Revista Matizes - História da Arte

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Novembro/2014

MATIZES

MARINA ABRAMOVIC: A ARTISTA PRESENTE entrevista A ARTISTA CAROL ROSSETI

Especial Frida Kahlo

quem foi Frida Kahlo |Exposição em SP sobre a artista |Frida inspira outros artistas



Por Roberta Marrero


índice Editorial | Página 3 Frida Kahlo e a celebração da morte | Página 4 Júlia Dolce e Marcela Reis

Exposição “Todos podem ser Frida” | Página 8 Ana Carolina de Medeiros

Pelo direito de decidir | Página 10 Bia Avila

Salvador Dalí e o Surrealismo | Página 12 Júlia Dolce

Entrevista com Carol Rosseti | Página 14 Ana Carolina de Medeiros

Marina Abramovic: A artista presente | Página 16 Andressa Vilela

Lygia Clark: A não-artista | Página 18 Bia Avila

A pintora do Brasil | Página 20 Andressa Vilela


Editoral “Espero alegre a minha partida – e espero não retornar nunca mais”

Frida Kahlo Em 13 de julho de 1954, o mundo se despedia de uma de suas artistas mais brilhantes: Frida Kahlo, ícone da pintura e do movimento feminista. A frase encontrada em seu diário íntimo foram as últimas palavras da mexicana, que provavelmente sofreu mais do que qualquer outra pessoa. Doenças, acidentes, abortos espontâneos e traições suas tragédias - foram temas de seus quadros, de sua realidade: por isso mesmo negava que fizesse parte do movimento Surrealista: "Eu nunca pinto sonhos ou pesadelos. Pinto a minha própria realidade”, declarou. Seu romance com o pintor e muralista mexicano Diego Rivera foi sempre turbulento, com traições de ambas as partes. O intenso romance também aparece nas obras da mexicana que, mesmo morando em outros países com o marido, se negava a adequar-se a cultura europeia. Frida defendia o resgate à cultura asteca a fim de se opor à hegemonia imperialista: seu jeito de se vestir - saias longas, cores fortes, flores no cabelo - sempre foi muito único e tornou-se marca registrada. Todas essas particularidades, além do talento incrível, fizeram Frida entrar para a história como uma das mulheres mais importantes do século XX. E ela é nossa artista homenageada na revista xxx deste mês. Nessa edição, elaboramos um perfil especial da artista, além de matérias sobre outras artistas tão importantes quanto ela, como Marina Abramovic e Lygia Clark, pois acreditamos na importância das mulheres ocuparem todos os espaços públicos, inclusive no mundo das artes, que sempre foi um espaço de extrema dominação masculina, não só entre os artistas, como também em diversas obras. Nossas repórteres também foram na 31ª Bienal discutir uma das obras mais polêmicas da exposição: “O espaço para abortar”, instalação que traz à tona a discussão do aborto como escolha da mulher. T Além disso, acompanhamos a exposição de Salvador Dalí, amigo próximo de Frida e que suscita uma boa discussão sobre o surrealismo nos dias de hoje, movimento do qual Frida afirma não participar. Esperamos que com esta edição possamos conscientizar todas as mulheres, artistas ou não, da importância de ocupar espaços e se emponderar através de sua arte, seus sentimentos e seus desejos. Afinal, lugar de mulher é onde ela quiser.

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Frida Kahlo e a celebração da morte A artista mexicana que desafiou extremos limites físicos e ideológicos não viveu para celebrar o século completado, morreu em 1954, e seu atestado de óbito registra emcentebolia pulmonar como nário de Frida Kahlo causa mórtis. Porém, foi comemorado duas devido ao sofrimento vezes no começo desconsequente tanto de se século, nos anos de dores físicas quanto 2007 e de 2010. Isso de frustrações psicoporque, apesar da lógicas, muitos acrepintora ter nascido no ditam que a artista dia 6 de Julho de 1907, tenha se suicidado. na pequena cidade de Frida mantinha um Coyacán que hoje é diário, no qual foram um distrito da Cidaencontrados diverde do México, adotou sos registros depreso ano da Revolução sivos que expressam Mexicana como data seu desejo em causar de seu nascimento, a própria morte. As Frida, nasceu Magdevido à admiração últimas palavras espolítica que sentia dalena Carmen Frida critas por Frida em pelo movimento. Sua Kahlo y Calderón, e seu diário foram: “EsPor Júlia Dolce e Marcela Reis

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vida aliás, pode ser considerada um microcosmos da revolução que tirou a vida de mais de um milhão de pessoas e substituiu o caudilhismo por um sistema político populista; pois a pintora se engajou em causas sociais, lutando pelos valores esquerdistas, e também passou por sérios problemas de saúde, causados por um acidente no começo da sua vida adulta, características que foram refletidas em suas obras.

pero a partida com alegria… E espero nunca mais voltar…”. Apesar do adjetivo ‘sofrida’ – que sadicamente engloba o primeiro nome da pintora – ser frequentemente usado para descrever sua existência, a paixão que tinha pela vida, liberdade e cultura mexicana, também foi transmitida em suas pinturas extremamente coloridas, e talvez tenha adiado sua morte, a permitindo viver 47 anos de uma maneira inovadora, e produzir um acervo que a tornou conhecida e


aclamada pela críti- com outros políticos ca no mundo inteiro. e artistas muito significantes, como PiA personalidade re- casso, André Breton, volucionária de Frida Diego Rivera, com desconstruiu diversos quem se casou duas campos de tradições, vezes e Leon Tróstski, como o machismo, de quem foi amante. tornando-a símbolo da luta feminista até Além disso, Frida os dias de hoje. Do foi uma revoluciouso de roupas mascu- nária no mundo das linas até a bissexuali- artes, pois apesar de dade, Frida explorou ser considerada uma surrealista e superou os limites pintora impostos às mulheres, por muitos, devido questionando tabus à estética aparenteque ainda se mantêm mente fantástica de na atualidade. Ocu- seus quadros, a artispou uma posição po- ta não compartilhava lítica de extrema im- dos conceitos e teoportância no México rias surrealistas, dizia (outra característica representar apenas a tipicamente masculi- sua própria realidade, na para a época), de- em vez de sonhos ou fendendo convicções pesadelos. A singulamarxistas e entrando ridade de suas obras no Partido Comunis- está relacionada à ta Mexicano, em 1928. temática que basicamente reflete sua vida Viveu a revolução me- individual e concrexicana e participou ta, com um espectro de protestos até nos de cores extenso e momentos mais debi- elementos naturais. litados de sua saúde, como na manifestação contra a intervenção norte-americana na Guatemala, em 1954, na qual compareceu mesmo tendo sua perna direita amputada até a altu- A casa em que Frida ra do joelho, no ano nasceu é hoje conheanterior, devido a cida como La Casa uma gangrena. Tam- Azul, um museu sobém se relacionou

