (12 milhões) duplicou em relação ao ano anterior, e os pedidos de asilo nos países da União Europeia (UE) chegaram a 1,25 milhão (em comparação às 562 mil solicitações do ano anterior), segundo um relatório divulgado pela Eurostat, agência de estatísticas da UE. O relatório também mostrou que no ano de 2015 foram aproximadamente 24 pessoas por minuto se deslocando involuntariamente de seus países. O processo de solicitação de refúgio envolve contextos geopolíticos e históricos extremamente complexos, realidades de potencial trágico e múltiplas burocracias. Centenas de refugiados morrem durante as viagens para os países destino, nas jornadas de deslocamento interno e nos campos de refúgio. De acordo com dados da Organização Internacional para Migrações (OIM), pelo menos 5.350 migrantes morreram durante a jornada em 2015, 3.771 deles tentando a travessia do Mar Mediterrâneo.

A Síria, em guerra civil desde 2011, é a origem da maior parte 24


dos refugiados no mundo hoje. Pelo menos um terço dos solicitantes de refúgio da UE são sírios, sendo 362,7 mil pedidos de refúgio dessa população apenas em 2015. O Afeganistão, o Iraque, a Eritreia e a Nigéria, atingidos por conflitos internos, igualmente representam porcentagens significativas do número total de refugiados. O problema da crise migratória, entretanto, pareceu ter ganhado atenção midiática e política no mundo Ocidental apenas com a busca de asilo em países Europeus. Os países vizinhos da Síria (Jordânia, Líbano e Turquia) vêm recebendo a grande maioria dos refugiados sírios desde o começo do conflito com o Estado Islâmico. A Turquia já recebeu mais de 1,8 milhão de exilados, o que corresponde a 2,3% de seus habitantes; a Jordânia recebeu 630 mil, ou 9,4% da sua população; e o Líbano, aproximadamente 1,2 milhão, 27,9% do seu censo. A dimensão dos conflitos geopolíticos, principalmente na África, Ásia e América Central é tal que, para pensadores como o próprio Agamben, coloca em cheque qualquer possibilidade de evolução civilizatória da humanidade, além dos prórios conceitos de Estado, como uma entidade com poder soberano sobre um povo e um território, e de Nação, como um agrupamento populacional unido por consciência nacional, tradições, território e costumes. “O refugiado é considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito-limite que põe em radical crise os princípios do Estado-Nação e, conjuntamente, permite conduzir o campo a uma renovação categorial contemporaneamente inadiável1”, reitera o filósofo.

Não apenas o problema se apresenta na Europa e fora 1 AGAMBEN, Giorgio. Al di là dei diritti dell’uomo. In: Mezzi senza fine: notte sulla politica. Torino: Bolatti Boringhieri, 1998, p. 20-29

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dela com igual urgência, mas, no declínio do EstadoNação, atualmente impossível de deter, e na corrosão geral das categorias jurídico-políticas tradicionais, o refugiado é, talvez, a única figura do povo pensável em nosso tempo e, ao menos até nos aproximarmos da complementação do processo de dissolução do Estado-Nação e de sua soberania, a única categoria na qual, hoje, consentimos vislumbrar as formas e limites de uma comunidade política que vem. (AGAMBEN, 1998, p.1)

“Um conceito limite” e “talvez a única figura pensável para o nosso tempo”, porque os refugiados representam, na sua essência, a falha de um sistema colonizador, de um modelo econômico capitalista e de um processo histórico que, para a menor parte da população mundial, foram não somente bem sucedidos como a razão para seu bem estar social. A condição do refugiado, em um processo de décadas, vem se tornando cada vez mais comum nos dias de hoje, enquanto a tríade Estado-Nação-Território perde gradativamente seu sentido. A crise migratória afetará progressivamente os aspectos políticos e sociais dos países, inclusive da América Latina, destino antes menos visado, mas que, desde 2014, viu suas solicitações de refúgio crescerem significativamente. A partir desse entendimento, a compreensão social da condição dos refugiados e dos contextos geopolíticos causadores da crise será cada vez mais importante e necessária para amenizar a vulnerabilidade, violência e discriminação, às quais as vítimas dos conflitos são submetidas durante o processo de refúgio e reintegração social em países de destino.

Nesse sentido, cresce a responsabilidade social, seja de 26


comunicadores, quanto educadores brasileiros na produção de material sobre a condição do refugiado contemporâneo, e principalmente sobre recortes de populações ainda mais vulneráveis A explosão da crise migratória atual se deu no segundo semestre de 2015, mais precisamente entre julho e setembro quando, nesse curto espaço de tempo, o Ocidente percebeu ser impossível continuar negando atenção às centenas de milhares de africanos e habitantes do Oriente Médio, que adentravam a Europa solicitando refúgio. Talvez o ponto decisivo para o reconhecimento europeu da crise humanitária seja a divulgação da fotografia do menino curdo Aylan Kurdi, encontrado morto por afogamento em uma praia da Turquia, após tentativa de travessia de barco para a Grécia, em 2 de setembro de 2015. Apesar de ter suscitado importantes debates sobre a exploração da imagem das crianças refugiadas, que serão levantados mais adiante, a publicação da fotografia de Aylan foi um marco na mobilização da opinião pública no sentido de , pelo menos, reconhecer a existência dos refugiados – principalmente no Brasil, levando em conta o grande distanciamento entre a população brasileira e o contexto da guerra civil na Síria ou do refúgio em massa. Desde então, a condição dos refugiados tem sido mais reportada pela mídia, mesmo que, na maioria das vezes, esta protagonize um desserviço para as entidades humanitárias e para o próprio reassentamento dos refugiados. Ao mesmo tempo, o número de refugiados e crianças refugiadas só aumenta. Exatamente um ano após a morte de Aylan Kurdi, uma reportagem do Estado de S. Paulo expôs que duas crianças refugiadas haviam morrido por dia no Mediterrâneo desde então.

Na Europa, o grande número de estrangeiros, em conjunto com 27


a crise econômica mundial, tem levado ao ressurgimento de grupos de extrema direita, neonazistas e xenófobos, que repudiam as decisões dos países da União Europeia de aumentar – ainda que minimamente – a capacidade de acolhimento para refugiados. A discriminação dos refugiados árabes e africanos cresce. Notícias que relacionam o aumento nas estatísticas de violências como estupros e assaltos nos países europeus com a chegada dos refugiados colaboram para o preconceito que essas pessoas sofrem, além de desviarem o foco da violência sofrida pelos próprios refugiados, tanto em seus países de origem quanto nos locais onde se refugiam. Os ataques sexuais ocorridos em cidades da Alemanha durante a véspera do Ano Novo de 2016 foram diretamente associados ao fenômeno migratório no país, o que incitou ainda mais o discurso de ódio contra a população de migrantes em todo o continente, já previamente motivado pelos ataques terroristas na França em 2015. No entanto, o relatório da ONU sobre meninas e mulheres refugiadas sendo abusadas sexualmente por europeus em troca de abrigo e alimentos, ganhou uma parcela muito pequena dessa repercussão. Muito menos destaque têm as notícias sobre as constantes acusações de abuso sexual protagonizado por soldados da ONU contra crianças no mundo todo. A indignação seletiva da mídia ocidental não é novidade e os interesses ideológicos estão escancarados, compondo uma visão um tanto enviesada do fenômeno. Portanto, talvez seja o caso de lembrar, desde logo, que a Europa e os Estados Unidos da América (EUA) recebem, não por acaso, o grande êxodo das veias abertas africanas e asiáticas. Isso depois de séculos de colonização, exploração e roubo de recursos naturais, divisão artificial de fronteiras, financiamento de milícias e guerras civis de acordo com seus interesses, Apartheid e invasão militar nos territórios 28


africanos e do Oriente Médio. A inevitabilidade do fenômeno de migração em massa é tanta, e suas perspectivas de solução tão complexas e divergentes, que talvez só nos console entender que a violência e o caos foram propositalmente plantados e cultivados desde sempre no hemisfério sul, enquanto os países desenvolvidos usufruíam de um passado sustentado por pilotis de injustiça. Em sua sétima tese sobre o conceito de história, o filósofo Walter Benjamin resume o privilégio e conforto dos países colonizadores até então:

Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. (...) Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1940)

Em outras palavras, talvez a crise humanitária representada pela migração em massa dos refugiados seja o início de uma busca por justiça. Se a indignação seletiva abarca refugiados a partir do momento em que estes pisam em território europeu – ou são levados pelas águas do Mediterrâneo – após cinco anos de guerra civil na Síria, 15 anos de guerra no Afeganistão, milhares de crianças cooptadas para confrontos armados no Congo e centenas de meninas sequestradas e traficadas pelo 29


Boko Haram na Nigéria, o estabelecimento tardio da noção de crise humanitária pode finalmente engajar a sociedade ocidental na realidade mundial. Da mesma forma, a desestabilização dos conceitos de território, Estado e, principalmente, de nação, pode dar início ao fim de um humanitarismo xenófobo, que insiste em uma divisão irreal entre cidadãos e estrangeiros. Essa diferenciação, uma criação social datada, é um dos principais motivos ideológicos para a distinção entre os direitos humanos e os direitos civis. Apesar dos direitos humanos serem, na teoria, universais, seu processo de conceitualização sempre excluiu aqueles cuja humanidade foi considerada menos importante. Desde os filósofos contratualistas e a noção de direito natural, passando pela Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão na Revolução Francesa de 1789 e culminando na Declaração Universal dos Direitos Humanos — instituída pela ONU em 1948 —; os direitos de alguns sempre foram mais importantes do que os direitos de outros. Mesmo que fossem efetivamente universais, os direitos dos cidadãos, baseados no arquétipo da nação, ainda se sobressaem aos direitos humanos, e a falta de “cidadania” pesa sobre os migrantes e refugiados, uma vez que, diferentemente do entendimento de ser humano, a caracterização de “cidadão” é extremamente subjetiva. Segundo Agamben, “no sistema do Estado-Nação, os assim chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de toda tutela no próprio momento em que não é mais possível configurá-los como direitos dos cidadão de um Estado2”. 2 AGAMBEN, Giorgio. p. 27

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Isto está implícito, se refletirmos bem, na ambiguidade da Declaração de 1789: Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, no qual não está claro se os dois termos nomeiam duas realidades distintas ou se fornecem, ao contrário, uma hendíadis, na qual o primeiro termo já está, na verdade, contido no segundo. (AGAMBEN, 1998)

Na Grécia antiga, Aristóteles cunhou os conceitos de Zoé e Bios, para representar, na filosofia, a diferença entre a vida natural em sua essência (Zoé) e a vida contemplativa, dotada de sentido político (Bios)3. No contexto em que o filósofo escreveu sua Política e teorizou sobre tais conceitos, as mulheres e os escravos, parte significativa da população, não eram caracterizados como cidadãos. A definição da vida com sentido político, no contexto contemporâneo dos Estados, passa pelo conceito de nacionalidade, noção construída ao longo dos últimos séculos, não sendo portanto natural e intrínseca aos seres humanos. As identidades nacionais foram forçadas por décadas de manipulação de símbolos de coesão identitária. O nacionalismo criou a nação e foi uma das bases principais de estabelecimento do racismo, que, por sua vez, instituiu os conceitos de diferentes raças humanas. Até a Revolução Francesa a noção de nação e o sentimento de nacionalismo eram muito difusos, uma vez que não havia a necessidade de unir o povo de um território comum ao redor de um sentido político ou sensação de pertencimento. Se pensarmos na Europa, o povo, camponeses ou burgueses, era unido apenas pela sua devoção aos estamentos 3 ARISTÓTELES. Política.

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privilegiados e à Igreja. A Revolução Francesa não é reconhecida como divisora de “idades” na linha do tempo da história ocidental apenas por suas transformações materiais, mas principalmente pela carga simbólica e transformadora de sentidos que herdamos dela. O historiador marxista Eric Hobsbawm analisou o surgimento, apogeu e ruptura desses conceitos e sentidos em seu livro Nações e Nacionalismo desde 1780. Na introdução da obra, Hobsbawm discute como os critérios para estabelecimento de nações (como língua, território, história ou traços culturais comuns) são por si só “ambíguos, mutáveis, opacos e inúteis”4, tendo sido, por esse motivo, aproveitados ao longo da história para fins ideológicos e propagandistas. O nazismo talvez seja o maior exemplo desse uso, e o mais significativo para expressar suas consequências. Entretanto, apesar do fenômeno de migração em massa estar inevitavelmente alimentando os discursos de ódio neonazistas, o contexto pós-nacionalismo da atualidade torna o crescimento desses movimentos ainda mais deslocados da realidade. No último capítulo, sobre o nacionalismo no final do século XX, Hobsbawm descreve o início da atual instabilidade do nacionalismo político nas sociedades ocidentais, destacando uma crise de consciência nacional: Nada disso significa que, hoje, o nacionalismo não seja muito proeminente na política, ou que haja menos nacionalismo do que havia antes. O que eu argumento, mais propriamente, é que apesar de sua evidente proeminência, o nacionalismo é, 4 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Editora Nova Fronteira. 2011, p. 1516

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historicamente, menos importante. Não é mais, como antes, um programa político global, como se poderia dizer que foi nos séculos XIX e início do século XX. É, na maior parte, um fator complicador, ou um catalisador para outros desenvolvimentos. (...) A história (do final do século XX e início do século XXI) teria que, inevitavelmente, ser escrita como a história de um mundo que não pode mais ser contido dentro dos limites das “nações” e “Estado-nações”. (...) Essa história verá “Estado-nações” e “nações”, ou grupos primariamente étnico-linguísticos, antes retrocedendo, resistindo a, se adaptando a, sendo absorvidos ou deslocados pela nova reestruturação supranacional do planeta. (HOBSBAWM, 1990 p. 207.)

Nesse trecho, Hobsbawm admite sua percepção de um futuro de reestruturação geopolítica, destacando a consequência inevitável dos “deslocados”, ou refugiados. Sendo assim, após décadas de divisão burocrática entre os seres humanos que possuem direitos humanos, mas não possuem direitos de cidadão, que são reconhecidos como Zoé, mas não como Bios, vemos uma crise no entendimento de cidadania e direitos.

Agamben caracterizou o processo de desqualificação e alienação de direitos ao qual os seres humanos são submetidos como Vida Nua. Na Vida Nua, as pessoas são excluídas do estado de legalidade e sujeitas a um eterno estado de exceção, no qual a vida física de parte da população é preservada, enquanto é desprovida de proteção jurídica e sentido político – prevalência da Zoé, portanto.

No conceito de Vida Nua, os seres humanos são retratados pelo 33


estágio de Homo Sacer5, termo cunhado por Agamben com base nos pensamentos de filósofos como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Michel Foucault, para representar a condição humana no eterno estado de exceção. Leia-se pessoas reduzidas à mera existência biológica e entregues ao abandono de Estados, que as enxergam como corpos dóceis, insacrificáveis, porém matáveis, uma vez que a vida em si é tida como algo sagrado, mas as vidas individuais da maioria são descartáveis. Quem tem poder – o soberano, para Agamben – decide qual vida merece ser vivida6. Os refugiados podem ser caracterizados como Homo Sacers e sua condição como exemplificadora da Vida Nua, uma vez que não possuem a categoria de cidadãos – ou significância política – a partir do momento em que deixam seu Estado de origem. “Os direitos são atribuídos ao homem apenas na medida em que ele é o pressuposto imediatamente dissipador do cidadão”7, afirma Agamben.

Se o refugiado representa, no ordenamento do Estado-nação, um elemento de tal sorte inquietante é, sobretudo, porque ao estilhaçar a identidade entre homem e cidadão, entre natividade e nacionalidade, coloca-se em crise a invenção originária da soberania. (...) A novidade do nosso tempo, que ameaça o Estado-nação nos seus próprios fundamentos, é que partes crescentes da humanidade não são mais 5 A origem do termo Homo Sacer está na Lei Romana, sendo uma figura jurídico-política legalmente excluída do Direito (e consequentemente da política da cidade). Tal condição de sacer impedia que ela pudesse ser legalmente morta (sacrificada), porém qualquer um poderia matá-la sem que a lei o culpasse por isso. 6 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I 7 AGAMBEN, Giorgio. Al di là dei diritti dell’uomo. In: Mezzi senza fine: notte sulla politica. Torino: Bolatti Boringhieri, 1998, p. 29

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representáveis no seu interior. (...) O refugiado, essa figura aparentemente marginal, merece ser, pelo contrário, considerado como a figura central da nossa história política. (AGAMBEN,1998, p.4)

Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica, também dedicou parte significativa de suas obras à problematização do refúgio. Perseguida pelo regime nazista, que retirou-lhe a nacionalidade, a filósofa se exilou nos EUA onde escreveu continuamente sobre a condição de apátrida e refugiada. Em seu ensaio Nós, os refugiados, Arendt declara que o sentido do termo refugiado mudou com os judeus perseguidos, passando a ser “aqueles que chegaram a infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comitês de refugiados8”. Durante a Segunda Guerra Mundial, na época em que Arendt escreveu o ensaio (1943), o conceito de refugiado como conhecemos hoje começava a se estabelecer. Em outra obra da autora, o livro Origens do Totalitarismo, Arendt dedica o nono capítulo (O Declínio do EstadoNação e o Fim dos Direitos do Homem) ao paradigma dos refugiados. A autora destaca a ausência de direitos humanos para aqueles que tinham perdido os direitos nacionais (povos sem Estado). “(os cidadãos) uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lei; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos: eram o refugo da terra.9” Arendt conclui o ensaio Nós, os refugiados, afirmando que “os refugiados fogem de país para país representando a vanguarda dos seus povos”. As análises da filósofa, apesar de refletirem um contexto de mais de cinquenta anos de distância, parecem ter atingido o ápice na atualidade. 8 ARENDT, HANNAH. Nós, os refugiados 1943. 9 Arendt, Hannah. As Origens do Totalitarismo 1951.

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Não apenas os milhares de deslocados dos últimos anos representam a vanguarda de seus povos, mas talvez a crise migratória do século XXI possa ser considerada vanguardista em si, no sentido combativo e revolucionário do termo.

Aquilo que os Estados industrializados têm atualmente diante deles é uma massa estavelmente residente de não cidadãos, que não podem nem querem ser naturalizados nem repatriados. (...) Somente numa terra na qual os espaços dos Estados tiverem sido, desse modo, perfurados e topologicamente deformados e nos quais o cidadão terá sabido reconhecer o refugiado que ele mesmo é, é pensável hoje a sobrevivência política dos homens. (AGAMBEN, 1998, p.5)

1.2. O que são refugiados: Conferências e Tratados - a diferenciação entre migrante e refugiado Estima-se que 40 milhões de pessoas encontravam-se deslocadas por toda a Europa após a Segunda Guerra Mundial. Eram grupos de soldados alemães fugindo do exército soviético, prisioneiros dos campos de concentração nazistas e populações alemãs expulsas dos demais países. A instabilidade política pós-retirada dos exércitos nazistas influenciou guerras civis que geraram ainda mais deslocados, assim 36


como o totalitarismo de Stalin na União Soviética. Nesse contexto de crise humanitária foi fundada a ONU, em 1945, com o objetivo de reestabelecer a cooperação internacional e substituir a Liga das Nações. Antes do fim da Guerra, em 1943, os países aliados já haviam criado uma Administração das Nações Unidas para o Auxílio e Reestabelecimento (ANUAR), com objetivo de dar assistência às pessoas deslocadas ou refugiadas em outros países. O órgão foi substituído em 1947 pela Organização Internacional para Refugiados (OIR), mais preparada para lidar com o problema do refúgio, dando assistência jurídica, transporte e identificação a essas pessoas. Entretanto, as duas organizações foram pensadas para serem temporárias e com a perspectiva do cessar das atividades da OIR no início da década de 1950, a Assembleia Geral da ONU decidiu criar em dezembro de 1949 o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), órgão que concentra até hoje as políticas para refugiados no mundo, de acordo com o artigo 22 da Carta das Nações Unidas. Inicialmente, o ACNUR foi pensado para ser temporário. A agência seria limitada por um mandato de três anos, para auxiliar no reassentamento de 1,2 milhão de refugiados que permaneciam desabrigados no pós guerra. Na época, acreditava-se que a reconstrução europeia acabaria com a crise migratória, porém, com a emergência de crises ao redor do mundo, o ACNUR foi estendendo seu mandato de cinco em cinco anos. As principais atribuições da agência consistem em providenciar proteção internacional e buscar soluções permanentes para a questão dos refugiados, desenvolvendo um trabalho humanitário.

A partir dos anos 1960, com o processo de reestruturação 37


dos países europeus, o Alto Comissariado dirigiu sua assistência econômica, financiada pelo pequeno orçamento da Assembleia da ONU e contribuições voluntárias, a refugiados de “conflitos tribais e políticos”, assim como vítimas de guerras civis. A agência recebeu o prêmio Nobel da Paz em 1954 e em 1981. Em paralelo às negociações para a criação do ACNUR, ocorreu o processo para aprovação da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados. A Convenção foi adotada em 1951 e estabeleceu os direitos e deveres que tem sido a base para o trabalho do ACNUR desde então. Ela foi criada com influência do direito humanitário, legislação aplicada em tempos de conflitos armados, que, por sua vez, teve o surgimento ligado à criação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em 1863. Uma vez que os Direitos Humanos pressupõem que algumas disposições possam ser suspensas durante as guerras, o Direito Humanitário tem a função de proteger pessoas que não participaram ou deixaram de participar dos conflitos, como a população civil, soldados feridos ou presos, médicos e enfermeiros. O Direito Humanitário, juntamente com os Direitos Humanos e os Direitos dos Refugiados formam a proteção dos direitos do indivíduo no Direito Internacional. A Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados concedeu aos refugiados liberdades equivalentes às de um imigrante vivendo legalmente em cada país, consolidando instrumentos legais internacionais prévios relativos aos refugiados e estabelecendo padrões básicos para tratamento dos refugiados. Um de seus princípios fundamentais é o do non-refoulement10, contido no Artigo 33. De acordo com este princípio, os países são proibidos (teoricamente) de expulsar ou 10 Traduzido frequentemente como “não-expulsão ou rechaço”

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enviar um refugiado para um território onde sua vida ou sua liberdade seja ameaçada. No entanto, a Convenção teve algumas limitações iniciais. A sua definição de refugiado, contida no Artigo 1o, se limitava à aplicação do conceito a pessoas que haviam se tornado refugiadas em decorrência de acontecimentos anteriores ao dia 1o de janeiro de 1951. Além disso, no momento da assinatura, os países também podiam optar por limitar sua adesão a acontecimentos ocorridos na Europa. Por esse motivo, pensando na expansão da proteção dos refugiados, foi estabelecido o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, que entrou em vigor em 1967. O documento reconheceu a necessidade de regulamentação sobre refugiados para os “novos” acontecimentos da época, particularmente em relação à descolonização da África. Assim, foram removidas as limitações temporal e geográfica da Convenção de 1951. A partir de então, foram feitos tratados e acordos regionais sobre a questão dos refugiados, com base na Convenção dos Refugiados, com o objetivo de atender as necessidades particulares de cada região. Um desses tratados foi a Convenção para Tratar dos Aspectos Específicos do Problema dos Refugiados na África, realizada pela Organização de Unidade Africana (OUA), que entrou em vigor em junho de 1974. O documento ampliou a definição de refugiado, considerando também aqueles que fogem de seu país devido a agressões externas, como ocupação e domínio estrangeiro. Já a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados, instituída em 1984 após um Colóquio realizado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), ampliou o conceito de refugiados também para 39


aqueles que fogem de uma ameaça de violência generalizada, agressão interna e violação massiva dos direitos humanos. A ONU, até então, requeria a perseguição particular e não generalizada como exigência para solicitação de refúgio, com exceções para casos de deslocamentos em massa. Nesse período, diversos conflitos na América Central provocaram o fluxo de mais de 2 milhões de refugiados, dos quais apenas 150 mil se enquadravam na definição “clássica” da Convenção de 1951. Desde então, a definição de refugiado, de acordo com o Artigo 1o da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, se aplica a qualquer pessoa que “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país”. Com os tratados regionais, a definição amplificada de refugiados englobou pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva de direitos humanos. O entendimento do conceito de perseguição também foi estendido ao longo do tempo. A violência sexual, inclusive violação, por exemplo, constitui perseguição. Ofensas, tratamentos desumanos e grave discriminação, seja racial, de gênero ou de orientação sexual, também – desde que os países de origem não sejam capazes ou não tenham interesse ideológico em proteger as minorias sociais. Algumas abrangências do entendimento de perseguição são regionais até hoje. Na França, no Canadá e nos EUA, por exemplo, foi oficialmente reconhecido que as mutilações genitais de meninas representam uma forma de perseguição e que as mulheres que temem essas prática em seus países de origem podem solicitar o reconhecimento da condição de refugiadas. O ACNUR tem encorajado outros países a 40


tomarem o mesmo caminho. As regras que impedem o reconhecimento do status de refúgio também foram adaptadas ao longo das décadas. Pessoas que, após julgamento justo, foram condenadas devido a um crime de direito comum e fogem do país para escapar da prisão não são reconhecidas como refugiadas, assim como pessoas que participaram de crimes de guerra e violações maciças do Direito Humanitário Internacional e dos Direitos Humanos. Essa questão é muito delicada, uma vez que em países que passam por guerras civis a dimensão desse problema é muito maior. Em compensação, pessoas condenadas por qualquer crime devido ao seu ativismo político – por razões éticas, raciais ou religiosas – podem ser reconhecidas como refugiadas, desde que não sejam militantes armados. Enquanto muita vezes a palavra “refugiado” usada como sinônimo de “migrante”, os processos são entendidos pelo ACNUR como crucialmente diferentes. Enquanto migração for comumente compreendida como um processo voluntário, subentende-se que os refugiados não escolheram deixar seus países e não podem retornar às suas casas em segurança, tendo direito e proteções específicas no direito internacional. O termo “migrante” também é costumeiramente usado de forma generalista, para abarcar tanto migrantes como refugiados. Como veremos adiante, a diferenciação é mais complexa do que aparenta ser. Apesar de a denominação ‘refugiado’ ser a mais conhecida, ela não engloba todos os grupos de pessoas que tentam sair do seu país de origem pelos motivos descritos no Artigo 1o. Para receber o status de refugiado no país destino, a pessoa deve fazer o pedido às autoridades do país onde procurou asilo ou ao ACNUR, passando por processos burocráticos que 41


têm o objetivo de provar se a pessoa se encaixa na definição. Solicitantes de asilo ou refúgio são aqueles que estão aguardando a decisão formal sobre esse pedido, enquanto residem no próprio país de destino ou passam por diversos países no processo. Entretanto, uma pessoa já é informalmente refugiada independentemente de seu status ter sido reconhecido por um processo legal ou não. São aproximadamente 3,2 milhões de solicitantes de refúgio ao redor do mundo, segundo o relatório do ACNUR. Cada governo estabelece procedimentos de determinação de status em seus próprios órgãos, com o objetivo de determinar a situação jurídica daquela pessoa e seus direitos e benefícios. No Brasil, esse órgão é o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), comissão extrajudicial que está sob o âmbito do Ministério da Justiça no Brasil (MJ). Há algumas situações em que a formalidade burocrática da solicitação de refúgio não é necessária, no caso de deslocamentos em massa de indivíduos fugindo de um conflito armado em seu país, por exemplo. Essa regra nem sempre é seguida e a relevância dada para o conflito armado é uma perspectiva extremamente subjetiva. Desde 2013, o CONARE autorizou a concessão direta de vistos para Sírios no país, por “razões humanitárias” relacionadas à guerra civil, que, na época, já completava dois anos. Em setembro de 2015, diante do agravamento do conflito sírio, a medida foi prorrogada por mais dois anos, e em janeiro de 2016, o Ministério da Justiça brasileiro fez um acordo com a União Europeia para abrigar até 100 mil sírios nos próximos 5 anos. No entanto, o governo interino sinalizou em junho do mesmo ano o não cumprimento do acordo.

Após facilitar a entrada da população síria, o Brasil passou a 42


ser um dos principais destinos dos refugiados dessa nacionalidade na América Latina. Porém, medidas semelhantes não foram tomadas com solicitantes de refúgio de países que também estão em conflitos armados há anos, como a República Democrática do Congo, o que explicita o quanto a questão pode ser enviesada. Além da denominação de “refugiado” e “solicitante de asilo”, há a categoria aplicada para pessoas que são forçadas a deixar o local onde viviam, mas não chegam a cruzar fronteiras internacionais, continuando a viver no país de origem. São os deslocados internos, que apesar de não entrarem no mandato original do ACNUR, já que não perderam seus direitos civis e ainda estão sob a responsabilidade do Estado de origem, também são amparados há anos pela agência. Os deslocados internos muitas vezes se encontram em campos de refugiados. Em meados de 2015, segundo dados do ACNUR, havia aproximadamente 26 milhões de deslocados internos auxiliados pela agência ao redor do mundo, espalhados em 28 países, sendo Síria, Colômbia e República Democrática do Congo, os países com maior número de deslocados. No total, até o final de 2014 eram 19,5 milhões de refugiados, 1,8 milhão de requerentes de asilo e 38,2 milhões de deslocados internos, contando também com civis que perderam suas casas devido a desastres naturais. Até dezembro de 2015, eram 41 milhões de deslocados internos, que representam a grande maioria do total de 65 milhões de refugiados. Segundo a Coordenadora de Proteção da Cáritas, Larissa Leite, a condição de deslocado interno é ainda mais grave ‘uma vez que o refugiado está confinado em proximidade com o risco”.

A maioria dos 65,3 milhões de deslocados, refugiados e solicitantes 43


de asilos são crianças (internacionalmente, menores de 18 anos), sendo aproximadamente 51% em 2014. Finalmente, há a condição de apátrida, mencionada aqui, anteriormente, por Hannah Arendt. Segundo a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, estabelecida pelas Nações Unidas em 1954, “o termo apátrida designará toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional”, seja por ter sido banido de seu país de origem e não possuír outra nacionalidade, seja pelo fim da existência de um Estado. Com base nessas informações, podemos entender que o processo de construção do regime internacional para refugiados, que teve início no contexto histórico da Guerra Fria e é ancorado no entendimento da ONU, foi permeado de aspectos político-ideológicos que marcaram o período. A atuação “humanitária” validada pela sociedade ocidental vem sofrendo alterações desde então, com uma tendência ao estreitamento de direitos, pautada por todo um contexto cronológico que passa pelo neoliberalismo, pelos ataques terroristas desde o 11 de setembro de 2001 e pela crise econômica pós-2008. Essa tendência estreita também as oportunidades de refúgio no cenário atual. Cada vez mais os fluxos migratórios são associados a uma questão de segurança nacional, e os refugiados são vistos como potenciais ameaças à sociedade, sendo barrados por ações que contradizem os próprios tratados de refúgio.

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1.3. Desafios Presentes

Migrantes Ambientais

Um dos grandes problemas humanitários do século XXI, que gradativamente cresce e se torna crítico, é a questão ambiental. A ONU prevê que em 2050, por exemplo, mais de 45% da população mundial não terá acesso à porção mínima de água potável para necessidades básicas diárias. As mudanças climáticas e desastres naturais, fruto principalmente do uso descontrolado de recursos naturais, têm aumentado a decisão de migrar. Mesmo o objetivo dos grandes conflitos armados mudou radicalmente durante o século XXI. As guerras não têm apenas sua essência fundada na geopolítica e controle de recursos naturais – e isso tem sido assim há séculos, apesar da faceta supostamente religiosa ou ideológica – mas, atualmente, têm como estratégia a destruição social e econômica de civis por meio da eliminação temporária desses recursos.

O fato de que a maioria dos conflitos são travados dentro dos territórios dos Estados soberanos os torna particularmente mortais. Nestes conflitos, o objetivo da guerra não é simplesmente a ocupação e controle do território, mas a definição da identidade de uma nação. Neste contexto, a guerra não é mais sobre a vitória militar, trata-se de destruir a identidade e a dignidade da oposição. Neste caso, a “oposição” compromete não só os soldados, mas os civis em nome de quem eles alegam estarem lutando. É por esta razão que, desde 1945, os civis foram responsáveis por 90%

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das mortes de guerra em todo o mundo. É também por esta razão que as populações afetadas pela guerra estão entre as pessoas mais vulneráveis do planeta11. (MACRAE, 2000, p.87)

A discussão cada vez mais presente dos migrantes ambientais e da necessidade de enquadrá-los em uma categoria de refugiados ambientais, é baseada no crescente fluxo migratório de pessoas que buscam por um local com melhores condições ambientais, em relação à disponibilidade de recursos para sobrevivência ou até mesmo para prosperidade econômica. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) utilizou pela primeira vez em 1985 o termo “refugiados ambientais”, posteriormente definido como “pessoas que foram obrigadas a abandonar temporária ou definitivamente a zona onde tradicionalmente vivem, devido ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas) perturbando a sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo12”. Entretanto, a definição não foi incorporada ao texto oficial do ACNUR. Uma vez que o reconhecimento de refugiados ambientais é muito distante da definição original de refugiado pela Convenção de 1951, inúmeros eventos acadêmicos e artigos vêm sendo produzidos para debater a legitimidade desse reconhecimento. A ONU estima que, até 2050 serão mais de 250 mil refugiados ambientais “e o regime internacional de refugiados tal como está estruturado hoje não está preparado para lidar com essa questão13”, afirmaram as pesquisadoras Rossana Reis Rocha 11 MACRAE, Joanna. Humanitarianism facing new challenges. Great Decisions. 2000. p. 87 12 Environmental Refugees. PNUMA, 1985 13 MOREIRA, Julia Bertino. ROCHA, Rosanna Reis. Regime Internacional para Refugiados:

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e Julia Bertino Moreira, doutoras em Ciência Política, em seu artigo “Regime Internacional para Refugiados: Mudanças e Desafios”:

O mundo do início do século XXI é, em muitos sentidos, diferente daquele de meados do século XX, e o regime precisa encontrar uma maneira de se adaptar a uma ordem global em que as fronteiras nacional e internacional são mais permeáveis e em que os desastres ecológicos tendem a se tornar mais frequentes. Nesse sentido, a definição de refugiado construída no contexto do pós-guerra apresenta-se defasada para enfrentar os complexos desafios do cenário contemporâneo. Ainda que existam interpretações buscando uma atualização (a exemplo da aplicação do motivo “filiação em determinado grupo social” para dar proteção a mulheres e homossexuais ameaçados de perseguição ou efetivamente perseguidos), há diversos pontos que merecem ser reformulados. Um deles refere-se ao fato de que os conceitos de “refugiado ambiental” e “econômico” não foram incorporados na definição de refugiado, que se pauta apenas pela categoria do “refugiado político”. No mundo atual, em que existe um número significativo de pessoas deslocadas que precisam de proteção (independentemente das várias categorias em que se encontram), é fundamental repensar o sistema, as soluções que oferece e a forma como foi estruturado. Contudo, assim como em 1951, as questões humanitárias estão inevitavelmente Mudanças e desafios. Revista de Sociologia e Política V. 18, No 37. 2010.

