Para enxergar um novo mundo
Assim que a professora Andréia Veridiana Wagner escreve a última palavra no quadro negro, Manoel se prontifica. Larga o lápis sobre o caderno, levanta da classe verde e, com passos lentos, vai até a frente da sala de aula. A mão acostumada a lidar com a plantação de tabaco pega o giz. Manoel Odílio Quintana tem 51 anos e fez a lição de casa dada na aula anterior. Ele entendeu o conteúdo e, por isso, nem precisa copiar do caderno. For-mi-ga. Pom-ba. Ár-vo-re. Com calma, separa as sílabas de cada palavra. Depois, circula as vogais. Do lado da janela da sala de aula da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Venâncio Aires, Lady Spíndola, 70 anos, não se distrai com a lavoura de fumo que faz divisa com o colégio. Apesar dos óculos, ela espicha o olho para ver como Manoel resolve o exercício. Quando ele termina, Lady chama a professora: ela errou a divisão de sílabas de “ferroada”. Andréia explica a forma correta e elogia. O interesse dos alunos anima a alfabetizadora. Desde o dia 24 de outubro deste ano, Andréia se encontra todos os sábados à tarde com os sete adultos e idosos dispostos a aprender a ler e escrever. Moradores de Linha Canto do Cedro, no interior de Venâncio Aires, eles aceitaram participar do projeto Brasil Alfabetizado, promovido no município pela Secretaria Municipal de Educação. De moto, a professora de 26 anos percorre os cinco quilômetros que separam sua casa, no bairro Cidade Nova, da escola onde leciona. O roteiro deve ser o mesmo pelos sábados dos próximos sete meses. Ela gosta. Se alegra ao ver o entusiasmo de quem, depois de velho, está descobrindo o significado das letras. “É uma experiência diferente trabalhar com adultos. As crianças são obrigadas a ir para a escola. Eles vieram por interesse deles, porque querem participar”, destaca. Lady e Manoel são alunos aplicados da turma de Andréia. Os dois já tinham noções de escrita, mas resolveram participar do programa de alfabetização, depois da visita da professora. De casa em casa, acompanhada pela agente de saúde da localidade, ela explicou como funcionaria o projeto e convidou para as aulas. Lady aceitou de primeira. Quando criança, a vida judiada de quem morava na roça não deixou concluir os estudos. “Eu ia passar para a quinta série e saí. Fizemos a primeira comunhão. Daí quem tinha 11 anos, ia passar para os 12, já saía. Tinha muito serviço para fazer”, lembra. Viúva aos 29 anos, deixou os dois filhos com os pais e se mudou para Porto Alegre. Foi ajudar uma prima dona de confeitaria. Na capital do estado, ficou por três décadas. Trabalhando. Depois de aposentada, voltou para a terra natal. Dois meses atrás, descobriu que a chance de estudar estava a pouco mais de um quilômetro e meio de casa. “A gente entrou na aula para aprender as coisas que a gente não sabe. Muita coisa a gente esqueceu nos atropelos da vida”, justifica. Ao mesmo tempo em que busca aprender o que esqueceu nos “atropelos da vida”, Lady
enxerga no projeto a possibilidade de superá-los. Enquanto espera a colega Diversina da Silva se aprontar para a aula, ajeita a bolsa em cima do colo: “Perdi meu filho, daquela doença maldita”, lamenta, de cabeça baixa, referindo-se ao câncer. As horas na sala de aula ajudam a esquecer a dor: “Pra mim isso é uma terapia”. Enquanto prende o choro, Lady abre a bolsa. Bebe um gole d’água, de um recipiente de maionese, envolvido cuidadosamente com um sacola plástica para não derramar. Com as lágrimas engolidas junto com a água, ela se anima de novo. Tira de dentro da bolsa os materiais que ganhou quando entrou no projeto: caderno, lápis, canetinha hidrocor, borracha e lápis de cor. “Toda vez que eu chego em casa as crianças reviram as coisas para ver o caderno”, conta, referindo-se aos três netos. De pé, se ajeita para pegar a estrada e não perder a hora da aula. A bolsa vai num braço, enquanto o outro ergue o guarda-chuva preto em cima da cabeça, para proteger do sol. A cerca de 200 metros da escola, o Manoel se aproxima da colega. De chinelo de dedo e camisa social vermelha, ele vai de bicicleta para o colégio, com os materiais escolares numa sacola azul de supermercado. Agricultor pai de seis filhos, Manoel tem a 6ª série completa e garante que já sabe ler. “Eu vim para ajudar. Pelo menos saio de casa um pouco”. Atenta à conversa, Lady opina: “Tudo o que a gente aprende é válido. A gente tendo conhecimento, cada vez melhora mais. Uma pessoa pergunta uma coisa e a gente sabe explicar melhor”. Na turma da Linha Canto do Cedro, só uma aluna chegou totalmente analfabeta. Os outros seis têm graus de alfabetização diferentes. Um desafio para a professora Andréia, que ainda tem pela frente dois anos do curso de Pedagogia. Nos oito meses do projeto, ela tem o objetivo de ensiná-los a entender o significado das palavras e conseguir se comunicar por meio das letras. Assim como Andréia, outras 12 alfabetizadoras aceitaram a proposta de trabalhar para diminuir a taxa de analfabetismo de Venâncio Aires, que chega a 4,61% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma vez por mês, as professoras se encontram no auditório da Secretaria de Educação. Compartilham experiências e participam de palestras para aprender a lidar com as dificuldades dos alunos. E, acima de tudo, com as histórias de vida deles. Afinal, no meio do caminho, muitos desistem. Alguns, em função do trabalho. Outros, por causa de problemas pessoais e da dificuldade de aprender depois tanto tempo vivendo longe das letras. Manter os alunos no programa de alfabetização não é tarefa fácil. Conforme a coordenadora municipal do projeto, Andréia Cassuli, como forma de incentivo os alunos recebem os materiais escolares e merenda. Além disso, quem mora a mais de dois quilômetros do local das aulas ganha vale-transporte. Para Andréia, o mais difícil, no entanto, é os alunos darem o primeiro passo: se matricularem para o Brasil Alfabetizado. Ela comenta que, quando há sonhos por trás da vontade de
aprender a ler e escrever, o processo de alfabetização se torna mais fácil.