Vida pré

acidente

bre a pintora que abrange boa parte de suas obras. Lá, viveu durante praticamente toda sua vida, primeiramente com suas três irmãs e seu pais, Guillermo Kahlo, um fotógrafo alemão que tinha a pintura como passatempo, e Matilde Gonzalez y Calderón, uma católica devota de origem indígena e espanhola. Apesar de ter vivido cercada por mulheres, Frida tinha uma relação mais próxima com seu pai, que lidava melhor com o comportamento fora do usual da filha. Com seis anos contraiu poliomielite, ficando com sequelas no pé e perna, e ganhando o apelido de Frida Pata de Palo (Frida Perna de Pau), o que a levou a usar calças, vestimenta prioritariamente masculina na época, além das saias compridas e exóticas que se tornaram uma de suas marcas. A doença foi a primeira de uma série de desventuras relacionadas à saúde de Frida. Não tinha planos em seguir a carreira artística quando jovem, estudava medicina na

primeira turma feminina da Escola Nacional Preparatória do México, onde assistia ocasionalmente aulas de desenho e modelagem, e conheceu o pintor já famoso na época, Diego Rivera, desenvolvendo um interesse e admiração tanto pela sua personalidade quanto trabalho artístico. Durante os estudos na Escola Preparatória, Frida namorava, e se tornou noiva, do colega de curso Alejandro Goméz Arias. A mais significativa reviravolta em sua vida ocorreu enquanto voltava para casa, com Alejandro, quando sofreu um acidente que a deixou a beira da morte. Foi transpassada por uma barra de ferro que penetrou em seu abdômen e saiu pela sua vagina, além de ter sofrido múltiplas faturas, incluindo na coluna vertebral, quando um bonde se chocou com o ônibus no qual viajava. Foram necessárias 35 cirurgias, e as complicações deixadas pelo acidente a perseguiram pelo resto da vida, como foi 5


relatado por Frida: “E a sensação nunca mais me deixou, de que meu corpo carrega em si todas as chagas do mundo”.

VIDA ARTÍSTICA

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Durante o período exaustivo de recuperação do acidente, Frida desenvolveu o interesse pela pintura. Foi colocado um espelho sobre sua cama e um cavalete adaptado para que ela pudesse pintar deitada. Desse momento em diante, Frida passou a pintar autorretratos, o que também se tornou sua marca registrada. Seu primeiro se chama Autorretrato com vestido de Terciopelo, o qual dedicou a Alejandro, que a havia abandonado. Foram 55 ao todo, representando um terço de sua obra total. Sobre o interesse em pintar a si própria, a pintora afirmou: “Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”.

Dois anos após o acidente, a artista levou três de seus quadros para Diego Rivera avaliar, e impressionado com o talento de Frida, incentivou-a a seguir a carreira artística, dando início a uma relação amorosa que serviu de inspiração para muitas obras da pintora, e promovendo seu trabalho internacionalmente. Em 1930, Frida acompanhou Diego em sua mudança à Nova York, onde moraram durante quatro anos. O artista inauguraria um mural comunista no edifício Rockfeller Center, que não surpreendentemente foi cancelado na última hora. Nos Estados Unidos, Frida se torna cada vez mais conhecida e aclamada pela crítica. A primeira exposição individual de Frida foi realizada em Nova York, no ano de 1939, na galeria de Julian Levy, por indicação do surrealista André Breton. A exibição foi considerada um sucesso, e a pintora logo teve suas obras expostas em Paris, onde conheceu os intelectuais precur-

sores das vanguardas artísticas europeias, como Pablo Picasso e Marcel Duchamp. Frida foi a primeira pintora latino-americana a ter suas obras expostas no Louvre,

sua produção artística é negociada no patamar de milhões de dólares, mesmo com grande parte do seu acervo fixo no Museo Frida Kahlo, localizado na casa azul.

Vida

porém o maior sonho da artista patriota era ter uma exposição em sua cidade natal, a Cidade do México, o que se reali- Frida casou-se com zou apenas um ano Diego Rivera aos 22 antes de sua morte. anos, dando início a uma tumultuada vida De 1942 até 1950 amorosa, devido ao Frida foi eleita mem- temperamento forte bro do Seminário de e vida extraconjugal Cultura do México, de ambos os artistas. passando a dar aulas A pintora era bissena escola de arte La xual e tentava aceitar Esmeralda. Com seu as traições do mariquadro Moisés, a ar- do. Porém, os divertista ganhou o Prêmio sos momentos em Nacional de Pintura, que o flagrou com concedido pelo Mi- outra mulher, inclunistério de Cultura do sive sua irmã mais México. Atualmente, nova, Cristina, fo-

Pessoal


ram o suficiente para mais seis cirurgias se separar do artista. e teve que usar permanentemente um No período em que colete de ferro, que permaneceu solteira, também aparece ilusFrida teve um caso trado em seus quacom Leon Trótski, dros. Em 13 de Julho enquanto ele busca- de 1954, após a amva asilo em sua casa putação de sua perna, no México. Em 1940, Frida foi encontrada Frida casou-se no- morta em seu leito. A vamente com Diego intensa ambiguidade Rivera, construindo de seus sentimentos uma casa espelhada perante a vida, pode à do marido e ligada ser representada com por uma ponte, para a famosa anotação que ambos pudessem em seu diário: “Pés, viver sua individuali- pra que os quero se dade. Porém essa rela- tenho asas para voar”. ção foi tão tempestuosa quanto a primeira.