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permeadas por considerações políticas, o que não necessariamente é um empecilho para a reformulação do sistema.

Em outras palavras, não é do interesse político de países desenvolvidos acatar a ampliação da definição de refugiados, e, consequentemente, receber um número maior de pessoas nessa situação. Isso, principalmente, porque assumir a questão ambiental como responsabilidade humana envolve o reconhecimento dos próprios países desenvolvidos como responsáveis pelas mudanças ambientais e, principalmente no caso dos países colonizadores, pela extração excessiva de recursos ambientais das nações mais pobres.

No lugar desse entendimento, os discursos pregam a meritocracia como razão para a riqueza de algumas populações e miséria de outras, e deslegitimam fluxos migratórios econômicos, alegando um interesse dos migrantes de “enriquecer” às custas do país destino. A migração econômica e ambiental ainda não é considerada uma migração forçada ou consequência de uma ameaça à sobrevivência dos migrantes, e por isso não é encaixada no conceito de refúgio. Entretanto, alguns pesquisadores argumentam que as consequências capitalistas da miséria não podem ser enquadradas em uma migração espontânea.

Nesse sentido, a dicotomia sociedade/natureza tem influenciado de forma definitiva a forma como a lei internacional sobre refugiados tem sido construída, enfatizando somente as causas antropogênicas como desencadeador legítimo das migrações forçadas. Logo, esse é um dos aspectos principais para a compreensão

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de como os fluxos causados por fatores ambientais tem sido retratado no espaço institucionalizado das Nações Unidas e dos atores estatais no cenário internacional14.

É o caso dos haitianos no Brasil, por exemplo, que não são reconhecidos como refugiados. Após o terremoto no país caribenho, que em 2010 provocou a morte de mais de 300 mil pessoas e deixou outras 300 mil como deslocadas internas, teve início um grande fluxo migratório da população haitiana para o Brasil. Com a presença da Missão das Nações Unidas para a Estabilizaçào do Haiti (MINUSTAH) comandada pelo Brasil e a facilidade na aquisição de vistos, o país se tornou um dos principais destinos de haitianos. A diáspora, no entanto, não foi vista positivamente por parte da população brasileira, que discriminou até mesmo através de ataques físicos os haitianos que tentavam se adaptar em algumas capitais brasileiras.

Xenofobia Além do discurso de preocupação com a economia, agravados pela crise econômica mundial, o clima de medo e terror criado ao redor da migração é imenso, principalmente na Europa, onde o número de refugiados desembarcando é cada vez maior. A construção de um discurso xenofóbico que relaciona diretamente os refugiados, principalmente islâmicos, à ações terroristas e violência sexual, restringe o número de refugiados que podem entrar em cada país, além do acesso a políticas 14 PINTO, Anne Fernanda Rocha da Silva. Refugiados ambientais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 71, dez 2009.

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públicas e direitos. Na Bulgária e na Hungria, por exemplo, até mesmo muros com arame farpado foram erguidos para barrar a entrada dos migrantes, e o número de campos de refugiados pelo mundo se multiplicam anualmente. Como analisa o geógrafo Jorge Luiz Raposo Braga, em seu artigo Os campos de Refugiados: Um espaço de estado de exceção na política contemporânea:

A dissolução das fronteiras e a extrema miséria que desestabiliza muitas sociedades vêm legitimando os “campos” como “espaços de exceção”. O objetivo desses espaços contemporâneos é barrar/confinar o fluxo de indivíduos vistos como perigo para a segurança do Estado. Assim, o campo em que estão encerrados se consolida não como uma anomalia pertencente ao passado, mas um espaço político que vai deixando de ser uma exceção e começa a tornarse a regra15.

Paralelamente, partidos de extrema direita com discursos fortemente nacionalistas têm ganhado voz em boa parte dos países europeus, destacando políticas anti-migratórias como suas principais bandeiras. Apesar disso, a crise migratória não é focada na Europa. O relatório divulgado pelo ACNUR também sinaliza que 86% dos refugiados estão em países em desenvolvimento, sendo os países que mais recebem 15 BRAGA, Jorge Luiz Raposo. Os campos de Refugiados: Um espaço de estado de exceção na política contemporânea. 2011.

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refugiados: Turquia, Paquistão, Líbano, Irã, Etiópia e Jordânia. São tempos perigosos e decisivos. No entanto, como o próprio conceito de “crise” estipula, também são tempos de transformações. Como analisado anteriormente, a crise migratória estimula opiniões radicalmente opostas, mas seu ápice inevitavelmente traz para a parte mais rica da população ocidental os custos da barbárie que desde sempre sustentou. Territórios inteiros vêm se tornando inabitáveis ao longo dos últimos séculos, seja por colonizações, guerras, desastres naturais ou miséria, mas sempre por motivos geopolíticos, visando o que existe no subsolo das regiões. Nesse sentido, cabe reafirmar que estamos vivendo uma era em que as delimitações de Estado e Nação como as conhecemos tornaram-se instáveis. Não há uma crise migratória por si só, mas uma crise humanitária causada por guerras, desigualdade e pobreza. O contexto mundial não é de paz (se é que algum dia o foi), e os refugiados e imigrantes estão aqui, chegando mensalmente às centenas em solo latinoamericano, para nos questionar com a realidade de sua presença. Que não sejam ignorados como os milhares de brasileiros invisíveis que também compartilham desse eterno estado de exceção. Que o impacto do seu estranhamento e a eventual crise que provoquem sejam acolhidas e escutadas

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Capítulo 2 Brasil como destino de refúgio

CAPÍTULO 2:

brasil como destino de refúgio

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2.1. Breve história do Refúgio no Brasil Embora a história do Brasil seja formada por fluxos migratórios, a história do refúgio como um fenômeno no país é extremamente recente. Em 1960, o Brasil tornou-se signatário da Convenção de 1951, com a cláusula da reserva geográfica que contemplava apenas refugiados provenientes de conflitos europeus. Da mesma forma, o país assinou o Protocolo de 1967, ainda mantendo a cláusula. Entretanto, na prática, essas adesões não significaram um marco jurídico ou estabelecimento de políticas para refugiados no país. O ACNUR só marcou presença na América Latina duas décadas depois, com ações empreendidas principalmente na América Central. O primeiro escritório da agência foi aberto no Rio de Janeiro, em 1977. Durante as ditaduras militares na América Latina, o papel do ACNUR foi principalmente o de acompanhar a movimentação dos milhares de cidadãos que se exilavam no exterior, tendo a Igreja Católica como principal aliada. Dessa forma, o Brasil não desenvolveu sua política de proteção internacional de refugiados justamente porque existia um movimento contrário de exílio de brasileiros. 55


Desde 1975 a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro e de São Paulo auxiliou argentinos, chilenos e uruguaios que, mesmo com o risco de serem entregues ao país de origem, procuravam acolhida no Brasil devido aos regimes militares nos respectivos países, porque não tinham condições documentais e econômicas de se exilarem em outros continentes. Em São Paulo, esse trabalho foi realizado principalmente pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns, frade franciscano conhecido por sua atuação na área social. O trabalho da Cáritas na ditadura foi um dos grandes responsáveis pela política atual de recepção e assistência aos refugiados. Em 1979, o Brasil recebeu, em caráter excepcional, cerca de 150 vietnamitas exilados da Guerra do Vietnã. Eles não foram reconhecidos como refugiados, mas foram aceitos em solo brasileiro. No mesmo ano, dezenas de cubanos também chegaram ao país e foram recebidos no Paraná. Com o início do processo de redemocratização do país, houve um aumento no fluxo de refugiados e milhares de angolanos chegaram ao Brasil devido à guerra civil em Angola, embora o país continuasse concedendo o título de refugiados apenas aos europeus. Em negociação pelo fim dessa reserva geográfica, o ACNUR conseguiu estabelecer o título de refugiados a cerca de 50 famílias iranianas que eram perseguidas no país de origem. Em 1989, por meio do decreto número 98.602, o Brasil finalmente retirou a limitação, aderindo plenamente à Declaração de Cartagena. Em 1991, já no início do regime democrático, o Ministério da Justiça editou a Portaria Interministerial nº 394, sobre o dispositivo jurídico de proteção a refugiados, e estabeleceu uma dinâmica processual para solicitação e concessão de refúgio no país. Em 1992, o país recebeu um fluxo intenso de refugiados de Angola, da República Democrática do 56


Congo, da Liberia e da ex-Iugoslávia. Nessa época, o papel do governo se restringia à liberação de documentos. Quanto ao trauma psicológico, situação econômica e problemas de saúde dos quais os refugiados eram vítimas, o apoio e integração oferecidos pelo governo eram totalmente insuficientes. Através de consultas com a Cáritas Arquidiocesana, e com os Ministérios de Relações Exteriores, Saúde, Trabalho e Educação, ficou patente a necessidade da regulação de um Estatuto dos Refugiados no Brasil, para efetivamente internalizar os mecanismos da Convenção de 1951 com uma lei específica, além da criação de um órgão nacional para tratar desse tema. A lei 9.474, de 22 de julho de 1997, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso e definiu em 49 artigos a implementação do Estatuto dos Refugiados. Foi a primeira legislação abrangente que se dedicou a essa temática na América Latina. Além de utilizar a definição ampliada da Declaração de Cartagena, o Estatuto criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), formado por sete membros, que representam os Ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Trabalho, Saúde, Educação e Esporte, além do Departamento da Polícia Federal e da Cáritas. O CONARE tem o objetivo de ditar a política pública para o refúgio e decidir quanto às solicitações apresentadas no Brasil. É um órgão misto (público-privado) e como a lei prevê, tem participação na ONU através do ACNUR. Dessa forma, o CONARE é um órgão tripartite, composto pelo governo, sociedade civil e Nações Unidas. Nos anos 2000 foi aprovada a Declaração dos Ministros do Interior do Mercosul, Bolívia e Chile sobre o Instituto do Refúgio na Região, em 57


uma reunião do bloco regional no Rio de Janeiro. A declaração fez parte dos esforços brasileiros para criar leis próprias sobre refúgio no Mercosul. Outro esforço realizado foi a elaboração da Declaração e Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina, adotada em 2004. A Declaração estabeleceu uma série de medidas para identificar soluções duradouras e inovadoras para os refugiados que vivem na região. Já na cidade de São Paulo, a prefeitura sancionou, em julho de 2016, durante o Fórum Mundial da Migração, uma Política Municipal para a População Imigrante, com o objetivo de garantir acesso de todos os estrangeiros imigrados aos serviços públicos da capital, bem como sua proteção contra xenofobia e racismo. A formulação da lei contou com consultas à população local e estrangeira, e sua regulamentação vem sendo feita de forma gradual. A diretriz exige que as secretarias municipais incluam a questão da migração e do refúgio em suas agendas, prevê a criação do Conselho Municipal de Imigrantes, no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, e cria um canal de denúncias para os refugiados e imigrantes, para casos de violação de direitos. A Política Municipal pretende facilitar o acesso de imigrantes e refugiados à assistência social e políticas públicas na cidade, e apesar dos serviços já serem oferecidos pela prefeitura, agora são obrigatórios. Atualmente, o marco jurídico para refugiados no país é considerado um dos mais modernos no mundo. Entretanto, a mentalidade que circunda a migração no Brasil ainda é revestida por xenofobia. A história migratória do Brasil baseou-se em motivações racistas, isso desde a colonização, passando pelo tráfico de africanos nos três séculos de escravidão, culminando na imigração de europeus e asiáticos no início 58


do século XX.

Imigração e Estatuto do Estrangeiro

Por esse motivo, até hoje a imigração brasileira é relacionada apenas aos povos europeus, principalmente italianos, espanhóis, portugueses e alemães, que foram atraídos ao país com o objetivo de “embranquecer” a população brasileira após fim da escravidão. Por muito tempo essa foi a única história migratória conhecida e reconhecida no país, ao mesmo tempo em que o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980), há mais de três décadas relaciona os imigrantes atuais a uma questão de segurança nacional. Em um artigo para o jornal Le Monde Diplomatique Brasil, o pesquisador Willians de Jesus Santos discute a estética da morenidade (conceito associado à cultura brasileira que diz respeito a um elogio à mestiçagem, desde que contida e controlada dentro dos padrões “brancos” de beleza) e a construção de uma identidade baseada em um sincretismo de culturas, que criminaliza as heranças africanas no país, ou qualquer outra cultura considerada inferior, até os dias de hoje:

Toda essa violência presente nos atuais processos de deslocamento para o país tem uma base política, cultural e racista histórica. A estética da morenidade foi até pelo menos a década de 1930 o modelo político que pautou as imigrações. As políticas imigratórias até este período eram inspiradas no racismo, pois supunha como natural e hereditário a diferença e a desigualdade entre pessoas sendo

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a raça branca superior às demais. Inspirada no padrão de nação, civilização e capitalismo europeu e norte-americano, a miscigenação da população local com brancos europeus foi incentivada pelos governos da época como forma de modernização. A imigração no Brasil também sofreu com o racismo de marca, significando a atribuição da imoralidade e incivilidade a certos fenótipos exagerados de cor e origem depreciando o estigmatizado. A construção da identidade nacional brasileira através da ideologia do sincretismo criminalizou as populações africanas escravizadas e seus descendentes, bem como, por certo tempo, as asiáticas. E hoje influenciam políticas de governança que priorizam a securitização, criminalizam protagonistas específicos – sejam eles migrantes indocumentados, inclusive solicitantes de refúgio, assim como prostitutas que estão no mercado internacional de trabalho –, ou, ainda, moradores de favelas e da periferia, além de que os imigrantes são tratados como raças perigosas16. (SANTOS, 2016,P.)

Em seu entendimento, por mais que a legislação brasileira sobre refúgio seja aclamada internacionalmente, toda a cultura e marco jurídico relacionados a estrangeiros no país ainda são extremamente retrógrados. Um bom exemplo disso é que o Estatuto do Estrangeiro ainda limita os direitos políticos dos imigrantes que vivem no país.

Os artigos 107 e 108 do Estatuto proíbem qualquer atividade

16 Willians de Jesus. Intimidação, racismo e violência contra imigrantes e refugiados no Brasil. 16/05/2016. Le Monde Diplomatique Brasil

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de natureza política e participação em associações com fins culturais, religiosos ou recreativos, como organizar ou participar de “desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza” ou “participar de reunião comemorativa de datas nacionais ou acontecimentos de significação patriótica”. Em abril de 2016, com a inflamação política do processo de Impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a Federação Nacional dos Polícias Federais (Fenapef) publicou uma nota reiterando a proibição da manifestação política de estrangeiros no país, sob pena de prisão e até deportação. A iniciativa veio em resposta a uma suspeita da Polícia Rodoviária de que imigrantes bolivianos estariam viajando para Goiás no dia anterior à votação do Impeachment na Câmara dos Deputados para apoiar os “atos contra o golpe”. Embora a norma que de algum modo limita a participação dos estrangeiros na atividade política interna faça parte do Estatuto, nota-se que é incompatível com a Constituição Federal de 1988, uma vez que o texto reitera em seu artigo 5o que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país” uma série de direitos, entre eles a “manifestação do pensamento” e a “liberdade de associação17”. O argumento da incompatibilidade do Estatuto editado no regime militar foi utilizado pela Procuradoria-Geral da República de Minas Gerais, após uma professora italiana da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais ter sido denunciada por participar de “atividades partidárias e sindicais” e intimada a depor, em maio de 2016. A procuradoria entrou com um pedido na justiça para impedir o prosseguimento do inquérito pela Polícia Federal. 17 Constituição Federal Brasileira. 1988

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Para Lucia Sestokas, pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), o Estatuto do Estrangeiro entra em contradição com a própria normatização institucional. “Ele diz que as pessoas imigrantes no Brasil não têm acesso a nenhum direito político e sindical, não apenas cerceia o voto, como na Constituição. É a confusão do civil com o político, uma vez que esses direitos são garantidos para qualquer pessoa, não apenas pela Constituição como por vários tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”, afirmou Lucia. O ITTC divulgou recentemente a nota técnica “Constituição e tratados garantem o direito à participação política e sindical às pessoas migrantes no Brasil”. Segundo Lucia, o Estatuto do Estrangeiro é uma legislação de cerceamento e não preza pela garantia de direitos. “A primeira frase já coloca em destaque a questão da segurança nacional. Toda a lógica dessa legislação foi construída em cima de trazer mão de obra para as atividades que o Estado quer, e depois descartá-las. É uma mão de obra especializada, uma migração rica e branca. A legislação não permite o direito humano de migrar, mas uma migração selecionada, e ela volta a estourar agora com a crise política do país, o que mostra o caráter político dessa perseguição”, destaca.

Tais situações exemplificam o discurso de ódio e de segurança ainda relacionados aos estrangeiros no país. “Ficou evidente não somente a inexistência de direitos políticos para refugiados e imigrantes, mas o uso estratégico do Estatuto a fim de intimidá-los sob a retórica da segurança nacional”, afirmou Santos em seu artigo. É um exemplo claro da consideração dos direitos do cidadão acima dos direitos humanos e humanitários, como analisado no primeiro capítulo. Em junho de 2016, uma articulação inédita entre imigrantes e refugiados deu início à construção de uma frente independente pelos 62


direitos migratórios. Formada por membros do Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem-Teto (GRIST), do Movimento Palestina Para Tod@s (Mop@t) e da Equipe de Base Warmis para imigrantes latino-americanos, uma das pautas principais da frente é a luta por direitos políticos. Alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Brasileiro visam a reforma do Estatuto do Estrangeiro. É o caso do PL 2516/2016, de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que institui uma nova lei de imigração no Brasil, atualizando o Estatuto do Estrangeiro, através, principalmente, da mudança na concentração de poderes na Polícia Federal e na presença ou não de uma entidade civil como autoridade nacional migratória. O PL ainda pode sofrer modificações até a construção de seu texto final. No fim de maio, por exemplo, o PL 5293/2016, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), acrescentou a criação de um Conselho Nacional de Imigração ao PL original de Nunes. Christo Kamanda, refugiado da República Democrática do Congo, militante independente das causas migratórias e jornalista, acredita que a legislação brasileira deveria se basear nos demais países latino-americanos, que permitem a atividade política para imigrantes. “A questão da lei no Brasil tem uma grande contradição, porque a Constituição brasileira permite a participação de todos na cidadania, sem discriminação. Mas se a gente volta na lei da ditadura, que criminaliza a imigração, tem esse conflito”, diz. “O Brasil é um caso muito particular, ele não pode se comportar como todos os países do mundo, porque ele é um país composto por imigrantes e filhos de imigrantes. É uma exceção. Fora os nossos irmão indígenas, proprietários originais do Brasil, todo mundo aqui é imigrante. Isso é mais importante que todo o resto, e os políticos brasileiros têm que colocar na cabeça. Na Câmara, no Governo Federal, não tem nenhum 63


índio governando. São todos imigrantes. É um absurdo! Os imigrantes que chegaram aqui primeiro não podem atrapalhar os outros que acabaram de chegar”, denuncia Kamanda. Independentemente do conflito de garantias jurídicas entre o Estatuto do Refugiado e o Estatuto do Estrangeiro, a discriminação cultural dos imigrantes e refugiados, principalmente de origem latinoamericana e africana – por razões de cunho racista – colabora para que a progressista legislação para refugiados no país não saia do papel. Os relatos de racismo são comuns entre refugiados, e nos últimos anos os ataques contra refugiados e imigrantes, que chegaram inclusive ao ponto de violência física, se multiplicaram, principalmente contra a população haitiana. Em agosto de 2015, um grupo de seis haitianos foi baleado na Baixada do Glicério, bairro mais ocupado pela comunidade haitiana em São Paulo. Segundo os relatos das vítimas, o atirador gritou “haitianos, vocês roubam nossos empregos” antes de disparar. Em maio de 2016, o estudante haitiano Getho Mondesi foi atacado com uma garrafa em Foz do Iguaçu, sob o xingamento: “Macaco, você está aqui por causa da Dilma”. Se a legislação conflitante e a discriminação racial não fossem motivos suficientes para comprovar a ineficiência da aplicação do Direito Humanitário no Brasil, a burocracia do sistema de acolhimento de refugiados completa o paradigma que essa população enfrenta ao se abrigar no país.

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2.2. Processo de Solicitação de Refúgio Os processos de solicitação de refúgio variam de acordo com a legislação e estrutura governamental de cada país. No Brasil, os refugiados devem comparecer a qualquer posto do Departamento da Polícia Federal (PF), onde preenchem um formulário de solicitação de refúgio e têm suas informações biométricas coletadas. Preferencialmente, deve-se buscar a PF logo que se cruza a fronteira, apesar da solicitação poder ser feita a qualquer momento, ainda que o estrangeiro esteja há algum tempo no país. Geralmente, essa primeira fase já é muito complicada para os refugiados, uma vez que poucos postos da PF possuem intérpretes de outras línguas e não são facilmente localizáveis nas cidades. Por esse motivo, a Cáritas muitas vezes cumpre o papel inicial de auxiliar os refugiados nesse processo. O Termo de Declaração da solicitação de refúgio é então encaminhado para o CONARE, para avaliação. Nessa etapa, o órgão autoriza a expedição de um protocolo provisório de solicitação de refúgio. O documento é criticado tanto pelos refugiados quanto pelas entidades que trabalham com seus direitos pela sua fragilidade – uma vez que é feito de papel simples, tendo sua legitimidade como documento questionada em diversas situações. O protocolo é extremamente importante, por caracterizar a identidade do solicitante no Brasil até a análise de seu caso. Se houver perda ou roubo do protocolo provisório, sua segunda via leva um tempo longo para ser expedida, enquanto o refugiado permanece sem 65


identificação. Na teoria, com o protocolo o solicitante poderá tirar o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a Carteira de Trabalho. Mas o desconhecimento da situação dos refugiados no Brasil dificulta tais processos. Com validade de três meses, o protocolo deve ser renovado na Polícia Federal enquanto aguarda o julgamento de seu caso pelo CONARE. O problema é que esse processo pode levar até três anos, apesar da legislação garantir no máximo um ano de espera. Após a emissão do protocolo, é marcada uma entrevista especial com um representante do CONARE, nesse período indeterminado de tempo. A Polícia Federal entra em contato com o solicitante para avisar sobre a realização da entrevista, na qual será questionada a legitimidade do pedido de refúgio, a partir da Lei 9.474/1997. Nesse momento, a situação vivida no país de origem, incluindo os riscos de retorno e perseguições sofridas, deve ser detalhada pelo solicitante de refúgio. Segundo Vivian Holzhacker, advogada e ex-coordernadora do Programa de Proteção da Cáritas, a longa espera foi facilitada para os refugiados sírios, uma vez em que há o entendimento de uma violação massiva de direitos humanos causada pela guerra. “No caso dos Sírios eles tem feito um procedimento simplificado até agora, sem necessidade de entrevista pelo CONARE, apenas uma checagem para ver se de fato a pessoa é síria, um procedimento muito mais rápido que dura de três a cinco meses. Entretanto, estão pensando em mudar isso, talvez voltem a entrevistar, porque, legalmente, além de fazer análise se a pessoa pode ser considerada de fato refugiada, tem que ter uma análise se a pessoa merece o status, se ela não cometeu nenhum crime contra a humanidade, não participou de genocídio, e essa análise não tem sido feita com os sírios”, declarou. 66


Caso o CONARE tenha uma decisão positiva sobre a solicitação de refúgio, além do refugiado ganhar direito a proteção internacional, a PF dá início aos trâmites para a emissão do Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), documento de identidade dos estrangeiros no Brasil. Caso o CONARE tenha uma decisão negativa, e o solicitante não seja reconhecido como refugiado, ele será notificado e terá um prazo de 15 dias para apresentar recurso ao Ministério de Justiça. Se a decisão do MJ, por sua vez, for negativa, o solicitante será encaminhado para o Conselho Nacional de Migração (CNig) e ficará sujeito apenas ao Estatuto do Estrangeiro em vigor no país. Em alguns casos, quando a solicitação de refúgio é negada, o visto e a permanência são concedidos por razões humanitárias. Essa situação acontece frequentemente com os haitianos no país. Quando chegam ao Brasil, os haitianos são direcionados diretamente para Ongs que tratam de imigrantes em geral, como a Missão Paz, braço da Casa do Imigrante em São Paulo. Teoricamente, eles recebem o visto humanitário, chegando ao Brasil e pegando o documento diretamente na PF. No entanto, segundo a pesquisadora Patrícia Nabuco, que estuda imigração infantil no doutorado em Ciências Políticas e é voluntária do Programa de Proteção da Cáritas, a situação não é tão simples assim. “Noano passado, quando teve o problema do Acre mandando haitianos pra SP sem avisar, havia muito mais haitianos querendo vir do que vistos disponíveis, então apenas alguns conseguiam o visto legalmente. A grande maioria não conseguia e pagava coiotes para trazê-los ao Brasil. Chegavam sem documentação nenhuma e pediam refúgio, porque daí eles tem pelo menos o protocolo, podendo usar o sistema público de saúde, trabalhar etc. É uma forma de barrar o visto, porque o número 67


de vistos era irrisório. Então, o CONARE começou a enviar os haitianos direto para o CNig. Aí a gente tem dois problemas, o primeiro é que, de acordo com a lei, qualquer nacionalidade pode pedir refúgio, e tem que ter o pedido devidamente analisado. Quando o governo brasileiro faz isso ele está dizendo que nenhum haitiano pode ser refugiado, como se lá não existisse perseguição política, religiosa, racial etc. Em segundo lugar, é lógico que o CNig concede a permanência para os haitianos, mas a diferença é que o refúgio é uma proteção internacional a mais”, considerou Nabuco. Após o reconhecimento do título, uma parcela significativa dos refugiados solicita a reunião familiar, estendendo seu benefício aos familiares economicamente dependentes, que também estão no Brasil. O processo é feito através de um formulário de solicitação de reunião familiar e se aplica a todas as crianças que entram no país acompanhadas. Após pelo menos quatro anos vivendo no país, o refugiado pode solicitar a cidadania brasileira, seguindo as regras e procedimentos que qualquer outro estrangeiro residente no país, de acordo com o domínio da língua, vínculo empregatício e situação financeira. Como é possível notar, mesmo tendo uma legislação moderna em relação ao refúgio, o processo de solicitação do título no Brasil ainda é muito lento e burocrático. Essas complicações são agravadas pela falta de políticas públicas e verbas do ACNUR no país, o que faz com que os solicitantes de refúgio e refugiados sejam extremamente dependentes da “caridade” de organizações não governamentais, entidades criadas pela sociedade civil e instituições religiosas. A dificuldade em se manter no país influencia diretamente na disponibilidade dos refugiados para continuarem aguardando a análise de suas solicitações. 68


2.3. ONGs, Entidades e Abrigos O papel das ONGs e entidades brasileiras na proteção dos direitos dos refugiados no Brasil é muito expressivo, uma vez que o CONARE trabalha apenas com questões legais dos refugiados no país, e o ACNUR acaba atuando muitas vezes como um órgão simbólico, fiscalizando através de relatórios a situação dos refugiados no Brasil e repassando a baixa verba destinada ao órgão no país (já que o financiamento pela ONU é proporcional ao número de refugiados entrando em cada território).

Cáritas

A Cáritas Arquidiocesana, como já foi anteriormente, tem executado um papel fundamental na proteção dos refugiados no Brasil, desde a sua criação, através do programa Centro de Acolhida para Refugiados. Continua sendo a referência principal tanto para os refugiados que chegam ao país quanto para pesquisadores e jornalistas que querem trabalhar com o tema de refúgio. Fundada em 1956, a Cáritas é uma das 164 organizações-membros da Rede Cáritas Internacional, sendo nacionalmente um organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com o objetivo de promover trabalhos sociais pela defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. O Centro de Acolhida para Refugiados da Cáritas auxilia refugiados com o acolhimento, proteção legal e psicológica e reintegração local, com trabalho prioritariamente voluntário, tendo sedes em São Paulo 69


e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP) funciona na Bela Vista e atua como um órgão central que integra a comunicação de diferentes projetos para refugiados, abrigos, cursos de português, órgãos de serviço público e comunidades de estrangeiros já assentadas na cidade. Um dos projetos que tiveram apoio da CASP e ficaram mais conhecidos é a Copa dos Refugiados, organizada pelos próprios refugiados, e que em 2016 contou com a sua terceira edição, reunindo e integrando comunidades de refugiados através do futebol. Além de eventos culturais , a Cáritas realiza a campanha ininterrupta de doação de mantimentos e itens de higiene para os refugiados. No entanto, com o crescimento abrupto do número de solicitantes no Brasil entre 2014 e 2015, a Cáritas sofre com a falta de verba, e diversos refugiados reclamam da lentidão de atendimento da entidade.

Adus O Instituto de Reintegração do Refugiado no Brasil (Adus) também é uma das principais entidades que cuidam da proteção dos refugiados no país. Fundado em 2010, o Adus realiza ações voltadas à conscientização da questão do refúgio, além de feiras, bazares e cursos voltados para refugiados, e tem se tornado mais conhecido pelos refugiados nos últimos tempos. Segundo o Adus, os programas realizados são divididos entre “reintegração”, “orientação de trajeto” e “advocacy”.

Missão Paz

Outro programa importante é o Missão Paz, também ligado à 70


Igreja Católica, que une a Casa do Imigrante — serviço de abrigo e acolhida inaugurado em 1978 — o Centro Pastoral e de Mediação dos Migrantes, inaugurado na Igreja Nossa Senhora da Paz (localizada no bairro do Glicério), em 1977, e especializado em oferecer serviço de atendimento a imigrantes de modo geral, além do Centro de Estudos Migratórios (CEM), que possui uma biblioteca especializada em migrações e publica a Revista Travessia – Revista do Migrante. A organização tem se ocupado principalmente na proteção e acolhida da comunidade haitiana, muito numerosa na baixada do Glicério, região central de São Paulo. Neste ano, o Missão Paz estreou um projeto de Walking Tour para refugiados recém-chegados ao Brasil, com o objetivo de apresentar alguns locais da cidade de São Paulo. O abrigo da Casa do Imigrante possui 110 vagas e é dividido entre a ala feminina e masculina. No caso de refugiados e imigrantes que chegam acompanhados das respectivas famílias, as crianças ficam com a mãe. A Casa do Imigrante oferece as três refeições diárias, além de serviço de saúde psicológica, curso de português, e toda a assessoria prestada pelo Central Pastoral de Mediação.

Abrigos A cidade de São Paulo reúne seis abrigos destinados especificamente a imigrantes ou refugiados. Em outubro de 2014, foi inaugurado o primeiro abrigo público para essa população, a Casa de Passagem Terra Nova, um serviço sob a gestão da Secretaria Estadual do Desenvolvimento Social, resultado das reivindicações apresentadas pelas entidades que trabalham com imigrantes e refugiados. A Casa de Passagem possui 50 vagas e privilegia refugiados recém-chegados . O tempo de 71


estadia varia entre três a seis meses, de acordo com a vulnerabilidade e inserção social de cada pessoa ou família refugiada. Durante esse período são oferecidas atividades ocupacionais, orientação profissional, oficina de idiomas e auxílio para inclusão no mercado de trabalho. Até então, os refugiados que chegavam ao país na situação de rua eram encaminhados aos serviços de abrigo da Casa do Imigrante, ao Centro de Acolhida Arsenal da Esperança – abrigo que faz parte do complexo do Museu da Imigração, mas também abriga cidadãos brasileiros em situação de rua – e outros abrigos públicos comuns, constantemente superlotados. Ainda em 2014, no mês de novembro, foi inaugurado o Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI), também dedicado a acolher imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil em situação de rua. O CRAI é uma parceria da Secretaria de Assistência Social e de Direitos Humanos (órgão municipal) com o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), e tem cerca de 110 vagas. O CRAI disponibiliza café da manhã e mantimentos para crianças, assim como itens de higiene para os imigrantes e refugiados abrigados. Os serviços prestados incluem atendimento jurídico e psicológico gratuito, além de cursos e oficinas voltados à qualificação profissional dos imigrantes. O abrigo reúne imigrantes de diferentes países, que dividem quartos, frequentemente com famílias inteiras. O período máximo de hospedagem no abrigo é de seis meses, e nesse meio tempo, o refugiado é incentivado a conseguir emprego e um fiador para conseguir alugar outra moradia. O tempo, entretanto, é ínfimo para quem chega ao país sem conhecer a língua e cultura local, tendo que se virar para quebrar inúmeras barreiras. Para refugiados que chegam em família, com crianças pequenas, a independência financeira é ainda mais difícil de ser alcançada. 72


Em outubro de 2015, foi inaugurado o Centro de Acolhida de Imigrantes – Missão Scalabriniana, sob a ordem cristã da Congregação das Irmãs Scalabrinianas. O Centro tem capacidade para 150 imigrantes, 120 homens e 30 para mulheres, uma vez que as alas são divididas por sexo, e oferece serviço de acolhida, alimentação e orientação. Os imigrantes ou refugiados que chegam ao centro são encaminhados diretamente pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), órgão da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Finalmente, há a Casa de Acolhida da Associação Palotina (ASP), conhecido como Casa das Mulheres, centro destinado ao acolhimento de mulheres refugiadas e seus filhos, além de estrangeiras egressas do sistema prisional, que aguardam o retorno para os países de origem. São disponibilizadas 40 vagas, e encaminhamento para serviços de saúde, educação e auxílio emprego, através do Grupo de Apoio aos Refugiados, que se reúne mensalmente para deliberar medidas em prol da inclusão dos refugiados.

Abraço Cultural

A Ong Abraço Cultural foi criada em julho de 2015, em uma iniciativa da plataforma social online Atados, que organiza e estimula o trabalho voluntário em São Paulo. Em parceria com o Adus, o Abraço Cultural é especializado em oferecer cursos de línguas ministrados por refugiados para alunos do público geral. Há muitos cursos voluntários de português para refugiados e imigrantes espalhados por São Paulo, geralmente organizados por cursinhos populares, por faculdades ou pelo Sesc. Mas o diferencial do Abraço Cultural é que ele empodera os próprios imigrantes, que se tornam professores nativos e desenvolvem o material 73


didático. Os cursos também estimulam a integração cultural através de workshops de tradições dos países de origem, como culinária, dança e canto.

IKMR A Ong I Know my Rights (IKMR), ou “Eu Conheço Meus Direitos”, oferece programas de integração para crianças refugiadas. Com sedes em Uberlândia, Rio de Janeiro e São Paulo, foi criada em 2012 e é a única responsável pelo atendimento focado em crianças refugiadas, sendo referência nessa questão. A IKMR leva as crianças para diferentes passeios culturais, e promove várias ações envolvendo crianças refugiadas no país, como a visita das crianças refugiadas na Arena do time paulistano de futebol Corinthians, realizada em abril de 2016 e a escolha da refugiada síria Hanan Daqqah, de 12 anos, para ser uma das primeiras condutoras da tocha olímpica em Brasília, antes dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Outra ação importante realizada pela IKMR foi o Jantar Humanitário para celebridades realizado no Rio de Janeiro, com o objetivo de angariar fundos para a Ong. O jantar foi produzido por um chef sírio e contou com a participação do Coral Coração Jolie — crianças reunidas pela IKMR — que também esteve presente na cerimônia de “Trégua Olímpica” em agosto, no Rio de Janeiro.