Na primeira edição do programa, entre outubro de 2010 e abril deste ano, as alfabetizadoras de Venâncio Aires conseguiram tirar 150 das 2.457 pessoas da escuridão do analfabetismo. “É assim que o município se desenvolve por inteiro. Não há desenvolvimento enquanto houver pessoas que estão à margem do mundo letrado. Sentimos o dever de resgatar e oportunizar a alfabetização para essas pessoas que não tiveram oportunidades ao longo da sua vida”, salienta Andréia. Foi com esse ponto de vista que ela e os colegas da Secretaria de Educação escolheram um nome para batizar o programa. De Brasil Alfabetizado passou a Alfabetizar: um novo mundo que se abre.
A comunidade quer o mundo novo
Em Vila Estância Mariante, zona rural de Venâncio Aires, a mobilização dos moradores fez com que a localidade também tivesse uma turma do Alfabetizar: um novo mundo que se abre. No início de outubro, quando a Secretaria Municipal de Educação divulgou o projeto no centro da cidade, a proposta chamou a atenção do pastor Jairo Adriano de Souza, da Assembleia de Deus, e do membro da igreja Ildo Vilmar Durasky. A entidade colocou a sede à disposição e começou a convidar pessoas não alfabetizadas para o projeto. Professora, Vera Rejane Ferreira também decidiu se envolver no programa. A experiência de sala de aula se somou à vontade de ajudar vizinhos a conhecer o mundo das letras. Mais do que divulgar o projeto nos colégios onde trabalha, escolheu ser alfabetizadora da turma da Estância. Enquanto pessoas como Jairo, Ildo e Vera se uniram para elevar os índices de alfabetização de Vila Estância Nova, moradores como Teresa Loreci Brito, 60 anos, viram no projeto uma forma de realizar sonhos e compensar uma vida vivida na escuridão de quem vê as palavras mas não sabe o que elas significam. Teresa tem uma vida tranquila: cozinha, cuida da casa e capina o canteiro de verduras. Mas ela também tem um sonho. A aposentada quer aprender a ler para cantar no coral da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, da qual participa. “Eu vou me esforçar para aprender”, promete.
A beata do livro
O outro mundo de Senita Inácia dos Santos, 57 anos, estava mais perto do que ela imaginava. Para deixar para trás o analfabetismo, ela precisou apenas atravessar a rua. Foi no ginásio do bairro Gressler, em frente a sua casa, que a aposentada conheceu os números e as letras, durante a primeira edição do Alfabetizar. Nas manhãs de sábado, marido e serviço doméstico
ficavam em segundo plano para Senita se encontrar com a alfabetizadora Djúlia Henicka, 21 anos. Na parede da sala de Senita, as fotos dos filhos e netos dividem espaço com o certificado de alfabetização e uma mensagem da professora que a ensinou a ler e escrever. Apesar do fim das aulas, o gosto pela leitura, o jeito de falar pausado e a pronúncia correta das palavras não foram deixados de lado. Senita se formou na tarde nublada de 14 de maio de 2011. No centro paroquial de Venâncio Aires, foi a única aluna de Djúlia a receber o diploma. As outras abandonaram o projeto antes do fim. Os aplausos da plateia a deixaram emocionada. Depois da formatura, Senita não largou os livros. Muito pelo contrário. Já perdeu as contas de quantos leu. A coleção tem mais de 40 obras infantis, de fábulas, piadas e contos de fada. A dona de casa também pega livros emprestados e exercita a escrita passando a limpo o caderno de receitas. “Eu leio tudo o que me chama a atenção”, explica. Esse hábito – em qualquer dia, em qualquer hora – lhe rendeu um apelido: beata do livro. Foi assim, que o marido, orgulhoso, a definiu.
O que melhorou na sua vida depois do projeto de alfabetização? Melhorou tudo para mim. Antes eu existia, mas não sabia que existiam tantas coisas boas. Hoje eu pego um jornal, uma revista e leio. Antes eu não lia. As letras me chamam muita atenção. Quanto mais a gente lê, mais a gente entende. Não adianta soletrar mas não saber o que quer dizer. Primeiro, o jornal para mim era só para botar no lixo. Agora eu leio.
Aprender a ler e escrever te facilitou alguma coisa? Sim. Para pegar um ônibus, eu sei ler. Para ir no mercado, sei ver os preços, olhar a data de validade... Para escolher as coisas mais baratas também. Dá um orgulho.
Qual foi o momento mais emocionante do projeto? A formatura foi uma coisa para não esquecer. Ter chegado até lá com essa idade...isso foi uma história. No dia da formatura foram o meu marido e os meus filhos. Foi uma coisa emocionante. Nas aulas teve um dia que eu cheguei no colégio que nem criança: louca para que a professora tomasse a lição. Eu consegui ler dois livros para ela. Correu água dos olhos dela.
O que a senhora diria para quem não é alfabetizado? Vão à luta porque é muito bom. Eu não sabia ler e hoje eu sei. Nunca é tarde para a gente aprender.