“Apesar do adjetivo ‘sofrida’ – que sadicamente engloba o primeiro nome da pintora – ser frequentemente usado para descrever sua existência, a paixão que tinha pela vida, liberdade e cultura mexicana, também foi transmitida em suas pinturas extremamente coloridas”

Frida sofreu três abortos enquanto era casada, o que a deixou extremamente angustiada e foi refletido em muitas de suas obras. Sobre o desejo de ser mãe, e a dor de não poder sêt -lo, a pintora confessou: “Pintar completou minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas que teriam preenchido minha vida pavorosa”. Após a morte de seu pai, Frida e Diego retornaram à Casa Azul, aonde o artista se ocupou de cuidar da saúde cada vez mais debilitada de Frida. A pintora passou por

Páginas do diário de Frida Kahlo 7


Em cartaz: Exposição “Todos podem ser Frida”

No dia 12 de novembro foi inaugurada a exposição “Todos Podem Ser Frida” na sede temporária do Museu da Diversidade Sexual, equipamento da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.

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A exposição faz parte do projeto idealizado pela fotógrafa paulistana Camila Fontenele de Miranda, que escolheu Frida

Kahlo para abordar imagens são desina relação entre arte e tegradas, com cores identidade de gênero. e traços fortes como os de Frida. Nos enNa exposição, que saios, a partir de uma fica em cartaz até 28 inversão de gênero, de fevereiro de 2015, a fotógrafa remete à modelos masculinos própria vida da artissão caracterizados ta, que se retratava em como a artista mexialguns quadros com cana, incentivando roupas masculinas. o público a refletir sobre comportamen- Fontenele conta com tos sociais e sua re- a participação de lação com a ideia de maquiadores artísgênero tradicional. ticos para compor os personagens da O projeto é baseamostra e, novamendo em ensaios fotote se inspirando na gráficos nos quais as vida e sofrimentos

de Frida, trabalha com cinco elementos principais: amor, dor, inteiro, cores e aborto. Nos dias 15, 16, 22, 23, 29 e 30 de novembro e 06, 07, 13 e 14 de dezembro, haverá a possibilidade de o público participar de uma intervenção fotográfica. Quem quiser pode “se vestir de Frida” e ter seu retrato incluído na exposição. Por Ana Carolina de Medeiros


FICHA TÉCNICA: Exposição: “Todos Podem Ser Frida” Fotografias: Camila Fontenele de Miranda Curadoria: Jefferson Duarte e Renato Ribeiro Concepção: diversa, arte e cultura Projeto gráfico: Cláudia Warrak e Raul Loureiro Apoio: MAM

SERVIÇO: Museu da Diversidade Sexual Exposição: "Todos Podem Ser Frida" Quando: de 12 de novembro de 2014 28 de fevereiro de 2015 Onde: Estação República do Metrô – Piso Mezanino, loja 518 Funcionamento: de terça a domingo, das 10h às 20h

Fotografia: Camila Fontenele de Miranda Maquiagem: Diógenes Ramos

A fotógrafa Camila Fontenele com a atriz Leona Cavalli e o ator Rubens Cachá, que estão em cartaz com a peça “Frida y Diego”.

Fotografia: Camila Fontenele de Miranda Make up: Rogério Rodrigues e Claudine Vilas Boas 9


Pelo direito de decidir

Obra na 31ª Bienal das Artes problematiza a questão do aborto não ser mãe. Mas e as mulheres que desejam interromper a gravidez de forma uem co- consciente e optam nhece minimamente a pelo aborto induzido? vida da pintora Frida Kahlo sabe que um de Não são poucas que abortar. seus maiores traumas escolhem foi a impossibilidade Dados do Ministério de ser mãe. Graças a da Saúde mostram uma fratura na bacia, a ocorrência de 1,25 Frida foi informada milhão de abortos que não poderia parir. ilegais ano no país. A Mesmo assim, a pin- legislação hoje pertora acabou ficando mite que se aborte grávida mais de uma apenas em caso de esvez, mas teve abortos tupro e perigo à vida espontâneos. Qua- da mãe. Quando não dros como A Cama é o caso, milhares de Voadora (1932) retra- mulheres têm que tam o acontecimento recorrer à clínicas e a dor daquele mo- clandestinas, muitas despreparamento. Infelizmente, vezes Frida não escolheu das para dar o atenPor Bia Avila

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dimento necessário, arriscando suas vidas - principalmente se a mulher não tiver dinheiro. E quando há alguma complicação após o procedimento, as mesmas ainda sofrem preconceitos se buscam ajuda médica, podendo até ser presas. Hoje o aborto é a quarta causa de morte materna e estima-se que uma a cada cinco brasileiras já fez o procedimento. Pensando em despertar a consciência para esse problema tão grave, o Mujeres Creando - grupo feminista e anarquista boliviano - fez uma

intervenção urbana, uma passeata pública nas ruas de La Paz. Mulheres passaram pela cidade carregando uma grande estrutura de metal que representava as pernas abertas de uma mulher e paravam em locais estratégicos, onde integrantes da passeata ou transeuntes podiam entrar em um aro e contar suas experiências com o aborto. A estrutura de metal, juntamente com um vídeo da passeata e áudios de mulheres brasileiras que passaram pela experiência estão na 31ª Bienal de Artes de São Paulo que acon-