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Projetos

Diversos projetos vêm sendo criados nos últimos anos, em

paralelo com o aumento expressivo de refugiados no Brasil, para divulgar a causa e questões do refúgio, ainda muito desconhecidas pela população brasileira. Um deles é o Migramundo, blog de 2012 que se tornou site em 2016, produzido pelo jornalista Rodrigo Borges Delfim, com o objetivo de abordar as diferentes facetas que permeiam as migrações no Brasil e no mundo, partindo do entendimento de migração como um direito humano. Já o Migraflix, plataforma criada em 2015 pelo próprio Rodrigo e por um colega argentino, Jonathan Berezovsky, reúne workshops culturais ministrados por imigrantes e refugiados em diferentes eventos, colaborando com o auto sustento dessa população no Brasil. Outro projeto que ganhou destaque é o site Estou Refugiado!, criado em 2015. O site reúne o perfil de refugiados de diferentes países, explicando sua história, através de texto e ensaio fotográfico, e destacando suas principais necessidades durante a permanência no Brasil. A iniciativa surgiu após um experimento feito no aplicativo de encontros Tinder, no qual um refugiado comparava o número de matches (retornos) que recebia quando utilizava a palavra “estrangeiro” na sua descrição, com o número de matches quando se identificava na descrição como refugiado. Uma vez que o experimento comprovou o preconceito e desconhecimento da população brasileira sobre o termo “refugiado”, o site tem o objetivo de humanizar e desmistificar os tabus relacionados a essa população. Em 2016 foi lançado o projeto Vidas Refugiadas, uma série de vídeos e ensaios fotográficos que contam a história de mulheres refugiadas no Brasil, focando na especificidade da violência de gênero somada à situação de refúgio, buscando dar protagonismo a essas mulheres de diferentes países que hoje vivem no Brasil. O projeto é organizado pela 75


advogada Gabriela Cunha Ferraz, que foi coordenadora de atendimento jurídico na Cáritas, em parceria com o ACNUR. Independentemente das intenções positivas das entidades e projetos descritos acima, o fato da sociedade civil e do terceiro setor serem responsáveis por grande parte dos projetos e auxílio destinado a refugiados no Brasil é preocupante. Isso porque, apesar do Brasil garantir acesso público ao sistema de saúde e alguns abrigos para moradores de rua, ainda há necessidades não atendidas em termos de políticas públicas para imigrantes e refugiados no país. O aumento do fluxo migratório não foi acompanhado ainda por um aumento de serviços disponibilizados, e a grande demanda de refugiados nas mãos de poucas Ongs e entidades faz com que muitos deles sofram com uma espera grande para conseguirem se assentar e se sustentar no país. Outra questão que deve ser notada é a importância da participação da Igreja Católica no sustento dos refugiados no Brasil. Mesmo que as organizações não preguem diretamente o cristianismo, diversas referências religiosas são feitas nas sedes, panfletos e sites das entidades, Ongs e abrigos, que recebem diariamente refugiados de diferentes religiões. Esse fato talvez colabore para a confusão que se existe em torno da suposta ‘laicidade’ do Estado Brasileiro, uma vez que os refugiados chegam ao país esperando serem acolhidos pelo governo. Ao mesmo tempo, é interessante notar que as instituições religiosas são as primeiras a “se importarem” com diferentes causas sociais no Brasil, tendo sido desde sempre as protagonistas em serviços e auxílio para refugiados. Os movimentos políticos por direitos humanos, frequentemente alinhados ao espectro político de esquerda, não travam quase nenhum contato com essa população no país. Uma exceção pode ser feita aos refugiados que se abrigam em ocupações organizadas por 76


movimentos políticos no centro de São Paulo, como é o caso dos palestinos da ocupação Leila Khaled, uma parceria entre o Mop@t e o movimento Terra Livre de famílias sem-teto, e dos refugiados ativistas criadores do GRIST.

2.4. Estatísticas atuais Acompanhando o aumento do fluxo migratório mundial nos últimos anos, o número total de solicitações de refúgio no Brasil cresceu mais de 2.868% entre 2010 e 2015, passando de 966 solicitações para 28.670. Entre 2010 e 2016, houve um aumento de 126% dos refugiados reconhecidos no país. De acordo com o relatório do CONARE, Sistema de Refúgio Brasileiro – Desafios e Perspectivas, divulgado em maio de 2016, o Brasil possui atualmente aproximadamente 8.800 refugiados reconhecidos, de 79 nacionalidades distintas. A maioria dos solicitantes de refúgio no país vem da África, da Ásia (inclusive Oriente Médio) e do Caribe. Os sírios são a maior comunidade reconhecida no Brasil, somando 2.298 refugiados reconhecidos. Eles são seguidos pelos angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses (968) e palestinos (376). Já entre os solicitantes de refúgio, os haitianos são maioria absoluta, com 48.371 solicitações realizadas entre 2010 e 2015. Como explicado anteriormente, os haitianos conseguem a autorização de permanência no Brasil através de um visto humanitário por imigração ambiental, não sendo aceitos na condição de refugiados. Em relação ao perfil dos refugiados reconhecidos, 28,2% são mulheres e 71,8% homens. A maioria dos refugiados reconhecidos está 77


na faixa dos 18 aos 29 anos (42,6%). Em segundo lugar vem a faixa de 30 a 59 anos, sendo 32,2% refugiados reconhecidos. Os menores de idade, de 0 a 12 anos, representam 13,2% dos refugiados reconhecidos e os entre 13 e 17 anos representam 7,8%. A faixa etária com menos refugiados reconhecidos é a de maiores de 60 anos (1,8%). Pela localização geográfica e condição econômica, esses números, embora tenham crescido muito, continuam muito baixos em relação aos países que mais recebem refugiados no mundo, como a Turquia, que conta com 1,85 milhão de pessoas nessa situação, seguida pelo Paquistão (1,5 milhão) e o Líbano (1,2 milhão). Este último tem o maior número de refugiados em relação à própria população – 209 a cada 1.000 pessoas, o equivalente a um refugiado para cada 5 habitantes, segundo dados do Mid-Year Trends de 2015, uma prévia do relatório oficial de 2016 do ACNUR. Em relação ao perfil dos refugiados, o Brasil também não segue o padrão mundial: A maioria de 65,3 milhões dos deslocados mundiais são menores de 18 anos, internacionalmente classificados como crianças. Nos próximos capítulos será analisada a questão das crianças refugiadas ao redor do mundo e no Brasil, como forma de problematização da situação desse grupo, considerado o mais vulnerável entre os refugiados.

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Fonte: Relatório Sistema de Refúgio Brasileiro – Desafios e Perspectivas/ ACNUR Brasil

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Capítulo 3 O Refúgio na Infância – Legislação e Dados

CAPÍTULO 3: O REFÚGIO NA INFÂNCIA LEGISLAÇÃO E DADOS 81



3.1. Situação das crianças no contexto atual da crise migratória: Tratados Internacionais Diferente do Brasil, onde desde 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reconhece crianças como pessoas menores de 12 anos e adolescentes como pessoas entre 12 e 18 anos, internacionalmente, crianças são todos os menores de 18 anos. Durante o século XX, diversos tratados foram elaborados para estabelecer os direitos das crianças. Tais tratados caracterizaram a formalização legal da figura social da criança, uma vez que o conceito de infância foi historicamente e ideologicamente construído no mundo ocidental, tendo evoluído com as décadas. Na Idade Média, crianças eram consideradas pequenos adultos e eram tratadas como tais, executando os mesmos deveres, e trabalhos, e frequentando o mesmo ambiente que adultos a partir do momento em que conquistassem independência física. O conceito de “infância” 83


começou a ser moldado apenas na Idade Moderna, quando teve início a segregação de espaços e contextos destinados às crianças. Entretanto, desde a Revolução Industrial o trabalho infantil foi intensificado ainda mais como uma forma de mão de obra mais barata. Com o advento das escolas para as classes sociais mais altas e com a criação de nichos de mercado focados na criança, o conceito de infância foi se desenvolvendo no liberalismo em paralelo ao desenvolvimento da noção das crianças como potenciais consumidoras. Entretanto, como foi teorizado pelo historiador da infância e da família, Philippe Àries, o sentimento de infância não é algo que pode ser acessado por todas as crianças e sim algo delimitado por classe social e poder econômico18. Esse paradigma perpassou séculos e eras e continua atual se pensarmos nos múltiplos tratados sobre o Direito das crianças em contraste com a condição das crianças deslocadas forçadamente no mundo hoje. 51% do total de deslocados do mundo são crianças, que por sua vez não se enquadram no conceito de infância ao terem seus direitos feridos sistematicamente. São 98,4 mil solicitações de refúgio registradas apenas de crianças desacompanhadas ou separadas de suas famílias, sendo o maior número já visto pelo ACNUR. Esses números representam milhões de crianças que não são atendidas pelos inúmeros tratados internacionais. Entretanto, destacar esses tratados e as leis regionais é essencial para entendermos o quão distantes estão as realidades das crianças ao redor do mundo e a garantia de proteção jurídica que o status de refugiado concede, de acordo com privilégios sociais e econômicos.

Desde 1924, a Liga das Nações adota a Convenção de Genebra sobre

18 História Social da Infância e da Família. Philippe Àries

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os Direitos das Crianças, que estabelece ordens para o desenvolvimento material, moral e espiritual das crianças, além de delimitar a necessidade de ajuda especial dos Estados em caso de situação de fome, doença, incapacidade ou orfandade. A proposta preliminar da declaração, elaborada pela Organização Save the Children, define cinco pontos de reivindicação dos direitos das crianças: “i) A criança deve ser dada a meios necessários para o seu desenvolvimento normal, tanto material quanto espiritualmente; ii) A criança que está com fome deve ser alimentada, a criança que está doente deve ser nutrida, a criança que está para trás deve ser ajudada; a criança delinquente deve ser recuperada, e o órfão e à criança abandonada deve ser protegida e socorrida; iii) A criança deve ser a primeira a receber alívio em tempos de aflição; iv) A criança deve ser colocada em posição de ganhar a vida, e deve ser protegida contra toda forma de exploração; v) A criança deve ser educada na consciência de que seus talentos devem ser dedicados ao serviço dos outros homens”. Em 1948, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Direitos Humanos, que, em seu artigo 25, menciona a criança como “detentora do direito a cuidados e assistência especiais”. Já em 1959, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração dos Direitos da Criança, que reconheceu direitos como: imunidade contra discriminação, ter um nome e ter uma nacionalidade. O primeiro princípio da Declaração reitera que todas as crianças “sem distinção ou discriminação são credoras de 85


todos os direitos enumerados no documento”. Em 1979, a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que busca garantir proteção para os direitos humanos de meninas e mulheres. O mesmo ano foi declarado como Ano Internacional da Criança e um grupo de trabalho foi criado para elaborar uma versão preliminar da Convenção sobre os Direitos das Crianças. Em 1989, a Assembleia Geral da ONU aprovou por unanimidade a Convenção sobre os Direitos da Criança, contendo 54 artigos. O primeiro artigo definiu a criança como todo ser humano menor de 18 anos e fixou os princípios básicos de: não discriminação; melhor interesse superior da criança; direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento; e respeito pelas opiniões da criança. A Convenção também consagrou a Doutrina da Proteção Integral, reconhecendo à infância e à adolescência alguns direitos especiais a serem garantidos com prioridade. Outros tratados foram elaborados ao longo das décadas de 1990 e do início dos anos 2000, como: a Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança e a Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, de 1990; a Convenção n.o 182 da Organização Mundial do Trabalho, de 1999, que se refere à proibição e ação imediata para eliminação das “piores formas de trabalho infantil”; os Protocolos Facultativos sobre Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados e Referente à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e à Pornografia Infantil, em complemento à Convenção sobre os Direitos Humanos; e a Declaração de Dakar sobre Educação para Todos.

Em 2002, a Assembleia Geral da ONU realizou uma Sessão 86


Especial sobre a Criança, que contou com a presença de centenas de crianças como membros de delegações oficiais. O documento Um Mundo para as Crianças foi elaborado com os seguintes pontos propostos: 1. Colocar as crianças em primeiro lugar; 2. Erradicar a pobreza: investir na infância; 3. Não abandonar nenhuma criança; 4. Cuidar de cada criança; 5. Educar todas as crianças; 6. Proteger as crianças da violência e da exploração; 7. Proteger as crianças da guerra; 8. Combater o HIV/AIDS; 9. Ouvir as crianças e assegurar sua participação; 10. Proteger a Terra para as crianças. Cinco anos depois, em 2007, o acompanhamento dos desdobramentos da sessão resultou em uma Declaração sobre a Criança, adotada por mais de 140 governos. A Convenção sobre os Direitos da Criança, suas atualizações e protocolos são de extrema importância para as crianças refugiadas, uma vez que cobrem todos os aspectos da vida das crianças. Isso significa que os Estados signatários da Convenção têm a obrigação no Direito Internacional de garantir todos os benefícios de crianças cidadãs para crianças refugiadas em seu território. Em relação aos direitos das crianças refugiadas, a Convenção estabelece, em seu Art. 22:

1) Os Estados-Partes adotarão medidas pertinentes para assegurar que a criança que tente obter a condição de refugiada, ou que seja considerada como refugiada de acordo com o direito e os procedimentos internacionais ou internos aplicáveis, receba, tanto no caso de estar sozinha como acompanhada por seus pais ou por qualquer outra pessoa, a proteção e a assistência humanitária

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adequadas a fim de que possa usufruir dos direitos enunciados na presente Convenção e em outros instrumentos internacionais de direitos humanos ou de caráter humanitário dos quais os citados Estados sejam parte. 2) Para tanto, os Estados-Partes cooperarão, da maneira como julgarem apropriada, com todos os esforços das Nações Unidas e demais organizações intergovernamentais competentes, ou organizações não governamentais que cooperem com as Nações Unidas, no sentido de proteger e ajudar a criança refugiada, e de localizar seus pais ou ou- tros membros de sua família a fim de obter informações necessárias que permitam sua reunião com a família. Quando não for possível localizar nenhum dos pais ou membros da família, será concedida à criança a mesma proteção outorgada a qualquer outra criança privada permanente ou temporariamente de seu ambiente familiar, seja qual for o motivo, conforme o estabelecido na presente Convenção.

O ACNUR aplica a Convenção em seu próprio trabalho, usando-a como princípio guia. Uma vez que sua ratificação é praticamente universal, mesmo que o Estado não seja signatário da Convenção do Refugiado, ou de algum outro tratado de proteção de refugiados, as crianças refugiadas estarão juridicamente protegidas, na teoria, pela Convenção sobre o Direito da Criança. Assim, a Convenção pode ser utilizada como base primária para proteção das crianças refugiadas.

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Porque seus padrões são universais, a Convenção sobre os Direitos da Criança pode ser utilizada como uma ferramenta poderosa para a advocacia: um país não pode reivindicar sua singularidade como uma desculpa para não acatar padrões internacionais19.

Os tratados referentes aos refugiados, como a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, estabelecem em seus artigos que os direitos são aplicados às crianças da mesma forma como aos adultos: Uma criança que sofre medo fundado de ser perseguida por um dos motivos estabelecidos é um refugiado; uma criança que possui status de refugiado não pode ser forçada a retornar para seu país de origem e nenhuma distinção é feita entre crianças e adultos em direitos legais e bem-estar social. Um artigo específico da Convenção de 1951 estabelece normas importantes para as crianças: “refugiados devem receber o mesmo tratamento que cidadãos na educação primária, e tratamento ao menos tão favorável quanto o dado para não refugiados na educação secundária”. Já a Convenção para Tratar dos Aspectos Específicos do Problema dos Refugiados na África (OUA) e a Declaração de Cartagena sobre Refugiados, não estabelecem distinção entre adultos e crianças. A Iniciativa Action for the Rights of Children (ARC), estabelecida em 1997 como um programa colaborativo entre o ACNUR, a Ong Save the Children Allience e a UNICEF, é um dos principais projetos internacionais que têm em foco as crianças refugiadas, visando aumentar a capacidade da proteção e cuidado de crianças em situação de emergência. A ARC foi instituída como uma resposta direta ao estudo e relatório feito pela política e ativista dos direitos humanos moçambicana Graça 19 ACNUR, refugee children: guidelines on protection and care.

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Machel, em 1996, o “Impacto de Conflitos Armados em Crianças20”. O projeto atua, principalmente, realizando treinamentos regionais para capacitar profissionais em assistência social nos locais onde são identificados problemas críticos afetando crianças. Pelo menos, metade do total de refugiados e pessoas deslocadas são crianças. Num período crucial e vulnerável das suas vidas, elas foram brutalmente desenraizadas e expostas ao perigo e à insegurança. No decorrer da deslocação, milhões de crianças foram separadas das suas famílias, abusadas fisicamente, exploradas e raptadas por grupos militares, ou sucumbiram à fome e à doença. (MACHEL, 1996, p.)

3.2. Legislação brasileira Direitos da Criança Refugiada

Direitos das Crianças

Além de ser signatário de todos os tratados internacionais mencionados acima, o Brasil reúne em sua legislação leis voltadas especificamente às crianças. No entanto, a legislação sobre crianças e adolescentes no país evoluiu com muita lentidão durante o século XX. Antes vigorava o Código de Menores, lei voltada principalmente para 20 MACHEL, Graça. impacto de conflitos armados em crianças. 1996

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estabelecer penas para crianças e adolescentes que praticassem crimes. Até hoje a palavra “menor” é utilizada principalmente para caracterizar “menores infratores” na mídia, sendo claramente discriminatória quando se refere às camadas menos abastadas da sociedade. O Código de Menores estabelecia a Doutrina da Situação Irregular, que delimitava também crianças e adolescentes em situação irregular por abandono, carência, inaptidão. Pela concepção dessa legislação, estabelecida em 1927, os pais eram obrigados a “vigiar” os filhos, no lugar de “cuidar”. A partir de 1941 foi instituído o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), um órgão veiculado ao Ministério da Justiça, com o objetivo de manter a lógica da Doutrina de Situação Irregular. Tanto a criança autora de ato infracional quanto a criança abandonada respondiam a esse órgão, sendo direcionadas para internatos, reformatórios ou casas de correção. A partir de 1964, com o golpe civil militar, a Doutrina da Segurança Nacional instituiu a Política do Bem Estar do Menor, e fundou a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (Funabem) e as Fundações Estaduais do Bem Estar do Menor (Febem), que apesar de terem como proposta uma maior assistência à infância, tanto para menores infratores quanto para crianças “carentes”, eram basicamente presídios infantis. Em 1979, o Código de Menores foi reformulado, a partir da promulgação do ano como o Ano Internacional da Criança. A reformulação, entretanto, manteve a Doutrina da Situação Irregular, acrescida da Política do Bem Estar do Menor. Ou seja, a noção de vulnerabilidade de crianças e adolescentes ainda era entendida como uma forma de desvio de conduta a ser “corrigida”. A atualização continuou em divergência com os inúmeros tratados internacionais sobre os direitos 91


humanos e direitos das crianças. A partir de 1988, a Constituição Federal pós ditadura civil militar fixou pela primeira vez na história do país uma legislação protetiva em relação a crianças e adolescentes. O artigo 227 fixou como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar “com absoluta prioridade os direitos das crianças e adolescentes21”. A adoção do princípio de Proteção Integral foi a grande inovação da Constituição de 1988 em relação ao direito das crianças.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Constituição também prevê o estímulo do Poder Público ao acolhimento da criança ou adolescente órfão, através de assistência juridica, incentivos fiscais e subsídios; programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependentes de entorpecentes e drogas; a adoção assistida pelo Poder Público; e o estabelecimento do Estatuto da Juventude, destinado a regular os direitos dos jovens; o Plano Nacional da Juventude, de duração decenal, que visa a articulação de 21 Constituição Federal Brasileira. 1988.

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várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas. O documento também estabelece, em seu Art., 228 que menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis. Em 1990 entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que introduziu no ordenamento jurídico nacional a Doutrina da Proteção Integral para toda e qualquer criança (até 11 anos de idade), consideradas sujeitos de direitos e deveres, e adolescentes (entre 12 e 17 anos), considerados sujeitos de direitos, deveres e responsáveis pelos seus atos (com exceção de responsabilidade penal). O ECA é considerado uma legislação extremamente avançada, tendo incorporado como um todo a discussão dos Direitos Humanos. A partir dessa legislação, as crianças e adolescentes passaram a ser considerados pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Em seus artigos preliminares, o ECA incorpora também princípios da Convenção do Direitos da Criança, como o princípio da não discriminação:

Art. 3. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.” Art 4. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer

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circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.” Art. 5. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

Direitos das Crianças Refugiadas

Entre os direitos garantidos pelo ECA que mais interessam para o entendimento dos direitos das crianças refugiadas vivendo no Brasil estão: o Art. 11, que assegura o atendimento integral e universal à saúde da criança e adolescente pelo Sistema Único de Saúde (SUS); o Art. 15, que garante o direito à liberdade, respeito e dignidade; o Art. 16, que garante os direitos de liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso; brincar, praticar esportes, divertir-se, participar da vida familiar e comunitária; participar da vida política e buscar refúgio, auxílio e orientação. Já o Art. 17, diz respeito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, identidade, autonomia, valores, ideias, crenças, espaços e objetos pessoais. Em relação à educação, o Art. 53, do Capítulo IV, estabelece o direito à educação, igualdade de condições para acesso e permanência na 94


escola e acesso à escola pública e gratuita próxima à residência. O Art. 54 garante o atendimento em creche e pré-escola a crianças de 0 a 6 anos de idade. Já o Art. 58, garante, no processo educacional, o respeito de valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e adolescente.

Em relação à proteção, o Art. 100 estabelece a obrigatoriedade da informação da criança, adolescente, pais ou responsáveis a cerca de seus direitos, além do direito à participação, ou seja, o direito das crianças e adolescentes de serem ouvidos. Já em relação à justiça, os Art. 141 e 142, garantem o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, sendo que menores de 16 anos devem ser representados, e maiores de 16 e menores de 21 anos, assistidos por pais, tutores ou representantes legais. O Estatuto do Estrangeiro não possui artigos referentes especificamente às crianças ou adolescentes estrangeiros residentes no Brasil. Já o Estatuto do Refugiado de 1997 estabelece apenas, em seu Art. 21, que os menores de 14 anos devem ser mencionados no protocolo de solicitantes de refúgio junto ao seu grupo familiar. Segundo a advogada Vivian Holzhacker, a qualquer criança imigrante ou refugiada que chega no Brasil, é aplicado diretamente o ECA. O processo de solicitação de refúgio para crianças, entretanto, depende muito da situação em que a criança refugiada se encontra. O contingente de crianças refugiadas é dividido por especialistas em três categorias: Crianças reunidas com a família, crianças separadas e crianças desacompanhadas. O primeiro grupo, como o nome esclarece, passa por todos os processos de refúgio junto dos pais ou família responsável. O segundo grupo diz respeito às crianças que viajam com 95


alguém maior de 18 anos, mas não com seu responsável legal. O último grupo reúne crianças completamente desacompanhadas de adultos responsáveis, que chegam aos países de destino sozinhas. Essa categoria, como é de se esperar, representa a de maior vulnerabilidade. “Todo estrangeiro que chega ao Brasil e quer solicitar refúgio precisa ir na Polícia Federal solicitar. Para as crianças que chegam aqui com os pais é mais tranquilo, elas entram dentro do pedido com os pais, muitas vezes sequer são entrevistadas. Algumas pessoas acreditam que elas deveriam ser entrevistadas, mas pensando em estrutura governamental, eles não costumam entrevistar”, relatou Vivian. As crianças refugiadas separadas que chegam ao Brasil passam por um processo judicial que nomeia a pessoa maior de idade que chegou com elas como um responsável legal. Só após essa nomeação a criança pode fazer a solicitação de refúgio na Polícia Federal. Esse processo envolve muito cuidado uma vez que é extremamente necessário entender a relação entre a pessoa maior de idade e a criança acompanhada. No caso de crianças imigrantes e refugiadas, esse cuidado é crucial para interromper as situações, muito comuns, de tráfico humano de crianças para escravidão ou exploração sexual. Por esse motivo, a nomeação do responsável legal pode demorar de seis meses a três anos. Já as crianças desacompanhadas, que chegam ao país completamente sozinhas, são encaminhadas para os mesmos abrigos da prefeitura destinados às crianças brasileiras órfãs. Nesse caso, o própro juiz pode dar a ordem para que as crianças possam ir à Polícia Federal solicitar o refúgio. Entretanto, isso não ocorre com muita frequência no país.

“A gente conseguiu, enquanto eu estava na Cáritas, em 2014, 96


conversar com os defensores e com uma juíza que normalmente era quem recebia os pedidos pra acelerar um pouco o processo de nomeação de responsável legal, mas ainda assim demorava porque o maior precisava chegar com documentos, há varias exigências. Significa então que a criança não consegue fazer o pedido de refúgio sozinha. Eu sou muito crítica dessa exigência de que o menor vá acompanhado de alguém, porque para mim o pedido de refugio é um pedido de proteção, eu acho um contra-senso você precisar de um maior de idade para pedir proteção. As pessoas que acreditam que precisa realmente desse maior acompanhado falam que seria uma forma de reduzir chances de tráfico de pessoas e crianças. Eu acho bem esquisito, porque ao exigir um maior acompanhando, justamente você deixa o menor sem documentos e ele acaba muito mais sujeito à exploração”, comentou Vivian. Após o passo inicial da solicitação de refúgio, as crianças e adolescentes passam pelo mesmo rito que os demais refugiados, mas tem sua solicitação considerada prioridade pelo CONARE, que antecipa o processo caso as crianças estejam separadas ou desacompanhadas. Se as crianças chegam ao Brasil junto de suas famílias, o processo de solicitação de refúgio não recebe nenhum tipo de prioridade legal. “Toda criança que chega consegue ter acesso à escola, educação e saúde. Às vezes há dificuldade para conseguir abrigos para menores desacompanhados, mas em geral conseguem abrigar e a criança tem acesso a essa proteção do Estado. É um debate importante porque o olhar extremamente protetivo que você dá à criança e principalmente adolescente refugiado acaba conflitando com o olhar de estrangeiro como ameaça para o Estado. Então, por exemplo, alguns juízes pedem exames para identificar a idade e ver se de fato o refugiado é menor de idade. Esses exames medem o tamanho do osso das pessoas e são super questionáveis 97


e nem sempre conclusivos”, destacou a advogada. Dessa forma, é importante reiterar que as garantias legais de proteção dos refugiados muitas vezes não são colocadas em prática. Embora a Convenção Sobre os Direitos das Crianças, a Constituição Federal Brasileira e o ECA garantam uma série de direitos protetivos às crianças e adolescentes, as crianças refugiadas, como foi analisado anteriormente, foram e estão sujeitas a uma série de violações de direitos que as impossibilitam de viver o período da infância através de um desenvolvimento saudável. As próprias crianças brasileiras não estão muito à frente em relação à proteção de seus direitos humanos. Um ranking divulgado em outubro de 2016 pela ONG internacional Save the Children, por exemplo, colocou o Brasil entre os 50 piores países do mundo para as meninas, em 102o lugar. O relatório Every Last Girl é baseado em taxas de casamentos infantis, gravidez na adolescência, mortalidade materna, representatividade feminina no parlamento e índice de conclusão de ensino médio pelas garotas.

3.3. Dados sobre crianças refugiadas ao redor do mundo A porcentagem expressiva de crianças refugiadas ilustra a ineficiência dos inúmeros tratados internacionais e legislações destacados anteriormente. Diante de todos os direitos descritos acima, as crianças deslocadas provavelmente formam um dos grupos mais intocados pelo 98


Direito Internacional. No relatório Uprooted – The Growing Crisis for Refugee and Migrant Children, divulgado pela UNICEF no dia 7 de setembro de 2016, são aproximadamente 48 milhões de crianças migrantes no mundo atualmente, sendo que 11 milhões são reconhecidas como refugiadas ou pleitam o reconhecimento de refúgio e 17 milhões são deslocadas internas. Em outros dados, a organização mostra que entre 2005 e 2015 houve um crescimento de 75% no número de crianças refugiadas e que aproximadamente uma em cada 200 crianças no mundo é refugiada. Em torno de 45% das crianças refugiadas sob a proteçãoo da ONU são originárias da Síria e do Afeganistão. Apenas 6% das crianças refugiadas pedem asilo na América do Sul, a grande maioria se desloca dentro da África e Ásia. No entanto, o país que mais recebe crianças imigrantes é os Estados Unidos, que abriga cerca de 3.7 milhões dessa população. O Relatório No More Excuses do ACNUR e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), publicado em maio de 2016, apontou que as crianças refugiadas têm cinco vezes mais chances de ficarem fora das escolas do que as crianças que não estão nessa situação. O relatório mostra que apenas metade dos menores refugiados está matriculada no ensino primário. Entre os adolescentes no ensino secundário, o índice cai para 25%. As crianças também formam o grupo mais vulnerável entre os refugiados ao redor do mundo. Além de estarem sujeitas a todos os riscos e violações de direitos característicos da condição de refúgio, as crianças refugiadas, por serem muito mais frágeis, acabam sendo vítimas de crimes e fenômenos sociais que vão de abuso sexual a tráfico humano. 99


Dados divulgados pela agência policial europeia Europol, em janeiro de 2016, mostraram que pelo menos 10 mil crianças refugiadas desapareceram na Europa entre os 18 e 24 meses anteriores à publicação do dado. O número diz respeito à crianças que foram contabilizadas na entrada de imigrantes do continente, mas que tiveram seus rastros perdidos depois de serem registradas junto às autoridades europeias. Aproximadamente 27% dos imigrantes que entraram na Europa em 2015 são crianças, um número menor do que o representado pela porcentagem mundial de crianças refugiadas, mas muito maior do que o de crianças entrando refugiadas que pediram asilo no Brasil. A agência informou ainda que suspeita que muitas estão sendo exploradas, principalmente sexualmente, pelo crime organizado. O relatório “Perigo a cada passo do caminho”, publicado pela UNICEF em junho de 2016, relata que mais de 7 mil crianças fizeram a travessia do norte da África à Itália nos primeiros cinco meses do ano, sendo 90% delas desacompanhadas. Aproximadamente 1000 crianças refugiadas desacompanhadas vivem no campo de refugiados ‘Jungle’ em Calais, na França, na esperança de conseguirem migrar para a GrãBretanha. Diversas notícias publicadas nos últimos anos mostram o aumento absurdo de denúncias de estupro sofridos por mulheres e crianças nos campos de refugiados e no trajeto de deslocamento pela Europa. Os acusados na maioria das vezes são os soldados das missões de paz da ONU, os chamados “capacetes azuis”. Na República Democrática do Congo, por exemplo, foram mais de 100 pessoas, incluindo menores de idade, que denunciaram terem sido vítimas de crimes sexuais pela Missão Integrada Multidimensional 100


das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA). Uma reportagem da BBC Brasil, de novembro de 2015, alertou para outra violação dos direitos internacionais infantis sofrida por crianças refugiadas: o trabalho infantil. Segundo a reportagem, crianças sírias refugiadas de até três anos estão sendo exploradas para o trabalho infantil por fazendeiros e companhias na Jordânia. As informações são de ativistas da organização Tamkeen, voltada para o desenvolvimento infantil e situada em Amã, capital do país. A entidade estima que cerca de 46% dos meninos refugiados sírios e 14% das meninas, com 14 anos ou mais, estão trabalhando mais de 44 horas por semana na Jordânia, onde a maioridade legal é de 16 anos. Um relatório divulgado pela UNICEF em março de 2016 apontou que uma em cada três crianças sírias nasceu no período de guerra civil e que mais de 80% dos menores de idade, aproximadamente 8,4 milhões de crianças, foram afetadas pelo conflito, que teve início em 2011. Uma reportagem publicada pelo site Foreign Policy mostra que as tentativas de suicídio entre jovens e crianças sírias refugiadas vêm aumentando cada vez mais. De acordo com um estudo realizado em 2014 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), 41% dos jovens sírios no Líbano disseram já terem tido estímulos suicidas. Outros dados publicados pela Organização Internacional de Migração em abril de 2016, denunciaram que desde a divulgação da imagem do menino Aylan Kurdi morto em uma praia turca, outras 357 crianças já haviam sido encontradas mortas por afogamento na costa do Mediterrâneo.

Fica clara, portanto, a situação de vulnerabilidade em que as 101


crianças refugiadas se encontram ao redor do mundo. A partir de entrevistas com alguns especialistas e pessoas envolvidas na questão do refúgio no Brasil, no próximo capítulo serão analisadas as diversas implicações que perpassam a questão do refúgio na infância, e o contexto atual brasileiro como um país que cada vez mais se torna destino de crianças refugiadas.

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Capítulo 4

CAPÍTULO 4:

Vulnerabilidades da Criança Refugiada no Brasil

vulnerabilidade da criança refugiada no brasil

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Na palestra “Crianças migrantes desacompanhadas”, organizada pelo CRAI e pela Defensoria Pública da União (DPU) e realizada em dezembro de 2015, a pesquisadora Patrícia Nabuco definiu as seguintes situações como principais motivos do refúgio infantil atualmente: falta de desenvolvimento e oportunidade educacional; pobreza; ausência de terra; carência de políticas internacionais pensadas para crianças migrantes que acabam ficando fora dos tratados de imigração; vulnerabilidade nas políticas nacionais para cumprimento dos direitos das crianças; discriminação, principalmente de meninas; desastres naturais (mudanças climáticas, por exemplo); conflitos armados e violência (crianças perseguidas, cooptadas, sequestradas por forças armadas – chamadas crianças-soldado); mutilação genital de meninas; reunião familiar (crianças cujos pais já migraram); e crianças desacompanhadas vítimas de abuso doméstico. A variedade de situações é muito grande e serve de base para países que recebem uma grande quantidade de crianças refugiadas desacompanhadas, como os EUA onde, em 2015, entraram cerca de 90 mil crianças desacompanhadas, principalmente a pé, cruzando a fronteira do México. Nos EUA, a falta de ambientes receptivos a crianças faz com que muitas dessas crianças acabem deportadas ou presas. 107


A falta de cuidado no tratamento dessas crianças é movida principalmente por preconceito, racismo ou xenofobia. A pesquisadora indiana/britânica Jacqueline Strimpel Bhabha, professora da faculdade de direito de Harvard e especialista em direito migratório, é uma das principais teóricas sobre a condição das crianças refugiadas. Um dos principais conceitos destacados por Bhabha em sua obra é o de “ambivalência”, relativo às desigualdades de tratamento de uma criança dependendo de sua origem. Em seu livro “Child Migration and Human Rights in a Global Age”, a pesquisadora conclui que embora as pessoas assumam que a invisibilidade é um dos principais problemas na imigração infantil, as crianças sofrem com múltiplas questões políticas e sociais e o problema central é a ambivalência no tratamento do governo entre crianças refugiadas e crianças cidadãs do país. Em uma entrevista em vídeo disponível no canal do Youtube Faculti, a autora explica que a sociedade não sabe lidar com os filhos de outras pessoas. “Principalmente quando não são pequenos bebês sorridentes, mas adolescentes e jovens. Por um lado, as crianças de famílias que vêm de fora precisam de proteção, dos mesmos direitos, de não discriminação. Por outro lado, há um senso de que essas crianças são quase delinquentes, e isso impacta no tratamento”, destaca Bhabha.