“Por que vou trazer um ser a um mundo que está cheio de machismo?” tece até dezembro no Pavilhão da Bienal, dentro do Parque Ibirapuera. Lá, dezenas de mulheres, homens e jovens interagem com a obra de arte, chamada de “Espaço para abortar”. No vídeo gravado em La Paz, as mulheres fazem desabafos fortes. Uma delas, um pouco mais velha do que a maioria que compunha o ato, diz que implorou pelo aborto, mas no lugar a obrigaram a se casar. “Não se importam se realmente queríamos ter um filho. E desde sempre foi assim. E foi assim que me fizeram casar”, conta. Questionada porque interrompeu uma gravidez, outra responde, de forma enérgica: “Porque sou responsável. Por que vou trazer um filho a um mundo que está tão maldito? Que está cheio de machismo? Para que trazer ao mundo um

ser, para que o machuquem?”, desabafa. “Como o aborto ainda é crime, ainda tenho medo de falar”, conta uma das brasileiras que deu depoimento para a instalação. Identificada como Patrícia, ela engravidou com 14 anos do namorado seis anos mais velho, e não viu outra alternativa a não ser interromper a gravidez, já que estava fazendo cursinho para entrar na faculdade. “Fiz um aborto que eu acho que todas as mulheres deveriam ter acesso: em uma clínica limpa, higienizada, segura. Não senti nenhuma dor, foi muito rápido e simples. E talvez por isso seja muito fácil lidar com isso, não sinto nenhuma culpa”. Em dezembro de 2012, o Uruguai descriminalizou o aborto, tornandose o primeiro país na América Latina a permitir o procedi-

mento. O interessante do projeto é que o Estado oferece amplo apoio para as mulheres durante e depois do procedimento. As pacientes devem passar por um ginecologista, psicólogo e um assistente social para pensar na possibilidade de dar a criança para adoção. Caso a mulher confirme sua vontade de interromper a gestação, o procedimento é feito Desde a aprovação da lei, nenhuma mulher morreu por causa de aborto no país. No Brasil, ainda há muita dificuldade de discutir o tema, principalmente por causa da bancada evangélica no Congresso Nacional - que cresceu ainda mais neste ano de 2014. Há uma campanha no site do Senado

que propõe regular o aborto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) dentro das 12 primeiras semanas de gestação. O projeto copia o modelo do Uruguai pois também pensa em uma equipe de saúde interdisciplinar para orientar e apoiar as mulheres que optarem pelo aborto. A medida é um grande avanço, mas tem grandes chances de ser barrada. Enquanto isso, milhares de mulheres morrem todos os anos por conta de procedimentos inseguros. Uma realidade que todos fingem não ver. E parece que vai demorar um bom tempo para a maioria dos brasileiros perceber que a questão do aborto não é uma questão de opinião, mas sim de saúde pública.

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Salvador Dalí e o Surrealismo

Por Júlia Dolce

A mostra do artista espanhol Salvador Dalí, mestre da vanguarda artística surrealista, já foi visitada por quase um milhão de pessoas, nos menos de quatro meses em que ficou instalada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro. Estreou em São Paulo no dia 19 de outubro, e ficará em cartaz até o dia 11 de janeiro de 2015, no Instituto Tomie Ohtake, mesmo local que recebeu a exposição Obsessão Infinita, de Yayoi Kusama. Também sucesso de público, as obras da artista pop japonesa receberam mais de 500 mil visitantes de maio a julho desse ano.

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Uma das maiores retrospectivas artísticas do país, a exposição de Salvador Dalí conta com mais de 200 obras do artista, sendo 135 desenhos e gravuras, 24 pinturas, 15 fotografias, quatro filmes e uma instalação. A mostra contempla a evolução artística de Dalí, desde suas produções nos anos 1920, foca-

das nas vanguardas europeias do cubismo e do surrealismo, até o fim de sua carreira, além de curiosidades sobre sua vida. As obras fazem parte do acervo da Fundação Gala-Salvador Dalí e do Museu Reina Sofia, em Madri.

Vida de Dali Salvador Dali, nasceu em 11 de maio de 1904, na cidade catalã de Figueres, e faleceu no dia 23 de janeiro de 1989. De família rica, Dali deu início à sua educação artística desde cedo, frequentando a Escola de Desenho Federal e começando a pintar com apenas 13 anos de idade. Foi muito incentivado pelos seus pais, tendo sua primeira exposição pública organizada pelo seu pai, Salvador Dalí í Cusí, no Teatro Municipal de Figueres, em 1919. Também estudou na Academia de Artes de San Fernando, em Madri, da onde foi expulso em 1926 por se recusar a fazer as provas finais. Apesar de ter sido influenciado pelos mestres do Renascimento, dominando com perfei-

ção o realismo, Dalí exercitou desde cedo sua criatividade, descobrindo a pintura impressionista com o artista Ramón Pichot, e posteriormente as vanguardas europeias, que caracterizaram suas obras até o fim da vida. Foi um artista versátil, tendo produzido esculturas, instalações, além de ter contribuído para o cinema, a moda, a fotografia, e inclusive para a publicidade, desenhando o logo da marca de pirulitos Chupa Chups. Uma figura excêntrica e marcante, de roupas coloridas e extravagantes, além do característico bigode – espelhado no pintor espanhol barroco Diego Velázquez – o próprio Dalí se tornou personagem de suas obras, uma de suas próprias criações. Após experimentações cubistas e dadaístas, o artista desenvolveu seu estilo próprio, inspirado pela vanguarda surrealista, e posteriormente influenciando-a completamente, tornando-se seu maior e mais conhecido expoente. Em 1924, fez sua primeira viagem à Paris, onde se tornou amigo dos artistas Pablo Picasso, Juán Miró, An-

dré Breton, Federico García Lorca e do cineasta Luis Buñuel, com quem produziu o curta-metragem surrealista Um Chien Andalou (Um Cão Andaluz), que pode ser assistido no Instituto Tomie Ohtake. Além de conviver com os vanguardistas em Paris, Dalí conheceu escritores famosos, como Ernest Hemingway e o casal Scott Fitzgerald, o cientista Albert Einsten e inclusive o psicólogo Sigmund Freud, cujas teorias psicanalíticas foram completamente exploradas pro Daí em suas obras. O artista também se envolveu com movimentos políticos na juventude, como o anarquismo e comunismo, mas sua personalidade e ideias excêntricas (chegou até a se declarar monarquista), fez com que fosse retratado como apoiador do regime fascista espanhol de Francisco Franco. Também em Paris, conheceu sua musa inspiradora e futura mulher, Gala Éluard, cujo nome verdadeiro era Elena Ivanovna Diakonova. Diversas obras da exposição de Salvador Dalí em São Paulo retratam Gala, mesmo que de forma


onírica ou bizarra, adjetivos presentes em diversas críticas sobre o estilo do artista. Com a morte de Gala, em 1982, Dalí ficou profundamente deprimido, e foi adoecendo com o tempo, morrendo de insuficiência cardíaca sete anos depois, aos 84 anos de idade.

Obras e Simbolismo O surrealismo foi um movimento artístico inserido no contexto modernista, caracterizado pelas vanguardas europeias. Desenvolvido ao longo do final da década de 1910, o Manifesto Surrealista é publicado pelo escritor francês André Breton, em 1924, destacando a importância do inconsciente na atitude criativa, baseado nas teorias psicanalíticas de Freud. “A atitude realista é fruto da mediocridade, do ódio, e da presunção rasteira. É dela que nascem os livros que insultam a inteligência.” Uma combinação do representativo, através do uso de metáforas imagéticas, do abstrato, do real e do inconsciente, a arte surrealista quebrou mais uma vez com os paradigmas artísticos da época, trazendo a realidade dos sonhos para a arte. A par-

tir disso, Dalí explorou intensamente o simbolismo em suas obras. Em diversas obras da mostra em São Paulo, podemos observar a presença de formigas, por exemplo. Tais animais remetem à morte, à decadência e ao desejo sexual, assim como os relógios derretidos, outra marca do artista presente em boa parte das pinturas, remetem à ideia de tempo relativo e fluído, algo herdado da teoria da relatividade geral de Einsten. Os símbolos fálicos, assim como outras representações do ato sexual, também caracterizam os quadros de Dalí, devido a grande importância da sexualidade para a psicologia, o inconsciente e os sonhos humanos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o interesse de Dalí pela ciência e ilusão óptica cresceu. Chocado com a bomba atômica e o ataque à Hiroshima, o artista incorporou a ideia de desintegração nuclear em algumas de suas obras. Uma delas, o quadro Máxima velocidade de la Madona de Rafael, de 1954, faz parte da coleção trazida pelo Instituto Tomie Ohtake, e retrata Gala como uma Madona, composta e desintegrada por uma matriz de esferas, representando átomos e partículas atômicas.

‘Máxima velocidad de la Madona de Rafael’ Dali (1954)

Dalí y Frida Au t o - r e t r a t o de Frida Kahlo

Devido à semelhança na utiliFrida Kahlo e o Surrealismo: zação de simbolismos, a arte de Devido Kahlo, à semelhança na utilização Frida reconhecida e adde simbolismos, a arte de Frida mirada por Salvador Dalí,Kahlo, foi classificada por elepore Salvador outros reconhecida e admirada expoentes do surrealismo, como Dalí, foi classificada por ele e outros surrealista. A pintora mexicana expoentes do surrealismo, como surreatambém utilizava metáforas relista. A pintora mexicana também uticorrentes, como o aborto, planlizava metáforas recorrentes, como o tas, animais símbolos da morte, aborto, plantas,e animais e símbolos da que transcreviam suas ideias e morte, que transcreviam suas ideias e emoções, o sofrimento e à paixão emoções, o sofrimento e àsuas paixão pela pela sua cultura, em obras. sua cultura, em suas obras. Porém, Frida Porém, Frida chegou a afirmar, chegou a afirmar, em resposta Dalí, em resposta à Dalí, que suaà arte que sua arte não foi e nunca havia não foi e nunca havia sido sursido surrealista, diferenterealista, porque,porque, diferentemenmente dosvanguardistas vanguardistas europeus, ela te dos europeus, ela não pintava seu inconsciennão pintava seu inconsciente. “Não te. pintei sonhos. sou “Nunca surrealista. Nunca pintei Pintasonhos. va a minha própria realidade”. Pintava a minha própria realidade”. 13


carol rosseti: o protagonismo da mulher na arte para soar tão natural e coloquial quanto o original em português. Isso porque tenho publicado simultaneamente as versões em português e inglês - pretendo começar a fazer isso com espanhol também.

Por Ana Carolina de Medeiros

Desde pequena, a designer e ilustradora Carol Rosseti colecionou livros de grandes pintores, alimentando o gosto que já tinha por desenhar. Hoje, seu trabalho é reconhecido principalmente pela internet, onde divulga ilustrações que tratam principalmente do universo da mulher. “Eu me sinto muito incomodada com as tantas formas de controle existentes sobre os corpos, comportamentos e identidade das mulheres; de forma que comecei uma série de ilustrações com um tom amigável na expectativa de mostrar o quão absurda é essa situação”, afirmou. A ilustradora é hoje reconhecida internacionalmente, sendo seus trabalhos traduzidos para diversas línguas. Em entrevista, ela explica um pouco do seu trabalho e suas influências. 14

Como é seu processo de pesquisa/criação? O processo até surgir a ilustração é um pouco complexo. Primeiro, eu tenho a ideia do tema, como por exemplo, uma mulher gorda usando um vestido listrado (foi o tema da minha primeira ilustração do projeto). Eu pesquiso sobre isso, converso com mulheres gordas, ouço o que elas tem dizer sobre as restrições clássicas das revistas de moda para o seu corpo e como elas se sentem em relação a isso. O texto é criado sempre tentando fo-

car numa mensagem positiva, com um tom amigável e não-agressivo. Depois, eu faço apenas o desenho no papel kraft. O texto eu faço separadamente, em uma folha branca, e monto a imagem no photoshop. No começo, fazia o texto direto no desenho, mas como o projeto começou a ser traduzido para várias línguas, ficou mais simples escrever o lettering separadamente. Atualmente, envio uma pré-tradução para o inglês para a minha agente norte-americana, que dá uma “ajeitada” no texto