É particularmente para crianças imigrantes, para as quais as percepções de vulnerabilidades (“pobre e inocente criança”) e alteridade (“não realmente como nossas crianças”) colidem. Então, demandas econômicas e de interesse próprio para o trabalho barato de crianças imigrantes ficam em tensão com os

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direitos inquestionáveis de todas as crianças, incluindo essas crianças. (...) Nós aceitamos a obrigação de protegê-las de perseguição, tráfico e destituição, mas nós as culpamos pelos riscos que elas representam para nosso tecido social encontrando formas de detê-las ou removê-las dos nossos territórios. Somos obrigados a proteger crianças imigrantes, mas aterrorizados com “deliquentes” de fora. (BHABHA, 2014, p. 13/14)

“Por que tantas crianças migrantes estão detidas, não têm representação legal ou qualquer questão pensada em seu melhor interesse? Se as crianças não tem poder político é muito mais difícil distribuir acesso à justiça social”, conclui a pesquisadora na entrevista. Bhabha destaca na obra que somente no fim dos anos 1990 as crianças imigrantes começaram a ser consideradas indivíduos que merecessem atenção específica. Segundo a pesquisadora, até então elas eram consideradas “apêndices” e “posses” dos seus pais na equação migratória22. Para Patrícia Nabuco, Jacqueline Bhabha discute principalmente a questão da integração. “A ideia de ambivalência é a de que os países usam um discurso muito bonito de acolher as crianças, mas na hora de acolher realmente isso não acontece, porque há a diferenciação entre as nossas crianças que devem ser protegidas em detrimento de outras crianças”, afirma a pesquisadora e voluntária da Cáritas. Essa diferenciação no tratamento das crianças refugiadas, somada a própria situação de refúgio, faz com que as crianças estejam sujeitas a uma série de vulnerabilidades 22 BHABHA, Jacqueline. Child Migration and Human Rights in a Global Age. 2014. p. 3

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com consequências decisivas suas vidas.

4.1.

Implicações Sociais do Refúgio

Crianças como Intérpretes

Uma das questões mais destacadas pelas diferentes especialistas em crianças refugiadas consultadas, pensando em vulnerabilidades às estão sujeitas, é a mediação entre família e órgãos públicos. Por se adaptarem muito mais rápido nos países-destino e terem facilidade com o aprendizado de novas línguas, as crianças acabam se tornando intérpretes da família no Brasil.

“As relações parentais acabam se invertendo; por exemplo nas famílias sírias a gente observa muito que a criança se torna o agente de integração. Como ela vai na escola, ela acaba aprendendo português mais fácil. Então a mãe não sabe falar português e a criança acompanha a mãe no mercado, no banco, se torna um agente de integração na família”, destacou Patrícia. Para a Coordenadora da Cáritas de São Paulo, Maria Cristina Morelli, essa mediação muitas vezes é preocupante, pois as crianças acabam se envolvendo em assuntos que não deveriam. “Às vezes elas têm que explicar a situação financeira do pai. Já aconteceu de crianças explicarem para a gente que o cara que aluga o imóvel está pedindo para sua família sair. Ou também traduzem doenças que a família tem. Não é o papel da criança servir nessas situações difíceis e isso acontece muito”, contou Cristina. 110


Anneli Nobre, que trabalhou na Cáritas como arte- terapeuta e hoje trabalha com as crianças da Casa de Passagem Terra Nova, acredita que essas questões difíceis dos adultos acabam respingando nas crianças também. “Eles ficam muito preocupados. Tinha um garotinho aqui que vivia preocupado com a situação da mãe. A gente tenta fazer um trabalho de sempre mostrar que elas ainda são crianças, porque muitas vezes essa responsabilidade pesa. Como eles estão nos quartos juntos aqui no abrigo, acabam escutando muitas coisas dos pais e vira e mexe eles vêm contar para a gente. Eles circulam num mundo muito adulto e, nesses momentos, a parte da brincadeira e do momento voltado para eles, em que eles sejam prioridade, é importante”, opina. Não apenas a língua nova é aprendida mais rapidamente pelas crianças, mas todos os códigos e hábitos da cultura local são absorvidos e integrados mais facilmente. Para a psicanalista Ana Gebrim, supervisora da equipe da Saúde Mental da Cáritas que atua no tratamento psicológico de crianças refugiadas, isso se deve também à plasticidade da formação da própria criança. “As crianças se tornam intérpretes em consultas médicas quando os pais adoecem, às vezes em uma consulta ginecológica porque a mãe foi estuprada, ou acompanham os pais na Polícia Federal para tirar um novo protocolo de refúgio. É um fenômeno que deixa a criança exposta a diversas situações e faz com que ela assuma um lugar de certa precocidade que ela não deveria estar vivendo. Ela se torna vítima de uma precariedade institucional, da falta de intérprete nos órgãos públicos”, relata Ana. A psicanalista afirma que, por esse motivo, é muito fácil observar que as crianças refugiadas são muito precoces e acabam se comportando como adultos, o que contribui para a dificuldade da elaboração das situações que viveram. “Você acha que crianças de cinco anos têm oito 111


ou nove anos. A gente se pergunta se essa precocidade é algo que ela teve que adquirir por sobrevivência da família, mas que talvez tenha sido às custas de sacrificar a infância, um espaço de brincar, o lúdico, e também de elaborar o doído que é a imigração e as perdas. Os únicos instrumentos que as crianças vão ter para lidar com as dores são os instrumentos infantis. Se ela deixa de ser criança, como ela vai lidar com a própria dor? São crianças precoces, mas que com certeza guardam uma dor muito grande porque não tiveram tempo de elaborar tudo isso”. Para a psicóloga Viviani Carmo-Huerta, que já trabalhou com crianças imigrantes e refugiadas no Brasil e na França, e pesquisa o laço social de crianças e adolescente migrantes e o papel da escola, outra questão a ser discutida é a carga que se tornar porta-voz das famílias representa para as crianças imigrantes e refugiadas. “Um caso super recorrente é que o filho mais velho começa a entender mais rápido como se passa a vida no país. Então ele detém os dois mundos, coisa que os pais não detém porque ainda estão com a cabeça no país de origem, e não entendem absolutamente nada como funciona o país de chegada. Essas crianças viram uma espécie de assistente social da família. E aí, ou são crianças que muitas vezes ficam entre os dois mundos, ou são crianças que podem portar esse mandato da família de conseguir ser bem-sucedidos na escola, porque se não são, todo o projeto migratório da família desmonta. Então são crianças que portam muita coisa, normalmente a gente tem que olhar um pouco mais de perto para esse primeiro filho, porque ele pode ser mais vulnerável, acaba sendo os pais dos próprios pais, tem uma inversão geracional importante”, destaca Viviani.

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Crianças Desacompanhadas/ Tráfico Sexual de Meninas

Cerca de 22 crianças desacompanhadas chegaram ao Brasil em 2015, um número pequeno quando comparado aos outros países destino de crianças refugiadas, mas grande em relação ao número de refugiados que o Brasil abriga. Para o Padre Paolo Parise, que comanda a Missão Paz desde 2010, há um despreparo muito grande para receber essas crianças. “Eu tive duas crianças haitianas que passaram por praticamente toda a América Central até chegar no Brasil, acompanhadas por um estranho, não um familiar. Quando chegaram no Acre o juiz autorizou a continuação da viagem até São Paulo. O pessoal da Secretaria de Justiça que acionamos achou até que fosse um documento falso , mas era verdadeiro. Então deram uma autorização para um desconhecido viajar com crianças. É um descaso total com a proteção delas, uma falta de sensibilidade. Há indícios que elas estavam sendo levadas para exploração sexual e o juiz está respondendo a um processo. Isso mostra o despreparo”, conta. “Quando estavam investigando o caso dessas crianças, supostamente trazidas para pedofilia, o delegado pediu para eu levar as crianças na polícia. Elas estavam dormindo, mas ele disse que ia me processar se eu não as acordasse. Quando chegaram lá ele virou e perguntou diretamente para as crianças, que nem falavam português: ‘Ele estava abusando de vocês?’. É uma falta de delicadeza...”, continuou Pe. Paolo. Em outra história relatada pelo padre, dois irmãos pequenos imigrantes bolivianos e desacompanhadas foram separados nos abrigos. “A mãe deles estava com grandes problemas psiquiátricos, queria matar as crianças. Ela foi internada, mas a menina de quatro anos e o menino 113


de 10 foram levados para abrigos diferentes, mesmo com a orientação do serviço social de mantê-los juntos. Aqui na Missão Paz a menina estava sempre grudada no irmão, e os tontos separaram. Às vezes existe a legislação, mas falta bom senso na aplicação”, denunciou. O juiz da Vara da Infância e Juventude do Foro Regional da Penha de França, Paulo Roberto Fadigas Cesar, é idealizador do Setor Anexo de Atendimento de Crianças e Adolescentes Solicitantes de Refúgio e Vítimas Estrangeiras de Tráfico Internacional de Pessoas, o SANCAST, único órgão específico dessa população na cidade de São Paulo. O Sancast funciona informalmente há mais ou menos oito anos, mas foi institucionalizado apenas em julho de 2015, sendo que já foram atendidas cerca de 80 crianças e adolescentes desacompanhados que se adequam a essa categoria. Segundo o juiz, atualmente cerca de 20 crianças estão sob a competência do órgão. “Nós lidamos com crianças desacompanhadas, que precisam de acolhimento institucional. O número cresceu no ano passado, mas agora já diminuiu. A maioria das crianças solicitantes de refúgio vem por conflitos armados, mas é difícil fazer uma categorização rígida, depende da estruturação dos governos dos países de origem. Alguns praticamente não têm Estado. A gente entende melhor o Estado quando vê onde ele não funciona de verdade. Quando você não tem atividade estatal, o crime organizado toma conta do espaço. O poder não deixa vácuos, e com isso não tem lei que preserve o ser humano, ele se torna uma moeda. O Congo tem três ou quatro áreas de conflito, é uma das piores zonas, que mais causam deslocamento populacional”, afirma. O Sancast faz o acolhimento da criança pelo Conselho Tutelar em abrigos do Estado e o encaminhamento da solicitação de refúgio nos casos dos refugiados. Paulo destaca que em tantos anos trabalhando 114


com essa população, nunca viu nenhuma criança receber o status de refugiada enquanto respondia ao anexo. A partir do momento em que os estrangeiros menores de idade fazem 18 anos, a Vara da Infância e Juventude perde a competência sobre eles “Presumo que demore mais de dois anos para o CONARE avaliar a solicitação de refúgio, porque a maioria dos adolescentes chega com 16 anos e nunca vi conseguirem o status”. “A grande barreira é a língua, o grande entrave deles. Os refugiados tem um nível educacional bom, normalmente vem com colegial, preparando para a universidade. Já as meninas vêm da classe média, e não de um estado de pobreza. É interessante, porque não é o perfil padrão de uma Vara da Infância, por isso pensei em institucionalizar isso. É uma vulnerabilidade diferente da nossa, os casos brasileiros envolvem mais saúde mental e estupro. Eles passam por vulnerabilidades diversas, são histórias de vida”, conta. O juiz especifica também a situação das crianças vítimas do tráfico, que chegam ao país pedindo refúgio. “Quando você é menor de 18 anos qualquer deslocamento não autorizado é tráfico, então é um espectro maior de tráfico do que o adulto, que geralmente é apenas para exploração sexual, trabalho escravo e transplante de órgãos. A maioria das meninas são levadas para prostituição ou tráfico para casamento – que não é considerado exploração sexual pelo Protocolo de Palermo – e chegam aqui pedindo refúgio para disfarçar. Ou a família não tinha dinheiro para mandar todos os filhos, e manda uma pessoa só, com um coiote. Traficantes não são boas pessoas e levam para a prostituição. A maior vulnerabilidade aqui é o contato com o traficante ainda, ele é insistente, e tem um modo padrão de procedimento: fica com o passaporte da criança, dá poucas referências, sempre entrega um celular. É complicado com 115


a vítima, ela não sabe que é vítima, por isso a gente chama de “pessoa afetada pelo tráfico”. Como você vai esclarecer para uma menina de 17 anos que o sujeito que a comprou para casamento não é uma pessoa boa? Normalmente elas vêm de países em que se não são vendias ou traficadas vão acabar estupradas ou mortas, por isso não encaram o traficante como um cara mau e ameaçador. Por esse motivo, tem que checar se é refúgio mesmo ou se tem alguém por trás. A gente tenta reconstruir a pessoa, não cabe ao meu juízo julgar se são realmente refugiados ou não, qualquer pessoa que sai de um país em conflito em tese já está em refúgio e não vamos pedir documento comprovando, mas há esses casos perigosos para as crianças”, afirma o juiz Paulo Roberto Fadigas Cesar.

Participação X Proteção

Outra questão fundamental para os estudos da imigração e refúgio na infância é o paradigma entre o direito à participação e o direito à proteção, ambos amplamente citados em tratados internacionais e na própria lei brasileira. No caso das crianças refugiadas, o direito a participarem, serem ouvidas e opinarem em seu próprio processo de solicitação de refúgio, parece frequentemente estar em oposição ao direito a serem protegidas de um processo burocrático e desgastante após tantos acontecimentos difíceis em suas vidas. Mais do que isso, às vezes a própria criança ou adolescente, principalmente quando desacompanhado, acredita já estar maduro o suficiente para lidar e cuidar da própria vida no país de destino. Algumas vezes esses adolescentes até mesmo já eram considerados maiores de idade no país de onde vieram, ou já estão acostumados a assumir responsabilidades adultas. Nesses casos geralmente há uma resistência da 116


parte do refugiado, quando chega ao Brasil e é contemplado por uma lei rígida em relação à maioridade e proteção da criança, sendo obrigado a viver nos abrigos até completar 18 anos. Por esse motivo, a advogada Vivian Holzhacker acredita que o direito à proteção muitas vezes é um fardo para esses adolescentes. “Eu atendi uma vez dois irmãos libaneses, que tinham entre 15 e 16 anos e viajavam sozinhos. Eles eram considerados homens adultos no Líbano, e aqui foram obrigados a ir para um abrigo, não conseguiram fazer o pedido de refúgio até conseguirem uma ordem judicial. Eles queriam trabalhar e ganhar o dinheiro deles aqui, mas no Brasil as crianças desacompanhadas tem que ficar no abrigo. Eles não queriam essa proteção, já se consideravam adultos”, relatou Vivian. Já a psicóloga Viviani Carmo-Huerta acredita que dependendo da cultura e do lugar de onde a criança vem, ela pode ter um mandato geracional e cultural completamente diferente da criança ocidentalizada. “ Muitas vezes as crianças em alguma cultura africana vão passar por um ritual de iniciação para ocupar uma posição social a partir de uma certa idade. No Brasil, ela não vai possuir função social. Quando a criança chega em um país ocidentalizado ela é confrontada com um mundo que não conhece”, destaca. Entretanto, para Viviani, uma questão que não varia culturalmente é o fato da criança precisar que alguém apresente o mundo para ela, em pequenas doses. As crianças desacompanhadas, na opinião da psicóloga, chegam em outro país sem ninguém para fazer essa apresentação de um mundo diferente. Por esse motivo, Viviani afirma nunca ter conhecido um adolescente que no momento da chegada queria uma participação social imediata. 117


“Ele quer conhecer esse mundo e quer que esse conhecimento não seja uma violência. Essa coisa do ser criança, de ter uma acolhida do Estado, muitas vezes não é só uma questão de idade, mas de proteção cultural. Eles precisam que alguém os acompanhe por mais tempo do que um adolescente brasileiro, por exemplo, que com 15 anos já pega ônibus e faz tudo que tem que fazer na vida. Para o adolescente brasileiro o mundo não representa um perigo. Quando você é estrangeiro, sim, sobretudo se é jovem. Então vejo que há um primeiro desejo de ter alguém que ajude a fazer essa passagem de um universo ao outro, uma passagem da infância para o universo adulto também”. A psicanalista Ana Gebrim também atesta a necessidade de um cuidado para não transferir completamente um olhar ocidental de preservação da infância a qualquer custo. Porém, na opinião de Ana, o modus operandi do Brasil, de preservação da criança, tem que prevalecer. “Essa é a cultura onde ela vai se integrar a partir de agora, também não podemos ser tão culturalistas”. Ana conta que já trabalhou com um grupo de adolescentes desacompanhados e que a maioria dos refugiados nessa situação vem de avião, com um adulto pago fazendo o papel de acompanhante. “Esse é o perfil: uma parte caracteriza o refúgio político, foge para sobreviver, e outra parte é claramente imigração econômica. A família manda os filhos para o Brasil para ajudarem na sustentação, porque lá eles já eram o ‘chefe da família’, mas quando chegam aqui é uma decepção, porque eles acham que vão trabalhar e mandar dinheiro mas ficam em um abrigo para menores sendo tratados como crianças. A realidade de um abrigo para menores no Brasil é quase um encarceramento, eles não podem sair na rua, só ir para a escola e voltar para o abrigo. É um grande choque”.

Para Maria Cristina Morelli, não há como fugir da lei brasileira. 118


“Sendo menor de idade, apresentando documento, ele vai para o abrigo público e fica na guarda do Estado. Se no país de origem era diferente, a gente tem que fazer com que entendam que aqui é assim. Geralmente não tem reclamações da parte dos adolescentes”, ponderou.

Algumas vezes a questão da noção brasileira de proteção da infância entra em contradição com a relação familiar dos imigrantes e refugiados, devido às resistências culturais. “Uma questão séria é a Lei da Palmada, porque há culturas em que bater na criança é normal, e a gente tem uma lei que proíbe isso”, destaca Patrícia. “Os refugiados de modo geral aceitam, não tem muito o que discutir. Também tem a questão da escola. Aqui, se não mandar os filhos para a escola você pode ser preso. Em relação ao trabalho, temos a Lei do Menor Aprendiz, a partir dos 14 anos, que é aplicada para pessoas de idade entre 14 e 17 anos que chegam ao país e querem trabalhar. No geral eles são bem receptivos com esse tipo de coisa quando a gente passa essas orientações na Cáritas”.

Reunião Familiar

Outro ponto do refúgio que impacta as crianças e foi destacado pelas pesquisadoras é a da reunião familiar, um direito de todos os refugiados garantido por lei. Segundo Patrícia Nabuco, essa questão ainda é pouco estudada. “O perfil da população refugiada que chega ao Brasil é de 70% homens sozinhos. Isso não quer dizer que eles não tem famílias, só que eles deixam a família para trás, esperam que o processo deles seja reconhecido para então pedir o visto familiar e trazer a família. Mas o processo de solicitação de refúgio pode demorar até três anos. São três anos em que a família fica separada”, destaca a pesquisadora.

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“Quando ocorre o pedido, o governo não dá nenhum tipo de apoio, só facilita o visto, mas quem paga tudo são os refugiados. Isso é importante porque às vezes as crianças viajam sozinhas para encontrar os pais e fazer uma autorização especial , ou trazer a certidão de nascimento para provar a paternidade. É um tema que impacta muito as crianças e é muito negligenciado, porque se você olhar os dados de refúgio no Brasil são poucas crianças, mas se olhar o número de pessoas esperando o reconhecimento como refugiado, boa parte delas tem filhos esperando em uma situação de risco, sem contato com o pai ou a mãe”. Para Anneli Nobre, essa questão é ainda mais difícil para as mães que vieram para o Brasil apenas com seus filhos, e têm dificuldade em se estabelecer no país por terem que cuidar das crianças durante todo o tempo. “Passa muito pela questão do trabalho e da estrutura familiar. Quando as mães arranjam um emprego, os filhos tem que ficar nas creches ou com babás. Várias delas tem que pagar alguém para ficar com os filhos”, relata.

Crianças-Soldado Uma questão importante quando pensamos na infância vivida em contexto de conflitos armados é a situação das crianças recrutadas por exércitos e milícias. Segundo estimativas da ONU, são mais de 100.000 crianças atuando como soldados em pelo menos 20 conflitos armados ao redor do mundo, principalmente nos países da África Central, como Uganda, Libéria, República Democrática do Congo e Sudão, mas o Estado-Islâmico também tem aumentado o recrutamento de crianças e adolescentes. São crianças na maioria das vezes recrutadas à força, quando não supostamente por “voluntariado”, por não conhecerem outra 120


alternativa a não ser participar dos conflitos. Na América Central e na Colômbia o recrutamento de menores de idade pelos grupos paramilitares também é comum e uma das grandes causas do alto índice de crianças refugiadas vindas dessa área do globo, procurando asilo principalmente em países vizinhos e nos EUA. No Brasil, a vinda de crianças refugiadas nessa situação ainda é bem rara, embora internacionalmente seja um tema muito discutido, uma vez que refugiados não podem ser reconhecidos juridicamente como tal caso tenham praticado crimes e tenham participação em genocídios. No entanto, a condição das crianças-soldado não é considerada criminosa, mas uma violação dos direitos humanos e da criança. “O que é argumentado no caso das crianças-soldado para que elas sejam reconhecidas como refugiadas é que elas foram recrutadas enquanto crianças, então ocaso não é nem pode ser julgado como uma escolha livre e consentida de fazer parte de um exército. Mas não é um tema pacífico, é muito discutido”, destacou a advogada Vivian Holzhacker O juiz Paulo Roberto Fadigas Cesar conta que já lidou com casos de adolescentes solicitantes de refúgio desacompanhados que eram guerrilheiros no país de origem. “Um deles se orgulhava de ter dado um tiro na cabeça do presidente de não sei onde. É algo que não sabemos lidar, eles tem um orgulho nacional e étnico muito grande, e tem dificuldade em se adaptar em um país em que você tem liberdade e não tem restrições. Nós não temos mais esse nacionalismo no Brasil, isso se perde com a democratização”, opina.

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Racismo e Xenofobia

A questão do racismo que os refugiados sofrem no Brasil, já

destacada anteriormente, é uma das maiores vulnerabilidades das crianças refugiadas no Brasil, principalmente vindas da África. Diferentemente dos países europeus, onde o nacionalismo, a noção de purificação racial e o medo e intolerância ao Islamismo escancaram uma xenofobia pura contra imigrantes em geral, sendo os árabes muçulmanos bastante afetados; no Brasil, a xenofobia sofrida pelos refugiados é principalmente racial. “No Brasil não se sofre tanto por xenofobia, mas por racismo. Se um imigrante ou refugiado é negro ele sofre, se for branco, da Síria ou de outros países árabes sofre muito menos, isso é inegável. É só comparar as estatísticas”, opinou o padre Paolo. Segundo o clérigo, no ano passado um dos grandes grupos de imigrantes que entraram no Brasil foi de estadunidenses. São cerca de 4.700 estadunidenses que vieram para o país com visto de trabalho, um número muito maior do que o de imigrantes de países da África. “Mas ninguém comentou nada sobre estarem roubando nossos empregos. Alguns grupos são bem vistos, outros não”.

Se os ataques sofridos por alguns refugiados e imigrantes no Brasil escancaram o racismo estrutural da sociedade brasileira, supostamente acolhedora a estrangeiros, para as crianças refugiadas a percepção e sofrimento do racismo é dado de forma bem subjetiva e sutil. Mas em muitos casos constitui uma violação mais agressiva do que o próprio processo de refúgio. “Não dá para falar de vulnerabilidades de crianças refugiadas em um pacotão, tem que pensar no recorte de raça e gênero, que surpreendentemente pega mais do que a questão do refúgio em si. Claro que nas crianças mais velhas a gente percebe um grande impacto do refúgio, mas a maior questão, principalmente entre as meninas, é a da autoestima”, analisa Anneli Nobre. 122


Na Casa de Passagem Terra Nova, onde trabalha realizando oficinas com as crianças, Anneli tem contato com um número variável de 15 crianças, todas negras (na época em que a entrevista foi feita), refugiadas da Angola e do Congo. “Essa questão da autoestima é muito grande porque muitas ouvem da própria mãe até que são feias, que tem o cabelo feio. A reprodução é muito forte”, destaca.

“O que a gente tenta fazer é trabalhar a representatividade. Tenta procurar livros infantis que tenham conteúdo diferente. O último que a gente trabalhou se chama ‘O Mundo no Black Power de Tayó’, e conta a história de uma menina que tinha um black power, chega na escola e falam que o cabelo dela é ruim. Daí é muito legal porque ela responde que o cabelo dela é muito bom porque é do tamanho da imaginação dela, que ela podia colocar várias coisas nele. Uma vez uma das meninas perguntou: “Todos os negros do Brasil vieram da África também?”. Foi importante trabalhar isso, que os negros vieram no passado de outra forma. Então só de ter uma personagem negra que tenha cabelo diferente eles já ficaram doidos. Foi muito legal, porque quando eu mostrei a figura dela pela primeira vez, um menininho virou e falou que ela era feia, que ela era muito escura. Daí eu perguntei porque o escuro era feio e a gente comparou nossos tons de pele. É muito louco, da primeira vez que eu pedi pra elas se desenharem eu vi que as crianças se desenham brancas e muitas vezes até pintam o cabelo de amarelo. A representatividade é muito simples, você pode ter uma história com uma protagonista negra, isso já fica gravado. Eles ficaram umas semanas falando da Tayó Enquanto Anneli ainda contava sua vivência, a pequena angolesa

Taki, de 9 anos, entrou na sala, curiosa, junto com seus irmãos. Ela apontou para um quadro na parede, feito com bonequinhos de pano que dão as mãos formando uma corrente em volta de uma representação também 123


de tecido do planeta Terra. “É que nem a Tayó, olha que linda”, comentou Taki, passando a mão em uma das bonecas de cabelo crespo em referência ao livro da autora brasileira Kiusam de Oliveira. As crianças me levaram para a brinquedoteca onde passam duas tardes por semana com Anneli, brincando, conversando e ouvindo histórias. Todos os brinquedos são doados e, de prateleiras de bonecos plásticos de bebês brancos e livros de princesas da Disney. Taki puxa uma peruca crespa e me conta sua versão da história da menina de black power. “A Tayó é uma menina linda! Ela é assim, achocolatada, e tem um cabelo beeem grande para guardar muitas flores. Os amigos da escola dela tinham muita inveja do cabelo dela e ficavam falando que era ruim, mas não era!”, conta, sorrindo e colocando a peruca na própria cabeça.

Barbies pintadas de tom de pele negro em um livro de colorir na oficina de Anneli Nobre com as crianças da Casa de Passagem Terra Nova

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“Eles pediram para pintar um livro de colorir da Barbie como se fosse a Tayó, daí a gente pegou giz de cera e escolheu cores parecidas com as peles deles. Também tenho tentado trazer fotos de cantoras e atrizes negras. São coisas simples de trabalhar que fazem muita diferença. Ajuda muito na escola também, que é o momento onde eles mais entram em choque, porque essas diferenças ficam mais evidentes. Eu converso com eles no sentido de tentar empoderar, para eles saberem reagir ao racismo na escola”, afirma Anneli. Como também veremos nos perfis com relatos das crianças, uma questão que colabora muito para a maior vulnerabilidade racial das crianças africanas é a falta de articulação das comunidades dos respectivos países. Enquanto as comunidades árabes se articulam com mais facilidade, até mesmo por privilégio racial – a comunidade e as referências sírias no Brasil, por exemplo, são muito fortes – os africanos estão começando a se articular nos últimos anos apenas. Isso é consequência também do histórico apagamento das raízes e culturas de matriz africana no país. Como foi analisado anteriormente, a própria imigração europeia, árabe e japonesa no Brasil fez parte de um processo forçado e racista de embranquecimento da população. Por todas essas questões, a vulnerabilidade das crianças refugiadas africanas e haitianas é pautada principalmente pelo racismo. Alguns exemplos do tratamento dispensado a essas crianças serão analisados posteriormente, no subcapítulo sobre a exploração da imagem das crianças refugiadas pela mídia.

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4.2.

Implicações Psicológicas do Refúgio na Infância As consequências psicológicas dos conflitos armados, perseguições e do próprio processo de refúgio nas crianças podem ser decisivas para seu desenvolvimento. Entretanto, parte das crianças pode desenvolver uma resiliência muito forte exatamente por terem passado por situações de perigo extremo durante a infância. Outras não desenvolvem qualquer trauma da experiência, exatamente por terem vivido com pouca idade e sem percepção e entendimento do que se passava. Para o padre Paolo Parise, a maioria das crianças não entende a situação de refúgio e até mesmo desconhecem o termo. “As crianças aqui na Casa do Imigrante comentam coisas como ‘ai que bonita que aqui não tem militares’, ou ‘que bom, aqui não tem tiros’. Elas verbalizam apenas algumas frases que mostram que estão em uma situação mais tranquila”. A psicóloga Viviani Carmo-Huerta destaca a subjetividade dos recursos psicológicos de cada criança e acredita que o imaginário e a criatividade das crianças refugiadas faz com que elas sejam, em um primeiro momento, mais resilientes que os adultos na mesma situação. “Quando a gente fala de sofrimento psíquico, a gente fala de sujeito. Cada migrante, cada pessoa, é mais vulnerável ou não. Certas crianças imigrantes, com certos fatores harmônicos, tem um potencial criativo, de aprendizagem, muito maior que uma criança brasileira. Essas crianças tem uma resiliência muito grande para a questão da guerra, e é somente no segundo tempo que a gente vai poder observar algumas consequências. Tem várias imagens de campos de refugiados que as 126


crianças estão jogando bola e rindo. Elas têm uma capacidade enorme de resiliência porque a criança brinca, ela tem um jogo, ela tem a criatividade, o imaginário, que é muito forte, enquanto os adultos estão imersos no real, na dureza da realidade de uma forma muito mais importante. Então o imaginário, que na verdade ocupa mais espaço na vida psíquica da criança, salva a criança, se você quiser entender dessa forma, ajuda a ser mais resiliente que o adulto”, afirma a psicóloga.

Percepção e trauma

Para Viviani, uma das consequências psicológicas mais comuns do refúgio nas crianças é uma confusão espaço-temporal no primeiro momento no país de destino. “Sobretudo com criança pequenas, o espaço temporal já é uma coisa completamente diferente do adulto. Você pergunta para uma criança o que ela vai fazer amanhã e ela responde o que fez ontem. O ontem, o hoje e o amanhã já é para ela uma coisa complicada, mas para as crianças migrantes o antes e depois, a casa e o país de antes e o de agora, é uma coisa que tem que ser trabalhada”. “Dependendo da idade da criança fica tudo muito misturado. O que eu percebo é a questão de ter deixado a família e os amigos para trás sempre muito forte e presente. Mas eles dizem gostar daqui, falam que não querem voltar porque lá tem febre, tem guerra. O entendimento de ter trocado de país e da nacionalidade em si é mais uma questão dos adultos”, opina Anneli, que é formada em Relações Internacionais e agora cursa Psicanálise. A tendência de se diagnosticar e tratar um trauma a qualquer custo nas crianças refugiadas é bastante criticada pelas psicólogas que estudam o tema. Para a psicanalista Ana Gebrim, o excesso do uso da 127


palavra trauma nessas situações faz com que o refugiado vire sinônimo de traumatizado. “Esse tom acontece no campo humanitário e na saúde mental hegemônica predominante. O que me preocupa é a onda de excesso de medicamentalização, em uma perspectiva de patologizar a experiência humana. O que poderia ser compreendido no âmbito dessa experiência do deslocamento, da situação-limite e de extrema violência, é rapidamente patologizado como uma doença e, se é uma doença você oferta psicotrópicos. Você entra na linha de hipermedicalização de crianças diagnosticadas com hiperatividade que são entuchadas de ritalina”, destaca Ana. A psicanalista acredita que o diagnóstico do Transtorno de Stress Pós Traumático, instituído na década de 1980 pela psiquiatria, é usado de forma arbitrária nos dias de hoje. “A psicanálise não entende que há um traumatizado por excelência. As pessoas absorvem as experiências de formas diferentes. Algumas crianças refugiadas que eu tratei tiveram traumas, outras não, e a gente tem que trabalhar com o trauma para a pessoa atravessar a experiência, dar um destino para o trauma”, explica. Viviani conta que já lidou até mesmo com diagnósticos de psicose e autismo para crianças que tinham inibições ligadas à história migratória. “O profissional da saúde pública não está nem um pouco preparado para entender o que acontece”. Na opinião da psicóloga, até mesmo as pesquisas sobre saúde mental de crianças imigrantes e refugiadas podem ser utilizadas para “comprovar uma suposta invalidez” de uma população que já tem dificuldade de integração no país destino. “Tem que ter um cuidado enorme para fazer pesquisa, porque ela pode se virar contra você. Uma pesquisa que mostre que crianças imigrantes são portadoras de mais patologias psíquicas é um tiro no pé”, opina.

No entanto, o juiz Paulo Fadigas destaca que todas as histórias 128


dos adolescentes solicitantes de refúgio que passam pela Vara da Infância e Juventude são marcadas pela violência e transtornos mentais: “Muita, muita violência, foge do padrão brasileiro. Não é apenas o abandono, ou pobreza e fome, mas muito homicídio, e no caso das meninas, estupro e homicídio. Quando você recebe esse ser humano em desenvolvimento precisa pensar em vários aspectos. É um número pequeno, mas eles precisam de tratamento especializado sim, e muita paciência. Antes de se pensar no refúgio tem que ver como está a cabeça deles. Tem o caso de um menino congolês que veio de navio e viu o colega sendo jogado no mar, morto, enquanto ele se escondia. Ele chegou com muitos transtornos mentais, não parava de vomitar. Se às vezes em uma viagem de turismo a gente já fica mal, imagina fugindo, sem dormir, em um navio, todos os dias 40 graus de temperatura. É exigir demais que não tenham transtornos vendo os pais sendo mortos, a mãe estuprada. Mas eles precisam ser reabilitados na sociedade. Cada um tem uma enciclopédia de vida, é um desafio entendê-los, e nosso atendimento de saúde mental não é perfeito, mas é bom”.

Tratamento da Saúde Mental e Arte Terapia

O tratamento gratuito da saúde mental de crianças refugiadas e refugiados no geral, é oferecido pelos abrigos e entidades que trabalham com essa população no Brasil. Embora a oferta ainda não seja suficiente, a equipe de saúde mental dessas entidades cumpre um papel importante no vácuo de serviços públicos de saúde mental focados para essa população.