Você tem artistas mulheres que te inspiram? Como elas influenciam na sua produção? Claro, várias.Acompanho o trabalho de algumas quadrinistas, como Marjani Satrapi, Melinda Gebbie e Jill Thompson. Além delas, gosto de falar sobre quadrinistas e ilustradoras da cena independente e/ou em surgimento, como Aline Lemos, Samie Carvalho, Ana, só Ana, Bi Anca, Rebeca Prado, a Lovelove6, Sirlanney - e, claro, a grande e eterna Laerte. Existem também artistas que não trabalham com ilustração, e mesmo assim são grande fonte de inspiração, como


Amanda

Palmer. gajamento

Como se da a relação artística do seu trabalho com seu ativismo? O Projeto Mulheres foi a forma que eu encontrei de me posicionar enquanto ativista. Eu não levo jeito para passeatas, apesar de apoiar muito esse tipo de manifestação. Só não é meu estilo. Também não sei me engajar em programas de ações concretas, como criação de abrigos para mulheres que sofrem violência doméstica, por exemplo. Eu sei desenhar e gosto de ouvir as pessoas, e meu trabalho é fruto disso. A sua produção sempre esteve ligada à causa feminista? Não. Na verdade, eu desenho vários outros tipos de temáticas, e não acho que a arte deva sempre ser necessariamente engajada socialmente. Existem muitas formas de fazer arte, de se expressar e tocar as pessoas. Este foi o meu primeiro projeto ligado a uma causa, e certamente não será o último, mas não pretendo me limitar sempre ao en-

político. rinhos feito por mulheres, atualmente. A Você acredita que arte é um meio de exos temas abordados pressão, e acho que teem seus quadrinhos mas desse tipo tendem ainda são muito rep- a ser mais discutidos rimido no universo nos meios artísticos artístico? do que em outros meios. É algo natu-

Acredito que a discussão sobre o feminismo tem crescido mais do que nunca. Hoje, vejo pessoas falando (bem e mal) sobre isso em vários lugares, e era algo que eu passei a maior parte da minha vida sem ver. Os quadrinhos foram, por muito tempo, um universo quase que exclusivamente masculino, mas isso vem mudando há algum tempo. Existe uma produção fantástica de quad-

ral. Ainda assim, o meio artístico ainda é muito machista. É algo que vai mudando aos poucos. Você se vê como uma inspiração para outras mulheres? Eu vejo meu trabalho como um lugar onde mulheres se encontram, dividem experiências e descobrem que não estão sozinhas. É algo que muita gente fala comigo, que se identificou com alguma ilustração, e quando

viu, tinha várias outras mulheres falando sobre suas experiências nos comentários. Perceber que não estamos sozinhas nos dá forças para continuar lutando. Isso é um aspecto muito positivo do meu trabalho. Mas eu, pessoalmente, não me vejo como inspiração. Pelo menos, não mais do que qualquer mulher que lute também. Todas as formas de lutar são válidas, e se a minha for inspiração para alguém, fico muito feliz! Qual a relação que você consegue enxergar do seu trabalho com artistas como Frida Kahlo? Não acho que consiga me comparar de forma alguma com Frida Kahlo, ela era simplesmente incrível! Ela sim, é uma grande inspiração, e verdadeiramente transgressora e valente em tantos aspectos. O trabalho dela era extremamente pessoal, e o meu já lida mais com a alteridade - apesar de falar sobre minhas próprias experiências eventualmente. Não sei bem o que dizer, qualquer coisa me parece estranha. Frida é Frida, e é isso aí: incomparável! 15


Marina Abramovic: A Artista Presente A artista desafia limites entre a arte e a dor, permanecendo como uma mulher enigmática

Por Andressa Vilela

“B

asicamente, você olha para várias Marinas: Você vê uma Marina que é produto de dois pais partidários, dois heróis nacionais, sem limites, determinada, que agarra o que estiver na frente dela. E perto desta há outra Marina, uma criança cuja mãe nunca deu amor o suficiente, muito vulnerável e inacreditavelmente decepcionada e triste. E há uma outra que tem uma certa sabedoria espiritual e pode ficar acima de tudo isso. E essa é a minha favorita.”

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vic se descreve. Uma mulher forte, responsável por uma obra tão forte quanto, que ultrapassa os limites entre a peça e o espectador: a performance.

Vida e obra Natural de Belgrado, Jugoslávia, Marina Abramovic, hoje com 68 anos, é considerada a “avó da performance”. Desde o início de sua carreira, o corpo foi o seu tema e o meio, através do qual ela explora limites físicos e mentais, experimentando dor, exaustão e perigo aliando a fotografia, o som, o vídeo e a escultura às suas performances, o que leva o espectador à reflexões e emoções tão profundas quanto às que levam Marina a imaginar suas obras.

A performance é um estilo que surgiu na década de 60 como alternativa à pintura, no qual o corpo é o objeto artístico. O maior desejo de Marina é que a performance fosse respeitada enquanto arte e deixasse de ser apenas conhecida como alternativa. Hoje, depois de 40 anos de carreira, o ainda é estigmatizado. Porém, a obra de Marina segue enig- Em 1974, com o tramática, desafiadora, balho Rhythm 2, a É assim que a artismarcante e respeitada. artista explorou a reta Marina Abramo-

lação entre corpo e mente dividindo a performance em dois momentos: Numa primeira fase, ingere um medicamento que deixa o seu corpo imobilizado até entrar em convulsão. Embora não possuísse qualquer controle sobre a movimentação do seu corpo, a sua mente estava lúcida e a artista tinha consciência de tudo o que se estava acontecendo com ela e a sua volta. Posteriormente Marina ingere outro medicamento, um calmante, que coloca a sua mente num sono profundo. Na primeira fase apenas sua mente estava presente enquanto que na segunda era