“Não tem nenhuma política pública de saúde mental para imigrantes. É uma luta nossa, que a gente tenta construir com trabalho de formiguinha. Tudo é muito precário, geralmente refugiados adoecidos 129


procuram a equipe de saúde mental da Cáritas, onde eu trabalho, mas a gente não dá conta de atender todo mundo, ainda mais com trabalho voluntário. Então a gente tenta criar pontes com o serviço público, com o Centro de Atenção Psicosocial (CAPS), mas lá ninguém fala inglês ou francês, e também tem de tudo, pessoas em situação muito grave e outras não tão graves. Alguns refugiados vêm de países onde a saúde mental é uma questão muito estigmatizada. Às vezes procuram ajuda por uma crise relacionada a um evento traumático que não tem nada a ver com uma crise psicótica. Então alguns refugiados ficam incomodados de conviver “com esse loucos”, afirmou Ana. Para Viviani, entretanto, a abordagem psicológica com as crianças que pedem refúgio junto à família é mais fácil, já que elas não estão atentas para questões administrativas de sobrevivência imediata. Enquanto os pais veem seu psicológico desabar assim que se sentem protegidos, após a resolução de questões burocráticas como documentação e abrigo, as crianças já podem ser tratadas de imediato na chegada ao país destino.

“É como se chegasse o ponto de destino. Chegar no país muitas vezes não significa absolutamente nada. Ter a proteção dos documentos é o ponto que se espera, e aí nesse momento tudo cai, e é quando você pode fazer um atendimento psicológico, propor alguma coisa. A gente chama de demanda psicológica, ela vai aparecer uma vez que o sujeito chegou no final da sua viagem, e estiver protegido. Com a criança não, você pode fazer alguma coisa com ela diretamente”, explica.

No entanto, a abordagem dos temas de imigração, deslocamento e refúgio são muito complicadas de serem trabalhadas diretamente com as crianças mais novas. “Tem que passar pelo imaginário, porque o psiquismo ainda é imaturo e a gente tem uma responsabilidade ética de não reativar um trauma. A criança pode te trazer o relato dela, mas 130


tem que partir dela. Por isso eu sempre trabalho com crianças passando pela literatura, contação de histórias e pelo desenho. Aí elas produzem alguma coisa, mas nunca através de uma abordagem frontal do evento migratório” Segundo Anneli, a psicanalista austríaca pós-freudiana Melanie Klein, uma das primeiras pessoas que trabalharam a psicanálise para crianças, acredita que diferentemente do adulto, que acessa o conteúdo do inconsciente durante a fala, as crianças acessam no momento lúdico. “O próprio brincar traz muitos dados, o brinquedo escolhido e a forma de brincar com outras crianças. A gente tenta passar pelo desenho e produção artística, porque quando perguntamos diretamente o que aconteceu eles não falam ou mudam de assunto. Mas na hora de brincar de teatro, ou fantoches, eles expõem cenas com conteúdo de violência, por exemplo. Isso é muito rico e você consegue aprender bem mais coisas do que se elas estivessem falando”.

A oficineira conta que realizou uma atividade chamada “Vivências da Minha Cidade”, na qual as crianças do abrigo foram levadas para diferentes pontos turísticos de São Paulo e ganharam mapas para localizar as zonas da cidade. “A gente tem que tentar ressignificar a experiência, não colocar uma carga maior do que ela já tem. Então eu tento trabalhar com elas mais esse lado da aventura, da travessia, do que do refúgio em si”. Anneli destaca ainda a necessidade de mais estudos e profissionais que trabalhem com as crianças em São Paulo. “Até mesmo no Fórum Social Mundial de Imigrações deste ano não teve nenhum trabalho sobre crianças. O problema é que para trabalhar com criança precisa pensar a longo prazo, e o refúgio ainda tem necessidades muito imediatas. Por esse motivo, a maior parte das políticas públicas são pensadas a curto prazo: 131


trabalho, alimentação, moradia. Mas falta pensar na questão da educação, no investimento. A criança está no meio do furacão e não tem nenhum espaço para ela se expressar e elaborar o que está acontecendo. O registro emocional da experiência existe, mas falta elaboração”.

4.3.

Políticas Públicas para Crianças Refugiadas A falta de políticas públicas voltadas para as crianças refugiadas é um dos apontamentos mais presentes nas falas das pessoas que trabalham com essa população. Segundo grande parte das especialistas consultadas, o despreparo institucional se dá em diferentes órgãos e áreas, como saúde, educação, moradia, mediação cultural e o próprio conhecimento sobre a situação dessas crianças. “A gente continua despreparado. Enquanto não houver uma política de refúgio em nível nacional, estadual e municipal, a gente vai estar sempre respondendo a emergências. Por exemplo, agora aumentou o número de angolanos, e eles têm chegado com mulheres grávidas, então temos que achar abrigo. Abrigo é um problema eterno, não tem suficiente pra todo mundo e construir mais é complicado”, afirma Patrícia Nabuco. Como visto anteriormente, existem apenas quatro abrigos destinados especificamente aos refugiados, sendo somente dois deles públicos e não dependentes de recursos da sociedade civil e de entidades religiosas: o CRAI e a Casa de Passagem Terra Nova.

Para a psicanalista Ana Gebrin, ainda que o “boom” da imigração 132


no Brasil esteja em uma escala muito pequena em relação à Europa, há lugares no centro de São Paulo em que a maior parte da população é imigrante e o despreparo institucional tem um grande impacto sobre eles. “Para os imigrantes, pensando tanto nos latino-americanos, haitianos e refugiados, para adultos, mas principalmente para crianças, não há dispositivos institucionais de acolhimento especializados, com uma atenção voltada para essa população, que tem sim necessidades diferenciadas. Isso mostra um despreparo gigantesco diante de uma nova chegada massiva, o que provoca mais mal-estar entre os refugiados e os brasileiros, um choque cultural mesmo”, opina. A psicóloga Viviani Carmo-Huerta, por sua vez, acredita que o acesso às políticas públicas, e consequentemente a realidade dos refugiados no Brasil, é diferente entre os recém-chegados e os que já conseguiram o estatuto de refúgio e estão instalados. “No Brasil não há uma política pública específica para imigração, nem política pública separada pras crianças e adolescentes. Aqui na França a gente trabalha em serviços hospitalares específicos para imigrantes, para refugiados e para o trauma de guerra. Enquanto no Brasil a gente não tem serviços especializados, mas sobretudo um trabalho feito pelas instituições católicas. Todo mundo trabalha dando um jeitinho com as crianças em situação de refúgio no Brasil, mas sem problematizar de forma específica e verbalizar que não sabem o que fazer com essas crianças”. Em relação à saúde mental, Viviani conta que existem grupos de profissionais da saúde querendo se formar para atender essa população pensando nas especificidades da imigração. “Você tem que pensar o sentido cultural da doença para aquela pessoa. Mas no Brasil a gente nunca fez isso nem mesmo com os indígenas ou quilombolas. Nunca pensamos no sentido cultural do sofrimento psíquico, tudo isso é colocado para 133


baixo do tapete”, analisa a psicóloga. “Acho que tudo falta, principalmente associações competentes da sociedade civil. No Brasil tem sempre um grupo de espertos prontos para se aproveitar de uma miséria, associações que têm uma base duvidosa, mas não tem um trabalho de fundo sobre a questão migratória”. Na opinião da coordenadora da Cáritas, Cristina Morelli, por sua vez, o atendimento das crianças em situação de refúgio é universal e funciona, seguindo o mesmo processo das crianças brasileiras. “Sistema Único de Saúde (SUS), escola pública, creche: eles tem seus direitos garantidos pelo ECA. Não existe um albergue específico para menores estrangeiros, mas eles tem um preparo para recebê-los nos abrigos comuns. Na creche eles entram na lista de espera dos brasileiros, não tem uma preferência e nem deveria ter. Os pais dizem que o número deles estão no milésimo lugar na fila, mas tem que aguardar”, diz. Para o juiz Paulo Fadigas, no caso das crianças desacompanhadas e vítimas de tráfico, é preciso aumentar o controle da criminalidade da prostituição e tráfico de armas. “Do jeito que está é fácil para os traficantes. Você precisa de políticas de proteção à vitima, comitês especializados, uma fase de prevenção que monitore as fronteiras”. O juiz destaca também a importância de se manter uma política constante e clara na proteção dessas crianças. “Eu já perdi as contas de quantos Secretários de Justiça assumiram o cargo em todo o meu tempo trabalhando com isso. É ruim essa mudança de responsáveis, porque você não tem autoridades de referência, o serviço muda a toda hora. Política pública se faz com pessoas de referência também, não apenas com um conjunto de atividades. A proteção jurídica do refúgio é efetiva, mas o problema muitas vezes é saber quem persegue, se é uma situação de refúgio mesmo, ou se é tráfico com um coiote”, pondera. 134


Já Viviani destaca também que a falta de profissionais fluentes nas línguas faladas pelos refugiados representa uma das maiores falhas do sistema brasileiro de acolhimento. “O fundamental quando você acolhe o outro é você poder trabalhar na língua materna, e isso não quer dizer a língua do colonizador, o espanhol, o francês e o inglês, mas realmente a língua materna. Aqui na França nós temos tradutores culturais, que fazem o papel de mediadores culturais, e não a tradução literal das palavras, mas a explicação do sentido daquilo para aquela pessoa. Não é a mesma coisa você atender uma família peruana que fala o quíchua em espanhol. O peso do colonizador já tem história de segregação e exclusão”. A psicóloga acredita que o peso da colonização faz muita diferença no recebimento dos refugiados na Europa e o fato do Brasil ter sido um país colonizado, na opinião dela, gera uma abertura maior na relação com os refugiados. “Essa relação de poder e segregação colonial transmitida quando um médico francês atende um congolês, por exemplo, não há no Brasil. Não existe diretamente um medo do outro por ele representar uma nação que torturou sua família, matou para pegar suas terras, a relação começa do zero”, ressaltou. “Ao mesmo tempo, a gente também não pode viver essa invisibilidade do multiculturalismo, como a gente fez com nosso passado indígena e africano, ‘porque somos todos brasileiros’. Para Patrícia Nabuco, os brasileiros estão começando a descobrir mais sobre o refúgio e hoje as chances de um cidadão comum saber o que é ser refugiado é maior. “O número de refugiados que chegam no Brasil ainda é pequeno, são 9 mil pessoas, e a gente não tem nem 1% de população imigrante. São números baixos e isso descaracteriza toda a ideia construída de invasão dos imigrantes. Temos recebidos refugiados extremamente qualificados e a gente não aproveita, porque é difícil traduzir o diploma, custa caro uma tradução juramentada. É tudo muito 135


complicado”, conclui.

Educação Por impactar diretamente as crianças em situação de refúgio, o despreparo na educação pública para receber uma população imigrante e refugiada é muito destacado pelos profissionais que trabalham com crianças imigrantes. A falta de mediadores e tradutores e o preconceito de alunos e professores são os problemas mais apontados.

“No caso das escolas, o que faltam são dispositivos: primeiro que os professores tenham mais noção do que se trata uma criança refugiada, noção básica de refúgio e do continente e país da onde as pessoas vêm, do que a criança passou e de como se trabalha com crianças que passaram por situações muito difíceis. As crianças brasileiras também podem estar em uma situação de violência doméstica, ou presenciar uma chacina no próprio bairro, e as escolas também têm pouco preparo para lidar. Mas a criança refugiada tem mais chance de ter vivido essas questões, além do desconhecimento de cultura e língua”, afirma Ana Gebrim. Para o padre Paolo, a ignorância das escolas públicas com a documentação dos imigrantes e refugiados também é um problema. “Tem escolas que não sabem que o Protocolo de Refúgio é um documento, tem escolas que insistem em pedir o histórico escolar da criança; imagina só, fugir de uma guerra ou de uma perseguição e ter que se preocupar em pegar o histórico escolar. Às vezes as escolas acham que as crianças não podem estudar se não tem documento, mas pode sim, está garantido pela Constituição”, reitera.

“Eu acho que no Brasil não temos uma política pública para 136


crianças refugiadas, e um grande problema nesse sentido são as creches. A espera é um problema para a população brasileira no geral, mas se o país é signatário de acordos internacionais, deveríamos dar uma atenção especial para as crianças refugiadas, torná-las prioridade na lista de espera. De vez em quando conseguimos pular alguns nomes, mas é muito difícil”, conta o padre Paolo. A pedagoga Lia de Moura Brusti, professora do segundo ano da Escola Estadual Marechal Deodoro (EEMD), compartilha a mesma opinião do padre. “Não tem nenhuma política pública específica para crianças imigrantes, quando eles são mais velhos há cursos de português para estrangeiros em alguns polos educacionais, mas só”, diz. A EEMD foi pauta de diversas reportagens em 2015, quando alcançou uma porcentagem de 55% de alunos imigrantes, a maioria latino-americanos. Entretanto, a escola, localizada na Rua dos Italianos, desde sua fundação contou com uma grande população de alunos imigrantes. Segundo dados da Secretaria da Educação de São Paulo, 8,5 mil alunos estrangeiros estão matriculados na rede estadual de educação, representando cerca de 90 nacionalidades. “Aqui a gente tem a ‘escola da família’ nos finais de semana. São voluntários, estudantes de graduação, que dão cursos de português para as famílias estrangeiras. Mas é a própria escola que criou a iniciativa, não foi nada vindo do governo. Eles sabem dessa demanda, mas nada ainda foi feito. Mesmo os professores não têm subsídio para estudar línguas. Já fizemos também uma parceria com o pessoal de Letras da USP para promover um curso de espanhol para os professores e funcionários aos sábados. De 35 professores e 15 funcionários, a gente tinha 5 professores e 3 funcionários que faziam. Mas normalmente não tem auxílio, ou tradutor, muito menos professor fluente em árabe ou inglês. Então a gente 137


se esforça, e as crianças, ainda bem, aprendem muito mais rápido que a gente”, diz Lia. Segundo Cristina Morelli, a Cáritas tem dado algumas oficinas de formação sobre refúgio para escolas de Ensino Médio em São Paulo. “As escolas com quem a gente tem conversado estão se preparando para receber um número maior de alunos refugiados. Querem entender quem são, por que vêm, o que aconteceu com essas pessoas”, diz. A professora Lia conta que atualmente dá aula para um aluno palestino, de oito anos, que está refugiado no Brasil. “Ele está com a gente desde março de 2015, e chegou falando somente árabe e aprendendo inglês. A gente se comunicava com o Google tradutor, palavrinhas básicas como ‘bom dia’, ‘banheiro’, ‘desenhe’. Ele veio com a família e o pai falava inglês. Hoje todos falam português já. Ele conversava com as outras crianças em árabe e elas respondiam em português. Ele sentava ao lado de uma menininha de mãe boliviana e pai peruano, apontavam para os objetos e iam falando em árabe e em espanhol. Quando os dois falaram ‘pantalones’, que é ‘calça’ tanto em árabe quanto em espanhol, a menina deu um pulo na cadeira: ‘Professora, essa palavra é igual!’. Para as crianças tanto fazia, eles se entendiam do jeito deles”. Na EEMD, os professores realizam atividades para integrar as diferentes culturas dos estudantes. “A porcentagem de imigrantes na sala e na escola é quase de 50% hoje, e quando não são imigrantes são descendentes. Também tínhamos um menino de Camarões, que pediu refúgio no Brasil. Eles se enturmam nas brincadeiras, temos um projeto para cada um mostrar uma brincadeira tradicional. Na festinha de final de ano eles trazem comidas tradicionais também. Já fizemos uma festa boliviana aqui na escola também, a gente tenta trazer, na medida do possível, algumas coisas das diferentes culturas”, diz a professora. 138


“As crianças imigrantes se esforçam mais na escolarização, porque eles já estão vindo de outro país e cultura, então querem ter ‘sucesso’, para serem menos diferentes, para se inserirem mais, essa é a impressão que dá. Os pais se matam de trabalhar mas geralmente são eles que têm presença maciça nas reuniões e festas”, revela Lia. A escola recebe muitas crianças latino-americanas, principalmente bolivianas, cujos pais trabalham em oficinas de costura, em regimes semi-escravos. A professora conta que em uma aula sobre a escravidão no Brasil, um aluno boliviano apontou que ‘ainda existem escravos no Brasil, pessoas que trabalham demais e não ganham quase nada’. Lia confessa também que já teve um aluno que não possuía a ponta do dedo indicador, porque morava na própria oficina de costura com os pais e se acidentou brincando com uma tesoura quando tinha quatro anos. “Eles alugam um apartamento, como se fosse uma sala comercial, com um banheiro, e colocam divisórias. Em um espacinho tem oito colchões no chão, e o restante é oficina de costura. Trabalham doze, treze horas por dia”, denuncia. Por esse motivo, segundo a diretora da escola, Miriam Gironda, as crianças imigrantes têm muito mais energia no recreio. “Elas moram nas oficinas de costura, ou em apartamentos sem espaço nenhum, quando têm espaço elas correm muito. Na hora do recreio é uma loucura, eles aproveitam bem o espaço que tem na escola”, afirma. Lia lembra que quando contou aos alunos que um colega da Palestina iria chegar na escola, uma menina perguntou: ‘Professora, não é lá que tem um monte de guerra?”. Segundo a professora, por causa dos alunos ainda serem muito jovens, o menino palestino nunca sofreu discriminação. Ela afirma que o estudante é muito introspectivo, mas acredita que seja uma característica pessoal. “Hoje ele já se solta, mas 139


nunca grita, de modo algum. Já o aluno que tive de Camarões era bem desinibido e extremamente inteligente, mas de comportamento difícil. Ele conseguiu bolsa integral num colégio particular. A mãe dizia que ele tinha dificuldade de comportamento porque lá no Camarões a escola era muito severa, quem desobedecia levava palmatória ou ajoelhava no milho, e aqui ‘tudo pode’ e ele testava os limites”. Os relatos de xenofobia e racismo, entretanto, são frequentes entre as crianças em situação de refúgio. “Dependendo muito das nacionalidades tem piadinhas e bullying, às vezes feitas pelos próprios professores. Uma assistente social da Casa do Imigrante foi a uma escola em que os próprios educadores ridicularizavam as crianças bolivianas”, disse o padre Paolo. Segundo a pedagoga Simone Fernandes, responsável pelas crianças da Casa de Passagem Terra Nova, a coordenação do abrigo já precisou agir em alguns casos de desentendimento entre a escola e as crianças refugiadas. “Desde 2014 eu procuro fazer um contato com a Rede de Educação e a gente tem tido sorte das nossas crianças caírem sempre nas mesmas escolas, porque a lei obriga que a escola seja próxima do local onde os estudantes moram. Mas o problema mais sério foi na Escola Estadual Caetano de Campos, onde o discurso era bem preconceituoso mesmo, em relação ao imigrante de forma geral”, relata a pedagoga. Em relação ao ensino universitário, algumas universidades federais no país estão começando a adotar políticas de reingresso de estudantes refugiados. O Programa Universidade Brasileira e Política Migratória (PMUB), da Universidade Federal do Paraná, por exemplo, foi criado em 2010 como resposta à situação emergencial de refugiados e cidadãos com visto humanitário. Um dos principais focos do programa é assegurar o reingresso de estudantes que tiveram os estudos interrompidos no país de 140


origem e a revalidação do diploma de estrangeiros. A UFPR conta com 24 estudantes reingressos em 2016, sendo parte deles contemplados com bolsas de permanência, como auxílio moradia e vale transporte. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) também lançou em 2016 um processo seletivo voltado para refugiados que vivem no Brasil, para ingresso em 2017. Os candidatos precisam comprovar a condição de refugiado por meio da documentação emitida pelo CONARE, e realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que será utilizado como critério de seleção. Em junho de 2016, o Ministério da Educação do Brasil (MEC) publicou novas regras para revalidação de diplomas de estrangeiros graduados ou pós-graduados no exterior. Agora, as universidades credenciadas para revalidar diplomas universitários terão obrigação de fazê-lo, já que muitas universidades se recusam a revalidar diplomas. As novas regras também permitem que a instituição opte pela aplicação de provas em português para avaliar os conhecimentos, o que dificulta a situação dos imigrantes e refugiados graduados que ainda não são fluentes em português. Uma outra diretriz possibilita a revalidação de diplomas de pós-graduação, antes proibida.

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4.4. Exploração

da Imagem de Crianças Refugiadas na Mídia

A cobertura internacional e nacional da mídia sobre a crise humanitária e migratória tem sido um dos principais fatores no aumento de conhecimento geral sobre a situação da população refugiada. Entretanto, como analisado anteriormente, essa cobertura intensificada teve início apenas com o aumento do fluxo migratório para a Europa e ainda reproduz uma visão colonizadora e xenófoba, ao colocar em todos os momentos a presença dos refugiados com um problema a ser resolvido. Os países asiáticos e africanos, que há anos são destino de refugiados e de seus próprios deslocados internos, nunca estiveram no foco da grande mídia. Um marco importante para o foco do interesse seletivo da mídia ter se voltado para os refugiados em 2015 foi a morte do menino curdo da Síria. Aylan Kurdi tinha três anos quando se afogou após o barco, no qual cruzava o Mar Mediterrâneo para se refugiar na Europa, naufragar. O corpo de Aylan foi fotografado na praia de Ali Hoca, na Turquia, no mesmo dia de sua morte, 02 de setembro de 2015, e a partir de então o mundo voltou seus olhares para os refugiados sírios. A divulgação da fotografia tirada pela fotógrafa turca Nilüfer Demir, entretanto, foi muito criticada por comunicadores, fotógrafos e pela população em geral, por ser considerada sensacionalista e um desrespeito à família do menino e aos refugiados como um todo. A imagem foi adaptada centenas de vezes em charges, histórias em quadrinhos e ilustrações que mostravam o menino deitado em berços ou voando com 142


asas de anjo, em vez de estar deitado na areia da foto original.

No entanto, a discussão da seletividade do jornalismo e da comoção pública, mais uma vez, intensificou-se com a viralização da imagem. Para os refugiados africanos, que sempre têm imagens divulgadas de suas crianças padecendo em campos de refugiados ou assassinadas de formas extremamente cruéis, o súbito interesse da população ocidental nas crianças em situação de refúgio e vítimas de conflitos armados é bastante racista.

Indignação Seletiva e Racismo

Para a psicanalista Ana Gebrim, que trabalhava na Cáritas na época da divulgação da imagem, o interesse do jornalismo brasileiro com a população refugiada cuidada pela entidade aumentou muito desde setembro de 2015. “Eu estive na Cáritas em um tempo que coincidiu com o boom midiático dos refugiados, e isso coincidiu precisamente com a foto do Aylan na praia. Você consegue pontuar esse episódio como aquilo que despertou o interesse do mundo, e a mídia brasileira atualizou o tema olhando para a população refugiada no Brasil, que também aumentou muito”, contou. “De um dia para o outro chegou, no mesmo dia, a equipe de reportagem do Fantástico, do Globo Repórter, do SBT e da Record na Cáritas. Todas com interesses muito enviesados, do tipo ‘queremos falar com sírios, com crianças sírias’. Então as crianças sírias refugiadas se tornaram objetos fetichizados, a ponto da gente viver episódios em que as pessoas ligavam e falavam que tinham doações, caminhões de alimentos e mantimentos, mas somente para os sírios. Acho que isso exemplifica 143


o impacto do racismo nas populações refugiadas que chegam aqui. O Brasil é um país muito racista e a gente ouve isso no relato dos refugiados, principalmente das crianças, que apontam e denunciam isso. Acho que os refugiados sírios vivem questões de intolerância e estranhamento em relação à religião, mas não vivem a questão direta da cor da pele”, opiniou. Segundo Cristina Morelli, a Cáritas realizou o projeto “Portas abertas”, logo após a divulgação da imagem de Aylan Kurdi, que convidou as pessoas interessadas para conhecer o espaço e o trabalho da entidade. “Essa atividade foi um momento de esclarecimento, porque as pessoas achavam que só as crianças sírias eram refugiadas. Algumas pessoas foram embora com a própria doação na mão, porque não queriam entregar se não fosse para uma criança síria, e nós encaminhamos para quem precisar, independente da nacionalidade. Nós sabemos que existem muitas outras crianças sofrendo, crianças mortas, não só sírias como de outros países. O aumento de doações durou um tempo, mas já diminuiu de novo”. Para Ana Gebrim, um dos grandes motivos da comoção geral com as crianças sírias é a questão de identificação social e racial. “A humanidade é indentificada em valores ocidentais e na branquitude. Os brancos ocidentais se viram espelhados naquele menino, por ser branco e estar de costas. Talvez se ele estivesse de frente teria mostrado os traços curdos e não geraria esse efeito de identificação. O que gerou o impacto traumático é ver um filho branco, bem criado, bem nascido, que poderia ser ‘meu’, naquela situação. Nessa lógica da indústria cultural, a afetação tem cor, endereço e classe social. Todo mundo se empatizou, o que não existe com as crianças negras. Eu acho bem complicado que a empatia e a solidariedade estão apenas em serviço da identificação”.

Na opinião de Anneli Nobre, a abordagem da mídia é 144


desnecessariamente sensacionalista e reforça a ideia de que os refugiados são apenas sírios e brancos, e os africanos são imigrantes ilegais. “A gente viu muito essa opinião no ano passado, em eventos como a festa de dia das crianças. Fizemos uma festa para receber doações aqui e só chegavam perguntando das crianças sírias, sendo que tínhamos uma família síria e pelo menos dez crianças africanas. Dava para ver a diferença de tratamento, inclusive nos serviços”, denuncia.

Sensacionalismo e desrespeito

Além da indignação seletiva e tratamento racista dispensado aos refugiados e crianças refugiadas negras, a abordagem agressiva e sensacionalista dos jornalistas e veículos de comunicação é amplamente criticada pelas entrevistadas. A necessidade de comover a qualquer custo o público, para gerar uma “boa reportagem”, faz com que a ética de entrevista com crianças e pessoas em vulnerabilidade no geral seja deixada de lado. “Nesse boom de jornalistas a abordagem era terrível. Particularmente, eu passei uma experiência péssima com o Jornal Nacional em uma reportagem sobre crianças refugiadas. A jornalista queria fazer a menina chorar a qualquer custo e eu tinha que cortá-la. Eu era ingênua e sugeri alguns nomes para entrevista, depois disso nunca mais indiquei fontes de crianças refugiadas para jornalistas. A gente está tratando de crianças que viveram situações limite de extrema violência, e qualquer abordagem precisa ter muito cuidado”, afirmou Ana Gebrim. “Recebemos pedidos absurdos da mídia, feios, inclusive. ‘Me arruma uma história bem bacana’, dizem, e a ‘bacana’, para alguns jornalistas, é a mais trágica possível. A gente sempre entende que o

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cuidado no tato com as pessoas é o mais importante, não querer usufruir da situação da pessoa para explorar. A gente torce para que se crie um contingente de jornalistas mais sensíveis”, pondera Cristina. Anneli conta que também já passou por situações em que teve que intervir na entrevista de jornalistas com crianças refugiadas. “Teve uma vez que a gente brigou com uma jornalista da Band, porque a gente tinha avisado que um menino sírio não podia falar sobre a guerra, o olho dele já enchia de lágrima, e orientamos para ela fazer perguntas sobre coisas leves apenas. A primeira pergunta que ela fez, com uma cara de tristeza, foi: “Por que você saiu do seu país?”. Sempre tem esse lado de querer se aproveitar e explorar o sofrimento. Mas mesmo assim acabam vindo mais jornalistas do que a gente gostaria aqui, porque é interessante fazer uma promoção do serviço”. A Casa de Passagem Terra Nova, onde Anneli trabalha, é um dos abrigos mais rígidos em relação à imagem dos refugiados. Logo de cara foi uma advertência, desde o início da entrevista, quanto à proibição estrita de fotografar crianças que vivem no abrigo. Alguns abrigos como a Casa do Imigrante têm aumentado a restrição às imagens desde o ano passado, o que simboliza uma proteção e privacidade maior para os refugiados no Brasil. Porém, ainda é muito frequente a presença das crianças participantes de projetos como a Ong IKMR em programas de auditório, como o Encontro com Fátima Bernardes, assim como a exibição de sua imagem em diversos vídeos, fotografias e entrevistas. Em geral, o que pôde ser percebido, é um cuidado muito maior em restringir o contato de pesquisadores com as crianças do que em evitar o contato de equipes de reportagens da grande mídia. 146


Patrícia Nabuco explica que um dos motivos da restrição de espaço para jornalistas na Casa do Imigrante foi o caso do fotógrafo Ronny José dos Santos, que ganhou o prêmio Vladmir Herzog com a imagem de um imigrante haitiano tomando banho em um mictório do abrigo. A imagem foi tomada sem autorização do imigrante ou da coordenação do abrigo, o que gerou antipatia de toda a comunidade haitiana. “É muito difícil conseguir entrevista com os haitianos hoje por causa dessa foto. Eles não querem mesmo, porque acham que foram explorados da maneira mais vil possível. O cara fez o nome dele com uma foto que ganhou um prêmio de direitos humanos. Aquela foto chegou no Haiti, e é muito complicado, porque as pessoas saem de lá com um projeto migratório, acreditando que sua vida vai melhorar, e então vê uma foto humilhante dessas”, conta. Segundo a advogada Vivian Holzhacker, os jornalistas que praticam esse tipo de abordagem violam tanto o ECA quanto a Lei de Refúgio, que coloca a questão do sigilo como um direito fundamental. “Se você identifica uma criança que estava sendo perseguida, ou que os pais estavam sendo perseguidos, você coloca ela em risco no Brasil também, e isso é totalmente desconsiderado pelos jornalistas”. No entanto, Vivian destaca que o aumento da sensibilização geral com a foto de Aylan Kurdi e as reportagens sobre refugiados trouxe mudanças efetivas, como a pressão para a continuação da resolução que emite vistos humanitários para sírios no Brasil. “Iam parar de emitir os vistos, mas com a sensibilização grande, o governo renovou essa Resolução 17 no CONARE. Então houve efeitos positivos também”.

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Esvaziamento da Imagem

A justificativa para a reprodução de imagens de refugiados,

e para a existência de uma cobertura de direitos humanos por si só, é a de que o jornalismo e o fotojornalismo servem como ferramenta de denúncia, ao darem voz para populações em vulnerabilidade. Desde a origem do fotojornalismo, o caráter social e de denúncia esteve atrelado às justificativas para apontar uma câmera grande e cara para pessoas em situações de total violação de direitos humanos, e depois ganhar prêmios e fama com as imagens. O fotojornalismo já foi um dos fatores responsáveis por mudanças significativas na história e na geopolítica mundial. O exemplo clássico são as fotografias da cobertura da Guerra do Vietnã, que inspiraram as manifestações pela paz do Movimento de Contracultura dos Estados Unidos, a partir dos anos 1960. A fotografia de Kevin Carter, fotógrafo do Clube do Bang Bang – rótulo que classificou o grupo de quatro fotógrafos que atuavam cobrindo a transição do apartheid na África do Sul – ainda é uma das mais conhecidas ao redor do mundo. Carter fotografou uma criança sudanesa subnutrida espreitada por um abutre, em um campo de combate à fome da ONU no Sudão. Com a foto, o fotógrafo ganhou o Prêmio Pulitzer de fotografia em 1994, mas foi severamente criticado por ter escolhido não intervir na cena que fotografou. A imagem, no entanto, foi muito importante para chamar a atenção para a fome e a miséria no continente africano. Em pleno século XXI, com o advento da internet e a democratização da fotografia, a saturação de imagens é extrema. São tantas fotografias tiradas e divulgadas diariamente, inclusive centenas de imagens que 148


reproduzem cenas ultrajantes, que a função social da fotografia hoje é muito questionada. A opinião de que o imenso volume de fotografias não possui mais capacidade de chocar, e acaba nos tornando imunes à sensibilização por imagens, é defendida por Ana Gebrim. “No filme Mil Vezes Meia Noite a filha da fotojornalista pergunta para ela porque ela quer continuar na profissão. Ela responde que fotografa para que as pessoas cuspam o café da manhã enquanto leem o jornal de manhã, vendo a foto que denuncia a miséria do mundo. Mas a gente percebe que essa relação se dá ao contrário. Como afirma Susan Sontag, a fotografia é rapidamente absorvida como um instrumento de consumo, de desafetação, e justamente quanto mais se vê, menos se sente. A força de ver tantas crianças famélicas, corpos destruídos em guerras, faz com que a gente deixe de se afetar por aquilo. Então a gente passa por uma notícia sobre o Big Brother Brasil e por uma notícia de uma chacina na mesma página da internet, sem se atingir, sem dar nenhuma gradação de afeto àquilo. O que deveria ser um instrumento de denúncia e mobilização, para que as pessoas mudassem a ordem das coisas, acaba azeitando a própria engrenagem de conivência com o status quo”. A filósofa Susan Sontag, citada por Ana, é autora de livros como o Sobre Fotografia e Diante da Dor dos Outros. No primeiro, publicado em 1973, Sontag analisa a história e o sentido da fotografia em sete ensaios. No segundo, publicado em 2003, a filósofa atualiza a discussão para a era da internet e da comunicação televisiva.

Após trinta anos, talvez tenhamos chegado a um ponto de saturação. Nas últimas décadas, a fotografia “consciente” fez, no mínimo, tanto para amortecer a

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consciência quanto fez para despertá-la (SONTAG, 1973, p 31.) O outro, mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não como alguém (como nós) que também vê. (SONTAG, 2003).

Para Ana, desde que a foto de Aylan Kurdi foi publicada, a situação dos refugiados, efetivamente, apenas piorou. “Só aumentou o número de crianças mortas, pessoas de todas as idades afogadas e crianças desaparecidas em campos de refugiados na Europa. Já banalizou, os refugiados não são mais capa de jornal, já entraram na lógica da desafetação”, ponderou. A mesma opinião é compartilhada pelo próprio pai do menino curdo, Abdullah Kurdi, que cedeu uma série de entrevistas no aniversário de um ano da morte do filho e do restante da família, denunciando que pouco foi feito pelos refugiados desde então. As reportagens produzidas com crianças em situação de refúgio no Brasil, principalmente para televisão e áudio, têm seguido a mesma fórmula: os jornalistas com voz entristecida perguntam o motivo da vinda da família para as próprias crianças, incentivando reações emocionadas ou traumáticas. Não tem sido feito nenhum esforço de preservar a imagem das crianças, apesar do ECA garantir, em seu artigo 17, o direito à “inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia (…)”, e em seu artigo 18, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

Principalmente por se tratarem muitas vezes de famílias 150


perseguidas em seu país de origem, a divulgação desenfreada do rosto e nome completo de crianças refugiadas e suas famílias na mídia e na internet é preocupante. A posição muitas vezes hierarquicamente superior dos jornalistas durante as entrevistas, e o desconhecimento das leis brasileiras, faz com que muitos dos refugiados no Brasil não questionem diretamente a captação de suas imagens. Ao mesmo tempo, a falta de políticas pública, de entendimento crítico e politico sobre o impacto da espetacularização das imagens potencializadas pela mídia corporativa brasileira, fazem com que essas organizações muitas vezes permitam e incentivem a participação de crianças em entrevistas e programas que não prezam a sua integridade física e moral. Por esse motivo, os alicerces éticos dos jornalistas e pesquisadores – ou a falta deles – ainda são os fatores determinantes para a exposição ou preservação das crianças em situação de refúgio no Brasil.