apenas o seu corpo. Moderna, em Nova York) com uma reAinda no mesmo trospectiva de sua ano Marina Abramo- obra, performada por vic realiza Rhythm 0, mais de 30 artistas. onde trabalhou a relação entre o público Nessa exposição, Mae o artista. Utilizou rina exibiu um novo o seu próprio corpo trabalho: The Artist como médium entre is Present (A Artiso artista e o público ta está presente), no eliminando qualquer qual ela permaneceu distancia entre os sentada durante todo dois sujeitos. A artis- o momento em que ta permanecia senta- a exposição estava da numa cadeira e, ao aberta – foram toseu lado, sobre uma talizadas 700 horas. mesa havia sido dis- Em frente a ela, uma postos um total de 72 mesa com uma cadeiobjetos: desde rosas ra vazia, convidane escovas a tesouras, do qualquer pessoa facas, e armas, que a se sentar. “Por que poderiam ser usados eu não poderia fazer pelos espectadores uma simples retroscomo estes quisessem. pectiva com 37 pesCom o passar do tem- soas representando po, e como a artista minhas peças? Parece permanecia sempre ser um carma que eu quieta e serena, o pú- tenho, de fazer coisas blico foi se tornando difíceis. Que Deus me cada vez mais agres- ajude a chegar até o sivo: Cortaram-lhe as fim”, disse a artista soroupas, picaram-na bre a então nova ideia. com os picos das rosas, apontaram-lhe Nesta performance, uma arma à cabeça. fica clara a força de Marina. Foram muitas as pessoas que, só de ficarem sentadas, olhando fixamente para a artista, começaram a chorar. Em 2010, a Marina Abramovic ocupou Foi durante essa obra os seis andares do enigmática que Maprotagonizou Museum of Modern rina Art (Museu de Arte um dos momentos

Artista Presente

mais marcantes de sua carreira: se encontrou com um antigo companheiro de trabalho e da vida: Ulay. O também artista performático foi seu parceiro por 12 anos e juntos eles criaram obras que exploravam as relações entre homens e mulheres e suas identidades. Nele, Marina encontrou alguém que, assim como ela, não via limites no modo de fazer arte. A confiança e amor entre os dois era tão forte que chegaram a morar em um carro por cinco anos, rodando a Europa e vivendo de arte. Seja correndo por uma sala (Relation in Space), respirando pela boca um do outro até ficarem inconsciente (Breathing In/ Breathing Out), gritando (AAA-AAA) ou ficando nus em um corredor onde pessoas teriam que passar se encostando nos dois e escolhendo a quem encarar ( Imp onde rabi l i a) , eles se apresentavam como “um só corpo de duas cabeças”. Após traições dos dois, um último

grande ato encerrou o relacionamento: ambos caminharam pela muralha da China, cada um partindo de uma ponta, para se encontrarem três meses depois, no centro da construção, e encerrarem a parceria. Anos depois, Ulay compareceu ao MoMA para se sentar em frente à Marina. O encontro é surpreendente, incrível e emocionante e, como sempre, muito forte. Após a separação dos dois, Marina ficou muito angustiada em relação à vida e ao trabalho. Com a moda, ela encontrou uma forma de se divertir e de se sentir bem. Foi nessa época que se aproximou da alta costura, do teatro e da vaidade feminina. "Marina Abramovic Institute for Preservation of Performance Art" situado em Hudson, Nova York foi inaugurado em 2012. Com o instituto, Marina pretende não só assegurar o seu legado artístico, mas garantir a preservação, ensino e apoio à arte-performance.

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Lygia Clark: a não-artista

Símbolo da arte contemporânea, a mineira recusou o título de artista durante toda sua carreira

Por Bia Avila

“U

ma mulher à frente do seu tempo, revolucionária em sua militância e também em sua arte. Assim como Frida Kahlo, Lygia Clark é uma das mulheres mais importantes no mundo da arte: a mineira, nascida em 1920, rejeitou os padrões modernos, fundou um movimento artístico e experimentou a arte sensorial. Em uma época que as mulheres estavam confinadas dentro do mundo privado e das obrigações domésticas, mesmo casada e com três filhos, Lygia foi ao Rio de Janeiro estudar arte, aban18

donando a tradição jurista de sua família e levando seus filhos. Começou seus estudos com Roberto Burle Marx em 1947. Três anos depois, estava em Paris, sozinha, estudando com Léger, Dobrinsky e Arpad Szenes. De volta ao Rio de Janeiro, Lygia integrou o Grupo Frente (1954 e 1956), liderado por Ivan Serpa, um movimento brasileiro construtivo das artes plásticas que estudava o espaço e a materialidade do ritmo. Não satisfeita, a artista fundou seu próprio movimento artístico alguns anos depois, o neoconcretismo.

Buscando uma nova linguagem abstrata, Lygia se dedicou a obras e instalações que pudessem interagir com o público. Um dos maiores exemplos é o Bichos, esculturas articuladas que podiam ser manipuladas por qualquer um. Assim, ela conseguia a participação do espectador, usando objetos sensoriais para provocar sensações.

mulando um nascimento: a estrutura de 8 metros de comprimento tem diversos ambientes, denominados “penetração”, “ovulação”, “germinação” e “expulsão”. A significativa mudança de mero espectador para participante da obra é uma característica fundamental da Arte Contemporânea, incorporada com fevor pela artista. A partir dessa época, Lygia Outro exemplo é A se dedicou à suas insCasa É o Corpo: La- talações e a body art. birinto (1968), que simula um útero no Caminhando (1964) qual o público entra e é outra obra famosa experimenta diversos que mostra a escosentimentos análogos lha da artista. A ideia aos experimentados é que o participante pelo útero de uma crie uma fita de Moemulher, como que si- bius(matemático ale-


mão). Corta-se uma faixa de papel, torce uma das extremidades e une as duas pontas. Depois a recorta novamente e repete os processos, fazendo com que a fita se desdobre em entrelaçamentos cada vez mais estreitos e complexos. Todas essas obras e instalações fizeram Lygia ter uma postura interessante sobre a figura do artista. Na realidade, ela nega esse título e se apresenta como propositora ou canalizadora de experiências. Em sua visão, a arte se dá por meio da interação dos materias expostos e dos visitantes, nunca é algo que ela mesma cria e oferece de forma passiva. É a mais pura desmistificação do artista e da arte, além de desalienar o espectador e chamá-lo para participar daquele momento, que antes era contemplativo. No ano de 1970, Lygia foi lecionar arte na Faculté d´Arts Plastiques St. Charles, Sorbonne, em Paris. Nesse período, desenvolveu experiências terapêuticas com seus objetos sensoriais com seus alunos. Esse seu inte-