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PARTE Ii 152


Parte 2 Capítulo 5 Perfis de Crianças Refugiadas no Brasil

CAPÍTULO 5:

perfis de crianças refugiadas no brasil

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Paula e Maravilha Angola

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as marcas e fronteiras das guerras dos outros Em alguns pontos de São Paulo a gente se vê estrangeiro de uma hora para a outra, ao virar uma esquina, mesmo tendo vivido aqui por toda a vida. A Rua Japurá, na Bela Vista, é um desses lugares. Entre imóveis de classe média alta, um sobrado amarelo chama a atenção, com sua porta de metal sempre entreaberta, enquanto homens de pele muito negra conversam na sarjeta em línguas desconhecidas, fumando cigarro. Ao passar por eles em direção à entrada da casa, sou educadamente cumprimentada com acenos de cabeça e ‘bons-dias’, apesar de nunca terem me visto antes, e me sinto ainda mais forasteira com a minha frieza e pressa paulistanas. Lá funciona o Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI), abrigo mantido pela ONG Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), em parceria com as Secretarias Municipais de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Com 120 vagas, o CRAI dá prioridade aos imigrantes e refugiados recém-chegados e com maior vulnerabilidade, abrigando dezenas de crianças que se enquadram nestas categorias. Entre elas, estão as irmãs angolanas Maravilha e Paula, com 7 e 15 anos, que desceram com desconfiança as escadas do seu dormitório para conversar comigo, a pedido da mãe, Godelina. Uma mulher alta de vestido estampado e turbante, ela acabara de me explicar o motivo da sua vinda para o Brasil em voz doce com sotaque chiado, um misto de português de Portugal com fonemas do francês. 155


“Muitos problemas. Eu saí por muita violência e problemas da igreja. Eu sou do Pentecostal, Igreja Cristo do Sétimo Dia. Teve uma confusão, o líder da Igreja foi condenado neste ano, eu tive que sair para proteger a vida das minhas duas filhas. Eu perdi o contato com o meu marido no dia 16 de abril de 2015, na província onde tínhamos concentração da Igreja. Aconteceu uma tragédia, tiroteio de polícia, morreu muita gente. Também perdi meu filho, que tinha quatro anos e tá em vida, se Deus quiser, tá em vida ainda... No dia 20 de agosto ele vai completar cinco anos. Não tenho contato com ele ainda, nem sei se ele está com meu marido. O nome dele é Patrício”, contou, com tristeza e esperança. Segundo websites angolanos de notícias, no dia 16 de abril de 2015 houve um massacre, protagonizado pelas forças militares e policiais da Angola, que causou a morte de centenas de fiéis da seita adventista do sétimo dia “Luz do Mundo”, fundada pelo Pastor José Juli-no Kalupeteka. Milhares de fiéis se encontravam em um acampamento religioso no Monte Sumi, na província do Huambo, quando foram atacados, sob ordens do governador da província. A versão do governo confirma o assassinato de apenas 13 fiéis, em reação ao assassinato de nove policiais por discípulos de Kalupeteka. O pastor, que era acusado de desobediência civil e de promover fanatismo religioso e ódio, foi condenado à prisão em abril de 2016. Godelina conta que quando regressou à Luanda, capital do país, onde vivia com sua família, viu que a polícia estava aguardando em sua rua. “Estávamos na província vizinha, eu pensei que quando chegássemos em casa iríamos encontrar meu marido e meu filho, mas não encontramos ninguém. No dia 20 de abril a polícia apareceu na minha casa para deixar uma convocatória para eu me apresentar em uma investigação criminal.


Eu não tinha forças, meu marido não estava”. Alguns meses depois, ela fugiu para o Brasil de avião com as filhas e a ajuda de um amigo, chegando ao Rio em janeiro de 2016. A Guerra Civil Angolana teve fim em 2002, após 27 anos de conflitos que marcaram o período pós-independência do país e alimentaram inclusive a Guerra Fria, com a disputa de poder entre os antigos movimentos anticoloniais, como a União Nacional para Independência Total da Angola (UNITA), o Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação da Angola (FNLA) e a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC). No entanto, as consequências da guerra são refletidas no legado de violência que envolve a administração pública, os empreendimentos econômicos e as instituições religiosas angolanas na luta pelo poder territorial. Os complexos conflitos geopolíticos ainda não são compreendidos pelas filhas de Godelina, embora elas carreguem no corpo e na memória suas marcas: além de terem perdido o pai e o irmão mais novo no conflito da Igreja, Maravilha teve, no mesmo dia, sua boca bombardeada por estilhaços de granada. “Ela foi vítima de um acidente que aconteceu naquela data, a pequenininha, a boquinha dela tava fechada assim, só tinha um lábio. Para comer era muito difícil. Foi uma granada que acertou ela”, continuou a mãe. Na data do meu primeiro encontro com a família, Maravilha havia sido operada há apenas duas semanas, no dia 2 de maio de 2016, no Hospital Municipal Infantil Menino Jesus. A menina teve sua boca reconstruída, embora a cicatriz ainda fosse bastante perceptível e ela ainda escondesse os lábios automaticamente com as mãos ao se comunicar, como costume. “Quando ela chegou na 157


escola tinha vergonha da boquinha dela, quando perguntavam o que tinha acontecido ela chorava. Mas o professor ajudou a fazer uma carta, colocaram na ficha dela e a levamos no médico. A operação foi rápida e de graça”, disse Godelina. Maravilha, um apelido comum em alguns países africanos, é uma garotinha pequena e carinhosa, que usa elásticos coloridos em cada ponta do cabelo trançado. Ela tem se saído bem na escola pública em que está matriculada. Em Leia esse QR quatro meses aprendeu “a fazer leitura”, algo que Code com o nunca havia conseguido na Angola pois, segundo aplicativo em seu celular a mãe, o ensino era muito limitado e a professora para ter brasileira a ajudou com todos os sons do alfabeto. acesso aos áudios das “Falou para eu acompanhar ela em casa, ela tinha crianças que estudar três vezes por dia. Um mês depois conseguiu ler. Ela fala português melhor que eu, parecendo brasileira”, conta Godelina, orgulhosa. A menina gosta de cantar no coral da igreja aos sábados e diz que quer ser bailarina. Ela diz que sente falta de brincar com suas amigas na escola em Luanda e que sua música favorita é “Ana Beatriz”, provavelmente se referindo à cantora gospel brasileira. Ficou com vergonha quando pedi para cantar para mim, mas depois de ter começado, deixou de lado a mania de cobrir a boca e não quis mais parar, embora a irmã mais velha repetisse insistente que já era hora das duas dormirem. “Calma, eu vou cantar rápido”, e cantou, terminando com um abraço de boa-noite. Paula, por sua vez, já não guarda mais o encantamento da infância. Provavelmente bem mais marcada pelas memórias da violência, ela resistiu em responder as perguntas, desconfiada e tremendo de frio 158


com seu vestido fino e chinelos na noite gelada. “Não vai demorar, né?”. Respondi que não havia problema se ela subisse para o quarto, mas alguns minutos depois ela retornou. Alta, magra e monossilábica, ela disse que está gostando do país, que sente falta das amigas na Angola, com quem não fala mais, e que esperava que o Brasil fosse diferente. As respostas ganharam volume quando perguntei sobre sua escola e comentei que sua mãe havia me contado sobre as perseguições que estava sofrendo lá. “As pessoas são racistas. Não é que eu sinto que tem racismo; tem racismo. Tem só brasileiro na minha escola, mas o racismo é porque sou negra, não porque sou da Angola. Já me xingaram de negra e de suja. Eu falei com a escola, falaram com o menino e ele parou... Mas... Fora da escola eu me sinto isolada”, contou, sem que eu perguntasse, como se quisesse falar sobre isso há bastante tempo. “Na Angola eu saía da escola, tinha as minhas amigas, ia passear. Agora eu saio da escola e tenho que voltar para casa. Ainda não passeei por São Paulo, de noite dá medo”. Ela acredita que foi melhor ter vindo para cá, mas não comenta sobre o ocorrido na Angola, destacando apenas que “foi muito triste” e que não consegue falar sobre o assunto. A rotina diária das irmãs se resumia em ir para a escola e voltar para o abrigo, onde faziam as lições de casa juntas e frequentam algumas das atividades propostas. Paula também fez um curso de informática disponibilizado pelo Sefras. A mãe conseguiu um emprego de auxiliar de cozinha através da ONG e voltava para o abrigo apenas de noite. Embora a vida no abrigo fosse instável, a família já viveu situação pior no Brasil, chegando a dormir na Rodoviária do Tietê e a morar por alguns dias debaixo do viaduto da Rua Pedroso, em barracos de papelão. “Era uma casa embaixo do viaduto. Era muito abafado, não tinha condições. As pessoas de rua iam para lá no frio, não estava dando certo. 159


Aqui é melhor”, explicou Godelina. Segundo Paula, uma senhora abrigou a família por um tempo após chegarem em São Paulo e as levou para a Cáritas. Mas os abrigos estavam lotados, e a família teve que dormir na rua por um tempo até conseguir vaga no CRAI. Com as coordenadas das servidoras do abrigo, Godelina fez a solicitação de refúgio na Polícia Federal e tirou o documento de trabalho. Agora, a família aguarda com o protocolo de refúgio a decisão do CONARE. “Quando cheguei não conhecia ninguém, mas vi um grupo de pessoas vindo para São Paulo, então segui ele. Eu pensava que o Rio era a capital do Brasil. Quem ajudou a gente foi a senhora e o marido dela, que nos acolheram. Eles são... Como chama? Aqueles que vestem aquela roupa assim, e que o Deus dá muita confusão, mata muitas pessoas... Muçulmanos, acho. Eles me contaram tudo, como fazer. Eles sempre me ligam e sempre iam me visitar”, disse a mãe. “Gostei do Brasil, porque na minha mente, não contava que um dia ia viajar para cá. Mas Deus é Deus, e hoje estou aqui. O Brasil é grande, grande, muito grande. Muita população também. O brasileiro é muito legal, simpático. Quando eu tava em Luanda estava a assistir aquele canal do Zap, que apresenta muitos programas daqui, como novelas e notícias. Sempre gente matando, roubando as outras pessoas. A gente tinha medo do Brasil, não contava que um dia ia chegar aqui. Mas chegou. Desde que cheguei vejo muita violência na televisão, mas nunca vi um roubo nem nada. Não sei se depende do bairro... “ contou Godelina, completando que não está muito interessada na televisão. “Na minha cabeça tenho que ajudar as crianças a estudarem e só”. O objetivo não é à toa; Godelina estudou apenas até a oitava série, por conta da guerra civil na Angola e do ensino patriarcal. “As meninas só ficavam limpando e os rapazes podiam estudar. Eu estudei depois 160


de crescida para saber ler, ter noção. Já estava na casa do meu marido. Trabalhei como auxiliar de cozinha por um tempo na Angola, depois tinha sido costureira, porque minha mãe me ensinou a fazer roupas. Aprendi a falar o francês quando trabalhei como doméstica na casa de um francês. Na Angola tem muita empregada doméstica. Eu quero muito que elas façam faculdade aqui, Deus ajuda para que elas tenham faculdade. Mas a vida é assim, né. Todo país tem rico e tem pobre, e um tem que ajudar o outro. Se você é deputada, tem que trabalhar o dia todo e precisa de alguém para cuidar da sua filha, o pobre tem que vir ajudar. É assim mesmo”, explica. Paula tem diferentes sonhos e ainda não decidiu o que gostaria de fazer no futuro. A mãe revelou que ela gostaria de seguir o curso de medicina, mas que também quer ser modelo, sonho alimentado constantemente por todos que a conhecem e elogiam sua altura e estrutura óssea. “Eu gosto de moda, amo moda. Uma moça assistente social disse que vai me ajudar a ser modelo, mas eu não sei quanto tenho de altura. Também queria ser aeromoça. Eu andei a primeira vez de avião vindo para cá e não tive medo, gostei” disse a adolescente. Já Maravilha, segundo a mãe, só pensa em cantar: “Ela fala que vai ser cantora, e ela canta muito. Se você tá procurando o telefone, ela já levou para o canto e começou a cantar nele, inventando canções. Quando vai escutar vê que ela cantou muito bem”. Quando voltei ao abrigo pela segunda vez, Paula, já menos desconfiada, me contou que visitou o Sesc Pompéia e o Museu de Arte Contemporânea (MAC) com assistentes sociais, e que havia viajado para um acampamento no interior com a igreja evangélica que a família frequenta em São Paulo. Mais animada, ela olhava para o celular de cinco em cinco minutos e explicou que havia arranjado uma nova amiga. “Eu 161


era sozinha na sala, a única angolana, mas ontem uma outra angolana que acabou de chegar no Brasil veio na escola e está estudando comigo na oitava série. To muito feliz agora. Melhorou muito, porque a gente conversa... É bom ter alguém, as pessoas são um pouco diferentes aqui”. No segundo encontro, o abrigo estava todo enfeitado com bandeiras de festa junina e os imigrantes e refugiados se preparavam para uma apresentação musical que aconteceria na sala onde costumam assistir a televisão. As crianças, de diferentes nacionalidades e idades, corriam pelo abrigo brincando e me olhavam com curiosidade enquanto eu conversava com Paula. As mais novas ficaram deslumbradas com o gravador e a câmera fotográfica, e tiravam dezenas de fotos, gargalhando de felicidade simplesmente ao ouvir o ‘click’ do botão sendo apertado. Paula revirava os olhos do alto de sua adolescência, como quem precisasse de um pouco de privacidade, e perguntou mais uma vez o que faria com a entrevista. “Você vai imprimir as fotos que eu tirei com a câmera?”. — Sim, essa é a ideia. — Não sei se quero isso. — Tudo bem, não vou colocar no livro então. — Vai ser um livro mesmo? Um livro de histórias? — Sim, com a história de algumas crianças refugiadas... — Ahn... Não faz mal, não. Pode imprimir. Quantas páginas você já tem? — Umas quarenta... — SÓ?!?! Vai dar tempo? — Espero que sim, hahaha. Você gosta de ler? — Gosto. — Tem um livro favorito? 162


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Nesse momento ela sorriu em catarse. “Eu tenho um livro favorito, mas é da escola, de língua portuguesa, com poesias e histórias passadas da Angola. Você pode copiar né? Pode colocar no livro ou tirar uma foto das páginas, você vai achar bem interessante. Tem a história de um chefe que maltratava os imigrantes e a história do búzio, que é sobre um senhor que morava em um búzio, à beira do mar. Você vai ver, é interessante, e daí escreve no livro”, disse, soltando as palavras rapidamente e subindo para pegar o livro. Em pausas e com certa dificuldade, Paula leu o livro didático rasgado e amassado, que trazia na capa uma máscara africana sob o título: Língua Portuguesa – Manual do Aluno: 1o Ciclo do Ensino Secundário. Entre um parágrafo e outro dos contos lidos em seu sotaque chiado, a menina parava para me explicar o significado de palavras típicas angolanas. A cada história e poema, repletos de moral sobre a importância das mulheres manterem seu papel recatado, os efeitos do álcool e as consequências de governos ditatoriais, ela parecia mais envolvida. “Essa é a história do Mbanga Mussungo, explica a lenda de um senhor que era grande, grande em tudo, na ostentação e na crueldade. Era muito mal, ele sentava na cadeira e espetava duas varas nos corações dos escravos. Muito interessante”, conta. Perguntei se ela sabia explicar o que está acontecendo na Angola hoje, ao que ela respondeu que “cada pessoa tem os seus problemas”. — Qual o nome do presidente da Angola? — José Eduardo dos Santos. — E no Brasil, vocês sabem o que tá acontecendo agora? — Não... — É complicado. 164


— Tem a Dilma. Tem muita gente protestando na rua, já vi aqui na frente. Fica um monte de barulho...

Ela voltou a atenção para o livro. “Vou ler mais esse, tudo bem? Ai, assim vou acabar lendo o livro inteiro. Fazia tempo que não lia. Lembrei que tava com saudade – disse, rindo – Esse livro é bem velhinho, bem velhinho mesmo, mas eu guardo”. O livro, já lido e relido a ponto dela saber de cor o nome de todas as histórias, é um dos únicos objetos que a menina trouxe para o Brasil. Godelina, Paula e Maravilha não têm quase nada em que se apoiar aqui. Muito religiosas, acreditam que a vida é uma eterna luta entre o “Satanás” e Deus, e depositam no último as esperanças de conquistarem seus sonhos. “A vida é assim, Deus quer por nós, mas o Satanás quer contra nós. Ontem você tinha uma vida melhor, depois o Satanás pega tudo”, me revelou Godelina. Essa disputa eterna entre o bem e o mal, tão simbolizada pela sua religião, continua regendo a vida da família aqui em São Paulo. Na última vez em que visitei Paula e Maravilha, seu Deus parecia estar vencendo. Encontrei as duas perto da Estação Artur Alvim do metrô, onde Godelina havia conseguido alugar um aposento só para elas – algo que, depois daqueles que perderam para a violência, afirmavam sentir mais falta. “Aqui eu quero ter minha casa também, porque viver com uma multidão de pessoas é difícil, cada pessoa tem seus problemas. No abrigo tem haitianos, nigerianos, congoleses, pessoas do Guiné-Bissau e do Benim. É difícil, 165


mas já estamos habituadas”, dissera Godelina, na primeira entrevista. Impaciente, após minha demora para descer no ponto de ônibus que beirava a comunidade onde hoje vivem, Paula ficou incrédula quando eu disse que não conhecia o lugar, explicando que São Paulo é enorme e não é possível conhecer todas as ruas ou bairros. “Você nunca tinha vindo aqui?!”, questionou, em choque. Deixei um livro de contos brasileiros com Paula, que o recebeu com curiosidade, depois de ter me contado em outro encontro que ainda não havia lido nenhuma história sobre o Brasil. Recebi um abraço apertado da pequena Maravilha e voltei para a zona oeste de São Paulo, que poderia muito bem ser outro país em distância socioeconômica, da onde, talvez, eu seja menos estrangeira. Acho que, aos poucos, Paula está começando a entender e questionar essas novas fronteiras, ainda mais difíceis de serem ultrapassadas.

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Enrico, 12 ColĂ´mbia

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Caronas, lagartixas e o Cristo “Un pueblo sin piernas pero que camina” “Viemos caminhando. A gente andou muito pela estrada. Dormimos na rua, em postos de gasolina, às vezes em hotéis. Pegamos cerca de... Quantas caronas, filho?”. “119 caronas! Nós contamos”, respondeu o menino animado, levantando pela primeira vez os olhos do desenho que fazia, deitado na cama, enquanto eu entrevistava seu pai. Enrico, de 12 anos, seu pai Robert (46) e sua meia-irmã Nataly (21), deixaram Bogotá na Colômbia, cidade onde viviam, no dia 18 de novembro de 2014, com apenas 20 mil pesos colombianos (cerca de 7 dólares), para dar início a uma jornada que durou dois meses e 15 dias até São Paulo. Entraram no Brasil pela fronteira com o Peru no dia 31 de dezembro, chegando em Brasiléia (AC). “Ano novo, país novo, vida nova”, disse Robert, com um sorriso tímido. A família, que aguarda entrevista com o CONARE para conseguir o reconhecimento de refúgio no Brasil, saiu de seu país de origem por conta da perseguição do narcotráfico e por problemas financeiros. “Fui marcado por grupos do narcotráfico e paramilitares, grupos armados da Colômbia. Saímos por seguridad”, continuou o pai, que se tornou alvo por ter feito bicos como membro de um órgão que investigava traficantes de drogas. “Recebia e-mails com ameaças dizendo que já haviam me localizado”.

Com quase meio século de duração e agravado nos últimos 169


cinco anos, o conflito colombiano – uma guerra que envolve múltiplos grupos paramilitares, traficantes e guerrilhas ideológicas como as Forças Armadas Revolucionárias (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) – coloca o país em segundo lugar em número de refugiados e deslocados internos, os “desplazados”, perdendo apenas para a Síria. Um acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC que estava sendo negociado há quatro anos foi anunciado em agosto de 2016, mas acabou sendo recusado pela população por 50,2% dos votos válidos em um plebiscito realizado em outubro do mesmo ano. São cerca de 6,7 milhões de pessoas deslocadas dentro da Colômbia, aproximadamente 13% da população, e um total de 360 mil colombianos reconhecidos como refugiados em outros países, a maioria no Equador e na Venezuela. No Brasil, são a terceira maior população de refugiados, cerca de 1.100 já reconhecidos, um número que, entretanto, representa uma porcentagem pequena do total de refugiados colombianos. “É muito comum acontecer isso, todos os dias colombianos deixam o país, mas poucos vêm para o Brasil, por causa do idioma. Eu não conheço até hoje porque quis vir para cá. Sempre falei que tínhamos que conhecer o Rio de Janeiro. Eu descobri o país direito pela Copa, por televisão. Ficou muito famoso. Quando tomei a decisão de sair de lá, o Rio veio na minha cabeça”, explicou Robert. O Rio, destino ainda inalcançado da família, é referência constante nos desejos de Enrico, refletido nos desenhos feitos pelo menino. “O Santos do Rio de Janeiro” foi o primeiro desenho entregue pelo garotinho pálido e magro, vestido de camiseta do Corinthians e óculos de grau, que me recebeu com timidez, estendendo um banco de plástico em um apartamento alugado da Baixada do Glicério, enquanto seu pai e irmã cozinhavam arepas colombianas, erguendo uma nuvem de fritura 170


que tomava conta do cômodo único de 20m². Era noite de Virada Cultural em São Paulo e a família aproveitava a manhã de sábado para encher o estoque dos salgados típicos colombianos, a fim de vendê-los no Vale do Anhangabaú para o público itinerante. Enrico, por sua vez, assistia a um episódio de ‘Todo Mundo Odeia Chris’, sentado na cama debaixo da beliche que divide com sua irmã – o pai dorme em um colchão improvisado no chão. O menino ria com gosto do seriado na Record e parecia confortável em ignorar minha presença, uma dos tantos “periodistas” que já passaram pelo apartamento para perguntar sobre sua “aventura” ao seu pai. Isso até eu tirar o maço de sulfite e estojo de canetinhas da mochila e perguntar se ele gostaria de desenhar para mim. Ele afastou da TV os olhinhos aumentados pelas lentes e assentiu com a cabeça, sorrindo: “Eu gosto de desenhar coisas. Tenho vergonha de dar entrevista”, disse, em um português quase sem sotaque que, segundo ele, foi “mais ou menos fácil de aprender”. Em monossílabas, Enrico, ou Yuyo (algo que me custou descobrir por conta da inversão confusa de “apelido” e “sobrenome” feita entre hispanohablantes e lusófonos), me contou que está no sexto ano da escola; que gosta de andar de skate e jogar videogame; que sua matéria favorita é matemática, porque matemática é “bom”; e que quer ser policial ou bombeiro, “porque meu pai quer que eu conduza um helicóptero”. “Minha escola é mais grande do que a que eu estudava no ano passado, lá eu brinco, faço lição, é fácil. Eu gosto de lá, tem pessoas legais e tem gente chata. Tem gente que enche o saco, fala que eu não sou daqui desse país. Eu gosto um pouquinho só de morar aqui, tem uns meninos que ficam aqui na Baixada que falam muito palavrão”, conta Enrico. 171


Meia hora depois, seu pai puxa outro banco, esfregando o suor no avental, e pede desculpas pela demora, explicando que pretendem vender bastante naquela noite. Ele tem um jeito doce, olhos bondosos e preocupados. O menino volta a sua atenção ao desenho e Robert dá início à explicação padrão da viagem para o Brasil, que já deve ter repetido uma centena de vezes, até que desacelera o discurso e se emociona quando as perguntas colocam seus filhos em foco. “Eu vim por mim e pela minha família. Mas tenho muitos problemas com eles, as crianças brasileiras discriminam muito, não respeitam. Falam palavrões para ele, batem nele. Ele ainda tem alguns problemas na escola, mas tá indo. Tem alguns amiguinhos. É complicado... O Enrico reclama bastante que quer ir embora para a Colômbia, ele não gosta muito daqui e gostaria muito de voltar, mas entende que não pode. Ele não chegou a ver nada lá, fomos embora para ele não ver. Foi a melhor coisa, por agora”. Eletricista de formação, Robert trabalhava em uma padaria na Colômbia antes de ficar desempregado e deixar o país. Enrico frequentava normalmente a escola, e nas horas extras desenhava, jogava futebol ou acompanhava o pai no trabalho. A mãe do menino deixou a família há oito anos. Da sua vida antiga, Enrico diz sentir saudade de muita coisa, principalmente da família e da comida. “É muito boa a comida de lá. Meu pai faz algumas comidas aqui, o arroz e a carne ficam iguais, mas lá eu comia bastante peixe, aqui como mais batata-frita e hambúrguer. Minha comida favorita do Brasil é o churrasco”. Ele conta que fala com seu primo por telefone e por Facebook, mas que não tem contato com nenhum amigo mais. Segundo Robert, o resto da família colombiana não pensa em vir para o país ainda, por ser muito difícil chegar aqui. Sobre o quanto mudou desde a viagem, Enrico 172


diz apenas estar “um poquito mais grande” do que quando chegou. Apesar de ter gostado de partes da aventura, Enrico absorve as dificuldades financeiras do pai na sua percepção sobre o Brasil. “Não sei se foi bom vir para cá, talvez. Tá muito difícil conseguir o dinheiro e pagar o aluguel, lá era mais fácil”, explica o menino. Durante a entrevista, o pai confessa: “Não estou muito bem não. A coisa mais difícil é ter estabilidade, tranquilidade, para mim e para as crianças, eu preciso muito disso. Trabalho direitinho, mas sou completamente dependente do meu trabalho. Não é fácil vender empanadas”. Robert trabalhou por alguns meses em uma lan house do Glicério, que entrou em falência e fechou. Hoje trabalha vendendo as empanadas e arepas colombianas com a marca própria: “¡És Rico!”. Através da entidade Adus, ele participou de um projeto no qual vendia seus pratos em um food truck na Universidade Mackenzie, por 40 dias. “Para nós a vida é muito mais difícil do que na Colômbia, é muito complicado fazer tudo sendo refugiado, organizar tudo, conseguir documento”. Na opinião de Robert, falta muito espaço para os refugiados no Brasil. “A Cáritas ajuda muito, guiando quando os refugiados chegam, mas é muito demorada. A Adus ajuda no encaminhamento, para que eu possa me empoderar da minha situação. As duas tem programas, mas muito pouco para as crianças. Para elas falta tudo. Tem alguns cursos de português, mas não há uma diretriz”. Ele opina que os brasileiros sabem muito pouco sobre o refúgio, e muito menos sobre seu país de origem. “Eles sabem que existem refugiados aqui, mas não conhecem nossas vidas e porque tivemos que deixar tudo para chegar aqui. Acho que é bom que as pessoas conheçam mais, para não acharem que nós viemos tirar seus trabalhos. As pessoas não gostam 173


de nós, não podemos generalizar, mas sinto que não gostam. Falam que os estrangeiros têm que ir embora. Falta educação para as pessoas”. Enrico vai à escola de ônibus no período da manhã e volta para casa à tarde, onde fica pelo resto do dia, ajudando nos afazeres domésticos, fazendo compras no supermercado para as arepas e brincando. Ele faz questão de me contar que no seu prédio mora um menino que estuda junto com ele, com quem, de vez em quando, disputa campeonatos de videogames. “Ele é brasileiro e é meu amigo”. Tanto o pai quanto o filho acham o Centro, e principalmente o Glicério, perigosos. “Do lado da lan house onde meu pai trabalhava só tinha brigas”. A maior diferença entre o Brasil e a Colômbia, para o menino, é a quantidade impressionante de “pessoas dormindo na rua”, que temos aqui. O lugar preferido do menino em São Paulo é o Parque Ibirapuera, onde já foi duas vezes visitar e andar de skate. A família já visitou outros locais turísticos da cidade, como o Parque Vila Lobos e o Aquário. Da viagem para o Brasil, o lugar que Enrico mais gostou foi Cuzco, no Peru, e o mar de Esmeraldas, no Equador. “Eu conheci o mar. Nunca tinha visto, nem na Colômbia. A gente morava longe”, conta. Em um mapa cuidadosamente desenhado pelo menino, mas que ainda assim não representa toda a distância e cidades percorridas, ele explica que a jornada teve início quando tinha 11 anos, no Terminal de Bogotá, passando pela cidade de Ibagué, Cali, Pasto e Ipiales, na Colômbia. “Em Pasto tem uma ponte famosa”, relata. Cruzara a fronteira para o Equador, passaram por Tulcán e pelo tal mar de Esmeraldas, onde aprendeu a nadar, cena também escolhida por Enrico para ser perpetuada em desenho. 174


Para representar a cidade seguinte, Santo Domingo, também no Equador, o menino desenhou uma mão. “Foi em um shopping onde a gente pediu dinheiro para comer pela primeira vez, por isso a mão”, explica. Na cidade de Naranjal, o desenho de três sacos representam as sacolas de roupas que a família recebeu quando se hospedou em um hotel, e em Machala, quase na fronteira com o Peru, uma iguana desproporcionalmente grande mostra a primeira vez que Enrico viu o animal. “Machala foi onde fui a conhecer as... Como diz? São como grande lagartixas. Fazia muito calor”. O muro vermelho padronizado que simboliza as fronteiras no mapa de Enrico (e expõe a riqueza semiótica do desenho) marca dessa vez a entrada no Peru. A primeira cidade atravessada, Piura, é representada 175


com grãos de areia, “lá é um deserto”. Na cidade seguinte, Chiclayo, um pequeno homem com chapéu remete à vez em que a família se hospedou na casa de um policial por quatro dias. Em seguida vem a capital Lima, com seus muitos prédios; Nazca; Pisco; e Cuzco: várias casinhas entre montanhas. “Lá fica bem alto, é muito frio”. Enrico conta que gostou de Cuzco porque o hotel onde se hospedaram ficava em frente à linha do trem. “Lá foi a primeira vez que conheci o trem, muito barulhento, mas legal”. Nesse momento o menino interrompe a explicação e se volta para o pai em espanhol, comprovando a insatisfação em morar no Brasil: “Papa, vamos a volver para Colombia caminando?”, pergunta, dando risada. A irmã ri junto e o pai responde, em um misto de graça e preocupação, que já está muito velho para caminhar. Enrico continua, explicando que em Puerto Maldonado pegou carona no carrinho acoplado de uma moto, até a última cidade do Peru, Iñapari, onde finalmente cruzou a fronteira para o Brasil. Em Brasiléia, primeira cidade conhecida em solo brasileiro, Enrico conta que um moço os abrigou, “mas não em uma casa com coisas, era uma casa em construção mesmo. Nós dormimos lá por uns dias”. Na cidade, os três aprenderam a fazer pulseirinhas de miçanga para vender, até chegarem em Rio Branco. “Conhecemos um montão de haitianos lá. Alguns falavam espanhol ou português, então conseguimos falar com eles. Vi uma cobra lá no albergue, também”. Na capital acreana, Robert procurou o endereço da Polícia Federal e apresentou o pedido de refúgio. Ele já havia pesquisado todo o procedimento antes de sair da Colômbia. “Eles falaram que como a Colômbia faz parte do Mercosul eu podia entrar no país com o documento 176


do bloco, é bem mais fácil. É muito complicado ficar com o Protocolo de Refúgio, ninguém sabe o que é, não dá nem para abrir uma conta, é sempre ‘não, não e não’ com o protocolo. Mas a carteira do Mercosul custa R$600”, explica. “Ficamos quinze dias em um albergue em uma chácara onde chegavam cerca de 800 haitianos diariamente. Então nos colocaram em um ônibus para São Paulo. Não é difícil entrar no Brasil, é difícil chegar e transportar-se aqui dentro, porque tudo é mais caro. Ficamos no ônibus por três dias e meio e chegamos aqui em São Paulo. O Brasil é bem grande e as pessoas são muito temerosas, não gostam de dar carona como nos outros países”, continua Robert. Em São Paulo, a família chegou a dormir na rua por alguns dias, até procurar a Cáritas e se hospedar por um tempo no CRAI, conhecido por eles como o “albergue da Rua Japurá”. Robert conta que gostou do albergue, porque lá oferecem três refeições diárias e permitem que as crianças fiquem na casa, enquanto na maioria dos albergues em que passou tinha que sair às 6 horas e retornar às 18h. A família chegou a morar em outro apartamento, menor ainda, até se estabelecer no endereço atual do Glicério. Para o pai, o mais difícil do trajeto de refúgio foi o caminhar. “Havia dias inteiros que tínhamos só agua e pão para comer, água e pão. Algumas vezes pegávamos uma bandeja para os três comerem. Eu tentava ser o que menos comia, para deixar para eles. Era duro”. Nos retratos feitos por Enrico, a mochila grande, pesando sobre os ombros como a de um mochileiro, parece fazer parte da anatomia do pai. “Ele carregava a mais pesada. Meu pai e a Nataly levavam duas mochilas cada, e eu uma”.

A menina, que tem uma aparência infantil e esteve ocupada 177


cozinhando durante todo o meu primeiro encontro com a família, conversou comigo durante a visita seguinte, e contou acreditar que a jornada trouxe várias coisas novas. “Muitas experiências boas, outras tristes que a gente nunca vai esquecer, tipo dormir na rua, pedir dinheiro na rodoviária... Eu nunca tinha pedido dinheiro, tive muita vergonha. Ficamos com fome e sede todos os dias...”. Nataly, que ainda não completou o ensino fundamental, afirma que a decisão da viagem foi de uma hora para a outra e que ela amadureceu muito durante o trajeto. “A gente decidiu e arrumou tudo em um dia, saiu no dia seguinte, dormimos na rodoviária e começamos essa aventura louca. Nunca imaginei que seria assim, eu era uma criança”. Quanto a pegar tantas caronas, Nataly e Enrico disseram que nunca ficaram com medo. “A gente conhecia bastante gente, contávamos que estávamos indo para o Brasil caminhando, as pessoas gostavam de saber, davam dinheiro, almoço, 178


guaraná, até panetone”, conta a menina. “Quando a gente começava o caminho a gente tinha que terminar. Agora a gente caminha fácil”, disse, rindo, sob queixas do irmão mais novo: — Eu não caminho fácil, não. — Ele é uma manteiguinha, cansava e ficava chorando — provocou a menina, arrancando gargalhadas da família que, por um momento, pareceu estar conversando sobre uma dificuldade pré-adolescente de acordar cedo, e não sobre os milhares de quilômetros percorridos.

Em consenso, a família decidiu que o momento mais divertido da viagem foi quando fizeram uma competição para vender bolachas, que o pai comprava em rodoviárias para depois revender em pequenos sacos. Já a pior hora, segundo Nataly, foi quando tiveram que dormir em um posto de 179


gasolina. “Meu pai ficou acordado toda a noite, ele não conseguiu dormir”. Quando questionado sobre os desenhos, Enrico disse que foi difícil se lembrar de tudo, mesmo com a ajuda do pai. Seu mapa, cheio de símbolos significativos, cruza parte da América Latina sem destacar atrações turísticas. Nazca não é representada com suas misteriosas linhas e Cuzco não é acompanhada das ruínas do Machu Picchu, que a família gostaria tanto de ter visto, mas não conseguia pagar a entrada. Mesmo o trajeto entre Rio Branco e São Paulo não traz referência qualquer da Floresta Amazônica. Sua vivência e percepção da jornada simbolizam as dificuldades, encantamentos e incertezas da própria experiência do refúgio. Noites sob tetos que os abrigaram, em casas ou hotéis, são cuidadosamente marcadas, assim como alguns dos veículos que facilitaram o caminho da família com caronas. As fronteiras entre países, barreiras em vermelho, são quase uma metáfora da interdição do migrar, e a pequena mão sobre Santo Domingo, uma metáfora imagética da fome. Já o “Mar de Esmeralda”, onde o menino nadou por vários dias, corta seu mapa como um Oásis. Entretanto, o mapa não termina com o prédio cinzento de São Paulo. A estrada continua, com ajuda de flechas, até outro pequeno desenho do Cristo Redentor, a única marca totalmente turística do desenho, acompanhado de um ponto de interrogação que dispensa qualquer explicação. “Eu só quero conhecer o Cristo... E a praia”, diz Enrico. “Até ofereceram trabalho para o meu pai no Equador, mas ele queria chegar ao Rio. Essa era a meta”, destacou Nataly. “Ainda não terminamos, não chegamos lá”, concluiu Robert, que hoje pensa apenas em visitar a cidade maravilhosa.

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— Obrigada pelos desenhos, Enrico, você desenha muito bem. Essa história daria um livro, hein? — Seria muito legal um livro de dibujos da viagem... — respondeu Nataly — Muito bonito... — completou o pai, com seu último sorriso preocupado antes que eu saísse do apartamento.

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Dicionário das crianças refugiadas

Enrico: Refugiado:

São as pessoas que ficam refugiadas, assim, nos albergues, em casas onde tem pessoas de diversos países, porque quando vieram de um país não tem como pagar o aluguel.

Imigração: Não sei. Eu sei, mas não me lembro.

País: Várias nacionalidades que moram muitas pessoas, assim.

Nacionalidade: ...

Dá pra ter duas nacionalidades? Dá, ou mais.

Dá pra ser colombiano e brasileiro ao mesmo tempo? Sim... Não sei.

Você se considera brasileiro? Não, mais ou menos, um pouquinho.

Brasileiro: Quem nasce no Brasil. 184


Criança: Criança são uns meninos muito pequenos e que são menos maduros.

Nação: Hahaha, não sei, não.

ONU: Não sei, esse eu não sei mesmo.

Direitos Humanos: Direitos humanos sim, mas não me lembro. Direito é, por exemplo, assim, a coisa que qualquer pessoa quer fazer. Por exemplo, eu tenho direito a tomar banho.

São Paulo: É uma cidade onde tem muitas pessoas de vários países também. Rio de Janeiro: Esse eu não sei, porque não fui ainda.

Colômbia: Ah, na Colômbia é... Eu não conheci o mar. Lá não tem tantas pessoas assim morando, assim, na rua.

Difíceis essas perguntas, né? É, hahaha.

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Érica, 5 Congo

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as meninas que fogem de homens “Aqui as mulheres também são fortes” “Foi assim: a gente tava lá no Congo, pegou o avião e puft... Fugiu!”, explicou Érica com graça, sem tirar os olhos da boneca que tinha nas mãos, enquanto sua mãe ainda abria a boca para responder que sim, poderia explicar como havia sido sua vinda para o Brasil. Com 5 anos na época do primeiro encontro, mas com um tamanho de 10 e uma maturidade de muito mais do que isso, a menina de cabelos trançados com extensões avermelhadas tornou um hábito interromper as respostas da mãe para ajudar com o português e dar a sua opinião sobre os ocorridos. “Me desculpa por isso”, respondia Pamela com uma risada envergonhada e colocando as mãos sobre o rosto, em comportamento oposto ao da extrovertida Érica. Mãe e filha vivem em um quarto alugado no segundo andar de uma casa em Guarulhos, próxima ao Parque Ecológico do Tietê e a alguns metros da linha do trem, que periodicamente atropelava a entrevista com seu barulho. Érica nos esperava em cima da cama de casal que divide com a mãe, brincando em uma roda de bonecas de bebês brancos e Barbies, enquanto Pamela nos guiava para encontrarmos a casa na rua sem lógica numérica da comunidade. O aposento pequeno ficava no alto de uma escada estreita e reunia quarto e cozinha, assim como todos os pertences da família. “Pode sentar aqui, por favor”, disse Pamela, sem jeito com a falta de espaço e com a cama inclinada, com um dos pés quebrados.

Após uma tentativa frustrada de distrairmos Érica, que parecia 187


bastante interessada na entrevista, Pamela começou a nos explicar, em português pausado e baixo, misturado com palavras do francês, que as duas estão no Brasil há um ano e três meses, após terem que deixar o país de origem por problemas políticos e por causa do pai de Érica. “Meu marido... Como fala? Me maltratava, me batia muito. Violência doméstica. Demorou muito, quatro anos, mas conseguimos fugir. Meu amigo me ajudou, me falou que aqui no Brasil era bom e que eu ia ficar segura com a minha filha. Meu marido ficou lá, agora minha mãe me falou que ele tá na França, acho. Viemos de avião, eu cheguei aqui no aeroporta...”.

- Aeroporto, mãe, aeroporto! Eu vou avisando você e você vai respondendo eles! - Deixa eu falar português, Érica. Desculpa – continuou, rindo.

“Passamos pelo Marrocos e viemos com três pessoas de lá também. Chegamos aqui e a irmã de um dos amigos que estavam com a gente nos ajudou a ver a Cáritas e depois a Polícia Federal. É muito difícil para chegar aqui”. Desde então, elas já viveram em três abrigos diferentes até conseguirem alugar o quartinho, em fevereiro deste ano: passaram dois meses na Casa do Imigrante, quatro dias em um abrigo comum do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e seis meses na Casa da Acolhida da Associação Palotina para mulheres. “No abrigo sofremos muito, não ajudam nada, só para comer. Na Casa das Mulheres eu tinha que fazer a limpeza, trabalhava muito, daí não dava tempo de sair e procurar emprego. Na Casa do Imigrante é muito melhor, você não trabalha, pode sair cedo, conhecer o Brasil e procurar 188


emprego’, explicou Pamela, sendo interrompida mais uma vez pela filha. “Na Casa do Imigrante eu aprendi a falar português sozinha, não aprendi com ninguém. Antes eu falava só que queria água, daí passaram os meses e eu ficava repetindo o que as pessoas falavam, até que aprendi sozinha com a minha cabeça assim!”, contou Érica, animada, sentando no colo da mãe.

- Você já deu alguma entrevista antes, Érica? - perguntei - O que é entrevista? - Isso que você tá fazendo agora, respondendo perguntas assim. Já fez isso antes? Você fala muito bem! - Ah... Não... Eu falo bem, minha mãe não fala muito bem não, ela ainda não aprendeu. Eu gosto de falar, falo várias línguas: inglês, francês, lingala. Good night, bonsoir...

Naturais de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, as duas tinham uma vida financeiramente estável, apesar dos múltiplos conflitos armados entre forças paramilitares e o exército do presidente Joseph Kabila. Pamela era enfermeira e estudou nutrição na faculdade. “Lá você recebia o salário todos os dias, aqui tem que esperar até o final do mês. Para conseguir pagar aluguel, comprar comida, é muito difícil, não tem como. Lá minha casa era muito grande, com dois banheiros, um espaço grande. Sinto falta do espaço”. Segundo maior país africano, a RDC – que durante o século XX sofreu o processo de descolonização e independência, tendo seu nome mudado de Congo Belga para Zaire e finalmente para o nome atual – já passa por mais de vinte anos de guerra civil, que deixou até agora cerca de 189


6 milhões de mortos e desaparecidos. País mais rico em recursos naturais da África Subsaariana, a República Democrática do Congo enfrenta duramente as consequências da exploração e disputa de suas riquezas. Trabalho infantil nas minas de coltan – liga metálica utilizada para a produção de telefones celulares – genocídios, sequestros de crianças, estupros como arma de guerra e múltiplas epidemias: a população congolesa é vítima de uma das maiores emergências humanitárias do mundo, enquanto seu processo de redemocratização pós Guerra-Fria parece repetir as décadas de ditadura. “Lá tem os problemas com o presidente, a família do presidente Kabila. Tem muita guerra, guerra política, guerra civil. Lá no interior tem guerra, no Beni tem guerra. Mata criança, mata mulher, mata todo mundo. Conheci muita gente que morreu, só na minha rua foram três pessoas que morreram”, me revelou Pamela. Apesar das especificidades históricas e geográficas dos conflitos congoleses, o principal motivo para a fuga de Pamela e Érica vitima mulheres de todas as regiões, países e classes sociais do mundo. Exemplo da estrutura patriarcal e da grande vulnerabilidade de mulheres e meninas dentro e fora da perspectiva do refúgio. “Ele era muito violento comigo, o pai da Érica. A família dele estava envolvida nos conflitos políticos, mas era ele quem me fazia sofrer todos os dias. Eu tinha que ir para o hospital, voltava e ele fazia de novo. Jogava água quente em mim. Teve um dia que ele jogou quando eu tava com a Érica no colo, daí pegou nela. Ficou cheio de cicatriz. Tem foto até”, disse, pegando um pequeno álbum de fotos cor-de-rosa de dentro da mala que guarda em cima do armário e me mostrando imagens da filha bebê, sem roupas, com o corpo todo queimado em carne viva. 190


“Ela tinha três meses, era pequenininha, mas melhorou rapidinho, tratou das feridas porque teve infecção. Mas comigo foram muitas vezes, eu tenho a cicatriz até hoje. Muitos homens fazem isso, matam as mulheres. Fazem tudo porque lá se você casa o homem faz o que ele quiser, porque você paga muito para casar. Daí pensei que tinha que fugir, se não ele iria me matar. Fiquei por mais anos, mas já tinha arrumado a mala. Esperei um dia para sair, bem rápido, sem ninguém saber, só a minha mãe. Fugi com meu próprio dinheiro, comprei a passagem sozinha”. Ela levantou a barra do vestido por um segundo e mostrou uma faixa de queloides que subia pela sua coxa. “Todos os dias eu choro... O Jean me ajuda, diz que não posso chorar porque agora tô num país com muitas leis de proteção das mulheres e crianças”, continuou, se referindo ao amigo congolês Jean Katumba, organizador da Copa dos Refugiados que me passou seu contato. “Uma amiga também tinha me dito para eu vir para cá. Falou que as coisas eram diferentes politicamente e que as mulheres também são fortes”. Para a mãe, o medo, no entanto, ainda é grande. “Eu não sei se a Érica tá mais protegida aqui. Se o pai dela entrar aqui ninguém vai reconhecê-lo. Brasileiro não reconhece fácil o negro, falam que todos os negros se parecem. Se ele vier aqui, pode chegar até mim através de outro africano. Se mostrarem minha casa, é isso, acabou”, confessou, em voz baixa, quando a filha se distraiu por um momento brincando. Apesar de gostar muito do Brasil, a mulher grande, de fala e movimentos contidos, conta que se sente muito sozinha. Ela chegou a trabalhar por cinco meses em uma padaria, mas foi demitida porque estava com depressão. “Eu chorava muito porque de uma hora para outra, meu pai, minha sogra e minha irmã morreram, lá no Congo. Foi difícil. Eu trabalhava direitinho, era ajudante de confeitaria, mas a dona falou 191


que não podia mais trabalhar. No Congo era diferente porque aqui eu sou sozinha, eu e a Érica, sem ninguém para confiar meus problemas. Sinto muita falta da minha mãe... Tenho duas amigas aqui só, mas não quero muitas amigas africanas porque trazem muitos problemas. Agora como faço pra procurar emprego? Quando eu procuro emprego gasto dinheiro no bilhete único...”. - Mamãe, desculpa cortar a conversa de vocês, mas você quer que eu desenhe para você, né Júlia? – perguntou a menina, impaciente. Érica frequenta a escola no período da manhã, das 5h às 13h. Ela gosta de dançar ballet e assistir filmes na sua escola. “Lá tem um cinema e a gente fica assistindo. Sabe o filme do dinossauro bonzinho? É muito chato, faz chorar as crianças”, contou a menina, enquanto copiava no papel a imagem da Branca e Neve estampada em um caderno. “Lá na escola tem piscina também, e eu gosto de nadar. Vou de perua quando ainda é muito muito a noite, mas eu sei a hora, minha mãe não me acorda. As mamães ficam de pé esperando e as crianças vão embora no ônibus. Mas se a sua mãe não vir tem várias mamães que tão lá e a tia te leva até a escola”. “Na escola tem uns amigos chatos que cantam funk. Eca, não gosto. Tem amigo que se chama Rafael, ele canta funk O Gustavo canta funk; o Lucas não cantava funk, mas começou a cantar; e o Thiago não canta funk. Eles cantam “A Marconi é Baile de favela”, explicou, cantarolando um trecho da música. “Eu gosto de música de Deus. Aqui o dono dessa casa tem um carro e ele leva a gente para uma igrejinha. Eu gosto de música do Congo também, mas é em Lingala... É tão engraçadinha, vou cantar, ó”. A menina 192


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cantou um trecho da música na língua africana e logo em seguida perguntou, com receio: “Foi legal?”. Tagarela e incansável, Érica continuou, explicando com propriedade as diferenças entre o Brasil e seu país de origem, como se tivesse vivido lá por décadas e não por pouco mais de quatro anos. “No Congo tem esconde-esconde, gira-gira, escorrega, tem tudo. Mas tem umas brincadeiras que não tem lá não, na verdade. Não é tão diferente assim. Aqui a escola dá bastante comida. Eu gosto de arroz, feijão e carne, mas não gosto de feijão preto. Lá no Congo tem arroz e feijão, mas não tem gelatina. Só tem aquilo lá, amarelo, o Fufu. É uma mistura que fica tão tão apertada, e você põe em uma vasilha bem grande, minha mãe sabe fazer. A mãe balançava a cabeça incrédula com a erupção de palavras e gestos que saiam da boca e das mãos da menina. “O Fufu é como fubá com farinha de mandioca”, me explicou, enquanto Érica pausava para recuperar o ar. “Pensando bem, o Brasil não é tão tão diferente do Congo, porque lá tem plasma e aqui também...”, concluiu a menina. - Plasma, Érica? – perguntei. - Ela quer dizer TV de plasma – explicou a mãe, rindo. Era impossível acompanhar a linha de raciocínio da menina, que, apesar da energia, aparenta um desenvolvimento precoce e bastante saudável para uma criança que havia passado por tanto. Quando falava sobre o resto da família, no entanto, sua percepção sobre o que havia motivado a fuga aparecia com sutileza. “Eu sinto falta da minha família, da minha bisavó e falta do irmão dele”, disse, provavelmente se referindo ao pai – palavra que aparentemente escolheu arrancar do seu vocabulário extenso e substituir por pronomes. 194


“No Congo eu gostava de tomar suco com a minha mãe e eu ficava indo na praça todos os dias com meu tio que se chamava um nome tão engraçado, ele se chamava Colombelebele”, continuou, com uma gargalhada. “Lá as pessoas crescem e ficam casando, pode se casar em casa ou na igreja. Aqui não é tão parecido. Lá eu comia muito nos casamentos, hmmm era muito gostoso. Se eu mostrar uma foto do casamento do irmão dele você vai achar que era um casamento bem sério, com muita comida, porque era o único irmão que ele tinha. Aqui eu não gosto de ficar sozinha sem a minha mãe e sem ninguém brincando comigo, e eu não gosto de quem xinga. Na minha classe tem umas amigas muito folgadas, tipo a Luciana, que é fofoqueira. Ela entra nas conversas. Eu falo coisas tão boas e ela estraga as coisas tão boas que eu falo”. Érica é um turbilhão de ideias e pensamentos, algo que, coincidentemente, seu próprio nome (originalmente uma interjeição em grego para epifania) sugere. Ela parava de falar apenas para se concentrar nos desenhos, que já haviam migrado de personagens da Disney para retratos de mim e do meu companheiro. “Acho que vou fazer uma coisa que você vai gostar. Vou fazer tão rápido para vocês não perderem a hora de ir embora. Desculpa, Júlia, mas a sua orelha tá guardada no cabelo aqui no desenho”. Na segunda vez em que visitei sua casa, ela mostrou outros muitos desenhos que havia feito: “Esse aqui são pernas. As suas pernas são assim direitas ou quadradas?”. Érica se referia a um equipamento metálico – similar ao utilizado por Forrest Gump no filme – que a menina teve que usar no Congo durante meses para endireitar suas pernas. “Esse aqui é o dia de Festa Junina na minha escola, essa aqui é a Ariel, esse aqui é do filme da Dory, que eu vi na escola também”. Nesse encontro, ocorrido durante o mês de julho, Pamela estava mais tranquila. Há poucos dias havia conseguido um emprego como 195


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faxineira em um restaurante libanês no centro de São Paulo e planejava a comemoração do aniversário de seis anos da filha no Sesc Itaquera, que havia conhecido quando foi assistir a Copa dos Refugiados com o amigo Jean. “Agora tá melhorando. Eu consegui um emprego e meu patrão fala francês e português. Trabalhar é bom, melhor que ficar em casa. A Érica fica com a babá enquanto eu trabalho, ela cobra 200 reais. Queria sair dessa casa pequena, mas tudo é muito caro”. O maior sonho dela, entretanto, ainda é conseguir validar seu diploma de enfermeira no Brasil. “O problema é que eu quero estudar, mas tem que trabalhar... Eu disse que fazia parto lá no Congo também? Aqui já fiz dois partos das minhas amigas nas casas delas”, disse, orgulhosa. Além das dificuldades financeiras, linguísticas e emocionais enumeradas por Pamela, a violência causada pelo racismo, segundo ela, torna o processo de solicitação de refúgio no Brasil ainda mais doloroso. “As pessoas daqui não são parecidas com as pessoas do Congo. Brasileiro não gosta de ninguém. Aqui no Brasil, se você senta junto com as pessoas no ônibus, eles fecham o nariz e a boca. No metrô também. É de racismo. Uma pessoa me falou que eu tava cheirando muito mal. Falam que eu venho aqui e não tenho trabalho. Outras pessoas gostam de mim, mas acho que de 100%, 80% não gosta. As crianças são racistas com a Érica também, ela conta muito. Eu falo para ela que não interessa o que pensam”. Segundo Pamela, as instituições no Brasil não reconhecem o protocolo de refúgio, único documento ao qual elas tem direito enquanto aguardam a decisão do CONARE de aceitar ou não sua solicitação de refúgio, o que torna tudo mais complicado. “Quando você vai no banco eles ligam no telefone, ligam, ligam, e descobrem que é o documento de estrangeiro. Pra procurar emprego, se não tem RG, não tem trabalho pra você. Alguns brasileiros sabem o que é refúgio, outros não, mas não 197


sabem nada do Congo. Perguntam que país é, onde fica, se é igual ao Haiti”, critica. Com todas as adversidades, entretanto, Pamela sustenta que gosta de quase tudo no Brasil. “O Brasil é bom. Em todo lugar não tem polícia pra perguntar de documento. Lá no Congo tinha muita polícia, se você voltava para casa depois das 20h eles pegavam suas sacola, seu celular. Aqui só tem polícia quando tem problema do “Fora PT, Fora PT”, eu vi um dia lá no centro. Gosto muito daqui, mas dá saudade né...”. Me despedi de Pamela e Érica já, eu mesma, com certa saudade. As duas, tão opostas em personalidade e tão completas como família, cativam não só pela experiência de vida e por respeito à sua história, mas por acolherem com carinho qualquer companhia que se aventure a mergulhar em seu mundo por algumas horas. Fui convidada para a comemoração do aniversário de Érica, mas não consegui ir. Deixei uma boneca da loja Preta Pretinha de presente, esperando que os próximos anos lhe sejam mais ternos.

- Uma bonequinha!!! Eu adoro bonequinhas! Bonequinha nova, bonequinha nova! Obrigada, eu gostei! - Bonequinha africana – disse Pamela, sorrindo e agradecendo o presente. - Tem até cabelo trançado, né mãe? Vai chamar Lúcia, é um nome bonito. Ou Rosa. Ou Isabela. Ou...

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Dicionário das crianças refugiadas

ÉRICA: Refugiado:

O que é refugiado?

Imigração: Pfuit, não sei.

Brasileiro: Ser brasileiro é... Não entendi o que vocês tão dizendo, essas coisas que vocês tão dizendo é tão difícil.

Assim Érica, eu te pergunto o que é algo e você me explica o que você acha que significa. Tipo... Lápis, o que é lápis? Lápis é uma coisa que escreve. Como giz de cera é uma coisa que escreve também, e luz é uma coisa que acende.

Isso. E brasileiro? Brasileiro é uma pessoa que tem cor brasileira. É uma pessoa que é igual vocêszinhos, os brasileiros é igual a vocês.

Congo: Congo é nosso país, como a gente somos estrangeiras, a gente somos diferentes. Porque as Angolanas não são da mesma cor, as Angolanas tem outra cor. Que nem minha cor, é igual a cor da minha mãe? Não. Acho que aqui fora é preto, aqui na mão não é preto...

Racismo: Racismo é igual uma pessoa cantora.

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Uma pessoa cantora? É, tem muitas pessoas que ficam com medo das vidas, eu não to com medo da vida porque eu já to tão tranquila, eu gostei desse país um pouquinho.

Mas você já teve medo da sua vida? Eu? Nunca.

Cáritas: As pessoas vão lá pra procurar ajuda, porque não tem ajuda, não tem carinho, não tem ninguém pra ajudar, eles não tem casas e não tem nada. Deu problema nos países. Assim como aqui quem é presidência é a Vilma, aqui a Vilma é chata, lá no Congo também tem o Kabila que é muito chato, ele manda todas as polícias matar as pessoas. Eles não deixam tirar fotos do lugar que eles não gostam.

País: País é pra gente morar. Que nem esse coração que eu fiz aqui, parece um país. No mundo todo, todo mundo tem país. Às vezes tem as pessoas que tão morrendo e tem as pessoas que não tão morrendo. Tem uma coisa que o deus não mandou fazer e eles fez, daí azar deles. Eu tenho um livro que “Era uma vez que o Satanás que era cobra, daí tinha uma laranjinha e deus mandou não comer e eles não obedeceu e comeu, aí deus mandou “Fora do meu país!!!”” É assim. Se eu sou inteligente então o Deus pode me colocar em cima lá no céu. Tem muitos país, aqui tem muitas pessoas muito chatas também. Também pessoas tão maluquinhas aqui, dormem na rua.

Criança: É como uma mamãe que teve uma criança. Deus criou as crianças, a gente, deus criou todo nós. Você não era pequenininha? Você cresceu né, então me diz você, o que é criança?

Eu não tenho uma resposta também... Aaah, eu também não tenho né. Não tenho ainda resposta.

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Marina, 8, e Layla, 7 Síria

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A guerra é uma coisa que vem de cima até embaixo e derruba tudo É surpreendente perceber como algumas crianças em situação de refúgio lidam naturalmente com a morte. Principalmente, é desconcertante perceber como essas mesmas crianças incorporam a guerra, como conceito abstrato, em seu discurso. Elas não conhecem ainda as origens e significados geopolíticos da guerra, ou mesmo entendem quem são as pessoas que fazem ‘sua respectiva’ guerra e de que lado do conflito se encontram. Para elas, a guerra é cheiro, ruído e o medo que absorvem dos parentes ao redor: Uma experiência sensorial que acompanhou boa parte das suas curtas vidas. No entanto, é interessante notar como essa própria naturalização do Estado de exceção em seu desenvolvimento básico as tornam mais resistentes. Há trauma, mas também existe uma capacidade brilhante de simplificar a vida ao seu estado primitivo de sobrevivência, que elas escancaram sem delicadeza aos adultos decididos a serem cautelosos ao falar sobre temas difíceis ao seu redor. Em uma entrevista com outra família síria que não faz parte desse perfil, irmã e irmão, já adolescentes, ao conversarem comigo separadamente, destacaram que não sentem falta dos amigos que ficaram no país de origem, porque nem sabem se eles estão vivos. É assim, mesmo que as perguntas se refiram a temas simples, como o que gostavam de comer e que tipo de brincadeira havia em seu país, as respostas, descontraidamente, contornam a morte, como parte presente da vida. Ambos também responderam que a ONU é um jogo de cartas coloridas, 203


o que, apesar de engraçado, mostra como a organização internacional tem pouco impacto real na vida das crianças sírias refugiadas. As irmãs Marina e Layla tampouco entendem os motivos políticos, geográficos ou religiosos que as levaram a deixar Damasco, capital da Síria, há três anos, junto aos seus pais. Mas Marina, de 8 anos, camiseta das irmãs Elza e Ana do filme Frozen coincidentemente combinando com a da sua irmã um ano mais nova e um sorriso banguela com os últimos dentes de leite, explicou direitinho como era sua infância durante o conflito na Síria, que já dura 5 anos e deixou 300 mil mortos até agora: “Tinha muita guerra lá, e foi assim, eu tava dormindo e escutei ‘TUM, TUM, TUM’, tudinho da guerra. Daí foi uma bomba no meio da cama da minha mãe! “Sim... Foi mesmo. Na nossa casa da Síria, tudo bomba, POFT, POFT”, completou a mãe, Sahar, gesticulando com seu português ainda básico. Ela vestia um hijab branco por baixo da camiseta de mangas compridas quando foi me receber na entrada da pequena vila em que vivem, em uma rua estreita e tranquila no bairro do Pari. A casa que a família aluga, com dois quartos e uma sala/cozinha, estava toda mobiliada e cheia de brinquedos espalhados pelo chão. Assim que fechou a porta da casa, entretanto, a jovem mulher, extremamente sorridente e solícita, me serviu com café e bolo caseiro, retirou o véu e começou a amamentar sua pequena bebê de três meses, Juri, que, como a mãe orgulhosamente destacou mostrando a certidão de nascimento e o cartão do SUS, é uma brasileirinha. Juri, um pacotinho embrulhado, parou de chorar rapidamente com o leite e a mãe continuou a entrevista.

Com bastante dificuldade em entender as perguntas e pedindo a 204


ajuda das filhas (que assim como todas as outras crianças entrevistadas, estavam acostumadas com a tradução simultânea devido ao português fluente), Sahar me explicou que a família saiu da Síria após o episódio da bomba que destruiu sua casa e morou por dois anos na Jordânia, vivendo na casa da sua irmã que já morava lá, antes de decidirem vir para o Brasil, à procura de uma melhor situação financeira. Seu marido, que na Síria trabalhava em uma fábrica de meias, veio para o país um ano antes da família, após não conseguir encontrar emprego fixo na Jordânia. Com a ajuda da comunidade árabe da mesquita que hoje frequentam e da ONG brasileira para crianças refugiadas I Know My Rights (IKMR), ele conseguiu pagar a outra metade das passagens da família para o Brasil – cerca de 7 mil reais. A primeira metade foi paga através do salário que recebia trabalhando em um restaurante. Assim que chegaram, o pai levou o resto da família na Cáritas e na Polícia Federal para encaminharem sua solicitação de refúgio. Para Sahar, foi “muito difícil ficar na Jordânia” por tanto tempo sem o marido. “A Viviani (coordenadora da IKMR) me ajuda muito no Brasil. Ela a única brasileira que nós conhecia. Ela ajudou meu marido com dinheiro, porque a Jordânia não muito bom, não tem trabalho, não tem...” “Não tem nada pra fazer lá”, completou Layla, bem mais extrovertida que a irmã mais velha, entrando na conversa. “Eu não lembro bem da Síria não, era muito pequenina, mas a Jordânia era legal. Mas meu pai não queria ficar na Jordânia porque as pessoas não queriam deixar ele trabalhar”. A menina tem cabelos cacheados e usava um óculos de aro cor-de-rosa que deixava seus olhos, estrábicos, bastante aumentados, o que lhe dava um ar divertido, complementado pelas suas respostas diretas e bem-humoradas.

O estrabismo de Layla, como tentaram me contar, foi fruto da 205


mesma bomba que destruiu a casa onde a família morava, provavelmente uma sequela psicológica ou causada pela onda de choque produzida pela explosão – algo que a mãe não soube explicar em português. “Eu lembro que quando eu tava dormindo eu escuto o som de guerra, e eu acordei e meu pai veio até mim e viu meus olhos assim, desse jeito”, disse a menina, retirando os óculos e apontando para os olhos, levemente virados para dentro. “É da guerra, ela era pequenina e ficou com medo. Muita guerra deixou assim...”, completou a irmã mais velha com uma vozinha fraca. O pai das meninas fala melhor o português e respondeu algumas perguntas por telefone porque estava fora de casa procurando emprego durante a visita. Segundo a família , Layla não tem nenhum outro problema psicológico causado pelo episódio, uma de suas únicas memórias do país de origem que deixou quando tinha apenas três anos de idade. Já Marina, segundo a mãe, tinha bastante medo do conflito. Por conta do estrabismo, Layla sofre provocações na escola, o que faz com que a menina constantemente aponte em sua fala o quanto seus colegas são “chatos”. O bullying sofrido pela irmã incomoda bastante Marina, que afirmou, timidamente, que “não gosta quando as pessoas falam da Layla”. A guerra civil na Síria, iniciada após as mobilizações de 2011 que fizeram parte da “Primavera Árabe” em países do Oriente Médio, é uma série de conflitos que envolvem o governo sírio representado pelo presidente Bashar Al-Assad, no poder há 16 anos, e os movimentos oposicionistas armados, além das forças por independência curda e do Estado Islâmico (EI), que a partir de 2013 começou a reivindicar territórios na região.

O conflito se intensificou com o envolvimento internacional de 206


países como os Estados Unidos e os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que organizam ofensivas militares contra o EI, além da intervenção russa e iraniana ao lado do regime de Assad. Mais da metade dos sírios já foram obrigados a deixar suas casas, sendo que pelo menos cinco milhões de pessoas estão refugiadas nos países vizinhos, como Líbano, Turquia e a própria Jordânia, segundo dados atualizados em setembro de 2016 pelo Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH). Outros dados divulgados recentemente mostram que a expectativa de vida no país já caiu de cinco a seis anos entre 2010 e 2013 na Síria e a mortalidade infantil já aumentou de 6% a 9% deste 2010. Mais de 13 milhões de pessoas, das quais, seis milhões são crianças, precisam de ajuda humanitária no país. Como analisado anteriormente, as crianças sírias se tornaram marcas da crise humanitária e do aumento expressivo no fluxo migratório nos últimos anos, a partir da imagem do garoto sírio curdo Aylan Kurdi, afogado em uma praia turca após o barco que levava sua família para a Europa naufragar. Em agosto de 2016, praticamente um ano após a morte de Aylan, o vídeo de um menino sírio em choque após ter sua casa bombardeada viralizou nas redes sociais e veículos de notícias ocidentais. O menino, coberto de sangue e poeira, estava sentado na cadeira da parte de trás de uma ambulância após um ataque aéreo na cidade de Aleppo. Como também foi discutido nos capítulos prévios, a comoção seletiva dos ocidentais com as crianças sírias, somada à influência e estabilidade da Comunidade Árabe em São Paulo, possibilita uma situação menos vulnerável para os sírios refugiados no Brasil. Esse contexto é refletido nas opiniões da família sobre o país. Sahar diz gostar muito mais do Brasil do que da Jordânia, principalmente 207


porque o país concedeu o visto humanitário para a família. “O Brasil ajudou a gente a pegar o visa. Aqui tinha trabalho, tem minhas amigas da mesquita, os brasileiros são legais e não tem guerra. Eu não gosto nada de guerra”, afirmou. Já Marina diz gostar do Brasil porque “as pessoas são muito inteligentes e a gente entrou na escola por causa do Brasil”. Layla, por sua vez ocupada mexendo no celular da mãe, respondeu apenas “é, é por isso aí que a gente gosta. Menos uma amiga minha da escola aqui, que não é muito legal não”. Quando perguntei o que há de diferente entre os países em que viveu, Marina respondeu rapidamente que algumas coisas, na verdade, são iguais. “Batata lá é batata aqui também”. - Batata, Marina? – perguntei. - É, albtatis/batata – explicou, falando a mesma palavra em árabe e em seguida em português, mostrando a semelhança entre os sons. - Lá não pode ficar com shorts não – completou Layla, distraída. - É, ficar com shorts não pode – continuou a irmã mais velha. - É que eu muçulmana – explicou a mãe, dando risada. - Não pode ficar sem esse negócio assim – disse Layla, apontando para o véu da mãe em cima do sofá – Lá é chique. Aqui não tem isso não, não tem nada a ver – completou, arrancando mais risos da mãe.

Sahar lembra que a única coisa que não gosta do Brasil é que não tem muitos muçulmanos, embora tenha dito isso com um sorriso. “É muito diferente, as pessoas acham estranho que não pode nada. Eu falo 208


que não pode mesmo. As meninas não podem sair sem as mangas. Mas não tem preconceito”. Notei que as meninas vestiam calças e camisetas de manga comprida, o que havia passado despercebido devido ao frio que fazia durante o encontro. Pergunto se elas vão usar o hijab quando crescerem – o uso começa após a menarca, primeira menstruação – e a mãe respondeu, com expressão preocupada, que não havia como saber ainda, “talvez elas não irão querer”. “Mas tá gelado aqui, é bom!”, disse Layla, levantando os olhos grandes em minha direção e provocando mais risos. Quanto ao que mais sente falta do país de origem, Sahar destaca sua família que ficou na Síria. “Agora eu tenho um irmão na Alemanha. Muita saudade do meu irmão, da minha irmã e da minha mãe. Também das minhas amigas na Síria. Aqui tem pouco de amiga. Não tem dinheiro para a minha família vir pra cá, é muito difícil vir pro Brasil”, confessa. Mesmo com a saudade, a família não pensa em sair do país. Em relação às dificuldades de viver no Brasil, a mãe apontou as tentativas falhas do marido de conseguir emprego, devido à crise econômica, assim como o alto custo do aluguel e contas da casa, além do próprio português. “É difícil fazer o curso porque agora tenho a neném”, respondeu, apontando para Juri que mamava em seu peito. “Tem que levar elas na escola todos dias também. Eu gosto de falar português, mas é língua muito difícil”. Marina e Layla são bolsistas no Colégio Cruz Azul da Polícia Militar, onde cursam o segundo e o primeiro ano do primário, respectivamente. Ambas ignoraram minha pergunta sobre o que acham da escola, ao que a mãe respondeu, com uma risada envergonhada, que gostam muito. As meninas não chegaram a estudar na Síria e Sahar contou que a escola da Jordânia tinha um nível muito baixo. “A gente era muito pequeninas 209


para lembrar da escola”, disse Layla, contando com alegria que iria faltar à aula naquele dia porque estava gripada e ia ao médico. “Tá todo mundo gripado porque tá gelado!”. “Ei, eu lembro da Síria porque eu nasci primeiro”, provocou Marina. Segundo Layla, sua aula preferida é a de informática. “A professora ensina a gente a mexer no computador e se alguém precisa de ajuda, é só levantar a mão e ela vem ajudar”. Quando perguntei o que querem ser quando crescer, ambas as irmãs responderam ao mesmo tempo que querem ser médicas, para “ajudar as pessoas”. Quando não estão na escola, as meninas ficam em casa com a mãe e a irmã bebê, ou frequentam as atividades e passeios pela cidade da ONG IKMR. Elas contaram que gostam de brincar com as amigas no Brasil e gostam de comer. “Aqui no Brasil tem muito doce bom, mas eu não gosto de arroz nem feijão”, disse Layla. “Eu amo arroz e feijão!”, opinou Marina. Embora tenham personalidades muito diferentes, as duas se dão muito bem. Sentadas uma do lado da outra no sofá, elas pensaram em uma solução perfeita para desenharem para mim o que se lembram do país de origem: já que Layla era “muito pequenina” para se lembrar da Síria e, segundo ela, gostava muito mais de pintar do que de desenhar, ficou colorindo o desenho que a irmã fazia em lápis.