resse por terapia a fez Somos os propositores; somos se aproximar da psi- o molde; a vocês cabe o socanálise e ela passou a pro, no interior desse molde: o dar consultas terapêu- sentido da nossa existência. ticas particulares nos Somos os propositores: nossa seus últimos anos de proposição é o diálogo. Sós, não vida, no Rio de Janei- existimos; estamos a vosso dispor. ro. Lygia morreu em Somos os propositores: enterra25 de abril de 1988, mos a obra de arte como tal e solicitamos a vocês para que no Rio de Janeiro, víti- o pensamento viva pela ação. ma de um infarto. Sua obra, no entanto, ficou Somos os propositores: não lhes propomos nem o passado nem eternizada, ganhanfuturo, mas o agora. do reconhecimento o internacional com retrospectivas em várias Caminhando (1964), obra que o participante cria uma fita de Moebius mostras internacionais.

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A pintora do Brasil Por Andressa Vilela

Tarsila do Amaral, pintora brasileira, começou sua carreira na arte com escultura e logo passou a ter aulas de desenho e pintura no ateliê de Pedro Alexandrino em 1918, onde conheceu a pintora Anita Malfatti. Em 1920, foi estudar em Paris e ficou lá até junho de 1922, quando soube da Semana de Arte Moderna

Tarsila do Amaral e sua obra modernista através das cartas da ões, festas e conferênamiga Anita Malfat- cias. Foi aqui que Tarti. Embora não tenha sila teve seu primeiro participado do mo- contato com a arte vimento, a artista é moderna, rompendo um símbolo da arte com o academicismo moderna brasileira. cultural que rondaQuando voltou ao Bra- va o Brasil à época. sil, ela passou a compor “grupo dos cinco”, formado por Tarsila, Anita, Oswald de Andrade, e os escritores “Encontrei em Minas Mário de Andrade e as cores que adorava Menotti Del Picchia. em criança. EnsinaCinco artistas que agi- ram-me depois que taram culturalmente eram feias e caipiSão Paulo com reuni- ras. Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: o azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante”, disse a artista uma vez.

Pau Brasil

E essas cores tornaram-se uma das marcas da sua obra, assim como a temática brasileira, com as paisagens rurais e urbanas do país, além da fauna, flora e folclore do nosso povo. Ela dizia que queria ser a pintora do Brasil. E foi.

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Abaporu - 1928

Em 1924, consolidou sua produção: dotada

de cores e temas acentuadamente tropicais e brasileiros, onde surgem os bichos nacionais, a exuberância da fauna e da flora brasileira, as máquinas, trilhos, símbolos da modernidade urbana. Além do tema e das cores, Tarsila trouxe a técnica do cubismo aprendida em Paris para os seus trabalhos, ficando conhecida como a fase Pau Brasil. Tarsila também pintou os temas urbanos, como em “São Paulo” (1924) e “Morro da favela” (1924). Retratou figuras humanas arquetípicas, como nos famosos “A Negra” e “A caipirinha” (ambos de 1923), e registrou o interior brasileiro, como em “Cartão-Postal” e “Sol Poente” (ambos de 1929).

Antro po fagi a Tarsila rou

não por

paaí.


“Eu invento tudo na minha pintura. E o que eu vi ou senti, eu estilizo.” Tarsila do Amaral, em entrevista a “Revista Veja”, fevereiro de 1972. Foi a pintora do Brasil também quando propôs, com o que viria a ser conhecido como Antropofagia, a digestão de influências estrangeiras, como no ritual canibal (em que se devora o inimigo com a crença de poder-se absorver suas qualidades), para que a arte nacional ganhasse uma fei-

Operários - 1933

ção mais brasileira. Em janeiro de 1928, Tarsila queria dar um presente de aniversário especial ao seu marido, Oswald de Andrade. Pintou o ‘Abaporu’. Quando Oswald viu, ficou impressionado e disse que era o melhor quadro que Tarsila já havia feito e os lembrou de uma figura indígena, antropófaga.

A artista batizou o quadro de Abaporu, que significa homem que come carne humana, o antropófago e Oswald escreveu o Manifesto Antropófago e fundaram o Movimento Antropofágico.

se, pois ainda muitas pessoas ainda não entendiam sua arte.

Em 1931, Tarsila expôs em Moscou. Lá, sensibilizou-se com a causa operária, o que a levou à tela ‘Operários’ (1933), pioneira da teA figura do Abaporu mática social no Brasil. simbolizou o Movimento que queria de- No Brasil, por parglutir, engolir, a cul- ticipar de reuniões tura européia, que era políticas de esquera cultura vigente na da e pela sua chegada época e transformá- após viagem à URSS, -la em algo brasileiro. Tarsila é consideraTarsila contou, mais da suspeita e é presa, tarde, que o Abaporu acusada de subversão. era fruto de imagens do seu inconsciente A partir da década e tinha a ver com as de 40, Tarsila passa a histórias que as ne- pintar retomando esgras contavam para tilos de fases anterioela em sua infância res. Expõe nas 1ª e 2ª Em 1929 Tarsila fez Bienais de São Paulo e sua primeira Exposi- ganha uma retrospecção Individual no Bra- tiva no Museu de Arte sil, e a crítica dividiu- Moderna de São Paulo (MAM) em 1960. É tema de sala especial na Bienal de São Paulo de 1963 e, no ano seguinte, apresenta-se na 32ª Bienal de Veneza. Tarsila participou da I Bienal de São Paulo em 1951, teve sala especial na VII Bienal de São Paulo, e participou da Bienal de Veneza em 1964. Foi a pintora do Brasil também em outros países. E faleceu em janeiro de 1973. 21



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