- Quem são essas pessoas que você tá desenhando, Marina? – questionei, vendo que a menina havia desenhado o que pareciam ser aviões jogando bombas em três pessoas e em uma casa. - É alguém... - Alguém? Não é você? 210


- Não... Graças a deus não morri, não morri! – respondeu, com naturalidade – Esse é o pai, esses dois é os filhos, ele morreu da guerra e queriam matar a casa dele e os filhos tão chorando. - Você ainda não terminou Marina, vai logo! – disse Layla, perguntando, em seguida, de que cores eu queria que ela pintasse a janela da casa. - Pode pintar do jeito que você gosta. - Não, do jeito que VOCÊ gosta. Agora eu to pintando muito bem, no outro dia eu pintei muito feio... – murmurou para si mesma.

No final da entrevista, perguntei a Sahar se eu poderia tirar algumas fotos de suas filhas. Com um pulo, ela se levantou dizendo ‘péra, péra, péra’, e foi buscar uma escova de cabelo e uma tiara para enfeitar as meninas. Marina e Layla, animadas, correram pela casa toda posando com seus bichinhos de pelúcia e com Juri no colo. Encantada com a câmera, que aprendeu a usar rapidamente, Layla passou um bom tempo tirando selfies e fotografando cenários que montava com os brinquedos. Era difícil admitir, mas eu sabia que entre as tantas crianças entrevistadas, elas ficariam bem. Mesmo tendo convivido com a morte, luto e destruição quando eram ainda tão novas, era preciso lembrar que estavam seguras em comparação aos milhões de crianças que nunca teriam condições financeiras de deixar a Síria, que morreriam no trajeto para um outro país ou que sofreriam com a xenofobia anti-islâmica, extremamente presente na Europa e nos Estados Unidos. Deixei Marina e Layla, uma meiga e delicada, outra comicamente realista e agitada, com 211


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um humor um pouco mais alegre do que o usual após os encontros e entrevistas. Elas não são traumatizadas e invalidadas por essência, como tantos discursos ressaltam; ao mesmo tempo, carregam no corpo e na memória os rastros de uma guerra, que mesmo intangível para crianças tão pequenas, as leva a agradecer à Allah pela sua sobrevivência. São, sim, a face de uma crise migratória: rostos mais palatáveis e identificáveis com os das “nossas” crianças ocidentais. Mas ainda assim carregam sua transgressão. Como Marina inocentemente lembrou, estão vivas. Não são mártires fotografáveis, não vão servir como argumento para interesses políticos opostos e imperialistas. Crescerão, e como mulheres muçulmanas, se lembrarão da guerra e possivelmente entenderão quem são todos aqueles que a construíram.

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Dicionário das crianças refugiadas

Marina: Refugiado:

É uma chave.. é uma coisa da porta que fecha bem.

País: É uma coisa pra gente morar.

Guerra: É uma coisa que vem de cima até embaixo e derruba tudo.

Criança: Meninas... e meninos também.

Nação: Não sei...

Direitos: É uma coisa assim, tipo esquerda, direita, reto...

Direitos Humanos: Não sei...

Religião: Tem algumas que eu não sei, desculpa...

Muçulmano: Uma pessoa muçulmana...

Brasil: É um país 214


Brasileiro: Brasileiro é a Juri! Tem que falar português...

Você é brasileira? Não...

Mas você fala português... Mas eu não sou brasileira não haha, eu sou da Síria

Sahar: Ela gosta da Síria... São Paulo: São Paulo é uma coisa dentro do Brasil e é muito bom... Linda. Lá as flores são linda, não tem guerra nem nada, graças a Deus, lá legal...

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Enos, Naomi, Safira, Aniso

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Desacompanhadas, juntas As crianças do Espaço MAIS Vida ficam sob a competência do Estado até os 17 anos e 364 dias de vida, depois disso estão sozinhas por lei. É difícil reconhecer que diferentemente das crianças que vivem em outros abrigos visitados para este trabalho, estas estão completamente desprovidas de figura adulta. Isso porque há um imaginário social muito forte em que crianças são sempre acompanhadas de uma figura familiar responsável. Mas desta vez não há mãe, pai, tio, tia, avô ou avó ao redor; são somente crianças, algumas de poucos meses de idade, outras às vésperas da maioridade, vivendo juntas apesar de terem pouco em comum a não ser a guarda da Vara da Infância e da Juventude e do Conselho Tutelar. Ao caminhar pelas três casas que formam o abrigo, separando os menores de idade por faixa etária, foi possível notar a semelhança do lugar com um ambiente escolar. O próprio prédio, localizado próximo à estação de metrô Guilhermina Esperança, na zona leste paulistana, foi construído originalmente como um projeto de creche pela prefeitura. Com entradas de círculos coloridos recortados das paredes, parquinhos de plástico e caixas de doações - com roupas amassadas e brinquedos - espalhadas por vários cantos, era difícil manter na cabeça que as crianças chamavam aquele lugar de lar e que não seriam buscadas por ninguém no final da tarde. A Casa III, em reforma, encontrava-se vazia no momento da visita. Na Casa II, crianças corriam e brincavam na terra da área externa 217


como se estivessem em horário cronometrado de recreio. Um menino que aparentava ter cinco anos e microcefalia cavava um buraco no jardim, curioso. Na parte interna, cerca de cinco bebês eram entretidos em roda por desenhos animados na televisão, enquanto uma funcionária atenta cuidava deles. Atrás de uma porta, aproximadamente dez berços aglomeravam-se em um quarto pequeno. Após todas as histórias ouvidas até então, os pequenos berços reunidos materializaram os maus tratos, violência e abandono das crianças e adolescentes sem nenhuma poesia, levantando indignação e questionamentos sobre como seres tão frágeis cresceriam sozinhos e juntos, aos cuidados de alguns poucos funcionários e educadores. A Casa I, por sua vez, respondia algumas dessas perguntas, com sua dezena de adolescentes esticados em um grande sofá, assistindo a um filme de terror bastante forte e conversando em tom de voz alto. A grande porta de vidro da sala dava de frente para o portão entreaberto e a rua, sem saída e tranquila. O clima era de total descontração mesmo com as assistentes sociais percorrendo o aposento em intervalos de tempo. Parte daqueles jovens, que somavam a rebeldia própria da adolescência à revolta pela injustiça de sua situação, chegara ao abrigo quando pequenos e já haviam vivido nas demais casas, esperando os anos passarem enquanto entendiam que a possibilidade de uma adoção diminuía a cada centímetro que cresciam e idade que completavam. ‘’Todos podem ser adotados, mas é bem mais difícil adotarem os adolescentes. Às vezes já é bem difícil adotarem crianças com 7 ou 8 anos até, porque as pessoas têm a expectativa de adotar bebês, mas não sabem que na verdade esse é o perfil mais difícil de ser adotado, que exige mais. A gente sabe também que a maior parte das crianças para adoção são negras, e as pessoas querem muitas vezes um bebezinho branco. Acontece 218


bastante, é uma fantasia dos pais de adoção. Antes eu ficava na Casa II, a rotatividade lá é muito maior, tem criança que vem, fica quatro ou cinco meses e vai embora, ou é adotada ou volta para a família, que pode ter se recuperado e reconquistado a guarda. Daí as crianças que ficam fazem comparações, né”, contou Igor Lima, psicólogo do abrigo que me guiou pelos aposentos. O psicólogo explicou ainda que o processo de adoção é lento e envolve várias etapas de aproximação da nova família com a criança, após a família participar de um curso obrigatório de preparação psico-social e descrever o “perfil” da criança desejada. “Mesmo após a adoção há um período de adaptação em que a gente acompanha a família para ver como está, durante seis meses. Pode ser que a criança fale que não quer ficar na família, e ela tem esse direito e prioridade. Mas tem casos também da família querer devolver a criança, infelizmente acontece. Eles acham que estavam preparados e não estavam. Nos casos em que a criança já foi recusada pela família e é recusada de novo por outra família é muito forte para elas, por isso o processo é lento”. Segundo Igor, as crianças são acolhidas pelo MAIS Vida por diferentes razões. “Tem de tudo: dificuldade financeira, dependência química dos pais, maus tratos, abuso sexual. Tentamos fazer um acompanhamento do desenvolvimento delas, com psicólogos, assistentes sociais e educadores. Eu já trabalhei em outro abrigo e era um ambiente ruim e pesado; aqui não, eu percebo que elas têm acesso a passeios, vão em museus e cinemas. Mas para elas o ambiente ainda é pesado, apesar de tudo isso, porque criança quer ficar com a família’’, opinou. Uma parte dos adolescentes da Casa I, no entanto, foi abrigada por um motivo em comum e destoava dos demais com uma timidez relutante. São alguns dos adolescentes africanos que chegaram desacompanhados 219


a São Paulo nos últimos meses. Sob tutela do juiz responsável pelo setor anexo da Vara da Infância e Juventude que cuida de crianças refugiadas e vítimas de tráfico, os oito adolescentes estrangeiros do MAIS Vida, na sua maioria angolanos, aguardam a decisão do CONARE sobre a solicitação de refúgio feita pelo juiz. Enquanto são matriculados em escolas públicas, procuram empregos de aprendiz e tentam se adaptar à realidade nova.

Enos “Já faz certo tempo que especialmente a Casa I tem se tornado referência em receber refugiados, cerca de quatro ou cinco anos”, contou Igor, no início da visita, enquanto, para meu desconforto, acordava alguns dos adolescentes refugiados de sua sesta para conversarem comigo. Um garoto sonolento com cabelos raspados e expressão preocupada veio em minha direção, saindo do quarto mais próximo e esfregando os olhos. Ele acenou com a cabeça, acanhado, e apontou para a comprida mesa de refeições que ficava na própria sala de estar, dizendo, com o sotaque chiado que já estava se tornando familiar, que poderíamos nos sentar lá. Os demais adolescentes brasileiros que haviam me medido com fundamentado desdém quando cheguei ao abrigo, perderam o interesse rapidamente, voltando a atenção para o filme que esporadicamente causava gritos de susto. O adolescente angolano, que se apresentou como Enos, tinha um olhar triste e distante quando me contou que está no Brasil há cinco meses, tendo vindo para o país com a irmã mais velha, que também vive no abrigo. “Fiquei em outro abrigo por dois meses e vim pra cá. Tô gostando mesmo. Vou para a escola e tô tentando procurar um emprego também. Tô no sétimo ano da escola e queria trabalhar com qualquer coisa mesmo, como ser uma pessoa que vende as coisas. 220


Qualquer emprego que encontrar, vou pegar”, disse. Para minha surpresa, o menino me revelou que tinha apenas 13 anos, o que contrastava tanto com sua fisionomia adulta e maturidade, quanto com os dados sobre adolescentes refugiados desacompanhados. No Brasil, a maioria dessa população chega com idades mais próximas à maioridade. “Chegamos de avião, estávamos fugindo das pessoas que queriam matar a gente. Eram nossos pais adotivos e nós fugimos deles porque eles tavam fazendo sofrer a gente muito, batiam em nós, essas coisas. A gente morava com eles desde que éramos pequenininhos mesmo, não conhecemos nossa mãe e nosso pai. Viemos com uma tia, ela que teve a ideia, mas ela deixou a gente no aeroporto aqui, disse que ia comprar uma coisa, mas abandonou a gente. Eu não sabia nada do Brasil, só tinha ouvido falar de futebol, mas imaginava que era um país legal, que todo mundo tem o mesmo direito, né”. Enos gosta de viver no abrigo, onde divide o quarto com mais quatro brasileiros. Ele estuda de manhã em um colégio público próximo à estação Patriarca do metrô. O lugar que mais gosta em São Paulo é a Praça da República. “Acho que o adolescente não pode viver fora do abrigo mesmo, tem que nos encaminhar para mostrarem pra gente como nos ajudar. Quando a gente chegou foi difícil mesmo, a gente ficou na rua por uma semana, até que procuramos uma instituição que chama Cáritas, e o juiz da Penha mandou a gente aqui. Na Cáritas explicaram tudo. Foi difícil mesmo ficar sozinho sem conhecer nada, mas como a gente estamos aqui foi legal, agora tô me acostumando mesmo com as coisas daqui. Aqui você volta da escola, come e pode dar uma volta ou visitar um amigo se quiser”, continuou. Para Enos, a comida brasileira e os próprios brasileiros são bem diferentes do que estava acostumado. Ele sente falta da comida angolana 221


e dos amigos que ficaram no país de origem, com quem ainda conversa através das redes sociais. Um pouco mais descontraído após alguns minutos de entrevista, o menino contou que sonha, ele próprio, em ser juiz. “Um juiz supremo mesmo. Eu já queria quando eu tava mesmo na Angola, porque muitas pessoas tavam falando do Joaquim Barbosa daqui. Negro. Por isso eu também queria ser como o Joaquim Barbosa”, confessou, com orgulho. O menino, que já havia sido entrevistado por outro jornalista no abrigo, admitiu que tem vontade de contar para todos os brasileiros como a Angola “é legal”. Envolvido com suas ideias e falando com rapidez, ele explicou que se incomoda com a visão que as pessoas têm da África. “Isso que tá acontecendo na Angola é um pouco difícil, por isso que a gente tá vindo pra cá no Brasil mesmo, mas meu país é muito legal. As pessoas acham que a África é como um só país e que as pessoas não tem possibilidade e… como chama? Valor. Falam isso pra mim. Eu não fico bravo, eles compreendem agora. Mas tem preconceito porque eu sou negro, os negros sofrem preconceito no Brasil, racismo mesmo, já percebi. Quando a gente morava na rua aqui, a polícia chegava e falava que iam fazer a gente voltar para o nosso país, ficavam ameaçando”, denunciou Enos, balançando a cabeça em um misto de indignação e conformismo.

Naomi Cansado, e parecendo satisfeito com sua fala sobre a xenofobia e racismo do país que conhecia há tão pouco tempo, mas mais do que muitos brasileiros que nem mesmo reconhecem essa realidade, Enos se 222


juntou aos demais jovens em frente à TV. Uma menina com cara amarrada, cabelos trançados e unhas pintadas de cor-de-rosa, se sentou na cadeira que o menino acabara de deixar e me fitou, desconfiada, puxando os fones de ouvido da orelha. Ela me cumprimentou vagamente, disse que era a irmã de Enos e respondeu grande parte das perguntas levantando os ombros. “Aqui é normal, o Brasil é um país normal. Foi difícil morar na rua e o mais difícil foi chegar em um país que todo mundo fala outra língua, você tenta ficar em um lugar e não deixam. Um país estranho, todo mundo branco, ninguém negro...”. Em um país em que mais da metade da população se reconhece como negra - preta ou parda - a solidão e falta de identificação e representatividade racial expressada pela menina ganha proporções ainda mais sérias. Extremamente cética e forte, ela negava todas as dificuldades que contava ter passado com um tom seco de realidade, como se quisesse varrer qualquer sinal de pena do interlocutor. “Tudo na vida tem que aguentar, para ter uma coisa boa no futuro. Aqui eu estudo no nono ano, tenho 16 anos e no meu país eu estudava em outra série, mas tô me acostumando com a língua ainda, porque estudava em uma escola francesa. Tenho que tentar e fazer o melhor para o futuro”. E o que ela quer para o futuro? “Nada demais.. Quero uma vida tranquila, não muito especial, não ficar rica; uma vida calma, trabalhar, ter família. Só isso… Ah, e estudar. Quero estudar psicologia e ciência política. Eu faço terapia aqui, o psicólogo vem pessoalmente e me ajuda a conversar. Eu não gosto muito de conversar não, mas eu tento pra desabafar”. Naomi afirmou gostar muito de política, embora não entenda ainda o contexto político confuso de seu novo país. “Eu sei que na Angola são pessoas querendo o poder. Um quer o poder, outro quer o poder, todos 223


lutando para ficar presidentes mas não pensando no povo que também quer ter poder, pensando só neles”. Impassível, contou rapidamente que sente falta da sua escola e das amigas, com quem nunca mais falou, antes de reiterar mais uma vez a inconstância natural da vida. “Nada na vida é fácil, nada na vida é difícil, tudo tem que tentar. Ninguém é legal na vida também, mas a gente conquista as pessoas para ficarem legais. Morar em um abrigo não é feio nem legal também, é normal”. O relativismo, entretanto, deu uma trégua quando comentei sobre as experiências racistas vividas pelo irmão. “Isso eu acho que posso compartilhar com ele. Mas eu tento ficar na minha, não vai mudar nada na minha vida, tô olhando para frente...” disse, emendando um silêncio profundo que tentei quebrar com algumas perguntas mais leves sobre o que ela gostava de fazer quando não estudava. “Quando eu saio da escola eu durmo porque não tem nada para fazer. Eu gostaria muito de trabalhar como jovem aprendiz, mas até agora nada apareceu… Gosto muito de ler também, livros em francês, acho que você não vai conhecer”. A menina checou o celular com impaciência e eu agradeci a conversa, me desculpando por qualquer pergunta que a tivesse incomodado. Ela abriu um sorriso pela primeira vez e balançou a cabeça. “Não, não. Eu gostei também”, respondeu, levantando-se e juntando-se ao irmão.

Safira Depois de conhecer as demais casas acompanhada por Igor, engolindo meu ingênuo choque com as crianças pequenas e bebês do abrigo, voltei para a Casa III e encontrei Safira sozinha, sentada em um banco atrás do sofá onde os adolescentes brasileiros gritavam e riam. 224


Ela olhava para eles sem se intimidar, com uma postura perfeita e olhos apertados de ressentimento. Tinha cabelo bem curto e um rosto e corpo que se enquadravam em múltiplos padrões de beleza, o que provavelmente facilitaria seu sonho, depois revelado, de se tornar modelo. Com fisionomia triste, a garota, também Angolana e nascida na capital Luanda, assumiu, suspirando, não gostar nem um pouco do abrigo. “Ninguém aqui gosta de mim, não gosto deles também. Ficam me xingando o tempo todo. Principalmente aquele ali, ó”, disse, destemida, apontando para um garoto alto e forte. “Os brasileiros são difíceis...”. Ela preferiu não falar sobre os motivos de ter vindo para o Brasil, e ficou ligeiramente introspectiva com a pergunta. Aos 16 anos, Safira parecia ansiar muito pela maioridade. “Eu quero muito sair daqui. Eu tenho um namorado, ele é do Congo e vive aqui também, mas não deixam eu ir encontrá-lo nunca. Ele pode vir aqui às vezes. Eu achei que poderia ficar sozinha no Brasil, mas não dá. Aqui não tem nada para fazer”, continuou, agitada, completando que já tinha pedido para conversar com o juiz várias vezes, mas não conseguia retorno. Durante a curta conversa com Safira, um dos adolescentes da casa, um menino magrelo que perambulava inquieto durante todo o tempo em que estive lá, teve uma crise de raiva e tentou bater em uma das funcionárias, que rapidamente o deitou no chão e ajoelhou em cima dele. O menino gritava desesperadamente e a mulher, incisiva, tentava controlá-lo. Safira olhou assustada para a cena e explicou, impaciente: “Ele é louco, faz isso o tempo todo...”. O menino vomitou no chão e repetia, nervoso, que havia um bebê na sua barriga. Alguns dos adolescentes riam, Enos e outro menino tentavam ajudar a controlá-lo. A maioria ignorava a cena como se fosse realmente corriqueira, o que a tornava ainda mais impactante. 225


De repente o menino se acalmou, voltou para o seu quarto cabisbaixo e um lanche da tarde foi servido na mesa de refeições para os jovens da Casa I, que pularam do sofá animados. Safira pediu licença e se afastou para comer, se aproximando de Enos e Naomi e parecendo ainda bastante deslocada entre os colegas do abrigo, alisando a barra da saia enquanto comia um pedaço de bolo. A preocupação em sair do abrigo e ganhar controle sobre suas vidas parecia constante entre ela e Naomi, o que exemplifica o paradigma da necessidade de proteger as crianças e adolescentes solicitantes de refúgio, em paralelo com a importância de sua participação nas decisões que concernem o próprio destino. É muito difícil imaginar adolescentes vítimas de violência, vivendo em um país desconhecido sem a assistência e guarda do Estado. Ao mesmo tempo, a frustração em não ter suas opiniões, vontades ou até mesmo dúvidas atendidas, é muito legítima. Segundo Igor, há um programa de conscientização para os adolescentes do abrigo que se aproximam da maioridade, no qual são incentivados a guardar dinheiro para conseguirem se sustentar após saírem. “Temos uma parceria com uma instituição que aluga apartamentos a preço simbólico para os adolescentes que saem daqui, dessa forma eles ganham um tempo para se adaptar ao mundo lá fora, já que eles têm que ser desacolhidos aos 18 anos”.

Aniso Minha última entrevista no Espaço MAIS Vida foi com Aniso, uma jovem adulta da Somália. Era a primeira pessoa do país que eu conhecia e quando entrou pelo portão acompanhada de uma assistente social, me surpreendi por um momento com o véu roxo que escondia 226


seus cabelos. Ela vestia uma bata preta que cobria todo seu corpo e deixava apenas os pés e as mãos para fora, ambos com unhas descascadas de esmalte vermelho. Usava óculos e tinha um rosto redondo e infantil. Sua aparência, mais do que a de qualquer um dos angolanos, tornava impossível ignorar que era estrangeira. Perguntei se Aniso gostaria de conversar comigo sobre sua história e ela automaticamente se surpreendeu com a comunicação em inglês. Espantada, me contou que ninguém no abrigo sabia falar sua língua materna, que por sua vez, era a única em que sabia se comunicar. “Eu não falo com ninguém aqui. Entendo um pouco de português, mas não sei falar”, confessou. Ela me contou que tem 21 anos, mas ainda vive no abrigo porque não sabe o que fazer no país. “Eu estou aqui há dois anos e meio. É okay aqui, nunca tinha ouvido falar do Brasil antes e terminei aqui… É uma longa história. Eu tinha uma família na Somália, mas não sei onde estão. Lá algumas pessoas são boas, outras são ruins. Elas matam e estupram outras pessoas. Meu pai trabalhava lá e as pessoas pediam dinheiro para ele, mas ele não podia dar porque tinha a nossa família para criar. Então, mataram ele. Mataram ele e machucaram a minha mãe. Quando isso aconteceu eu estava na escola e tinha sete anos. Eu e meu irmão corremos para a nossa casa, vimos meu pai morto e nos contaram que minha mãe tinha desaparecido e eu não poderia achá-la. Então eu perguntei como poderia sair de lá e um homem disse que poderíamos viver com ele. Eu tinha a opção, ele nos convidou para sua casa. Mas em 2012 meu irmão foi morto e eu fiquei sozinha”, contou a menina, despejando as palavras sem pausa, como se realmente não conversasse com ninguém há muito tempo. Aniso continuou sua história e as palavras se tornavam cada vez mais incompreensíveis, engolidas umas pelas outras. “Eu não ia para a 227


escola porque não tinha dinheiro. Lá não tem ensino e saúde pública, então a vida é difícil. Eu era tão nova naquela época. O problema é que o homem me obrigou a trabalhar na sua casa, todos os dias, dia e noite. Algumas vezes ele me forçava a casar com alguém. Eu não estava feliz e eu me recusava a casar porque dizia que isso tinha que ser feliz. Eu só queria ver a minha mãe. Então ele me disse que iríamos viajar. Perguntei para onde e ele não me dizia. Quando estávamos no aeroporto da Somália muitas pessoas me perguntaram onde eu estava indo e se eu estava presa com ele. Ele respondia que eu estava doente e que não deveriam me fazer perguntas, mas eu não estava doente, eu estava normal. Eu não tinha nenhuma opção. No avião, ele me disse que estávamos indo para o Brasil”. Sua voz transmitia muita angústia, o que era acentuado pelo fato de ela constantemente reiterar que não teve culpa no que aconteceu. Eu não tinha certeza se por ‘casamento’ ela se referia à instituição matrimonial ou se era sua forma de dizer que havia sido forçada e violentada sexualmente. De qualquer forma, o fato de ter sido trazida para o país por um adulto sem autorização, quando era menor de idade, a classifica como vítima de tráfico humano - como muitas outras crianças e adolescentes refugiados que se apoiam em coiotes para cruzar as fronteiras e acabam sendo enganados e sequestrados. “Eu não sei o que ele estava pensando, se ia me fazer eu casar com alguém aqui, mas ele disse que não iríamos parar a jornada aqui, que iríamos continuar. Mas quando chegamos eu estava morrendo de medo, ouvia as pessoas falando português e não entendia. Aqui ninguém fala inglês, nem as outras crianças aqui nem os funcionários. Quando cheguei no aeroporto eu corri para a polícia. Eu tinha quase 18 anos quando cheguei. Então eu fiquei aqui… É tudo tão diferente, as pessoas, os lugares. Eu chorei por um mês seguido quando cheguei. Mas os brasileiros são 228


legais. Agora eu tenho mais quatro meses aqui no abrigo e não sei o que vou fazer. Eu preciso viver a minha vida, trabalhar e ir para a escola, mas não sei falar português ainda e não aceitaram meu protocolo de refúgio, não sei porque. Eu quero estudar medicina”, completou. “Aqui eu não faço nada. Eu acordo e fico sentada. Não gosto de assistir os filmes porque não entendo e nunca deixam colocar em inglês, os jovens são malvados aqui no abrigo”. Aniso revelou que o que sente mais falta da Somália é de sua mãe e contou que já deu seu nome para diversas organizações tentarem encontrá-la. “Mas ainda não encontraram… Lá é tão diferente, não tem metrô, trem, prédios. E aqui é tão frio”. Apertando as têmporas com uma careta, ela disse que estava no médico até então, por causa de uma dor de cabeça que acredita ser causada pelo grau irregular do óculos ou pela dieta que estava adotando. “É por causa da minha religião, tenho que ficar sem comer durante o dia por 7 dias. Mas já tá acabando, faltam três dias. Não é o Ramadan, mas é parecido”, respondeu, desconfiada com o fato de alguém do Brasil saber sobre o mês de jejum islâmico. “Não é difícil ser muçulmana aqui. As pessoas fazem perguntas, mas tudo bem. Eles só acham diferente...”, completou, com um último suspiro solitário antes de nos despedirmos. Ela parecia aliviada em ter conversado com alguém, e desejei ter tocado em assuntos mais banais. Eram quatro horas da tarde e duas jovens universitárias descoladas haviam chegado ao abrigo para realizar uma oficina de biblioteconomia com os adolescentes. Enquanto eu guardava minhas coisas na mochila, observei que eles reviravam os olhos do sofá onde ainda estavam esparramados e reclamavam com um ‘Aaaah não’ insurgente.

Abaixei a cabeça e dei um sorriso pensando que as duas 229


provavelmente se sentiam tão desconfortáveis quanto eu no local, em nosso ímpeto prepotente de ajudá-los. Deixei o abrigo caminhando ao lado de seu muro grafitado na rua deserta. O sol começava a baixar no horizonte e os gritos dos adolescentes do abrigo iam se esvaindo à distância, misturando-se com outros choros, gritos e risadas infantis, enquanto eu percorria a vizinhança.

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Conclusão e Considerações Finais

conclusão e

Considerações finais 233



Com os relatos contados neste livro, pretendi, primeiramente, desmistificar o estereótipo de invalidez, trauma e distanciamento cultural construído em torno da imagem de crianças em situação de refúgio, para que sejam consideradas pessoas extremamente mais complexas do que são apresentadas pela mídia. Paralelamente, essas narrativas servem como denúncia de situações de violação extrema de direitos humanos, para que se possa, com sua leitura, entender que o Direito Internacional e nacional, bem como as políticas e as convenções sociais, não estão protegendo totalmente essas crianças. Nesse sentido, pretende-se incentivar minimamente o questionamento dos conceitos de nação, nacionalismo, cidadania e território. De acordo com os argumentos defendidos nesta pesquisa, tais construções estão na base da manutenção de um Estado de exceção, que, como é defendido por Agamben, nunca deixou de ser regra. Este é um dos pontos principais da pesquisa, e com base nele, houve a tentativa de desconstruir a ‘crise’ dos refugiados como um ‘problema’ e como uma questão somente migratória: as crises humanitárias são frutos de séculos 235


de opressão, injustiças e desigualdades, e devem ser vistas desta forma. Outro ponto que foi entendido, com base na teoria de Jacqueline Bhabha, é um dos motivos que faz com que crianças ao redor do mundo sejam vítimas de múltiplas violações deste Estado de exceção, sem que isso desperte solidariedade social. Mesmo que o sofrimento de qualquer ser vivo, teoricamente, devesse causar revolta, a infância é culturalmente mais apelativa quando se trata de violações de direitos, por isso é amplamente utilizada para chocar e mobilizar as pessoas. Entretanto, a nossa construção ocidental do conceito de “criança” ainda funciona com base na ambivalência descrita por Bhabha, que divide o mundo entre as “nossas crianças” e as “crianças dos outros”, o que sujeita milhões de crianças diariamente à violência e negligência. Desta forma, é importante perceber a importância dos conceitos de Estado e Nação para a mobilização acerca das violações de direitos das crianças ao redor do mundo. Algumas crianças não têm o direito automático à proteção social que as outras têm, e isso deve ser analisado a partir da problematização da identificação por nação, raça e classe. A falta de empatia e identificação social, que também existem entre crianças e adultos que dividem as mesmas coordenadas geográficas e dimensões culturais, são profundamente enraizadas em valores que pregam a cidadania para alguns poucos tornando os outros invisíveis. Como eternizou Galeano no poema destacado no início deste livro, essas crianças, os filhos de ninguém e donos de nada; que não são, embora sejam, provavelmente não serão nomeadas na história universal, embora resistam e produzam diariamente mais do que os grandes nomes imortalizados pela história. Pensando este trabalho a partir de uma dimensão mais pessoal, posso 236


afirmar que tive diferentes contestações durante sua produção, mas a maioria delas se resumia ao questionamento: Qual o objetivo de ouvir a história destas crianças e adolescentes? Sinceramente, não tenho uma resposta. Na verdade, o processo de produção deste livro me fez duvidar bastante da própria essência do jornalismo, principalmente depois da opinião negativa de tantas pesquisadoras, psicólogas e dos próprios refugiados sobre a forma como jornalistas cobrem as pautas migratórias. É difícil sustentar que depois de tudo que ouvi sobre a vida destas crianças e de seus familiares, eu realmente acredite que é efetivo ou transgressor publicar suas opiniões para ‘concedê-las algum tipo de voz’. Em muitos momentos me deparei com necessidades muito mais pontuais do que um espaço na ‘esfera pública’: dinheiro para o aluguel, alimentos, fraldas, ou até mesmo bonecas negras que simbolizassem o mínimo de representatividade no seu crescimento. A verdade é que, talvez como todo assistencialismo travestido de humanitarismo, ouvir esses relatos e entender o quanto essas crianças mesmo repletas de cicatrizes, traumas e dores - são como nossos filhos, sobrinhos, primos ou vizinhos: igualmente adoráveis e azucrinantes; sirva mais para nos tornarmos menos reprodutores do status quo, racismo, nacionalismo e patriotismo, do que para qualquer grande transformação na vida das próprias crianças. As entrevistas com crianças, feitas de forma bastante descuidada, são reproduzidas com sensacionalismo pela mídia, que insiste em caracterizar essas personagens somente como figuras inocentes atingidas por tragédias – que, por sua vez, são cobertas através dos interesses políticos e xenofóbicos destes veículos. Em minha defesa, posso afirmar que de longe, o que menos me encantou em Enrico, Paula, Maravilha, Érica, Marina, Layla, Enos, Naomi, Safira e na jovem Aniso foi sua inocência. 237


São impressionantes os inúmeros talentos artísticos, poliglotismo, sensibilidade e carinho de alguns - e mais ainda a revolta, resistência, indignação, ceticismo e força de outros. Não tenho a menor dúvida de que me ajudaram e ensinaram muito mais do que o contrário, principalmente quando me calavam com constatações importantíssimas que expõem as limitações da teoria: para eles, a ONU não passa de um jogo de cartas (UNO), a guerra é algo que vem de cima e destrói tudo, brasileiro é uma cor de pele diferente da sua e seu país de origem é um lugar onde não realizaram sonhos básicos, como ver o mar pela primeira vez. Quem somos nós para dizer que estão errados? Na verdade, talvez a conclusão principal seja esta: ouvir o que essas crianças pensam sobre suas próprias trajetórias torna toda a primeira parte deste livro (com bibliografia de filósofos, opiniões de especialistas e reprodução de tratados internacionais amplamente assinados) tão onírica quanto suas brincadeiras e sonhos. Se a proteção e o status do refúgio são, basicamente, uma série de acordos entre humanos, fundados em uma teoria legal que foge bastante à prática, nos resta interpretar os relatos das crianças refugiadas como uma prova de que o Direito Internacional, os tratados, as convenções e a democracia não estão cumprindo seus papeis. Uma prova de que há um sistema por trás de uma ‘crise migratória’ e de que o Estado de direito não existe em muitas partes do mundo como existe em outras poucas.

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Filmografia: EXODUS: Da onde eu vim não existe mais. Direção: Hank Levine. Brasil. 2016 FOGO no Mar. Direção: Gianfranco Rosi. Itália. 2016. NASCIDOS em Bordeis. Direção: Zana Briski, Ross. EUA. 2004 WAR Photographer. Direção: Christian Frei. EUA. 2001.

Peças: CIDADE VODU – Companhia Teatro de Narradores. 2016

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